4 minute read

hInspiração

Leitura da crônica de Otto Lara Resende, “O Olhar

OLHAR E ENXERGAR – Laerte Temple

Advertisement

Tenho andado muito distraído e meio despombalizado, o que quer que isso signifique. Onde foi parar aquela pessoa que vivia em mim, observadora, criativa, feliz? Então eu estudei apenas para chefiar um Call Center, ouvir reclamações de clientes e me desculpar pelos erros que não cometi? Isso não é justo! Saí do trabalho, andei distraído até o Metrô, passei da estação e voltei tentando lembrar onde errei. É incrível como a gente olha as coisas e não enxerga! No trem, uma jovem sentou ao meu lado, desculpando-se pelos pacotes enormes, cheios de coisas espetadas. Pareciam saquinhos de batata frita. Respondi com um sorriso amarelo. Ela puxou conversa, disse que se chama Soraia, comprou guache, cadernos, cartolina, argila e pincéis. Faz arte terapia com idosos, para resgatar a alegria de viver. Perguntei se aceitam idosos com menos de 40. Ela riu e eu disse que não sinto prazer algum desde que minha vida foi fagocitada pela rotina Ela levantou, pensei que ia descer, mas era para dar lugar a uma idosa. Como não notei aquela idosa? Insisti que ficasse no meu assento. Depois levantou de novo, mas era mesmo para descer, uma estação antes da minha. Desci também, carreguei uns pacotes e ofereci um café na padaria. Ela se livrou dos pacotes como quem descasca cebola. O garçom ajudou com volumes, ela o chamou pelo nome e perguntou se a esposa esta melhor. Que mulher atenciosa. Soraia me enfeitiçou!

Pedimos sopa e torradas. Ela disse que ao acordar, abre a janela, saúda o novo dia, canta com os pássaros, observa as nuvens e os cheiros da manhã. Quis saber o motivo e ela citou Bernard

Shaw: Alguns homens vêem as coisas como são e perguntam “Por quê?” Eu sonho com as coisas que nunca foram e pergunto “Por que não?” Senti inveja. Como eu gostaria de ver a vida com os seus olhos!

Despedimos e passei a prestar atenção nas pessoas: moça com o gato no colo, crianças brincando, chafariz, o pedinte a quem dei 1 real. Eu só ando de carro, não conheço meus vizinhos e não reparo no que há em volta. O jornaleiro atendia alguém e por sorte não me viu, pois não sei o seu nome. Observei o lago, carpas, gramado, Ipê amarelo, decoração para o Dia das Bruxas.

Nossa! Já é outubro! Ando muito desligado. Tanta coisa bela que nunca reparo! No hall de entrada, um vaso de Renda Portuguesa e uma bicicletinha. Entrei, fechei os olhos e inspirei para sentir o ambiente. A Soraia, quando vai à na praça, fecha os olhos, inspira e analisa cheiros e ruídos, sua outra forma de “ver” a vida. Senti perfume de rosas e 2 sons distintos: o rosnar nervoso de um cão e uma doce voz feminina: Rui, é você querido? Opa! A adrenalina na corrente sanguínea me alertou: Renda Portuguesa? Cão nervoso? Ipê amarelo? Rosas? Bicicleta infantil? Moro só, não tenho cachorro, não tenho filhos, ninguém me chama de querido e meu nome não é Rui! Abri os olhos e vi uma bela mulher assustada, recém saída do banho, enrolada na toalha. Gesticulei pedindo calma, abri a porta e dei de cara com o provável Rui. Simulei um desmaio e tentei cair com alguma dignidade enquanto assimilava que entrei na casa errada. Ando mesmo muito distraído, pois moro em apartamento!

UMA MANHÃ NO CAFÉ – Jacyra Carneiro Montanari

- Oi, bom dia!

- Bom dia! - Quem é você? Não te conheço, conheço?

- Meu nome é Olhar. Nem todos me conhecem. Você também não. –Posso me sentar?

- É, pode, sente-se. - O que você quer? Você disse que nem todos te conhecem, inclusive eu. O que você faz?

- Eu promovo mudanças.

-Mudanças como?

- Mudança interior e mudança exterior.

- Não entendi!

-É simples. Na mudança interior eu tiro o que impede a visão. A exterior é conseqüência da interior.

-Puxa! Bonito o seu trabalho. Ainda bem que eu tenho visão.

- Que bom! Dê uma olhada no jardim da Praça. Veja como está florido.

- Nossa é verdade! Não tinha reparado!

- Você viu aquele senhor sentado no banco? Ele está com frio e fome. Agora estão dando alguma coisa para ele comer e se esquentar

- Não reparei. Eu fico aqui no café com o meu celular, o resto não vejo. Não dá para fazer as duas coisas ao mesmo tempo.

- É não dá mesmo, por isso muitas pessoas não me conhecem. Para me conhecer é preciso parar. Para poder parar é preciso querer tirar de dentro de si, aquilo que incomoda e impede de ver. Quando isso acontece, vem paz e com ela, a gente consegue sentir e olhar para o que está ao nosso redor. É um salto quântico que se dá na vida, mas difícil de fazer.

-Olhar, bonito o que você falou, mas agora eu preciso enviar as minhas mensagens.

- Ok, até mais ver, boa sorte.

- Obrigada pra você também. “Nossa, ele parece um doido! E que nome é esse? Olhar! Não entendi nada!”

O PSIQUIATRA QUE AMAVA SUA PROFISSÃO – Lígia Lucchesi

Aquele psiquiatra amava muito sua profissão. E em um grupo de estudos no qual discutíamos o valor da Psiquiatria, ele foi convidado para falar do que constituía esta carreira para ele. E encantou a todos quando contou que sua netinha havia perguntado para ele: - Vovô, o que você faz para ganhar a vida? – Eu converso com as pessoas, respondeu a ela... - Mas só isso? ela insistiu. Você ganha dinheiro só conversando? Sim, respondeu! Foi uma experiencia tão poética a que nos passou e nós alunos ficamos enlevados…

Tempos depois ficamos sabendo que uma paciente, que se tratava com esse psiquiatra há quatro anos entrou no consultório dele, uma manhã e o matou com dois tiros. Ela alegou que tinha uma paixão telepática por ele e não era correspondida.

Talvez ele fosse bom no tratamento pela conversa, mas tinha dificuldades no tratamento telepático…

NICOLAS, UMA MANEIRA DIFERENTE DE OLHAR – Marcia Moretti

Após engolir um belo hambúrguer, diz:

⁃ É tão bom, tão bom, que eu não gostei.

⁃ Como assim ? pergunta a avó.

⁃ É piada !!! diz sorrindo.

A avó sabe que ali tem muita verdade. Lembra de pequena de um ursinho de brinquedo, tão feio e mal tratado, olhar triste, que ficou seu brinquedo favorito, o mais bonito.

This article is from: