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segundo Teófilo Braga

d’O Cruel e Triste Fado de Rocha Peixoto, publicada a partir de 1893. Não só no que diz respeito à condenação da empresa marítima, mas igualmente no estilo e na forma como o texto é construído, sustentando-se nos mesmos personagens e fatos históricos. Igualmente, todas as questões sobre a obra de Oliveira Martins abordadas aqui, suas “simbólicas”, seu “modelo literário” de “paradigma histórico-psicológico” e os parâmetros de seu diagnóstico da decadência da nação estarão presentes nos textos de Rocha Peixoto.

Contudo, se Oliveira Martins constitui sua principal influência intelectual, com Teófilo Braga, Rocha Peixoto comunga a visão negativa e a constituição histórica do fado como objeto da tradição popular portuguesa. É do que se ocupa agora este trabalho.

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2.1.2. Uma narração detalhada e plangente dos successos vulgares: a visão negativa do fado segundo Teófilo Braga

Em diversas obras de Teófilo Braga destinadas a coligir as tradições populares portuguesas, o fado figura de forma pejorativa. Contudo ele não deixa de incluí-lo como uma dessas manifestações “originais”. Em O povo portuguez nos seus costumes, crenças e tradições, publicada em 1885, ele define como entende, etnograficamente, as tradições populares portuguesas:

desde 1867 a 1884 temos empreendido uma larga investigação sobre a ethnografia do Povo Portuguez [...]. Por uma evolução natural do nosso espirito achâmo-nos attrahidos para a observação de todos as manifestações do viver portuguez [...]. Attrahidos ainda na adolescência para esse lyrismo pessoal pervertido pelo Romantismo, viemos a conhecer que existia uma poesia mais profunda do que as emoções do momento, revelada nos conflitos da humanidade que acentuam a sua elevação na historia. Entrando n’esta via [...], a idealização do passado fez-nos compreender os documentos persistentes de sua poesia, as tradições transmitidas na voz do povo. Immediatamente, começámos a acumular os materiaes do Cancioneiro e Romanceiro geral portuguez [...].307

Sua “ethnografia do Povo Portuguez” inicia em 1867 com a publicação de três obras que abordam o que chama do “viver portuguez”: o Romanceiro geral colligido da tradição,308

307 BRAGA, Teófilo. O povo portuguez nos seus costumes, crenças e tradições. Lisboa: Livraria Ferreira, 1885, v. 1, p. V-VI. 308 BRAGA, Teophilo. Romanceiro geral colligido da tradição. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1867.

a História da poesia popular portuguesa309 e o Cancioneiro popular coligido da tradição.310

Trata-se, afirma o autor, de uma coleção de “tradições transmitidas na voz do povo”, reunidas a partir de um “methodo de investigação” que considera a “reconstrução sociologica como systema de coordenação dos factos”, em desenvolvimento desde que se passou da “actividade esthetica para a actividade scientifica, e por fim para a especulação philosofica”.311

Ele conta que, em sua tese de doutoramento em direito, quando analisou os “foraes, documentos tradicionais do direito local e consuetudinário”, o estudo dessa jurisprudência levou-o a “encontrar numerosos vestígios de costumes na vida actual do povo, e abundantes symbolos jurídicos nas cantigas e romances oraes”. Essas evidências, representavam, para ele, o “lado vivo das instituições locaes, e ao mesmo tempo a importancia historica contida nos factos aparentemente insignificantes aludidos nos cantos do povo portuguez”. Assim acreditava ter convertido o “interesse artístico” em “seriedade scientifica”.312

É nesses termos que define “a ordem de estudos” das expressões populares como folclore.Essas manifestações, consideradas “tradição”, estariam na base de tudo o que o homem cria ou aperfeiçoa:

as acquisições das experiencias de cada geração e edade não se perdem, transmittemse tradicionalmente, fecundando os espiritos para novas descobertas; ellas constituem a base de um consensus moral, em que as paixões e interesses se harmonisam, e como synthese expeculativa estabelecem entre as opiniões e os costumes uma progressiva conformidade.313

Teófilo Braga pretendia, portanto, orientado pelos pressupostos cientificistas adotados pelos intelectuais de sua geração e estabelecendo contornos à disciplina antropológica, coligir as tradições populares portuguesas, as únicas, segundo defendia, capazes de manifestar “a verdade simples da [...] alma” do que chamava de “povo portuguez”.314 Nesse intento, o fado integra o elenco das tradições populares em duas obras dedicadas a essa coleção.

309 BRAGA, Teophilo. Historia da poesia popular portuguesa. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1867. 310 BRAGA, Teophilo. Cancioneiro popular coligido da tradição. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1867. 311 BRAGA, Teophilo. O povo portuguez nos seus costumes, crenças e tradições. Lisboa: Livraria Ferreira, 1885, v. 1, p. VI. 312 BRAGA, Teophilo. O povo portuguez nos seus costumes, crenças e tradições. Lisboa: Livraria Ferreira, 1885, v. 1, p. VI 313 BRAGA, Teófilo. O povo portuguez nos seus costumes, crenças e tradições. Lisboa: Livraria Ferreira, 1885, 2v. em 1, v.2, p. 333. 314 BRAGA, Teófilo. Cancioneiro popular coligido da tradição. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1867, p. VII.

No Cancioneiro popular coligido da tradição,315 ele apresenta 14 “Fados e Canções da Rua”, entre os quais o consagrado Fado da Severa, que canta a morte da lendária figura da meretriz da Mouraria. Numa espécie de introdução a essa obra, Teófilo Braga define as canções populares como “o rhapsodo de todas as alegrias e tristezas do poema da vida”. O povo, por sua vez, é definido como “o anonymo de todas as grandes obras da humanidade: das pyramides do deserto ás epopeas seculares, das renovações da sociedade ao prodígio da cathedral [...]. E a poesia é como a sua alma, sempre nova, rejuvenescendo-se na geração que pulula”. 316

Embora não deixe de destacar o importante papel da poesia popular na constituição da nação, o que o insere na primeira fase otimista da antropologia, ele reconhece o estado anêmico da sociedade portuguesa naquele momento:

pobre nacionalidade morta; é a túnica sobre que pairam os dados. Triste pressentimento, tristíssimo, tanto mais, quanto se possa de uma alma ainda crente no meio da corrupção d’este Baixo Império. Colligir a poesia popular portugueza agora, no momento de transe, é como a garrafa no mar que se atirava nos naufrágios: é para que se saiba que existiu esse povo que também sofreu e cantou.317

Teófilo Braga vê, portanto, nas tradições populares portuguesas uma possibilidade de superação do estado decadente da sociedade. No prefácio que escreveu ao Cancioneiro de Musicas Populares que Cesar das Neves publicou em 1893,318 no qual também recolheu fados, ele retoma o assunto. Intitulado As melodias portuguezas, o texto em questão considera que os

315 BRAGA, Teophilo. Cancioneiro popular coligido da tradição. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1867. 316 BRAGA, Teophilo. Cancioneiro popular coligido da tradição. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1867, p. VI. 317 BRAGA, Teophilo. Cancioneiro popular coligido da tradição. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1867, p. VII. A poesia ocupou lugar de destaque entre os intelectuais da chamada Geração de 70. Antero de Quental, mentor do grupo em questão, em nota às suas Odes Modernas, concluídas em 1863 e publicadas em julho de 1865, destacou a missão revolucionária da poesia ao fundir a literatura à causa social, antecipando, assim, o caráter dos opúsculos que viria a publicar por ocasião da polêmica conhecida como Questão Coimbrã. Segundo ele, a poesia seria “a forma mais pura d’aquellas partes soberanas da alma collectiva de uma época, a crença e a aspiração. –Partindo d’este principio – a Poesia é a confissão sincera do pensamento mais intimo de uma edade – o autor, na rectidão imparcial da sua logica, havia de necessariamente concluir com esta outra afirmação – a Poesia moderna é a voz da Revolução – porque Revolução é o nome que o sacerdote da historia, o tempo, deixou cahir sobre a fronte fatidica do nosso século” (QUENTAL, Antero de. Odes Modernas. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1865, p. 151, grifos no original). A Questão Coimbrã foi a polêmica que colocou, de um lado, o grupo de intelectuais reunidos em torno de António Feliciano de Castilhos, o qual representava a tradição literária em Portugal, e de outro, os poetas conimbrenses pretensamente modernos da nova geração, Antero de Quental, Teófilo Braga, entre outros, os quais defendiam que a literatura deveria abordar temas vinculados à realidade do país e de maior preocupação social. Sobre a referida contenda consultar: FERREIRA, Alberto; MARINHO, Maria José. A questão coimbrã (Bom senso e Bom gosto). Coleção Textos Literários. Lisboa: Editoria Comunicações, 1988; HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para uma leitura sociológica e política da «Questão Coimbrã»”. Máthesis, nº 4, 1995, p. 89-102; CATROGA & CARVALHO, 1996, capítulo 8, p. 155-162; HOMEM, 2005, capítulos 4 e 5, p. 35-56; TORGAL, Luís Reis; MENDES, José Maria Amado; CATROGA, Fernando. “A História através da História”, In: História da História em Portugal. Sécs. XIX-XX. Vol. 2. Lisboa: Temas e Debates, 1988, capítulo 3. 318 NEVES, Cesar das. Cancioneiro de Musicas Populares. Porto: Typographia Occidental, 1893.

cantos populares de cada país “são um documento scientifico para penetrar o gênio dos povos, Hoje mais do que nunca, convém a Portugal estes estudos; porque na decadência que por toda a parte nos ameaça, a revivescencia do genio nacional depende da vitalidade da sua tradição”.319

O fado é, portanto, um desses cantos do povo português. A exemplo do Cancioneiro, o gênero musical também aparece em outra obra de Teófilo Braga dedicada às tradições populares. Na História da poesia popular portugueza, é descrito como

uma narração detalhada e plangente dos successos vulgares, que entretecem o existir das classes sociais mais baixas da sociedade [...]. Tem o fado a continuidade do descante, seguindo fielmente uma longa narrativa, entremeada de conceitos grosseiros e preceitos de moralidade com uma fórma dolorosa, observação profunda na descripção dos feitos, graça despretensiosa, com uma monotonia de metro e canto, que infunde pesar, principalmente na mudez ou no ruido da noite, quando os sons saém confusos do fundo das espeluncas, ou misturados com os risos dos lupanares.320

Nesses termos, Teófilo Braga define o fado, à semelhança de outros escritores contemporâneos, alguns dos quais citados anteriormente, de forma depreciativa, de baixa qualidade musical e circunscrito aos ambientes degradados da boemia. “Chama-se fadista”, continua, “ao vagabundo nocturno que anda modulando essas cantigas; nome que vem do velho francez Fatiste, poeta”.321 Contudo, conforme já se destacou aqui, ainda que descrito nesses termos, ele não deixa de incluir o fado no repertório poético popular português, visto que atenderia às prerrogativas que o definem naquele momento.

Dessa forma, apesar das condicionantes sociais, o fado atenderia aos pressupostos formais da poesia popular. Para Teófilo Braga, o único modo de caracterizá-la era “pela música com que é cantada”, já que, entre o povo, “quasi sempre [...] a poesia e a musica não se separam, o repentista improvisa cantando”.322 No Prologo de sua História da poesia popular portugueza, ele apresenta as “leis de formação poética”323 que definiriam o substractum da obra, “um livro de escavações e reconstruções históricas”.324 Nela, o autor defende que “a primeira fonte das tradições populares” reside na reivindicação dos povos de “remontar-se á mais alta antiguidade,

319 BRAGA, Teophilo. “As melodias portuguesas”, In: NEVES, Cesar das. Cancioneiro de Musicas Populares. Porto: Typographia Occidental, 1893, p. VII. 320 BRAGA, Teophilo. Historia da poesia popular portuguesa. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1867, p. 8990. 321 BRAGA, Teophilo. Historia da poesia popular portuguesa. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1867, p. 8990. 322 BRAGA, Teophilo. Historia da poesia popular portuguesa. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1867, p. 9192. 323 BRAGA, Teophilo. Historia da poesia popular portuguesa. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1867. 324 BRAGA, Teophilo. Historia da poesia popular portuguesa. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1867, p. V.

e descenderem de uma origem divina”. De acordo com seu código poético, “a poesia para o povo [...] é o acto mais serio da vida” e, dentre as diferentes tradições, origina-se da “fatalidade da raça”.325

Em obra posterior, ele reforçaria seu argumento, ampliando-o:

na Arte, é onde mais se vê a fatalidade da organisação. A impressão que hade ser descripta no verso ou com a palheta é subita; o agente passivo não sabe, não prevê o modo como o objecto que contempla o impressiona. A não ser assim, o que o artista contemplava deixava de ser uma realidade, para reduzir-se a uma forma convencional ou symbolica. Sob este ponto de vista os cantos populares merecem uma importancia transcendente. 326

Conforme veremos, a visão negativa do fado como uma das tradições populares portuguesas e, portanto, como uma das “feições” do povo português é precisamente a visão de Rocha Peixoto acerca do gênero musical. Espontaneamente cantado pelo povo, que já introjetara como naturalmente seu, o fado seria uma manifestação da fatalidade da raça.

Sua inexorável manifestação como tradição popular portuguesa constituia, segundo Teófilo Braga, uma herança árabe. Essa influência teria sido culturalmente decisiva, já na formação de Portugal, a ponto de afirmar que “os Romanceiros da Península foram inspirados ao povo pela lucta e convivência dos Arabes”.327 Desde pelo menos 1870, sustentando-se na obra de Alexandre Herculano, Teófilo Braga defende que a raça conhecida como mosárabe encontra-se na origem do povo português.

Na sua História da Literatura Portugueza - Introducção, publicada em 1870, obra que mais tarde, entre 1909 e 1918, se desdobraria nos quatro volumes da História da Literatura Portugueza (recapitulação),328 ele afirma ter sido a invasão árabe da península ibérica, no século VII, a responsável pela florescência cultural daquele território. Com “o esplendor da civilização árabe”, dizia, “veiu o gosto de poetar, e o verso octasyllabo do povo [...]; a rasão despertava, encadeada por tantos séculos á carroça da teologia; a Mathemática, a Musica, e a

325 BRAGA, Teophilo. Historia da poesia popular portuguesa. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1867, p. VI. 326 BRAGA, Teophilo. Historia da Litteratura Portugueza – Introducção. Porto: Imprensa Portugueza, 1870, p. 29-30. 327 BRAGA, Teophilo. Historia da Litteratura Portugueza – Introducção. Porto: Imprensa Portugueza, 1870, p. 14. 328 BRAGA, Teophilo. História da Literatura Portugueza (recapitulação). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989, 4 v.

Poesia rompiam as cataractas da inteligência”, definindo “o genio artistico do povo portuguez”.329

Para entender no que consiste a raça moçárabe para Teófilo Braga é preciso recuar à invasão da península pelos povos germânicos no século V. Nesse contexto, afirma, “o elemento ibérico assimila e unifica o ramo gaulez, o lombardo, o romano, o godo e o árabe”.330 Contudo, a separação dos Wisigodos entre o godo nobre e o godo plebeu, ou lite, teria sido decisiva. O primeiro, essencialmente aristocrático, preservou a herança da civilização romana, adotando posteriormente o cristianismo; o segundo, uma vez que aceitara “pacificamente a convivencia com os arabes”,331 teria passado a imitar seus costumes, de onde “veiu o nome da raça que se formava insensivelmente, os Mosarabes”, expressão oriunda “do arabe Musta’rab, o que imita, ou que se quer tornar arabe”.332

Segundo Teófilo Braga, “na magistratura civil, os nomes dos vários cargos também tinham designações árabes”. Ele recorre então a Herculano, citando-o: “o resultado definitivo de todos estes factos, devia de ser no começo da monarchia a preponderância do elemento mosarabe entre as classes inferiores, ao passo que entre a nobreza preponderava forçosamente a raça asturo-leoneza” . Para o autor, esses fatos atestariam “a vida da raça mosarabe como legitimo elemento da nacionalidade portuguesa”.333 Ou, mais exageradamente, “a essência da nação portugueza”.334

A teoria teofiliana ganha novos contornos no ano seguinte, com a publicação de Epopêas da Raça Mosárabe. Nessa obra ele retoma a divisão entre os godos para afirmar que ao “elemento gothico-arabe” da nacionalidade, que forma os moçárabes, “pertence a grande poesia épico-narrativa dos Romanceiros”, cujas tradições foram conservadas na música e na dança.335 É neste elemento, portanto, que se deveria buscar as expressões populares genuínas:

329 BRAGA, Teophilo. História da Literatura Portugueza – Introducção: Porto: Imprensa Portugueza, 1870, p. 41-47 330 BRAGA, Teophilo. História da Literatura Portugueza – Introducção: Porto: Imprensa Portugueza, 1870, p. 43. 331 BRAGA, Teophilo. História da Literatura Portugueza – Introducção: Porto: Imprensa Portugueza, 1870, p. 52. 332 BRAGA, Teophilo. História da Literatura Portugueza – Introducção: Porto: Imprensa Portugueza, 1870, p. 56. 333 BRAGA, Teophilo. História da Literatura Portugueza – Introducção: Porto: Imprensa Portugueza, 1870, p. 61. 334 BRAGA, Teophilo. História da Literatura Portugueza – Introducção: Porto: Imprensa Portugueza, 1870, p. 50. 335 BRAGA, Teophilo. Epopêas da Raça Mosárabe. Porto: Imprensa Portugueza, 1871, p. V.

“é nos lites, que conservam tradições, superstições, costumes jurídicos e designações domesticas da antiga vida germanica, que se deve ir procurar os germens da fecunda seiva da poesia que se manifestou no século XII”.336

É, pois, assim, que Teófilo Braga vai discorrer sobre a forma poético-musical denominada Xacaras. Segundo ele, o povo formou-as no século XVI, “provenientes dos árabes vencidos que viviam do mister de cantarem e dançarem pelas ruas” da corte de D. Manoel, e que, segundo comentava-se à época, “cahira em desuso por causa da origem desprezível”. Em Portugal, afirma, “que essa forma existiu, temos uma prova nos Fados, xacaras modernas em que a acção se não tira da vida heroica, mas se funda em uma narração minuciosa e plangente dos sucessos ou logares que entretecem o existir das classes miseraveis da sociedade”.337

A descrição pejorativa do fado prossegue:

Pelos Fados do Marujo, do Soldado, do Degredado, podemos concluir que esta forma tem a continuidade do descante, seguindo fielmente uma longa narrativa, entremeiada de conceitos grosseiros e preceitos de moralidade, com uma forma dolorosa, observação profunda, graça despretensiosa, monotonia de metro e de canto, que infundem pezar quando os sons saem confusos do fundo das espeluncas. O rythmo d’este canto é notado com o bater de pé e com desenvoltos requebros [...]. Assim podemos ver que o Fado é uma degeneração da xacara, que pelas transformações sociais, veiu a substituir a canção de gesta da edade media.338

Os termos da descrição pejorativa do fado presente em Epopêas são idênticos aos que já havia utilizado, anos antes, na História da poesia popular portuguesa, de 1867, na qual define-o como “uma degeneração da xacara”. Da mesma forma, ele repete em ambas as obras, a alusão ao acompanhamento coreográfico: “o rythmo do canto é notado com o bater do pé e com desenvoltos requebros; a dança e a poesia auxiliam-se no que se chama bater o fado”.339 Como veremos, essa expressão também se encontra nos textos de Rocha Peixoto.340

336 BRAGA, Teophilo. Epopêas da Raça Mosárabe. Porto: Imprensa Portugueza, 1871, p. 10. 337 BRAGA, Teophilo. Epopêas da Raça Mosárabe. Porto: Imprensa Portugueza, 1871, p. 319-321. D. Manuel I, rei da dinastia de Avis entre 1495 e 1521. 338 BRAGA, Teophilo. Epopêas da Raça Mosárabe. Porto: Imprensa Portugueza, 1871, p. 321. 339 BRAGA, Teophilo. Historia da poesia popular portuguesa. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1867, p. 90. 340 Embora não seja objeto de análise neste trabalho, essa descrição do fado com acompanhamento coreográfico, os “desenvoltos requebros”, encontra explicação na sua existência remota no Brasil, desde, pelo menos o século XVIII, e que teria se transformado em canto, posteriormente, em Portugal a partir da metade do século XIX. Segundo José Ramos Tinhorão, “os lunduns deixados por Caldas Barbosa [...] ficariam tão marcados por seu estilo e personalidade que quase com certeza se pode atribuir à sua autoria uma “modinha” de fins de século XVIII [...], Modinhas do Brazil [...], em cujos versos finais já se dava a conhecer a existência de outra dança de origem negrobrasileira destinada também a virar canção: o fado”. Já conhecido, portanto, em Portugal a dança do fado conheceria um forte impulso com o “o regresso do rei D. João VI e sua corte para Lisboa, em 1821”. Para Tinhorão, o romance Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio de Almeida, lançado em folhetins semanais no Correio Mercantil do Rio de Janeiro e publicado em dois volumes em 1854-55, confirma a presença da dança

Como parte do legado árabe na conformação cultural dapenínsula ibérica, Teófilo Braga acrescenta mais um elemento que deve estar diretamente vinculado ao fado: a presença moura, argumento esse endossado por Rocha Peixoto. De acordo com Teófilo Braga, havia

tambem na creação da poesia nacional um elemento arabe secundario, a que chamamos Mixtiarabe, em contraposição ao Mostarabe ou primário: é este constituído pelas povoações muçulmanas que durante as conquistas de D. Affonso Henriques até D. Affonso III, foram deixadas permanecer no solo de que perdiam o domínio, garantindo-se-lhe o domicilio em bairros separados ou Mourarias, e a religião, arte e industria, em Foraes próprios.341

Contudo, explica Teófilo Braga, só foi aos mouros permitido permanecer no solo sob a condição de servos. Assim teria revelado a “narração da conquista de Lisboa” no século XII:

E entom [...] ficaram huns poucos de mouros, e erão cavaleiros, e pediram por mercê a el-rey que nam mandasse matar, e que lhes désse hum logar apartado em que podessem lavrar e criar, e que ficassem por seus servos para sempre, e fazendo-lhes el-rey esta mercê que eles lhe mostrariam grandes tesouros d’haver que hi jaziam escondidos. Entom vendo el-rey o que lhe pediam [...] foi acordado que lhes fosse feita esta mercê, que nam morressem, e que ficassem por servos captivos.342

Nesses termos, se nos atermos ao surgimento do fado na cidade de Lisboa em meados do século XIX, o localizaremos justamente na Mouraria, local habitado pelos mouros, que dão nome ao bairro onde viveu a mítica figura da Severa, personagem que protagoniza o surgimento do gênero musical em Portugal. Se essa teoria se confirma ou não, é o que menos importa. Fundamental aqui, é demonstrar que Rocha Peixoto aponta as influências árabe e moura como elementos definidores de uma “feição” portuguesa que, de maneira fatal, estaria manifestada no fado.

A suposta origem árabe do fado é também apontada por Teófilo Braga em O povo portuguez nos seus costumes, crenças e superstições, publicada em 1885. Nessa obra, ele afirma que “os cantos conhecidos pelo nome de Huda pelo Arcipreste de Hita, são ainda os nossos Fados, que usados pelos tropeiros do Brazil coincidem com a descripção feita pelo arabista

do fado no Brasil oitocentista (TINHORÃO, José Ramos. Fado, dança do Brasil, cantar de Lisboa: o fim de um mito. Lisboa: Caminho da Musica, 1994, p. 45-59). 341 BRAGA, Teophilo. Epopêas da Raça Mosárabe. Porto: Imprensa Portugueza, 1871, p. 32-33. Dom Afonso Henriques, então conde de Portucale, assumiu o trono de Portugal como Afonso I da dinastia dos Borgonha entre 1139 e 1185. Afonso III foi rei pela mesma dinastia entre 1248 e 1279. 342 BRAGA, Teophilo. Epopêas da Raça Mosárabe. Porto: Imprensa Portugueza, 1871, p. 33

Caussin de Perceval”.343 De acordo com o tal Arcipreste, era com a viola de arco “que se cantavam os Fados, no século XIV ainda com o seu caracter arabe”.344

Por fim, interessa pontuar mais um elemento étnico que, segundo a teoria teofiliana, se encontra na constituição do povo português e que figura como um dos argumentos presentes n’O Cruel e Triste Fado de Rocha Peixoto. Trata-se da influência dos celtas, definidos por Teófilo Braga como “aventureiros, sonhadores, de uma brandura feminina”. 345 Esse “elemento dócil, aventureiro, amoroso”, afirma, “os Celtas, assentaram-se para as bandas do mar”.346

A influência céltica parece bastante óbvia se pensarmos na grandiosa empresa marítima montada pelos portugueses. Mais do que isso, é o conjunto de características atribuídas aos celtas que o vincula como um traço, talvez o principal, da personalidade cultural do país. “Transluz o gênio céltico”, afirma Teófilo, “nos costumes, no caracter e nas creações do espírito dos portugueses”.347 Contudo, é justamente esse traço cultural uma das principais justificativas para a crise social e moral que vivia o país naquele momento.

Teófilo Braga escreve em 1870. No contexto, portanto, em que a intelectualidade formulava um diagnóstico da decadência da sociedade sustentado, sobretudo, na crítica à falta de um espírito racional. Assim, sonhadoras e aventureiras, “as esperanças das raças célticas”, afirma, “ainda hoje alentam o nosso povo, tão decaido da sua antiga grandeza”.348 Conforme veremos, é justamente a influência das características atribuídas aos celtas sobre o povo

343 BRAGA, Teófilo. O povo portuguez nos seus costumes, crenças e tradições. Lisboa: Livraria Ferreira, 1885, 2v. em 1, v. 1, p. 62. Juan Ruiz (Alcalá de Henares, 1284-1351), clérigo que exerceu a função de arcipreste em Hita,atual província de Guadalajara na Espanha, foi conhecido por criaruma obra miscelânea,predominantemente narrativa em verso, que constitui uma importante obra literária medieval espanhola, o Livro de bom amor. Quanto a Caussin de Perceval, Teófilo Braga não deixa claro tratar-se de Armand-Pierre Caussin de Perceval (Paris, 1795–1871), ou de seu pai Jean-Jacques-Antoine Caussin de Perceval (Montdidier, França, 1759–1835). Ambos, contudo, foram professores de árabe no Collège de France em Paris. 344 BRAGA, Teófilo. O povo portuguez nos seus costumes, crenças e tradições. Lisboa: Livraria Ferreira, 1885, 2v. em 1, v. 1, p. 407. 345 BRAGA, Teophilo. História da Literatura Portugueza – Introducção: Porto: Imprensa Portugueza, 1870, p. 6. 346 BRAGA, Teophilo. História da Literatura Portugueza – Introducção: Porto: Imprensa Portugueza, 1870, p. 26. 347 BRAGA, Teophilo. História da Literatura Portugueza – Introducção: Porto: Imprensa Portugueza, 1870, p. 26. É interessante destacar, nesse ponto, que Oliveira Martins, na sua condenação da empresa marítima, também se refere à herança celta. Na História de Portugal ele afirma: “epopêa do espirito indagador, audaz e paciente, as nossas navegações, as nossas explorações colonisadoras, tornam-nos os gênios d’esse elemento mysterioso, para o qual, porventura, a nossa alma céltica nos attrahiu” (MARTINS, J. P. de Oliveira. Historia de Portugal. Lisboa: Livraria Bertrand, 1882, v. 1, p. 24, p. 24-25). 348 BRAGA, Teophilo. História da Literatura Portugueza – Introducção: Porto: Imprensa Portugueza, 1870, p. 25.

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