Bairro do Oriente (Revista Oriente nº27 2019)

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Marcos Fernandes*

Portfolio Bairro do Oriente

Notei diferenças e semelhanças entre as vidas de rua em bairros tradicionais de Macau e de Pequim no início deste século, em 2007, estava eu numa fugaz fuga pela China ao jeito de backpacker, de mochila às costas e máquina fotográfica suspensa sobre o peito. Estas imagens são pequenos apontamentos das gentes de ambas cidades por quem fui passando, feitas em película 35mm preto-e-branco. Segundo o Banco Mundial, em 2007, o PIB macaense cresceu 14,4% e a riqueza chinesa subiu 14,2%. Mas, apesar de ambas as economias estarem em galopante ascenção, de magotes de turistas chegarem diariamente para visitar afamados monumentos, e de homens de fato e gravata ali se movimentarem em negócios e apostas, um estilo de vida notoriamente ancestral persistia ainda em muitos bairros. Este portfolio é acompanhado de curtos ensaios de Yao Jingming, poeta e director do Departamento de Português da Universidade de Macau, e do jornalista Rogério Beltrão Coelho. Ambos consentiram em abrilhantar desta forma o trabalho que aqui se apresenta.

ABSTRACT

?????? I noticed differences and similarities between the street lives in traditional neighbourhoods of Macao and Beijing when, at the beginning of this century, in 2007, I was in a fleeting escape through China as a backpacker, with my camera suspended on the chest. These images, made of 35mm black and white film, are small notes of people I went by, in both cities. This portfolio is accompanied by short essays by Yao Jingming, poet and director of the Portuguese Department of the University of Macao, and journalist Rogério Beltrão Coelho. Both consented to brighten up the work presented here.

> Focando a lente com a alma

> Emoções e tradições a preto e branco

Os portugueses fizeram parte dos primeiros ocidentais que viajaram pela China, tendo contribuído para a construção da imagem da China no Ocidente com as suas narrativas de viagem e escritos literários. Fernão Mendes Pinto, Galiote Pereira, Álvaro Semeado, Camilo Pessanha ou Maria Ondina Braga são alguns dos escritores mais representativos neste âmbito. Entretanto, quando a fotografia foi inventada em meados do século XIX, tornou-se imediatamente um meio mais eficaz em termos da descrição e construção da imagem dum nação ou dum país. E a China, dada a sua realidade complexa e sempre em mudança, tem sido um alvo permanente da atenção dos ocidentais que passam pela China, sejam jornalistas ou fotógrafos, sejam simplesmente turistas. Julgo que o Marcos, quando esteve de visita à China como um viajante-fotógrafo, deve ter-se sentido muito curioso, interessado e entusiasmado, sempre com a sua câmara fotográfica na mão, pronto a fotografar a qualquer momento, porque tudo o que observava e enfrentava era familiar mas simultaneamente bastante exótico, o que é demonstrado pelas fotografias aqui mostradas, as quais conseguiram apanhar momentos muito interessantes da realidade e da vida dos chineses. Com a sua câmara fotográfica, ele pretendia conhecer melhor este povo a fim de se aproximar dele. Por isso, um bom fotógrafo não deve centralizarse simplesmente em imagens exóticas ou interessantes, mas tem sim, como aqui, de tentar espreitar o que pertence à identidade de um povo, visto que focaliza a lente não só com os seus olhos mas também com a sua alma cheia de emoção.

Marcos Fernandes põe em confronto e, ao mesmo tempo, em sintonia, hábitos e tradições de duas cidades chinesas com características muito diferentes mas unidas pela mesma cultura ancestral: Macau e Pequim. Na sua qualidade de jornalista – observador do quotidiano – Marcos Fernandes consegue uma abordagem intimista, informal e inesperada. Regista o instantâneo a que não falta vida, movimento, mesmo nas situações mais tranquilas. Nos primeiros anos do século XXI, foi dada ao jornalista uma oportunidade que a Revolução Cultural negou a muitos, durante os anos em que imperou, apenas sendo possível, nessa altura, encontrar as tradições mais puras da cultura chinesa nos territórios de Macau e Hong Kong, onde se mantiveram inalteráveis. Tradições que só voltaram, gradualmente, ao continente chinês a partir de finais dos anos 70 do século XX, com a abertura da China ao Mundo. Marcos Fernandes opta por captar as imagens a preto e branco, que permitem jogar com a variedade de tons de cinza e, explorando a luz e as sombras, transmitir, de uma forma mais vibrante e realista, as nossas emoções mais profundas. É tão velha como o advento da fotografia a apetência de fotógrafos ocidentais pela China. Segundo Li Shufeng 李树峰 1, autor do livro Macau Art Series 澳门摄影, «na segunda metade do século XIX, quem fotografava em Macau eram sobretudo missionários ocidentais e funcionários ligados ao comércio mercantil. Era o tempo dos estrangeiros olharem para a China. Numa altura em que as armas e os canhões entravam na China, os estrangeiros afluíam também com as suas câmaras e os pontos de desembarque eram Hong Kong e Macau. Olhavam, do seu ponto de vista, para a China com um olhar surpreendido e deixaram atrás de si um monte de fotografias. (…)»

​Yao Feng Director do Departamento de Português da Universidade de Macau,

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Cecil Beaton (1904-1980)2, Henri-Cartier Bresson (1908-2004)3 e Sebastião Salgado (1944-) – mestres da fotografia a preto e branco – são exemplos maiores de fotógrafos contemporâneos que cruzaram a China. Porém, nenhum deles esteve em Macau. Outros grandes fotógrafos profissionais que deixam o seu nome ligado à China, tais como Félix Beato (18321909) ou Hedda Morrison (1908-1991) – por vezes com registos fotográficos de Hong Kong – ignoraram Macau. Muitos são, no entanto, os estrangeiros – nos períodos em que o acesso à China foi facilitado – que, tendo percorrido a China, dedicaram atenção a Macau, com especial destaque para John Thomson (1837-1921), que reuniu, em quatro volumes, aquela que pode ser considerada a primeira grande reportagem fotográfica sobre o Império do Meio: Illustrated China and Its People (London: Sampson Low. 1873-74). Outros se lhe seguiram, entre eles William Pryor Floyd (1834-c.1900), William Henry Jackson (18431942), Jack Birns (1919-2008), Fernand Gigon (19081986) – um dos primeiros jornalistas (não comunista) a obter um visto para a China de Mao Zedong – e Harry Redl (1926-2011). Quanto aos portugueses, muitos amadores, residentes desde finais do século XIX, fotografaram Macau. Mas em termos profissionais, José Neves Catela (19021951), chegado ao território em 1925, foi o pioneiro. O interesse pela China – pelas suas gentes e vivências – de que Marcos Fernandes é exemplo, surgiu, como referi, pouco depois do advento da fotografia. Mas, em boa verdade, são muito poucos os fotógrafos portugueses que tenham documentado a China, em termos profissionais. Ocorrem-me os dois principais nomes, com levantamentos fotográficos quase exaustivos, recolhidos especialmente nos anos 90 do século XX: José Simões Morais e Joaquim Magalhães de Castro.


No entanto, é impar a preocupação estética e jornalística de Marcos Fernandes em colocar a par duas sociedades, separadas por uma distância de dois mil quilómetros, mas unidas por uma cultura milenária, que sempre floresceu em Macau e só ressurgiu nas últimas décadas no continente chinês. As imagens de jogadores de xadrez chinês (ou «xadrez elefante» – xiàngqí – 象棋), sentados no chão, repetem-se em Macau e em Pequim. Triciclos para transporte de passageiros são comuns nas duas cidades. Da mesma forma que o tai chi (ginástica ancestral) une as comunidades. E tantas outras práticas comuns – como o jogo da chiquia 4– que Marcos Fernandes tão bem registou e se espelham nas páginas que se seguem.

NOTAS 1

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Vogal da China Photographers Association, vice-director do Comité de Estudos Teóricos, director do Instituto de Artes Fotográficas e editor-chefe da revista Fotógrafos Chineses. Nasceu em Londres e formou-se em Cambridge. Retratista e designer, fotógrafo de moda, cenógrafo e figurinista, foi nomeado fotógrafo oficial da família real em 1937. Durante a II Guerra Mundial fez uma ampla cobertura fotográfica e reportagens em vários países, ao serviço do governo britânico. Publicou os livros Far East, em 1945, e Chinese Album, em 1945/46, com imagens de aspectos sociais, culturais, tradições e profissões. Em 1949, ano da fundação da República Popular da China, Bresson registou fotograficamente, para a revista Life, a transição, com algumas das mais famosas e inéditas fotografias dessa época publicadas na Imprensa e em livro. Esteve onze meses na China (cinco sob o regime do Kuomitang e seis após a fundação da RPC). É autor, entre outras obras, de D’Une Chine à l’autre, editado em 1954, com prefácio do filósofo francês Jean-Paul Sartre. Jiànzi (毽子). Joga-se com várias partes do corpo, excepto as mãos, ​​para não deixar a peteca (ou volante) tocar no chão. Utilizam-se principalmente partes da perna, especialmente os pés. O jogo é praticado por adultos e crianças.

Rogério Beltrão Coelho Jornalista, editor e investigador da História de Macau

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Marcos Fernandes gosta de contar histórias e estórias. É jornalista e locutor. Coordena a redacção da Media Capital Rádios, e vai editando noticiários na Rádio Comercial, M80, Smooth FM e Cidade FM. Na Comercial também é o autor da rubrica Eu é que sei, na qual dialoga com crianças sobre a forma como vêem o mundo. Marcos também assina a secção Reis do Bairro, sobre heróis desconhecidos de Lisboa, para o site O Corvo. Escreveu, durante muitos anos, sobre livros de fotografia para revistas da especialidade. Como hobby, fotografa, teimosamente, com película a preto-e-branco, e vai revelando o olhar em publicações e em paredes brancas com molduras negras.

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Legendas PortfoliO p.123 Lavagem de garrafas no beco, Macau p.124 Comerciante atras de caixas, Macau p.125 Pausa no riquexo, Macau p.126 A tocar ehru no Jardim Luis de Camoes, Macau p.127 A jogar cartas-domino no bar, Macau

p.128 Taipa em construcao, Macau p.131 Taipa, Macau p.132 Loja na Taipa, Macau

p.135 Jogo de rugby na praia de Hac Sa, Macau

p.139 Jianzi (chiquia) no Parque Jing Shan, Pequim

p.136 Tai Chi na Fortaleza do Monte, Macau

p.140 Mala Tang (espetadas picantes de vegetais e carne, vendidas na rua), Pequim

p.133 Obras no Casino Lisboa, Macau

p.137 A jogar xiangqi (xadrez chines ou chines elefante) no hutong, Pequim

p.134 Lancamento de papagaios de papel junto ao Delta do Rio das Perolas, Macau

p.138 Mala Tang (espetadas picantes de vegetais e carne, vendidas na rua), Pequim

p.141 Jianzi (chiquia) no Parque Jing Shan, Pequim p.142 Muralha da China p.144 Yihe Yuan (Palacio de Verao), Pequim

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