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2.2. A mais imprevista, intensa e dramatica feição: a primeira versão de 1890

português que compõe o argumento central de Rocha Peixoto acerca do estado letárgico da sociedade portuguesa consubstanciada no fado.

Atento a esses elementos da obra de Teófilo Braga somados à influência de Oliveira Martins assinalada anteriormente, pode-se, agora, investigar em profundidade os textos de Rocha Peixoto. Conforme se afirmou, serão analisadas duas versões d’O Cruel e Triste Fado: a primeira, publicada no jornal A República Portugueza em 1890, e o opúsculo impresso pela Imprensa Lusitana em 1896.

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2.2. A mais imprevista, intensa e dramatica feição: a primeira versão de 1890

Na primeira versão d’O Cruel e Triste Fado, publicada no jornal portuense A República Portugueza de 6 de dezembro de 1890, Rocha Peixoto assina o texto sob o pseudônimo de Crimmel.349 Trata-se de um artigo curto, estampado em duas colunas de uma mesma página do combativo jornal do Porto. Não por acaso, o teor do texto é bastante agressivo, característica que, de forma alguma, constitui uma exceção na imprensa da época. Contudo, não deixa de ser curioso que, embora não exclua o tom rude, amenize-o nas versões posteriores.

No início do texto ele afirma que um povo manifesta de forma espontânea e despercebida as características intrínsecas que já introjetara como naturalmente suas. Seriam essas expressões o objeto de trabalho dos etnógrafos:

á generalidade do publico passam de largo factos que, pormenorizando a vida social d’um povo no que ella tem de mais flagrante e caracteristico, lhe imprimem a mais imprevista, intensa e dramática feição. Será, porém, base para maçorraes divagações dos ethnologistas esse acaso, a sorte, o fado que, em todas as nossas acções, compromissos e acontecimentos capitães da vida, intervem cruel ou felizmente produzindo alanceantes magas ou originando reaes venturas.350

Como se nota na citação, o autor utiliza o significado latino da expressão fado, como sinônimo de “acaso”, “sorte”, “destino”. Só no decorrer do texto o termo recebe a alcunha musical. Viu-se anteriormente que, para Teófilo Braga, a poesia popularsurge como “fatalidade

349 CRIMMEL. A República Portugueza, Porto, 1º ano, nº 67, 6 de dezembro de 1890, p. 1. 350 CRIMMEL. A República Portugueza, Porto, 1º ano, nº 67, 6 de dezembro de 1890, p. 1.

da raça”.351 No texto de Rocha Peixoto, o acaso surge como fator determinante dessa “imprevista, intensa e dramática” feição da nação, que, mais adiante, revela ser o fado enquanto canção.

Essa espécie de característica transcendental seria, portanto, conformadora do destino da nação. No caso português, diz Rocha Peixoto, o fado, agora com acepção musical, condenado por suas condicionantes sociais e pelas baixas qualidades poético-melódicas, constituiria a síntese de um povo passivo, entregue à imprevisibilidade do destino:

É o accaso que faz de nós ricos ou pobres; é a sorte ou o accaso que nos realisa um bom ou mau casamento; é a sorte ou o accaso que nos gratifica com um emprego rendoso; é a sorte ou o acaso que nos faz criminosos e ladrões, honestos ou equilibrados; é a sorte ou o acaso que nos atira como o pé direito á vida ou com o esquerdo á desgraça. Esse accaso, essa sorte, synthetisa o fado que a todos domina, desde o snr. D. Miguel que o batia até nós que o gememos.352

Depara-se aqui com a expressão “bater o fado”, já utilizada anteriormente por Teófilo Braga, ligada a uma figura da nobreza. D. Miguel de Bragança foi regente de Portugal e Algarves entre 1826 e 1828, e rei até 1834, período que coincide com as primeiras referências ao fado em Lisboa em meados do século XIX. Se, conforme afirma, no tempo do monarca “batia-se” o fado, posteriormente os portugueses teriam passado a “gemê-lo”, numa alusão à característica exclusivamente vocal do gênero musical consolidada atualmente.

Acompanhando a descrição de Teófilo Braga, Rocha Peixoto define o fado como uma “derrancada musica” composta de “fúnebres versos”. Contudo, “essa melopeia”, ou seja, uma cantiga simples, seria, conforme afirma, “d’uma integral justeza” ao comportamento cultural do povo português. Tudo nele,

o motivo, a factura, a melancholia terna e amaviosa, o chorado, o pianinho, a atitude acabrunhada do cantor, olho em alvo, grenha ao vento, a immundicie do corpo e a porcaria da alma, como tudo isto é onomatopaica, como define com atroz clareza o que nós todos somos em malandragem, em idiotia e em esterco!”.353

Esta fatalidade, “pois que é inherente ao portuguez”, diz Rocha Peixoto, “privará a collectividade. Motivos, senão primaciaes, de bom prezo, para explicarem a passividade da nação nos seus destinos”, que, miserável, estaria “à mercê do acaso [...], esperando melhor sorte”. 354 A razão desse estado de coisas estaria sintetizada no fado.

351 BRAGA, Teophilo. Historia da poesia popular portuguesa. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1867, p. VI. 352 CRIMMEL. A República Portugueza, Porto, 1º ano, nº 67, 6 de dezembro de 1890, p. 1. 353 CRIMMEL. A República Portugueza, Porto, 1º ano, nº 67, 6 de dezembro de 1890, p. 1. 354 CRIMMEL. A República Portugueza, Porto, 1º ano, nº 67, 6 de dezembro de 1890, p. 1.

Sua análise insere-se, assim, no diagnóstico da decadência da sociedade portuguesa consolidado pelos intelectuais da Geração de 1870. Teria sido o distanciamento da nação dos ideais racionalistas e cientificistas da civilização moderna, o responsável pela consubstanciação do fado com o estado decadente da nação:

a carência de noção da positividade da existência, as cálidas heranças do paganismo, a absorpção feita ao deante pelos deslumbramentos da palavra e do culto catholicos, um natural relaxo que nos faz antes indiferentes do que contemplativos [...]. Para as raças fortes não é uma sobrenatural presencia que as induz a empreender e a actuar. É o cálculo, é o estudo, é a rasão, que nós, homens de sentimento, tanto desdenhamos.355

Uma síntese do pensamento da Geração de 70, que evoca justamente os argumentos encontrados em O Cruel e Triste Fado, é oferecida por Fernando Catroga e Paulo Archer Carvalho. Para alcançar o objetivo de inserir Portugal nos trilhos da modernidade, afirmam,

as ciências, com o seu carisma de objectividade e de racionalidade, apareciam, de facto, aos olhos da «nova geração», como a prova irrefutável da verdade das propostas filosóficas e sociais que, em seu nome, eram apresentadas como a solução definitiva para a crise moral e social decorrente das contradições capitalistas. Em Portugal, isso significava a contestação do status quo nascido com a Regeneração e implicava a anatematização das instituições (propriedade, Igreja, Monarquia) e dos valores éticos (utilitarismo) e estéticos (ultra-romantismo) que o legitimavam.356

Essa ideia da importância da coletividade da nação, comprometida, segundo Rocha Peixoto, pelo afastamento da nação dos ideais racionais e científicos da civilização moderna, encontra argumentos na obra de Oliveira Martins. Segundo ele, lembremos, “a falta de coordenação das acções pelas idéas provém do espectaculo de uma sociedade confusa, onde a mediocridade e a insensatez vào de braço dado caminhando ás cegas n’uma estrada sempre deprimente dos caracteres”. 357 Assim, a inexistência de um sistema de instituições capaz de coordenar as decisões individuais, teria condenado o país a um individualismo responsável pela falta de um sentido de comunidade.358

Somada às deficiências da nação, dentre as quais destacava a incapacidade intelectiva, Rocha Peixoto acrescenta a aversão ao trabalho: “Sem essas qualidades brônzeas no trabalho e lucidas no pensamento, amarrados de grilhetas á inercia, com vivemos e de que dependemos?”, pergunta-se. “Dos vaivéns da sorte!”, ele mesmo responde.359 Em seu artigo A anthropologia,

355 CRIMMEL. A República Portugueza, Porto, 1º ano, nº 67, 6 de dezembro de 1890, p. 1. 356 CATROGA, Fernando; CARVALHO, Paulo A. M. Archer de. Sociedade e Cultura Portuguesas II. Lisboa: Universidade Aberta, 1996, p. 167. 357 MARTINS, J. P. Oliveira. Historia de Portugal. Lisboa: Livraria Bertrand, 1882, v. 1, p. VI. 358 MARTINS, J. P. Oliveira. “Advertência”, In: Portugal contemporaneo. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira, 1906; ______. Quadro das Instituições Primitivas. Lisboa: Guimaraes & C.ª Editores, 1953. 359 CRIMMEL. A República Portugueza, Porto, 1º ano, nº 67, 6 de dezembro de 1890, p. 1.

o caracter e o futuro nacionais, impresso no terceiro volume da Revista de Portugal publicada no Porto em 1890 sob a direção de Eça de Queirós, ele considera que, devido às suas carências, a única contribuição do povo português à história universal foi a efêmera empresa marítima:

Homens de sentimento, pulsillanimes quando melancolicos, futeis pela verificada incapacidade intelectiva que não permite a concepção e elaboração da obra mental, duradoura e de futuro, inertes quanto a faculdades iniciadoras, até nas mais urgentes solicitações da vida, restam, como episodio fugaz da sua intervenção na historia, as navegações d’outr’ora, documentos incontrastaveis da rapace ambição dos homens, com a coragem cega pela avidez do ouro, heroes e traficantes, typos perfeitos de assignalada pirataria, e ao diante, para satisfação de todos nós, padrões de immarcescivel gloria. N’isto se quéda a ephemera contribuição dos portuguezes nos universaes destinos.360

Como se depreende, definida de forma depreciativa, a empresa marítima teria sido o único resultado possível do caráter deficiente de um povo sentimental, avesso à atividade intelectual e, por isso, entregue ao acaso. Produto da ambição dos homens, as navegações são condenadas pelo autor, argumento que o coloca, assim, uma vez mais, pari passu com a obra de Oliveira Martins.

Entregue ao acaso das descobertas proporcionadas pela empresa marítima, o povo português sintetizado no fado leva Rocha Peixoto a afirmar: “Tudo entre nós corre o fado. Os navegadores lá tiveram o seu, como os lobis-homens, - as rainhas, como as bruxas; corre-o o dinheiro, o paiz e o tempo, e cada um, individualmente, quando lhe chegar a tyranna morte, terá acabado o seu fado!”. Ele entende, dessa forma, o fado – canção, como o fado – destino do povo português.

360 PEIXOTO, Rocha. A anthropologia, o caracter e o futuro nacionaes. Revista de Portugal, Porto: Lugan & Genelioux, vol. III, n. 18, 1890, p. 690. Idealizada a partir de 1888 por Eça de Queirós, enquanto ocupava o cargo de cônsul em Paris, onde residiu em Neuilly até sua morte em 1900, a Revista de Portugal, lançada em 1889, pretendia preencher uma lacuna no país. Numa espécie de Programa-prospecto publicado no jornal O Tempo, de 15 de março de 1889, a Revista de Portugal coloca-se como “uma Publicação onde, além de se apresentarem creações da imaginação no Romance e na Poesia, resultados da investigação na Sciencia e na Historia, trabalhos de Critica artística, se estudem, com desenvolvimento e adequada competência, os assumptos que genericamente se prendem com a Politica, com a Economia, com as Instituições, com o os Costumes, com todas as manifestações de um organismo social”. O periódico justificava-se porque “o Publico, pela ausência d’uma Revista que periodicamente vá registrando a vida nacional nas suas diversas evoluções, não tem possuído o único meio de seguramente computar a valia ou a inanidade do esforço collectivo”. A exemplo de Oliveira Martins e Rocha Peixoto, que não por acaso são seus colaboradores, a publicação denunciava a ausência de espírito coletivo configurado pelas deficiências, sobretudo intelectuais, da sociedade portuguesa naquele momento. Pretendendo “actuar como um fecundo fator de educação”, o Programa-prospecto da Revista afirmava: “Uma nação só vive porque pensa – cogita ergo est. A nação que, nas coisas da inteligência, se mostra morta, ou que a cada esforço que em prol d’ella se tenta para a mostrar viva responde com o desdém, inutilizando voluntariamente esse esforço e dando-se publicamente a atitude de morta” (O Tempo, Lisboa, de 15 de março de 1889, p. 2-3).

Ao lado de outras tradições populares como a crença no lobisomem e nas bruxas, ele analisa o fado como um objeto etnográfico português. Trata-se, conforme destacou João Leal, de uma tentativa de considerá-lo como registro “onde cristalizava de forma particularmente rude aquilo que era visto como o irreversível declínio do país”.361 Visto dessa forma, a exemplo de outras crendices que afastavam a nação dos ideais da moderna civilização, era preciso eliminar o fado: “Este agente mórbido e intrínseco que nos dá o derreio da acção e na iniciativa carece de extinguir-se, substituindo-lhe o ar fatal e o esfalfamento por tino e virilidade. É penoso? é longo? Seja, mas annule-se”.362

Contudo, ao condená-lo, ressalta novamente o caráter antropológico de sua análise acerca do fado, ou seja, reconhece-o como uma manifestação cultural da nação que refletia a precária situação da sociedade. Sendo assim, o gênero musical constituiria um traço da cultura portuguesa a ser corrigido:

Um povo pode ser, por indole, sentimental e triste, por fatalidade ethnica, indolente, por causa pathologica, pouco inteligente. Parvo, a esta altura do século, é que não. Não se altera artificialmente o cunho anthropologico que define uma raça, nem o meio, nem o seu clima; corrige-se-lhe todavia as manhas e o vícios. Irra! Que já é tempo de deixarmos de ser palermas! 363

361 LEAL, João. O cruel e triste fado. Etnográfica, v. I (2), 1997, p. 332. 362 CRIMMEL. A República Portugueza, Porto, 1º ano, nº 67, 6 de dezembro de 1890, p. 1. O apelo por uma virilidade da nação será uma das prerrogativas para a superação do estado de decadência da sociedade portuguesa até o Estado Novo, conforme veremos no decorrer deste trabalho, sobretudo, no discurso de Luis Moita em 1937. Segundo Maria Bernardete Ramos, “o desejo de virilização, na primeira metade do século XX, compunha um dos ideários do nacionalismo, vigente nos regimes fascistas [...]. Era recorrente, no mundo ocidental, o discurso de que somente a virilização da nação, da sociedade ou da raça, tiraria os povos da decadência em que se encontravam. A virilidade era evocada para resguardar a ordem contra os “perigos da modernidade” e a distinção entre cidadãos de “boa conduta moral” e aqueles considerados “anormais” – os doentes mentais, os homossexuais e todos os portadores de “taras” ou de doenças que colocassem em risco a saúde da prole. A virilidade era também evocada como símbolo do espírito da nação e de sua vitalidade material”. De acordo com a autora, nesse contexto, “as vanguardas artísticas, da virada do século XIX para o XX, com seu experimentalismo, teriam rompido com a noção de representação [...]; aparece nas artes plásticas o caráter andrógino do corpo; expressava-se, enfim, o sentimento da perda da identidade masculina e da feminilização da cultura” (RAMOS, Maria Bernardete. “Homens de pedrae-cal do Estado Novo Português: estatutária e virilidade da nação”, In: SZESZ, Christiane Marques; RIBEIRO, Maria Manuela Tavares; BRANCATO, Sandra Maria Lubisco; LEITE, Renato Lopes; ISAIA, Artur Cesar (Orgs.). Portugal-Brasil no século XX: sociedade, cultura e ideologia. Bauru, SP: EDUSC, 2003, p. 343-344). Rui Ramos, por sua vez, tratando já do período modernista, identifica uma “metafísica da virilidade” nos trabalhos de António Sérgio e Raúl Proença publicados nas páginas da revista semanal Seara Nova, dirigida desde 1921 por esse último e por Jaime Cortesão, os idealizadores da Renascença Portuguesa. Sérgio e Proença teriam idealizado uma “divisão entre os princípios e os instintos”. Para o primeiro, afirma Rui Ramos, só se “poderia obter a serenidade na clareza e na virilidade” da razão sobre os instintos”. Já Proença, por sua vez, que definiu seu pensamento como uma “filosofia da virilidade”, vítima de “uma obsessão machista”, conforme Rui Ramos, tinha como “uma das favoritas estocadas [...] como polemista [...] a sugestão de falta de virilidade, ou mesmo a homossexualidade, nos seus adversários” (RAMOS, Rui. A segunda fundação (1890-1926). In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. [S.I.]: Editorial Estampa, 2001, v. 6, p. 483). 363 CRIMMEL. A República Portugueza, Porto, 1º ano, nº 67, 6 de dezembro de 1890, p. 1.

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