OLHOS
OBRAS DO AUTOR Evolução – Ed. Clip (2004) Do outro lado do mundo - Ed. Voxxel (2006) De l’autre côté du monde - Ed. Voxxel (2006)
MARCOS LIRA
OLHOS
EDITORA VOXXEL Santa Luz - BA – 2007
Direitos reservados à EDITORA VOXXEL LTDA Rua Rio Branco, 104 CEP 48.880-000 Santa Luz – BA Fone – (75)3265-2245
Capa Marcos Lira
Revisão Jussara S. do Nascimento Alves e Epitácio Carvalho
DEDICATÓRIA
A Clenilda Lira que permitiu a publicação desse trabalho e a Claudijane Rocha que sempre esteve a postos para enxugar minhas lágrimas.
AGRADECIMENTOS
A Luiz Pimenta e Erivan Araújo, que leram o manuscrito da primeira versão, pelas válidas sugestões.
APRESENTAÇÃO Torna-se de uns tempos para cá, optativa a presença da apresentação, por conta de que, muitas produções, por si só, envolvem todo carisma que uma obra deve ter. Olhos poderia enquadrar-se neste perfil. A capa, a pós capa carregam um invólucro que prenuncia histórias, reflexões... e inusitadamente puxa textos que o leitor de forma surpresa reitera o previsto ou surpreendente recria outras histórias. Ao ler Marcos Lira, neste romance, vi-me acompanhada por alguns outros autores, pelo estilo enredado do tempo, dos textos e contextos. No jogo das palavras e nas várias viagens consegue o autor transportar-nos a lugares e culturas diferentes. O enredo atrai e nos deixa atentos a continuidade da leitura o que considero o prenúncio de um bom caminho a ser percorrido. Aos leitores iniciantes um tema motivante, aos leitores experientes um tema reflexivo. Enfim, assim, como da alma humana tudo se estrai e a ela se desenvolve, compete também à Literatura essa tarefa de fazer circular entre os mortais, os questionamentos próprios da nossa existência. – OLHOS é um bom percurso para consolidar esse discurso. Marcos é um escritor instigante, investigativo e posso dizer pela experiência construída junto a ele, neste e em outros escritos que ele é um autor
persistente. Interessante a sua busca literĂĄria. Mais interessante ainda, o que o autor consegue produzir. Sua capacidade produtiva ĂŠ fenomenal e consegue levar o leitor a percorrer caminhos, entre os quais sĂł a literatura sabe provocar. Eis um autor que insurge e promete.
Jussara S. do Nascimento Alves
PRÓLOGO Lendo um certo livro de poemas, senti-me tentado a publicar uns escritos que tenho guardado. Mas me incomodava o fato de que a grande maioria das poesias tratava do massificado assunto Paixão. Vem-me à mente a célebre frase de Fernando Pessoa. “Toda carta de amor é ridícula, se não fosse ridícula, não seria carta de amor”. Então, para não parecer ridículo, pensei que estas poesias não teriam muito sentido ao leitor se este não estivesse envolto pela atmosfera que inspirou cada uma delas. Assim resolvi publicá-las, mas descrevendo o local, o sentimento e o motivo que me levou a escrevelas, então, em Belém, no Hotel Vila Rica, a 19 de maio de 2003 às 21:42 horas liguei o novo Note Book Dell 1.5 Ghz, e iniciei este livro. Com o desenrolar dos relatos as poesias acabaram sendo excluídas, pois passaram a não se encaixar no contexto, gerando outro livro chamado Evolução. Algumas, porém, foram mantidas por estarem em sintonia com o assunto abordado, sem quebrar a seqüência de pensamento. Marcos Lira
Hipócrita! Tira primeiro a trave de teu próprio olho, e então verás claramente como tirar o argueiro no olho de teu irmão. Lucas 6:42
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Capítulo 1 O avião não pousou em Carajás. Isto não é motivo de admiração, pois o aeroporto no alto da serra está sempre interditado para pouso, principalmente nesta época do ano que é bastante chuvosa, e quando não é chuva, é neblina, e quando não é neblina, é a fumaça das queimadas que atrapalha. Fui parar em Marabá e agora por terra até o acampamento Caracol da empresa de pesquisa mineral Rio Vermelho, em Serra Pelada. O asfalto está bem conservado, salvo alguns buracos nas passagens dos Igarapés que assoreiam o aterro fazendo a pista afundar. Passando por Divinópolis vejo um grupo de pessoas que me chama atenção. Decido parar o carro e entender o que se passa. A entrada de Divinópolis é ornada por enormes pneus dos caminhões fora-de-estrada que foram descartados da mina de ferro de Carajás. À beira do asfalto uma arquibancada montada permanentemente numa encosta e, do lado oposto um palanque onde discursa ninguém menos que o Major Amado Divino das Neves mais conhecido como Divino, que nos idos de 70 era agente do Serviço Nacional de Informação (SNI) e membro do Conselho de Segurança Nacional (CSN), órgãos responsáveis
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pelas perseguições, tortura e morte no regime militar na ditadura de Médice. Divino usou a estratégia de se passar por amigo e fornecedor de munição e alimentos, conseguiu exterminar os 69 líderes guerrilheiros do PC do B, dando fim àquela que foi a maior resistência armada ao regime militar; a Guerrilha do Araguaia. Na década de 80, Divino voltou à região como braço direito do Presidente Figueiredo para pôr ordem no garimpo de Serra Pelada. Foi eleito deputado federal com apoio dos garimpeiros, fixou residência em Brasília e agora retorna com o apoio do ex-inimigo, o ex-senador e líder político do Pará, João Botelho. Sem muitas delongas ou discursos floreados de frases de efeito sem significados, Divino presta contas do balanço financeiro da prefeitura, explicando claro e de forma compreensível quanto recebeu de impostos do governo federal e do estadual e em quais obras este dinheiro foi aplicado. A ponte de toras de madeira sobre o rio estreito de águas escuras dá ao ambiente um clima melancólico. Um barquinho de alumínio amarrado lá embaixo oscila ao sabor da correnteza, e as minhas pernas pendentes balançam acima das ondas turbulentas. Tento ver minha imagem refletida na água, mas ela surge disforme e mutante na face turbulenta do Igarapé. Sou branco, magro e alto, mas vejo-me moreno e gordo. Apenas o cabelo parece manter a cor 12
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amarronzada original. O que se destaca da imagem distorcida são as grossas sobrancelhas contrastantes com os olhos pequenos. Paula, a secretária magricela, desce a passarela feita de toros grossos serrados em discos e enterrados no chão, formando uma longa escada. Só me chama de Senhor Carlos. Acho duas vezes estranho esse tratamento. Primeiro porque, apesar de meus 38 anos, sempre acho que só tenho 18, e depois todo mundo chamaria de Seu Carlos em vez de Senhor Carlos. Ela vem grave e se aproxima lenta e silenciosa. Dá o recado e fica estática se apoiando no corrimão de madeira da ponte, enquanto eu corro para pegar minhas malas que ainda nem tinha desarrumado. Júlio a muito custo conseguiu me localizar aqui para dar a amarga notícia. Agora aquela paisagem não tem mais graça. Outro Júlio, o José da Silva, conduz a Mitsubish branca pela estrada cheia de buracos que passa ao lado da decadente Serra Pelada, onde outrora existiu um monte que um formigueiro humano transformou em buraco e hoje virou um enorme lago. Das incontáveis pessoas que subiam e desciam as rampas com sacos de cascalho nas costas, restam apenas algumas famílias paupérrimas que resistem aqui, na esperança de receber mais indenização da empresa Rio Vermelho. Passamos agora pelo funesto monumento feito com troncos de árvores pintados de negro, à beira do 13
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asfalto, que marca o lugar onde tombaram os 19 mortos do massacre de Eldorado dos Carajás. Uma hora para Marabá, duas horas para Brasília, três horas de espera pela conexão. Não tem como chegar a tempo. Olhando no espelho encontro três fios de cor cinza reluzindo por entre os fios castanhos do meu cabelo curto. As rugas sobre a pele alva acentuam a minha idade e, magro que eu já era, pareço ainda mais magro por conta do pesar. Os olhos negros, puxados como os orientais, denunciam o parentesco longínquo com índios apesar da minha tez clara. Caminho pensativo pelas ruas de Santa Luz calçadas com pedras graníticas. Sinto que este lugar tornou-se pequeno para mim. Logo após o posto Del Rey posso divisar no alto o cemitério. Sigo a passos lentos, observando o capim que margeia a estrada de barro avermelhado, deixo para traz a AABB, última construção da cidade nesta direção e, sufocado em pensamentos, transponho os umbrais que dão acesso à paisagem desoladora de lápides, carneiras e cruzes. Rápido localizo a cova pela areia recentemente revolvida, pelas flores ainda intactas que exalam perfume e ornam morbidamente o jazigo final de uma vida tão breve. Uma sensação de pavor apossa-se de mim.
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A impressão é de que estou em um lugar insólito. O terror me faz sentir gigante e leve, flutuando como num sonho. Enxergo tudo envolto numa névoa e sinto pulsar todo meu corpo, inflando a cada sístole e retraindo a cada diástole. A sensação desesperadora de perda e a amargura no coração parecem ser eternas, mas nenhuma lágrima brota de meus olhos. No silêncio pesado paro para refletir. Por que não estou chorando? Teria eu gastado todas as lágrimas antes? Estaria eu me sentindo vingado? Onde está o meu pranto? Um turbilhão de pensamentos se embaralha em minha mente. Sento-me em uma carneira e questiono a responsabilidade neste trágico epílogo. Lutei com todas as forças para que o fim fosse outro. Um final feliz. Mas feliz para quem? Tantas pessoas estavam envolvidas nesta história, cada qual com seus interesses bem diferentes dos meus. Às vezes acho que meus interesses foram de encontro aos interesses dos demais. Se eu tivesse conseguido manipular a todos como tentei, tudo teria acabado melhor, mas fui derrotado pela força da insensatez desses inconseqüentes. Na verdade acho que a correnteza da vida vai passando turbulenta e eu fiquei lá atrás, enganchado em algum galho com meus pensamentos retrógrados de romantismo, egoísmo e dominação.
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Não, não era pretensão minha achar que podia ditar o destino. Se você tivesse levado a vida conforme a minha vontade, o desfecho seria outro. Teríamos um final feliz... Enquanto a coruja olha silenciosa e assustada por traz da cruz de ferro de um velho mausoléu em forma de torre de igreja gótica, deposito sobre a terra os últimos versos que fiz para você e assino com o nome carinhoso de Betinho, como você me chamava com sua voz rouca nos bons tempos. Mas hei de recordar sempre dos primeiros versos que falam dos teus olhos vivos que me seguem por onde eu for. Caminho no labirinto do cemitério, por entre as covas e túmulos enquanto vou recapitulando como tudo começou. A vida não pode parar...
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Capítulo 2 Entro no táxi e falo ao motorista apenas MRV. Ele já entende que estou me referindo à sede da Mineração Rio Vermelho, situada no Distrito Industrial da cidade de Santa Luzia. Ele pega o PTT e fala à Central que já está de QRA com o Sr. Carlos. A atendente da central de radioamador da cooperativa de táxi de Belo Horizonte me cumprimenta: “Bom dia, senhor Carlos”. Fico desconcertado sem saber se preciso responder ou não. Olho para o PX e para o taxista seguidamente até que ele percebe o meu embaraço, dá uma risada e fala à atendente que eu também lhe desejo um bom dia. Também dou uma risada e seguimos viagem conversando animadamente. Deixamos agora a estrada de Caeté e viramos à esquerda, penetrando na mata por uma outra, calçada de seixos trepidantes. No topo da serra, onde o termômetro marca dois graus a menos, está o escritório da empresa, outrora estatal Rio Vermelho. Recebo um Note Book Panassonic 130 MHz, um celular Nokia, um GPS Garmin III e a missão de, com outros dois geólogos, fazer um trabalho de pesquisa mineral pelo Brasil. É uma alegria receber esse equipamento novinho assim. O GPS é um sonho. Tem em sua memória um mapa de todo o mundo e podemos nos localizar em qualquer parte do planeta vendo em
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sua telinha de 6 x 8 cm nomes de rios, estradas, vilas, povoados e cidades. O Note Book é um fascínio à parte. Dois gigabites de espaço para encher de programas, mapas, fotos, músicas e nos acompanha a todo canto. Ah, lembrei dos tempos amargos lá dos idos de 1987 com seus XT’s com dois megahertz, monitor monocromático, Word Star, Lotus 123 e Dbase II. Quantos comandos eram necessários para colocar um til em um “a” ou destacar uma frase em negrito, salvar arquivos em fitas cassete e esperar meia hora para recuperá-los, isso se a rotação do gravador estivesse perfeita. Acompanhava aquele zumbido que tinha que ter o volume perfeitamente ajustado: Biiinn, Uên, Uên, Tuuuummmm. A bibliotecária Niza consultou seus arquivos e nos mostrou a lista dos mapas, imagens e publicações disponíveis. Estendemos os mapas feitos pelo exército há trinta anos, e imagens aéreas recentes, sobre a comprida mesa da sala de reunião e passamos a planejar os trabalhos, definidos as áreas propensas à mineralização, analisando relatórios que se referem a ocorrências minerais, traçamos o roteiro e escolhemos uma Toyota Hilux e um Jeepinho Toyota Bandeirante para nos acompanhar nesta aventura. Abraço cada um dos colegas, encorajando-os a enfrentar com garra e coragem esta importante missão. Em meu íntimo há uma alegria vibrante. Estou 18
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confiante e certo de que teremos sucesso nesta empreitada. A fé remove montanhas de minério. De posse dos carros, mapas e dinheiro, passamos à saída triunfal dos bandeirantes do século 21, iniciando por almoçar no restaurante do Hotel Floresta Mágica, lugar espetacular no alto de uma serra, construído no estilo examel. Já na entrada nos surpreendemos com uma guarita em forma de forte Apache, com guardas fortemente armados, onde só é permitido transpor mediante reserva antecipada e identificação. Em frente ao hotel, um pequeno lago com cisnes brancos e negros dá um toque de glamour ao jardim. Na ampla recepção, aves coloridas de beleza rara, um espelho d'água ao fundo do salão com patos exóticos, sofás confortáveis, mesinhas com jogos como Xadrez ou Resta-um, um piano de cauda ao centro e, na parede, fotos da segunda guerra mundial, entre elas um fragrante de um soldado alemão, resgatando um garoto judeu do campo de concentração. No restaurante, grande variedade de opções de comida mineira sem esquecer a mesa de sobremesas repleta de doces de leite, coco, mamão, goiaba, pudins e, como não podia deixar de ser, estava lá também o queijo. Meus companheiros são os geólogos Manuel e Michelle. Manuel é um baixinho moreno claro e musculoso; Michelle tem a pele bem negra, longos 19
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cabelos crespos, magra e bastante alta. Não prima pela aparência, pois está sempre com a farda caqui e botas. Estou ansioso para pôr o pé na estrada, pois é um sonho conhecer a região onde vamos trabalhar. O programa abrange vários estados do nordeste, teremos que percorrê-los todos, e o projeto deve durar uns dois anos. O fascínio maior é pela oportunidade de fazer um trabalho de suma importância para a empresa e para o país, pois será gerado, no final, um relatório e enviado para o Departamento Nacional de Pesquisa Mineral, que irá atualizar os antigos mapas geológicos da região. Sendo pioneiros nesse trabalho, temos ainda a possibilidade de encontrar uma grande mina de ouro, que elevará nossos nomes para os anais da história da mineração. O curral de pedra indica que chegamos a Santa Luz. Ele é marcante por ser o único curral na região cuja cerca é uma parede de granito. Fica à beira da BA 120, a Rodovia do Sisal, e daqui avistamos o açude Tapera e logo em frente à cidade. Santa Luz fica à beira de uma estrada que não liga nenhuma cidade importante a nenhuma outra também importante; talvez por isso o asfalto ainda se mantenha em bom estado, pelo pouco movimento de carros pesados por aqui. De atrativos turísticos podemos citar uma igreja toda construída em pedras, uma estação de trem e enormes blocos de pedras 20
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naturais belas de se ver: o Morro dos Lopes. Quando vamos apreciar esta beleza podemos ouvir o tilintar de quebra de pedras que ecoa na vastidão, fruto em grande parte, do trabalho infantil nas pedreiras. Podemos ver também outras crianças que trabalham cortando e carregando sisal para os pés dos motores de desfibrar que, ao menor vacilo em seu uso, tritura o braço do cevador. No passado a cidade tinha grande fama por ser uma parada de trem e por residir aqui o Doutor Leitão Guerra, médico de renome, atraia caravanas de lugares distantes que vinham em busca de tratamento para sinusite e outros males. As pessoas que viajavam de trem sempre se recordam das grandes pedras do Morro dos Lopes. Nos áureos tempos da mina de ouro Maria Preta, eram muitas as opções: Cursos de informática, restaurantes italianos, churrascarias gaúchas, música ao vivo, Karaokê, ruas agitadas e um monte de Toyotas sujas de lama, circulando. Nas repúblicas das empresas de mineração, alegria, festas e batuque até o amanhecer. A mina fechou e a cidade passou a ser a velha Santa Luzia dos Leitões, agora sem os Leitões e só com seus 36 mil habitantes, suas pedreiras, um resto de sisal e as aposentadorias como fonte de renda. Mas foi nesta pacata cidade sem muitas, perspectivas de crescimento e progresso, que construí 21
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uma casa num bairro afastado e fixei residência depois de insistir em passar dez anos em Araci. Em Araci casei-me, e com menos de dois anos e com uma filha de dez meses me separei e depois de anos de briga resolvi mudar para esta cidade. Agora estou suportando o segundo casamento quase fracassado. Isabela parecia a mulher perfeita. Criada para casar, totalmente submissa, primeiro namorado e dependente, fator importante para que a gente possa impor a nossa vontade, ciente de que ela não nos abandonará. Eu a conheci quando tinha apenas treze anos. Já era uma mulher feita, e perfeita. Loira de verdade, longos cabelos lisos conservados em tranças que ao caminhar oscilavam de um lado a outro da cintura fina, roçando nas ancas arredondadas e firmes. A pele delicada, alva como leite. A voz meiga, com sotaque nordestino, emanava de seus lábios carnudos e corados. Desde essa tenra idade eu já lhe perseguia. Andava de skate à frente de sua casa para chamar sua atenção e, quando ela passava eu sempre detonava um torpedo com piadinhas de pouca criatividade, mas que surtiram um bom efeito. Certo dia ela pediu que eu esperasse um pouco, pois ela gostava de mim, mas só poderia namorar quando fizesse quatorze anos e essa data estava próxima. Completado o tempo regulamentar, precisei pedir autorização a sua irmã generala que, após uma 22
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sabatina, permitiu o namoro com a condição de nos encontrarmos somente monitorados por ela própria. Mas ela não era tão má assim. Concedia que ficássemos juntos, a sós, por justos dez minutos, na hora de nos despedirmos. Durante todo o namoro que durou até ela terminar o curso técnico de Administração de Empresas, nunca nos desentendemos, apesar de meu gênio um tanto agressivo. Ela sempre polida, calada e compreensiva, contornava qualquer indício de desentendimento. Namoramos por três anos e casamos. Uma cerimônia simples, por exigência minha, pois por não acreditar mais em um relacionamento duradouro, não pretendia fazer um espalhafato e, logo depois, anunciar a separação. Por quatro anos vivemos muito bem. Não tivemos filhos por opção minha, pois pretendia ter certeza de que este casamento iria dar certo. No início romântica, depois pacífica. Mas esgotou o carinho; mais tarde desapareceu também o diálogo e só restou a hostilidade. Era indisfarçável a aversão. No início ela chamava-me de Betinho, agora quando raramente se dirige a mim trata-me por Alberto e em vez de dengo na voz, um tom de rancor. Eu fico grande parte do tempo em casa, e ela sai cedo para o trabalho, volta tarde, sempre cansada e assim vamos vivendo separados sob o mesmo teto.
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Uma hora da madrugada, automaticamente levanto e ligo o computador. As ligações telefônicas neste horário custam um quarto de quanto eu pagaria se ligasse em horário comercial. O provedor mais próximo é em Feira de Santana e a garimpagem de fotos, fascinante, imprevisível, com certeza precisa de persistência e longas ligações. Lembro que eu queria apenas ver uma foto, mas no primeiro contato com a Internet, consegui encontrar três. Se eu chegasse a dez fotos, seria um grande feito, pensei nas próximas buscas e encontrei um site que só tratava desse assunto e logo cheguei a cem. Satisfeito com os resultados, estabeleci uma nova meta de quinhentas. Logo esta atividade passou a ser crime. Mas como já estava dominado pelo vício, descobri que, na Rússia e no Japão, ainda eram liberadas. Instalei fontes para caracteres japoneses e enriqueci bastante minha coleção. Cheguei a catalogar, separadas por idade, nome e raça, dez mil fotos de menores nuas – as Lolitas, Teens ou Kids, segundo a linguagem internáutica. Agora, no exterior, os sites vão sendo caçados, descobertos e um a um vão sendo tirados do ar. Certa tarde interrompi minha sessão de programação em Delphi para atender à porta. Lucinha, que aparece toda sirigaita, quer me pedir dinheiro. Ela está sempre aqui em casa. Filha de uma senhora que morava na roça e resolveu vir para a 24
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cidade dar estudos aos filhos. De nada adiantou, pois as duas irmãs mais velhas abandonaram os estudos para trabalhar como domésticas em Salvador. O filho trabalha como lavador de carro e também não quer estudar. Lucinha é a única que estuda, mas perde um ano após o outro e diz que só vai à escola para perturbar as professoras. Eu também vou à sua casa de vez em quando e fico impressionado como ainda pode ter tanta miséria dentro de uma cidade contrastando até com os vizinhos. Uma casa baixa e sem móveis. Apenas uma mesinha com uma enorme televisão antiga e na cozinha imunda um fogão vermelho todo enferrujado que nem a tampa do forno tem mais. Quando se cozinha lá é em um fogão à lenha improvisado no pequeno e lamacento quintal, pois nunca têm bujão de gás. A comida que normalmente vejo aqui é farinha misturada a água em uma cuia e pronto. Acho que vivem pela fé, pois nas paredes de Pau-a-Pique existem quadros com Santa Luzia, Cosme e Damião, Jesus e Maria com seus corações expostos, uma foto de Frei Damião pregada diretamente na parede caiada de branco e um curioso quadro com Nossa Senhora Aparecida ou Jesus. Eu digo curioso porque é um quadro espesso e com as duas figuras dispostas em pregas como as dobras do fole de uma sanfona, de forma que dependendo do ângulo que olhamos, vemos uma figura ou outra. Na parede há também uma figura retirada de um calendário com dois 25
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gatinhos, um Papai Noel de plástico, uma foto desfocada e desbotada de uma das filhas que mora em Salvador. Branca, de sobrancelhas espessas e pestanas longas, Lucinha tem um rosto muito bonito. Os cabelos são crespos, mas ela os conserva compridos e nas raras vezes que estão limpos e arrumados ficam bonitos. Tão pouca idade e só fala asneiras. A linguagem é de baixíssimo calão e os assuntos são sempre violência e traição. Mesmo assim, ela é bem-vinda aqui em casa, pois a solidão das longas tardes me deixa entediado e sua visita também serve para forçar uma parada no mouse para prevenir a LER que já começa a dar seus sinais. Eu já sei que olhar um monte de palavras sem nexo na tela de um computador não vai lhe interessar, então me deito no sofá e aciono a TV pelo controle remoto. Ela senta naquele sofá de dois lugares que eu não me acostumo de chamar de namoradeira e que fica posicionado perpendicular ao que me encontro, de forma que eu fico bem de frente a ela e tenho que virar o rosto de lado para poder assistir a novela mexicana no SBT, que como sempre, tem um casal de protagonistas muito bonito e um monte de figurantes horrorosos. Lucinha está alegre e risonha comentando sobre o episódio de ontem do “Linha Direta” que mostrou um crime bárbaro e sobre a prostituta que foi arrastada 26
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pelas ruas amarrada em carro que o Programa do Ratinho mostrou com riqueza de detalhes os pedaços dela sobre uma maca. Alheio a todo aquele horror, me distraí, olhando para sua calcinha dourada que aparece mesmo com suas pernas grossas bem coladas uma a outra. Peço a ela que não se mova e vou buscar a minha máquina fotográfica Zênite, uma imitação russa de uma câmera profissional. Seu rosto agora não está mais risonho com seus olhos negros, vivos e arregalados que têm o contorno da pupila tão branco que fico imaginando que só nesta idade de ouro, doze aninhos, para ser tão perfeita. Faz uma carinha de choro quando percebe que eu a quero fotografar, mas a calcinha ainda está aparecendo, então capricho no foco e torço para que o flash dispare, pois ele fica folgado em seu encaixe e costuma falhar, o que já causou perda de diversos flagras interessantes. Animado com sua obediência por se manter na posição e pela sua permissão de se deixar fotografar assim, proponho tirar uma foto um pouco mais ousada e naturalmente ela se opõe. Lembro-lhe que amanhã será sábado e que os R$ 20,00 que pretendo lhe dar poderão comprar uma calça e uma blusa muito legais. Ela fica titubeante por um tempo e enfim pergunta como é que eu quero que ela fique. Explico que basta que tire o vestido. Ela lentamente começa a suspender o vestido enquanto a ânsia, o medo e o prazer se 27
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misturam em mim, fazendo com que minhas pernas tremam. A calcinha dourada brilha refletindo a lâmpada do banheiro, lugar onde com naturalidade ela escolheu para se despir. Suas pernas grossas a princípio muito bronzeadas aparecem agora alvas na parte superior da coxa onde a roupa protege quando exposta ao sol. A barriguinha aparece levemente protuberante no mesmo tom claro da pele que não vê o no alto das coxas. Mantenho agora a máquina em punho e vejo pela objetiva seus seios rosados com mamilos levemente mais escuros que a pele que o contorna, ainda sem o biquinho aflorante e de súbito o vestido despenca rápido como uma cortina que cai ao fim do espetáculo. Fico alvoroçado, nervoso e pressiono-a a concluir o combinado. Ela se diz arrependida e tenta sair do banheiro, mas impeço sua passagem, agora firme, em tom de ameaça, argumento que se eu já vi seus seios, ela não mais precisa esconder nada. Falo do dinheiro e imploro que ela volte e tire o vestido, pois eu tirarei apenas uma foto e estará então liberada. Seus olhos agora brilham talvez por medo do meu olhar irado e concorda em suspender o vestido e com ele cobrir o rosto. Volto a contestar, mas o clima passa a ser tenso e temo que ela chore ou me delate, então permito que ela faça como quiser. Ainda assim consigo disparar o obturador no instante em que aparecem os seus peitinhos expostos e seus olhos assustados. 28
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Ela compõe-se e sai apressada, então lhe seguro agora suavemente pelo braço e procurando acalmá-la para que não saia em estado de choque e acabe por denunciar-me, peço que aguarde um pouco, pois vou buscar o valor combinado. Entrego-lhe o dinheiro e procuro agora aumentar conversa para ganhar tempo, esperando que ela saia mais tranqüila. Combinamos que em casa ela dirá que o dinheiro é um empréstimo que irá pagar-me mais tarde com trabalho. Ofereço pipoca, maçã ou outra coisa qualquer, ela aceita um Yogurt e sai felizmente contente. Não. Ela não contará para ninguém. Sento-me na calçada de casa e fotografo tudo que aparece, uma menina que passa, uma galinha ao longe, uma foto de mim mesmo a fim de terminar logo com esse filme para ver o resultado. Forço a passagem pelo Shopping Iguatemi, pois estou ansioso para revelar o filme. Numa loja de fotografia que revela em 1 hora, uma Kodak Express da vida. Sou recebido por uma bela morena risonha. Deixo o rolo de filme, pego o pedaço do envelope onde marca a hora de retorno e ansioso perambulo pelos corredores alternando o olhar entre as vitrines e o relógio. A fim de que o tempo passe mais rápido eu compro uma revista qualquer e sento num banco ao lado de uma lixeira comprida que exala um terrível fedor de cigarro. Olho insistentemente para o relógio que cisma em arrastar-se lentamente até que finalmente 29
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chega a hora de ir buscar as esperadas fotos, São apenas duas fotos, mas para mim uma grande conquista. Atrapalho-me pelo labirinto do shopping até conseguir encontrar a loja que fica em uma esquina e tem as paredes de vidro. Ao aproximar-me ouço um “é esse aí”, mas não imagino que seja comigo. Inocente, procuro a mesma garota de cabelos negros amarrados a quem entreguei o filme e ela em vez de vir ao meu encontro, fica estática como que assustada. Um senhor barrigudo furioso aproxima-se gritando e a princípio imagino que esteja brigando com alguma das funcionárias, mas aos poucos percebo que ele esbraveja é comigo. Pasmo, permaneço parado com a boca aberta e a morena de rosto comprido passa o envelope para o gordão. Este olha-me com uns olhos faiscando de ira, grita chamando-me de bandido e sem olhar para a morena ordena que ela ligue para a polícia.
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Capítulo 3 Depois que toda parte legal e burocrática foi resolvida, estamos liberados. Podemos “botar o pé na estrada”. As viagens iniciam pela Bahia. Durante a viagem Manuel abriu um livro de Tolstoi e não deu uma palavra. Michelle é mais agradável. Conversa pelos cotovelos sobre o trabalho e sobre o mestrado que está fazendo. É uma pessoa simples, cortês, e sempre risonha. Prestativa e se compadece de todos os desafortunados que passam sob nossos olhos na beira da estrada. Manuel demonstra muita cultura, é muito educado, mostra-se incomodado com a situação de pobreza e abandono do povo da região, mas tem um ar de superioridade que o deixa se não antipático, mas pelo menos arrogante. Trata-me por Carlos Rizzieri, que eu acho nome demais, muito formal para quem vai passar tanto tempo junto. Preferia que me chamasse de Carlos ou até Carlinhos, como Michelle costuma chamar. Eles haviam devorado tudo quanto era relatório de ocorrências minerais e sem jamais terem vindo neste estado, conheciam quase tanto quanto eu que moro aqui na Bahia desde que nasci.
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A paisagem passa rápida pela janela da Toyota, mostrando o contraste entre natureza riquíssima e o povo paupérrimo. Nosso destino é a Chapada Diamantina. Livramento do Brumado, altitude 250 metros, Sol brilhante e garotas de shortinho andando de bicicleta nas ruas. Rio de Contas, vinte quilômetros depois, serra acima, altitude 1100 metros, as poucas garotas que ousam aparecer, trajam blusas pesadas, touca, cachecol, luvas, calça comprida. A burca ditada pelo frio de às vezes sete graus. Então vamos em busca das ocorrências de ouro, nas terras, onde outrora os Bandeirantes se deleitaram com diamantes. O carro nos deixa cedo no meio de uma serra que teremos de transpor e no final do dia há de nos apanhar em uma estrada do outro lado, após uma caminhada de quinze quilômetros. Vamos descendo a serra coletando amostras de sedimentos de corrente, ou uns cinco quilos de areia do fundo dos riachos que será analisada para constatar a presença de ouro. Como a areia depositada nos vales vem das encostas consideramos que caso existam indícios de ouro ou outro mineral qualquer, sua provável localização será na encosta ou nas colinas à montante do ponto onde a amostra foi coletada. Após uma caminhada de dez quilômetros, em um ermo onde não existem estradas, nos deparamos com uma cena surrealista. Ao longe ouvimos Maria 32
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Betânia cantando “Ando devagar, porque já tive pressa...” Quando nos aproximamos, vemos uma casa perdida no meio da mata, totalmente isolada da civilização, onde moram três belíssimas mulheres e um rapaz. Estes irmãos têm um alambique e uma vez por semana o rapaz desce a serra de burro para vender verduras e a cachaça e comprar mantimentos. Ele tem água encanada de uma nascente acima de sua casa, que gira uma turbina feita com um alternador de Fusca e permite o funcionamento de uma geladeira, uma radiola e pequenas lâmpadas que iluminam precariamente a casa e o alambique. Pouco além daquele lugar, em um ermo mais ermo ainda, passamos por uma fazenda, que segundo Dema, nosso guia, é de um delegado e os mal encarados trabalhadores são condenados por penas perpétuas que preferem trabalhar como escravos a mofar na cadeia. Finalmente transpomos a serra, após passar por paisagens impressionantes, canions e despenhadeiros, passamos por áreas com altitudes de 2100 metros nas proximidades do Pico das Almas que tem apenas 1953 metros de altitude e oficialmente é o ponto mais alto da Bahia. Mas a natureza nos reserva ainda novas agradáveis surpresas. Em um lugar onde todos os rios têm água, encontramos um leito totalmente seco e resolvemos usá-lo como caminho morro abaixo. Vez 33
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por outra ouvimos barulho de água corrente, mas continuamos a caminhar pelo tapete pedregoso e sinuoso. Em determinado ponto, o som das águas se torna forte e paramos para localizar a origem. Pasmos, percebemos que o rio todo tempo corria abaixo de nossos pés em um túnel subterrâneo e nos acompanha escondido desde o início da descida. Adiante uma escarpa nos obrigou a abandonar a estrada construída pela natureza para, em arrodeio, contornar o abismo e de uma encosta lateral, extasiados, observamos que do meio da parede como que surgido do nada, a água outrora escondida, brota em cachoeira com tal força que despenca em queda livre até juntar-se à água do poço cristalino, rodeado de uma vegetação belíssima, composta de árvores altas, frondosas, crótons, samambaias, flores e relva. Não resisto a tal vislumbre e esquecendo os compromissos do trabalho, a caminhada ainda longa e a noite que há de vir, tiro a roupa e mergulho na água fria e agradável, me sentindo parte da deslumbrante paisagem. Enquanto me deleito ao sabor da natureza, o nosso guia Dema, usando uma pá, pega um pouco de areia do rio e habilmente vai lavando o cascalho, despejando água com a mão até fazer aparecer em brilho fosco e sem atrativos visuais, uma pequena pepita de ouro com aproximadamente dois por três milímetros e me presenteia. 34
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Seguimos viagem por uma estrada estreita que contorna uma serra com sensação de dever cumprido, pois de agora em diante é só descida até o lugar marcado para pegar o carro, escolhido através do mapa do IBGE. É admirável a precisão deste mapa, pois constam nele todos os caminhos, até aqueles por onde só passa uma pessoa por vez, que é o caso deste, onde seguimos em fila indiana até que chegamos a um curioso portão estreito, que é preso por um lado na encosta do morro e solto ao abismo pelo outro lado. Ao transpor este portão, abre-se a visão para uma grande casa de fazenda no fundo do vale, próxima a um engenho de madeira, que mói a cana para alimentar o alambique anexo. Quando estamos admirando a bela paisagem do vale verde, cortado por um rio, ouvimos um zunido seguido de estampido e rapidamente percebemos que alguém insatisfeito com a nossa presença atira em nossa direção. Entreolhamo-nos e pensamos o que fazer agora. Esconder-nos e esperar significa ver a noite cair sobre nós com seu frio pavoroso. Voltar quer dizer andar outras nove horas até chegar a lugar nenhum, pois o motorista Juraci já contornou o morro e deve estar nos esperando lá embaixo. Todos estamos temerosos a ponto de entrar em pânico. Mas, não havendo outro caminho, resta apenas a opção de seguir em frente, então me invisto de coragem e invoco todos a me seguir. Vou à frente a passos lentos servindo de escudos aos companheiros 35
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que me seguem em fila e mais uma vez o zumbido passa bem próximo a nossos ouvidos, seguido de um estampido à distância. Caminho lentamente, uma expressão de pavor no rosto contraído, mas com o passo firme. Avançamos pelo caminho estreito e perigoso rumo ao alambique. Fico angustiado só em lembrar dessas fotos. Poderia dizer que elas estão até castas. A foto que aparece a calcinha é de tão longe que não se vê nada e a outra chega a ser até ingênua pela carinha de criança sapeca que Lucinha fez. Será que o velho barrigudo ia mesmo chamar a polícia? Eu nem acreditava que aquilo estava acontecendo comigo. Mas mesmo sem acreditar, quando ele jogou com toda estupidez o envelope sobre o balcão de vidro e gritou mandando eu sumir da frente dele, obedeci rapidinho e corri atordoado sem olhar para traz com o coração batendo na garganta e com um gosto de fel na língua. Este episódio obrigou-me a encontrar uma solução que possibilite que eu tire minhas fotos com privacidade. Pesquisando na Internet encontrei a câmara digital Mavica FX90, revolucionária, guarda as fotos em disquetes. Mais um caso para meu amigo Avião. Os ciganos aglomeram-se na praça olhando para as mulheres alheias e maquinando alguma forma de aplicar golpe nos gajões. Um deles é Avião. Eu o 36
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conheço desde que cheguei por aqui quando comprava seus relógios e aparelhos eletrônicos. Depois fiz um bom negócio com ele comprando cartuchos de impressora pela metade do preço contrabandeados do Paraguai. Muitos temem uma aproximação aos ciganos, principalmente quando se trata de negócios, mas é justamente pelo sangue de mercador turco que circula na veia deles é que estou sempre aqui, pois só assim aprendo com eles a ganhar dinheiro, levar vantagens nos negócios e até perder os escrúpulos a fim de multiplicar os meus bens. Passo para ele a referência da máquina e combinamos de entregar-lhe os US$ 1000,000 em moeda americana e 10% em real daqui a uma semana quando ele trouxer a encomenda. A hora está ideal para adquiri-la, pois a cotação do dólar está de R$ 0,97 e não acredito que isso dure por muito tempo. No caminho para casa onde vamos buscar o dinheiro ele comenta que D. Ester, sua esposa, tem um poder que lhe foi concedido por Santa Bárbara em Santo Amaro da Purificação que a capacita a realizar qualquer desejo. Os músicos, afinando os instrumentos, tocam os primeiros acordes, que reverberam como convocação à massa de fiéis seguidores da festa da carne, embalados pelo Axé Music e dão início ao ritual da dança.
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Imponente, movido a meia embreagem, o Trio Elétrico, iluminado pela força de um grupo-gerador de 60 KVA, desliza lento arrastando a multidão. Este riquíssimo palco ambulante, leva sobre si alguns músicos medíocres que esquentam os ânimos da moçada até a hora do astro principal, que é sempre na madrugada. Hoje a grande atração será uma bandazinha de forró cearense, mas esta com certeza eu não verei, pois a noite me é reservada para dormir ou programar em Delphi. Uma garota se destaca pela alegria exagerada e pela graciosidade em dançar as músicas baianas. Para cada música, uma coreografia diferente e lá está ela. Sabe todas e puxa a turma de adolescente a imitá-la, líder como se não fosse apenas uma criança. A menininha está lá dançando. Fico olhando sem disfarçar para os movimentos quase eróticos que exaltam as curvas de seu corpinho delicado. Longos cabelos pretos, rosto angelical, grandes olhos, seios volumosos, realçados pela camisa de malha estampada com o nome do bloco, esteticamente rasgada e amarrada, de forma que deixa à vista uma barriguinha totalmente livre de excessos e uma cintura fina, que se alarga nuns quadris arredondados descendo para as pernas grossas e torneadas, deixadas à mostra pela pequena saia de veludo cinza, com uma estampa de couro de jibóia. A pele branquinha cria uma ilusão de 38
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ser muito morena, talvez por conta do bronzeado impecável. Estou encantado. Toda a imponência do trio e exuberância da festa foi apagada pela imagem daquela menina que dança alegremente. Hipnotizado imagino que toda aquela multidão, barracas e vendedores, ornamentos e cores servem apenas de moldura para aquele gracioso balé e os milhares de kilowats de som são o fundo musical para embalar seus passos e gestos. Meu coração estremece em ressonância entre os tambores e a emoção. Sinto agora que toda a festa perdeu o significado, restando apenas a menina que dança. Fim da tarde, pausa no som do trio. Retornará agora só às 22:00 horas. Embalado pela tendência do povo que parece abandonar a rua na mesma direção, pego a XL 125 e enquanto aguardo a multidão dispersa, ouço uma voz chamar meu nome e estremeço. Olho e ela estende a mão pedindo carona. Sobe na moto com naturalidade e fala o bairro que pretende ficar. Não para de falar. É Betinho pra lá, é Betinho pra cá e eu entre satisfeito e curioso pergunto como ela sabe meu nome, pois estou vendo-a pela primeira vez. Confessou ser amante das motos, que já me vira tocando violão e passou a falar da festa, de festa e das festas...
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Enquanto isso faço mil planos para eternizar aquela viagem, parar num bar, numa pracinha, levá-la a minha casa e os devaneios se dissipam quando ela pede que eu pare, pois se o seu pai vê-la ali e ele é bravo que faz medo. Desce da moto, agradece com um gracioso sorriso e segue correndo rumo a sua casa. Penso em segui-la para saber seu endereço e até estar um pouco mais, perto dela. Mas imagino que isso seja um risco desnecessário e afasto-me com uma sensação de que falta alguma coisa, um vazio interior, mas com a firme certeza de que esta não é a última vez que nos encontramos. Nesta noite não quero pensar em outra coisa que não seja aquela imagem divina, que mescla em minha mente um anjinho sapeca com uma garotinha que dança sorridente. Nasce um novo dia e ainda é clara e insistente a imagem daquela menina. Este encontro abalou a minha estrutura. Ando disperso por um tempo, paro em frente à igreja de pedra e sento na escadaria do cruzeiro, onde ainda arde uma vela acesa. Enquanto estou absorto em meus pensamentos, sentindo a energia emanar daquela pequena cúpula impregnada de cera queimada e sentindo meu corpo vibrar, mentalizando a minha vontade é de um dia beijar aquela garota. Passa D. Ester com seu longo, farto, e colorido vestido de babados. Recorro a ela solicitando um feitiço para 40
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conseguir namorar a menina que nem sei o nome, mas só para ilustrar dei-lhe o nome de Patrícia. Fomos caminhando a um bairro da periferia onde eles possuem uma bela casa, mas que fica fechada e passamos sua verdadeira morada. Uma tenda coberta com lona amarela armada em um terreno próximo. Vou embalado pela curiosidade de conhecer um pouco a vida dos ciganos. Algumas ciganas me arrodeiam e deixam-me aturdido pedindo dinheiro, pedindo minha bota, meu anel e se mistura ao converseiro um dialeto diferente, daí percebo que elas estão procurando um jeito de me ludibriar. Meti a mão no bolso para pegar uma moeda para dar a uma delas e ao ver o dinheiro, avançaram num empurra-empurra que quando percebi já haviam levado todas as notas da carteira. Não tenho idéia de quanto tinha, mas não era muito. D. Ester pede que eu me sente em uma mala de couro grosseiro com a estrutura interna em madeira, dessas de colocar carga em jegue. Coloca uma carta de baralho sob cada um dos meus pés e passa a falar de minha vida. Fala de um casamento fracassado; que eu estou confuso, pois ando trilhando o caminho certo e querendo desviar para uma situação duvidosa. Eu me divirto com isso até que ela incisiva pergunta se realmente eu desejo Walkíria, pois o que lhe pedem ela realiza e muitos se arrependem depois. Ainda quer que eu acredite em seu poder. Atrapalhada como ela só. Dei-lhe o nome de Patrícia e ela me aparece agora com 41
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Walkíria. O seu Livro da Capa Preta deve estar com defeito. Afirmo que sim e ela pede-me que eu vá a minha casa e tire a meia e a camisa que estou usando e traga para ela. Estou achando que não foi uma boa idéia ter vindo aqui, mas para evitar confusão vou a minha casa para trocar de roupa. Não gosto dessa camisa mesmo, pois me foi dada pela ex-esposa de quem não gosto nem de lembrar... Avião me aparece agora dizendo que o feitiço já está pronto e que tenho que tomar um banho com o pozinho contido num saquinho branco e ainda me traz uma conta de R$ 70,00 que nunca tinham mencionado antes. Protesto, mas como ele se mantém firme, falo que não tenho o dinheiro, que ele passe outra hora. Dia seguinte. Avião amanhece em minha porta cobrando o tal dinheiro. Resolvo pagar para me ver livre, pois com cigano é prudente não vacilar. A garota já está me dando prejuízo. Qual será o seu nome? Será que tornarei a vê-la?
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Capítulo 4 Chegamos vivos ao alambique e fomos bem recebidos por um negro que meio sem graça nos ofereceu um pouco de cachaça recém-fabricada. Um dos auxiliares de nosso grupo pediu também mel de engenho e lhe foi dado em uma garrafa de vidro verde sem tampa. Nesse ínterim, dois jovens chegam empunhando rifles novinhos, se fazendo de corteses. Mesmo tomado pela indignação, mantive a calma, expliquei que estamos ali apenas de passagem, pois na estrada que se encontra logo após sua fazenda, nos esperava um carro. Os garotos se fazem de desentendidos e inocentes e seguimos viagem até encontrarmos com Juraci que dorme dentro do carro, sob a sombra de uma árvore, alheio a toda nossa aventura. Findos os merecidos dias de folga encontramonos em Salvador e retornaremos ao trabalho indo agora para Gentio do Ouro. Depois do curso de direção defensiva que tomei com o Professor Alberto no Senac, passei a ouvir o que o carro tem a me dizer. Segundo este instrutor, o carro sempre avisa quando está preste a dar algum problema mecânico.
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Foi baseado nesta teoria que olhei atento pelo retrovisor e vi o rastro enfumaçando na pista. Paro imediatamente o carro no acostamento e estudando a causa daquele flop, um barulho como se fosse um tiro de ar comprimido, percebo que o burrinho do cárter tinha caído, fazendo derramar todo o óleo lubrificante sobre o asfalto. Caminhamos para lá e para cá, antes da mancha, depois da mancha, para um lado e para outro, mas não achamos a tal tampinha com cara de parafuso. Impedidos de seguir viagem só nos resta encontrar um lugar onde tenha sinal de celular ou um telefone onde eu possa ligar para a locadora e pedir socorro. Depois de uma boa caminhada, encontro num escritório de uma pedreira um guarda muito prestativo que me cede o telefone. Retornando ao carro, falo que pedi socorro à locadora e que devemos aguardar a vinda deles de Salvador. Manuel e Michelle conversam entre si e resolvem que eu ficarei esperando socorro enquanto eles pegam um ônibus até Feira de Santana e me esperam em frente à Catedral. Só que ninguém previu a demora para a chegada dos dois mecânicos que ainda por cima, depois de constatar que o burrinho que trouxeram não servia, chegam à conclusão que ali não tínhamos recursos e que será preciso rebocar o carro de volta a Salvador, numa viagem perigosíssima, pois o carro com o motor desligado endurece o freio e cada 44
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vez que é preciso brecar, tenho que ligar o carro, freiar e desligar novamente para evitar bater o motor por falta de óleo lubrificante. Escureceu e ainda estamos em Salvador na busca de um parafuso compatível com a tampa perdida. Finalmente encontramos e podemos recolocar o óleo no motor e recomeçar a viagem. Chegando à Feira já são 21:00 horas e encontro os dois companheiros sentados em uma calçada, desolados, cansados e como era de se esperar, com um péssimo humor. Manuel com cara de aborrecido ainda quis insistir em seguir a viagem, mas decidimos por dormir no Feira Palace Hotel, o melhor da cidade, por exigência dele. Curioso é que ele sentou-se na cama com uma escova de dentes na boca à moda de cachimbo, recostou-se na cabeceira e assim amanheceu o dia, sentado, tamanho era o cansaço. Mas queria que eu tivesse disposição para varar a noite dirigindo enquanto eles cochilavam no desconforto do carro. Pela manhã seguimos viagem para a distante Gentio do Ouro, onde nos dirigimos para o Hotel São Rafael, única pensão da cidade, cujo preço da hospedagem é R$ 2,00 por cama. Em Feira foi R$ 175,00 por apartamento. Escolhi um quarto com duas camas e propus ao Sr. Rafael pagar também a outra cama para ficar com o quarto só pra mim, mas ele foi
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categórico em dizer que não era possível, pois caso aparecesse outro hóspede, ele não teria onde alojar. Depois da fila no banho e do jantar na cozinha escura, iluminada apenas por uma tênue lâmpada de 15 velas, fechamos as cadeirinhas dobráveis de madeira e as encostamos onde tínhamos pegado. Saímos pela porta lateral que dá acesso a um corredor que é ao mesmo tempo esgoto e nos leva para a rua. Não existem postes na rua, conseqüentemente não existem lâmpadas. Tudo escuro. Ah! Lá encima está claro. Subimos a ladeira calçada de seixos rolados até a parte clara da cidade. Uma pracinha sem calçamento, sem canteiros e sem bancos, onde garotas, contrastando com a aparente pobreza do lugar, com fisionomia fina, trajam roupas impecáveis. Crianças com longos e alvos vestidos rendados correm sobre o barro vermelho, mocinhas com calças e coletes Jeans, ao estilo Cowboy se misturam aos garotos de roupas humildes ao som da música sertaneja que retumba do fundo de um carro. Após a sagrada caminhada para fazer a digestão, Manuel, Michelle e eu descemos a ladeira, mergulhando na escuridão que descortina o céu estrelado. Manuel aponta para uma constelação qualquer e a chama de Cruzeiro do Sul. Eu discordei imediatamente, pois o Cruzeiro do Sul fica no sul, naturalmente, e próximo ao horizonte. Veio em meu 46
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auxílio um garoto que nos acompanhou desde a praça. Pequeno, feio, usando havaianas gastas que deixavam expostos os pés, sendo que o esquerdo tinha apenas quatro dedos, provavelmente um se foi, decepado por uma enxada na roça. Ele dispara a falar orgulhoso das constelações, do grande caçador e seus cães, apontando a posição de cada constelação, cita nomes de estrelas, como Sirius, Shaula, Canopus e dá uma verdadeira aula de astronomia. A título de confirmar a veracidade das afirmações de Apolinário, o nosso astrônomo, corro até o hotel e retorno portando um disco de papel com um mapa constelar, brinde da revista Superinteressante e sem muita surpresa, constato que tudo que ele falou é verdade. Os outros geólogos estão incrédulos. Choveu nesta madrugada. Durante o café da manhã, torradas e café com leite, o Sr. Rafael, uns 80 anos e sua esposa mais ou menos 35 anos, nos contaram que a enxurrada concentra pequenas pepitas de ouro nos sulcos da encosta da serra e que o pessoal da cidade costuma ir à caça-ao-ouro após as chuvas. Constatamos isso quando fomos coletar algumas amostras num garimpo próximo à cidade. Mulheres levam suas crianças de colo e acomodam sob alguma árvore e de quatro pés vão conferir os sedimentos de cada buraco no solo. Sei do meu compromisso com o trabalho, mas o fascínio que o ouro exerce está me desconcentrando. 47
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Vendo aquelas pessoas procurando pepitas nos sulcos das encostas, faz-me desviar a atenção do mapeamento que preciso fazer e olhar atentamente para baixo. Mesmo procurando esquecer as pepitas, uma energia emana do chão que faz meus passos ficarem pesados, o rosto volta-se involuntariamente para baixo e os olhos hipnotizados correm atentos por todos os buraquinhos do chão. Trava-se em minha mente uma luta entre a responsabilidade da nossa missão e a remota possibilidade de achar uma pepita de ouro precipitada pela enxurrada e bateada pela natureza. Quando dou por conta, estou instintivamente ajoelhado com o rosto bem colado ao chão cutucando os buraquinhos em busca de ouro. Depois do devaneio, volto à realidade e meio envergonhado fico imaginando como posso ser tão corrompível. Se não ficarmos vigilantes aos nossos atos, podemos abandonar o caminho do nosso real objetivo para dispensarmos energia em empreendimentos claramente ilusórios, afinal de contas tenho conhecimento de geologia o suficiente para saber que mesmo que eu passe todo o dia agachado cavoucando o chão será mínima a possibilidade de achar pepitas que somadas pesem um grama, cotadas hoje a R$ 30,00, muito menos que estou ganhando para executar outra tarefa. Manuel e Michelle já sumiram do alcance da minha vista. Vou alcançá-los no fundo de uma grande 48
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cava com seus trajes de sempre: lupa dependurada no pescoço, bússola em uma bolsinha presa à cintura, a ponta fina do martelo enfiada num barranco, a caderneta de capa dura em uma das mãos e na outra a lapiseira Pentel para anotar as direções e mergulhos das rochas, descrições cheias de interrogações que indicam as dúvidas e desenhos que esboçam as formas que as diferentes rochas se entrelaçam. Em minha caderneta há uma particularidade. Partindo do início anoto os dados das descrições geológicas e no final registro fatos curiosos sobre os diversos lugares por onde ando, de forma que a geologia preenche as páginas do início para o meio e as curiosidades preenchem as páginas do final para o meio. No final da tarde enquanto os colegas terminam de martelar nos afloramentos, saio com a Toyota procurando um lugar para fazer a curva do carro e retornar para a pensão. Tudo aqui é plano, desmatado e o chão coberto por uma vegetação baixa, mas não existe estrada. Chegamos por um caminho que mal cabe o carro. Vou seguindo por essa trilha estreita que se distancia sem permitir espaço para a manobra até que bem à frente surge um largo, enfio o carro por cima do matinho, engato uma ré e um sacolejo projetame para traz e uma reação atira meu peito violentamente sobre o volante. Atordoado, abro assustado a porta do carro e percebo que acabo de cair 49
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em um corte de garimpo. Analiso a enorme distância que me separa dos companheiros e concluo que é muito longe para que eu peça a eles socorro. Agora é que percebo que todo o percurso que já fiz e os arredores de onde estou são minados por profundos cortes de garimpo verticais com diâmetros de mais ou menos 80 cm e profundidade indefinível. O sol começa desaparecer por traz da mata ao longe e eu procuro espantar o pavor que me acomete, buscando uma solução possível naquele deserto distante. O desespero começa a se apossar de mim, então respiro fundo, procurando controlar o temor e manter a sobriedade. Sento-me em uma pedra para contemplar o cenário e raciocinar razoavelmente, em busca de uma possível solução. Afinal como vou assinar? Alberto, Beto, Betinho? Betinho é melhor, é assim que ela me chama. Saiu a meu gosto a impressão. A HP 692C cuspiu o texto enfeitado com um anjinho no começo da página e eu dobro com cuidado para não ficar nenhum vinco sobre as letras e de forma que caiba no bolso da camisa. Estou ansioso e temeroso, contudo vou à caça. Será que vou ter coragem de entregar-lhe este papel? A praça tem uns canteiros nas extremidades com árvores solitárias e nenhuma planta bonita de se ver. O calçamento largo desce a ladeira até chegar num bar
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que todos chamam de Abrigo, cheio de gente mal encarada, a começar pelo garçom. Contorno a praça, estaciono a moto em uma área cimentada próxima à estação de trem. Já estão montando o forródromo, espaço cercado por palhas de coqueiro onde durante as festas juninas acontecem as apresentações das bandas de forró. Livro dos elásticos a bolsa térmica acolchoada e tiro dela a máquina fotográfica. Esta é uma boa hora para estrear a Mavica FX90 que acabou de chegar. Uns poucos bancos de cimento espalhados e em um deles, curvo e comprido, serve de pouso para um grupo de jovens. Entre eles está a garota do Axé Music, em pé, empolgada, atraindo para si a atenção de toda a turma, falando alto, rindo e gesticulando. Fingindo estar fotografando a cidade, aproximome do grupo que logo desvia a atenção para mim. Tentando disfarçar, miro o Abrigo, tiro foto da estação e finalmente direciono a lente para a garota, que pára de falar, olha para meu lado congelando o movimento, como que fazendo pose e toda a turma olha pra mim. Fico desconcertado, abaixo a máquina fotográfica e caminho cabisbaixo me afastando do banco em direção à moto. Os joelhos tremem que chegam a bater um no outro e a cada passo a angústia aumenta e um rubor se apossa de minha face. O papel pesa em meu bolso. Mas que papel que nada. Por hoje já chega de papel ridículo... 51
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Domingo à tarde. Encontro a desculpa mais esfarrapada para me aproximar da Concha Acústica. Encosto cheio de dedos na loirinha que vi cantando Ave Maria em um casamento na Igreja e falo a ela que achei sua voz maravilhosa, mas que faltava uma estrofe na música e se ela assim desejasse, eu poderia lhe dar depois a letra completa. Na verdade, achei a voz estridente e ela cantou como que ouvia e o resultado foi um atentado à bela poesia em latim de Hendel. Terminou o assunto de música e eu permaneço parado, rodando a chave da moto entre os dedos, com um sorriso sem graça, mas feliz por estar perto da garota do Axé Music. Ela novamente é o centro das atenções. Agora pelas piadas sem graça que conta, mas que arrancam altas gargalhadas da turma pelo alto teor de imoralidade e baixaria nas suas conclusões. Eu até ajudo nas risadas, mas estou me sentindo um enorme jarro sobre uma mesa vazia, um peixe fora d’água. Perdi o senso de ridículo como este de estar tão deslocado do meu ambiente natural. A chave da moto roda incessantemente entre os dedos e de uma mão para outra, olho o ambiente por cima como se eu próprio não quisesse enxerga e sinto-me diminuído cada vez mais. No entanto insisto em permanecer aqui esperando que aconteça alguma coisa que nem eu mesmo sei o que é. Até que alguém a chama pelo nome, então me dou por satisfeito, pois é o máximo 52
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que posso conseguir hoje. Afasto-me do grupo sem me despedir e vou repetindo aquele nome para não esquecer. Vou anotar em algum lugar. Um nome para personalizar meus sonhos: Walkíria. De súbito, assombro-me lembrando da cigana. Ela já havia mencionado esse nome. Como pode? Será que ela sabia da minha admiração por esta menina? Avião que só anda por conta da vida dos outros deve ter percebido e passado essa informação a ela. Mas em minha mente martelam as palavras de D. Ester que já não lembro exatamente quais termos ela usou, mas correspondem às palavras da Fada Morgana: “Cuidado com o que pedes, pois pode ser concedido”. O papel permanece em meu bolso. Ainda não foi dessa vez que tive oportunidade de entregar-lhe. Será que devo? Agora que tenho seu nome, tenho a chave para tudo que preciso. É hora da Lucinha recompensar o monte de dinheiro que me pede sem dar nada em troca. Ela me dará o endereço e algumas informações mais. E ela sabe tudo que preciso. Walkíria é filha da diretora do colégio que ela, Lucinha, faz de conta que estuda. Seu pai tem uma pequena farmácia no centro da cidade, quase em frente à boutique de Isabela, onde agora eu espero ansioso sentado em frente à porta de 53
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vidro, o sinal de Lucinha indicando que eu posso ir ao encontro delas para um forjado encontro casual. Passo a arquitetar um assunto para conversar com ela. Preciso de um motivo justo, palpável, concreto e infalível. O que? Já sei. Um emprego para ela. Mas qual, se nada tenho a oferecer? Gostaria de ser um Edvaldo, comerciante rico, bem-sucedido, poderoso e respeitado na cidade. Ele tem a cidade a seus pés e caso eu tivesse ao menos um pouco do seu dinheiro, tenho certeza que poderia manipular a situação e conseguir trazê-la para perto de mim. Pelos seus traços, pelos seus trajes, pelos seus tênis e aparência, ela não trabalharia como faxineira, ou coisa do gênero, que é só o que posso oferecer a princípio. Mas ela não se negaria a trabalhar com computador, ainda mais com a oportunidade de aprender informática. Eu a chamo pelo nome, como se fossemos velhos conhecidos, me apresento, falo do meu trabalho e sem precisar mentiras, lhe faço a proposta de emprego. Ela trabalharia fazendo montagem em umas fotografias que eu tiro para estampar em camisas. Antes que viessem as retóricas, esclareço que tudo que ela precisa aprender eu ensinarei, o trabalho será feito em sua própria casa, ela só irá trabalhar à tarde, estando livre pela manhã para ir à escola. Vamos até a farmácia do seu pai ciumento e explico tudo 54
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novamente, agora frisando que ela estará totalmente segura dentro de sua própria casa. Apelo para a minha necessidade urgente e indispensável, e ela, segundo informações seguras, seria a pessoa ideal para executar tal importante função. Sua casa fica em uma rua tranqüila na avenida que beira a linha de trem. Uma casa antiga, mas bem conservada. Um murinho na frente com um único portão de ferro, um jardim mal tratado, mas no interior da casa tudo é bem cuidado, móveis novos e de bom gosto, muitos porta-retratos em diferentes estilos e formatos sobre a mesinha de centro e sobre a estante onde fica também a televisão, o aparelho de som e uns poucos livros. Diante de tamanha boa vontade, o pai concorda e imediatamente trago o micro e mais uma parafernália de coisas. Fios, chaves, tomadas, barra de cobre e outras bugigangas mais. Troco uma das tomadas por uma tomada de três pólos no que poderíamos chamar de Sala de Jantar, passo o fio terra pela janela e coloco a barra de aterramento no quintal, enquanto vou explicando o porquê de cada coisa ao seu atento e desconfiado pai. Tudo pronto para passar-lhe as primeiras lições. Como ligar o micro, como usar o Mouse, como entrar no joguinho de cartas, como desligar o micro. Deixo instalado um curso de datilografia e passo como primeira tarefa de seu novo emprego, fazer este curso. 55
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O papel dobrado permanece em meu bolso. Agora já amarrotado de tanto abrir e ler, passar de um bolso para outro e tirar para lhe entregar e achar que ainda não está na hora. E foi prudente não entregar, pois poderia assustá-la e acabar de vez com tudo que estou fantasiando. Abro novamente o papel para repassar o que está escrito.
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Capítulo 5 Depois de muitas tentativas, descobri que pra frente o carro não ia mesmo. Então engato uma ré e em um pulo o carro fica sobre um buraco de um metro de diâmetro por uns quarenta metros de profundidade. Cuidadosamente manobro o carro em várias idas e voltas e decidas para olhar, deixando-o de forma que o buraco fique entre as rodas traseiras. Assim vou saindo vagarosamente com o coração na mão, temendo que o corte desmorone e eu desça com carro e tudo para o fundo do poço. Faço todo o trajeto de volta tenso, pois agora sei que pra todo lado tem buraco e a noite está chegando. Michelle comentou que ouviu o barulho das acelerações ao longe. Contei-lhes o acontecido, minimizando a gravidade e pegamos o caminho de casa. Amanhã teremos novamente mudança de base. Adeus Gentio do Ouro. Viajamos para o norte passando por XiqueXique, Remanso e Juazeiro. Sete horas já estávamos na estrada, com destino ao Núcleo Pilar. Deixamos a estrada de Senhor do Bonfim e pegamos a Rodovia Francisco Pignatari. O Núcleo Pilar é uma cidade, estranha, triste, deserta e desabitada, um lugar artificial, feito para abrigar os moradores da Mina Caraíba Metais. O 57
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asfalto acaba aqui. Seguimos então pela poeira passando por Caldeirão da Serra, um pequeno povoado e chegamos a Uauá, terra do bode. Aqui já tem um ar mais agradável, bares, gente, alegria. Almoçamos, tiramos algumas fotos e seguimos viagem por uma estrada deserta, aonde vimos apenas três homens que levavam umas varas nas costas com uma sacola dependurada, provavelmente com comida. Passamos por Carataca e Riacho das Pedras. Aqui o cenário muda completamente. A caatinga passa a ser seca e até as poucas folhas das Favelas e Pau-de-Rato são amareladas. Finalmente Bendengó. Que surpresa. Um asfalto novinho em folha. Um surrealismo contrastando com o deserto empoeirado em que andamos há pouco. Eu estava ansioso para chegar aqui e ver onde tinha caído o maior meteorito do Brasil. Encontrei em algumas casas da região pedaços da pedra que afirmavam ser do meteorito, então procurei alguém que soubesse onde ele caiu. Um rapaz conversador afirma saber o lugar, pois já passou por lá caçando com seu avô que afirmava ter deitado sobre ela. Curioso e crente na conversa de caçador, deixei os geólogos no hotelzinho onde eles iriam tomar banho e sair à procura de um lugar para comer um peixe frito ou um bode assado e peguei a estrada. Em passagem pelo Bar do Conselheiro comprei coca e umas broas.
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Novamente estrada de chão, só que agora bem mais estreita e esburacada. Depois de viajar um bom bocado e nos embrenharmos na caatinga esgarranchada sem folhas meu guia explica que já estamos em outro município e que neste riacho seco que vemos é o lugar de onde a pedra foi tirada. Descemos a encosta sob o sol escaldante e ele aponta o lugar onde nenhum vestígio aponta a passagem do meteorito. Fico meio descrente desta localização, pois não há nenhuma cratera, mas como muitos anos se passaram, a erosão pode tê-lo entupido. Gravo as coordenadas do lugar com o GPS e retornamos à pequena cidade. Consultado o mapa vejo que estávamos no riacho Bendengó, um afluente do rio Vaza Barris, provavelmente o lugar onde a pedra caiu quando estava sendo transportada a Portugal e ficou por quase 103 anos, quando D. Pedro II ordenou levá-la ao Rio de Janeiro. Depois de uma merecida noite de descanso, agora viajamos confortavelmente até Canudos Velha. Depois do pórtico do Parque Estadual de Canudos, descortina uma paisagem triste e desoladora, desprovida dos atrativos turísticos e vazia. Passo pelo 60 Alto do Mário, Serra do Cambaio, Morro da Favela e pelo solo nu amarelado, as encostas despencam para o leito rachado do Vaza Barris, onde
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uma garça solitária, com os pés em uma poça de lama, mira o infinito. O calor arde sobre nossas cabeças e o vento uiva em nossos ouvidos. O Sol despenca vermelho como em nenhum outro lugar eu vi igual; o mesmo que a mais de cem anos sugou toda a umidade do rio de sangue que forrava esse vale quando rachaduras iguais ás que vejo agora, deixavam aparecer parte dos corpos de soldados e jagunços abatidos e ainda hoje encontramos com facilidade, balas e pentes dos fuzis usados na chacina fratricida. Aqui tentou viver Antônio Vicente Mendes Maciel e seus miseráveis e fieis seguidores. Quero ficar o máximo de tempo possível neste lugar histórico. Usando da desculpa de que não tem hotéis na redondeza, sugiro armar uma barraca ao lado da Igreja Nova de Canudos, que agora emergiu do Açude de Cocorobó, graças a mais uma seca arrasadora. Neste lugar morreram vinte e cinco mil pessoas, massacradas pelo exército de Prudente de Morais e sua recém instalada República. Depois de percorrer o Parque Nacional de Canudos, com suas placas informativas, mapas e monumentos, encontro com um garoto chamado Leandro, vendendo balas dos fuzis Comblair, única fonte de renda dos pobres herdeiros do Conselheiro. Mostra na palma da mão calejada duas balas enferrujadas e um cartucho sujo e amassado e pede 50 centavos por eles. Pergunto onde os encontrou 60
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e ele aponta para sua mãe que ao longe revolve o chão ressecado em busca de novas ogivas. Caminhamos pelos lugares onde aconteceu cada episódio, como o Vale da Degola, onde os soldados gaúchos decapitavam os prisioneiros, a Casa Velha onde morreu o Corta-Cabeças, o Alto da Favela, onde foi posicionada a Matadeira que devassou a cidade. O garoto permanece conosco, mas se espanta ao perceber que pretendemos acampar naquele lugar mal assombrado. Começa a escurecer e ele se afasta rapidamente. Estendemos a barraca no chão, a lona da cobertura e logo ela toma forma, quando nos últimos grampos, um instantâneo pé de vento arranca a barraca do chão e a muito esforço, conseguimos recuperá-la. Agora está totalmente escuro e é preciso acender os faróis do carro, para novamente a barraca ser montada. Aqui embaixo a brisa suave é quase incapaz de mover as escassas folhas dos Incós que silenciosos nos fazem companhia. Desta vez o vento chegou mais cedo. Antes de fixadas as cordas no chão, a lona já flamejava no espaço, segurada por duas pessoas que com esforço espera o tempo abrandar. Novamente a tentativa de armar a barraca, seguida de brutais rajadas de vento, até que duas horas depois, nos damos por vencidos e levantamos o acampamento que nunca pode ser instalado. Vamos à procura de uma pensão, água
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para um banho e comida. Mesmo à noite, o calor é intenso. Retornamos a Bendengó e encontramos uma pousada. Esperamos na fila do banheiro por toda a família da dona da pensão até chegar a nossa vez de bater a poeira, comer uns peixinhos assados e jogar o corpo sobre um colchão de palha, embaixo de um mosquiteiro todo furado e empoeirado. Manuel adverte que ninguém reclame da sorte, pois nossa próxima parada há de ser muito mais sofrida. Um lugar onde a poeira e o calor do Raso da Catarina parecerá um belo programa de férias. Fico lembrando o medo que se me acometeu logo depois que vi Walkíria pela primeira vez. Temia que mesmo com o esforço de aproximar-me dela, a pesada realidade nos distanciava como numa viagem forçada e sem volta. Imaginava o carro afastar-se e eu me contorcia para ver pelo pára-brisa traseiro a imagem doce e meiga que se dissipava dentro da nuvem de poeira. Triste, sentindo a dura realidade de ter que me afastar do meu maior sonho. Todas as ruas convergindo à praça, as pessoas sorridentes passeando e eu pesaroso, a cada segundo ficando mais distante. A prudência levando-me para longe e já passo a ter dúvidas se essa luta seria inglória. Seria eu um Dom Quixote lutando contra um inimigo inexistente, uma causa já perdida? 62
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Imaginei que enquanto me distanciava da praça, o coração apertava de saudade daquela que ainda nem sabia o nome, mas não esquecia seus olhos, que fitei fundo durante o breve tempo que conversamos. Sorrio para o anjinho e repasso mais uma vez os versos que fiz para Walkíria.
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Sobe a poeira na estrada Bruma que afoga o desejo Olhos, nos olhos tristeza Não é mais sonho o que vejo Lá onde as ruas convergem Vidas convergem na praça Olhos, os olhos acesos Meigo, o sorriso disfarça É energia o encanto É de carinho o olhar Olhos, os olhos tão claros Entregam-se ao cintilar Lutando contra moinhos Levo o pesar, sinto a dor Olhos, os olhos me seguem Seguem-me por onde eu for Betinho
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Mas para minha alegria as coisas estão indo bem. Agora estou empenhado em tirar fotografias e passo para Walkíria fazer as montagens. Nunca procurei tantas encomendas como agora. Finalmente posso sentir o cheiro do seu perfume que encharca a roupa a ponto de ficar visível uma enorme mancha. Posso olhar também seus olhos profundos e pegar em sua mão delicada, macia e bem cuidada, com seu esmalte sempre negro. Um dia pleno. Hoje ao contrário dos outros dias que num piscar de olhos evaporam, o sol brilha forte e o tempo caminha a curtos passos, impregnando o ar da felicidade de acreditar na vida. Peço ao pai de Walkíria para levá-la como companhia para Araci, onde vou pegar Márcia, que estava passando parte das férias com sua mãe. Seu pai concorda, frisando que conhece as pessoas de bem e que confia em deixar sua querida filha viajar comigo, nem por isso, ele deixou de fazer recomendações e num pedido especial, manda que eu não a deixe sozinha durante este passeio. Mas ficar colado nela é justamente tudo que eu quero. Recordo-me de uma larga rua que dividia aquela praça em duas, sendo o lado sul, bem arborizado, com belos jardins suspensos, o point das menininhas de classe média e do outro lado, canteiros grosseiros sem 65
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plantas, onde circulavam as meninas do “Bequinho do Pinga-Pus”, e as meninas mais assanhadas, que vez por outra se estranhavam, sempre por causa de seus namorados, se entrançavam em brigas de puxar pelos cabelos e rolar pelo chão, servindo de atração e diversão a toda a turma daquele lado da praça. Deixei Walkíria me esperando nesta praça e sigo sozinho ao encontro de minha filha. Temia algum confronto ou desentendimento desagradável com minha ex-mulher diante dela. Fico deveras surpreso ao ser tão cordialmente tratado por minha ex-esposa, coisa que nem no tempo de namoro eu vi acontecer, muito menos nos tempos de guerra pela divisão dos bens. Nem parecia aquela que me levou à delegacia e ao fórum inúmeras vezes. Lembrando desses angustiantes momentos meu sangue ferve nas veias e aflora um ódio mortal em mim. Não há perdão para tanto desgosto, sofrimento e humilhação que ela me fez passar. Começo a ficar descontrolado e preciso me afastar daqui imediatamente antes que avance pra cima dessa mulherzinha e esgane-a para me vingar de tudo que ela me fez passar. Nem abraço a minha filha que vi há mais de dois meses, apenas pego as malas, coloco no fundo do carro e saiu carregado de rancor. Enquanto me distancio dela procuro me acalmar para resgatar Minha Pequena da solidão. Ela está lá, sentada, olhando o nada, trajando uma blusa de cor 66
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cenoura, calça bem justa bege, uma bota cujo cano vai próximo ao joelho, em sua imponência elegante e linda. Apresento-lhe Márcia e elas demonstram logo uma afinidade, afinal têm a mesma idade. Dali fomos a uma outra praça onde tem uma half pipe de skate e há alguns anos eu fazia algumas manobras com uma turma de adolescentes. As duas me aguardam sentadas em um dos bancos compridos de cimento que servem de arquibancada para a pista. Passo a me cobrir com os equipamentos; tênis, salvacadarços, joelheira, cotoveleira, wrist-guard e capacete. Chuto as pedrinhas e galhos do flat, corro com o skate na mão em direção à rampa, lanço-o sobre o cimento vertical, em um rápido movimento encolhome, pulo sobre o shape e pronto. A pista agora parece pequena. Rapidamente estou do outro lado, me contorço e volto pegando mais velocidade ainda. As rodinhas já passam do coping e eu me sinto realizado em demonstrar minhas habilidades a essa pequena platéia tão especial. Lanço o skate acima de minha cabeça, segurando-o com a mão, e no impulso, pulo para o alto da pista. Ajeito a tail sobre o coping, olho para as minhas meninas com cara de assustadas, respiro fundo e mergulho em direção ao chão. O carrinho desce a toda velocidade, horizontaliza sua trajetória e sobe a rampa do lado oposto. Dobro o joelho da base para frente impulsionando o skate na subida, sinto a pancada da rodinha sobre o cano 67
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galvanizado, me avisando que passei da pista. Agora solto no ar, seguro o shape com a mão direita, retraio as pernas, giro o corpo e aterrizo na parede vertical, concluindo um aéreo perfeito. Do outro lado, pulo sobre a plataforma, seguro o carrinho e desço a escada realizado. O calor agora é intenso. Passaram-se apenas dois minutos e eu estou encharcado de suor. Tiro apenas o capacete e entro no carro com todo o equipamento e pego a estrada de volta para casa. De alma lavada mergulho em meus pensamentos, com a certeza de que consegui impressioná-la. Domingo de sol. Sobre o chão do quintal, forrado de brita fina, jogo alguns baldes de areia, aplaino o piso, forro com uma lona, armo sobre ela a pequena piscina plástica de mil litros e deixo uma mangueira enchendo-a de água. Na garagem, monto o cenário para uma apresentação de voz e violão. A enorme caixa de som amplificada, o rack com o violão elétrico, o suporte para partituras, onde coloco as folhas soltas com impressões das músicas cifradas que ensaiei especialmente ao seu gosto. Na cozinha Isabela tempera a carne e prepara a típica comida que acompanha churrasco: Feijão tropeiro, arroz e maionese.
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Aguardo ansioso a chegada da minha especialíssima convidada. Enquanto isso, Márcia está deitada no sofá da sala, só levantando para trocar um cd de Sandy e Júnior por outro cd de Sandy e Júnior. Lá pelas onze horas, quando eu já quase desesperava pelo medo de alguma coisa acontecer e ela desistir de vir, um barulho de carro se faz ouvir lá fora. Vou correndo abrir a porta e da D20 branca pintada recentemente, adaptada com carroceria de madeira, desce aquela jóia rara. Cabelos ainda molhados, macacão azul, tênis branco com uma meia de cano curto bem felpuda. Ela marca com seu pai para retornar no final da tarde, para pegá-la. Toco violão, dando preferências às músicas baianas em ritmos dançantes, floreio as canções apaixonadas, olhando para ela, como que lhe dedicando e tudo parece encantá-la. O bronzeado na pequena piscina, o churrasco, a Coca-cola, vem o cansaço e dentro de casa cada um se instala em seu lugar. Isabela lava os pratos e arruma o quintal, Márcia volta para o sofá, Walkíria deita-se na rede e eu para permanecer próximo e admirando sua beleza, me instalo no chão sobre um grosso cobertor cenoura, abraçado ao meu travesseiro de penas de ganso. Algum tempo depois, enquanto as duas ainda dormem, levanto sorrateiro e no quarto dedicado a estudos, coloco um incenso sobre a mesinha de 69
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madeira coberta com um pano branco, acendo duas velas, troco a água da tigela que fica sempre entre os castiçais dourados, ao fundo da salinha, coloco três cadeiras e deixo o ambiente iluminado apenas com as duas chamas acesas. Da brasa do incenso sobe uma fumaça ondulante que impregna o lugar com um cheiro agradável e calmante. Vou até a sala, desligo o som JVC e acordando suavemente as duas meninas de idades iguais e Isabela, levo-as até as suas cadeiras e passo a dirigir com voz suave uma meditação. O silêncio da tarde colabora com meu intento. Conduzindo-as no exercício, peço que se sentem com os pés apoiados no chão, mãos sobre os joelhos, olhos fechados, pensem em cada parte do corpo, sentindo o sangue percorrê-lo desde os pés até a cabeça. Agora elas se transportam a um lugar paradisíaco, segundo suas próprias imaginações. Em seguida, imaginem que de seu pés começam a brotar raízes que penetram na terra profundamente. Estas raízes sugam o néctar quente da terra que sobe até o seu corpo e faz crescer agora, galhas que nascem em suas cabeças, ombros e braços e se expandem até os céus. As galhas absorvem a umidade fria das nuvens e a trazem ao corpo, equilibrando a sua temperatura. Encerrando o experimento, faço-as retornar aos pouco até suas cadeiras, tomar consciência de seus corpos físicos e voltar a movimentar os pés e as mãos. Elas 70
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relutam em abrir os olhos e estão extasiadas com a experiência. Antes que seu pai chegasse para pegá-la Walkíria me confessou que nunca deu um beijo e que eu serei o primeiro a saber quando ceder os seus lábios aos ósculos do seu primeiro namorado. Senti uma ponta de ciúme e um forte desejo de que eu seja esse felizardo. Nos finais de semana Isabela fica absorta em seus trabalhos domésticos deixando-me livre para passear com Walkíria. Chego em uma sorveteria e peço a Márcia para ligar para sua casa. Em instantes ela está ao meu lado com os cabelos ainda pingando, provavelmente por não ter dado tempo de enxugar, tamanha a ânsia de estar junto a mim. O perfume incendeia o ambiente e ela explica que só gosta de fragrâncias masculinas. Forçar a amizade entre Walkíria e Márcia é uma boa idéia por dois aspectos: Primeiro vão aumentar os motivos para nos encontrarmos e depois como Márcia é uma menina religiosa, estudiosa, inocente, totalmente alheia a namorados e avessa a festas, irá influenciar nos hábitos de Walkíria, fazendo-a se afastar da sua galerinha barra pesada e se aproximar de mim.
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Este é o mês da grande festa da cidade e Walkíria desolada fala da morte de seu avô e que não tomará parte dela este ano. Da forma que ela fala deixa transparecer que o avô não fez falta, mas a festa sim. Para ela é um enorme sacrifício não participar dos forrós nas comemorações de Santo Antônio, São João, São Pedro e ainda do aniversário da cidade que é logo no mês seguinte. Melhor para mim, pois teremos mais tempo juntos. Enquanto tomamos um sorvete ela conta animada um repertório novo de piadas indecentes e eu mais constrangido que me divertindo dou altas risadas só para agradar-lhe. Ela explica que aprendeu as novas piadas com seu professor Danilo que sempre senta ao seu lado no ônibus a caminho da escola. Sem conseguir disfarçar o ciúme falo da ameaça que é este sujeito que lhe ensina esse tipo de piadas e ainda tem tamanha oportunidade de lhe seduzir. Faço-a prometer que não sentará mais ao lado desse professor inescrupuloso e uso de todos os adjetivos pejorativos possíveis para denegrir a imagem dele perante Walkíria. Peço a Lucinha para me falar sobre Danilo e ela fala que é fácil conseguir informações, mas precisa de uma calça, uma blusa e umas sandálias para ir até a rua fazer essa investigação. Depois de uma negociação ela aceita deixar a blusa para outra ocasião. No final da tarde Lucinha volta com uma sacola amassada e dela tira uma calça Jeans com bordados de 72
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flores sobre a perna e umas sandálias brancas. Fala também que não sabe como, mas perdeu R$ 10,00 que sua mãe tinha lhe dado para pagar a conta de um pedido desses que se faz pelo correio. Está tudo bem. Eu banco mais este prejuízo. Mas finalmente ela lembra das informações que preciso e diz que são quentíssimas.
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Capítulo 6 Estamos em São João do Piauí, calor de quarenta graus, meados de outubro, a água começando a ficar escassa e temos que atravessar estradas terríveis pela frente. O boi pé-duro, raquítico, baixinho e de enormes pontas busca comida no chão tórrido e o porco também raquítico, pequeno e com um focinho que mais parece uma tromba que ele usa para arrancar as raízes das árvores, cavando como se fosse um arado. As cercas sobre os riachos são engenhosas paredes móveis, feitas de forquilhas e varas trançadas, para que possam dar passagem às águas das chuvas torrenciais que caem em dezembro, levando consigo estradas, plantações, casas e deixando lugares e pessoas ilhados. À beira das estradas, vemos garotos que ficam por todo o dia sentados em um mourão, rodando uma corda e estalando sua ponta como um chicote para espantar os passarinhos que tentam comer o arroz plantado no leito do rio seco, na encosta e no alto do morro, de antemão sabendo que só em um dos três lugares hão de colher a depender da chuva se vem pouca, normal ou abundante. Precisamos subir a Chapada do São Francisco para um reconhecimento geológico. A Toyota é 74
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deixada no pé da serra e depois de uma longa caminhada relativamente plana, chegamos ao pé da chapada, uma encosta íngreme, com um caminho estreito entre as pedras, onde pequenos macacos, incomodados com a invasão, atiram pedras e cocos em nossa direção. Vamos passando por grutas de calcário com formas impressionantes, algumas servem de abrigo para onças, outras mais altas para araras e existem ainda aquelas que abrigam as temidas abelhas africanas, que se arrancham na terra e fornecem a quem se aventura, até 60 litros de mel. Encontro um rapaz derrubando um angico com um tronco de vinte centímetros de diâmetro, apenas para colher umas bolinhas de resina de três centímetros que irão se juntar a um monte de outras bolinhas que serão vendidas a R$ 1,00 por quilo. Depois da cansativa subida, surpresas. Uma enorme área plana que daria para fazer um campo de futebol com dez quilômetros de largura por trinta quilômetros de comprimento. Toda a população dos arredores subiu a chapada em um mutirão para plantar mandioca e agora novamente sobe para arrancá-la e transformá-la em farinha, num impressionante trabalho coletivo. Sendo o alto da chapada um terreno ideal para o plantio da mandioca, mas de bastante difícil acesso, a comunidade reúne-se aqui para plantar e depois retorna para colher e transformar a mandioca em farinha. No final os sacos são transportados em burros serra abaixo 75
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e distribuídos entre as famílias que participaram do mutirão, pelo visto todas da região, a concluir pelas casas desertas que ficaram lá embaixo e que os próprios donos dizem não ter preocupação com elas por não ter nada de valor que alguém possa almejar roubar. Aqui vira uma verdadeira festa, nascem os namoros e os casamentos, como foi tão bem retratado por Luiz Gonzaga na música da peneira. Meio dia, sol escaldante e estamos apenas no início da jornada. Sento-me num comprido banco de madeira, na verdade uma árvore dividida ao meio em seu comprimento com uns pés feitos de troncos mais finos encaixados nuns furos na parte de baixo da tora. Chupo as duas últimas laranjas que havia trazido em meu bornal. Apesar de encantado com toda a paisagem tão diferente de lá de baixo, precisamos chegar ao ponto onde existe uma anomalia aeromagnética que fica a três quilômetros daqui. Para nossa tristeza chegou ao fim o campo limpo e agora precisamos varar a mata nunca dantes penetrada. O relógio se apressa e para ganhar tempo os auxiliares abrem uma fresta na mata com altura de pouco mais de um metro que nos possibilita andar apenas agachados. Chegamos à beira da chapada do lado oposto ao que subimos. Aparecem os afloramentos, mas damos apenas algumas marteladas e nos apressamos em retornar, pois o dia está findando. Estamos caminhando de volta pela 76
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picada improvisada andando agachados e curvados e finalmente rompemos a parte de mata diviso no infinito toda a extensão que ainda temos pela frente. A marcha agora é rápida para que à noite não nos alcance tão longe do carro e de casa. Só que meus pés e pernas doem, a coluna também incomoda, mas o joelho lateja a ponto de impedir-me de andar de forma que a equipe anda e pára para me esperar. Arrasto-me penosamente já sucumbindo à imposição dos meus limites, a tempo ultrapassados. Nenhum dos companheiros tem condições de me ajudar. Ninguém agüentaria me carregar nas costas já que minhas pernas já não me obedecem. Mas tenho certeza também que não me abandonarão e tenho esperança que algo há de acontecer para nos resgatar desta deplorável situação. O sol despenca no horizonte e a escuridão para mim chega mais cedo, pois a vista começa a turvar-se e posso ainda ver a imagem difusa da fila indiana parada bem à frente voltada para traz esperando que eu os alcance, mas em vez disso tudo escurece e meu corpo tomba ao chão enquanto a noite domina sobre a terra. Já está tudo escuro quando Lucinha finalmente desembucha. Conta-me detalhes da vida de Danilo. Foi casado, tem uma filhinha de quatro anos, mas espancava sempre a sua esposa até que descobriu que era gay e largou a família. Hoje mora só em quartinho 77
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alugado próximo à casa de Walkíria. Os vizinhos contam que ele tem umas crises noturnas que assombra a todos. Grita desesperado dizendo que está vendo o demônio, batuca nos quatro cantos do quartinho até que sossega. Deve ser efeito das drogas pesadas que ele usa. Ele é bem conceituado no colégio, dinâmico, inteligente, alegre e querido por alunos e professores. Sendo ele homossexual eu não preciso me preocupar, pois não oferece nenhum perigo a minha Walkíria. Tudo que é inerente a Walkíria tem me interessado acima do normal. Já lhe dei um celular e agora fico ligando para saber por onde ela anda. Ela resistiu um pouco, acabou aceitando, mas garante que irá me pagar logo que puder. Combinamos que ela vai falar a seu pai que era um celular usado que conseguimos comprar barato. De agora em diante estarei sempre pertinho dela. Quando cai na caixa postal entro em desespero, achando que ela desligou a propósito, pois não quer ser localizada e deve estar com alguém que pode ser ou vir a ser seu namorado. Estou “entrando em parafuso”. Isso está virando uma nefasta obsessão. Estou como um drogado que toma consciência de que está se destruindo e luta com todas as forças para vencer a vontade da mente contra a necessidade física do corpo, começo a lutar contra os sentimentos. Walkíria para mim é um vício pavoroso,
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pois mesmo sabendo ser impossível acontecer alguma relação entre nós, desejo isso ardentemente. Não consigo parar de pensar nela, desejando-a com todas as minhas forças, fraquezas, coragem e medos, loucura e razão. Já não consigo dormir. Estou decidido a me afastar dela, pois este sentimento está me sufocando, ficando incontrolado e a dependência é perigosa, pois não vejo nenhuma possibilidade dela ficar comigo, caso descubra meus reais sentimentos. Amanhece depois do terceiro dia que me entreguei ao isolamento, desprezado por mim mesmo, barba por fazer, garrafas de cerveja espalhadas pela casa, sobre o aparelho de som, no canto da sala, na mesa de jantar. Não tenho coragem de reagir. Sei que com algum esforço posso vencer essa situação, contudo o desânimo me empurra para as almofadas e ao desolamento. Tenho me embriagado todas as noites, na esperança de anestesiar o coração e dormir ao menos um pouco. Isabela se preocupa com meu estado, procura entender o que está acontecendo e eu sem saber o que dizer, apenas faço suspense, deixando-a mais aflita ainda. Walkíria aparece em minha casa e tenta penalizada me animar pedindo que eu toque violão para ela, tece elogios às musicas, demonstrando 79
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sinceridade e em suas palavras existe um tom de carinho cativante. Como a visita era furtiva, logo ela se despede e se vai. Ainda estou sentindo no ar a sensação agradável que foi a sua presença quando sou mais uma vez surpreendido com a chegada de Sheila, sua prima motoqueira. Sheila deixa à primeira vista uma impressão desagradável, pois não prima pela aparência. Não tem os mesmos traços de Walkíria, que é branquinha, mas traz a pele sempre bronzeada. Seu andar é deselegante, desprovido do molejo feminino e seus trajes são escolhidos sem o cuidado de combinar com o ambiente ou tentar disfarçar a sua obesidade. Com a convivência é que consegui vencer a má impressão inicial e aproveitar de sua alegria contagiante, suas colocações sarcásticas e precisas, que fazem todos pensar um pouco e depois cair na gargalhada. Especialmente agora sua presença me é muito agradável, pois ela vem trazendo uma cartinha da prima. Falo com ela ansioso, e passo logo a sorver a mensagem escrita à caneta azul em duas folhas de caderno, me pedindo para voltar a sair, pois ela entende que eu estou sofrendo por sua causa e ela gosta de mim como um pai. Pede que eu ligue para ela sempre às 19:55, hora que seu pai leva sua mãe para o colégio e encerra a carta dizendo que me adora de verdade.
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Este apelo soa como um tiro que dispara os cavalos de corrida que a postos, aguardam ansiosos o sinal de largada. Tomo um banho, faço a barba, me arrumo e saio cheio de vontade de viver – Viver ao lado dela. E andamos juntos pelas ruas, falamos do futuro, dos presentes que tenho vontade de lhe dar, da moto que é seu grande sonho, perambulamos pela linha de trem nos equilibrando sobre os trilhos, subimos as pedreiras do Morro dos Lopes, onde contemplamos a grandiosidade da natureza e tiro fotos, muitas fotos, do rosto, do corpo, deitada, correndo, dançando, rindo, elegante, desgrenhada, dormindo, acordando e sintome feliz, muito feliz. Depois de breves explicações de onde fica a embreagem, o freio e o acelerador, pegamos a estrada do Poço Grande e ela se sai bem em sua primeira aula, pilotando o Gol 1.8. Depois de algumas intervenções no volante e no freio de mão, uma galinha atropelada, chega a hora de fazer a manobra em uma porteira onde a estrada se alarga. Walkíria se aborrece, pois pensava que para dirigir um carro não era preciso dar ré e fazer estas manobras tão complicadas. Retornamos e próximo à cidade, assumo o volante e sigo falando de atenção, prudência, juízo e outros ingredientes mais que são necessários para virar um bom motorista.
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Surpreso e preocupado, ouço sua nova façanha. Sozinha deslocou a caminhonete de seu pai desde a farmácia dele até sua casa. Ambas ficam na mesma rua, mas ainda está cedo para essa aventura, após apenas uma aula. Eu já estava bolando uma boa desculpa para justificar a Honda Bis que estava planejando comprar e dar-lhe. Mas, afoita como ela é, não vou ter sossego se ela inventar de andar de moto. Falo para ela então que é melhor esperar um pouco mais até eu poder comprar um carrinho, mesmo que seja um fusca que não precise andar muito em oficinas. Estou gastando meu domingo organizando os arquivos no computador, quando Walkíria me procura novamente eufórica e sorridente para me contar outra peraltice que ilustra o quanto ela ainda é inconseqüente. Falou para sua tia que sabia dirigir e esta confiou em suas mãos um gol dourado novinho, suas duas filhas e uma sobrinha. E sai o quarteto se exibindo pela cidade. Passando pela avenida que beira a linha de trem, se depara com o carro de som da prefeitura, que vem pela contramão, mas deixando espaço suficiente para passar outro veículo. Walkíria se apavora com a proximidade do talude profundo da linha de trem e se aproxima demais da velha Veraneio mal pintada de 82
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branco e em um impacto acaba com a lateral do carro da tia. Apesar do enorme susto e da gritaria histérica, ninguém se feriu. Eu agora lhe pergunto quem vai pagar o prejuízo, até com medo que isso sobre para mim e ela responde tranqüilamente que sua tia tem muito dinheiro e ela que se vire. Passado o susto, fico pensando sozinho se vale a pena tentar catequizá-la para que ela se comporte como uma pessoa normal e responsável e chego rapidamente à conclusão de que é melhor deixá-la com seu estilo e aproveitar a sua energética companhia e apreciar desejoso a sua estonteante beleza. E como sua presença, mesmo problemática me traz alegria... Mas paralela a esta alegria, me acompanha a insegurança. Já não conseguimos disfarçar o ciúme que sentimos um do outro. Quando faço algum gracejo a qualquer garota, Walkíria, se aborrece, deixa os afazeres e sai batendo portas. Eu por minha vez, já não admito ouvir elogios aos colegas de escola e muito menos os relatos das rodas de piadas indecentes contadas no ônibus a caminho do colégio. Então crio novas situações para aproximar Márcia de Walkíria para ver se ela se contagia com os bons costumes e muda de turma.
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Capítulo 7 A Turma caminha a passos lentos, estropiada, roupa e corpo embebidos de suor e poeira e eu acordo montado em um burro segurado e abraçado por um moreninho chamado Orlando, enquanto estamos descendo a encosta da Chapada do São Francisco. Ele apareceu como uma providência divina. Tinham lhe destinado a incumbência de descer a chapada em busca de água. Meus colegas, também exaustos, pediram àquela alma caída do céu que me transporte no burro, pois todos estavam exaustos e não poderiam levar-me às costas. Ele então me pôs sobre o animal, me manteve sobre ele na caminhada pela chapada. Agora atordoado procuro equilibrar-me nesse movimento de solavancos para um lado e para outro descendo as escarpas conduzindo-nos pelo caminho de volta até o carro, encoberto agora pela escuridão. É noite e no calor insuportável eu fico jogado na cama com febre, conseqüência da insolação e arrebentado pelo excessivo esforço, enquanto os colegas vão à venda do Tininho à procura de um antitérmico. Deito-me confortavelmente na espaçosa poltrona nº 01 em frente ao panorâmico pára-brisa do andar superior. Este ônibus tem até Rodomoça, a versão 84
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Aeromoça das estradas. Dois pavimentos, lanche, filme e conforto. Tenho ampla visão da paisagem. Calçamento, carros, pedestres, construções e pegamos a pista rumo ao interior. Depois da área industrial, descemos uma ladeira sinuosa, comprida e perigosa e a paisagem agora é o verde dos canaviais a perder de vista. Passamos por pequenas vilas e cidades e agora predominam os campos de fumo. Homens borrifam grandes quantidades de veneno sobre as largas folhas e mulheres as colhem e dependuram em varais para secar. Em galpões as crianças destalam as folhas envenenadas e fazem grandes pilhas que depois serão enroladas como grossas cordas e estocadas por um ano para perder a umidade. Eu brinco comigo mesmo, tentando descobrir alguma planta nativa perdida em meio a toda a devastação. Um carro que nos ultrapassa em alta velocidade desvia a minha atenção da paisagem. Pára lá adiante no acostamento, o motorista desce, caminha até o fundo, abre o porta-mala e pega alguma coisa que parece ser pesada. À medida que o ônibus se aproxima, a imagem fica mais nítida e posso ver que o que ele porta é uma enorme arma, rifle ou metralhadora. Ele empunha a arma, apóia-se no carro e posiciona-se para atirar mirando em nossa direção. Entre incrédulo e temeroso, grito para todos palavras como cuidado, fogo e jogome ao chão do veículo. Outros passageiros curiosos levantam-se para ver o que se passa e ouvimos o 85
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primeiro disparo. A confusão é geral. Uns deitam, outros levantam, mulheres gritam chamando seus filhos, o motorista joga o carro bruscamente para o acostamento, se abaixa, volta para a pista, cai no acostamento do outro lado e em zig-zag e alta velocidade chega à rodoviária de Arapiraca. Para um leigo é difícil distinguir sulfeto de cobre, mas a magnetita, a famosa Pedra Ferro todos conhecem. O cobre que estamos procurando, já sabemos de antemão, vem associado à magnetita, essa inconfundível pedra preta muito pesada que em qualquer barzinho caçadores e lavradores logo informam onde podemos encontrá-las. Em cada cidade ou povoado por onde passamos perguntamos se ao acaso alguém já viu tais rochas. Em Coité das Pinhas estou na casa de um caçador sentado em um banquinho tosco, em mais uma das nossas habituais apresentações e entrevistas. Acho curiosa a cena que se me depara. Casa de Pau-a-Pique, com o piso de barro batido abaixo do nível do terreiro à frente, dá a impressão de um calabouço. A porta de umburana é ao nível do chão do lado de fora, mas por dentro fica suspensa a uns 25 centímetros do solo, o umbral de grossas madeiras tem também na sua base inferior um tronco que um dia deve ter sido enterrado, mas agora fica exposto pela erosão causada pela vassoura de duros galhos de Caneleiro. A partir da entrada o piso despenca 86
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afundando disforme até o meio da parede onde fica encostada uma rústica estante que comporta apenas um enorme pote de fundo afunilado. Uma pequena rachadura no fundo do pote faz com que goteje água espaçadamente sobre as costas de um enorme sapo que reside pacificamente numa poça de lama do chão de barro vermelho. Acanhado em perguntar se o sapão não pode lhe causar doenças ou coisa parecida, pergunto apenas porque o Sr. Jorge não comprou um pote com fundo chato e sim aquele com fundo pontudo e fico mais surpreso ainda com a resposta dele. Contou-me que aquele pote foi encontrado na encosta da serra e onde este estava, muitos outros foram encontrados contendo múmias de índios que eles destroçaram a pauladas e atiçaram fora para esvaziar seus novos reservatórios de água com capacidade de uns 100 litros. É noite, vamos ao bar do Paulo. A princípio, muito mal visto pelo povo da cidade, pois comentam que é freqüentado por gays e lésbicas, mas em verdade é um oásis. Foco de resistência contra o pagode, axé music e forró produzidos em série, o Bar do Paulo é uma casa adornada por discos de vinil retorcidos, uma iluminação difusa, um quartinho com a placa DJ Paulo entupido de discos de vinil e cd’s do mais nobre bom gosto. Em uma altura pouco maior que meus tímpanos suportam, rola um misto de Janis Joplin, Chico 87
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Buarque, Mecedes Sosa e Kitaro. Aqui é freqüentado por gente como Alceu Valença, Hermeto Pascoal e outras feras da nossa música. Mesmo com o cansaço que a hora avançada traz, eu sei que não adianta ir para o hotel, pois uma ânsia se apossa de mim e fico olhando o teto ou passando seguidamente os canais da televisão saltando de um programa evangélico para outro por toda a madrugada. Chegou a hora de tirar umas folgas, mas estou com um terrível pressentimento. Bobagem. Foi apenas um incidente solto o caso do assalto ao Ônibus. Posso viajar tranqüilo. Essa é uma “grande viagem” como se diz no sentido mais conotativo do termo. Às vezes agimos conscientes de que aquele projeto não tem nenhuma possibilidade de dar certo, mas insistimos no erro. É o que acontece com o que me empenho em fazer agora. Arrumo o quarto, colocando um tecido azul na parede e sobre o sofá, um tecido sintético da mesma cor comprei só para isso. Estou também preparando a máquina fotográfica, sabendo que estou cometendo crime premeditado, mas estou firme na empreitada. Já até ensaiei conversas, justificativas, argumentos e desculpas aos borbotões, mas não existe nada plausível ou lógico.
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Logo Walkíria aparece com um short branco de Lycra, bem pequeno e super colado. Falo para ela que estou montando um estúdio fotográfico e que preciso calibrar a intensidade da iluminação, definir a posição dos holofotes improvisados, montado em tripés de bússolas geológicas. Ela servirá de modelo. Para entrar no clima, tiro algumas fotos como ela está vestida, dou close nos olhos, nas mãos, nos pés e passo para as fotos sentada e depois deitada no sofá. Peço que ela tire a blusa e se cubra com um pano estampado, para incrementar um estilo mais artístico às fotos e este pedido causa um mal estar. Insisto, pressiono e ela concorda desde que eu saia do quarto enquanto ela se prepara. Aceito, saio e a tensão toma conta de mim e quando ela me chama, entro tremendo de nervosismo e ânsia. Ela, deitada sobre o tecido vermelho que estendi no chão, os pés apoiados sobre o tecido, as pernas dobradas e separadas, enquanto o short desenha os relevos, contornos e sombras da pouca superfície do corpo que ele se propõe a cobrir. A barriga dourada pelo bronzeado cuidadoso está à mostra. O umbigo aparece e parece para mim um cálice, onde tantas vezes imagino despejar champanhe até transbordar e sorver languidamente o néctar em prazer. Mas a faixa de seda estampada colocada sobre seus seios e presa pelos braços que apertam o tecido 89
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sobre o chão está desdobrada com tal largura que cobre até mais do que a blusinha que ela trajava enquanto tirávamos as fotos anteriores. Tento baixar para mostrar um pouco mais dos seus seios, mas ela protesta e ameaça sair se eu tentar tocá-la. Afasto-me e peço que ela dobre um pouco mais o tecido. Ela cede e baixa cautelosamente o pano, cuidando para que a tonalidade escura do contorno dos mamilos fique totalmente coberta. Tirei apenas duas fotos, pois logo ela se alvoroçou, puxou suas roupas, se cobriu, pediu com firmeza que eu saísse e se mostrando arrependida, exigiu que as fotos fossem apagadas do disquete. Em sua presença imediatamente. Tentei copiar as fotos para o micro, mas ela, irredutível, interveio e formatou o disquete. Depois que ela saiu, precisei recorrer a diversos programas de computador até recuperar estas tão sacrificadas e castas fotos. Faço um convite a Walkíria e Sheila para junto com Isabela e Márcia irmos passar o fim de semana em Porto de Sauípe, afinal já estamos todos de férias. Walkíria que ficou em recuperação em Física terá uma prova, mas poderá viajar, pois a prova será em alguns dias próximo ao natal e naturalmente eu me empenharei em ajudá-la em seus estudos forjando mais um motivo para ficar pertinho dela. Ela se anima com a idéia e eu fico com a incumbência de pedir a seus pais. 90
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Procuro por seu pai e falo de nossos planos. Ele faz mil recomendações e eu faço mil e uma promessas, tentando tranqüilizá-lo. Procuro ainda sua mãe e ela responde apenas que sabe em quem pode confiar, sugerindo que eu sou uma dessas pessoas. Reservo uma pousada e preparamos tudo para a viagem. Elas vêm dormir em minha casa e às cinco horas da manhã, coloco o despertador do celular para tocar e introduzo apenas a mão no quarto onde elas ainda dormem, segurando-o e inicia o barulhinho: Pipi-pi-pi. Pi-pi-pi-pi. Começa a algazarra. Depois do susto a risadaria. Durante a viagem o que se comenta é o barulhinho do despertador. Passando por Alagoinhas, entramos em um supermercado e compramos biscoitos, chocolates e uma caixa de disquetes. Subimos a Alagoinhas Velha, tomamos água de coco e tiramos muitas fotos das ruínas da Igreja. Chegando na Pousada de Porto de Sauípe, encontramos apenas duas mulheres que afirmam não ter nenhuma reserva para nós, pois todos os quartos estão ocupados pelos trabalhadores do Complexo Costa do Sauípe. Estamos agora sentados em uns tijolos à sombra de uma árvore, as meninas rabiscam cabisbaixas a areia alva e eu caminhando, praguejo e reclamo da irresponsabilidade e falta de ética do sujeito que me garantiu a vaga.
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Não demora muito e ele chega. Nos leva até um chalé afastado da cidade, onde ele pretendia nos acomodar. Algumas providências, uns improvisos, mais um colchão e pronto. Estaríamos instalados. Só que ao abrir a porta, sua cara de espanto avisa que algo está errado. Na noite anterior a casa tinha sido assaltada. Levaram duas televisões e outras bugigangas. Lourival, o dono da pousada, resolve ceder o seu quarto e da sua família e se muda para o chalé para evitar novos assaltos. Resolvidos nossos problemas, resta-nos algum tempo para a praia. Um paraíso. Um rio raso, de água morna desemboca no mar nos presenteando com uma magnífica paisagem, inspiradora para tirar muitas fotos. Reservei um disquete de cor branca, para tirar algumas fotos digamos assim: Proibidas. Afinal, aquele minúsculo biquíni estampado de rosa e amarelo, era muito mais do que eu já havia conseguido ver. Ainda temeroso de estragar o passeio, arrisco tirar umas fotos usando o zoom em ângulos estratégicos, sempre escondendo depois o disquete branco em lugar seguro. Amanhece um dia maravilhoso na praia onde “é verão o ano todo”, como dizem as propagandas. Após uma caminhada pela cidade, pegamos a estrada e chegamos à Praia do Forte. Um enorme movimento. Estacionamento, restaurante, praia, tudo lotado. Walkíria está carinhosa, meiga e dedicada. Quando nos sentamos, cansados da caminhada, ela entrelaça o seu 92
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braço no meu, encosta a cabeça em meu ombro e às vezes eu penso que estou sonhando. Tiramos fotos abraçados, de mãos dadas, com rosto colado. Ela brinca, se diverte se mostrando encantada com tudo. Naturalmente este chamego causa grande ciúme em Isabela, mas não quero me importar muito com sua cara fechada, afinal não está acontecendo nada de errado. Só para prevenir já dei uns bons gritos e fiz ameaças exigindo que ela não faça cenas de ciúmes para não estragar nosso passeio. No domingo eu convido as meninas a um passeio na praia de nudismo de Massarandupió e elas topam, achando que não existe isso por aqui. Chegando em uma bifurcação, nos informam que em frente é uma praia comum e à direita, a praia de nudismo. Então é à direita que nós vamos. Estrategicamente escolhida, a praia é cercada por dunas em toda a sua extensão. Paramos o carro e subimos a duna. Daqui de cima eu posso ver a portaria da praia de nudismo ao longe, tão longe que as pessoas são apenas umas manchas brancas se deslocando próximas a umas bandeiras coloridas. Estamos à sós e a praia despovoada prolonga-se ao infinito para os dois lados e a distância daqui até a água é de aproximadamente 300 metros. Sugiro então às meninas que elas desçam em direção à praia sozinhas, que eu ficarei aqui olhando de longe, permitindo assim que elas possam sentir a essência do lugar, tirando a roupa e vivendo assim uma aventura ímpar. 93
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Lentamente elas cruzam a areia e eu permaneço no alto observando as quatro distanciarem-se rumo ao mar. Observo ao longe as garotas entreolhando-se, conversando e após um tempo entram em um acordo. Vejo nos vultos embaçados pela distância o típico movimento de quem está despindo-se. Em um movimento sincronizado de costas para mim três delas estendem seus braços para o lado segurando seus biquínis. Elas sentam-se à beira da água e logo se deitam para pegar o bronzeado suave do final de tarde enquanto eu sonho com poder estar ali entre elas sentindo-me parte daquela deslumbrante natureza, no entanto, sei que se ameaçar descer esta duna causarei um alvoroço lá embaixo, pois Sheila que não aceitou tirar a roupa está sentada ao lado das outras garotas atenta a cada movimento e pronta para denunciar qualquer movimento suspeito. À noite vamos a um restaurante. O cheiro da pizza me deixa com a boca cheia dágua. Pedimos uma enorme pizza e como até me fartar. Depois disso a gula me faz comer ainda mais até ter dificuldade de levantar. Encontramos alguns conhecidos e desconhecidos, mas que vieram de Santa Luz e se estabeleceram por aqui e tomamos várias garrafas de vinho acompanhadas de conversas altas e escandalosas. Eu me sinto alegre em parte levado pelo vinho, em parte pelo tratamento carinhoso de Walkíria, mas Isabela está macambúzia, demonstrando estar bastante 94
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chateada. Só que eu não quero me importar com isso, afinal reconheço que armei todo esse passeio para estar com Walkíria, e de qualquer forma Isabela também se divertiu de carona. Hora de retornarmos a Santa Luz. Logo cedo acordo as meninas e enquanto elas preparam-se, estou recolhendo toalhas e roupas espalhadas para colocar no carro. Vejo então o short branco de Walkíria, pego e escondo em minha mochila. É o mesmo que ela trajava quando tiramos as fotos no estúdio improvisado. Esta será uma lembrança valiosa, impregnada do cheiro e das vibrações dela e vindas da parte mais inacessível da superfície de seu corpo. Estamos de volta ao velho dia-a-dia de Santa Luz com um tempero a mais que são as brigas com Isabela a cada vez que se fala de passeios e praias. As aulas recomeçaram hoje. Walkíria me pediu que eu lhe ajudasse nos estudos, pois amanhã ela terá uma prova de recuperação. Sentado em cadeiras de bar com os livros de Física sobre a mesa da cozinha de sua casa, estamos a sós. Ela não se concentra nos estudos. Olha-me encantada e eu feliz com sua companhia, falo que além da velocidade, é preciso considerar o comprimento do trem que ao atravessar o túnel... Ela realmente não está interessada nesse assunto. Interrompe o raciocínio e sugere uma voltinha pela rua
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para tomar um sorvete. Concordo e ela vai tomar banho. Outro dia ela me falou que o banheiro há tempos está com defeito e que o seu banho é no quintal. Eu fico na mesa bisbilhotando os provérbios e trechos de música escritos no seu caderno, temeroso de encontrar algum dedicado por algum playboyzinho e ouvindo o som da água despejada lá fora. Não consigo conter o desejo de dar uma espiada e levanto sorrateiro, contorno a mesa e deixando o corpo protegido pela parede, reclino e olho através do corredor que leva até o lugar onde ela está. Mas existe um tanque de cimento que impede a visão. Se eu aproximar-me um pouco mais, posso vê-la. Caminho lenta e silenciosamente, enquanto ouço o barulho da água que imagino, acaricia e envolve seu corpinho. Vou procurando uma localização e um ângulo onde seja possível apreciar essa rara e preciosa cena, para logo depois voltar à cozinha e disfarçadamente me orgulhar da façanha. Pronto. Daqui eu posso ver. Basta me esticar e elevar os olhos acima do tanque e... Meu Deus! Deparo-me apenas com o seu rosto e seus olhos fulminantes assustados fitam com ódio bem no fundo dos meus. Um sorriso sem graça e retorno rápido à cozinha. Ela passa enrolada em uma toalha, com suas roupas emboladas na mão, entra em seu quarto, bate a porta com força e eu sinto o chão fugir de meus pés. Percebo
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que nรฃo adianta tentar justificar-me. Saio envergonhado e amargurado. Essa agora foi imperdoรกvel. O que serรก que ela vai fazer? Contarรก a seu pai? O medo agora se apossa de mim.
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Capítulo 8 Mais uma vez carrego um grande problema. Um fardo na essência da palavra. Nem eu mesmo entendo porque não consigo dosar a minha bagagem. Uma enorme mala com roupas, sapatos, cuia, bomba e mate para tomar chimarrão, um terno preto, para quando precisar ficar à ordem, outra mochila cheia de livros, revistas, papéis e cd´s, além da bolsa pesadíssima do Notebook, cheia de cabos, hd´s, remédios para as crise de cálculo renal e dores de cabeça. Nas rodoviárias sem elevador ou rampa é um sofrimento. Na hora de comprar passagem, levo a metade das malas até o meio da escada, volto, pego as restantes, vou até o fim e volto novamente para pegar as primeiras que deixei para trás. Na descida, acontece tudo novamente. Quinta-feira. O ônibus sai de Arapiraca às 22:00 horas e até que estou tranqüilo quanto à viagem. Cansado como estou devo dormir até o meu destino. Acordo num sobressalto assustado com gritos pouco antes de Aracaju. O ônibus pára e um policial empunhando uma metralhadora entra gritando mandando que todos os homens saiam com as mãos na cabeça e a qualquer movimento suspeito, os seus homens estão lá fora prontos para atirar. Atordoado olho para fora do carro e vejo uma fila de policiais mascarados em pé sobre um barranco à beira da estrada, com suas armas apontadas para nós. Apresso98
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me a levantar e com as mãos na nuca, como os outros passageiros vou saindo do ônibus. Um senhor desesperado pergunta se pode pegar a carteira que caiu de seu colo ao levantar-se. Uma mulher com os olhos arregalados de espanto abaixou-se a pegou e tentava lhe entregar, mas a fila nos empurrava e ele com medo do movimento parecer suspeito largou lá mesmo. Estamos assustados. Do lado de fora outros soldados gritam e empurram-nos para a lateral do ônibus onde os outros passageiros já estão todos com as mãos encostadas na lateral, enquanto soldados nos revistavam. Fomos todos liberados sem nenhuma explicação exceto pela observação que em caso de assalto, ninguém reagisse. Passado o susto e a revolta a viagem retoma a sua tranqüilidade. Daqui pra frente vou aproveitar ao máximo esta longa viagem. É sempre assim: Cochilo, leio, escrevo, cochilo novamente e finalmente chegamos em Salvador. Mas a jornada continua. Sexta feira. Cinco horas da manhã, apenas dois passageiros tomam o ônibus. Eu e um senhor aparentando uns 60 anos. Este pede que eu tire a bolsa que coloquei na poltrona ao meu lado, para que ele possa conversar durante a viagem, para torná-la menos cansativa. Ele dispara falando que trabalhava no interior de Alagoas e que está indo visitar os parentes em Santa Luz. Coincidência! Também venho de Alagoas e estou indo para Santa Luz. O senhor 99
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conversador me oferece uma bolacha recheada com sabor de baunilha e eu recuso, pois detesto este cheiro. Ele insiste, pego e seguro a tal bolacha esperando a oportunidade de jogá-la pela janela. Mas ele, estranho, não tira o olho de mim e da bolacha e insiste que eu coma e mesmo com nojo, passo a tirar pequenos pedaços. Percebo que nos aproximamos de Feira de Santana, ele se mostra ansioso, mas logo eu estou sonolento e... Quarta-feira, abro os olhos e acho estranho tanta gente em minha casa. Meu pai, minha mãe, meu irmão. Todos me olham como se eu fosse um ET. Pergunto o que estão fazendo aqui e eles se entreolham e balançam a cabeça afirmativamente forçando a boca em um arco. Levanto e caminho normalmente, mas ao tentar levantar o pé para transpor um pequeno degrau, os músculos não obedecem e Isabela corre em meu socorro. Pega-me pelo braço e me leva até a poltrona da sala. Quero saber o que está acontecendo e Isabela explica que dormi por três dias seguidos e no domingo acordei, mas não conhecia as pessoas. Havia caído no golpe do “Boa Noite Cinderela”. Injetam com uma seringa um sonífero em qualquer coisa comestível como bolacha recheada, chocolate, copinho de água mineral, laranja, maçã, chiclete, e quando o passageiro dorme, abrem a bolsa e pegam os objetos de valor. 100
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Normalmente antes do final da viagem a vítima acorda e percebe que foi roubada. No meu caso a dose deve ter sido cavalar, pois fiquei por cinco dias “fora do ar”. Procurei depois me informar de como eu havia sido socorrido, com a intenção de agradecer aos benfeitores e tive uma amarga surpresa. Eu devia ter descido em Santa Luz, mas passei direto para Queimadas, 42 quilômetros depois. Quando o ônibus chegou à garagem, o faxineiro disse que tinha um bêbado dormindo nele. O motorista e o faxineiro então me pegaram e me jogaram na calçada junto com minha mala. Eu portava uma ponchete amarrada à cintura, com dinheiro e documentos. Ainda não eram 11 horas. Às quinze horas, o motorista retorna junto com o cobrador para pegar o carro que fará a viagem de volta a Salvador. Ainda estou lá na mesma posição, só que agora sob o sol de verão do sertão. O cobrador lembra então que quando eu entrei no ônibus, estava sóbrio e não tinha como me embriagar durante a viagem. Resolveram então me colocar no Ônibus e deixar no hospital como um indigente, com a pressão chegando a zero. Alguém passando lá disse ter me visto em Santa Luz e que achava que eu trabalhava com informática. Uma enfermeira ligou para as três únicas pessoas que trabalhavam com computador na cidade, todos conhecidos, e todos disseram não conhecer ninguém com o nome Carlos Alberto Santos Rizzieri. 101
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Por acaso, Danilo, ouviu falar do caso e junto com Isabela foram me buscar e me encontraram em abandono no hospital. Colocaram-me no carro e tiraram depois em Santa Luz, carregado pelos braços e pernas como morto. Tudo que aconteceu da sexta-feira até a terçafeira, foi apagado da minha mente. Recuperei o equilíbrio e a memória somente cinco dias depois, ainda desconfiado de mim mesmo e sempre perguntando às outras pessoas se eu realmente estava normal. Depois da tempestade a bonança. Há três meses Walkíria não falava comigo e hoje apareceu para uma visita. Conversou banalidades, perguntou como eu estava me sentindo, mas Isabela não nos deu muita abertura. Na primeira oportunidade que tivemos toquei no assunto do banho e ela ficou furiosa. Falando baixinho, mas em tom ameaçador era como se estivesse gritando em altos brados. Fala que nunca esperava uma atitude dessas vinda de mim, está decepcionada e não tem perdão. Peço desculpas e explico que jamais imaginei que ela estivesse tomando banho no quintal, que estava totalmente inocente e após algumas cenas humilhantes, ela finge acreditar. Sábado é aquela agonia na rua. Oficinas e postos de gasolina congestionados dos carros vindos das 102
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roças, gente descendo para a feira, gente retornando da feira, gente que fica pela feira. É o dia em que os olhos dos comerciantes brilham cheios de esperança de recuperar o paradeiro da semana. As mãos hábeis dos pivetes mergulham nas bolsas das senhoras que distraídas selecionam suas frutas nas bancas. Moleques com varas com pontas recobertas com visgo de jaca passam correndo e roubam umbus que mulheres vendem em cestos na feira, grudando-os no visgo. Alcoólatras gastam todo o dinheiro das compras com cachaça até caírem na sarjeta. Vou ao mercado, um grande salão com largas portas nas laterais onde vendedores de farinha e feijão expõem suas mercadorias. No lado oposto à entrada principal existem uns bares onde vendem-se caldinhos, churrascos e bebidas. É o ambiente preferido de Júlio. Este é um moreno forte, baixo, de cabeça redonda e com a barriga típica dos amantes das cervejadas, se bem que ele prefere whisk. Lucinha passa e chamo pelo seu nome. Ela sorri debochada, empina o nariz convencida e passa rebolando com sua minúscula mini-saia sem me dar a mínima atenção. Em um Box próximo alguém acena e ela toda faceira se aproxima e conversa alegremente, sacudindo os braços e jogando os cabelos para um lado e para outro como se fosse ela o próprio centro do universo. Logo está sentada ao colo de Adilson que lhe leva cerveja à boca forçando sua cabeça para traz e ela 103
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bebe até o sobejo do líquido escorrer dos cantos dos lábios pelo queixo e pescoço. Adilson é um empresário bem sucedido no ramo de supermercado. Autor da conhecida frase “Só trabalha em meu supermercado quem desfila na minha passarela”. Uma pontinha de ciúme espeta meu peito, então me viro para frente e retomo a conversa com Júlio. Ele com um sorriso malicioso diz que minha “negra” está por aqui e com certeza está me procurando. Retruco dizendo que não tenho nada a ver com essa figurinha escandalosa e ele responde risonho que não se trata de Lucinha e sim da filha do farmacêutico. Assombrado com o comentário, argumento que não há nenhum fundamento nesta conversa, pois meu contato com Walkíria, a “filha do farmacêutico” é unicamente para tratar de trabalho. Ele responde que não preciso me empenhar em tapar o sol com uma peneira já que todos comentam na cidade. E diz também que eu não a deixe esperando, pois ela está ansiosa à minha procura. Aponta para a porta oeste do mercado onde vendedores apregoam montanhas de laranjas espalhadas pelo chão. Nossos olhares se cruzam e ela faz sinal para que eu vá a seu encontro. Embaraçado, tento me justificar dizendo que volto logo, mas Júlio diz não acreditar, me libera se despedindo dizendo que também já vai embora, que eu não me preocupe com a conta que fica a cargo dele e se despede com um sarcástico “seja feliz”.
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Saio rápido receando que Walkíria canse de me esperar e deixo para traz Lucinha agora em um beijo cinematográfico ainda no colo de Adilson que já enfia a mão por baixo de sua blusa. Pergunto o que a traz àquele lugar e ela explica que Danilo está planejando uma festa e pediu a ela que me procurasse e pedisse para que eu colaborasse com o tal evento. Tenho uma dívida de gratidão para com Danilo, pois foi ele que descobriu meu paradeiro quando do “Boa Noite Cinderela”, então colaborei satisfeito dando a pequena quantia que ele pediu, mas indago a Walkíria o porque deles estarem juntos e ela diz que o encontrou ao acaso, quando ele descia com Lucinha em direção ao mercado e ela os acompanhou. Já que estamos aqui ela convida-me para procurar com ela uns anéis na feira. Encontramos três anéis de aço do mesmo tamanho, pintados na parte externa em cores diferentes e serão usados no mesmo dedo ao mesmo tempo. Como também são falsificados, precisam de um tratamento especial. Vamos então à minha casa, onde ela cuidadosamente passa esmalte incolor para que não percam a cor e não manchem seus dedos de ferrugem. Durante todo o passeio e agora, me desmancho em elogios, dou risada de suas piadas indecentes, me sensibilizo com seus dramas pessoais e aproveito cada bobagem proferida, fazendo com que ela se sinta 105
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inteligente e valorizada. Assim é que acredito que vou reconquistar seu coraçãozinho complexo. Terminada a operação com os anéis, ela vai até o computador, coloca uma música na “agulha”, pede para eu “me ligar“ na letra e sai porta-a-fora, correndo. Pelas caixinhas amplificadas do micro, toca “Há uma chance da gente se encontrar...”- “Estou na contramão te esperando...” Finda a música, eu coloco novamente, atentando para a sua letra e entro em um dilema. Não sei se isso é uma declaração ou ela colocou uma música ao acaso, sem idéia da mensagem que a poesia transmite. Talvez meu desejo esteja criando ilusões. Domingo, churrasco regado a Coca-Cola e MPB. Walkíria está de castigo, ouvindo uma exaustiva análise das músicas da Ópera do Malandro, uma interpretação dramática da tragédia de Domingo no Parque e uma retrospectiva do panorama político nacional que inspirou a música Cálice. Depois desta brilhante tentativa de catequese, naturalmente cansada, ela começa a cochilar no sofá. Levanto com cuidado de um pai sua cabeça, acomodo sobre o travesseiro, coloco no meu microsystem, cd´s de new age em todas as bandejas e diminuo o volume do som, para que ela possa dormir embalada por uma música suave e diferente dos forrós que me perseguem como se fossem um castigo. 106
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Procuro distrair-me com atividades banais até ajudando Isabela a arrumar a cozinha, limpar a churrasqueira, mas a imagem de Walkíria deitada indefesa em meu sofá e a música que ela passou para mim ontem, não saem da minha cabeça. Sem conseguir resistir à tentação, aproveito o empenho de Isabela em baixar a pilha de pratos sujos da pia e caminho lentamente até a sala, observo por um tempo seus olhos fechados, a fim de confirmar se ela realmente dorme, ajoelho-me ao seu lado, aproximo meu rosto ao dela e encosto meus lábios nos seus, fazendo com eles uma suave pressão sobre seu lábio inferior, sugando-o de leve ao meu encontro. Seus olhos se abrem, me olham e se fecham novamente, e eu temeroso, afasto-me silenciosamente e vou para a cozinha, pensar no que acabo de fazer. Isabela olha-me desconfiada e eu me apavoro tentando adivinhar as conseqüências desse beijo. Sem conter a ansiedade volto à sala como o criminoso que volta ao local do crime. Caminho silencioso até ela, pego em sua mão e ela abre os olhos...
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Capítulo 9 É noite quando entro no quarto. Preciso olhar nos seus olhos, mesmo que seja apenas pela foto no computador. Isso acalma um pouco a minha ânsia. Sonho acordado. A vida virou um micro e macro vai e vem. O micro vai e vem é sair cedo do hotel ir ao campo trabalhar e voltar ao fim da tarde ansioso por ver o rosto de Walkiria na foto do computador. O macro vai e vem é sair de Santa Luz, me instalar em outra cidade, trabalhar ansioso por vinte dias e finalmente voltar a Santa Luz e ver Walkiria ao vivo, a cores em cheiro e movimento. Mas agora é hora do micro vai e vem. Outra manhã de labuta. Procurando uns afloramentos de quartzo para coletar amostras que serão analisadas para checar se tem ouro, viajamos pelas estradas do sertão até o povoado de Inhamuns já cruzando a fronteira entre Serra Talhada e São José do Belmonte. Caminhando, passando por escarpas e precipícios, fazendo tomadas de localizações dos afloramentos com o GPS e coletando amostras, embrenhamo-nos pelas caatingas e chegamos a um lugar exótico onde vemos duas enormes pedras cravadas no solo como se fosse um obelisco. Aos seus pés uma laje que parece um altar de sacrifícios. Passo a máquina fotográfica a Juraci e me 108
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equilibro com dificuldade sobre uma das pedras enquanto oriento o fotógrafo improvisado sobre enquadramento, torcendo que a foto fique boa, pois o vento é muito forte e posso acabar despencando daqui de cima. Aproximo-me de um lavrador que trinca sua enxada no pouco de terra que existe entre as Lages de granito e ele fala que estas são as Pedras do Reino, antigas Pedras Bonitas. Foi nesse cenário que em maio de 1838, um mameluco chamado João Antônio dos Santos criou seu reino. Olho novamente com carinho a foto e lembro-me de quando tirei. Walkíria deitada no sofá, eu temeroso por sua reação por causa do beijo roubado. Ela abre os olhos e eu me apresso a pedir desculpas pelo ato impensado. Para minha surpresa, ela segura minha mão e me olha com ternura. A máquina fotográfica está no chão ao meu lado. Segurando a máquina com a mão esquerda, pois sua mãozinha macia ainda segura a minha mão. Coloco a câmara em modo play e disparo. Olho emocionado no display a foto de seu rosto me olhando enquanto segura a minha mão e ela fecha os olhos e volta a dormir. Tiro mais uma foto de seu rosto imaginando que isso pode ser o máximo que eu posso conseguir desta louca e impossível paixão. Éramos verdadeiros viciados. Estávamos dependentes um do outro. Tudo que eu ia fazer
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precisava estar com Walkíria assim como ela sempre achava uma desculpa para estar perto de mim. Naquele dia era finalmente véspera da temida prova de Física e ela me convidou para ensinar-lhe o que era velocidade média. Como professor, estaciono a moto em frente a sua casa, respiro fundo, subo o degrau alto que leva ao nível do jardim maltratado, peço licença e entro na sala. Cumprimento seus pais, que me olham com grande satisfação, resmungo para seu irmão, que disperso, me responde igualmente com outro resmungo e penetro casa a dentro. Passando pelo corredor, amarro o passo diante da porta de seu quarto e Sheila que ia como guia, como que adivinhando meu pensamento, retorna, acende a luz, deixando-me ver as duas camas cobertas com lençóis com figuras de ursinhos, coisa bem graciosa e infantil. Uma prateleira de vidro acima da cama com bichinhos de pelúcia e bonequinhas. Jogado sobre sua cama com os pés para cima, um cachorrinho de pelúcia marrom, com os pelos do peito em alto relevo em forma de coração, que eu lhe havia presenteado, no retorno de uma de minhas viagens. A luz se apagou e meio sem graça, sigo em direção a um depósito no fundo da casa, adaptado em sala de estudos. Uma mesa de bar com quatro cadeiras vermelhas com propaganda de cerveja. Sobre a mesa, está uma pilha de livros, caderno, folhas soltas e ela me recebe com um sorriso encantador. 110
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Sento em frente a ela vendo à suas costas uma janela que se abre para o quintal deserto e a porta que dá para a cozinha fica entreaberta. Localizo-me sobre assunto, e lá vem novamente o famoso problema do trem que com tal comprimento, passa por um túnel assim, assim... Passo a rabiscar em um papel ruas, estradas e carrinhos, procurando passar a noção de distância desde o tamanho do lápis à largura da rua ou o um quilômetro de caminhada até minha casa, e tempo, desde um minuto, olhando os ponteiros do relógio em seu incansável tic-tac até o tempo de viagem até Salvador. Enquanto isso ela sorri graciosa, brinca com meus dedos, segurando-os atrapalhando o desenho e suas setas de deslocamento, e demonstra carinho, muito carinho em seu olhar... Em um dado momento não mais me contive e segurando suas pequenas mãos, pedi sua atenção e externei o que traspassava meu coração, o grito atravessado a tempos em minha garganta. Olhando fundo e firme em seus olhos, confessei tremendo que estava apaixonado. Ela se espantou, baixou a cabeça e disse que não queria reconhecer isso, mas também estava apaixonada. A emoção que me acomete agora é indiscutível. Penso, às vezes, que não pode ser real o episódio insólito que eu vivo no momento de estar, em pleno sertão pernambucano, cercado por cangaceiros parentes 111
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e admiradores do ícone Capitão Virgulino Ferreira, em uma íntima e divertida conversa. Expedita a filha de Lampião intrigada pergunta a Cila como ela sendo cangaceira pode ter medo de cobra. Cila dá uma enorme gargalhada e diz que sua mãe Maria Bonita também tinha. Candeeiro que já matou muitos nessa caatinga tem um bom traquejo com as armas, mas com uma caneta é de fazer pena. Ele pergunta novamente com voz trêmula como é que se escreve meu nome e eu respondo vagarosamente com longos intervalos de uma letra para outra. C – A – R – L – O – S. Alheio a livros, canetas, papéis, como se tudo a minha volta tivesse congelado, restando apenas o calor que emana dessa emoção, cheio de alegria puxei-a para os meus braços. Ela se esquivou e saiu correndo da sala. Permaneci ali, confuso, radiante de alegria, pasmo... Mantenho-me estático sentindo forte ainda a emoção daquelas palavras e um pensamento parasita totalmente inoportuno tenta dominar insistentemente minha mente. A música Nervos de Aço do dramático Lupcínio Rodrigues martela em minha cabeça “um desejo de morte ou de dor”. Impressionado com a incoerência do pensamento resolvo combatê-lo substituindo por um pensamento mais condizente com a minha felicidade. Então seguro uma caneta como que empunhando uma espada e passo a escrever como que 112
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ferindo o papel a fim de apagar da mente o nefasto pensamento e num digladio literรกrio escrevo:
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SONHO o que é olhar profundo Sabe Sob o temor de sofrer Bem no fundo de outros olhos Sentindo o corpo tremer Confessar uma verdade Sem você não sei viver? Sabe o que é vencer o medo De despir a emoção Se entregar por inteiro Ao risco de uma paixão Alegria que envolve Só de pensar, emoção, Dando-se por sacrifício Às loucuras desse bem E obter por resposta A todo amor que se tem Em apenas um sussurro Eu te amo assim também?
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Hoje ela preferiu ficar com as amigas, rindo, falando alto e pouco falou comigo. No final da tarde, passou por mim, colocou um pequeno papel amarelo em meu bolso e saiu correndo. Ali estava escrito apenas “Quero um beijo” Outra noite de euforia e expectativa. Na manhã seguinte, lá estava ela deitada no hall de sua casa, ouvindo música em um walkman. Ao aproximar-me, ela perguntou se eu não iria realizar o seu pedido. Eu lhe respondi que estava ansioso para isso. Um tempo, uma conversa, a desculpa de mostrar a prova de Física, e estávamos novamente a sós no depósito improvisado em sala de estudos. Agora o nervosismo é aflorante. Ela entreabre a boca e fica imóvel aguardando encabulada a minha ação. Seguro suavemente em seus braços, conduzindo-a cuidadosamente para trás da porta entreaberta e trazendo-a lentamente para perto de mim e beijo seus lábios macios, doces e estremeço. Ela se afastou rapidamente, me olhou espantada, olhos bem abertos e quando se recuperou, falou olhando para o chão que não precisaria mais me contar sobre o seu primeiro beijo; agora só sobre o segundo. Então lhe abracei novamente lhe dizendo que sobre o segundo não precisaria me contar nada, pois seria aquele. Nos beijamos longamente. Uma semana depois, eu fechava os olhos e ainda sentia a pressão de seus lábios sobre os meus... 115
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Lucinha aparece em casa e sinto até asco. Vou logo perguntando como é que ela tem coragem de se agarrar com um homem casado em público daquele jeito. Ela responde que é muito melhor ficar com ele que com os malandrinhos que só fazem usar e difamar. Ela já apanhou muito e agora graças à ajuda de Danilo ela acertou o passo. Peço para ela explicar melhor e fico sabendo que Danilo é que marca os encontros entre ela e Adilson, inclusive acertando o preço e tirando dele sua comissão. Aproveito esse assunto para conhecer melhor essa vida devassa das pinicas e piriguetes, pois pode ser-me útil para conhecer os passos de Walkíria. Esmiúço suas aventuras e pergunto como tudo começou para ela. Ela conta chorosa que Primo, um garoto de 14 anos, filho do próprio Adilson encostou certo dia sua Biz próximo ao banco da praça onde ela estava e a convidou para ir à casa dele. Eram quatro horas da tarde e ela encheu os olhos, pois sonhava em conhecer aquela verdadeira mansão. Chegando lá Primo dispensou a empregada, escorraçando-a e dizendo que não voltasse tão cedo. Subiram ao primeiro andar e beijaram-se nas confortáveis poltronas que ficavam na varanda , mas logo ele a convidou para irem ao quarto da mãe dele. Lá ele pediu que ela deitasse na cama, pois era bem melhor namorar deitados. Ela obedece e quando ele deita-se sobre ela, a porta que parecia ser do guardaroupa, mas na verdade era do banheiro, grande 116
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novidade para ela, abre-se e dele saem dois rapazes. Como não bastasse de debaixo da cama saem mais dois outros garotos de idades semelhantes. Ela percebe a armação, mas está imobilizada sob o peso de Primo. Consegue se desvencilhar e corre para a porta que está trancada. Então o grupo a cerca e passa a arrancar-lhe a roupa. Ela protesta mas os garotos riem e caçoam dela. Lucinha desespera-se e passa a se debater e arranhar o rosto, pescoço e braço dos algozes. Sua calcinha já foi despedaçada e a alça do vestido arrancada. Os seios estão à mostra e mãos e dedos percorrem todo seu corpo, apalpando, apertando e beliscando. Ela continua a se debater e gritar e se um de seus braços fica livre ela esmurra e esmo às vezes acertando alguém que na agonia não tem como precisar ao certo quem foi. Até que imobilizada pelos dois braços e pelos cabelos que alguém segura com força forçando-a a se abaixar e manter o rosto virado para o teto, vê a figura de Primo aproximando-se dela...
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Capítulo 10 Treme nas mãos de Candeeiro o livro “O Espinho de Quipá” fruto de anos de pesquisa de Amauri sobre a verdadeira trajetória de Lampião. Soletro letra por letra e mostro no livro uma letra semelhante para que o velho cangaceiro possa completar a dedicatória “Para Carlos de Candeeiro”. Depois do massacre de Angicos ele foi preso, anistiado, mas a marca cangaceiro havia ficado encravada e o impedia de arranjar um emprego e até de sair às ruas. Só lhe restou o confinamento em uma cidadezinha na Amazônia, onde sua fama não havia chegado. Depois de muitos anos em suas andanças resgatando a história, Amauri descobre seu paradeiro e o traz de volta às origens, Triunfo em Pernambuco, cidade onde nasceu Lampião e tudo começou. Cila foi morar em São Paulo com Firmino, seu marido o cangaceiro que a tinha roubado e a quem ela aprendeu a amar e com ele ficou até sua morte a alguns anos atrás. A filha e a neta de Lampião residem em Aracaju onde fundaram o museu de Lampião e divulgam pelo Brasil as várias obras já publicadas por Antônio Amauri. Os Lampiônicos estão eufóricos. Finalmente o projeto foi aprovado e estamos todos aqui para o
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lançamento da pedra fundamental da enorme estátua de Lampião. Agora assisto ao discurso emocionado da cangaceira Cila sobre a morte de Maria Bonita, sua amiga e comadre, quando começa a se concretizar o sonho do ambicioso projeto da prefeitura. O museu do cangaço e sobre ele uma estátua de Lampião com trinta metros de altura. Saímos em excursão pelos lugares por onde passou Lampião. Com Expedita, filha de Lampião, Vera, filha de Expedita, Cila e Candeeiro, Antônio Amauri e outros Lampiônicos, visitamos um lugar onde os cangaceiros costumavam acampar; uma bela cachoeira, próxima à divisa de Pernambuco com Paraíba, lugar estratégico na época, pois até certo tempo, a polícia de um estado não podia penetrar no outro, quando em perseguição a bandidos. Para os cangaceiros, bastava andar um pouco e já estavam a salvo. O lugar é bastante acidentado e próximo da cachoeira tem cratera intrigante. Uma enorme depressão sobre uma rocha intrusiva, indicando que aquilo não foi ação de um vulcão. Lucinha continua sua dramática narrativa contando que Primo fala para a turma que já é noite e logo seu pai e sua mãe estarão chegando, assim ordena que Lucinha escolha um entre eles para transar enquanto os outros se masturbam olhando-os. Sem 119
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saída ela escolhe o menor entre eles, um pretinho de uns 12 anos conhecido por Paulinho que ela preferiu na esperança de que ele não conseguisse tirar sua virgindade. Assim ela deita-se passiva e ele penetra-lhe perante a platéia eufórica. Os outros eram Alex, Romário e um mais velho que ela não conhecia. Finda a diversão eles a empurram porta-a-fora na escuridão segurando a alça do vestido com uma mão e os frangalhos da calcinha na outra. Sozinha e chorando ela se preocupa apenas em como entrar em casa sem que sua mãe perceba o seu estado e lhe pergunte o que lhe aconteceu. Eu acho uma situação surreal caminhar beirando o murinho de pedra, sabendo que do outro lado, há apenas quarenta centímetros, está outro estado. Aqui, Pernambuco, bem ali, Paraíba. E a casa do Dr. Afonso bem aqui. Um pequeno castelo de pedra sobre a divisa de Pernambuco e Paraíba. Hoje ouvi muitas histórias hilárias sobre os casamentos forçados que ele fez. Alguns deles duravam apenas o tempo do casal se deslocar da sala de audiência até a calçada externa do fórum. Outros casam na igreja, logo em seguida abandonam a esposa ainda no altar e fogem para São Paulo. Mas nem tudo é engraçado. Ele contou também o caso de uma garota que foi deflorada e mais que imediatamente ela contou para a sua mãe, esta contou em seguida ao seu marido que imediatamente saiu à 120
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caça do responsável para obrigá-lo a casar ou para executá-lo, caso este se negue a honrar com sua responsabilidade. Só que daquela vez, o rapaz resolveu esperar o pai da menina, atirando nele antes que esse agisse. O rapaz desapareceu sem deixar pistas. Os tios da menina resolvem, então, matar a sobrinha, responsável pela morte do irmão deles e pai dela. Sobre esta ninguém na cidade ousou falar. Teria conseguido fugir? Em frente à casa da vítima, uma faixa de tecido negro ainda toma toda a extensão da fachada. Aparece-me de surpresa de mala e cuia, o filho de um amigo de Araci. A mim pareceu uma ameaça, pois playboyzinho, malhado, louro, olhos azuis, perto da minha pequena festeira, neste período de festas juninas é como jogar lenha na fogueira. Ele já começa fuçando em meu micro, à procura de fotos e eu lhe surpreendo olhando as fotos de Wlakíria, algumas que eu até conservava escondidas, pois ela própria não sabia da existência e nem eu queria que ninguém visse. É claro que parece ter tido uma simpatia recíproca. O tal Netinho se aproxima dela para conversar e eu tenho que inventar uma desculpa para afastá-los. E ele gruda em meu pé igual a uma sanguessuga, principalmente quando estou com Walkíria, a ponto do pai dela achar que eles estão namorando e proibi-la de sair comigo. 121
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Sento no muro de pedra e repasso na mente historias trágicas de pais e filhos, conquistas e abandonos. Só que chega a hora de retornar à bela cidade de Triunfo, pois a brisa gelada começa a incomodar. A estrada para retornar à cidade é estreita e forrada de pedra, com muros laterais também de pedra que permitem apenas um carro entre eles. No meio do caminho, uma menina toma a frente do carro. É meu dia de sorte, uma morena muito bonita. Paro o carro e ela entra sem fazer perguntas ou dar explicações e aponta para uma entrada estreita onde o muro de pedras é interrompido. Com dificuldade enfio a Toyota naquela porteira apertada e logo adiante vejo um cachorro vira-lata magro amarrado embaixo de um umbuzeiro, uma casinha de adobe sem rebocos e antes mesmo de parar o carro a garota desce apressada e volta com um embrulho. Um embrulho não. Um garoto enrolado em um lençol. Transtornada ela levanta o lençol sujo do sangue da criança e deixa à vista o rosto inchado e cheio de cortes profundos até na parte anterior do crânio. Desci apressado até o hospital. O cachorro tinha mordido a cabeça do garoto de três anos e o sangue encharca o lençol que o envolve. Na agonia do hospital, encaminhando o garoto para internação, assistindo àquela bela garota, alisando seu rosto, consolando-a, nem me dou conta de que lá fora já é noite. 122
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Para ver se tiro estas imagens da cabeça, vou tomar uma cerveja e esquecer o acontecido. Escolho um restaurante que fica do outro lado do lago, onde posso ficar olhando para o teatro todo iluminado e esperando passar uma nuvem e ver lentamente a paisagem se apagar, restando apenas uma luz difusa mergulhada na neblina. Muitas vezes enquanto eu telefonava de um orelhão em frente à igreja, esta começava a sumir, depois desaparecia a escadaria, enfim não enxergava mais nem a grade que estava a pouco mais de um metro de onde eu me encontrava. Dirijo-me ao bar que fica atrás da rodoviária e logo que me sento, o dono do bar, um jovem muito simpático, que chama todo mundo de “meu querido”, pede desculpas, pede para não levar a mal, e explica que o pessoal de Serra Talhada tinha marcado de subir a serra para uns acertos de conta e todo esse pessoal que está aqui, na verdade está esperando essa turma e logo haverá um pequeno tiroteio. Concluiu que seria melhor que eu saísse, pois poderia estranhar alguma coisa, mas amanhã tudo bem; eu poderia vir que estaria tudo tranqüilo. Logo que amanhece o dia, já estou na portaria e pergunto a Jeová como foi a guerra da noite anterior. Foi um tiroteio amigável pois não morreu ninguém.
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Noite de São João. A rua Rio Banco está interditada para carros. Os últimos retoques são dados à decoração. Bandeirolas coloridas coladas em cordões que são amarrados de um lado a outro da rua formam um teto para quem olha à distância. Os ramos ou árvores colocadas em frente à casa de seus donos no centro de uma fogueira são enfeitados com garrafas de cachaça, laranjas, latas de doce, toras de canas e para dar mais estímulo aos aventureiros que aguardam ansiosos a sua queda, são amarrados nos galhos mais altos uns saquinhos transparentes contendo notas de R$ 1,00 e R$ 5,00. Algumas espadas esparsas já estão sendo lançadas. Garotos que antes corriam das chamas expelidas por elas, agora correm para pegar os bambus vazios ainda quentes. Walkíria desce a rua imponente, trajando uma calça grossa, uma jaqueta Jeans e duas luvas de couro, uma dentro da outra. Rodeando a cintura estão enfiadas grossas espadas, com diâmetro de 6 cm e comprimento de 30 cm. Nem de longe parece com os pequenos buscapés cuja propulsão se esgota em poucos segundos. Ela está orgulhosa e convencida por ser a única mulher que se aventura nessa diversão tão perigosa. É ateado fogo na madeira que contorna a árvore enfeitada com prêmios. Todos esperam o ponto máximo da festa que é o momento que o fogo consome o tronco da árvore fazendo-a tombar. Nesta hora 124
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enquanto alguns tentam arrancar os prêmios, chove espadas de todos os lados, encobrindo tudo de fumaça e só quando o barulho da gritaria e dos jatos de fogo das espadas cessam e a fumaça permite é que podemos saber quem pegou o que e quem foi queimado e onde. Walkíria está lá empunhando sua espada, acendendo-a com um tição e lançando-a no ar como um bumerangue descontrolado. A noite avança entre estrondos das trombas, rajadas de espadas, gritaria e fumaça. Farto de festas retorno à minha casa, deixando para trás a euforia e levando comigo a imagem envolta em névoa de Walkiria. Daqui a pouco será outro dia. Um belo domingo de sol. Após o café da manhã, fico extasiado, olhado para a cachoeira que desemboca na piscina, para os pinheiros, pássaros, flores e para o mural onde tem uns fósseis encontrados na cidade e fotos da Cratera da Panela. Fico um bom tempo analisando as fotos panorâmicas da Cratera da Panela. Ela é uma cópia fiel da outra que conheci na excursão com os Lampiônicos. Juraci me vê colocando a caixa acolchoada do Magnetômetro, aquele aparelho que acha coisas metálicas enterradas no chão. Coloco também balizas, trena e água no carro. Curioso, se aproxima para ver quais são os meus planos para este dia de folga. Logo estamos os dois descendo a serra em direção à cratera. 125
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Do alto parece apenas um buraquinho, mas quando começamos a caminhar com esse aparelho encostado na barriga, pendurado por alças nos ombros, uma haste de dois metros com uma antena, é que vemos a real extensão da paisagem. Caminhamos marcando o chão e tomando medidas de 25 em 25 metros pela estrada plana por 150 metros até descambar 100 metros de altura por uma rampa com inclinação de 50 graus. O fundo é redondo e bem plano, forrado de arenito amarelado, com uma extensão de 20 metros e por mais que chova, nunca acumula água. Na encosta oposta, forrada de grandes blocos de granito, nos arrebentamos, escalando, pulando, caindo, mas concluímos o levantamento de 350 metros, que acusou a presença de um grande corpo magnético enterrado justamente no centro da cratera. Walkíria me fala que anda tão dispersa no colégio que recebeu o apelido de Apaixonite Aguda. Fico preocupado se isso pode prejudicar seus estudos, mas fico radiante em saber que ela gosta de mim. O colégio que ela trata sarcasticamente de Febem tem realmente alguma semelhança com um presídio. Uma grade enorme na frente, um pátio vazio depois o prédio bem quadrado sem nenhuma criatividade arquitetônica. Às vezes quando a saudade aperta vou de moto até lá e sento-me do outro lado da rua em frente ao portão só para sentir a proximidade de nossos corpos. 126
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Fui convidado a jantar com Diana, secretária da Prefeitura, a esposa do Prefeito, secretária de Cultura e Turismo e dois amigos delas, um juiz e um repórter de Recife. Este grupo havia me visto filmando uma festa promovida pela prefeitura e pediu para assistir a tal fita. O refeitório já estava preparado. A televisão de 29 polegadas da sala de espera já estava sobre uma mesa com um videocassete e à frente algumas cadeiras já à postos. Sem outra alternativa, coloco a fita VHS-C no adaptador para VHS e começa a sessão: É dia e os bacamarteiros, uns sessenta homens trajando camisas de manga comprida branca, calça preta, chapéu e lenço no pescoço, desfilam ao redor do lago e de tempos em tempos detonam seus bacamartes carregados com festim, soltando uma espessa fumaça branca e causando um grande estrondo. Em seguida aparece na tela a apresentação do Xaxado por um grupo de jovens, lindas meninas vestidas de Maria Bonita e rapazes caracterizados de Lampião. Arrastam os chinelos de couro em passos variados, embalados por uma música tão pura em suas raízes que chego a apertar os olhos para conter a vontade de chorar. Cai a noite e as barracas, todas iluminadas por candeeiro, exibem comidas típicas, artesanatos, chinelos e chapéus de couro no estilo dos cangaceiros. 127
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Até aqui vai tudo bem, mas eu não achei ainda uma desculpa para interromper a exibição deste filme. Então seja o que Deus quiser. Agora a tela mostra um palco, onde se apresenta uma banda local de forró e uma morena alta, de cabelos negros, pernas grossas e cintura fina, anima a rapaziada cantando e dançando sobre o tablado. Ela usa um colant verde com um brilho metálico, uma saia rodada de bailarina e debaixo do palco tenho a visão privilegiada de detalhes do seu corpo, então usando o Zoom de 140X da filmadora, dou um close na melhor parte e acompanho por um longo tempo o rebolado e o sobe-e-desce da sua coreografia. Encontro com o professor Danilo e passo a esmiuçar a vida de Walkíria perguntando o que ele sabe sobre ela, se ela tem namorado, por onde ela anda e na longa conversa ele passa a narrar suas participações nos arranjos das menininhas da cidade com os comerciantes. Fala dos conselhos que dá a elas e das armações que fazem para dar certo os encontros complicados entre homens casados e menininhas conhecidas. Deles que os encontros acontecem fora da cidade em carros separados para se encontrarem em Serrinha, Feira ou Salvador. Entre indignado e curioso pergunto se ele próprio mantém relação com estas meninas que ele afirma comandar e ele diz que sim, mas apenas uma, no máximo duas vezes, o suficiente 128
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para conhecer o seu modo de trabalhar e poder aconselhá-las e na medida para não se apegar afetivamente para não prejudicar o comércio de seus corpos. Conta que quando alista uma virgem normalmente convida um amigo a iniciá-la, assim não gera nenhum motivo de cobrança e ainda dá esse prazer a alguém que ele gosta. Pergunto ainda se suas alunas constam nesta sua lista e ele me responde com um sorriso irônico que quando tiver plena confiança em mim há de me contar coisas que terei dificuldade em acreditar, inclusive de gente muito próxima a mim, talvez insinuando algo sobre Isabela ou Márcia. Diana, percebendo meu embaraço, chama a atenção de todos para ela, procurando desviar os olhos das cenas sensuais, quase eróticas da dança e passa elogiar a filmagem, depois a ornamentação, já faz planos para a festa do próximo ano e o forró parece que nunca vai acabar... Durante o jantar, as perguntas básicas de qual o impacto ambiental que causa a abertura de uma mina, o que existe de concreto nas pesquisas e como este é um assunto que naturalmente eu domino, me empolgo e falo dos processos de pesquisa, estratégias, recursos e o repórter satisfeito fala que vai publicar tudo em seu jornal. Perdi a graça da festa com essa notícia. Fico apavorado e tempos depois vou procurar o repórter no seu quarto, na mesma pousada em que estou 129
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hospedado. Imploro para que ele não publique nada, pois não tenho autorização de falar em nome da empresa e não posso medir até que ponto essas informações são sigilosas. Tento negociar com ele a troca da reportagem por a teoria brilhante que desenvolvi sobre Triunfo que pode gerar uma corrida de turistas para cá. Explico: Se existem pelo menos duas crateras em Triunfo que foram formadas por queda de meteoritos, significa que esta região tem um magnetismo maior que os outros lugares, sendo, portanto um lugar místico, digno de uma grande promoção de turismo místico - ecológico para a região. Ele agora finge interesse por essa história, eu vou rapidamente ao meu quarto e pego os papeis com o perfil, as tabelas, as análises e retorno e passo para o repórter cópia do material que tenho e ele recebe tudo e coloca sobre o criado-mudo sem dar muita importância. Temo as conseqüências dessa matéria, pois posso ser demitido por violar o contrato de sigilo e espero ansioso a chegada do jornal no hotel. Isabela e Sheila tomam cerveja e se divertem enquanto eu toco aquele curto repertório em meu violão coreano. Minha casa fica no extremo leste da cidade e sentada na janela da sala está Walkíria, a única que presta atenção nas músicas e sempre tece grandes e incentivadores elogios a mim que na verdade 130
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estava me apresentando para ela. Ela está alegre e como sempre irrequieta, sacudindo os braços e as pernas, quando de repente perde o equilíbrio e lentamente em desespero passa a se contorcer tentando recuar, mas seu peso a gira para o lado de fora. Jogo o violão sobre o sofá e correndo chego até ela e seguro de qualquer jeito e com descomunal esforço, a trago de volta ao equilíbrio. Ela desceu sem graça e desapareceu para o fundo da casa. Algum tempo depois, vou a seu encontro e ela acusa-me de ter me aproveitado da situação para afagar suas nádegas. Ora, até então minhas carícias se resumem ao seu rosto e suas mãos. Fico pasmo e incrédulo. Mas me desculpo. Falo que não tinha nenhuma intenção e ela ainda retruca, falando que só ficará comigo até enquanto eu respeitála. Logo ela voltou a sorrir, ligou o computador e fez um desenho bem infantil com uma lua sorrindo, escreveu embaixo “Lembre-se de mim quando olhar a Lua” e colocou no papel de parede do computador. Exausta do dia recolhe-se a um merecido descanso do seu corpinho maravilhoso, envolta em um lençol sobre a minha cama. Agora tudo é silêncio e eu fico a uma certa distância admirando a cena onde a pequena dorme e seus cabelos em ondas se confundem com o lençol. Nenhuma malícia existe em meu pensamento, apenas o carinho e a felicidade plena.
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Temendo que Netinho, o playboyzinho tatuado, acabe por conquistar Walkíria, chamo Márcia e forço a situação para que ela faça companhia a ele. Imploro a Walkíria que ela não vá às festas de largo. Saio com ela à noite e assistimos juntos na praça às apresentações das primeiras bandas sobre os trios elétricos e às 23:00 horas a deixo em casa. Às 4:00 horas da manhã Márcia chega em casa trazida por Netinho, dizendo que deixaram Walkíria ainda na praça à espera de mais uma bandinha que há de se apresentar. Ainda à tarde Walkíria dorme e espero ansioso que ela apareça para que mesmo me sentindo sem nenhum direito reclame dela ter ficado com o tal cara na festa. Como ela não aparece, procuro o seu pai e explico a ele que eu também estava incomodado com a presença do rapaz e que jamais ajudaria ou permitiria o namoro dos dois. Pedi que ele continuasse a confiar em mim, pois eu a trato como se fosse ele próprio. Este papel foi meio ridículo, mas talvez sirva para manter a aproximação conseguida a custo de muito trabalho. Danilo em tom de fofoca vem me dizer que Walkíria está nesse momento no hotel Ouro Branco com o tatuado Netinho. De fato ele pegou hoje cedo sua mochila, agradeceu-me pela hospedagem e disse que já tinha encontrado outro lugar para ficar. Fiquei aliviado, mas pensei que ele tivesse ido para a casa de 132
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algum amigo ou parente e não imaginei que ele tivesse condições de pagar hospedagem em um hotel. Essa insinuação de Danilo me deixa deprimido, com uma sensação de mal-estar doentio. A cabeça dói muito e aumenta a cada passo pesado que apresso agora em direção ao Hotel Ouro Branco onde segundo ele Walkíria estaria com Netinho. De fato estão lá como que se despedindo na recepção, Netinho, Walkíria, Márcia e Sheila. Dominado pelo ciúme aproximo-me furioso deles. Caminho apressado até a garagem do hotel onde guardamos nosso material de trabalho e Jurais me espera. Ele chegou de Araci trazendo um pequeno caminhão para transportar amostras de solo coletadas aqui em Pernambuco para o laboratório de Belo Horizonte. Como temos urgência de receber os resultados analíticos dessas amostras, resolvemos carregar o carro ainda hoje para amanhã logo cedo seguir viagem. Calculamos mal o tempo para organizar as amostras, ensacá-las em volumes passíveis de levantar e colocá-las no caminhão, entrando pela noite nessa labuta.
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Capítulo 11 Em algum lugar estava escondido o repórter e fotografou o caminhão saindo carregado à noite e estampando em destaque a manchete da capa: “Mineração Rio Vermelho rouba minério na Paraíba”, “Transporte de minério é roubado à noite por ordem do governador da Bahia”. Consegui o dito jornal com o pessoal da pousada Baixa Verde em Triunfo e nele não existe nenhuma palavra do que eu falei. Aumenta minha revolta quando vejo na página central minha foto com a cara embirrada trabalhando em uma trincheira e em letras grandes na página central: “Mineração Rio Vermelho invade terras” Uma foto de Rogério, um morador do local segurando um recibo de indenização por danos causados por nós em sua lavoura e a frase atribuída a ele: “Um homem chamado Carlos Alberto me obrigou a assinar esse documento”. No dia seguinte fui à casa de Rogério para saber qual a queixa que ele tinha contra nós a ponto de levar a público daquela forma. Ele falou que o jornalista havia chegado com essa história de invasão e pediu para ver os papeis que nós tínhamos deixado e pediu que ele posasse para uma foto segurando o tal documento. Fez-se inocente, mas mesmo que ele tenha acreditado na conversa de invasão, pude perceber claramente que se uma notícia não dá Ibope, o próprio jornalista inventa uma situação sensacionalista para 134
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causar impacto em seu furo de reportagem, não importando as conseqüências por mais danosas que sejam. Bom, pelo menos Walkíria está com Márcia e Sheila. Preciso controlar meu ciúme, afinal talvez seja Márcia que tem algo com ele. Aproximo-me e fico escondido na esquina ainda desconfiado que possa estar rolando alguma coisa entre eles. Walkíria apenas recebe um embrulho pequeno, guarda em sua bolsinha jeans quadrada que tem uma enorme alça de cordão e saem. Fico aliviado. Nenhum beijinho na despedida. Aniversário da cidade. Novamente os trios elétricos tomam posição e a população se alvoroça. Acabam-se os compromissos, responsabilidades e considerações. Agora tudo é festa. Saio com Walkíria para ver o movimento, mas ela está todo o tempo abraçada com um garoto que ela diz ser seu primo e a todo momento some me deixando sozinho, retorna, conversa um pouco e some novamente na multidão. Em um dado momento eu a surpreendi piscando o olho esquerdo lançando um beijinho para este garoto. Fico achando estranho e enciumado, pois esta brincadeira ela fazia comigo e eu sempre pensei que fosse um privilégio exclusivo meu.
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Lá pela meia noite encontro com ela e sugiro que é hora de ir para casa, mas ela se nega a ir e demonstra que a festa está apenas começando. O caminho de volta até o carro tem os mesmos obstáculos da vida, mas acrescenta-se agora o desgaste da labuta de todo esse dia. Tocos, pedras escorregadias, cipós que engancham nos pés, profundos cortes do garimpo. Esse garimpo de ouro foi muitas vezes palco de guerra. Os fiscais do Departamento de Produção Mineral que ousavam vir aqui eram recebidos a bala. Com muita diplomacia consegui com Chico, que é vereador, comerciante, líder comunitário, namorador e chefe dos garimpeiros, a autorização para fazer pesquisa na região. Afundando estrada adentro pelos garimpos, ao lado esquerdo vemos as escarpas que à distância se faz uma bela paisagem, mas de perto é um precipício inescalável e perigoso. Num final de tarde, depois de caminhar desde as sete horas da manhã, Juraci e eu chegamos à beira deste precipício. Podíamos dali ver o carro, mas sendo a encosta intransponível, teríamos que voltar e fazer um arrodeio de mais de três quilômetros saltando os blocos de granito e sobre as pontas de pedra grosseiras e afiadas como um serrote. Nos entreolhamos, baixamos a cabeça e sentamos desanimados, quase sem conter o choro. Recuperados da desagradável surpresa, 136
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resolvemos cair no mato, abeirando o precipício e depois de uma boa caminhada voltando, em um lugar menos íngreme, começamos a descer, escorregando pela encosta, nos segurando nas plantas e fomos parar no fundo do vale, onde ainda teríamos de subir uma enorme serra para chegar ao carro. Lá pelas sete horas da noite, chegamos à casa onde o carro estava e a moradora, que viu a hora que saímos, exclamou admirada que éramos loucos. Existe agora uma cruz deitada sobre o terreiro e pergunto se vão fazer uma igreja ou coisa parecida. A senhora me fala que seu marido irá amanhã colocar esta cruz sobre a pedra redonda. Ao lado direito aparece imponente um dos monumentos naturais mais impressionante que já vi. Uma enorme pedra se equilibra sobre o cume de uma montanha. Uma das nossas picadas passou bem ao lado desta pedra e eu pude maravilhado, apreciar o poder da natureza. Um bloco de pedra oval de dez metros de altura por uns seis metros de largura pende no topo da serra e sua base é apenas uma pequena superfície com menos de um metro, apoiada no granito, dando a impressão que está totalmente vulnerável, mas alguns malucos já tentaram derrubá-la com alavancas, cavando sua base e ela nem chega a abalar. Isabela está abalada. Ela percebe que eu estou disperso, sempre com o pescoço esticado, olhando para 137
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um lado e para outro, preocupado, naturalmente com outra pessoa, mesmo assim, deixo-a sozinha e aborrecida em uma barraca qualquer e saio mais uma vez em busca de Walkíria. Desapareceu na multidão. Lucinha está se acabando de dançar, toda suada e com sua roupinha devassa. Pergunto por Walkíria e ela diz que viu a pouco, mas agora não sabe mais onde ela se encontra. Pergunto pelo rapaz que está com ela e Lucinha fala que é Alex, um dos que participaram da curra. Amanhã é domingo e não tenho tanta coisa a fazer no trabalho então pergunto se ele aceitaria minha ajuda e a senhora chama seu marido e nos apresenta. Um jovem de uns trinta anos, simples, mãos calejadas, católico e de aparência tranqüila. Raimundo sabe que não conseguiria levar a cruz até lá sozinho e já tinha convidado alguns amigos, mas quanto mais pessoas melhor e eu seria muito bem vindo. Rolo na cama em agonia até que por volta das duas horas da madrugada, checo se Isabela está dormindo e saio à rua para descobrir onde Walkíria está e ver o que ela anda fazendo. O número de pessoas nesta festa parece reduzido, pois não há aglomerações maciças e as pessoas estão dispersas, gerando grandes falhas em meio aos fuliões. Abeirando a praça tentando me esconder das pessoas conhecidas, acho quem 138
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procuro rapidamente, só que há um tumulto enquanto as pessoas correm para longe, me aproximo para entender o que está acontecendo. Alguns policiais estão efetuando a prisão de um camelô quando um garoto intercede acusando-os de injustiça e abuso de poder, no que eles respondem a cassetetes. Ninguém menos que Alex. Quem vem em socorro agora é Walkíria. Um dos policiais fala para ela não se aproximar, pois senão será levada também. E o garoto é empurrado para o fundo do camburão junto com o camelô bêbado e enlameado. Agora, segundo o costume, só sairão terminada a festa, ou seja, daqui a dois dias, terça feira pela manhã. Sete horas da manhã e uma pequena procissão desce o vale que leva até o pé da montanha da pedra redonda carregando sobre os ombros a pesada cruz. Descer a ladeira é fácil e todos sabemos que a subida será uma verdadeira penitência. Percorremos a estrada sinuosa ouvindo contos hilários, piadas, gozações, mas a solidariedade é constante. Há sempre o revezamento principalmente dos homens que caminham à frente, pois esses levam o maior peso e ainda são empurrados pela força resultante da gravidade agindo sobre a cruz. No vale depositamos a cruz no chão, sentamos todos e o sacrifício iminente da subida cria a reverência pela tarefa que temos à frente. Agora silenciosos levantamos e em passos lentos iniciamos a subida. O silêncio é quebrado pela buzina do Jeep que pára na 139
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estrada à beira do caminho que cruzamos a pouco e Chico desce do carro velho e grita “o geólogo, o geólogo”. Deve ser algo importante para que ele venha tirar-me da minha devoção. Chico me procurou para fazer uma denuncia acompanhada de uma ameaça. O garimpo está cheio de baianos vindos de Santa Luz, portanto sendo eu de lá sou o responsável por essa invasão. Fala então que nós perderemos o livre acesso à região, que a custo de muita diplomacia tínhamos conseguido. Peço-lhe que não se precipite e dê-me detalhes e que caso tenha realmente acontecido essa migração, talvez alguma coisa possa ser feita para tirá-los daqui. Peço para ir até o local onde eles se encontram e Chico pede que eu o siga. O Jeep sai levantando poeira e eu sigo atrás na Toyota descendo ladeira e subindo ladeira, curva pra lá e curva pra cá e eu mergulhado em pensamentos e temores, sempre fui de improvisar, mas como improvisar diante de uma situação delicada dessas. Numa região de graves conflitos viro pivô de um confronto de garimpeiros. Mas quem são estes invasores? Serão conhecidos? E quem os trouxe? Chegamos finalmente no garimpo. Barracos feitos de varas com paredes de palha. Pequenos moinhos barulhentos trituram pedras enquanto carinhos de mão são empurrados para montes de rejeitos, outros seguem em direção aos cilos. Homens tomam banho na barragem de água avermelhada pela lama e com 140
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certeza contaminada de mercúrio. Dentro das barracas em camas feitas de varas trançadas, duas ou três sobrepostas em cada parede, dormem ou descansam homens musculosos e enlameados. Na boca do corte um dos sarilheiros imitando um locutor fala da rádio Pirangi. Achando familiar o nome da rádio, pergunto se ele é potiguar e ele responde afirmativamente. Pergunto ainda a quanto tempo ele está aqui e ele melancólico responde que há três anos tenta juntar dinheiro para voltar para casa, está sempre devendo e tem que trabalhar primeiro para pagar a dívida que tem com o patrão para depois conseguir o dinheiro de voltar. Aproximo-me de Walkíria e falo firme que agora ela vê o que está ganhando em ficar até uma hora dessas na rua, na ressaca da festa, onde só restam os bêbados e drogados. E ainda na companhia de um mau elemento como este tal de Alex, que mostra quem é a ponto de ser preso. Ela responde simplesmente que a festa acabou para ele, mas não para ela que está “com todo gás” e volta para o meio da “galera” ignorando totalmente minha exótica presença naquele lugar, naquela hora. Deixo a moto na praça, um lugar insuspeito e vou à casa de Walkíria. Ficamos namorando no hall escuro quando Sheila aparece e nos surpreende em um 141
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beijo. Indignada ela passa a me repreender, dizendo que não esperava isso de mim, que está decepcionada e mais um monte de baboseiras. Eu a conduzo para uma distância segura da casa de Walkíria e retruco falando que ela já sabia de tudo. Ela diz que saber é uma coisa, mas ver acontecer já a torna cúmplice e ela na verdade estava procurando ter certeza do fato. No meio do bateboca Walkíria desaparece. Quando consigo me desvencilhar daquele papo desagradável, vou até a porta de sua casa e fico aguardando a uma certa distância. Como ela demorou eu resolvi chamá-la, mesmo correndo o risco de seus pais estranharem. Com uma desculpa esfarrapada ensaiada, bato na porta. Depois de uma agonizante demora, sua mãe sai com cara de sono e me informa que ela tinha ido para a festa de largo e saíra pela porta dos fundos. Pressenti que algo de pavoroso estava para acontecer e que eu não devia procurá-la. Vou para casa e deito-me ao lado de Isabela que em meio ao sono instintivamente passa o braço sobre meu corpo entorpecido pela angústia. O barulho do trio chega à minha alcova como uma tortura. O sono é um sonho distante. A agonia apodera-se de mim como chamas ardentes a devorar minha alma. Na madrugada negra, sorrateiro qual um condenado que se desfaz dos grilhões, mas precisa desvencilhar-se das correntes sem despertar o 142
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carcereiro, rastejo sobre os lençóis em direção à beira da cama, com tal sacrifício que mais parece uma longa caminhada a percorrer entre cipós e espinhos do que os poucos centímetros que me separam do abismo profundo que escorrego descendo até o chão. A consciência é um pesado fardo que preciso arrastar até a porta onde cada degrau que desço é como se pesados portões de grossas barras de ferro fossem se fechando atrás de mim impedindo o meu retorno enquanto ao meu lado garras vorazes lentamente se estendem e se fecham ameaçando destroçar minhas costas, conduzindo-me em angústia à ladeira que descamba até a escuridão da rua. O coração disparado dita o ritmo da caminhada e desço pelo calçamento disforme, sujo e esburacado. Como uma tortura ouço vozes em algazarra, gritos e gargalhadas e entre elas distingo uma voz rouca e conhecida. Ela está ali. Um tablado cerca uma construção de mais uma pista de dança aberta ao negro céu. Transpondo o portão entreaberto desço ao canteiro de obras a fim de surpreendê-la em sua demente aventura. Mas, surpresa maior e mais desagradável que testemunhar a ignóbil traição é ter a vida ameaçada em meio ao patético papel de caçador de amargura. Na penumbra, como um terrível demônio empunhando um ameaçador tridente, lento e rancoroso o vigia da construção caminha em minha direção apontando um rifle. Com o rosto contraído em pavor 143
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enxergo um buraco na cerca rente ao chão e abaixo-me arrastando-me pelo chão para sair da propriedade privada e achando-me livre, olho para o grupo que passa em lasciva alegria e constato que não estou livre. Ela não está ali. Estou ainda preso à desesperada busca em testemunhar a jocosa vida profana de Walkíria nas madrugadas gélidas nos termômetros e ferventes nas repulsivas orgias infantis. Continuo descendo a encontro da dor com a tênue esperança de ser resgatado pelo milagre da ilusão de que tudo não passa de falsas impressões e fruto da minha imaginação. As vozes sarcásticas não seriam os terríveis garotos em fortuitas investidas contra a minha pura e inocente namorada. Não, não é o que acontece. Meti-me na multidão e a angústia apoderou-se de mim, quando vi próximo ao palco ela em destaque sentada à montaria sobre o pescoço de um sujeito qualquer, esbanjando alegria. Atônito caminho por entre a multidão eufórica, alheia ao meu sofrimento, e quando me aproximo, ela já está escandalosamente dançando forró, mexendo, se esfregando e se agarrando com tal volúpia que eu enxergo como um verdadeiro ato sexual em público, só que vestidos. Espero de longe angustiado que se separem e tomado pelo desespero, flutuo até ela e a puxo para dançar. O sujeito ao ver-nos juntos dirige a mim um insulto,
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separa-nos num empurrão e ela novamente se joga em seus braços e sai rodopiando. Entrego-me novamente ao abandono. Depois de cinco dias sem comer, sem dormir, a debilidade me toma de tal forma que meus pais e irmãos sabendo da situação se deslocam de Campo Formoso em meu auxílio. Perguntam o que está acontecendo comigo, mas não tenho coragem de expor o real motivo da enfermidade e argumento que é estresse talvez do trabalho. Meu pai esperou a oportunidade de ficarmos a sós e me surpreendeu com os comentários. Falou que aquela garota não servia para mim, que foi apenas uma diversão, que eu preciso colocar a cabeça no lugar e mais um monte de conselhos que eu não queria ouvir. Até então eu imaginava que ninguém sabia desta história, principalmente o pessoal de Campo Formoso. Procuro então Márcia para sutilmente sondar o que ela sabe sobre isto. Ela aproveita a oportunidade e desabafa chorando dizendo que nunca esperava que uma coisa destas pudesse acontecer logo com o seu pai. Naturalmente tomar consciência de que todos sabem de tudo só faz piorar a minha condição, pois além de todas as dores, acrescento agora a vergonha. Walkíria sabendo da grave depressão que me acometeu vem visitar-me e encontra um farrapo de gente jogado em uma cama com seis quilos a menos e sem vontade de viver. 145
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Só a ela pude desabafar, explicando que estava naquela situação por causa da sua recusa e da cena vista e vivida na famigerada festa. Recebi como consolo, a informação que eu não sei dançar como seus parceiros, afinal Lambada não é a mesma coisa que Forró e fechou com chave de ouro a sua ajuda para a minha recuperação, dizendo que eu preciso procurar um psicólogo. Diferente de como imaginei nosso encontro depois deste doloroso episódio da festa e seu infame comentário, mesmo arrasado, olho em seus olhos e sinto um carinho sem medidas. Eu me surpreendo comigo mesmo com os meus sentimentos. Com as convicções que sempre tive de não admitir traições e endurecer imediatamente o coração ao menor sinal de desprezo, agora olhando em seus olhos, sinto que todo o sofrimento não apagou o carinho. Isabela tem cuidado de mim com dedicação. Penalizada ela se mostra muito segura de si e tranqüila. É como se ela soubesse de tudo e sente-se vingada. Fico observando a maturidade de seus atos, o entrosamento com meus familiares e ela assume as tarefas domésticas com a naturalidade dos tempos em que vivíamos bem. Como é diferente da irresponsabilidade, descaso, brutalidade e frieza de Walkíria. Quando Isabela sai, eu sinto falta de sua companhia e aumenta a amargura causada pela dor do 146
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ciúme que disputa espaço com uma paixão descabida dentro de um mesmo coração esfacelado. Chico me chama de volta ao nosso problema, mostrando outro garimpeiro, Neném, o que perdeu todos os dedos da mão direita num acidente com dinamites, mas que atira com a mão esquerda como ninguém. Um carro novo está estacionado e ele está esbravejando com um rapaz vestido elegantemente que o ouve encarando com uma tranqüilidade irritante. Quando me aproximo o rapaz vira o rosto para meu lado e finalmente eu o reconheço. Pedro. Já trabalhou conosco na pesquisa e saiu por ter sido preso acusado de assassinato de duas pessoas em assalto de um carro e uma moto em Santa Luz. Ele sorri mostrando que me reconheceu e, satisfeito, se dirige a mim como se eu fosse o salvador da pátria. Isabela aparece alvoroçada dizendo que Márcia está hospitalizada. Segundo contaram ela havia tentado suicídio tomando um medicamento controlado. Enquanto caminho apressado para o hospital que fica bem próximo a minha casa, procuro imaginar o que pode ter levado minha filha a cometer essa loucura. Acho que o fato dela ter descoberto o meu sentimento e sofrimento por sua amiga não a levaria a essa insanidade. Mais provável é por eu ter descoberto seu boletim recheado de notas vermelhas e por eu ter 147
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fechado a cara para ela. Chegando ao quarto hesito um pouco na porta receoso de ver sua situação, mas respiro fundo e finalmente entro de supetão. Ela está deitada, envolta nos lençóis brancos e gastos. Pálida, mas sorridente, o que me deixa bastante aliviado. Danilo está ao seu lado e não interrompe a sua conversa. Está falando de Walkíria, acusando-a de usar crak e maconha fornecidos por Netinho que usa o hotel como ponto de distribuição. Peço que Márcia confirme a veracidade dessa conversa e ela hesitante dá uma resposta vaga, sem muita clareza. Preocupado despeçome de Márcia com um aceno e saio à procura de Walkíria para apurar os fatos.
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Capítulo 12
Procuro Walkíria para dar-lhe uns conselhos e arrancá-la desse meio enquanto há tempo, mas ela nega qualquer envolvimento com drogas e diz com firmeza que eu posso ficar tranqüilo e despreocupado. O que então ela estaria fazendo lá no hotel tantas vezes? Seria comprando drogas? Não, não é possível. Ela nunca tocou nesse assunto nem deixou transparecer nada que viesse a indicar algo nesse nível. Ela é espevitada e gosta d e dançar, mas nem cerveja ela toma. O irmão dela é envolvido com isso, mas ela já me disse que é uma terrível experiência conviver com uma pessoa assim e que ela nunca iria querer isso para si. Netinho lhe entregou alguma coisa no hotel, mas se era droga, talvez ela estivesse levando para alguém, quem sabe seu irmão. Neném não está pra brincadeiras. Empurrou Pedro para dentro do carro e outros garimpeiros rodearam os dois fazendo com que outras duas pessoas também entrem no carro. Tranqüilamente ele manobra o carro na estrada íngreme e estreita, abre o vidro e estende a mão para mim e fala em um tom que não consegui definir se ameaçador ou amigável, que nós nos veremos em Santa Luz e desaparece na poeira da estrada. 149
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Chico fala que o problema por enquanto está resolvido e vai ficar tudo como estava, mas caso aconteça outra invasão nós pagaremos as conseqüências. A informação tinha sido passada pelo nosso cozinheiro que tinha saído de folga para Santa Luz e teríamos também que despedi-lo. Final da tarde, ao passar de volta, olho para cima e vejo que a cruz já está instalada. Sempre que Lucinha se mete em alguma atrapalhada envolvendo dinheiro me aparece com uma “bomba”, uma novidade quentíssima. Dessa vez deixou-me deveras preocupado. Mostrando-se amiga e solícita, preparou-me o espírito, muito mal preparado, diga-se de passagem, e falou que ficou sabendo de fonte segura, mas não revelada, que Márcia, na verdade não havia tentado suicídio e sim tomado algum medicamento para abortar. Manuel mostra-se agora a pessoa mais entusiasmada que eu já conheci. No trabalho é sempre animado e confiante. E falando em noitada, é que temos o verdadeiro exemplo do que é ser feliz. Com menos de um mês aqui, ele já conhece todos os bares e recantos da cidade. Essa noite convidou-me a ir a uma festa que promete ser inesquecível. Apresso-me, pois está marcada para as dezenove horas. Que festa é essa que 150
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inicia às sete da noite? Mais estranho ainda é o ambiente. Um salão de beleza. Nele trabalha uma morena de corpo escultural. Muitas vezes acompanhei deslumbrado seu discreto rebolado quando ela saia do trabalho ao final da tarde e passava em frente ao Plaza Hotel, sempre séria e recatada. Mas hoje, quarta-feira ela está aqui e continua séria e recatada. A proprietária do salão é uma jovem senhora casada com um pequeno comerciante da área de construção e equipou seu salão com um computador de ultima geração que simula cortes e penteados sobre a foto da cliente tirada ali mesmo. Montanha, o único que consegui gravar o merecido nome, pois é bastante alto e forte, é o cabeleireiro. E por ser cabeleireiro de um salão basicamente feminino, estou supondo que seja gay. Tem um outro funcionário do salão que não disfarça sua opção sexual. Sacode os braços pára o alto ao falar, anda todo espalhafatoso e é bastante divertido. Esta é a equipe que faz as honras da festa, mas os convidados bastante especiais, hoje estou incluso dentre eles, são escolhidos com rigor pelos anfitriões e a ala feminina é composta de clientes, todas casadas e acima de qualquer suspeita que escolhem um dia na semana entre terça e quinta a combinar, para sair da rotina. As portas são cerradas, as luzes do hall e da recepção são apagadas, todos se dirigem para os fundos onde Led Zepelin faz soar as cordas de sua guitarra. Aos que gostam de whisk, o whisk, aos que gostam de cerveja, 151
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a cerveja, aos que gostam de baseado, baseado, aos que gostam de uma carreirinha, a bandeja está pronta e entre esse seleto grupo há até quem prefira refrigerante. As coisas acontecem rapidamente, como que predefinidas. Danças, gargalhadas, beijos e cantinhos discretos para momentos mais íntimos. Às 21 horas o grupo aos poucos se dispersa. Despedidas daqui, despedidas dali e de agora em diante ninguém mais tem intimidade com ninguém. Todos são meros conhecidos de oi, oi. Restamos apenas Montanha, Manuel, o gay deslumbrado e eu para guardar as garrafas, lavar os copos, varrer a casa e transformar tudo novamente em um salão de beleza totalmente imparcial e sem nenhuma memória do que fora uma noite de pesada sessão de Sexo, Droga e Rock and Roll... Sobre a pia jaz esquecido um pequeno pacote plástico com um pó branco que não preciso nenhuma experiência anterior para concluir que isso é o resto de um papelote de cocaína. Disfarçadamente jogo o saquinho em meu bolso. Peço a Isabela para confirmar se é verdade que Márcia havia tomado droga para abortar e ela responde acusando-me de pai ausente e desnaturado. Culpa-me por ter empurrado Márcia para cima de Netinho e fala que desde então suas notas estão péssimas no colégio. Mostra a quantidade de convites para reuniões de Pais 152
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e Mestres que eu me negava a ir ou ignorava. Acusame de ter concentrado as atenções apenas em Walkíria e entregar a esposa ao abandono e a filha à devassidão. Prostro-me ao chão arrependido e amargurado e pergunto se há ainda algo que eu possa fazer por Márcia. Isabela diz que não tem autoridade sobre ela, pois se eu como pai não me importo com o seu comportamento, ela como madrasta e quase que com a mesma idade nada pode fazer, mas com certeza minha intervenção será necessária e decisiva. Reunimo-nos para definir as providências a serem tomadas diante da nova situação. Manuel foi transferido para Belo Horizonte e Michelle assumiu a coordenação dos trabalhos. Michelle era uma das pessoas que eu mais admirava pela determinação que lhe levou a vencer na vida. Menina simples do interior da Bahia traz as marcas dos trabalhos na roça, marcas de cortes com facão, cicatrizes dos arranhões de espinhos e estrepes e até uma pequena mutilação na unha do dedo causada por uma enxada. Conhecendo que esta vida sofrida podia ser mudada, se empenhou nos estudos, fez um curso técnico de Mineração em um colégio mantido por uma empresa da região e conseguiu poupar praticamente todo o dinheiro ganho no estágio, com o qual passando muitas privações, financiou a Faculdade de Geologia. Agora a glória lhe subiu à cabeça. 153
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Enxerga más intenções em todas as ações, colocou espiões em todos os lugares, dividiu os funcionários em castas, exige o melhor carro à sua disposição, mesmo que não vá a lugar nenhum, persegue as empresas contratadas a ponto de causar falência de pequenos prestadores de serviço. Procuro Márcia, pergunto por sua vida, seus amigos, sobre o uso de drogas, sobre o colégio e ela mansamente conta todas as aventuras e desilusões sofridas pelo desamparo familiar. Conta que participou de ritos satânicos com a turma do rock, usou drogas, sim, mas não o suficiente para tornar-se viciada ou dependente. Havia perdido o estímulo pelas aulas. No entanto, garante que há tempo de corrigir todos os erros. Facilmente se desligará daquela “galera barra pesada” e voltará a estudar com grande chance de ainda passar sem precisar de provas de recuperação. Ela relutou bastante quando exigi que parasse de usar aquelas roupas devassas, como saias e shorts muito curtos e blusinhas que deixam a barriga e as costas totalmente nuas, mas mudou de idéia quando prometi comprar roupas novas, só que agora mais compostas. Domingo e o sol nordestino brilha impiedoso sobre nossas cabeças. Os últimos dias foram desgastantes para mim e hoje decretei feriado. Combinei com uma professora que conheci aqui, de 154
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irmos a um açude nas proximidades. A professorinha vem chegando acompanhada de duas de suas alunas. Uma tem um corpo escultural e o rosto nem tanto. A outra é uma morena novinha com o rosto lindo, mas com uns excessos laterais. No entanto a companhia está perfeita, afinal, a nossa intenção é somente de fazer turismo e espairecer para curar o estresse. Entramos todos na Pickup, eu, Juraci e as meninas vamos saindo rumo ao tão falado açude. O barulho do carro abafou a gritaria, mas alguém de fora sinaliza e eu paro o carro e me volto para ver o que está acontecendo. Michelle aproxima-se da janela com uma inacreditável estupidez. Foi abrindo a porta e expulsando as garotas de dentro, chamando-as de prostitutas e dizendo que o carro era apenas para trabalho. Tentei argumentar alguma coisa, mas ela, irredutível, arrancou as chaves da minha mão. Sentamos sob as frondosas árvores da praça da rodoviária e as meninas que se mantiveram caladas durante os insultos, agora estão exaltadas, prometendo esganá-la. Mesmo angustiados, resolvemos manter a programação. Alugamos uma velha Saveiro e compramos refrigerantes e bolachas. Eu e a professora vamos dentro do carro e Juraci e as duas meninas vão em cima.
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Muitos carros estão estacionados numa área desmatada ao lado de um bar onde ecoa a toda altura músicas de bandas de forró. À beira do açude a animação dos jovens que dançam, bebem e pulam na água. Dois rapazes afastam-se muito da praia pedregosa nadando em puro ato de exibicionismo às meninas morenas de cabelos crespos que mergulham e banham-se com biquínis gastos ou shorts e camisas de malha molhadas que se tornam transparentes deixando à mostra o contorno dos seios jovens. A paisagem não está tão agradável como poderia ser, caso não houvesse a intervenção da bruxa. Falando nela, por absurdo que pareça, acaba de chegar aqui na mesma Toyota confiscada e acompanhada de seu amante drogado que ela trouxe de Triunfo e hospedou no hotel arrendado por nós para servir apenas os funcionários da empresa. Esta humilhação é demais para mim. A ira vem à flor da pele. Não tenho bebido, mas hoje será diferente, pois só assim esqueço essa humilhação. Bebo com uma sede insaciável e agora afloram todas as mágoas adormecidas, as humilhações por que passei e principalmente a meta injusta de 4.000 metros de levantamentos diários de Magnetometria nestas perambeiras que me causou um problema no joelho que por vezes até me impede de subir escadas. Estou anestesiado pela bebida e sinto que os reflexos estão comprometidos. Passo então as chaves a Juraci que 156
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conduz o carro de volta à cidade. Venho sentado em uma cadeira de vime, sacudindo os braços, cantando e praguejando contra os desmandos de Michelle. Chegando ao hotel, já revoltado ligo para Walkíria pensando em ouvir sua voz e me sentir melhor e ela se nega a falar comigo. Diz que tem algo sério a falar, mas só quando eu retornar. Peço à professora para ligar novamente, agora sem se identificar e depois passar o telefone para mim e elas conversam entre si, mas ela devolve o telefone dizendo que não entendeu nada da conversa e que ela não vai querer falar. Logo em seguida meu celular toca e Walkíria me enche de liberdade, ofendendo-me de todas as formas, me acusando e atribuindo a mim outras ligações anônimas para ela. Revoltado agora com a vida, vou ao escritório e fico olhando o mapa que é produto do trabalho de três meses de levantamento, única cópia existente. Arranco-o da prancheta, rasgo e jogo no chão. Agora estou vingado dessa maldita geóloga. Logo que ela estaciona o carro e coloca a chave no quadro, uma tábua com grampos onde dependuramos as chaves dos carros e das cancelas das fazendas por onde trabalhamos, pego a chave e saio passeando vagarosamente pela cidade. Logo a cidade fica pequena para espairecer a minha ira, então já anoitecendo, rumo à cidade vizinha de Ibiara. Há uma festa na cidadezinha e a praça está repleta de gente e barracas. Duas mulheres com cara de meretrizes de 157
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baixa qualidade mesmo se engraçam e eu as chamo para me fazer companhia. Mais cerveja e mais voltas pela cidade sempre passando pela única avenida onde estão montadas as barracas. Em uma delas está Michelle e seu namorado. Ela veio reclamar porque estou com carro da empresa. Falei logo que ela também não está porque eu peguei primeiro. Depois de gritar com ela alguns desaforos e desabafos, volto a circular pela cidade e assim fiz toda a madrugada em companhia das duas prostitutas. Volto a Conceição do Piancó amanhecendo o dia. Seis horas e estão todos na frente do hotel, enquanto eu, tranqüilo, vou passando vagarosamente do outro lado da praça. Vejo a luta de Juraci espantando as galinhas da frente da garagem para tirar o carro às pressas, enquanto desapareço novamente. Quando finalmente conseguiram me encontrar entregolhes o carro e peço que me levem para casa, pois preciso dormir. Por ser muito tarde, telefono para o celular de Walkíria que fica sob o travesseiro. Sorrateiramente ela se dirige ao quintal e entre interrupções de irmão que chega, panela que cai, cachorro que pula sobre ela e mãe que vai ver o que ela faz uma hora dessas fora da cama, passo a bombardeá-la com cobranças, exigências de definição do nosso relacionamento. Falamos por 158
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mais de duas horas e entre muito choro, desespero e dúvidas, dou-lhe um ultimato, exigindo uma enorme relação de atitudes a serem seguidas ou o imediato e total rompimento do nosso conturbado romance e ela entre lágrimas, relutante, concorda em continuar. A professora aparece no hotel com uma vasilha com sorvete derretido e fala que houve um atentado nos Estados Unidos e que derrubaram o WTC. Ela insiste que é verdade. Faço uma ligação interurbana para o provedor UOL e a manchete é clara: “Não é ficção”. Corremos para a televisão a tempo de assistir ao vivo a queda da segunda torre. Ligo para Walkíria para comentar este fato e ela se nega mais uma vez a falar comigo. Ligo para minha casa e peço que alguém chame Lucinha, já que ela não tem telefone em sua casa. Espero impaciente o tempo necessário da sua chegada, ligo novamente e procuro me inteirar do que está acontecendo por lá. Lucinha me conta que Danilo falou a toda a turma de Walkíria que ela está tendo um caso comigo. Além disso ela está a todo momento recebendo telefonemas anônimos ameaçando contar tudo ao seu pai e a seu irmão. Toda turma dela se reuniu para pedir explicações e a saída que Walkíria encontrou foi assumir um namoro de última hora com um de seus pretendentes e já desfila na rua com ele. 159
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Enquanto chove aviões seqüestrados nas cabeças dos norte-americanos intensificam-se os bombardeios contra meu relacionamento com Walkíria. Ligo novamente para Walkíria e exijo que ela me diga quem é o namorado. Ela se nega a dizer e passo a falar o nome de todos que sempre suspeitei, o seu dentista, Netinho, Danilo, até que ela cita o nome, Samir, sobrinho de Adilson. Amargurado espero a hora de voltar para Santa Luz para tentar salvar a situação ou pelo menos estar perto para ter a idéia real do que se passa por lá. Desesperado, acho que a única coisa que resta fazer agora é mandar matar Samir. Procuro Santino, um conhecido pistoleiro desta cidade que já me ofereceu seus serviços e minto para ele que estou passando dificuldade, pois o Paulo, o garimpeiro invasor é um homem perigoso e ameaçou dar cabo de minha vida quando eu retornar a Santa Luz. Ele se prontificou a me ajudar. Combinamos então que eu viajo na frente e ele segue alguns dias depois, para que não sejamos vistos juntos. Lembro-me do papelote de cocaína que ainda tenho guardado comigo e em uma crise de desespero resolvo cheirar um pouco do pó e em vez de fazer uma carreirinha sobre a mesa, fiz um canudinho com um 160
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extrato do caixa eletrônico e suguei diretamente do saquinho. O pó passou direto para o cérebro como um tiro de canhão. Os olhos lacrimejam e gotas de lágrima quente escorrem do canto dos olhos. As pernas fraquejaram. Levanto os braços e uma frieza se apossa de mim. Ando pelo quarto com o corpo anestesiado e a cabeça fica pesada. Os braços passam a não responder aos comandos do cérebro. Estou tonto. O mundo começou a rodar e sento-me para não cair. Agora todo o corpo está gelado. A sensação é de calor no peito e se alastra por todo o corpo. O calor agora se concentra na nuca e a vista escurece. Já não domino mais o corpo. Vou tombando de lado vagarosamente e a cadeira tomba junto comigo. Penso: Agora o sofrimento pela perda e a dor da decepção estão resolvidos. Vou morrer... Sinto espasmos e uma ânsia de vômito, mas não tenho força para levantar. Deitado como estou, vomito sobre o piso bege do quarto e vagarosamente a claridade das lâmpadas passa a incomodar minha visão. O corpo ainda não obedece aos comandos, o peito lateja e uma sensação de formigamento passa do peito aos ombros e se alastra pelos membros. Rodo a cabeça e os cabelos se embebem do vômito fétido que emporcalha o chão. Permaneço parado sentindo a cabaça rodar, penso em pedir socorro, mas a voz também não
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obedece. Luto para manter-me acordado com medo de fechar os olhos e não mais voltar à vida. As pálpebras pesam e novamente tudo escurece e eu me entrego a um sono angustiado e sem esperanças de acordar. Mas acordei algumas horas mais tarde, já de madrugada sentindo o estômago embrulhado e ainda com as pernas bambas, improviso um balde com o cesto de lixo do sanitário e fazendo de pano de chão uma camiseta de malha, limpo a sujeira, deixando uma mancha de água no piso, despejo com nojo os detritos no vaso sanitário e com as pernas trêmulas caminho até a cama e deito impressionado, temendo ainda a morte e com os olhos vidrados no teto embaçado e oscilante Sinto todo o corpo vibrar e adormeço... O desespero e o arrependimento levam-me a desabafar com Isabela. Digo que preciso dela e peço que ela não se negue a ficar ao meu lado. Estou com medo de ficar sozinho. Choro, choro vergonhosamente e Isabela me olha com um misto de compreensão e vingança. Em meio à conversa desesperada deixo escapar o plano de trazer um pistoleiro para dar cabo de Samir por ele ter tomado de mim a minha paixão. Isabela retruca dizendo que antes de Samir já existiam tantos outros que eu ignorava como Danilo, Pedrinho, 162
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Paulinho, Alex, Romário, Rafael, Júnior, Toninho e outros mais de Valente e Queimadas que ela não sabe o nome e até a própria Walkíria jamais lembrará de todos que ela já se relacionou na cidade. Incrédulo procuro Lucinha para ela me confirmar os nomes e além dela ter confirmado todos ainda acrescentou alguns mais e eu resignado, boquiaberto encontro-me perdido sem saber o que fazer. Não tinha saído à rua para evitar o encontro de Walkíria. Temo por minha reação caso a encontre com o tal namorado. Aproveitando que ela foi para o colégio vou até o supermercado onde esse Samir trabalha. Observo os funcionários tentando distinguir qual deles é o tal. Um magricela totalmente sem classe e sem formosura é descartado. O filho do dono não é, pois não tem nenhum parentesco com Adilson. O moreno malhado é muito velho e feio. Um garoto de traços finos, aparentando 16 anos, vestido com elegância, coloca um garrafão de água mineral na carrocinha da moto e sai. Para confirmar se realmente é esse mesmo, procuro um dos rapazes que trabalham aqui e relutante, pois este nome quase que não consegue ser pronunciado por mim, tamanho é o asco que sinto, mas com esforço, disfarço e como se fossemos velhos conhecidos, pergunto se Samir volta logo. O rapaz responde que logo que entregar a água estará de volta. Agora já sei quem é o sujeito. 163
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Márcia conta que Walkíria arquitetou um plano maquiavélico para entregar-se ao gerente do banco. Este chegou há pouco tempo na cidade, uma figura dessas que pode até não ter muito dinheiro, mas faz de tudo para passar essa impressão. Todos suspeitavam e comentavam que ele era casado em Feira de Santana, mesmo assim Walkíria encontrou nele, talvez uma fonte de renda. No centro da cidade, logo atrás da prefeitura, fica o Tanque Grande. Uma lagoa natural formada por rochas graníticas e forçada em represa pela parede de cimento erguida no sangradouro onde durante o dia mulheres lavam e estendem suas roupas e meninos pescam e tomam banho. No meio do lago ergue-se uma construção muito antiga. Um alicerce em pedra com dois por dois metros em sua base e altura de três metros. Sobre esta base continua subindo em adobe cru, por mais dois metros e encimado por um tanque de tijolo e cimento. A salina abundante nas águas e areias da cidade corroeu a base de adobe e por muito tempo pendeu esse tanque contra a vontade da gravidade, virando cartão postal, até que há pouco tempo despencou. À noite, uma tênue luz ilumina o caminho sobre o lajedo do Tanque Grande, que conduz os casais a se embrenharem na escuridão, tornando-se invisíveis aos
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transeuntes que passam beirando o murinho esburacado que separa a água da calçada na rua Allan Kardec. É este cenário que Walkíria escolhe para o próximo passo de seu plano. Iria se entregar ao tal gerente do banco e depois denunciá-lo, visando receber um pagamento em troca de sua virgindade. Eis que me aparece Santino para executar o serviço de dar cabo do sujeito, conforme tínhamos combinado.
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Capítulo 13 Sentados sobre o muro baixo que margeia o lado norte do agora seco Tanque Grande, ele sopra fumaça de cigarro sobre seu rosto, num gesto grotesco de desdém e desrespeito. Logo que o movimento de transeuntes cessou, se embrenharam na escuridão e sob o silêncio frio da madrugada, ela se deu a ser violada. Márcia aguardou passiva e imparcial, para depois levá-la para casa como que sã e salva. Ouço os detalhes de todo este episódio como que sentindo um espinho rasgando a ferida que ainda não havia cicatrizado. Santino ligou a cobrar para meu celular conforme combinado e pediu para que eu fosse buscálo no terminal rodoviário. Ao encontrá-lo ele logo me pediu para irmos para casa. Ali ele sentou em um canto do sofá e falou que depois que escurecesse sairíamos para tratar do serviço. Quando escureceu saímos à rua e senti-me em um filme de terror, tamanho o suspense que nos abateu num trajeto que tantas vezes fiz sem nenhum drama. Ele escolhe o lugar mais escuro e aconselha que eu ande a uma certa distância dele, pois se algum marginal quiser abordar com revolver ou faca não poderá render os dois de uma vez. Escolhe um bar onde ele possa sentar-se próximo à saída para facilitar 166
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uma eventual fuga, de frente à entrada para observar todos que estão entrando e ainda de costas para a parede para não ser surpreendido. Passa então à elaboração do plano de execução do sujeito. Pede informação dos costumes do sujeito, onde mora, onde trabalha, a que horas sai do trabalho e quer definir com isso o dia, hora e local do assassinato. Estou assombrado com esse assunto, mas dando tempo ao tempo para ver como me sair da enrascada que inventei. Santino pede para conhecer o sujeito e quando me dirijo à rua, ele fala que por essa rua já passamos e que eu escolha outro caminho, pois alguém pode estar nos esperando voltar. Pedi que ele me acompanhasse até o carro, pois eu tinha uma novidade para lhe contar. No carro lhe expliquei que o problema já havia sido sanado e infelizmente ele tinha perdido a viagem, mas poderíamos aproveitar para fazer um turismo e segui viagem rumo à estância hidromineral de Caldas do Jorro que fica a uns 90 km de Santa Luz. Caldas do Jorro, a água a 40 graus derramando na praça e nós apenas de cueca nos banhamos, tomamos uma beberagem de vinho sangue de boi com diversas ervas feitas pelo Macedo conhecida por Pau-nas-Coxas e fomos para um hotel. A água quente fez-me dormir tranqüilo. Ao amanhecer despachei o meu pistoleiro à Paraíba de ônibus e voltei para casa entre a angústia e o alívio. Ciente de que essa história está tomando uma dimensão absurda, mas sinto ainda no meu coração que 167
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não hei de parar tão cedo de fazer besteiras por Walkíria. Danilo contou-me que recebeu “uma grana” para comparecer ao Fórum para servir de testemunha em favor do Gerente do banco, que foi acompanhado de dois bons advogados e contornou a situação sem dar nenhum centavo à reclamante, mas o escândalo desestruturou sua vida e para tentar remediar, se sentiu obrigado a trazer a família para residir nesta cidade. Danilo está com Lucinha e tem mais novidades. Conseguiu um emprego para ela trabalhar como doméstica no Rio de Janeiro e já está com tudo pronto, inclusive a passagem. Falta apenas uma mochila que é o que ela quer agora de mim. Pego uma daquelas mochilas desprezadas em um canto qualquer e dou-lhe. No apartamento que alugamos para servir como escritório não tem as tomadas tripolares próprias para computador. Já pedi autorização do gerente do hotel, para instalá-la. Vou até a salinha na garagem onde fica o faz-tudo do hotel, o Eduardo que é ao mesmo tempo eletricista, pedreiro, encanador, faz a manutenção de ar condicionados, fogões e outras tarefas mais do hotel, pego com ele algumas ferramentas, entre elas máquina de furar e chave de fenda e fixo com parafusos rente ao chão, tomadas suficientes para ligar os três computadores que agora nos acompanham nas viagens. 168
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Aproveitando a furadeira também coloquei o quadro branco na parede conforme Michelle havia me pedido há alguns dias atrás. Michelle entra no nosso escritório improvisado e ao perceber que o quadro estava deslocado uns 20 centímetros do lugar que ela marcou, em vez de elogios ao trabalho, explodiu dizendo que a localização não era a pedida por ela. Expliquei que afastei apenas vinte centímetros para que a porta não batesse nele ao abrir. Ela então gritou que a porta devia ser mantida fechada e com absurda estupidez saiu do apartamento e bateu a porta com tamanha força que caiu poeira do teto sobre minha cabeça. Passada a ira fico tentando descobrir o motivo de toda essa hostilidade. O meu caso com Walkíria, sei muito bem tem interferido diretamente no meu desempenho profissional, no entanto achei até então que não havia uma repercussão. Por telefone Márcia me dá boas notícias. Ela passou direto em todas as matérias exceto em Educação Física que devido a muitas faltas ela deverá fazer uma prova teórica e estará de férias. Nestes últimos três meses Márcia tem se comportado decentemente. Voltou a ser estudiosa, abandonou as amizades ruins e as roupas indecentes. Não insiste em ir às constantes festas da cidade e quando sai fico despreocupado, pois sei que antes das dez horas ela 169
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está de volta. Tem seguido à risca as regras impostas, como nada de festinhas íntimas, caronas em carro ou moto, bares e reuniões em casa de amigas. Continua sem coragem de trabalhar e trancada em seu quarto ouvindo música, agora não mais Sandy & Júnior e sim Avril Lavigne, Los Hermanos e outros rocks da juventude punk. Falou também que Netinho está sempre ausente da cidade, pois encontrou um emprego de representante de uma empresa de tiket de alimentação e deixou a surpresa maior para o final da ligação. Uma carta de Lucinha falando que a passagem pelo Rio de Janeiro foi rápida. Tirou a carteira de identidade e o passaporte e sua patroa financiou sua ida para a Itália. Ela está trabalhando em Veneza como babá e não deixa dúvida dessa história, pois o envelope bege traz além de sua letra esgarranchada e cheia de erros, o selo estrangeiro. Um mal-estar ainda me acomete. Aquele pesar de quem se sente incompleto. Sinto falta de Walkíria e agora até Isabela poderia ser uma boa companhia. Mas aqui em Caicó estou sempre sozinho e a insônia ainda me acompanha. Por isso, para preencher minha noite, hoje vou a uma festinha com o sugestivo nome de A Tocha. No convite impresso está escrito que temos direito a cinco cervejas e churrasco e fala também que haverá um strip tease e uma performance de um transformista de Recife. 170
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A mim coube a importante missão de pegar em casa o DJ e a aparelhagem de som. Com ele vieram duas das pouquíssimas garotas da festa. Uma delas toca violão e canta nos bares com seu noivo. A outra, toda pirada, tatuada e acorrentada, grudou em seu namorado durante toda a festa em cenas escandalosas de dar inveja a qualquer produtor de filme pornográfico. Só depois de angustiante espera pela cerveja e churrasco, meu anfitrião me informa que esta festa é organizada por uns gays amigos dele e isso explica a escassez de mulheres e o excesso de boiolas no salão arrodeado de archotes que poluem o ar com fedor de óleo queimado. De posse dessa informação, passo a observar as pessoas com outros olhos. Admiro-me com a presença do funcionário do banco, do rapaz da loja de ternos, do intelectual do Centro Cultural. Todos veados. E eu? Que faço nesse meio? Finalmente alguma coisa acontece nessa festa. Depois de umas duas cervejas quentes e nenhum tiragosto, estamos todos no banheiro masculino. Um morenão nu se travestindo para o seu show, quatro mulheres e eu rindo das piadas indecentes que um outro gay gordinho escrachadamente contava. O salão está livre ao centro, com cadeiras e mesas em um dos lados e no lado oposto ao bar o DJ comanda o som. 171
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No começo da performance, o transformista se volta furioso ao DJ que insiste em distorcer e mixar a música “It’s rain man” e pede para ele deixar rolar a música original. Depois de rodopiar pelo salão, o morenão se dirige a um casal e passa a menosprezar a garota, dizendo que ela acha que é alguma coisa, mas se seu namorado o conhecesse, a trocaria por ele. Então sentou no colo do rapaz, alisou, humilhou mais ainda a menina e eu fiquei entre enfurecido e constrangido. Terminada a apresentação, o transformista retornou ao banheiro e saiu transformado, com uma roupa comum, uma postura de homem e procurando a garota para pedir desculpas e dizer que tudo era encenação e fazia parte do show. Tarde demais. Ela já tinha ido embora aos prantos. Para piorar a situação, surgiu a boca pequena que a artista do strip tease não apareceu. Tudo indica que era uma estratégia para atrair heterossexuais tarados à festa. Eu que já estava aborrecido e com fome, com esta notícia fiquei mais irado ainda e saí sorrateiramente para o hotel arrastando comigo o peso da amargura, tristeza, solidão e desolação. Penso em Walkíria com saudade e me sinto deprimido. Freqüentando ambientes que jamais tive vontade, nem mesmo curiosidade de freqüentar. Passando noites em claro remoendo angústias e pesares.
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Corroendo o espírito como uma célula que muda de função, assume outra identidade e vira um câncer, assim está a minha vida. Caminho pelas ruas até que amanheça e chegue a hora de ir trabalhar. Chego ao quarto do hotel transformado em escritório com um sorriso nos lábios, pensando em concertar agora minha vida, mas Michelle está ao telefone com cara de poucos amigos. A princípio nem se importa comigo como se não notasse a minha chegada, mas para piorar o meu desespero, ela me dá uma notícia que me apavora. Michelle manda que eu arrume minhas malas e gaste todas as minhas folga. Depois viaje a Belo Horizonte para acertar as contas. Estou despedido. Nessa noite a amargura se apossa de mim a ponto de achar que a vida não faz mais sentido. Subo as escadas que transpõem os quatro andares até a laje da cobertura e sentado agora à beira do edifício desejo que algo aconteça para que eu despenque estes quatro andares e acabe finalmente todo esse sofrimento. Recapitulo as histórias que me chegam de Walkíria e imagino as cenas de carícias obscenas com detalhes, os dois sozinhos na fazenda com toda liberdade a seu favor; ele sentado no murinho lateral da igreja e ela com as pernas abertas sentada à montaria de frente para ele se esfregando em êxtase ignorando as crianças e os velhos transeuntes. Penso como fui idiota de confiar 173
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em Walkíria e até de ter duvidado de toda aquela lista de namorados dela. Penso que como nenhuma força externa nesta noite escura e solitária há de me ajudar a cair, eu mesmo posso tomar a atitude e me soltar prédio abaixo, pondo fim a este sofrimento e ainda vingo-me dela, fazendo-a levar o sentimento de culpa pelo resto de sua vida. Lentamente contorço o corpo deslizando pelo cimento em direção ao abismo. Choro amargamente até me engasgar com soluços e isso alivia a minha dor até que ouço com clareza uma voz em meu consciente dizendo, desce e dorme tranqüilo, pois amanhã estará tudo resolvido. Vou arrumar minhas coisas que não são poucas, levar tudo a Santa Luz, tirar umas folgas e ir a Belo Horizonte para acertar a minha demissão. Não quero pensar em problemas e conseqüências agora. Depois eu penso o que farei da minha vida. Sempre fui de improvisar... De volta a Santa Luz as preocupações são outras. A principal delas agora é a aparência física. De tão empenhado que estou em adquirir uma disciplina rígida agora nem preciso despertador. Cinco horas da manhã e já pulo da cama automaticamente. Pego o Skate e corro para a quadra do colégio CENOS. Todos os dias agora pela manhã malho meia hora e ando de Skate. Quero ser o melhor skatista da cidade. Estou me empenhando para isso. No final da tarde voltei a treinar 174
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uns Katás de Karatê e faço novamente musculação. Olho no espelho o progresso do enrigecimento dos peitorais e satisfeito imagino ser capaz de enfrentar à altura esse guris que rodeiam Walkíria. Danilo me aparece desfilando de mãos dadas com uma garota de corpo escultural e rosto angelical. Morena alta, cabelos longos negros, bem magra, cintura muito fina e quadris arredondados, aparentando 14 ou 15 anos. Segundo falam é sua namorada. Ele se aproxima e me apresenta como sua namorada Telma. Ele me pede emprestada a máquina fotográfica para tirar umas fotos dela. Raciocino rapidamente que como ele não tem computador, fatalmente terá que trazer as fotos para eu passar para um Cd, daí eu aproveito para fazer cópia para minha coleção e empresto a máquina que tenho tanto ciúme sem fazer objeção e ainda lhe entrego uma caixa contendo dez disquetes novos. Todos naquele bar barulhento comentavam o ato de heroísmo de Osvaldo, que ao desconfiar que sua esposa estava lhe traindo com seu “melhor amigo” em sua própria casa, chamou o pai dela, dois irmãos, alguns vizinhos e pessoas que por acaso passavam naquela rua no momento, mandou aguardar na porta e sorrateiramente entrou pelos fundos e atiçou seu Pastor Alemão sobre os enamorados, que se viram obrigados a sair às pressas, se deparando com a platéia atenta. 175
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Entre os que comentam o episódio está o pai de Walkíria e por um infeliz acaso ela passa em frente ao bar. Uma dessas pessoas faz um comentário sobre ela, ignorando a presença do pai. Falou que esta garota que acabou de passar, já não vale mais nada na boca do povo, pois anda transando com um cara casado. Um tal de Carlos Alberto da Mineração Rio Vermelho. O pai dela demonstrando tranqüilidade, dá uma desculpa qualquer e sai do bar à sua procura. Vai encontrá-la em outro bar onde uma de suas amigas dança espalhafatosamente sobre a mesa e ela assiste junto a Samir. Ele a arrasta pelos cabelos e ali mesmo a espanca a ponto de deixá-la desfigurada pelos hematomas no rosto e fala que procure outro lugar para morar, pois em sua casa ela não voltará a pisar os pés. Ela passou a morar com sua avó e agora tem total liberdade para ir aonde quiser e voltar à hora que achar por bem. Procuro por ela e imploro que ela volte para mim, mesmo com outro namorado, mesmo com a história do gerente, em qualquer situação. Posso alugar uma casa e mantê-la com tudo que ela precisa. Ajudo nos estudos, faço o que ela quiser. Dias depois, ela me responde por uma extensa carta que também sofre com esta separação, mas se firma na posição de se manter
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longe de mim definitivamente, pois não foi aquela vida de sofrimento que ela sonhou para si. Agora já falo abertamente com Isabela de minha desilusão com Walkíria, choro mágoas, me lamento, e surpreendentemente ela carinhosa me fala que admira a minha devoção e que gostaria que eu um dia a amasse assim. Fala que estará sempre ao meu lado e pacientemente esperando que esta crise passe e eu volte não só em corpo, mas também em pensamento para ela. Fico confuso. Isabela conhecia toda a história de Walkíria e nunca se manifestou. Não me condenou como colegas de trabalho, amigos e amigas que viraram as costas para mim e até fizeram questão de me insultar com palavras como canalha e cafajeste, como se todos eles não fizessem as mesmas coisas. Ainda não tirei Walkíria do meu coração, mas preciso de alguém ao meu lado, pois minhas forças se esgotaram. Então resolvo investir num bom entendimento com Isabela, mas no meu íntimo o que eu quero mesmo é que esta história se espalhe e caia nos ouvidos de Walkíria, na esperança de lhe causar algum ciúme e quem sabe ela me procurar. Danilo devolve minha máquina com dez disquetes cheios de fotos e mais uma conta de R$ 50,00 correspondente ao cachê de Telma. Estranhando 177
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esta conta que não havíamos nem comentado, ele diz que corresponde ao pagamento pelas fotos de sua namorada, muito bem produzidas, de muito bom gosto e o mais importante é que ela está despida. Ele fala que tem até uma foto em close que ele tirou especialmente para mim e que eu hei de gostar muito. Apesar de não ter encomendado nenhuma foto, catei o dinheiro que tinha no momento e entreguei em troca dos meus disquetes agora cheios de fotos que enriquecerão um pouco mais minha coleção. Walkíria aparece em minha casa, trajando uma calça bege justa, cós bem baixo, uma blusa branca Tomara-Que-Caia ornada por babados na bainha superior que se prende aos ombros por elástico e igual acabamento para as mangas e na parte inferior, deixando à mostra o umbigo e a barriguinha bronzeada. Chega sorrindo, falando alto e ao ouvir o comentário de Isabela, dizendo detestar a música que coincidentemente está passando e fora a pouco tempo o nosso tema, “Você me faz sofrer feliz...” ela aumenta ainda mais a voz e deixa bem claro que tudo isso nada mais significa para ela. Isabela ri satisfeita...
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Capítulo 14
De volta a Minas Gerais terra de Hilda Furação, Chica da Silva e Dona Beja. No aeroporto de BH me distraio olhando o luminoso com uma linda mulher com o zipper do vestido aberto e a inscrição “fechando bons negócios”. Forçando a situação, peço que ela deixe que eu tire algumas fotos dela e cedendo à minha insistência, permite que eu tire três fotos. Em nenhum momento ousou me encarar e nem olhou para a câmara. Mas demonstra radiante alegria, o que me deixa mais deprimido ainda em saber que ela já encontrou seu caminho longe de mim. É incompreensível a dor de desejar ardentemente estar perto de alguém, estar perto e reconhecer a enorme distância causada pelo desprezo. A euforia e o ardor da aventura de súbito acabou. Ela tenta me convencer que podemos ser amigos, apenas amigos, mas não consigo aceitar isso. Imploro mais uma vez que ela fique. Ela responde incomodada e já irritada que não. Pergunto-lhe se é verdade que ela já não suporta mais nem mesmo meus elogios e ela entreabre a boca, levanta a cabeça, me olha e congela em um olhar frio, afirmativo. Minha esperança de reconciliação com ela cai por terra, mas o meu desejo 179
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me trai e continua me torturando. Tenho consciência de que não posso podar sua alegria, enclausurar sua juventude em um compromisso de um relacionamento de regras, exigências e cobranças, mas no peito amarga a dor da inconformidade. Desolado, como um boi tangido ao matadouro, caminho pelo asfalto novinho que agora forra as pedras da estrada que leva ao escritório de Recursos Humanos onde vou acertar minha demissão. Walkíria agora vive entre a casa da avó e a casa de alguma prima ou amiga, como que vivendo de favores e de certo sinto pelos olhares e comentários que sua presença é incômoda, mas com ar rebelde, ela insiste e vai ficando onde bem entende, chegando a hora que quer e só vai ao colégio para encontrar com as amigas para marcar algum programa e instigá-las a largar os estudos como ela. Vez por outra ela vem me visitar, mas já não entra em casa. Da porta mesmo conversa alguma banalidade e rapidamente arranja uma desculpa qualquer e desaparece. Chegando ao escritório uma surpresa. Manuel me chamou até sua sala e pôs-me a par de seus planos. Está trabalhando no projeto de um banco de dados corporativo, quando ficou sabendo de minha demissão pediu que suspendesse o processo por um ou dois 180
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meses, pois está precisando da minha ajuda. A minha nova missão é ajudar a desenvolver o sistema e depois propagar utilização deste nos diversos projetos, instalando o software e treinando os novos usuários. Esta novidade aliviou meu coração, mas o pesar, a tristeza e a angústia ainda me acompanham. Como me ver livre disto? Toda essa história de paixão mal resolvida tem me perseguido por onde eu ando. Tenho sido irresponsável, antipático e incompetente graças a esta assombração que me persegue dia, noite e madrugada. Beijos, danças, sexo, me fazem lembrar com inquietação de Walkíria. Preciso virar a mesa. Se não posso vencer o mal, vou juntar-me a ele. Vou passar a conviver com sexo, festas, danças até me acostumar e não mais ligar tais fatos ao sofrimento. Quero encarar sexo, luxuria, traição como coisas normais. Mergulhado em pensamentos saio do hotel e desço a passos rápidos a Avenida Alvares Cabral, dobro na rua São Paulo passo por todos os Índios, Aimorés, Timbiras, Guajajaras, Goitacazes, Tupis, Tamoios, Carijós, Tupinambás, Caetés e finalmente a Guaicurus. Chego suado e me sentindo sujo devido à longa caminhada, mas assim me acho mais ambientado àquele lugar e ao povo que o freqüenta. Antigos casarões com uma escada que da acesso a corredores e vários quartos, cada um com uma garota nua. Cada garota com seu estilo. Uma deitada lê um livro, a outra 181
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fica em pé na porta fazendo sinal para a pequena multidão que transita, olhando de quarto em quarto, há quem fique sentada na cama fumando um cigarro, outra ainda de quatro pés em poses apelativas. Algumas ficam nuas pelos corredores fétidos, próximas à porta de seus quartos, falando alto, chamando a atenção para os seus serviços. Existem ainda as que enfeitam o quarto com temas místicos, belas luminárias e cartazes criativos. Se eu já me sentia deprimido, piorou muito a minha situação. Vejo em cada uma das inúmeras mulheres apenas as características que me lembram Walkíria. Em uma destas casas em cuja fachada está escrito Hotel “Alguma Coisa”, um prédio novo com acabamentos em granito polido, de aparência e cheiro agradáveis, corredores largos, distinguindo-se dos hotéis de verdade apenas pela placa na entrada “Proibida a entrada de menores de 18 anos”, subo as escadas, e percorro os corredores em busca de uma porta aberta, almejando encontrar alguma coisa que nem eu mesmo sei o que é. Gente apressada sobe, transita, olha o interior dos quartos, se perde pelos labirintos, volta, desce, mas uma porta entreaberta me chama a atenção. As pessoas olham rapidamente e saem. Aproximo-me receoso, coloco o pé direito como apoio próximo ao umbral, mãos para traz e vagarosamente me inclino, olho e um tanto assustado, 182
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retorno rapidamente à posição ereta. Volto a me inclinar e agora dissipando o medo, contemplo aquele quadro. Por traz da porta verde, iluminado por uma luz difusa azulada, uma pequena ante-sala que termina em uma escada com três degraus para acesso a um outro pavimento, formado por uma parede que termina em altura ao nível do colchão onde repousa imóvel como uma pintura, uma bela jovem de longos cabelos dourados, olhos puxados, pequeno nariz de contornos angulosos, a boca carnuda entreaberta, deixando à mostra parte dos alvos dentes superiores, seios rijos pontiagudos, barriga plana musculosa; abaixo do umbigo uma leve penugem culmina em um púbis cuidadosamente assanhado com a mesma tonalidade dourada dos cabelos. Nas mãos uma luva branca presa apenas pelo polegar, deixando à mostra os dedos de unhas compridas e pintadas em cor clara. Nos pés, uma meia fina que termina no joelho em uma larga borda de renda. Já não vejo mais Walkíria como um anjinho. Ela aparece em moto emprestada por alguém, usando uma calça em Lycra branca extremamente justa insinua os contornos ondulados dos músculos das pernas, desde os joelhos até a parte alta das coxas, onde o relevo descamba para a virilha e sobe suave à elevação do púbis avolumado, onde sem conseguir disfarçar, fixo os olhos. Sua presença mesmo breve ainda me é 183
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agradável, mas quando ela se afasta, minha cabeça vira um turbilhão de pensamentos desconexos e fica a saudade, um desejo incontrolado e a dor desesperada da certeza de que a perdi pra sempre. Entro, deixando a porta aberta atrás de mim fico em pé ao lado da cama. Faço perguntas e ela responde a todas sem mudar a expressão do rosto e imóvel como um manequim em uma vitrine. Nasceu em Contagem, mora naquele mesmo quarto, vez por outra visita os parentes no interior, o preço do programa é R$ 10,00 por alguns minutos. Um sentimento estranho me intimida e saio dali um tanto relutante. Desço as escadas e estou novamente na rua, onde os ônibus passam e os passageiros olham curiosos para as pessoas que entram e saem daqueles lugares malditos. O caminho pelas ruas agora impressionado pela imagem enevoada da garota. Percorro as ruas sem rumo, e tentado encontrar o caminho de volta para casa, paro na Praça Sete de Setembro, que os mineiros econômicos em palavras como são, chamam apenas de Pras-7. Aqui ainda me persegue a visão da loira. Começa a escurecer e em vez de ir para o hotel, meus pés me conduzem de volta às ruas dos prostíbulos. Agora tenho dificuldades em encontrar o “Hotel” onde vi aquela obra-prima de acesso público. Mais depressa que outros clientes, subo escadas, percorro corredores, olho por entre as portas, 184
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volto às ruas e não localizo mais aquele quarto. Talvez tenha passado por ele, mas se ela estiver atendendo a algum freguês naturalmente a porta está fechada. É noite e o medo dos pivetes e guardas que rondam as ruas escuras me trazem à realidade e pego o caminho de volta para o hotel. Acelero o passo na caminhada e ao chegar no Shopping Cidade, me sinto em casa. Posso descansar a mente daquela aventura, enquanto tomo um chope naquela praça de alimentação barulhenta como uma feira-livre. De volta ao quarto do hotel, não consigo dormir. Ligo a TV na esperança de estar passando algum filme erótico. Passando por um canal de notícias locais ouço uma frase inconfundivelmente baiana.“É nenhuma, cara”, um termo sem definição exata, usado em diversas situações, significando concordo, ou discordo, ou exclamação, dependendo da entonação que se dá. Neste caso está significando indignação por estar sendo detido. Na TV vejo assustado Netinho sendo empurrado para o fundo de uma viatura policial em pleno centro de Belo Horizonte. Danilo me pergunta se ainda gosto de Walkíria e propõe marcar um encontro, se eu toparia, pois ela também se encontra entre as garotas que ele comanda. Ele passa a me apresentar Walkíria como um produto de sua posse, testado e aprovado por ele próprio. Meu 185
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coração aperta, mas permaneço incrédulo ouvindo seu relato. Fala-me que já havia “armado” ela com um senhor da cidade e que no momento estava arquitetando um encontro com um tal de César, só que desta vez, a pedido dela, porque ela o admirava. O encontro havia de se realizar em Salvador. Impiedoso, descreve seus gostos, seu corpo, a maciez aveludada da pele, como se conhecesse mais do que eu e acrescenta ainda seu desempenho na cama e a maravilha que é penetrar suas carnes. Minhas pernas tremem a ponto de precisar me escorar em uma árvore para não cair. Meus joelhos batem um no outro e eu atordoado, fico estático vendo-o prosseguir. Falou ainda de tantas outras meninas que segundo ele, pertenciam à sua lista, me deixando cada vez mais horrorizado e desolado. Encerrou a conversa, expondo a dificuldade de realizar este encontro comigo, pois neste caso seria uma reconquista e isso seria mais complicado. Aconselhame então a enviar a ela, uma bruxinha, pois ela adora coisas místicas e haveria de se comover com este presente. Pede uma resposta imediata e eu respondo que preciso pensar um pouco. Monto na moto, agora uma estradeira e saio em busca da solidão. Fico remoendo aquelas afirmações e com o coração disparado, penso na possibilidade de lhe dizer um sim e finalmente tê-la por uns minutos como mulher, coisa que até então não acontecera.
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Meu celular toca. O miserável já me cobrava desesperado a resposta, menos de duas horas depois da angustiante conversa. Peço mais um tempo. É hora do almoço e sem coragem de ir para casa, me dirijo ao Bar do Misso, onde Júlio está como sempre com a mesa repleta e tomo apenas um copo de cerveja, pois nem a bebida me serviria como anestesia para aquela dor profunda. Isabela passa apressada e eu a chamo. Ela fica um pouco conosco, mas logo se despede falando que tem que ir à casa de sua mãe resolver umas coisas. No meio da tarde, novo telefonema, nova pressão e decido apostar no desespero deste encontro. Ele então dita detalhes, pede o local do encontro e lhe informo que em viagem para Carajás, eu ficaria em um determinado Hotel e ele então se encarregaria de naquela data, encaminhá-la para lá. Logo que amanhece desço a avenida Raja Gabaglia em Belo Horizonte e dirijo-me à Polícia Federal. Procuro informações sobre Jadiel Gonçalves Silva Neto (lembro bem seu nome, pois é o mesmo nome do seu pai, um velho colega de trabalho que há tempos perdi o contato) e tenho notícias que está incomunicável. Pergunto qual o motivo dele ter sido detido, sou informado que ele foi pego em flagrante portando grande quantidade de cocaína e faz parte de uma quadrilha que traz a maconha cultivada na beira do São Francisco entre Bahia e Pernambuco para São 187
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Paulo e Belo Horizonte e leva daqui cocaína e derivados. Sem mais delongas saio de mansinho antes que achem que estou muito interessado no assunto e me chamem para depor ou até queiram me deter também. Finalmente o dia do encontro. Pergunto a Danilo se está tudo conforme combinado e ele afirma que sim. Chegando a Salvador faço o check-in no hotel e volto ao ponto de ônibus onde combinamos que eu a esperaria. Estando ela no Rio Vermelho, há de descer do ônibus 401 e o coração dispara a cada ônibus vermelho que aponta. O 401 aparece e meus olhos ansiosos esperam ver descer uma pequena menina branca, mas desce apenas uma imensa negra gorda. Nova espera e a esperança aos poucos se esvai quando surge novamente o ônibus daquela linha. Agora procuro atento entre os passageiros que se aglomeram para descer e não a encontro. Pensando em desistir, vejo surgir entre as pessoas que descem aquela beldade num vestido negro fino e elegante. Desconcertado pego em sua mão conduzindo-a a andar ao meu lado em direção ao hotel, mas logo solto, temendo que ela solte bruscamente, deixando-me mais sem graça do que estou agora. No hotel sentamo-nos nas confortáveis poltronas da recepção numa tentativa de disfarçar a nossa real intenção forjando uma entrevista ou coisa parecida. Logo a convido a tomar o elevador e nos 188
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dirigimos ao quarto. Sem delongas avanço sobre ela abrindo dos ombros as alças do seu vestido e possuo-a em movimentos bruscos e brutais. Rapidamente termino e indelicadamente com intenção de humilhá-la digo que fiz aquilo sem nenhum afeto, apenas movido pelo desejo carnal. Ela parece não se abalar com meu rancor. Mesmo consciente do quanto eu não tenho direito de cobrar-lhe isso, peço que confirme se realmente ela havia se entregado ao gerente do banco naquela noite no Tanque Grande. Ela levanta da cama e tenta caminhar até o banheiro, mas seguro firme em seu braço e ela me olha com ódio e diz secamente que não quer falar sobre isso. Insisto argumentando que tamanho era o meu sentimento por ela que ela bem podia ter perdido a virgindade comigo que teria dado muito mais carinho. Ela ri sarcasticamente e diz que ele é mais gostoso. Enfurecido, ponho a mão sobre sua cabeça, agarro seus cabelos, levantando-a do chão e atiro seu corpo frágil e leve estupidamente sobre a cama. Como não bastasse, ponho um joelho entre seus seios, imobilizando-a e levanto a mão para bater em seu rosto. Os músculos de sua face se contraem e ela cerra os olhos esperando a nova agressão. Um fio tênue de juízo apossa-se de mim e apenas encosto a palma da mão em seu rosto, empurrando-o com força para o lado. Agora com as costas da mão repito o brutal ato no lado oposto do rosto. Deixo-a deitada, levanto e dou um soco tão forte na cabeceira larga da cama que 189
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imagino ter quebrado os ossos da mão, apesar do ódio ter anestesiado o corpo e a mente. Ela senta-se na cama e coloca as mãos sobre o rosto. Permaneço em pé por um bom tempo até que o rancor se dissipa dando lugar ao arrependimento e medo. Agora como fosse um cordeirinho inofensivo aproximo-me dela e me ajoelho a seus pés. Afasto suas mãos e vejo lágrimas abundantes rolarem de seus olhos. Comovido sento ao seu lado o procuro consolá-la com palavras de carinho, pedindo incessantemente desculpas. Esforço-me para apagar o desejo de vingança, todas as mágoas e dores de minha mente e abraçando delicadamente acaricio seus cabelos, seu rosto, seus braços, deito-a suavemente e num abraço nos aninhamos debaixo dos alvos lençóis. Sinto seu corpo febril e estremeço de alegria. Mesmo após tamanha insanidade um desejo imenso me domina e nos possuímos num êxtase de ternura. Permanecemos abraçados por um longo tempo. Ela então se veste comentando que aquele vestido foi escolhido propositadamente, pois é de um tecido que não amarrota. Deixo-a no ponto de ônibus e retorno pensativo ao hotel. Enquanto estou absorto em meus devaneios batem à porta. Isabela está aqui, extremamente nervosa me olha como se eu fosse uma assombração. Convido-a para entrar, imaginando que boa coisa ela não veio fazer aqui em Salvador. Mas preciso de muito auto-controle para contornar esta
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situação amenizando o sofrimento iminente de todos nós. Desconfiado pergunto o que ela faz aqui e ela vai direto ao assunto dizendo que estava por dentro de toda a armação do nosso encontro e veio para nos pegar em flagrante. Ela estava presente ao lado de Danilo durante todas as insistentes ligações que ele fazia. Pediu a ela um celular no valor de R$ 700,00 para armar esse circo. Jurando inocência, distorço os fatos a meu favor, contorno a situação, sentindo que ela se deixa enganar. Quando a poeira assenta Isabela me abraça com carinho e anuncia que está grávida. Reajo com grande brutalidade acusando-a de ter engravidado com o propósito de me segurar (diga-se me separar de Walkíria definitivamente), digo ainda que é mentira e que ela tem que fazer um teste para provar. Isabela me surpreende em uma atitude jamais vista. Sempre foi passiva, tranqüila e aparentemente inocente agora elevou a voz e despejou tudo que estava entalado há muito tempo. Aos gritos falou que por todo tempo sabia do meu caso com Walkíria, até já tinha nos visto em beijos e carícias e adotou a atitude passiva como estratégia, mas Lucinha a mantinha informada de todos os meus passos, telefonemas, encontros e desencontros. Só deixou de ajudá-la quando entrou no esquema da prostituição infantil internacional. Os telefonemas anônimos com ameaças haviam sido idéias suas e 191
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executados por amigas simpatizantes à sua causa. Esclareceu também que tinha ligado para Michelle pedindo sua ajuda para me fazer esquecer Walkíria e voltar para ela, o que resultou na demissão e ainda havia intercedido junto a Manuel para reaver meu emprego. Mais tarde até a própria Walkíria passou a ser sua aliada pedindo ajuda para que eu largasse do seu pé, pois ela já não agüentava mais a minha perseguição. Falou ainda que enquanto eu a via como um anjinho, toda cidade sabia que as andanças dela ao hotel era para abastecer-se de drogas e de fato ela era uma das garotas controladas pelo Danilo e fazia programas para manter suas roupas e vícios. Fico deprimido com o bombardeio de informação que recebi, sentindo-me um verdadeiro idiota por não ter por todo esse tempo tido coragem de enxergar a realidade agora tão óbvia. Agora percebo como essa pobre mulher sofreu durante todo esse tempo. Tanto quanto eu ou talvez mais, pois eu sendo o mentor da tragédia tinha o poder de destruí-la se tivesse vontade. Ela, no entanto lutou silenciosa com armas que não possuía. Passado o acesso de estupidez, recupero a racionalidade, peço desculpas e passo a participar da novidade, afinal ela não engravidou sozinha e com isso é selado definitivamente o nosso casamento.
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Walkíria agora é só um sonho...
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Capítulo 15 Três horas de espera e angústia no aeroporto de Brasília aguardando o vôo para Salvador, onde um táxi vai me levar para Santa Luz. Vaquejada em Valente. Em Santa Luz o povo se alvoroça a ir ao evento. No palco apresentam-se repentistas e cantores regionais aquecendo os tambores para o auge da festa que é a banda cearense de forró Mastruz com Leite. O açude brando descansa suas águas sob a noite escura de dezembro. Em frente ao palco uma quadra de cimento onde mais tarde casais rodopiarão embalados pelo forró. Beirando o açude em sua margem leste estendese o asfalto e a extensa ponte habita passiva sobre o sangradouro. Depois da pista de dança, estendem-se em alinho as barracas construídas com palha de coqueiro que vendem bebida e comida e os cubículos de lona colorida onde barulhentos vendedores apregoam seus coquetéis batizados de Capeta e mais adiante a comprida pista de vaquejada forrada de areia, cercada com grossos toros de madeira lavrada, tendo em uma das laterais um palanque construído com tijolo e cimento e na cabeceira, uma cabine onde encontram-se os locutores e juizes da competição. 194
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Do outro lado do asfalto alinham-se as paupérrimas casas dos moradores do bairro do Açude. O boi dispara pela pista e o vaqueiro firme sobre o cavalo corre ao seu lado. A moto dispara veloz na pista e o vento forte parece tentar barrar o movimento. A platéia atenta observa silenciosa. A escuridão é testemunha daquela viagem. O animal aproxima-se da linha demarcada sobre areia com cal. A máquina aproxima-se do redutor de velocidade a essa hora invisível sem contudo diminuir ou parar a crescente aceleração. O vaqueiro segura firme o bicho pelo rabo e em um brusco movimento o desequilibra fazendo-o rolar em uma queda brutal. O frágil veículo esbarra sobre o quebra-molas e por um breve tempo corre descontrolado até voar pela ribanceira do açude Tapera. A platéia delira em um uníssono grito. Um estrondo ecoa na escuridão. Depois o silêncio. Os juizes escolhem o melhor entre os vaqueiros e no palco ouvem-se os primeiros acordes da música que cadencia a coreografia inicial da banda e agora é só alegria. Alguns moradores daquele bairro afastado correm na direção do estrondo e se deparam com a 195
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desoladora cena. Jazia junto aos destroços da motocicleta o corpo jovem de Sheila. A cidade queda silenciosa com o pesar da notícia que se espalha instantaneamente. Talvez pelo pesar ninguém tenha notado a falta de outra pessoa. O dia amanhece com um pesar pairando sobre a bucólica paisagem. Cinco canoas ancoradas, à margem do açude, cavalos pastando ao longe, choros e gritos de crianças partem das casinhas que margeiam o riacho sempre seco, mas agora se desdobra em águas revoltas brotadas da enchente do imponente Açude Tapera. Na margem mais íngreme, paralela ao asfalto, se elevam pés de Juá e Jurema, à margem sul é contornada por uma plantação de Sisal, e ao longe, a norte, se elevam as pedras do Morro dos Lopes. A água tem uma beleza que só é quebrada quando nos aproximamos da margem e vemos o limo viscoso, a lama fina e o odor desagradável que dela emana. Agora eu entendo o que a cigana queria dizer com “Cuidado que o que você pede, pois pode ser concedido”. Tanto sofrimento para culminar em mais sofrimento...
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Um pescador retorna precocemente do seu labor, com a amarga notícia de que encontrara uma segunda vítima do acidente da noite anterior. Seu corpo bóia próximo às plantas aquáticas que margeiam a parede paralela ao asfalto. Ela...
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WALKÍRIA viveu intensamente Sim, Não se viu arrependida Abandono é liberdade Foi levada pela vida Era aço o seu cavalo E só seu cada momento Ao galope dos prazeres Foi levada pelo vento Curto espaço, breve tempo É relativo o segundo Observo aqui da terra Foi levada pelo mundo Implacável, o destino Afogou todas as mágoas Num vôo, dor, despedida Foi levada pelas águas
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