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Se acaso você chegasse

De noite me beija a boca E assim nós vamos vivendo de amor

Esta música é um dos tantos fatos "verdadeiros", que segundo Lupicínio Rodrigues, inspiravam suas canções. Conta a história de uma disputa amorosa entre o compositor e seu amigo Heitor de Barros, por uma mesma moça. Ao que parece, já haviam entrado em "peleias" anteriores por afetos femininos, nas quais, Lupicínio levara a pior. Neste caso, porém, a moça definiu-se por ele e, não sabendo como contar ao amigo, Lupicínio acabou fazendo a música.

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A letra da canção remete a uma situação de traição, contada em primeira pessoa, dirigida ao "ofendido" na situação amorosa, quando o autor sugere que a amizade entre ambos não termine, apesar de já estar morando com a mulher, objeto da disputa. A informalidade com que é "contado" o fato, o estilo coloquial em dizer através da canção, como se estivesse conversando com seu interlocutor, é uma das características desta canção. A utilização de imagens como o "barraco/chatô" associado ao "regato" e "bosque em flor" sugerem uma paisagem idílica, apesar da pobreza da moradia, num quadro que remete à felicidade plena do casal, que "vive de amor". Esta música compõe-se de duas partes somente, onde a primeira expressa o refrão (que inicia por se acaso você chegasse e termina no verso por ela que já lhe abandonou), introduzindo a canção, sendo repetido novamente, após a segunda parte.

Lupicínio classificava esta música como sendo uma "brincadeira", como os sambas que fizera em sua mocidade, destacando de certa forma, o humor mordaz que cercava estas relações, assim como o caráter despretensioso quanto ao ato de compor, reduzindo-o de certa forma, ao desconsiderá-lo enquanto esforço intelectual. Ele também chamava a atenção para o que considerava um "erro" na concepção desta música, atribuído a sua pouca experiência como compositor, quando apresentara a rima associando "roupa" e "boca"; o que para a crítica em geral, é considerado uma qualidade, como expressão de rima "rica".

Em seu depoimento ao MIS/RJ, Lupicínio evidenciou que o seu surgimento expressava um período de vida associado a sua infância e mocidade. Explicou que quando moço compunha sambas assim, e que mais tarde em função das desilusões

amorosas, e o inevitável amadurecimento pela idade, teria mudado seu estilo de composição. Declara, na ocasião, em 1968, que Roberto Carlos fazia "iê-iê-iê" porque ainda era jovem, mas que com o passar do tempo, também chegaria a "valsa” , como os mais velhos, referindo-se a uma música associada a acomodação e a maturidade. Acertou em cheio; preconizou as baladas românticas que seriam o futuro daquele compositor. Ainda comentaria que Roberto Carlos o copiara com essa história de "brasa", referindo-se a gíria e aos seus sucessos da época (como Quero que vá tudo para o inferno, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, em 1965, ou Vem quente que eu estou fervendo, de Carlos Imperial e Eduardo Araújo, gravada por Roberto Carlos em 1967). O mais inusitado foi não ter se dado conta de uma outra canção, de autoria do próprio Roberto Carlos que reproduzia uma situação muito semelhante aquela descrita em Se acaso você chegasse, atualizada na linguagem da época. Tratava-se da música Namoradinha de um amigo meu, sucesso em 1966, onde parte da letra diz:

Estou amando loucamente A namoradinha de um amigo meu Sei que estou errado Mas nem eu bem sei como isso aconteceu

O estilo brejeiro, leve, bem humorado, de Se acaso você chegasse, bastante diferente dos dramas amorosos que caracterizaram Lupicínio Rodrigues em fase posterior, causa espanto aos mais desavisados quanto a sua autoria. Expressava uma fase bastante descontraída, associada a sua juventude, as farras junto aos amigos, as muitas namoradas, enfim, a uma vida mais descompromissada, sem laços de casamento ou comprometimento mais sério. Integrava a primeira fase de criação do compositor, envolvido com a atividade carnavalesca, a descoberta da rádio e do glamour que a envolvia, o assédio das fãs, a definição pelo mundo da música como futuro profissional.

Chama a atenção, a primeira vista, a inusitada parceria com Felisberto Martins, já em 1938, ano em que a composição foi gravada. O suposto parceiro, que não morava em Porto Alegre, surgira misteriosamente na autoria, antes mesmo da famosa viagem de Lupicínio Rodrigues ao Rio de Janeiro, em 1939. Sugere um acordo comercial, quando ao acatar a segunda autoria, e por tal motivo considero esta uma música feita apenas por Lupicínio Rodrigues. Provavelmente a parceria tenha vindo em troca de que a música pudesse ser melhor "trabalhada" nos meios adequados, implicando uma boa gravação e

sua divulgação. Se analisarmos de perto, é o que ocorre, pois ainda que Ciro Monteiro fosse um cantor iniciante, apresentava-se como uma grande promessa, que se concretizou. O mesmo pode ser dito sobre Lupicínio enquanto compositor. A cuidadosa produção e o arranjo na música gravada apontam para um bem estruturado apoio ao intérprete, fazendo da música um estrondoso sucesso. A partir deste lançamento, Lupicínio Rodrigues seria um compositor bastante requisitado, ainda que a fase de consagração em sua carreira surgisse posteriormente, quando foram gravadas Nervos de aço e Vingança.

Como grande sucesso que foi, esta música continuou a ser gravada, em diversos estilos, e ainda ressaltando sua construção harmônica e melódica, vários destes registros são apenas instrumentais. Entre suas tantas regravações, Se acaso você chegasse definiu também a carreira de Elza Soares, em 1959.

Neste trabalho são apresentas 4 versões gravadas desta canção, junto aos Cds que acompanham o texto. São elas:

1) Cd1-

15ª faixa: traz a gravação original desta música, na voz de Ciro Monteiro.A música é aberta e fechada pela mesma seqüência melódica e instrumental (através da flauta), tendo a participação de um "ruidoso" coro feminino (numa característica dos sambas carnavalescos e da trajetória das escolas de samba), que apresenta e repete o refrão (muito semelhante ao efeito cênico do teatro grego, quando o coro integra-se ao espetáculo apresentado), enquanto que a performance de Ciro Monteiro reserva-se a conduzir os outros versos da canção.

Na formação instrumental que acompanha as vozes, apresenta-se a percussão e o uso de instrumentos de sopros e cordas, geralmente utilizadas nesse período. O clarinete, ou clarone (não foi possível precisar com mais clareza) destaca-se em dois momentos: salientando-se em meio a canção, como recurso e apoio a mensagem que traz a letra; e, quando é apresentada a essência da melodia que identifica a canção, num solo de instrumento, após o qual a música desenvolve sua conclusão.

Devido a importância da interpretação de Ciro Monteiro com relação a carreira de Lupicínio Rodrigues, considerei adequado incluir ao menos mais uma performance

deste cantor, entre as faixas gravadas, de maneira a demonstrar um pouco mais de seu grande potencial como intérprete. Escolhi uma das canções apresentadas por ele, no programa produzido por Fernando Faro para a televisão, nos mesmos moldes em que Lupicínio Rodrigues também foi entrevistado. A canção destacada é Beija-me (de Roberto Martins e Mario Rossi), cantada por este intérprete, que vem acompanhando-se da caixinha de fósforo, fazendo inclusive um "solo" destacando a mesma, e

introduzindo o final da canção. Dizia-se de Ciro Monteiro, que era "exímio" tocador de caixinha de fósforo; daí o exemplo gravado. Nesta faixa, é possível também perceber a excelente dicção do cantor, que se preservou ao longo do tempo, visto que a gravação é de 1972. Percebe-se, ainda, um estilo bem característico, autêntico, na maneira carioca

deste intérprete de expressar o samba. Somando-se a tudo isso, a melhoria na captação de sua voz, comparando-se a gravação do original de Se acaso você chegasse (de 1938), sendo registrada então com mais nuances; e também, a diferença na formação do conjunto que o acompanhava, sendo desta vez um "regional", com grande destaque a flauta, demarcando uma outra forma de arranjo musical.

2) Cd1-17 ª faixa: Lupicínio Rodrigues é o intérprete de Se acaso você chegasse, em gravação de 1952. Apresenta a canção segundo um formato definido, quando a música é introduzida por um conjunto instrumental, onde se destacam os sopros acompanhados por baixo, chocalho e piano, e muito provavelmente, também, o violão. O acompanhamento a voz do cantor, respeita seu ritmo "normal", desacelerado, característico em sua maneira de se expressar. A canção é apresentada em toda a extensão da letra. O canto interrompe-se na reapresentação da melodia, pelos mesmos instrumentos em conjunto, sendo retomado e finalizando a música.

Vale ressaltar que Lupicínio utilizou-se de um recurso já protagonizado por Ciro Monteiro, na última parte da canção, quando ao final dos versos a expressão "me lava a roupa" é substituída pelo que seria a imitação do som/ato de lavar roupa, e "me beija a boca" é substituída pelo "som de beijos". Esta estratégia também é "copiada" em outras versões.

3) Cd1-18 ª

faixa: A gravação feita por Elza Soares, nesta versão, não corresponde a primeira da cantora. Apesar de haver localizado seu primeiro registro, achei interessante mostrar o constante processo de atualização e projeção que tem esta

cantora. A versão que escolhi foi gravada em 1996, 37 anos após a primeira gravação da mesma música, e demonstra mais um grande momento desta intérprete, que em 1959 já se utilizava de grande parte dos recursos que apresenta nesta gravação. Comparando-se as duas versões, é possível perceber a influência "jazzista" na interpretação do samba, e da recriação deste estilo, adaptado ao gênero nacional, através de Elza Soares.

Na amostra gravada para esta Tese, Se acaso você chegasse recebeu uma

primeira introdução na voz do intérprete Lobão, acompanhada por uma discreta percussão, violão e guitarra. Essa introdução é rapidamente interrompida depois da entrada de um bloco instrumental forte, recheado de sopros e percussão, carregados por um baixo bem marcado, ao estilo da instrumentação da música carnavalesca, utilizada nas gravadoras a partir dos anos 90. Este bloco instrumental dá suporte para a interpretação de Elza Soares, que se apresenta acelerando o andamento e intensificandose a presença de tais instrumentos a medida em que acompanham a cantora e desenvolve-se a música.

4) Cd1-19ª faixa: Traz o Clube do Choro, de Porto Alegre, numa interpretação comemorativa, bem ao estilo da tradição deste movimento. Muito provavelmente tal gravação tenha se dado fora do ambiente de estúdio, pela descontração demonstrada, pelos improvisos. Numa reverência ao compositor Lupicínio Rodrigues, destacou-se o bordão, parafraseado de Chacrinha, chamando-o de "velho guerreiro",junto a lembrança de uma frase típica na fala de Zilá Machado, que faz questão de lembrar a premonição de Lupi, quanto ao seu destino de cantora, de quem dizia que quando bebê já "chorava afinado".

O grupo apresenta sua versão para a música entre o instrumental e o vocal. Seguindo a tradição um tanto diferenciada do "choro seresta", como manifestação comum ao Rio Grande do Sul, a música inicia-se pelo solo de instrumentos, principiando pela gaita-ponto, e na seqüência, o bandolim, além do cavaquinho, violão e pandeiro, junto ao coro que apresenta a canção em uníssono. Nenhum dos instrumentos citados, no entanto, tem tanta projeção, enquanto característica gaúcha, quanto a presença da gaita, perfeitamente adaptada à tradição nacional na música popular brasileira.

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