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de música brasileirasegundo Mario de Andrade

portuguesa”. Esse formato encontrava “o seu propagandista no Barão do Rio Branco, o seu modelo no estilo de Rui Barbosa e a sua instituição simbólica na Academia Brasileira de Letras, ainda preponderante no decênio de 1920 apesar dos ataques dos modernistas (estes pareciam, então, uma excentricidade transitória)”.526

Nos anos 1930, observa-se uma aceitação das propostas formais e temáticas da primeira fase modernista através de um “alargamento das ‘literaturas regionais’ à escala nacional”, enquanto assistia-se ao “enfraquecimento progressivo da literatura acadêmica”. Para Candido, “foi como se a literatura tivesse desenvolvido para o leitor uma visão renovada, não convencional, do seu país, visto como um conjunto diversificado mas solidário”.527 Oswald destaca como “romancistas do Brasil novo” nomes como Jorge Amado, Graciliano Ramos, Erico Verissimo e José Lins do Rego, colocando-os ao lado de referências do pensamento sociológico como Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, e de pintores como Portinari.528

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4.1.2. Não se deverá desprezar a documentação urbana: o projeto “nacional-eruditopopular” de música brasileira segundo Mario de Andrade

No Compendio de Historia da Musica, Mario de Andrade destacou como, depois da I Guerra Mundial, as artes assumiram uma “correspondência com a Atualidade”. Inseridos num movimento mais geral de se tornarem menos idealistas, afastando-se de tudo o que “cheirava a século-dezenove”, os artistas tomaram “consciencia mais profunda dos ambientes” e passaram a “circunscreverem no possivel” suas manifestações. 529

Segundo ele, em meio a uma “exacerbação nacionalista” compreendeu-se “o que havia de russo em Stravinski, de ianque no jazz-band, de italiano no futurismo de Rússolo, de alemão no expressionismo de Schoenberg”. Naquele contexto, no qual ainda figuravam nomes como

526 CANDIDO, Antonio. “A Revolução de 30 e a cultura”, In: ______. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989, p. 186. 527 CANDIDO, Antonio. “A Revolução de 30 e a cultura”, In: ______. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989, p. 185-187. 528 Cf.: ANDRADE, Oswald de. “O divisor das águas modernistas”, In: ______. Estética e política. São Paulo: Globo, 1992. 529 ANDRADE, Mario de. Compendio de Historia da Musica. São Paulo: Eugenio Cupolo, 1929, p. 179.

Stravinski, Pizzetti ou Manuel de Falla, “o elemento nacional entra como fatalidade e não como programa. A pesquisa do caráter nacional só é justificável nos países novos, que-nem o nosso, ainda não possuindo na tradição de séculos, de feitos, de heróis, uma constância psicológica inata”.530

Anos mais tarde, Mario identifica, no Brasil, o “novo estado-de-consicência musical nacionalista” daquele período, o qual se instalara “não mais como experiência individual, como fora ainda com Alexandre Levy e Alberto Nepomuceno, mas como tendência coletiva”. Essa nova fase teria sido inaugurada por Villa Lobos que, “poucos anos depois de finda a guerra, e não sem ter antes vivido a experiência bruta da Semana de Arte Moderna, [...] abandonava consciente e sistematicamente o seu internacionalismo afrancesado, para se tornar o iniciador e figura máxima da Fase Nacionalista”. 531

No Ensaio sobre Musica Brasileira, publicado em 1928, Mario de Andrade apresentara seu “projeto nacional-erudito-popular”, elaborado no interior da lógica modernista, visando à inserção da produção musical do país na lógica nacionalista. “ O periodo atual do Brasil”, dizia, “especialmente nas artes, é o de nacionalisação. Estamos procurando conformar a produção humana do país com a realidade nacional”.532 Em sua concepção, esse era o pressuposto para tradicionalizar a nação.

530 ANDRADE, Mario de. Compendio de Historia da Musica. São Paulo: Eugenio Cupolo, 1929, p. 179-180. 531 ANDRADE, Mario de. “Evolução Social da Música no Brasil (1939)”, In: ______. Aspectos da Música Brasileira. São Paulo: Livraria Martins, 1965, p. 30. Alexandre Levy (São Paulo, 1864, São Paulo, 1892), compositor, maestro, pianista e crítico musical brasileiro. Alberto Nepomuceno de Oliveira (Fortaleza, 1864 – Rio de Janeiro, 1920), compositor, pianista, organista e regente brasileiro, é considerado o ‘pai’ do nacionalismo na música erudita brasileira. De acordo com Bruno Kiefer, a análise do catálogo de obras de Villa Lobos, de 1922 a 1930, mostra que “cerca de dois terços de sua produção nasceram de intenções de autoafirmação nacional. Isto significa notável incremento em comparação com o período anterior. Além disso, figuram nas cerca de 130 peças compostas neste intervalo de tempo criações de enorme peso estético na produção geral do mestre” (KIEFER, Bruno. Villa-Lobos e o modernismo na música brasileira. Porto Alegre: Movimento; Brasília: INL: Fundação Nacional Pró-Memória, 1986, p.102). Para José Miguel Wisnik, o grande projeto de Villa-Lobos na década de 20 “foi a série de Choros, de cuja expressão mais simples ele partiu até atingir progressivamente formas complexas onde superpôs em condensações e deslocamentos contínuos as batucadas afro-indígenas [...], os sambas, os choros e serestas, ponteios, marchas, cirandas etc., trabalhos em clima de franca bricolage e invenção timbrística [...]. Contrapondo ao rigor da música europeia o ‘seu informalismo caótico, jovem e cheio de vida, num vale-tudo experimental antropofágico’, Villa-Lobos usa os efeitos do sinfonismo descritivo, os timbres e os modos debussystas, os blocos sonoros polirrítmicos e politonais (aparentados com a música de Strawinski), os temas da música indígena (colhidos em Jean de Léry ou nos fonogramas de Roquette Pinto), os cantos sertanejos, a música dos coretos de banda, a valsa suburbana, a bateria da escola de samba”. Seu projeto musical na década de 20, estaria, portanto, inserido no “quadro movimentado das aproximações erudito-populares do Rio de Janeiro” (WISNIK, José Miguel. “Getúlio da paixão cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo)”, In: SQUEFF, Enio; WISNIK, José Miguel. Música (O nacional e o popular na cultura brasileira). São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 165166). 532 ANDRADE, Mario de. Ensaio sobre Musica Brasileira. São Paulo: I Chiarato & Cia, 1928, p. 5.

Anos antes, em entrevista publicada na edição do jornal A Noite em 12 de dezembro de 1925, Mario já havia antecipado o argumento que desenvolvera no Ensaio:

Nós só seremos deveras uma raça o dia em que nos tradicionalizarmos integralmente e só seremos uma Nação quando enriquecermos a humanidade com um contingente original e nacional de cultura [...]. Tradicionalizar o Brasil consistirá em viver-lhe a realidade atual com a nossa sensibilidade tal como é e não como a gente quer que ela seja, e referindo a esse presente nossos costumes, língua, nosso destino e também nosso passado.533

É nessa ordem de ideias que utiliza o conceito de primitivismo na música. O contexto de nacionalização exigia, assim, que a “arte socialmente primitiva” adotasse critérios sociais e não filosóficos. Deveria ser, assim, “interessada” . Mario classifica a música erudita como “exclusivamente artística e desinteressada”. Seu caráter “intrinsicamente individualista” não teria “cabimento numa fase primitiva, fase de construção”.534 A produção artística, para se tornar “interessada”, deveria ser buscada na “música popular brasileira, mais totalmente completa, mais totalmente nacional, mais forte criação da nossa raça até agora”.535

O compositor brasileiro deveria “se basear quer como documentação quer como inspiração no folclore”, que, “em muitas manifestações caracteristiquissimo, demonstra as fontes donde nasceu”.536 Contudo, não se tratava de “escôlha discrecionaria e diletante de elementos: uma arte nacional já está feita na inconsciencia do povo. O artista tem só que dar pros elementos já existentes uma transposição erudita que faça da música popular, música artistica, isto é: imediatamente desinteressada”.537

No “período de formação”, dizia, “devemos empregar com frequencia e abuso o elemento direto fornecido pelo folclore, carece que a gente não esqueça que música artistica não é fenômeno popular porêm desenvolvimento dêste”.538 Dessa forma, “si de fato o

533 ANDRADE, Mario de. Assim falou o papa do futurismo: como Mario de Andrade define a escola que chefia. A Noite, Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1925, p. 2. 534 ANDRADE, Mario de. Ensaio sobre Musica Brasileira. São Paulo: I Chiarato & Cia, 1928, p. 5. Theodor Adorno utiliza os conceitos de “música séria” para denominar a música erudita ou clássica e “música ligeira” para se referir à música popular, massificada, na sua concepção, pela indústria cultural (ADORNO, Theodor. “O fetichismo na música e a regressão da audição”, In: HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor. Textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 79-84. – (Os pensadores)). 535 ANDRADE, Mario de. Ensaio sobre Musica Brasileira. São Paulo: I Chiarato & Cia, 1928, p. 8. Florencia Garramuño demonstra como uma ideia de primitivismo foi utilizada no Brasil para definir uma modernidade autóctone na construção do samba como canção nacional (GARRAMUÑO, Florencia Modernidades primitivas: tango, samba e nação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009). 536 ANDRADE, Mario de. Ensaio sobre Musica Brasileira. São Paulo: I Chiarato & Cia, 1928, p. 10-11. 537 ANDRADE, Mario de. Ensaio sobre Musica Brasileira. São Paulo: I Chiarato & Cia, 1928, p. 4. 538 ANDRADE, Mario de. Ensaio sobre Musica Brasileira. São Paulo: I Chiarato & Cia, 1928, p. 14-15.

compositor se serve duma melodia ou dum motivo folclorico a obra dele deixa de ser individualistamente expressiva como base de inspiração. E fica o mesmo si o compositor deliberadamente amolda a invenção aos processos populares nacionais”.539

Para Eduardo Jardim de Moraes, Mario de Andrade é o autor que melhor expressa a intenção do modernismo de estabelecer uma “temporalidade própria da vida nacional”. Suas categorias de raça e nação, definidas na citada matéria publicada n’A Noite em 12 de dezembro de 1925 e que antecipa os argumentos do Ensaio, compõem as “fases interna e externa de uma mesma realidade. Raça diz respeito à constituição íntima da vida nacional e nação refere a entidade nacional ao contexto internacional”. Era assim que

o modernismo, a partir de 1924, já não pretendia uma entrada no cenário cultural moderno feita de forma indistinta ou em uma perspectiva imediatista, mas exigia a determinação das mediações que a tornassem possível. Nosso acesso ao mundo da cultura só se viabilizaria [...] se a nossa cultura fosse a expressão da nossa experiência racial.540

Essa entidade racial estava ligada a um processo de tradicionalização capaz de “anular a distância entre momentos temporais diferentes, compondo como um fundo do tempo, uma dimensão duradoura, em que se enraízam as manifestações culturais que possuem caráter genuíno”. Dessa forma, o conceito de uma “temporalidade da vida nacional” deveria basear-se no “contato estabelecido com os estudos etnográficos e folclóricos”. Predominava, assim, o entendimento “das manifestações culturais populares concebidas como folclóricas” como repositório de uma suposta “originalidade” nacional. 541

Segundo José Miguel Wisnik, o

projeto nacional-erudito-popular, praticado por Mignone, Lorenzo Fernandez, Luciano Gallet, Camargo Guarnieri, e teorizado por Mario de Andrade, promove a aliança entre a “música artística” e a “música popular rural”, buscando conciliar na pesquisa folclórica e na atividade compositiva as defasagens entre técnica (de modo geral a erudita) e o material (de modo geral o folclórico).542

O projeto andradino para a música brasileira sustentava-se, portanto, numa aproximação entre o erudito e o popular. Segundo Andreas Huyssen, na Europa, “tanto o modernismo quanto

539 ANDRADE, Mario de. Ensaio sobre Musica Brasileira. São Paulo: I Chiarato & Cia, 1928, p. 18. 540 MORAES, Eduardo Jardim de. “Uma temporalidade nacional”, In: AVANCINI, José Augusto (Org.). Mário de Andrade. Porto Alegre: UE/Porto Alegre, 1993, p. 13-14. 541 MORAES, Eduardo Jardim de. “Uma temporalidade nacional”, In: AVANCINI, José Augusto (Org.). Mário de Andrade. Porto Alegre: UE/Porto Alegre, 1993, p. 14-15. 542 WISNIK, José Miguel. “O modernismo e a música”, In: TOLIPAN, Sergio [et. ali]. Sete ensaios sobre o modernismo. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1983, p. 30.

a vanguarda sempre definiram sua identidade em relação a dois fenômenos culturais: a alta cultura tradicional burguesa [...], mas também a cultura vernacular e popular que se transformou cada vez mais na moderna cultura de massa comercial”. Embora “a maior parte das discussões” tenha valorizado “o primeiro fenômeno às expensas do segundo”, afirma, esse desequilíbrio precisaria ser corrigido. 543

Para Huyssen, “o ataque mais consistente às noções estéticas da autossuficiência da alta cultura”, no século XX,

resultou do conflito entre a estética da autonomia do início do modernismo com a política revolucionária que surgiu na Rússia e na Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial, e com a modernização rapidamente acelerada da vida nas grandes cidades no começo do século XX. Este ataque foi proposto em nome da vanguarda histórica, que representou claramente um novo estágio na trajetória do moderno. Suas manifestações mais visíveis foram o expressionismo e o Dadá berlinense, na Alemanha; o construtivismo russo, o futurismo e o proletcult, nos anos que seguiram à Revolução Russa; e o surrealismo francês, especialmente em sua primeira fase.544

Seu ponto de vista defende que a “vanguarda histórica queria desenvolver uma relação alternativa entre a alta arte e a cultura de massa” e, portanto, deveria ser diferenciada do modernismo, “que em sua maior parte insistiu na hostilidade inerente entre alto e baixo”. Contudo, explica, essa distinção não daria conta de cada caso individual. Se de um lado, era possível “apontar vanguardistas que compartilhavam a aversão modernista a qualquer forma de cultura de massa”, de outro, haveria “modernistas cuja prática estética esteve próxima do espírito do vanguardismo”,545 o que parece ser o caso do projeto de música nacional teorizado por Mario de Andrade no interior do modernismo no Brasil.

No caso brasileiro, a articulação entre as esferas do popular e do erudito, na qual o compositor deveria se inspirar no folclore, exigia, segundo Mario, que se atentasse à especificidade do país no que dizia respeito às tênues delimitações entre o rural e o urbano. Em 1936, em A Música e a Canção Populares no Brasil, a despeito de sua defesa das manifestações rurais como repositórios da originalidade nacional, ele relativizou esse pressuposto. Nela, Mario denuncia a inexistência do estudo científico da música popular brasileira e a ausência de “canções populares”. A exemplo da formação do país, a herança musical era ainda muito

recente:

543 HUYSSEN, Andreas. Memórias do modernismo. RJ: Editora UFRJ, 1996, p. 10. 544 HUYSSEN, Andreas. Memórias do modernismo. RJ: Editora UFRJ, 1996, p. 8. 545 HUYSSEN, Andreas. Memórias do modernismo. RJ: Editora UFRJ, 1996, p. 8-9.

nós não temos melodias tradicionalmente populares. Pelo menos não existem elementos por onde provar que tal melodia tem sequer um século de existência. Os pouquíssimos documentos musicais populares impressos que nos ficaram, de fins do século XVIII ou princípios do século seguinte, já não são mais encontrados na boca do povo, que deles se esqueceu.546

Ante a esse estado de coisas, Mario apontava para a necessidade de uma “adaptação americana especial” no estudo do folclore, que estava fortemente relacionada às vicissitudes sociopolíticas do país. Segundo ele, “as condições de rapidez, falta de equilíbrio e de unidade do progresso americano tornam indelimitáveis espiritualmente, entre nós, as zonas rurais e urbanas”.547 Seguindo a Explicação de Oneyda Alvarenga, datada de 1954, a obra aponta, assim, a “necessidade de rever-se o conceito de tradição e a impossibilidade de considerar-se as manifestações folclóricas como fenômenos essencial e exclusivamente rurais”.548

A exemplo do pensamento de Oswald no Manifesto Antropófago, destacado anteriormente, percebe-se aqui, uma interpretação da história nacional desde uma “perspectiva americana” , que vai ao encontro da análise que Sérgio Buarque de Holanda realizara em Raízes do Brasil, naquele mesmo ano de 1936. Para esse historiador, naquele momento em que publica a obra, o país assinalava o fim de uma cultura: “é deliberadamente que se frisa aqui o declínio dos centros de produção agrícola como o fator decisivo da hipertrofia urbana”.549

Mario destacava que, em grandes cidades como Rio de Janeiro, Recife e Belém, “apesar de todo o progresso, internacionalismo e cultura”, ainda era possível encontrar-se “núcleos legítimos de música popular em que a influência deletéria do urbanismo não penetra”.550

Contudo, o fenômeno mais comum era o da “interpenetração do rural e do urbano”. Com raras exceções, a maioria das cidades brasileiras estaria “em contato direto e imediato com a zona rural. Não existem, a bem dizer”, afirmava, “zonas intermediárias entre o urbano e o rural propriamente ditos”.551

546 ANDRADE, Mario de. “A música e a canção populares no Brasil, In: ______. Ensaios sobre a música brasileira. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1962, p. 164. 547 ANDRADE, Mario de. “A música e a canção populares no Brasil, In: ______. Ensaios sobre a música brasileira. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1962, p. 164. 548 ANDRADE, Mario de. “A música e a canção populares no Brasil, In: ______. Ensaios sobre a música brasileira. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1962, p. 159-160. 549 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1982, p. 128. 550 ANDRADE, Mario de. “A música e a canção populares no Brasil, In: ______. Ensaios sobre a música brasileira. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1962, p. 166. 551 ANDRADE, Mario de. “A música e a canção populares no Brasil, In: ______. Ensaios sobre a música brasileira. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1962, p. 166.

O Rio de Janeiro seria o melhor exemplo dessa configuração socioespacial. Mario se dizia assombrado com o fato de que, “dentro da sua malícia vibrátil de cidade internacional”, mantivesse

uma espécie de ruralismo, um caráter parado tradicional muito maiores que São Paulo. O Rio é dessas cidades em que não só permanece indissolúvel o ‘exotismo’ nacional [...], mas a interpenetração do rural com o urbano [...]. O Rio ainda é uma cidade folclórica. Em São Paulo o exotismo folclórico não freqüenta a rua Quinze, que nem os sambas que nascem nas caixas de fósforos do Bar Nacional.552

Se os estudos científicos acerca da música popular em todo mundo recomendavam ser “de boa ciência afastar-se de qualquer colheita folclórica a documentação das grandes cidades, quase sempre impura”, a realidade brasileira exigia uma adaptação.553 Sendo assim, defendia Mario,

não se deverá desprezar a documentação urbana. Manifestações há, e muito características, de música popular brasileira [...]. Será preciso apenas ao estudioso discernir no folclore urbano, o que é virtualmente autóctone, o que é tradicionalmente nacional, o que é essencialmente popular, enfim, do que é popularesco, feito à feição do popular, ou influenciado pelas modas internacionais.554

E é justamente um tipo de samba produzido na cidade do Rio de Janeiro que ele define como folclore urbano. No artigo Música Popular, publicado n’O Estado de São Paulo em janeiro de 1939, e que Vasco Mariz afirma ter sido o conteúdo da palestra proferida na Sociedade de Cultura Artística em 1934, Mario de Andrade escreveu:

O verdadeiro samba que desce dos morros cariocas, como o verdadeiro maracatu que ainda se conserva entre certas “nações” do Recife, esses, mesmo quando não sejam propriamente lindíssimos, guardam sempre, a meu ver, um valor folclórico incontestável. Mesmo quando não sejam tradicionais e apesar de serem urbanos.555

O morro surge, assim, também na obra de Mario, como o lócus do samba original, como repositório da brasilidade. O problema, segundo ele, eram os sambas produzidos para o carnaval:

552 ANDRADE, Mario de. “O Movimento Modernista”. In: ______. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora S.A., 1974 [1944], p. 236. 553 ANDRADE, Mario de. “A música e a canção populares no Brasil, In: ______. Ensaios sobre a música brasileira. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1962, p. 166. 554 ANDRADE, Mario de. “A música e a canção populares no Brasil, In: ______. Ensaios sobre a música brasileira. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1962, p. 167. 555 ANDRADE, Mario de. “Música Popular”, In: ______. Música, Doce Música. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1963, p. 280. Segundo Vasco Mariz, o texto em questão teria sido o mesmo que Mario proferira em 1934, na palestra A Musica Popular e a Musica Erudita realizada na Sociedade de Cultura Artística. Nessa ocasião ele teria se referido à “música popularesca” como sinônimo de “sub-música” (MARIZ, Vasco. “Obras sobre folclore”, In: ______. Três musicólogos brasileiros: Mario de Andrade, Renato Almeida, Luiz Heitor Correa de Azevedo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 43).

o que aparece nestes concursos, não é o samba do morro, não é coisa nativa nem muito menos instintiva. Trata-se exatamente de uma sub-música, carne para alimento de rádios e discos, elemento de namoro e interesse comercial, com que fabricas, empresas e cantores se sustentam, atucanando a sensibilidade fácil de um publico em via de transe.556

Embora reconheça que, entre essas músicas carnavalescas, “occasionalmente ou por conservação de maior pureza inesperada, aparecem coisas lindas ou technicamente notáveis, noventa por cento desta produção é chata, plagiaria, falsa”.557 No Compendio de História da Música, publicado em 1929, Mario já havia denominado esse tipo de “sub-música” de “manifestações popularescas”. Segundo afirma nessa obra, as “que tiveram maior e mais geral desenvolvimento são, desde o século passado, as modinhas, os maxixes e sambas urbanos que andam profusamente impressos”, nas quais especializaram-se “Donga, Sinhô e Noel Rosa”, as “figuras contemporâneas mais interessantes” desse tipo de composição. 558

Contudo, pelas condicionantes comerciais que determinavam sua produção, não poderiam se consolidar com características de música popular brasileira exigidas pelo momento de nacionalização do país. Assim dizia ser muito possível que esse tipo de composição, “dentro de poucos annos, mude de caracter, porque toda esta musica urbana, mesmo de gente do morro, é eminentemente instável e se transforma fácil, como as coisas que não tem assento numa tradição necessária” . 559

Para Mario, no geral, os compositores de “sambas, marchinhas e frevos” eram “indivíduos que, sem serem mais nitidamente populares já desprovidos de qualquer validade propriamente appelidável de ‘folclorica’”, sofriam “todas as instancias e aparências culturaes da cidade, sem terem a menor educação musical ou poética”. Estariam eles, assim, atravessados

556 ANDRADE, Mario de. “Música Popular”, In: ______. Música, Doce Música. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1963, p. 280-281. Essa concepção encontra paralelo na sociologia da música elaborada por Theodor Adorno. Seu ensaio “o fetichismo na música e a regressão da audição”, publicado originalmente em 1938, trata do que chama “decadência do gosto musical”. Segundo ele, “se perguntarmos a alguém se ‘gosta’ de uma música de sucesso lançado no mercado, não conseguiremos furtar-nos à suspeita de que o gostar e não gostar já não correspondem ao estado real, ainda que a pessoa interrogada se exprima em termos de gostar e não gostar. Ao invés do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção de sucesso ser conhecida de todos [...]. O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas”. Assim, “a massificação da música, considerando-a como uma ‘degeneração’”, provocaria o “encantamento dos sentidos” pela “canção da moda”, explicado não pela “relação com o consumo da música” e “pela espontaneidade da audição” mas comandada “pelos editores, magnatas do cinema e senhores do rádio” (ADORNO, Theodor. “O fetichismo na música e a regressão da audição”, In: HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor. Textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 79-84. – (Os pensadores)). 557 ANDRADE, Mario de. “Música Popular”, In: ______. Música, Doce Música. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1963, p. 280. 558 ANDRADE, Mario de. Compendio de Historia da Musica. São Paulo: Eugenio Cupolo, 1929, p. 176. 559 ANDRADE, Mario de. “Música Popular”, In: ______. Música, Doce Música. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1963, p. 282.

de “internacionalismos e influencias estrangeiras fataes”, distantes do “caracter nacional” que pudesse conformar a “necessária tradição” exigida pelo momento de nacionalização. 560

Mario levanta, dessa forma, a mesma discussão presente nas obras de Francisco Guimarães e Orestes Barbosa no que diz respeito ao samba. Em seu projeto “nacional-eruditopopular” de música brasileira, conforme demonstrou-se, sugerindo que o compositor se inspirasse nas expressões folclóricas da nação, ele obriga-se a relativizar o conceito de folclore ligado às manifestações rurais devido às especificidades de formação e de desenvolvimento das cidades no país, sobretudo, a partir dos anos 1920. Sendo assim, afirma, não se deveria “desprezar a documentação urbana”. Era preciso apenas “discernir no folclore urbano” o que era “virtualmente autóctone” , “tradicionalmente nacional” , “essencialmente popular”.561 E é justamente nesses termos que atribui ao “verdadeiro samba”, aquele que “desce dos morros cariocas”, um “valor folclórico incontestável”.562

Conectados com o projeto andradino de música brasileira e inseridos na lógica de buscar os critérios da nação nas manifestações populares, as obras de Vagalume e Orestes Barbosa tratam os morros do Rio de Janeiro à semelhança do espaço rural, como lócus do samba que reuniria os índices de autenticidade nacional. Conforme se afirmou anteriormente, os autores apresentam divergências na maneira como abordam o gênero musical e, sobretudo, como veem a ação dos artistas e dos modernos meios de comunicação sobre as modificações impostas ao samba naquele contexto. Essa divergência é, contudo, diluída, na medida em que ambos circunscrevem ao espaço urbano sintetizado, geográfica e simbolicamente, pelo morro, os caracteres de originalidade do samba, razão pela qual o gênero é definido aqui como folclore urbano. Vamos à análise de suas obras.563

560 ANDRADE, Mario de. “Música Popular”, In: ______. Música, Doce Música. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1963, p. 280-82. 561 ANDRADE, Mario de. “A música e a canção populares no Brasil, In: ______. Ensaios sobre a música brasileira. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1962, p. 167. 562 ANDRADE, Mario de. “Música Popular”, In: ______. Música, Doce Música. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1963, p. 280. 563 A definição de Francisco Guimarães e Orestes Barbosa como “folcloristas urbanos” parece estar consolidada na historiografia desde o trabalho de Enor Paiano (PAIANO, Enor. O berimbau e o som universal: lutas culturais e indústria fonográfica nos anos 60. São Paulo: USP, 1994, 241 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de PósGraduação em Comunicação Social, Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994). Essa definição é retomada em trabalhos posteriores como: NAPOLITANO, Marcos; WASSERMAN, Maria Clara. Desde que o samba é samba: a questão das origens no debate historiográfico sobre a música popular brasileira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 20, nº 39, 2000; WASSERMAN, Maria Clara. Abre a cortina do passado: a Revista de Música Popular e o pensamento folclorista (1954-1956). Curitiba: UFPR, 2002, 157 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Paraná,

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