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modernosobre o samba

entre vida e morte do samba traduz um choque entre grupos sociais diversos [...], a partir da qual se valoriza um espaço social onde se cria uma verdade estética em contraposição a um movimento externo que pode destruí-lo”.627

Assim, a perenidade da questão que atravessa os 80 anos que separam a entrevista de Caetano da publicação de Na roda do samba é justamente o que garante a relevância da obra de Vagalume. Segundo Jorge Caldeira, ela institui, assim, “um problema de fundo, importante para entender a natureza social da música popular no Brasil”.628

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4.3. A cidade temperou a alma do morro: Orestes Barbosa e a influência do Rio de Janeiro moderno sobre o samba

A edição d’O Malho de 7 de setembro de 1933 divulgou Samba, sua historia, seus poetas, seus músicos, o livro publicado por Orestes Barbosa meses antes, como uma obra que deveria despertar aguçada curiosidade por tratar de um tema muito em voga.629 O teor do texto reforça o status que o gênero musical alcançava naquele momento como manifestação da cultura nacional. “O samba”, diz ele, “é uma revolução. É uma vitória das massas contra as elites”.

Embora o comentário marque um posicionamento bastante claro em relação ao gênero musical, expondo um recorte de classe, o articulista afirma que a matéria não iria “dizer pró ou contra” o samba e sim divulgar o livro em questão. “Tratando da historia, e dos poetas, e dos músicos, e dos cantores do samba”, afirma, “acha jeito o Sr. Orestes Barbosa de falar de um mundo de gente, de Esquilo e Pitagoras [...]. São poetas, são filósofos, são cientistas dos mais

627 CALDEIRA, Jorge. A construção do samba / Noel Rosa, de costas para o mar. São Paulo: Mameluco, 2007, p. 73. 628 CALDEIRA, Jorge. A construção do samba / Noel Rosa, de costas para o mar. São Paulo: Mameluco, 2007, p. 73. Segundo o autor, essa ideia de uma “verdade estética” ligada aos “produtores populares” cunhada por Vagalume, balizou as principais análises contemporâneas sobre o samba, a partir da década de 1960. No capítulo intitulado “Coisas nossas, nossas coisas”, Caldeira compara as interpretações de José Ramos Tinhorão, de Muniz Sodré e de Enio Squeff e José Miguel Wisnik. Ver nota 45 acerca do debate historiográfico sobre o conceito de “música popular brasileira”. 629 A de M. “Samba”, O Malho, ano XXXII, n. 14, Rio de Janeiro, 7 de setembro de 1933, p. 34. De acordo com Carlos Didier, o livro foi publicado entre julho e agosto de 1933 (DIDIER, Carlos. Orestes Barbosa: repórter, cronista e poeta. Rio de Janeiro: Agir, 2005).

remotos aos mais atuais [...]. Essa policromia é um dos característicos dos trabalhos do Sr. Orestes Barbosa”.630

Para José Geraldo Vinci de Moraes, “o ingrediente adicional e singular de Orestes Barbosa em relação à obra de Vagalume foi o evidente tom intelectual [...], além de sua condição de poeta, que o transformou em parceiro de diversos compositores”. Essa característica, continua o autor, “bem provavelmente influiu de maneira significativa na sua forma de sentir, compreender, analisar e explicar a música popular”, apresentada numa narrativa predominantemente poética que “mistura de certa ‘ficção’ com ‘fatos reais’”.631

O assento poético é também anunciado no prefácio assinado por Martins Castello.632 Num texto que se aproxima estilisticamente ao do livro, ele afirma que o estudo da “melodia carioca” apresentado por Orestes Barbosa, há muito reclamado, vinha preencher uma lacuna: a de definir o Rio de Janeiro como “berço do samba”. Sua justificativa expõe uma lógica fortemente romântica: “porque nada melhor para definir um povo do que a sua musica. É ella que nos mostra, atravez dos seus rythmos e dos seus motivos, a verdadeira alma da gente que a creou”.633 Como veremos em seguida, Orestes Barbosa levará às últimas consequências essa perspectiva romântica através de um vocabulário que busca estabelecer uma vinculação afetiva entre o samba e a cidade do Rio de Janeiro.

630 A de M. “Samba”, O Malho, ano XXXII, n. 14, Rio de Janeiro, 7 de setembro de 1933, p. 34. 631 MORAES, José Geraldo Vinci de. Os primeiros historiadores da música popular no Brasil. ArtCultura, Uberlândia, v. 8, n. 13, p. 117-133, jul.-dez. 2006, p. 122. 632 A Gazeta de Noticias de 22 de junho de 1939 se referia a Martins Castello, em nota informando seu aniversário, como “nosso confrade do ‘Diario Carioca’”. Segundo informa o texto, “o excelente poeta, autor dos lindos versos de dois grandes successos musicaes destes ultimos tempos - ‘Vigilia da Lampada’ e ‘ Barraca Vasia’, - com o pseudonymo de Mario Castellar, tem já, tambem, como na imprensa, um logar de realce, pelas suas qualidades de refinado intelectual e cavalheirismo” (“Gazeta nos studios”, Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 22 de junho de 1939, p. 11). 633 CASTELLO, Martins. “Prefacio”, In: BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 9. De acordo com J. C. Cavalheiro Lima, o romantismo alemão tratava a música como a “linguagem por excelência indicada à manifestação dos sentimentos”. Segundo afirma o autor, Beethoven foi o responsável por introduzir na música o espírito romântico, definindo-a como “uma revelação mais profunda que toda moral e toda filosofia”, como “o caminho ideal para a comunicação com o imaterial”, como o “único acesso àquele mundo superior do qual o homem tem apenas o pressentimento, mas no qual não pode penetrar”. Posteriormente, Schubert e Weber trabalharam “no sentido de precisar, de acentuar, de fixar com maior nitidez o caráter nacional da música de sua pátria. O caminho que encontram para tal fim é o Lied – canção –, enraizado no folclore germânico”. Schubert, mais do que qualquer outro compositor, “foi o autêntico e genial realizador daquela busca da vida espontânea manifesta na primitiva poesia popular”, apontando o que havia “de menos individual na música, ou seja, a expressão folclórica, que revela justamente a alma coletiva, os cantos populares” (LIMA, J. C. Cavalheiro. Música e romantismo. Porto Alegre: Livraria Sulina, [1972?], p. 3944).

Apresentado como escritor, poeta e repórter, Castello considera Orestes Barbosa o responsável por criar o “samba na sua ultima phase – o samba urbano”. Segundo afirma, ele “coloriu a emoção do morro, introduzindo no samba a nota civillisada do “abat-jour” de seda, do arranha-céo imponente, do perfume esquisito, do ‘manteaux’ acariciante, do apperitivo capitoso, do telefone serviçal”.634 No mesmo sentido, para Carlos Didier, a mais evidente contribuição de Orestes Barbosa à canção popular carioca está na utilização de elementos da vida urbana. Em “Flor do asfalto”, afirma, “aperitivo, manteau, cinema, apartamento e arranhacéu compõem o cenário da história de amor. Fora o asfalto, as flores cosmopolitas e o telefone do fecho poético: Meu telefone agora vive mudo,/ E o dela sempre em comunicação". 635 Em Rosalina, por sua vez, os versos que iniciam a canção dizem: “Rosalina, mariposa da Favela,/ Tu já queres abajur de linda cor”.636

No seu livro Samba, através de uma narrativa romanceada, o gênero musical surge inserido num cenário do Rio de Janeiro montado à semelhança de outras capitais de países considerados modelos de modernidade:

Estou na Avenida ouvindo sambas Em cada esquina ha dedos tamborilando em caixas de fósforos. É uma tarde clara. A nossa avenida Rio Branco é a Puerta del Sol de Madrid. É a Regent Street, de Londres. É o Boulevard dos Italianos, de Paris. É a passagem de Saint Houbert, de Berlim. É a Plazza del Populo, de Roma. É o cáes Schiavoni de Veneza. É o mundo em desfile. Diplomatas. Homens de negócios. Cavaleiros de todas as industrias. Heroes. Santos. Mulheres a pé. Homens em lindos automóveis, acompanhados por lindas mulheres.637

A ideia de que Orestes Barbosa “civilizou” o samba carioca insere-se na lógica que considerava a cidade do Rio de Janeiro modelo ao restante do país. Ele próprio se colocava

634 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 10. 635 DIDIER, Carlos. Orestes Barbosa: repórter, cronista e poeta. Rio de Janeiro: Agir, 2005, p. 315. Flor do asfalto, fox-samba de Orestes Barbosa. Intérprete: Castro Barbosa. 12/1931 (Victor, 33493a). 636 Rosalina, samba de Orestes Barbosa e J. Thomaz. Intérprete: Jonjoca. 12/1931 (Victor, 33493b). Letra extraída de: BARBOSA, Roberto (Org.). Passeio público: o chão de estrelas de Orestes Barbosa. Rio de Janeiro: RIOARTE; Imprensa da Cidade, 1994, p. 141. 637 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 155.

como defensor das reformas operadas na capital federal. Na já mencionada matéria no jornal Critica de 1º de dezembro de 1928, ocasião em que saudou a publicação do livro de crônicas de Figueiredo Pimentel, autor da frase “o rio civilisa-se”, Orestes, demonstrando “enthusiasmo com [...] os progressos da cidade”, afirmou:

Quando o Rio passou do aspecto colonial, tão triste, ao arremesso das grandes transformações, surgiu Figueiredo, de jaquetão, de ‘pêra’ e de chapéo de palha, com um mnóculo pendurado, e as luvas na mão [...]. A dictadura de Passos, que administrou num conjunto em que resaltavam Lauro Muller, Frontin e Oswaldo Cruz, livrou o Brasil da pécha de cubata africana, tornando habitavel e em empolgante a capital”.638

Embora ao longo de toda a sua vida e obra tenha sempre demonstrado simpatia pelas manifestações populares, Orestes Barbosa revela, nessa matéria, conivência com o modelo civilizatório europeu empregado pelo poder público, e propagandeado por Figueiredo Pimentel. No início do século XX, as reformas de Pereira Passos pretendiam eliminar do centro da capital os resquícios da cidade colonial, na qual predominavam as expressões culturais populares preponderantemente de origem africana. Nesse sentido a “pécha” mencionada na matéria encontra respaldo na análise de José Murilo de Carvalho, o qual afirma: “No Rio reformado, circulava o mundo belle-époque fascinado com a Europa, envergonhado do Brasil, em particular do Brasil pobre e do Brasil negro”.639

638 BARBOSA, Orestes, “Aqui... Ali... Acolá”, Critica, Rio de Janeiro, 1º de dezembro de 1928, p. III. Lauro Severiano Müller (Itajaí/SC, 1863 - Rio de Janeiro, 1926), militar, engenheiro, político e diplomata, em 1902, na presidência de Rodrigues Alves, assumiu o Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas, executando a construção da Avenida Central e as reformas do porto do Rio de Janeiro. André Gustavo Paulo de Frontin, Conde de Frontin, (Petrópolis, 1860 - Rio de Janeiro, 1933), engenheiro e político, chefiou a construção da Avenida Central na gestão Pereira Passos. Entre fevereiro e julho de 1919, foi prefeito do então Distrito Federal, quando realizou obras como o alargamento da Avenida Atlântica, em Copacabana, e a construção das avenidas Niemeyer e Delfim Moreira, ambas na zona sul da então capital do Brasil. Oswaldo Gonçalves Cruz (São Luiz do Paraitinga, 1872 - Petrópolis, 1917), médico, bacteriologista, epidemiologista e sanitarista, foi Diretor-geral da Saúde Pública (1903), nomeado na gestão do presidente Rodrigues Alves. Coordenou as campanhas de erradicação da febre amarela e da varíola, no Rio de Janeiro, tornando a vacinação obrigatória, o que desencadeou a Revolta da Vacina em 1904. 639 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 40-41. Uma bibliografia clássica na historiografia dá conta dessa interpretação do período da Belle Époque brasileira. Para Jeffrey D. Needell, as transformações da época no centro da capital, “almejavam atingir a civilização por meio de mudanças concretas, de acordo com os modernos padrões europeus (ou seja, franceses). No entanto, enquanto tomavam essas medidas práticas, também compartilhavam com outros membros da elite e dos setores médios a paixão pelas mudanças simbólicas”. Nesta perspectiva, a elite celebrava também aquilo que era eliminado pelas transformações em curso durante a Belle Époque. O êxito da execução do modelo francês no centro da capital carioca pressupunha, no entanto, o fim de um Brasil antigo e africano considerado bárbaro e, portanto, distante dos ideais de civilização almejados pela elite brasileira (NEEDELL, Jeffrey D. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 67). Monica P. Velloso, por sua vez, elucida esse Brasil antigo e africano, vítima de “uma verdadeira campanha de ‘caça aos mendigos’, desalojamento das camadas populares do centro da cidade e combate cerrado às mais variadas expressões da cultura popular [...]. Candomblé, capoeira, bumba-meu-boi, romarias religiosas, maxixe, violão, serestas, cordões carnavalescos, enfim, as mais variadas expressões culturais

Já durante a gestão do prefeito Antonio Prado Junior, entre 1926 e 1930, responsável por instituir uma Comissão Urbanística para elaboração do primeiro plano diretor da cidade idealizado pelo urbanista francês Alfred Agache, Orestes Barbosa voltaria a defender a modernização do Rio de Janeiro. Em sua coluna no jornal Critica de 16 dezembro de 1928, afirmou: “Ha por ahi muita gente irritada com a transformação da cidade – gente tradicionalista, que continua achando explendida a casa acachapada do tempo da colônia e o calçamento de ladrilho da rua do Ouvidor”. Ele, em contraposição, colocando-se “a favor de tudo quanto é novo”, compara o prefeito Prado Junior a Pereira Passos, definindo-o como “moderno”, “transformador”, que estaria “dando ao Rio um impulso”.640

Seu entusiasmo com a modernidade justifica, assim, sua defesa do novo estilo de samba carioca que vai se consolidando naquele momento, modificado pelos elementos da moderna vida urbana do Rio de Janeiro reformado. A nova cidade em que vinha se transformando a então capital federal desde o início do século XX, somada às transformações tecnológicas do início dos anos 1930, institui, conforme já se destacou, “o ser carioca” como “um preâmbulo para algo de maior vulto: o ser brasileiro”.641 O próprio Martins Castello encerra seu prefácio utilizando-se dessa associação para fazer do Rio de Janeiro o berço do samba. Sendo a “cidade ‘leader’ do Brasil”, afirma, era “a legítima dona do pandeiro e do tamborim”.642

O prefácio anuncia, assim, as questões que se quer abordar neste capítulo: o morro como lócus de nascimento do samba carioca moldado pelo Rio de Janeiro moderno. Se Orestes Barbosa “coloriu a emoção do morro, introduzindo no samba a nota civillisada”, como afirma

passam a ser objeto da vigilância do poder estatal” (VELLOSO, Monica Pimenta. As tradições populares na Belle époque carioca. Rio de Janeiro: Funarte, 1988, p. 9). Com relação ao teor autoritário do prefeito Pereira Passos, José Murilo de Carvalho relata que ele “pediu suspensão do funcionamento da Câmara dos vereadores por seis meses para poder agir livremente e decretar legislação necessária para o rápido encaminhamento das reformas. Um médico sanitarista [Oswaldo Cruz] foi encarregado das medidas de higiene pública” (CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 40). 640 BARBOSA, Orestes, “Aqui... Ali... Acolá”, Critica, Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1928, p. III. Antônio da Silva Prado Júnior (São Paulo, 1880 - 1955), engenheiro, empresário e político, foi prefeito do então Distrito Federal durante o governo Washington Luís. Após a Revolução de 1930, foi deposto e exilado. Sobre o chamado plano Agache, ver: PAULILO, André Luiz. Os artífices da metrópole: anotações sobre a transformação da vida urbana carioca depois da Belle Époque. Educ. Soc., Campinas, vol. 25, n. 87, p. 513-534, maio/ago. 2004; PIRES, Hindenburgo Francisco. Planejamento e intervenções urbanísticas no Rio de Janeiro: a utopia do plano estratégico e sua inspiração catalã. Biblio 3W, Revista Bibliográfica De Geografía Y Ciencias Sociales, Barcelona, Vol. XV, nº 895 (13), 5 de noviembre de 2010 641 FENERICK, José Adriano. Nem do morro, nem da cidade: as transformações do samba e a indústria cultural (1920-1945). São Paulo: FAPESP; Annablume, 2005, p. 251-252, grifos no original. 642 CASTELLO, Martins. “Prefacio”, In: BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 11.

Castello, então ele modificou algo que existia previamente naquele espaço. Conforme se verá, esse será o posicionamento do próprio Orestes com relação às transformações impostas pela cidade ao samba oriundo do morro. Sua obra se afasta, portanto, da interpretação de Vagalume no que diz respeito à definição do que considera o “samba verdadeiro”, mas compartilha com ela da noção do morro como lugar de origem e autenticidade.

Espécie de prosa poética extremamente fragmentada, o livro de Orestes não apresenta estrutura narrativa cronológica, nem está organizado em capítulos. Os assuntos, por vezes repetidos, pululam pela obra de forma aleatória, mesclando temas relacionados ao universo musical com outros recorrentes no cenário cultural e sociopolítico do país. “Este livro”, afirma ele, “que é a história do samba, mostra este genero musical em sua plena definição. Seus poetas e cantores, aqui aparecem, destacados de outros musicos, de outros poetas e de outros cantores do proprio Brasil”.643

Ele justifica a legitimidade e a relevância de sua obra colocando-se no mesmo papel de Vagalume, como testemunha ocular: “Estes capítulos possuem, todavia, um mérito: foram vividos no meio dos sambistas da terra em que nasci”. Sua experiência leva-o acolocar-se como um personagem que está na cidade e é, ao mesmo tempo, parte dela: “Fiz uma antologia das ruas. Eu sou a rua. E esta autoridade ninguém me negará...”.644

Ainda se referindo ao livro, Orestes Barbosa reivindica-se precursor do movimento modernista, reforçando sua convicção “a favor de tudo quanto é novo”: “Estas páginas, escritas no estilo que lancei quando os modernistas de São Paulo faziam o parnasianismo do ‘Juca Mulato’ e do ‘Nós’, é uma reportagem e uma reivindicação”.645 Aqui há claramente um artifício.Classificadas como parnasianas, as duas obras citadas, a primeira de autoria de Menotti del Picchia e a segunda de Guilherme de Almeida, são consideradas precursoras do modernismo no Brasil. Ambas foram publicadas em 1917, ano em que Orestes Barbosa estreia na literatura com o livro de poesias Penumbra Sagrada. Segundo se constata no trecho acima citado, essa obra teria sido escrita no mesmo estilo moderno que ora ele apresentava em Samba. Ao

643 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 16-17. 644 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 17-18. 645 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 17.

desqualificar “Juca Mulato” e “Nós” como parnasianas, ele coloca, portanto, sua obra como precursora do modernismo.646

Mesmo que não ocupe esse lugar pioneiro na concepção do modernismo, não são poucas as referências que faz aos pressupostos do movimento quando se refere ao samba. Segundo Orestes, “acusam os sambistas de corrupção do nosso idioma. Nada mais necessario do que corromper a língua de Portugal” . 647 Da mesma forma que Oswald de Andrade declarara no Manifesto da Poesia Pau-Brasil, ele se coloca em defesa da língua falada: “língua é convenção. O que o povo aceita é que é o certo [...]. Porque devemos conservar o portuguez que já não falamos [...]?”.648

Em outra referência ao modernismo, desta vez remetendo ao Manifesto Antropófago, ele afirma: “o brasileiro tritura tudo. Não sei porque. Mas tritura”.649 Esse comportamento teria moldado o país: “o Brasil, triturador de temperamentos, tem hoje a sua feição própria”.650 E referindo-se à Carmen Miranda, “tão carioca na sua pronuncia meiga e brejeira; tão viva e tão propria”, uma “autentica figura do meio, do meio que lhe absorveu, do ambiente que a plasmou dando-nos mais exemplo da força trituradora do Rio que refina, como numa usina, os elementos aportados do nosso torrão” . 651 Como se vê, a analogia com o Manifesto de Oswald é bastante esclarecedora da visão que o autor tem do Rio, antropofagicamente brasileiro, como microcosmo da nação.

646 Segundo Mario da Silva Brito, o poema “Juca Mulato”, “que assinala uma retomada da temática nacionalista, que não apela para os mitos helênicos, [...] tem, já no seu título, uma ponta de atrevimento, que choca o seu tempo. A palavra Mulato, aplicada em poema, ao herói da fábula cabocla, aberrava dentro do mundo marmóreo do parnasianismo e destoava da atmosfera aristocrática, alva ou, muitas vezes, penumbrenta, do simbolismo”. Em “Nós”, por sua vez, “o poeta já utiliza de recursos tipográficos para a valorização da poesia, processo esse que os “futuristas”, não ignorados pelo autor, levariam a extremas consequências. Lança ele, também, uma espécie de manifesto sobre os meios poéticos de que se vale, e todos eles são formas de oposição ao parnasianismo, que era ainda a escola mais poderosa do tempo” (BRITO, Mario da Silva. História do Modernismo Brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna. São Paulo: Edição Saraiva, 1958, p. 74-76). 647 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 152. 648 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 122-123. Aqui fica evidente, uma vez mais, o desejo de afastar o passado português, agora em termos linguísticos. 649 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 109. 650 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 16. 651 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 99.

Orestes Barbosa reivindica, assim, a maternidade do samba ao Rio de Janeiro, e, sobretudo, ao da sua época, moderno. “O samba é carioca”, afirma, procurando afastar outros ritmos que, embora existissem na cidade, não poderiam ser considerados locais: “Não é carioca o baião. Não é carioca o batuque. Não é carioca o cateretê”.652 Como se vê aqui, ele arrola, com exceção da primeira, as mesmas expressões musicais apontadas por Vagalume. Trata-se, portanto, de um esforço de seleção que pretende definir o samba como canção originalmente carioca e, como fará ao longo da obra, brasileira.

Orientado por inspiração romântica, a vinculação do samba ao Rio de Janeiro sustentase numa relação afetiva: “a emoção da cidade está musical e poeticamente definida no samba” . 653 Considerado um “laboratório de emoções”, o Rio “creou a sua alma”, afirma, “e com ela o seu ritmo musical”. Expõe, dessa forma, uma visão igualmente romântica da música, já que considera que ela “define um povo”, ou, mais exageradamente, que é “a voz que fala dentro de nós”, como, segundo ele, havia definido Verdi.654

Ele leva às últimas consequências a perspectiva romântica ao afirmar que “cada povo tem a sua alma, produto das suas origens étnicas, do seu meio, das suas histórias, das suas

652 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 13. De acordo com Oneyda Alvarenga, o baião, também chamado de baiano, é uma dança encontrada principalmente nas regiões norte e nordeste do país. “É uma dança de pares solistas, um homem e uma mulher, com sapateados, palmas, umbigada, meneios e o uso de castanholas ou de um castanholar de dedos que as substitua”. Para a autora, o baião pode confundir-se com o Lundu ou ser um de seus derivados, distinguindo-se dele em alguns pontos: “por comportar, durante a dança, improvisos e desafios dos cantadores, tal como informam no séc. IX Silvio Romero e modernamente Rodrigues Carvalho; por ser também música exclusivamente instrumental, embora destinada sempre à dança (ALVARENGA, Oneyda. Música Popular Brasileira. Porto Alegre: Globo, 1950, p. 156-157). Segundo José Ramos Tinhorão, na segunda metade do século XIX, a “dançacantoria do baião” sertanejo degenerou-se em “samba do tipo negro-brasileiro de inspiração africana”, sobretudo pelos batuques (TINHORÃO, José Ramos. Os sons dos negros no Brasil. Cantos, danças, folguedos: origens. São Paulo: Art Editora, 1988, p. 81-82). Aqui é importante relembrar o depoimento que Heitor dos Prazeres prestou ao Museu da Imagem e do Som (MIS) em 1966, no qual constrói uma espécie de árvore genealógica desses e outros gêneros musicais anteriores ao samba: “Primeiro veio o candomblé, depois do candomblé veio o cateretê [...]. Daí então o samba vem se aproximando [...]. Veio as emboladas que é do norte [...] que hoje batizaram como baião”. Em seguida ele canta os seguintes versos: “baião, filho do maracatu, neto do cateretê” (PRAZERES, Heitor dos. Depoimentos para a posteridade. Rio de Janeiro: Fundação Museu da Imagem e do Som (MIS), 1º de setembro de 1966, 1h06m, 1 CD – (Coleção Depoimentos). 653 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 13. 654 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 18-20. Giuseppe Fortunino Francesco Verdi (Le Rencole, Itália, 1813 – Milão, 1901), compositor de óperas, foi um dos responsáveis por consolidar o ideal romântico de afirmação nacional na Itália, na segunda metade do século XIX. Segundo Mario de Andrade, diante do depauperamento da música italiana, “sentiu com nitidez a precisão dos italianos voltarem ao estudo das fontes tradicionais da música peninsular e ao mesmo tempo se fortificarem com as conquistas estéticas, harmônicas, sinfônicas que os outros países estavam fazendo [...]. ‘Voltemos ao Antigo!” - ele falou” (ANDRADE, Mario de. Pequena história da música. São Paulo: Livraria Martins, 1958 [1942], p. 130-131).

paizagens, dos seus climas, das suas paixões”.655 Segundo essa lógica, resultado de um processo de determinismo organicista, o carioca, definido como “originalmente musico”656 e “diverso em tudo, de todos os povos, creou a sua musica original”.657

Nessa construção, a figura do carioca se aproxima da concepção romântica do artista em geral, e do poeta em particular, confundindo-se com ela mesma, como aquele que tem a capacidade de acessar, sintetizar e manifestar a “essência” do povo. Da mesma forma, se o carioca criou uma “musica original”, Orestes Barbosa aproxima o samba da noção romântica de tradição popular ao defini-lo como uma espécie de lied que, enraizado na alma do povo, colocava-se como canção carioca por excelência.658

A ideia de que o Rio de Janeiro deveria servir de modelo à nação será responsável, segundo Orestes, por nacionalizar o status do samba carioca através do carnaval. Nessa manifestação genuína da cidade que “venceu tudo”, o samba, “dominando”, “sáe do Rio e invade os Estados”. A proeminência da então capital federal sobre o restante do país é então justificada por ter sido palco de episódios decisivos da história nacional, que eram, inclusive, temas do carnaval. “O Rio inflúe”, afirma, porque nela “se tramou a Independência com Gonçalves Ledo”, “se fez o Fico e a Abdicação”, “foi feita a Maioridade. A abolição. A República. O Rio fez a revolta de 22, precursora da situação atual”.659

Para Orestes Barbosa, o artista que melhor exprimia o samba carioca, acumulando todas as qualidades musicais da cidade do Rio de Janeiro era justamente Francisco Alves, o intérprete acusado, no livro de Vagalume, de ser um sujeito que “não é da roda, nem conhece o rythmo do samba”.660 Orestes, pelo contrário, considera que “não há exagero em dizer que [...] é o maior cantor do Brasil”. Ele teria sido “enviado pelo destino na hora certa para vibrar e dominar

655 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 18. 656 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 21. 657 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 16. 658 Repise-se aqui a referência anteriormente imputada a Herder e Fichte. 659 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 37-38. Com relação ao comentário sobre a revolta de 22, embora ele não explique o que entende por “situação atual”, é interessante retomar o comentário de Oswald de Andrade, já citado neste trabalho. Segundo afirmara esse autor, “nunca se poderá desligar a Semana de Arte que se produziu em fevereiro, do levante do Forte de Copacabana que se verificou em julho. Ambos os acontecimentos iriam marcar apenas a maioridade do Brasil”. Seja como for, Orestes escreve em 1933, quando a República e o movimento modernista estão já em transformação. 660 GUIMARÃES, Francisco. Na roda do samba. Rio de Janeiro: Typ. São Benedicto, 1933, p. 113.

um momento historico da vida da cidade, esta grande hora em que nos definimos, estadeando esse espetáculo suntuoso das melodias, no qual de cada quadrado de janela sai um pedaço de samba-canção”.661

Como se vê, o artista surge como uma espécie de porta-voz da musicalidade do Rio de Janeiro justamente no momento em que a cidade se afirmava e se impunha como modelo ao país. “Sem Francisco Alves, forçoso é dizer” , continua Orestes,

a nossa canção e as musicas que adotamos, dando cores nossas, não teriam este explendor artistico porque teria faltado o cantor completo na interpretação e na voz de uma doçura que maravilha, pois, quando ele abre a boca, a alma carioca sáe pela sua boca como um delirio, como um narcotico, uma voz que tem cristaes e nuances de ocarina; um gorgeio humano, impressionante e comovedor.662

Ele retoma, assim, a perspectiva romântica, colocando Francisco Alves como o artista que é capaz de expressar “a alma carioca” de uma maneira que provoca alteração nos sentidos. O conjunto exagerado de elogios ao cantor talvez seja uma resposta aos ataques de Vagalume, cujo livro fora publicado antes do seu. Mesmo que não seja, os dois relatos somados reforçam o sucesso do intérprete naquele momento.

Conforme se demonstrou, Francisco Alves é acusado por Vagalume de ser o “padrasto, o pae adoptivo de uma infinidade de sambas de gente dos morros”.663 Orestes, pelo contrário, não vê nenhum problema nesse comércio. Imputando “egoísmo regional” àqueles que falam “contra os que compram sambas levando-os para os salões”, considera que “todos os regionalistas do Brasil, não vão negar ao malandro do morro essa gloria carioca do samba que eles não querem que desça para as vitórias da civilização”.664

Aqui Samba encontra o morro. Embora seja, inegavelmente, um defensor da modernização em todos os âmbitos da vida carioca e, portanto, também da música, Orestes Barbosa atribui ao morro, e aos malandros que lá habitavam, a “invenção” do samba. O papel “civilizatório” do Rio de Janeiro seria justamente acrescentar-lhe notas de modernidade. É

661 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 76. Para o autor, Francisco Alves, juntamente com os cantores Mario Reis, “querido da cidade”, e Aracy Cortes forma “o triângulo de ouro do gênero musical cuja vitória deu motivo” à publicação de seu “livro consagrador”. Orestes Barbosa considera, portanto, que o “novo estilo” de samba urbano, consolidado por cantores comercias, ou seja, por intérpretes, é o ritmo que se tornaria definitivo (Ibiden, p. 82). 662 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 77. 663 GUIMARÃES, Francisco. Na roda do samba. Rio de Janeiro: Typ. São Benedicto, 1933, p. 42-43. 664 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 158.

assim que, segundo ele, “a cidade temperou a alma do morro, definindo em cada bairro as suas características” . 665 A cidade “formal”, moderna, transformou, portanto, algo que preexistia num outro lugar.

Orestes Barbosa, sempre que se refere ao morro, retoma, através de um vocabulário típico, a perspectiva romântica de circunscrever aos espaços populares as manifestações originais. Já no começo do livro ele afirma: “os leitores vão passear comigo nos morros, nos subúrbios, nos arrabaldes, nas rampas marítimas – em todas as claridades e em todos os desvãos soturnos onde vive a alma do povo singular da cidade mais linda que o mundo tem”.666

E é justamente num desses espaços afastados da cidade moderna onde teria surgido o gênero musical em perspectiva: “o samba nasceu no morro”, afirma Orestes Barbosa repetidas vezes ao longo do livro. A descrição que faz desse lugar, conforme já se destacou aqui, é sempre idealizada, utilizando-se de uma linguagem poética que revela algum distanciamento. O cenário é narrado à semelhança dos versos de uma música: “O samba nasce no morro. Na crista da terra enfeitada pelas arvores, e onde ha a poesia daqueles casinholos – pedaços de táboas rétas, um této de zinco orquestral nas noites de chuva; uma bananeira, um gato, a luz saindo pelas frinchas, e la dentro um violão e um amor!”.667

Retomando a ideia romântica de considerar a música manifestação dos sentimentos, Orestes Barbosa transforma, assim, a configuração espacial, os elementos característicos e as emoções dos habitantes do morro em matéria-prima para a poesia do samba. Sua descrição monta, por vezes, um universo quase fantástico, onde vive um povo típico que produz sons com efeitos encantados sobre a cidade: “no morro vive um lirismo exclusivo, uma filosofia estranha, como que olhando a claridade do urbanismo que, afinal, olha pra cima, atraido pelas melodias, e sobe então, para buscal-as, e trazel-as aos salões”. 668

Essa visão poética, romantizada e, por vezes, fantástica dos morros é encontrada ao longo de toda sua trajetória como escritor. Em Bambambam, livro de crônicas publicado em

665 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 50, grifos meus. 666 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 18. 667 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 50. 668 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 51.

1922, ele afirma: “ao longe a Favela tem até uma aparência poética – aqueles casebres que dão ideia de pobreza resignada, alguns arbustos descontentes com o terreno em que vivem, e os lampiões, em pontos diferentes, tortos, como bêbados, piscando o olhar cá para pra baixo”.669

O morro surge, assim, para Orestes, como uma outra cidade, onde se resguardam características que foram apagadas pela modernização:

Há, sem dúvida duas cidades no Rio. A Misteriosa é a que mais me encanta. Eu gosto de vê-la e senti-la na luta contra a outra – a cidade que todos tem muito prazer em conhecer... Tão viciado e tão perverso quanto a Favela, mas muito mais obtuso, Botafogo não entusiasma porque é postiço.670

Se Botafogo, um dos bairros mais tradicionais da zona sul da capital, é considerado artificial em comparação à “outra cidade” configurada pela favela, então o morro surge como cenário original da cidade. Na sua idealização como espaço misterioso e fantástico, Orestes Barbosa “vê uma sociedade de espíritos excepcionais” que produzem música própria: “da Favela e zonas congêneres saem a modinha e o samba que as melindrosas mandam comprar, cantam e dançam”.671 Nascido na favela, portanto, o samba desceria, depois, à cidade.

Sua visão do morro é retomada numa matéria publicada na edição d’A Manhã em 29 de dezembro de 1926. No texto, Orestes Barbosa discute as possíveis transformações do Morro da Favella no contexto do já referido plano Agache, elaborado na gestão do prefeito Antônio Prado Junior. A “montanha”, diz ele, “onde vive, mysteriosamente, uma população de habitos e côres

669 BARBOSA, Orestes. “A favela”, In: ______. Bambambam. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultura, Divisão de Editoração, 1993 [1922], p. 111. Na “Apresentação” à obra, Armando Gens e Rosa Maria de Carvalho Gens reforçam a característica atribuída ao autor por Monica Velloso, de narrar a “outra cidade” do Rio de Janeiro. Segundo eles, as 32 crônicas que compõem o livro “se assentam em duas vias: a primeira, declaradamente atada ao espaço da Casa de Detenção; a segunda, fundamentada em fatos diversos, recortes de desvio, em que a humanidade é exposta [...]. A desabrida antologia entre cidade e Casa de Detenção tem sua razão de ser, porque, também ali, as desigualdades sociais reproduzemse espacialmente, bem como outras atividades típicas e rotineiras dos urbanos [...]. A analogia entre cidade e presídio alude ao topos da duplicidade do mundo. A técnica da correspondência aproxima o de fora ao de dentro, criando um efeito de similitude para repropor a velha questão de zonas cujos limites são tênues. GENS, Armando; GENS, Rosa Maria de Carvalho. “Apresentação”, In: BARBOSA, Orestes. Bambambam. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultura, Divisão de Editoração, 1993 [1922], p. 10-11. 670 BARBOSA, Orestes. “A favela”, In: ______. Bambambam. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultura, Divisão de Editoração, 1993 [1922], p. 115. 671 BARBOSA, Orestes. “A favela”, In: ______. Bambambam. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultura, Divisão de Editoração, 1993 [1922], p. 115. Com relação à descrição poética do morro, é importante retomar a explicação de Michel Foucault. Segundo ele, a origem carrega a ideia “de que as coisas em seu início se encontravam em estado de perfeição”, o que revelaria, segundo o autor, uma teogonia: “o nascimento divino de todas as coisas”. Por último, a origem seria o “lugar da verdade” como ponto anterior a todo conhecimento. A história, diz Foucault, tornou a verdade inalterável: “a verdade e seu reino originário tiveram sua história na história”. FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história”, In: ______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1993, p. 17-19).

variadíssimos, num vaevem curioso entre os artigos do Codigo Penal”, poderia ser transferida. Dessa forma, era importante que a imprensa desse uma última atenção àquele lugar de características próprias, pois “bulir com a Favella é desarrumar o modus viviendi de um povo”.672

Aqui a visão idealizada e fantástica do morro ganha características mais elaboradas, definindo-o como o cenário original da outra Rio de Janeiro, a cidade moderna. A primeira reforça seu posicionamento em favor das reformas “civilizatórias”, considerando o Morro da Favella lugar da contravenção.673 A segunda é que ele atribui a esse espaço uma organização que o configura como microcosmo da nação. Com o tempo, diz Orestes, “o morro passou a ter uma consciência nacional. – Sou da Favella! Há quem diga assim, orgulhosamente, nas horas de dansa rato em outras zonas, como quem diz o nome da pátria”.674

Era preciso, portanto, ante à iminência de desaparecer, que se registrassem os últimos momentos dessa microssociedade de características tão originais. No incontornável processo de transformações que o modelo de cidade moderna exigia, se perderia uma das manifestações típicas daquele local: “a Favella desapparecerá sem oposição. Desaparecerão, com o tempo, as toadas e as letras dos sambas que nasceram ali”.675

Se Orestes Barbosa vê a modernização como um caminho sem volta, ele também reconhece que as transformações alterariam, ou até eliminariam, os espaços onde as manifestações populares existiam por excelência, nos morros e subúrbios da capital. Sendo um processo inevitável, era preciso registrar essas expressões originais, entre as quais, o samba. Conforme se demonstrou aqui, nascido no morro, “veio das montanhas da cidade sua emoção”, diz Orestes. E tratando-se de um sentimento, não haveria razões para “tentar definil-a

672 BARBOSA, Orestes. “A estylisação da Favella”, A Manhã, Rio de Janeiro, 29 de dezembro de 1926, p. 25. 673 Em Na Roda do Samba, no capítulo dedicado ao “Morro da Favella”, Vagalume afirma que, desde que ficou conhecido como “reducto de valentes e cabras ‘escolados’ nas varias modalidades de malandragens, crimes e contravenções, o seu nome jamais foi olvidado no cadastro sangrento do noticiário policial dos matutinos e vespertinos cariocas” (GUIMARÃES, Francisco. Na roda do samba. Rio de Janeiro: Typ. São Benedicto, 1933, p. 247). 674 BARBOSA, Orestes. “A estylisação da Favella”, A Manhã, Rio de Janeiro, 29 de dezembro de 1926, p. 25. Dansa rato, ou “dança-de-rato”, é um sinônimo para “grande confusão, tumulto, briga” (DANÇA-DE-RATO. In: Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0.5ª [recurso eletrônico]. Instituto Antonio Houaiss. São Paulo: Objetiva, 2002). 675 BARBOSA, Orestes. “A estylisação da Favella”, A Manhã, Rio de Janeiro, 29 de dezembro de 1926, p. 25.

cientificamente [...], mais vale aprecial-a na cadencia de um tamborim. É assim que o morro faz” . 676

A síntese do pensamento de Orestes Barbosa pode ser, assim, ilustrada por uma paráfrase: “o samba carioca é resultado do processo em que a cidade moderna coloriu a alma do morro, local onde ele nasceu”. A partir dessa identidade local, ele pode, então, nacionalizala através da proeminência da cidade do Rio de Janeiro em comparação a outras manifestações típicas de países. “Das misturas que o Rio tem”, afirma, “vem a sua musica propria – o samba, que é tão nosso como a romanza é italiana, o tango é argentino e a cançoneta é de Paris”.677

Para essa construção, Orestes destaca a figura de Mario Reis, o “querido da cidade”, que, ao lado de Francisco Alves e Aracy Cortes, formaria “o triângulo de ouro do gênero musical”.678 Cantor de sucesso, ele detinha uma característica que assegurava a originalidade de seus sambas: “a sua emoção é igual á do morro”, diz Orestes. 679 Mario teria ido

buscar o samba nos desvãos soturnos do Buraco Quente, e da Pedra do Sal, para os ambientes da aristocracia, onde se cruzam, num transito magico, a imponência heraldica das ricaças e o deslumbramento primaveril das garotas, na confusão de faianças e almofadas de penas de avestruz...680

Orestes atribui, assim, a Mario Reis, a divulgação do samba entre diversas camadas da sociedade. Evidentemente que o faz segundo aquela visão “civilizatória” típica de seu pensamento. Dessa forma, referindo-se ao cantor, continua:

Ele pegou a cabrocha de galho de arruda atrás da orelha, e o mulato bamba, elevandoos, perfumando-os com as essencias da sua intimidade; pedindo licença e entrando com eles nos grandes palacios do mundanismo, dignificando-os, exaltando-os, consagrando-os, salvando-os de um desprezo injusto, e imortalizando-o no sucesso das edições, hoje obrigatórias, nas quaes o samba tem as palmas justas que a sua emoção reclama de todos os corações.681

676 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 48. 677 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 20. 678 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 82. 679 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 80. 680 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 81. 681 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 81.

Mario Reis ainda teria sido responsável por sugerir a criação da “orquestra típica do samba”.682 Era preciso criá-la, defendia Orestes, “diferente da do tango e do fox. A Argentina e os americanos do norte fizeram assim”.683 Ao colocá-lo em pé de igualdade com canções típicas de outros países, ele nacionaliza, portanto, o status do samba. O desdobramento dessa ideia confirma suas intenções.

Conta Sérgio Cabral que, em 1933, Mário Reis, valendo-se das boas relações que mantinha no governo Vargas, compareceu ao Catete para expor a ideia da criação de uma “Orquestra Típica Brasileira [...],para enfrentar a concorrência das típicas argentinas e daquelas cujos naipes eram divididos à maneira dos conjuntos norte-americanos”. 684 A ideia era, continua o autor, “formar uma orquestra, financiada pelo governo, com a responsabilidade de divulgar as características da música orquestral brasileira [...]. Para regê-la, não haveria outro nome melhor do que Pixinguinha”, o maestro mais habilitado para lidar com a música popular brasileira.685

O governo não só a aceitou a ideia da orquestra, como promoveu uma apresentação na Rádio Clube em 1º de setembro de 1933. O caráter nacional do samba foi reforçado, na ocasião, pelo então ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha:

“só posso ter palavras de elogio para o que acabo de ver e ouvir. Gente do meu país, música do meu país. Sou dos que sempre acreditaram na verdadeira música nacional. Não creio na influência estrangeira sobre a nossa melodia. Nós somos um povo novo. E a praxe é que os povos novos vençam os antigos. O Brasil, com a sua música, há de vencer” . 686

Embora a “orquestra típica brasileira”, conforme afirma Sérgio Cabral, tenha nascido e morrido naquele dia, sua existência efêmera serve para demonstrar como Orestes Barbosa

682 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 198. 683 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 117. Segundo José Adriano Fenerick, “esse tipo de postura diante da música estrangeira tornou-se comum nos anos 1930-1940, pois é nesse momento que o gênero musical nacional do Brasil se choca com os outros nacionalismos, isto é, com os outros gêneros nacionais – ou já formados ou também em estágio de consolidação. Além disso, esses anos são marcados por uma cada vez mais forte presença norte-americana no país, e a música popular, no caso o samba, tornar-se-ia uma das manifestações mais refratárias à americanização” (FENERICK, José Adriano. Nem do morro, nem da cidade: as transformações do samba e a indústria cultural (1920-1945). São Paulo: FAPESP; Annablume, 2005, p. 255). Ilustrando esse contexto nacionalista, no qual o samba se chocava com outros ritmos estrangeiros, é exemplar o trabalho de Adalberto Paranhos em relação ao fado: PARANHOS, Adalberto. Nacionalismo musical: o samba como arma de combate ao fado no Brasil dos anos 1930. ArtCultura, Uberlândia, v.14, n. 24, p. 19-32, jan.-jun. 2012. 684 CABRAL, Sérgio. Pixinguinha: vida e obra. Petrópolis, RJ: Lumiar, 1997, p. 141. O autor utiliza a expressão “orquestra típica brasileira”, diferente, portanto, daquela utilizada por Orestes Barbosa. 685 CABRAL, Sérgio. A MPB na era do rádio. São Paulo: Moderna, 1996, p. 46. 686 Cf.: CABRAL, Sérgio. Pixinguinha: vida e obra. Petrópolis, RJ: Lumiar, 1997, p. 43.

procura tornar o samba carioca nascido no morro a canção nacional. Em seu livro, ele traz o trecho de uma composição muito ilustrativa de suas intenções. Trata-se de O samba é carioca, de autoria de Oswaldo Silva, imortalizada na voz de Carmen Miranda em 1934: “O samba, para ser bem brasileiro,/ Tem que ser feito no Rio de Janeiro”. 687

Uma das estrofes, na sequência dos versos dessa canção, é bastante ilustrativa da consolidação do samba carioca como símbolo da nação nos anos 1930, já que identifica o país no exterior:

Aí, que alegria De quando o samba é brasileiro Desafia todo mundo E na cadência é o primeiro

Quando ele é carioca Corre o mundo e não é sopa É ouvido e é visado E desacata até na Europa688

Não por acaso é a figura de Carmen Miranda quem consolida o samba carioca como brasileiro. No último capítulo deste trabalho se demonstrará que ela internacionaliza, com efeito, o status do samba como canção nacional quando viaja aos Estados Unidos em 1939. Orestes Barbosa, lembremos, considera-a “tão carioca na sua pronuncia meiga e brejeira; tão viva e tão propria”, uma “autentica figura do meio, do meio que lhe absorveu, do ambiente que a plasmou”.689

Aanálise da obra de Orestes Barbosa,que ora se encerra neste trabalho, revela, portanto, o morro como lócus de nascimento do samba carioca modernizado pela cidade do Rio de Janeiro. O gênero musical surge, assim, como “folclore urbano”, circunscrito, geográfica e simbolicamente, ao morro como lugar de origem, espaço que lhe assegura sua manifestação em “estado puro”, sua “emoção”, nas palavras do autor, à semelhança das tradições folclóricas rurais que se mantinham perene ao longo do tempo.

687 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 123. Carmen Miranda cantava esses versos com uma sensível modificação: “O samba pra ser bem brasileiro, meu bem \ tem que ser feito no Rio de Janeiro” (O samba é carioca, Osvaldo Silva. Gravação de Carmen Miranda. In: Os Grandes Sambas da História, vol. 21, faixa 4. BMG/Polygram/Globo, 1998). 688 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 123. 689 BARBOSA, Orestes. Samba, sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Livraria Educadora, 1933, p. 99.

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