7 minute read

1.3.8 Tia Ciata

o que está fechado tem de ser desobstruído para a passagem, nesse caso, do cordão “Rosa de Ouro” .

De igual forma, os versos “Eu sou da Lira/ Não posso negar” expressam uma afirmação de identidade, muitas vezes, inscrita nos sambas-enredos. Lira, como sabemos, é um instrumento musical que surgiu em tempos imemoriais e foi utilizado especialmente na Antiguidade. No sentido figurado, esse substantivo significa inspiração poética. A confirmação de ser da Lira (destaquemos que o substantivo comum é grafado em maiúsculas, intencionalmente, dado o seu valor) define o pertencimento do sujeito que canta, a identidade que ele tem com aquele instrumento musical de longas eras e com o gênio da inspiração. Recordemos que o poeta Orfeu, uma das personalidades da mitologia, comumente homenageadas no carnaval, tocava a sua lira e, pela música, dela produzida, foi capaz de realizar vários feitos heroicos e acalmar os corações mais violentos. Portanto, há de se reconhecer a riqueza sugerida nessa única palavra – Lira –que reúne elementos do passado, da tradição clássica, e daquela ocasião presente, o Carnaval de 1899. Os versos “Rosa de Ouro/É que vai ganhar” antecipam também todo o orgulho, toda a autoestima, todo o pensamento positivo que os compositores, carnavalescos e foliões têm sobre o desempenho de suas escolas nos desfiles. É uma maneira de acentuar a força coletiva da comunidade. Se o sujeito que enuncia é o da Lira, o seu cordão, o seu conjunto que canta, dança e desfila é que haverá de ser reconhecido, de ser o consagrado.

Advertisement

1.3.8 – TIA CIATA

Nos estudos sobre o desenvolvimento do Carnaval no Brasil, é essencial

considerar o imprescindível papel desempenhado pelas famosas tias baianas que exerciam várias funções; quituteiras, mães de santo, rezadeiras, sambistas. Dentre aquelas que fizeram parte da história inicial do Carnaval, destaca-se, de forma inequívoca, a personalidade de Hilária Batista de Almeida – a Tia Ciata, que tivera vários outros codinomes: Siata, Asseata, Assiata, Aceata e Aciata. Segundo Muniz Sodré, Tia Ciata era casada com o médico negro João Batista da Silva (para outros teóricos, ele não havia concluído o curso de Medicina) que se tornara chefe de gabinete do chefe de polícia no governo Wenceslau Brás – informação relevante neste estudo por sugerir possíveis formas de interação dos sambistas com o sistema

policial e político. Evidentemente, as influências do esposo, especialmente pela notoriedade do cargo que ele ocupara, colaborariam também para a estratégia de consolidação do samba e minimizariam os graves impactos causados por muitas autoridades de segurança, ao reprimirem várias manifestações culturais negras, alegando a necessidade da “ordem”.

“Nascida Hilária Batista de Almeida, em 1854, Tia Ciata arregimentava eventos que mesclavam cultura, dança e religiosidade (Foto: Divulgação do Acervo da Organização Cultural Remanescentes de Tia Ciata - ORCT)”. Fonte: http://www.cultura.gov.br/100-anos-de-samba//asset_publisher/NL9Jw9zBUXPC/ content/tia-ciata -a-matriarca-do-samba/10883

A partir de depoimentos de antigos frequentadores da casa da Tia Ciata, Sodré descreve que aquela residência tinha seis cômodos, um corredor e um terreiro (quintal). Aponta que, na sala de visitas, realizavam-se bailes (polcas, lundus etc.); na parte dos fundos, samba de partido-alto ou samba-raiado e, no terreiro, batucada. Dessa forma, destaca que a casa era um campo dinâmico de reelaboração de elementos da tradição cultural africana, um importante local de expressões identitárias: “O samba já não era, portanto, mera expressão musical de um grupo social marginalizado, mas um instrumento

efetivo de luta para a afirmação da etnia negra no quadro da vida urbana brasileira.” (SODRÉ, 1998, p. 16) Aquela residência memorável, de várias confluências artísticas, foi o local em que surgiu Pelo Telefone, samba que entraria no mercado fonográfico com um novo paradigma musical. Segundo Sodré, a residência da Tia Ciata funcionava como o centro de continuidade da Bahia negra, de parte da diáspora africana, no Rio, e de outras do mesmo estilo. O samba ganhava as ruas, as avenidas, sendo que a criação coletiva de Pelo Telefone foi creditada aos boêmios e jornalistas que frequentavam a casa da Tia Ciata, como Mauro de Almeida, Sinhô, João da Mata, Donga, Mestre Germano, Hilário Jovino e Pixinguinha. Sérgio Cabral, tendo como referência informações do radialista e pesquisador Henrique Foreis Domingues, o Almirante, constata que a casa da Tia Ciata representa, na memória cultural dos sambistas, um destacado centro de música e do Candomblé onde

nasceu o primeiro samba gravado, dentre outros,

O radialista e pesquisador Almirante (Henrique Foreis Domingues) apontou a casa de tia Ciata, na Rua Visconde de Itaúna, perto da Praça Onze, como local de nascimento do samba do Rio de Janeiro, porque lá se reunia uma das duas elites da comunidade negra, formada por criadores que quase sempre tocavam algum instrumento musical – uns, por sinal, com grande maestria (a outra elite era integrada pelos trabalhadores no porto, onde a remuneração –assim como a sua organização sindical – era bem superior à dos proletários de um modo geral). Outro fator que levou Almirante a destacar a casa de tia Ciata, um centro de música (onde se tocava choro e se cantavam vários tipos de samba, especialmente o partido alto) e de candomblé, foi o fato de ter nascido lá o Pelo telefone o primeiro samba gravado, mas essa é uma questão que se coloca apenas pelo prazer da discussão. É indiscutível que, antes de Pelo telefone, foram gravados sambas sem que o disco informasse no selo tratar-se de sambas, foram gravados outros gêneros que não eram sambas com o nome de samba e foram até gravados sambas com a identificação de samba. (CABRAL, 2011, p. 31-32, grifo do autor).

Hiram Araújo, similarmente, assegura que, na casa da baiana Tia Ciata, situada próxima à Praça Onze, frequentemente, encontravam-se músicos, poetas e ritmistas e confirma que ali nasceu o samba carioca. “Jovens compositores da época – Pixinguinha, Donga e João da Baiana – se reuniam na casa da Tia Ciata, onde criaram uma forma musical por vezes híbrida, porém personalística e brasileira.” (ARAÚJO, 2003 p. 104)

Capa da partitura Pelo Telefone, considerado o primeiro samba a ser gravado no Brasil, disponível no Acervo de Música e Arquivo Sonoro da Biblioteca Nacional. Fonte: http://www.bn.br/acervo/musica-arquivo-sonoro

Nesse contexto, Hermano Vianna certifica-se de que a casa da Tia Ciata era um espaço demasiado inclusivo, uma vez que não se tratava de um local de frequência exclusivamente negra. “Ari Vasconcelos aponta, entre os músicos que participaram das rodas de samba de Tia Ciata, o cigano Saudade. Aliás, ainda segundo Ari Vasconcelos, os ciganos não tiveram papel secundário na invenção do ritmo nacional brasileiro. ” (VIANNA, 2012, p. 112) Nessa mesma linha, acerca da inclusão da diversidade, Muniz Sodré, em Samba,

o dono do corpo, destaca que as pessoas de cor no Rio de Janeiro reforçavam as suas próprias formas de sociabilidade e os padrões culturais transmitidos, principalmente, pelas instituições religiosas negras, que atravessaram incólumes séculos de escravatura. Afirma, também, que as festas institucionalizavam formas de sociabilidade e ritos de contato interétnico – “brancos eram admitidos nas casas” – explicitando, assim, as suas impressões sobre a residência da Tia Ciata. (SODRÉ, 1998, p. 6)

Fachada da casa de Tia Ciata na Praça Onze, Arquivo da PUC – RJ. Fonte: http://www.projetonowloading.com.br/o-inicio-das-escolas-de-samba-rio-de-janeiro/

Assim, considerando que o ano de 1917 marcou uma etapa decisiva na vida musical do Rio e do Brasil, em virtude do lançamento de Pelo Telefone, Edgar de Alencar aponta, como embrião da nova etapa do cancioneiro carnavalesco, a casa da Tia Ciata.

A história já foi contada e recontada, mas não pode ser omitida nestas páginas tal a sua importância. Na casa da Rua Visconde de Itaúna, 117, bem próximo à Praça Onze, morava Hilária de Almeida, baiana macumbeira conhecida pela boêmia que a rodeava como Tia Asseata, Assiata ou Ciata. Sua casa era famosa. De lá saíra o rancho Rosa Branca depois denominado Macaco é Outro. Como disse certa vez Almirante, a casa da tia Asseata era um laboratório de ritmos manipulados por macumbeiros, pais-de-santo, boêmios e gente curiosa que ali acorria para assistir às cerimônias religiosas e às festas de sons que representavam. (ALENCAR, 1979, p. 116-117)

Imprescindível verificarmos que a mudança do nome do rancho ‘Rosa Branca’ pra ‘Macaco é Outro’ permite a leitura de uma resposta a um determinado ato discriminatório/preconceituoso. ‘Macaco é Outro’ , parece-nos um posicionamento explícito sobre a identidade daquele rancho ou mesmo uma transferência de acusação. Edgar de Alencar também acentua que a música Pelo Telefone iniciou uma nova etapa no cancioneiro carnavalesco do Rio, pela potência da expressividade dos versos e pela crítica das relações entre o chefe da polícia e os participantes dos jogos proibidos.

This article is from: