ES QUI NA T R Â N S I T O / / P E R M A N Ê N C I A N O V E M B R O ,
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SUMÁRIO
prólogo e epílogo
deixa eu te falar SETE COLUNISTAS FALAM UM POUCO DE SUAS EXPERIÊNCIAS DE TRÂNSITO OU PERMANÊNCIA (OU OS DOIS)
pág. 10 // pág. 82
pessoas, coisas e lugares DOIS CONVIDADOS NOS CONTAM QUE PESSOA, COISA OU LUGAR SIGNIFICA TRÂNSITO E PERMANÊNCIA PRA ELES
pág. 16
ler, ver, ouvir MÚSICA, FILMES E QUADRINHOS PRA TE ENVOLVER NO TEMA FORA DA REVISTA
pág. 16
oi, prazer! PORTFÓLIO DO ARTISTA PLÁSTICO MARCELO MOSCHETA
pág. 22 PORTFÓLIO DA ARTISTA PLÁSTICA POLLIANA DALLA BARBA
pág. 74
perfil MATÉRIA SOBRE PESSOAS TRANSGÊNERO PUBLICADA ORIGINALMENTE NA REVISTA GALILEU
pág. 30
guia particular de esquinas DUAS MORADORAS DA CIDADE DE SÃO PAULO, UMA NASCIDA E CRIADA, OUTRA QUE ACABOU DE CHEGAR, DÃO SUAS IMPRESSÕES SOBRE A VIDA NA CIDADE EM UM GUIA DE ESQUINAS E NÃO-ESQUINAS PRA SE CONHECER
pág. 66
ventilador O QUE VOCÊ GOSTARIA QUE O VENTO TROUXESSE? E O QUE SERIA BOM QUE ELE LEVASSE?
pág. 84
EXPEDIENTE
CARTA DO EDITOR
COLABORADORES
pág. 6
pág. 7
pág. 8
SUMÁRIO
coro
a terceira margem do rio
sua cidade sera hackeada
cidade fantasma
CONTO DE JOÃO GUIMARÃES ROSA pág. 36
MARTIJN DE WAAL EM ENTREVISTA DE CAMILA ALMEIDA pág. 46
ENSAIO FOTOGRÁFICO DE CAROL VARGAS pág. 54
Revista Esquina, novembro de 2015 TRÂNSITO // PERMANÊNCIA
Esta publicação é parte do Projeto de Graduação de Marianna Schmidt no curso de Desenho Industrial da Universidade Federal do Espírito Santo. Os conteúdos aqui publicados foram criados com exclusividade ou cedidos por seus autores para a revista, com fins acadêmicos, portanto não devem ser reproduzidos sem autorização.
participaram desta edição marianna schmidt ricardo esteves CONSELHO DE DESIGN E APOIO MORAL daniel dutra e fernanda didini CURADORIA DOS PORTFÓLIOS rafael pagatini DIREÇÃO CRIATIVA
ORIENTAÇÃO DO PROJETO DE GRADUAÇÃO
ILUSTRAÇÃO brunna mancuso e lorena morais bárbara carneiro, carol vargas, julia rodrigues e marianna schmidt TEXTOS ana mascarenhas, bárbara carneiro, bruna estevanin, camila almeida, carol andrade, daniel vilela, david benincá, emanuela siqueira, gabriela loureiro, helena vieira, isabella mariano, israel campos, mário césar, ricardo terto, sara magalona, tati de assis. FOTOS
marcelo moscheta e polliana dalla barba daniel arsky e paula calenzani VENTILADOR marianna schmidt
ARTISTAS CONVIDADOS
PESSOAS, COISAS E LUGARES
PARA OUTRAS INFORMAÇÕES, ENTRE EM CONTATO:
mariannaschmidt@gmail.com www.mariannaschmidt.com
A foto da capa é de Ervin Von Moos e mostra um rio pois este é sempre o mesmo e nunca o mesmo. Tudo flui.
CARTA DO EDITOR
será que explico o rio?
Não ensaiei o que escrever nessa carta do editor – devia, nunca fui editora de nada. Mas pensei nas revistas que amo e lembrei que minhas cartas preferidas são as mais pessoais e isso faz todo sentido no contexto daqui. Explico. A revista esquina nasceu do meu projeto de graduação em design. A proposta era construir do zero uma publicação que se preocupasse com seu público, que focasse nas histórias contadas em suas páginas, em seus personagens, ideias e sentimentos. Tudo aqui é em primeira pessoa: de nós, que fazemos a revista, pra você, que a lê. Pra gerar esse sentimento de estar pertinho um do outro, de se envolver em cada linha, de se sentir parte duma comunidade, de querer ser amigo, saber mais daquele caso, de se identificar com uma revista pelas pessoas que a fazem e as histórias que contam. É importante pra gente que você se enxergue nessas páginas, porque nós nos exergamos em você. A esquina é sobre empatia. E é sobre encontros: de pessoas diversas, de temas opostos. O canto, a aresta, a (es)quina: onde duas retas se encontram. A esquina, onde a gente se junta pra conversar no fim do dia. É uma pausa na correria. Pega uma rua, anda anda, esquina. Desacelera. Respira, vira. Pega a outra rua e segue andando andando. Às vezes para, atravessa. Nesta primeira edição, os temas foram trânsito e permanência. Tem coluna, conto, entrevista, reportagem, desenho, foto: várias histórias, de toda gente, contadas de todo jeito. Espero que a leitura seja boa pra você assim como foi demais pra mim reunir todas essas palavras e imagens nestas páginas. Tudo que você vê aqui é fruto da mais pura generosidade de gente de todo canto. Aproveite e obrigada! ESQUINA
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PRÓLOGO
MARIANNA SCHMIDT NÃO SABE SE VAI OU SE FICA. É DESIGNER DE REVISTAS E DESENVOLVEU RECENTEMENTE UMA GRANDE PAIXÃO POR RIOS
COLABORADORES
é de São Paulo, nascida sob o signo do Aquário, no último dia do ano chinês da Serpente. Usa de todos os subterfúgios possíveis para não precisar escrever sobre si mesma
BÁRBARA CARNEIRO
em descrições de perfil. pág. 71
é paulistana, tem 27 anos e é designer desde 2006. mas é na ilustração que, há 3 anos, descobriu que poderia se expressar de forma mais pessoal e livre. Desde então, vem buscando um traço pessoal e tentando evoluir como ilustradora sempre. pág. 10 BRUNNA MANCUSO
é formada em comunicação social e desenvolve há mais de 10 anos trabalhos fotográficos autorais e comerciais, abrangendo várias linguagens, suportes e técnicas. Trabalhar ideias com liberdade e autonomia caracteriza seu processo de criação e experimentações estéticas na produção fotográfica. pág. 54
BRUNA ESTEVANIN se formou em jornalismo porque prefere ouvir que contar histórias e porque acredita que o copo está sempre meio cheio e meio vazio. Trabalha com operações de mídia, adora jogar baralho e coleciona guardanapos nas horas vagas. pág. 68
CAROL VARGAS
CAMILA ALMEIDA é
jornalista porque adora pessoas e estuda urbanismo porque adora cidades. Nesta caminhada, acabou descobrindo que só gosta das cidades que gostam das pessoas — e vice-versa. pág. 46
DANIEL VILELA nasceu nos anos 90 e ainda não teve tempo de viver uma biografia. pág. 11
é baiana. Jornalista, mora há pouco mais de um ano em São Paulo, mas com o coração sempre em Salvador, cidade que conhece e ama como ninguém. pág. 10 CAROL ANDRADE
ESQUINA
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PRÓLOGO
COLABORADORES
é jornalista por formação e escritora por destino. Nasceu no Rio, foi criada em Vitória e decidiu recentemente viver uma temporada em Curitiba. Gosta de tirar fotos e, às vezes, ISABELLA MARIANO
trabalha com diagramação. Diz-se feminista, fã da vida urbana e amante de uma cerveja gelada. pág 12
escreve crônicas no jornal de domingo, toma cerveja todos os dias no mesmo bar do rio de janeiro, escreve roteiros e fotografa as pessoas e as coisas delas. pág. 10
DAVID BENINCÁ
tem 30 anos e mora em São Paulo. É cineasta independente com dois curtas produzidos e um inédito em fase de finalização. Atualmente desenvolve sua estreia na literatura, o romance distópico “Escombros”. pág. 80
RICARDO TERTO
LORENA MORAIS é designer, ilustradora, cat freak, viciada em criar playlists. Nascida em Aracaju-SE, já trabalhou em Salvador em jornal, debandou para São Paulo para viver de revistas e hoje mora em Portugal a fazer mestrado, porque como já dizia Paulinho da Viola: “as coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender”. pág. 36
é baiano de Salvador, bacharel em Humanidades e mestrando em Gestão e Desenvolvimento Social na UFBA. Analista de mídias sociais, cuida da página “FamíliaS: de todos os jeitos” no facebook. Aprecia a sétima arte e ama por demais da conta seu marido e dois filhos. pág. 19 ISRAEL CAMPOS
é jornalista goiana (sim, isso é importante). Especialista nas coisas bonitas da vida (cachorros roncadores, gente engraçada, passarinhos em São Paulo e “arte urbana”). Espera, todos os dias, pelo Carnaval. pág. 14 TATI DE ASSIS
tem o senso crítico dotado de consciência alheia à dela; faz da menina jornalista por formação, mas sem qualquer vontade, torna-a aspirante à estudiosa, porém destituída do foco necessário. Só permite arroubos de melancolia e de felicidade. Ela é um paradoxo catártico. pág. 13 SARA MAGALONA
ESQUINA
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PRÓLOGO
DEIXA EU TE FALAR
permanência
senta que acabou POR
david benincá ILUSTRA brunna mancuso
Todos os dias a maior razão do meu dia é fazer todas as coisas do dia pra terminar o dia na noite, sentado num bar, olhando o tempo passar através dos ponteiros das pernas. Todos os dias eu não faço nada de diferente; e nem o dia, que começa e termina todos os dias desde que eu amanheci às oito e pouco da manhã daquele 10 de outubro de 30 anos atrás. Anoiteceu. Eu tô numa mesa. Eu sento sozinho todos os dias pra olhar o meu dia, processar, digerir e depois dormir, senão dou nó na cabeça e sou atropelado pelo que foi mas que não sei se devia, embora pudesse. Todos os dias eu não ouço as mesas ao lado, eu desligo, dou um trago no cigarro. Hoje eu ouvi. Ela desceu do táxi, ela olhou pra todo lado, ela sentou à mesa, ela se ajeitou na cadeira. Ele disse que tinha coisas pra contar. Ele disse que por esses tempos não vai tão bem. Ele disse que tem coisas pra contar que são boas além de estar na merda nesses tempos que mais ou menos não lhe caem bem. Silêncio. Silêncio. Silêncio: silêncio é palavra mais viva que grito, é o portal que te torna aflito, o soco na cara do diálogo. Ela disse “acabou”. Ele olhou. Ela repetiu. Ele abaixou. Ela repetiu. Ele não acreditou. Silêncio. Silêncio. Silêncio: silêncio é o abismo, o vazio entre duas montanhas. Todos os dias eu não queria ser outra pessoa. Todos os dias eu estou feliz por ser eu e conhecer a causa da minha alergia. Olha, toda vez que alguém diz “acabou” na tua cara e não se tem o que fazer, eu sei como é que é, e dói — é aceitar a morte de quem não morreu. É olhar pro claro e ver o breu. É viver um luto sem dizer adeus. ESQUINA
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PRÓLOGO
DEIXA EU TE FALAR
trânsito
POR
daniel viela, extraído do romance música de mobília
Ele achava-a bonita. E ela, simplesmente, achava. No bolso da calça, cinqüenta siclos: pegou o primeiro ônibus, um desses de duas portas – em que se separa o motorista e cobrador para que então todos os passageiros tenham conversa alheia a que se dedicar – com destino ao balneário de São Miguel. Encontrou, sem querer, ele. Juntos, falavam dezesseis línguas; nunca a mesma. E todas as conversas posteriores não passaram de uma ou duas frases pontuadas por orações coordenadas e, no máximo, uma vírgula e um ponto final. Excetua-se a vez que, ao completar dez dias de Felipe nascido, ele empregou um ponto-e-vírgula tão contrário a si que, então, decidiu partir. Ela: tinha a boca cheia de bibliotecas. Alguns a chamavam de Babel. Por definição, não se sabe seu nome exa-
Raquel flutuava – sutilmente – como um pensamento triste. É que ela, então, dançava com os desníveis que apregoavam os paralelepípedos, acenando-lhes com o joelho sem, contudo, encontrá-los por completo. Nunca sabia do dia da semana ou do mês; perdia-se nos calendários e não tinha a mínima afinidade com os horários receitados aos xaropes. Pulava páginas e mais páginas, despercebida, de uma série de livros que, agora, restam amontoados num canto. No dia em que se fez ausência, aquela casa contava apenas com cinco livros. E ela ainda levou três embora. É possível, ainda, que Raquel reparasse o empréstimo; imagina-se, contudo, que não teve a oportunidade de devolvê-los. Humberto não se recorda da última vez que viu Raquel. Considera esta, em que teria a repreendido pela tentativa distraída de
to; se aposta em Bárbara – já que resta unicamente um trecho de jornal velho, datado de sua chegada, com um grifo sobre esse verbete. Parênteses. Largou isso pra trás no dia que refez as malas, que, na verdade, se resumiam a uma pequena bolsa posta sobre o ombro: contavam-se duas blusas, uma calça e uns óculos de sol arranhados. Ao contrário, todos conheciam o nome e o sobrenome do pai de Felipe. Ele, contudo, ainda não usava óculos. Talvez, por isso, ouvisse muito mal: e tanto que, quando Babel se fez palavra, ele teria apreendido nome semelhante; repetiria todas as vezes seguintes. E assim – desde a primeira vez – reparou que Raquel não se apoiava sobre os pés e nem se arrastava pelo chão.
manchar as páginas daqueles volumes ainda não lidos. Era assim: feita das noites que não dormia e das horas trancadas à cozinha. Não usava brincos – a cartografia de suas orelhas permanece desconhecida – e só crê-se nelas pela necessidade de qualquer cartilagem para acomodar os óculos: nunca puderam falar muito. Se tentasse, ela o induzia a um pequeno festival de breves guloseimas que ocupavam a boca e aquietavam as palavras junto às borboletas do estômago. Quando não pelos gostos, ainda pela língua; por timidez, não o fazia por vontade própria, mas do outro. Deixava-se calar e conduzir pelo estalo seco da separação das bocas úmidas. Mas é que o barulho das separações é maior quando em burburinho.
ESQUINA
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PRÓLOGO
DEIXA EU TE FALAR
trânsito
rango estava certo POR
isabella mariano ILUSTRA brunna mancuso
Há dois anos assisti despretenciosamente um filme de animação por motivos de: 1. um amigo havia me indicado e 2. o personagem principal era dublado por ninguém menos do que Johnny Depp. Rango, o nome. É certo que Gore Verbinski, diretor e roteirista do filme, nem imagine que uma das falas do pequeno camaleão perdido tenha decidido ecoar justo agora quatro anos depois do lançamento do longa e dois anos após eu têlo visto. Nem eu imaginava. Num intenso momento de reflexão, sob uma forte e inquietante crise de identidade, enquanto segurava seu chapeu como se nada mais lhe restasse, o bichinho disse: “Ninguém pode fugir da sua própria história”. Rango vivia em cativeiro e, há tempos, havia se acostumado com sua vida de animal de estimação. Agora, pequeno, solitário e perdido, tentava sobreviver na selva de areia que é o deserto de Vila Poeira.
Rango se perdeu de sua antiga família. Já eu, eu decidi por conta própria enfrentar a vida fora do conforto. Arrumei minhas pesadas malas que, aliás, me fizeram arcar com tristes excessos de bagagem e cá estou, habitando na selva de concreto e afeto que é Curitiba. Antes, vivia numa outra selva chamada Vitória, porém rodeada pelo manto da proteção materna que é igual ou (arrisco dizer) melhor do que a divina. Eu, dentro do meu aquário, tinha que lidar com menos, bem menos traços da vida “real”. Assim como meu amigo Rango. Cheios de medos, eu e Rango tivemos que, com coragem, encarar nossas próprias selvas. Para nós, as criaturas astutas que vivem à espreita nos preocupam menos do que nossas próprias inquietações. “Quem sou eu? Eu posso ser qualquer um”, disse o camaleão. E eu, numa tentativa poética esquisita, escrevi dias atrás: “Eu não sou mais eu. Mas só eu
Talvez, o eco não seja despretencioso sei disso”. como eu fui na hora de escolher o filme de Entre trânsitos e permanências, a tentativa Gore. Vivemos situações muito semelhan- de lidar com o outro equivale à tentativa de lites. Eu e Rango. Semelhanes, mas não iguais. dar com o nosso próprio eu. Caminhar em direção ao outro é seguir por uma rota de autoconhecimento que se estende pelo horizonte a cada passo dado. E o resultado dessa relação trânsito-permanência, nos nossos casos, é só um: saudade. Com essas bagagens nas mãos, vamos nos equilibrando nessa corda bamba que é viver longe do que um dia chamamos de lar tentando entender o que significa, de fato, pertencimento. Seja Rango, seja eu, em trânsito ou estacionado, nenhum de nós é capaz, enfim, de fugir da sua própria história. Vivamola, então (com medo e tudo)! ESQUINA
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PRÓLOGO
DEIXA EU TE FALAR
permanência
estudo em pausas POR
sara magalona ILUSTRA brunna mancuso
Pequenas reflexões sobre tristeza e permanência: Procuro um lugar para ser, não mais estar, sufocando choros e gritos sem perceber, deixar de figurar; apenas presença no mundo. Ter a liberdade de existir como sombra, mas não anular minha identidade em falsas luzes. Transgredir. Deixar emergir o sonho, os abarrotados salões do inconsciente, onde não há impossibilidades, nos quais me devoro e vomito múltiplas manifestações de mim. A melancolia é minha, tudo mais é estrangeiro. A apatia é o resíduo da farsa criada pela mente para se encaixar no traçado do mundo. Agonia de compor personagens plausíveis e sustentar ideias e desejos banais. Nem todos entendem a megalomania de se crer predestinado à margem. Só se é capaz de perder a esperança após
zas. Quais? Nem lembro quais ou quão importantes eram. Inalterável, permanecia: louças sujas, ligações perdidas, planos mal acabados, roupas amar-
arrastá-la em vão.
rotadas.
Da apatia como tentativa de sufocamento do eu indesejado. O Outro do qual sente tanta falta nunca lhe pertenceu.
E todos os dias acorda como um inseto enorme preocupado apenas em vestir alguma roupa e se entregar à rotina sem notar a própria inautenticidade.
Conheci uma garota triste quando olhei para o espelho. Ela prefere espinhos à aridez.
O coração pesado e vazio, como um cofre onde nada foi guardado.
Medo, insegurança, vontades demais; fui devorada.
Sonhei chegar às fronteiras do mundo, alcançar brilhantes astros: não saí da cama.
Ando devagar, a passos miúdos, por não ter para onde ir. Acabou?
Na hora de amar só tinha silêncio; sufoquei milhões de gritos. Ele sabia?
O desassossego sem nome começou cheio de vazio e depois naufragou com minhas certeESQUINA
E o vazio permaneceu. 13
PRÓLOGO
DEIXA EU TE FALAR
trânsito
POR
tati de assis ILUSTRA brunna mancuso
Quatro meses. Talvez cinco. A preguiça não me deixa consultar o calendário e o tempo-sentimental teima em embolar as datas. Quatro pessoas. Nos finais de semana, às vezes seis, sete. Uma cozinha, algumas pizzas e cervejas. Uma sacada, uns cigarros jogados e conversas tão displicentes quanto a fumaça. Uma mudança. Cheguei aqui cheia de bagagem. Como um nômade, tinha rodado a cidade em busca de abrigo. Não, não passeava por viadutos, cami-
mostra de cinema. Chamei o moço do Muay Thay de freguês. Foi irresistível. Aceitei e ri. Muito. Tudo discretamente. Ainda tinha medo. Será que na cidade loca, que ao todo tempo me ensinava a desconfiar, eu podia descansar? Me mostraram que sim e foram mais longe. Me ajudaram a ver que era possível ter afeto pensando diferente. Na vida real, graças a jah, eu experimentava a trégua do Facebook. No acúmulo do lixo e na falta de detergente, quase um “na pobreza e na riqueza”, vi também que a grande coisa era reconhecer que o outro e você têm defeitos e que, muitas vezes, uma das partes pode não lidar bem com isso. E tudo bem, o essencial era ver o outro de manhã e dar bom dia. Nunca perder a vontade de compartilhar coisa besta e boba. No próximo sábado, que para vocês é outro dia, a união mambembe já terá sido desfeita. Eles vão embora, surfar no concreto/
nhava por casas e pessoas. E, agora vejo, por sentimentos. Em cada uma das paradas, um aprendizado diferente. Tudo meio yin e yang doidão. Em uma discussão feia, batia, amava e, no fim, sorria. Eles já se conheciam. Eu, mais ou menos, os tateava. Achava necessário conhecer as paredes, os caminhos, entender as conversas para depois me aventurar. Já tinha alguns calos pequeninos e achava que assim era melhor. Cada um, na verdade, eu quieta no meu quadradinho. No começo, eles aceitaram. Depois, tocaram um coquetel molotov e bagunçaram o coreto. Sem protocolo, me chamaram a experimentar o ruído. Vem assistir série. Vem olhar um gêisere que vi na viagem. Vamos numa
orquídeas de Pinheiros e, nós duas, eu e ela – encantadoramente de riso fácil – ficamos no feudo frenético da Vila Mariana. Talvez não saibam, mas farão falta. A luz branca do corredor de entrada, àquela que denuncia a presença, acreditem, se acostumou aos quatro chaveiros, todos diferentes, mas confortáveis onde estavam. A sala também. O barulho chato das teclinhas do notebook velho combina, acho, com as risadas e os sons de um seriado qualquer. Mas, como isso não é fim, prefiro deixar a falta para depois. Diante do recomeço da gente e de vocês, deixo um abraço agradecido e o desejo de boa sorte. E, lógico, como boa goiana, espero o convite para pamonhada na morada nova.
ESQUINA
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PRÓLOGO
DEIXA EU TE FALAR
trânsito
POR
carol andrade gomes ILUSTRA brunna mancuso
mas lembranças, a do passarinho preso é difícil esquecer. Me deparei com um monte de sentimentos em turbulência. As pessoas diziam que o tempo ia curar essa dor. Depois dessa, todas as outras dores ficaram miúdas e os grandes medos perderam o sentido. Me sinto mais corajosa. Fecho os olhos e estamos rodopiando de braços dados, apaixonados por pessoas que nem valiam a pena, livres e felizes. Vi a cena repetindo sem parar. Nunca tive medo de viajar de avião. Todo mundo diz que o céu é mais seguro que a estrada. Não deu tempo de te perguntar sobre isso. Não deu tempo de falar sobre muitas coisas. Tento acreditar que um dia ainda vamos nos encontrar novamente. Não, não é um sonho. Vamos conversar sobre histórias de amor, sobre ficar ou fugir, vida e morte. Sendo o céu mais seguro como dizem, aquele passarinho agora deve estar livre, nas alturas, sobre um azul iluminado. Porque a gente sabe que se existe um destino, ele é para onde gira o sol.
Já perdi a conta de quantas viagens fiz nos últimos meses. Lá se foram voos, check-ins, esteiras, bagagens. Dessa vez, em mais um avião de volta para casa, aconteceu uma coincidência. Queria ter falado com você porque sei que você acreditava em alma gêmea. Fiz uma conexão e um mesmo cara (gato!) sentou do meu lado nas duas aeronaves. Fiquei pensando nesses acasos, tentando chegar a uma conclusão sobre amor e destino, encontros e desencontros, embarques e desembarques. Saudade da sua voz. Tentei me concentrar para pensar em você sem cair no choro dividindo a poltrona com o meu potencial futuro amor. Tentando adivinhar o que você me diria, certamente seria: “odeio o cocozinho que você faz na cabeça. Solta esse cabelo agora!”. Quando resolvi morar em São Paulo não tinha planos para o que aconteceria depois de um mês. Você me dizia que essa cidade ainda me surpreenderia e que eu não devia ir embora. Você foi embora. A vida, esse vai e vem de gente chegando e saindo e tudo acontecendo ao mesmo tempo, é quase como um aeroporto em época de feriado: movimentado e caótico. Foi nesse clima que nos conhecemos. Enquanto muitos viravam as costas sem se despedir, nós viramos melhores amigos. Forasteiros e loucos, andamos a cidade inteira, arriscamos os pequenos preços na intolerância da lactose, dançamos a noite toda, celebramos os amores e os trabalhos, planejamos viagens, nossa casinha e o futuro. Eu não tive outra escolha e aceitei esse futuro curto e tudo que me falaram: “ele está bem melhor que a gente”, “agora ele não vai mais sentir dor”. Eu não tinha noção de que a morte ficaria tão viva e latente. Entre as últiESQUINA
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PRÓLOGO
PESSOAS, COISAS E LUGARES
trânsito
FOTO
martin sojka
nomades vivem em seus cursos desde a pré-história,
DAN ARSKY É BACHAREL EM EDITORAÇÃO, AMANTE DE LIVROS E ANIMAIS, CANHOTO, VEGETARIANO E QUANDO NÃO ESTÁ PRODUZINDO ILUSTRAÇÕES SIMPÁTICAS GOSTA DE BEBER CERVEJAS COM ALTO TEOR DE LÚPULO
quando seguiam viagem em busca de alimento. Trilhar foi inerente à vida humana desde seus primórdios. Mudar sempre foi importante, por isso encontramos o nomadismo em diversas culturas: dos curdos aos samis escandinavos. Mesmo estando em um local distinto a cada tempo, mudar não afeta quem eles são – mudar não os muda. Os que transitavam sem rumo fixavam em si a ideia da condição mais primitiva do ser: a sobrevivência – iam porque precisavam. Escolhi esses povos, pois me fazem lembrar que hoje, mesmo em local fixo, ainda mudamos. E é uma questão de sobrevivência. ESQUINA
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PRÓLOGO
PESSOAS, COISAS E LUGARES
permanência
FOTO
marianna schmidt
meus amigos. Nada na minha existência é muito permanente. Minha forma de ver a vida, o estilo de cabelo, a comida preferida e o amor platônico sempre mudam. Quando penso nos meus amigos, porém, compreendo o (meu) sentido da palavra. Não importa a distância entre nós, há quanto tempo não nos falamos ou o que mudou em mim, neles ou na nossa relação: eu vou pra sempre ter o meu lugar seguro ali. Acho que parte da conexão que eu sinto entre nós - além de toda história que temos - deve-se ao fato de eu conseguir permanecer sendo eu mesma entre eles, sem esforço. Ainda que eu agora seja tão diferente de tudo que já fui (e serei). ESQUINA
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PRÓLOGO
PAULA CALENZANI JÁ VIVEU EM MUITOS LUGARES, FOI MUITAS E AINDA SERÁ OUTRAS. SEUS AMIGOS SÃO AS PESSOAS, COISAS E LUGARES QUE REPRESENTAM PERMANÊNCIA
LER, VER, OUVIR
música
fora do tempo, WALTER ABUD POR
ana mascarenhas ORIGINALMENTE PUBLICADO EM vice.com
hora de produzir, expressar o que estava sentindo da maneira mais livre e visceral possí-
Todo mundo que já viveu longe da zona de conforto, daquele porto seguro — seja em outro país, outra casa, outra realidade — sabe o que é se sentir fora do espaço-tempo. É quando você olha pra si mesmo, depois pro seu redor, e não reconhece aquela energia familiar de costume. E isso te tira um pouco do chão e te transporta pra uma dimensão diferente, onde o espaço e o tempo não existem da mesma forma. Sim, é uma brisa muito louca, mas acredita em mim, é possível. Tão possível que o Walter Abud, do selo Beatwise Recordings, se inspirou nessa sensação pra criar o novo EP. É que o cara está numa ponte aérea Argentina-São Paulo, e voltar pra Cidade Cinza é sempre
vel, sem me preocupar com regras ou vícios que acabam se criando quando você produz música constantemente” me contou, via internet. “O nosso cérebro muitas vezes espera automaticamente aquela batida marcada e no
ESQUINA
FOTO
sono tws
uma chacoalhada na cabeça. Usando esse sentimento como inspiração, ele sentou a bunda na cadeira e começou a trampar, depois de quase um ano sem lançar algo oficial, em um novo EP. O trabalho durou um final de semana e, pá, já estava (quase) pronto. Aí faltou a masterização, responsabilidade do CESRV, e a capa, uma foto tirada pelo SonoTWS em uma viagem pra Jamaica. Fora do Tempo é uma construção de faixas que te induzem a esse sono paralelo, essa chacoalhada na cabeça. E por que parar a brisa? Além do conceito, o nome se refere à técnica também. “Procurei não racionalizar muito na
meio das composições acabei dando um nó na cabeça, indo contra essa fórmula pré-moldada de batidas retas.” Antes que você tenha a sensação de que a batida está fora do tempo, fique tranquilo, o seu computador não está travado. Afinal, o tempo não passa de um evento psicológico, certo? Então escuta e faça sua própria viagem: HTTP://GOO.GL/9WQ1CP
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PRÓLOGO
LER, VER, OUVIR
animação
o menino e o mundo, ALÊ ABREU
REPRODUÇÃO
POR
israel campos
Reuni meu marido e nossos filhos para ver a animação brasileira O menino e o mundo, dirigida, roteirizada e montada por Alê Abreu, após ler breves comentários empolgados e elogiosos ao filme: por sua eficiência técnica e pela grande carga emotiva que carrega. Ao ser abandonado pelo pai, o menino-título-do-filme sente uma grande tristeza e decide partir da comunidade rural em que vive com sua mãe, em busca desse pai. Família rural, local árido, pai partindo, simplicidade e beleza: a partir desses elementos, já pude arriscar que estávamos no Brasil lembrei-me de “Vidas
entre outras técnicas analógicas que engrandecem a animação e traduzem a complexidade e diversidade das grandes cidades. O idioma? Quando não mudo, desconhecido. A comunicação do filme se dá pelas expressões dos personagens e da delicada trilha sonora - suficientes para emocionar o expectador. Ao conhecer pessoas, criaturas, formas de sobrevivência, desordem, barulho, o menino também passa a ver a beleza, a arte e cores, muitas cores! O mundo aos olhos de uma criança é um mundo colorido, mas tabém doído, por vezes distraí-
Secas - e me fiz algumas perguntas, que tantos já fizeram: para onde foi aquele pai? Por que ele não levou a família? Quando ele irá voltar? Ele voltará? Doído, triste, instigante. Imaginem essas questões “aos olhos de uma criança”. Na jornada em busca do pai, o menino se depara com diversos aspectos da vida contemporânea - rural e urbana. As fábricas e seus modelos exploradores de trabalho, o caos urbano, o sufocamento da cidade, a desigualdade social refletida nas arquiteturas citadinas. O menino descobre as grandezas do mundo, e o peso da solidão. O lápis colorido, técnica usada no desenho do filme, no decorrer da história soma-se ao lápis de cera, recortes de jornais e revistas,
do, por vezes centrado, misto na fantasia e nas realidades, nos antônimos em paralelo. O menino parece encontrar seu pai, mas não: ele está/é/se tornou a cidade grande; trânsito ou permanência? O menino é vida, o pai é morte (em vida). Nos últimos 10 minutos de filme, enxugava algumas lágrimas. Quando o filme acabou, eu desabei, ou melhor: renasci. Um choro incontrolável me lembrou de tantas vidas, trouxe memórias e me fez sentir ainda mais o amor pleno que vivo com os meus. A música de Emicida, Aos Olhos de uma Criança, rolava junto com as minhas lágrimas. O menino e o mundo é sobre cada indivíduo e o que construímos e queremos construir como trânsito e como permanência.
ESQUINA
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PRÓLOGO
LER, VER, OUVIR
filme
viajo porque preciso, volto porque te amo, KARIM AINOUZ E MARCELO GOMES POR
emanuela siqueira ORIGINALMENTE PUBLICADO EM interrogacao.com.br
Um road movie pelo sertão ou uma poesia sobre a fuga. Viajo por que preciso, volto por que te amo (Brasil, 2009) de Karim Ainouz e Marcelo
urbano, e fugir do imaginário popular sobre a região não é tarefa fácil. Em entrevista com o
Gomes, vai além da geografia dos espaços e do valor de uma simples frase de efeito surgida numa parede. Por ser poético e ficcional, sem deixar de documentar o real, pode-se dizer que ainda não se encaixa em um padrão do cinema brasileiro. O espectador embarca no filme como carona do lado do geólogo José Renato (Irandhir Santos). Ele tem 35 anos e é enviado ao sertão nordestino a fim de pesquisar as condições para um possível canal que será feito com o desvio de águas de um único rio caudaloso da região. Não vê-se o protagonista em momento algum, ele é apenas uma voz em off que orienta as cenas de um sertão que por horas é o mesmo árido de sempre e por outros momentos é um desconhecido, um grande vazio
diretor Jean-Claude Bernardet, Karim Ainouz e Marcelo Gomes, ambos nordestinos, falam sobre a necessidade que sentiam em experienciar, vivenciar de fato, tudo que ouviam e supostamente sabiam da região. Um trabalho, acima de tudo, sensorial. Viajo... foi gravado num período de aproximadamente 10 anos, partindo de um projeto que inicialmente seria sobre as feiras do interior nordestino. Karim Ainouz e Marcelo Gomes relatam que tinham uma ligação meio mística com as filmagens, mas até 2009 não tinham muita certeza do que fazer, até decidirem que seria um trabalho que envolveria as gravações do sertão mescladas a história de um personagem, o José Renato. A fotografia do filme chama atenção por mesclar imagens de slides e diferentes câme-
com luzes noturnas. José Renato é um apaixonado e ao mesmo tempo foge da decepção dessa paixão. Fazendo referências interessantes de momentos vividos e pequenos detalhes entre ele e sua mulher (que acabara de deixá-lo), o narrador constrói o cenário que assistimos aliando seus pensamentos dia após dia que se afasta (ou se aproxima) de sua casa. Fazemos parte desse diário de viagem. Tratar o sertão nordestino sem mitologias é um das características mais interessantes dos dois diretores. Construíram, com as experiências anteriores como em Cinema, Aspirinas e Urubus e O Céu de Suely, um novo conceito sobre a região. Afinal, os sertanejos também são afetados pela mídia e pelas desesperanças do
ras analógicas e digitais de video. Essa mistura resulta numa bonita colagem e visões sensoriais intensas a quem assiste. “Viajo...” é simples de concepções técnicas, porém se mostra carregado de uma narrativa intensa. Um filme para ser lido, ou uma leitura para ser vista. A sensação no fim do longa é a da necessidade de mudança. Zé Renato encara a viagem como uma transmutação do seu sentimento de perda e vazio. Ao vivenciar os 75 minutos dessa trajetória, fica uma necessidade de fuga que deixa o espectador buscando algo. Impossível não sair do cinema carregando um pouco do geólogo dentro de si. E mesmo que piegas, o espectador ao fim sabe que todos já viajaram porque precisavam e voltaram porque amavam algo ou alguém.
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PRÓLOGO
LER, VER, OUVIR
quadrinhos
ghost world, DANIEL CLOWES POR
mário césar ORIGINALMENTE PUBLICADO EM universohq.com
REPRODUÇÃO
daniel clowes
Originalmente publicada nos números #11 a #18 (junho de 1993 a março de 1997) da revista Eightball e, posteriormente, em formato de livro pela Fantagraphics Books, esta graphic novel é um dos mais ricos retratos sobre adolescência já realizados nos quadrinhos. Ghost World foca na fase final da adolescência, aquele momento no qual se define o que fazer da vida e o tipo de pessoa que se será dali em diante. Clowes enriquece a questão inserindo-a numa realidade específica: o mundo contemporâneo dominado pela cultura de massa. Afinal, como afirmar sua individualidade em um mundo onde todos seguem os mesmos modismos, consomem coisas idênticas e há um padrão de beleza pré-determinado? Exis-
se realmente existissem em alguma cidade perdida pelos Estados Unidos e desferem críticas ferinas ao universo em que vivem. Do ex-padre católico pedófilo ao pseudo-rebelde neonazista, ninguém é perdoado. Além da riqueza do texto, Clowes acerta em cheio nos desenhos, usando apenas um pálido tom de azul no lugar das cores para re-
te alguma filosofia de vida que ainda não foi transformada em produto de vitrine? E por que há uma apatia quase mórbida em relação a isso tudo? Cada protagonista procura uma saída diferente desta realidade. Enid vive mudando o visual e pretende abandonar o passado para se tornar uma pessoa completamente diferente. Já Rebecca odeia mudanças, tudo que deseja é ter uma vida simples como nos tempos do colegial, sem as cobranças de ser adulta. Com base nessa diferença, a trama se desenvolve e as protagonistas ganham uma profundidade rara. Enid e Rebecca pulsam como ESQUINA
presentar o mundo fantasmagórico a que se refere o título. Ghost World já ganhou uma bela adaptação para o cinema pelas mãos do diretor Terry Zwigoff e conta com as atrizes Thora Birch e Scarlet Johansson nos papéis principais. No Brasil, a versão traduzida da HQ foi lançada pela primeira vez em 2011, pela Gal Editora. 21
PRÓLOGO
OI, PRAZER!
portfólio de marcelo moscheta
marcelo moscheta
FOTOS
marco cappelletti, rafael dabul e marcelo moscheta
ARTISTA PLÁSTICO NASCIDO EM são josé do rio preto, em 1976 MORA EM campinas
Desde 2007 tenho trabalhado com pequenas expedições, deslocamentos, enfrentamentos diante de uma paisagem específica, e empregado essa experiência como combustível para a criação. Troco o conforto do meu ateliê, em Campinas, pela dificuldade de estar longe do que é controlável. Lá fora, na paisagem, não detenho controle do tempo ou do espaço e deixo-me, assim, aberto à experiência do maravilhamento com o entorno, para o encontro com a essência do lugar. Dentro do meu processo criativo existe um grande desejo de retratar deslocamentos por espaços geográficos distintos por meio da observação e coleta, semelhante a um trabalho arqueológico que me permite, como artista, capturar e repensar o próprio lugar onde estive. Existe um tempo inerente à obra de arte, uma forma de operar que não obedece a prazos e demandas, mas sim a um prazeroso e, ao mesmo tempo, angustiante processo de curiosidade premiada. Quando se viaja, a própria transformação não é vista no momento, pois a viagem reverbera dentro do viajante por um tempo, e seu caderno de viagem se torna completo somente quando ele volta para o lugar de onde partiu. Voltar ao ateliê depois do deslocamento pelo mundo é uma constante tentativa de transpor a relação com o lugar e medir a paisagem e a experiência em uma outra escala. Sobre a poética briga entre o olhar macro e o olhar micro, estão o homem e seu desejo constante de domar tudo o que há na terra, seu tempo e sua memória. Gosto da ideia de uma existência latente, algo que não se revela por completo. Que está ali, talvez de forma invisível ou incompleta, mas que não é percebida num primeiro contato mais distraído. Essa presença desprovida de visibilidade se revela como potência e assume então um espaço dilatado no tempo, pois ocupa o futuro em sua revelação, o presente em sua mensagem e o passado pela sua não materialização. Nesse espaço/tempo da obra, habitam os fantasmas, subtraídos de folhas de papel carbono, transferidos para outras superfícies, migrantes por excelência de uma paisagem igualmente cambiante. Evocar uma presença através ESQUINA
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PRÓLOGO
Fosile #1, 2015 EM EXPOSIÇÃO NA GALERIA RICCARDO CRESPI EM MILÃO
NA PÁGINA ANTERIOR:
Trauma, 2015 ROCHAS QUEBRADAS SOBRE BASE DE ARDÓSIA NA MESMA EXPOSIÇÃO
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PRÓLOGO
76 Graus Norte / Coluna, 2015 COLUNA DE CONCRETO CELULAR E FOTOGRAFIA
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Arrasto, 2015 INSTALAÇÃO COM ROCHAS E DESENHO NA CASA DO BANDEIRANTE
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de uma ausência é fazer um exercício de construção através de contraposições – e essa é minha forma de pensar o fazer artístico. O lugar geométrico do eu, como diria Ítalo Calvino, repousa na intersecção entre a linha do horizonte – a paisagem – e a linha vertical contida nela – meu corpo. Desse cruzamento, resultam as medidas necessárias para se construir um espaço/obra pautado na paisagem como referência para o eu. O ato de coletar pedras e transportá-las a um outro local é talvez um dos primeiros traços de uma civilização que deixa de ser nômade. Esse é o momento no qual o homem se vê transformador de seu entorno e, consequentemente, ganha o poder de interferir na Criação e também o de manipular elementos naturais para que trabalhem a seu favor. Assim, é desenhada a propriedade privada; agora, pode-se transportar uma rocha para se fazer um muro, cortar uma árvore para fazer uma cerca, manejar todo um sistema de plantios, de dispersão de sementes e de colheitas programada. A paisagem então se altera não somente pelos vulcões e grandes terremotos mas também pela mão do homem, que desenha sua história sobre a superfície do planeta. Eu vejo a paisagem como um contraponto para medir a mim mesmo, um referencial externo que possa dar a exata medida do tamanho do eu. Ideia romântica que presta reverência às últimas grandes explorações do século XIX, quando os polos do planeta e os cumes dos montes mais altos eram, por certo, uma descoberta do lugar e, ao mesmo tempo, do limite próprio do homem. Minha relação com a paisagem repousa numa tentativa primeira de construir um lugar ideal, uma imitação da natureza como retrato fiel das relações de perfeição e equilíbrio. Quero, assim, abarcar todas as possibilidades de entender um local, não somente por meios sensíveis, como o desenho ou a fotografia, mas através de formas racionais de se entender o Lugar: latitude, longitude, altitude, cálculos matemáticos e referências técnico/científicas. Os mistérios da força que age em segredo na natureza são recriados por vezes de maneira brutal; por outras, de forma delicada e quase imperceptível, num ato de se compreender de maneira integral a matéria da qual somos formados. “ANOTAÇÕES SOBRE DESEJOS CLASSIFICATÓRIOS E OUTROS INCÔMODOS CRIATIVOS” FOI ORIGINALMENTE PUBLICADO NO CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO CARBONO14, REALIZADA NA SIM GALERIA EM CURITIBA EM 2015.
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PRÓLOGO
Oriente, 2014 SITE SPECIFIC DENTRO DA IGREJA DE SAN FRANCISCO DE ASIS EM MONTEVIDÉO NA 2 a BIENAL DE MONTEVIDÉO
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PRÓLOGO
De onde vêm os nomes, 2014 INSTALAÇÃO COM AS PEDRAS E PARAFINAS NO ANFITEATRO DO SESC SOROCABA NA TRIENAL DE ARTES DE 2014
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PRÓLOGO
TEXTO
gabriela loureiro e helena vieira FOTOS julia rodrigues DIREÇÃO CRIATIVA fernanda didini ORIGINALMENTE PUBLICADO na revista galileu de novembro de 2015
Tudo o que você sabe está errado
Valentim nasceu em Colorado, no interior do Paraná, há 16 anos. Desde pequeno, seu comportamento fugia do padrão esperado para um menino: gostava de brincar de bonecas, preferia andar com garotas e às vezes vestia as roupas de suas tias. Não pegou muito bem na família. Era comum Valentim ouvir coisas como “vira homem” e “viadinho” durante a infância. O assédio machucava, mas, ao mesmo tempo, deixava-o confuso. Como ele poderia ser gay se também se sentia atraído por meninas? Como só tinha referências de homo e heterossexualidade, Valentim acabou se definindo como gay. Até que a modelo transgênera Andreja Pejic veio ao Brasil para um desfile e foi entrevistada por uma rede de TV aberta. Na época, ela se apresentava como um menino andrógino. A identificação foi imediata, e Andreja tornou-se sua grande referência. Valentim começou a pesquisar sobre a modelo na internet e conheceu a página Travesti Reflexiva, no Facebook. Foi quando entendeu o que é gênero e a diferença entre este e a orientação sexual. Entrou em contato com outras pessoas trans nas redes sociais e descobriu sua identidade: não binário e bissexual. Assim como a cantora Miley Cyrus e a atriz Kristen Stewart (que têm falado bastante sobre o tema na imprensa), Valentim não quer saber de ESQUINA
classificações homem x mulher ou gay x hétero. E ele não está sozinho: segundo pesquisa do instituto norte-americano YouGov, 46% dos jovens entre 18 e 24 anos se definem heterossexuais, e outros 6% se dizem homossexuais. Isso significa que 48% das pessoas estão fora desse espectro. É que a identidade de gênero é um pouco mais complexa do que nos ensinaram: diz respeito sobre quem somos, mas é regulada por instituições sociais e por nossa necessidade de categorizar indivíduos e suas atividades. O conceito de transgênero ainda é muito complexo para a maioria das pessoas, que não entendem o que isso tem a ver com identidade. Muitos acreditam que transexuais são apenas pessoas que nasceram no corpo errado, um homem preso no corpo de uma mulher ou viceversa. Outros acham que para ser considerado transgênero é preciso ter feito cirurgia de mudança de sexo. Quando se fala em transexualidade há uma imensa confusão entre identidade de gênero e orientação sexual. É comum pensar que mulheres trans e travestis são “tão gays que viraram mulher” — o que, obviamente, não é verdade. Sexo biológico é diferente de gênero e orientação sexual. O primeiro é referente ao órgão sexual do corpo humano. O gênero é a identidade do que é considerado feminino ou mas31
PRÓLOGO
culino, que não é universal e pode variar ao longo do tempo. Já a orientação sexual diz respeito ao tipo de atração, que pode ser por pessoas do mesmo sexo, do sexo oposto, os dois ou nenhum. Ou seja, uma pessoa transexual não é necessariamente homossexual. Na verdade, transgênero é um termo que abriga todos que não se identificam com o gênero atribuído a eles no nascimento e também quem não se identifica com gênero de forma alguma, que é neutro, fluido. Como Valentim. “Não nasci no corpo errado, a sociedade é que tem uma leitura errada dele”, diz. Bruce Jenner era um jogador de futebol universitário quando seu treinador o convenceu a tentar o atletismo. Depois de muito treinamento, competiu pelos Estados Unidos nos Jogos Olímpicos de 1976, quando ganhou a medalha de ouro na prova de decatlo. O último atleta a levar o título, quatro anos antes, era um soviético. Em meio à Guerra Fria, Jenner foi aclamado como o grande herói norte-americano. Foi convidado a dar palestras motivacionais para inspirar seus compatriotas durante o conflito. Mas o maior símbolo vivo do sonho norte-americano era só uma encenação. Jenner, na verdade, sempre foi uma mulher presa no corpo de um homem — no caso, o de um atleta famoso no mundo inteiro. Apenas recentemente ele anunciou que é transexual e, na capa da edição de julho da revista Vanity Fair, declarou: “Me chame de Caitlyn”. Em várias partes do mundo, transexuais ganham espaço na mídia, como a modelo brasileira Lea T e a ex-BBB Ariadna. Se por um lado isso ajuda a aumentar a visibilidade para o tema, por outro cresce a polêmica: a palavra “gênero” virou sinônimo de malESQUINA
dição para grupos religiosos conservadores. No Brasil, nunca se falou tanto no assunto como nos últimos meses, depois que o Plano Nacional de Educação entrou em votação e o termo “gênero” foi banido do texto após discussões acaloradas no Congresso. CORPOS BINÁRIOS
Durante milhares de anos, as hijras — o terceiro gênero, composto por transgêneros, eunucos e intersexos — foram líderes espirituais e políticos que celebravam casamentos, abençoavam crianças e ocupavam posições de prestígio na justiça indiana. Elas estão presentes em textos sagrados do hinduísmo, como o Mahabharata e o Kama Sutra. Foi assim até que a Grã-Bretanha colonizou a Índia e adotou uma lei, em 1897, que estabelecia que ser hijra era um crime. Desde então elas foram marginalizadas e obrigadas a mendigar ou se prostituir para sobreviver — só voltaram a conquistar seus direitos no ano passado, quando o governo indiano instituiu a categoria terceiro gênero nos documentos oficiais e as cotas de emprego e de educação para o grupo. As hijras são uma prova de que gênero tem muito mais a ver com a sociedade na qual vivemos do que com nossa identidade em si. E trazem à tona o debate: só há uma forma de ser homem ou mulher? Ou há uma multiplicidade de masculinidades e feminilidades possíveis? “É menino ou menina?” costuma ser a primeira pergunta depois do anúncio de uma gravidez. Se a criança não se adaptar ao que é esperado do comportamento de uma menina ou menino, é provável que passe o resto da sua vida ouvindo a mes32
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ma pergunta — só que em forma de xin- nero (aquela que se reconhece com o gêgamentos e ataques. Não é por acaso que nero que lhe foi atribuído ao nascer), ou essa é a primeira pergunta feita a respeito uma identificação diferente, no caso da de um ser humano, e também uma das trans, que pode se reconhecer com o gêmais importantes. Mesmo quando não nero oposto, com nenhum gênero ou com se fala abertamente sobre isso, é como uma experiência de si que escapa ao sisse só existissem dois grupos e pessoas: o tema binário homem/mulher. Mas nem dos homens e o das mulheres. Ao nas- toda pessoa que não se reconhece como cer, você é automaticamente colocado cisgênero é trans, já que existem nuances num dos dois, baseado nos seus órgãos e variações de pertencimento. É o caso da genitais. Se tiver um pênis é menino, se “queer”, classe de pessoas que não se retiver uma vagina, menina. Dali em dian- conhecem em nenhum extremo. te, sentirá a pressão para se conformar com as características designadas a você. GÊNERO E DISCIPLINA Meninos gostam de azul, jogam videoga- Alex era um menino de 8 anos da peme e são agressivos, enquanto meninas riferia do Rio de Janeiro que gostava de gostam de rosa, brincam de boneca e são dança do ventre e de lavar louça. Seu pai, naturalmente passivas e emotivas. Duas Alex André Moraes Soeiro, de 34 anos, categorias para toda a raça humana. Será não aprovava o jeito afeminado da criano bastante? De acordo com os estudos de ça e tentava corrigi-lo. As surras eram regênero, um campo de pesquisa acadê- correntes e tinham como objetivo ensimica que surgiu dos estudos feministas nar o filho a andar como homem. Como e pós-estruturalistas dos anos 1960, a o pequeno não chorava enquanto aparesposta é não. nhava, o pai batia ainda O BRASIL É O PAÍS mais. Um dia, a criança se Ainda ligamos gêneMAIS VIOLENTO PARA recusou a cortar o cabelo ro ao sexo biológico e nos PESSOAS TRANS, para ir à escola e o pai reacostumamos a pensar que SEGUNDO A ONG solveu acabar com aquela isso é natural. No âmbito TRANSGENDER desobediência. De tanto da patologia, os indivíduos EUROPE: 1.731 apanhar, o fígado de Alex que fugiam dessa naturaliPESSOAS TRANS foi perfurado e ele sofreu dade foram chamados de FORAM MORTAS uma hemorragia interna. “transexuais” — ou seja, ENTRE 2008 E 2015 Chegou ao hospital morto, desviantes. RecentemenNO MUNDO, SENDO com hematomas pelo corte, com os estudos de gê689 DELAS NO PAÍS po todo e sinais de desnunero, começaram a pensar que essa designação inicial trição. Alex pagou com a e tida como “natural” é também arbitrá- vida o preço de não se adequar às norria. Não há uma naturalidade exclusiva mas de gênero impostas pela sociedade na relação gênero-genital. O que existe é e aplicadas de forma implacável pelo uma identidade, uma forma de se reco- próprio pai. Ele não foi o único. Em 2014, nhecer. Ela pode ser um sentimento de 326 pessoas foram assassinadas no Brapertencimento, no caso da pessoa cisgê- sil por não se encaixarem nessas regras, ESQUINA
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PRÓLOGO
segundo relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB). É um número 4% maior do que o registrado no ano anterior. Entre as vítimas, 134 gays, 134 travestis, 14 lésbicas, 3 bissexuais, 7 amantes de travestis e 7 heterossexuais confundidos com homossexuais. A mensagem que essas estatísticas sobre violência contra a população LGBT passa é clara: se você desobedecer às regras de gênero vai sofrer uma punição física e pode até morrer. É o poder coercitivo de gênero como forma de policiar as pessoas, de acordo com Judith Butler, uma das mais respeitadas filósofas de gênero da atualidade. Judith parte das premissas do filósofo francês Michel Foucault para explicar como as regras de gênero são performáticas e não passam de fenômenos repetidos para simular uma ideia de naturalidade. Foucault disse que a disciplina é um instrumento de dominação e controle para domesticar comportamentos divergentes. Com o Iluminismo, várias instituições de assistência e proteção aos cidadãos — família, hospitais, prisões e escolas — foram consolidadas como mecanismos de controle. Mas o filósofo não acreditava que o poder de coerção tinha uma só origem, como o Estado, e sim que surgia de diversas fontes: são os micropoderes que transformam as condutas das pessoas. Uma das formas de exercer poder é por meio de discursos. Assim, as piadas, o modo como nos referimos a alguém e até os xingamentos contribuem para normalizar alguns comportamentos e estigmatizar outros — exemplo: usar a expressão “que gay!” quando alguém demonstra seus sentimentos ou a palavra “viado” ou “travesti” como xingamento. Judith utiliza essa premissa do ESQUINA
discurso para tentar dissolver a dicotomia sexo versus gênero. Para ela, vivemos numa ordem compulsória que exige coerência total entre sexo, gênero e desejo sexual, que são obrigatoriamente heterossexuais. A autora sugere, então, a contestação das expressões de gênero, já que a identidade é formada com base na repetição de atos performativos, ou seja, atitudes e gestos que constroem o que é feminino e masculino. FORA DOS LIVROS
Por mais que a diferenciação de gêneros pareça natural, ela não é. Boa parte dessa explicação está no papel da medicina na Europa no final do século 18. Com a Revolução Industrial, a população europeia começou a se concentrar em áreas urbanas, migrando do campo para as cidades. A concentração de pessoas de diferentes regiões num mesmo lugar provocou surtos e doenças, que alavancaram a importância e o desenvolvimento da medicina. Áreas como psiquiatria, sexologia e psicanálise viram nisso a oportunidade de categorizar doenças para atrair mais pacientes aos consultórios. Assim, os especialistas substituíram os padres no papel de guardiões das práticas sexuais e determinaram os comportamentos aceitáveis e os patológicos. Tudo que não tinha fins reprodutivos foi considerado degeneração: homossexualidade, transexualidade, masturbação, prostituição. Ainda hoje, a transexualidade é considerada um transtorno mental pela medicina, como era a homossexualidade até os anos 1970.
LEIA O RESTANTE DA MATÉRIA NA REVISTA GALILEU DE NOVEMBRO DE 2015.
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PRÓLOGO
AUTOR
joão guimarães rosa ILUSTRAS lorena morais
a terceira margem do rio GUIMARÃES ROSA É DESSES QUE FAZEM O PEITO REMEXER ENQUANTO SE LÊ OS ESCRITOS. CONTISTA E ROMANCISTA MINEIRO, AMBIENTA SUAS ESTÓRIAS QUASE SEMPRE NO SERTÃO BRASILEIRO. O CONTO ‘A TERCEIRA MARGEM DO RIO’ FOI PUBLICADO PELA PRIMEIRA VEZ NOS ANOS 1960 E É CONSIDERADO UMA DE SUAS OBRAS-PRIMAS
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Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa. Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta. Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa. Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho. ESQUINA
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Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s’embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa. No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava. Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o ‘dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, ESQUINA
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não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele. A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos. Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia. ESQUINA
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Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — “Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim...”; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados. Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos. Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem ESQUINA
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pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia. Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo. Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.
CONTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NO LIVRO ‘PRIMEIRAS ESTÓRIAS’, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA, EM 1962
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camila almeida FOTOMONTAGENS marianna schmidt
QUE A TECNOLOGIA JÁ INFLUENCIA DIRETAMENTE A FORMA COMO VIVEMOS A CIDADE NÃO É NOVIDADE. MAS O DESAFIO ESTÁ POSTO: COMO NÃO PERDER DE VEZ O SENSO DE COLETIVIDADE? O ESCRITOR E PESQUISADOR MARTIJN DE WAAL ESTUDA COMO PODEMOS APLICAR A TECNOLOGIA DE FORMA INTELIGENTE, SEM ISOLAR AS PESSOAS NAS TELAS DOS SMARTPHONES.
Imagine caminhar por uma cidade em que as calçadas vão se acendendo à medida em que as pisamos; se tornam letreiros luminosos, com informações sobre os prédios que as margeiam. Então, você decide se sentar para tomar um café. Faz o pedido diretamente pelo celular e, no cardápio online, já estão inclusas dicas de livros e revistas que você pode baixar para degustar no fim da tarde. Na saída, seu celular te avisa qual o jeito mais rápido de voltar para casa, te lembra que há um ponto de aluguel de bicicletas ali perto e te sugere: que tal parar na galeria de arte que há no caminho e conferir uma exposição lançada recentemente? Uma notificação direto da sua geladeira: passe no mercado, os ovos e o leite acabaram. Nada disso parece muito distante do que temos hoje; e boa parte é até realidade. Que esse caminho não tem volta é fato: a tecnologia faz parte da nossa rotina. Nós checamos a previsão do tempo e o horário em que o ônibus vai passar antes de sair de casa. Nossos celulares ESQUINA
são os mediadores das nossas relações. É através deles que marcamos encontros, fotografamos onde vamos, memorizamos o que vemos. Eles influenciam diretamente a forma como nos relacionamos com a cidade. A vida urbana não acontece mais, exclusivamente, na cidade. Ela já acontece virtualmente. Conveniência e eficiência são vantagens indiscutíveis. Mas é importante lembrar que as mídias não estão alterando só o o modo como nos relacionamos com o espaço urbano; o próprio funcionamento da cidade está se alterando. Entender como isso acontece é a proposta do escritor e pesquisador holandês Martijn de Waal. Há oito anos, ele fundou o projeto The Mobile City, plataforma para produzir conhecimento sobre cidades e tecnologia e, em 2014, lançou o livro The City as Interface, que discute como as mídias digitais podem melhorar a vivência nas ruas e empoderar cidadãos. Batemos um papo durante um workshop que ele ministrou em São Paulo. A proposta? Saber como hackear uma cidade. 46
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Sua cidade sera hackeada
EU QUERIA QUE VOCÊ COMEÇASSE EXPLICANDO COMO A EXPERIÊNCIA DE HACKING PODE SER APLICADA NAS CIDADES.
Hacking é um termo da computação, que significa usar algo para além de sua função prevista. Se você olha para São Paulo, por exemplo: ela é uma cidade projetada para carros, seu sistema é construído para dar espaço aos carros, então se quisermos hackeá-la e torná-la mais atraente para ciclistas, como podemos usar as mídias digitais para isso? Um jeito de convidar as pessoas a usarem suas bicicletas é mostrar que elas vão perder menos tempo no trânsito — podemos, então, fazer um aplicativo que calcule quanto tempo vai demorar para essas pessoas se deslocarem de um ponto A a um ponto B e comparar o quanto demoraria de carro. Você poderia montar um mapa para bicicletas, e esse mapa seria muito diferente do mapa normal, já que São Paulo é uma cidade montanhosa. De carro, você pode subir o morro, mas, de bicicleta, você pode preferir dar a volta, e esse mapa traçaria rotas diferentes para ciclistas. Também dá para criar uma ferramenta para que eles fotografem áreas problemáticas. Com esse acervo de fotos, podemos dizer: “vamos fazer algo para mudar isso”. É isso que tentamos fazer: usar novas mídias e tecnologias para hackear a cidade, mostrar alternativas e dar poder de transformação às pessoas. EM SEU LIVRO, VOCÊ COMEÇA DIZENDO QUE O BILL GATES O INSPIROU...
Sim, mas de um jeito negativo, porque ele disse: “No futuro, não precisaremos marcar manutenção para nossos carros. O carro vai saber quando está com defeito, vai avisar para o mecânico, que ESQUINA
vai marcar um horário, e vai aparecer na nossa agenda”, um desses cenários em que a tecnologia faz tudo por você. Ele disse que é a magia do software que faz tudo isso. O que me intrigou foi a palavra “magia”. Eu não acredito em mágica. Os softwares fazem o que as pessoas escrevem no código. Para desenvolver essas tecnologias inteligentes, é preciso visualizar a cidade como um produto. E estamos criando modelos de cidade muito eficientes. Uma boa cidade é aquela organizada do jeito mais eficiente possível. Mas, ao mesmo tempo, uma das coisas excitantes da cidade são as ineficiências, os confrontos, os espaços públicos, os diferentes tipos de pessoas, que têm vivências diferentes. Os softwares foram feitos para regular tudo isso. Não faz sentido produzir um software para deixar a cidade mais ineficiente. Então, o que eu estou tentando dizer é que nós não devemos pensar na tecnologia como algo neutro. Essa ferramenta pode ajudar, mas ela também molda o mundo de um jeito particular; e de que jeito nós queremos que a tecnologia molde a cidade? Essa é uma discussão enorme, que não é muito feita. Nós só pensamos em deixar a cidade mais eficiente. 48
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VOCÊ DIZ QUE A TECNOLOGIA TAMBÉM PODE SER PROBLEMÁTICA QUANDO SE PERDE A NOÇÃO DO COLETIVO. COMO PODEMOS MINIMIZAR ESSE EFEITO NEGATIVO?
O que buscamos é focar em tecnologias que unam as pessoas, e não que as separem. O que essas tecnologias fazem muito bem é encontrar coisas que te interessam. Em vez de andar pela cidade, basta usar seu smartphone para achar um restaurante perto de você ou para ver uma dica de um aplicativo, que escolhe um lugar com base no que seus amigos recomendaram. Isso é útil, a cidade pode se tornar mais interessante nessa perspectiva personalizada, e você pode até descobrir lugares que nunca teria imaginado. O único risco é que nós acabemos numa filter bubble, em que todo o mundo à nossa volta está sendo filtrado pelo software, e nós só enxergamos aquilo que se adequa aos nossos interesses e acabamos perdendo a diversidade da cidade. As pessoas gostam dos filtros, fica mais fácil circular por aí, mas eles devem ser acompanhados por mecanismos de conexão entre pessoas diversas. Um jeito de fazer isso é usar uma mesma plataforma para trabalhar interesses comuns. O ciclismo, por exemplo, pode atrair pessoas com backgrounds diferentes, que tem gostos de músicas diferentes, e isso não impede que vocês se encontrem para pedalar. Nos apps que trabalham na linha da economia colaborativa, existem esses mecanismos que podem reunir novamente as pessoas. Nós conseguimos colaborar uns com os outros de novo, cooperar com nosso bairro, talvez até comprar um carro e compartilhar com outras pessoas. Isso é uma teoria. Quando olhamos para as pesquisas, ainda não temos ESQUINA
certeza sobre o que isso vai virar. Mesmo na economia colaborativa, pode acontecer de você só querer interagir com seus amigos do Facebook, já que você não sabe em quem pode confiar. NÓS JÁ PERDEMOS ESSA CAPACIDADE DE NOS REUNIR?
As pessoas envolvidas com economia colaborativa dizem que “nós estamos trazendo as vilas de volta à cidade”. Na vila, todo mundo se conhece, você sabe em quem confiar. Se você quer pedir emprestada uma furadeira, eu empresto, porque sei que você vai devolver. Se você é meu vizinho e ainda assim eu não conheço você, eu vou pensar que eu não devo emprestar. Mas, com um sistema de reputação numa plataforma, onde eu possa conhecer um pouco mais sobre você, isso pode me ajudar a confiar. Isso é uma promessa do compartilhamento colaborativo — combinar os aspectos positivos das vilas com os das cidades. E COMO VOCÊ ACHA QUE PODEMOS TIRAR AS PESSOAS DA ZONA DE CONFORTO, ESTIMULANDO QUE ELAS FAÇAM COISAS QUE GERALMENTE NÃO FAZEM?
Essa é uma boa pergunta. Uma dos pontos é mostrar que há vantagens, como no exemplo do ciclismo que eu dei. Outro ponto é organizar eventos na cidade física, usar o espaço público físico. Reunir 50
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divulgação FOTO
O ESCRITOR E PESQUISADOR MARTIJN DE WAAL E A CIDADE DE SÃO PAULO: OS DESAFIOS DE APLICAR A TECNOLOGIA À VIDA NAS GRANDES CIDADES SEM ISOLAR AS PESSOAS EM SEUS SMARTPHONES
pessoas para ir a uma feira, para fazer compras na rua. Acho que esse é um aspecto muito importante. Você pode até construir uma plataforma, mas o que você realmente precisa mesmo é construir engajamento e confiança. MAS MESMO QUANDO AS PESSOAS SE ENCONTRAM, ACABAMOS VENDO SITUAÇÕES EM QUE ELAS NÃO SE DESCONECTAM DO TELEFONE E NÃO INTERAGEM.
É, isso pode acontecer. Li uma pesquisa que analisou adolescentes japoneses usuários de smartphones; e eles viram que a noção de presença deles mudou. Estar presente não significa necessariamente estar aqui fisicamente, você também se conecta através desse dispositivo. É um jeito de ampliar seu círculo social no mundo e chegamos ao ponto de não saber mais definir o que é estar presente. Claro que isso não é bom para a qualidade da relação social e pode distrair você do que está acontecendo aqui e agora, mas nós ganhamos outras coisas, eu acho. ESQUINA
ENTÃO VOCÊ ACHA QUE A VIDA URBANA NÃO É MAIS APENAS FÍSICA?
Sim, eu acredito nisso. A tecnologia também é vida real, o Facebook faz parte da cidade. O melhor é procurar pelas combinações. A maioria das plataformas bem sucedidas organizam eventos físicos, em que as pessoas se juntam, conversam. Nós falamos nas redes sociais sobre as coisas que fazemos, nós tuitamos, nós tiramos fotos e compartilhamos. E as outras pessoas acompanham o que fazemos, sabem quem está conosco, e isso afeta a forma como elas enxergam os lugares também. O que fazemos não está mais confinado no aqui e agora, é uma nova forma de viver a cidade. 51
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SÃO PAULO É UMA CIDADE MUITO GRANDE; SÃO 11 MILHÕES DE PESSOAS E NEM TODAS TÊM INTERNET, NEM TODAS TÊM CELULARES. COMO É POSSÍVEL DEMOCRATIZAR ESSAS FERRAMENTAS, QUANDO NEM TODAS AS PESSOAS ACESSAM OS MESMOS RECURSOS?
Eu acho que isso é uma preocupação e isso pode ser problemático se a cidade inteira se organiza através dessas camadas de aplicativos. Por outro lado, se você vê os estudos em lugares como África e Ásia, uma das primeiras coisas que as pessoas fazem quando conseguem juntar algum dinheiro é comprar um celular. É uma ferramenta importante, especialmente para quem faz trabalhos informais. Um cabeleireiro pode ficar parado numa esquina para divulgar seu trabalho, pode anunciar seus serviços em um app ou pode apenas dar seu número de contato para as pessoas, e, assim, já estar conectado a um público maior. E isso pode ser um estímulo para a economia formal. VOCÊ ACREDITA QUE A TECNOLOGIA PODE TORNAR AS CIDADES MAIS JUSTAS?
Eu espero que sim. Acho que o mais interessante é como nós podemos usar a tecnologia para empoderar pessoas, dar mais voz aos cidadãos para que eles possam mudar a cidade para melhor, ter mais qualidade de vida. Para que possam relatar o que acontece ao redor deles, possibilitando que se organizem em torno das questões do bairro, como a coleta de lixo, a falta de parques ou problemas com a empresa de energia. Não é tanto sobre diminuir a desigualdade social, mas sobre dar às pessoas a noção de que a cidade também é propriedade delas. ESQUINA
COMO É A CIDADE QUE VOCÊ IMAGINA NO FUTURO? NÃO É ESSA DO BILL GATES…
Não tenho tantos problemas assim com a cidade de Bill Gates, porque eu gosto de cidades eficientes. Mas ao mesmo tempo, gosto da vida nos lugares públicos e das ferramentas que impulsionam os cidadãos a melhorar a cidade ao redor deles. Uma das coisas que escrevi no meu livro é que o que faz uma cidade diferente de uma vila é que, na cidade, estamos sempre cercados por estranhos. E essa é uma das coisas assustadoras da vida urbana, você não conhece as pessoas, não sabe se pode confiar nelas. Mas, ao mesmo tempo, é um dos motivos para estarmos na cidade, é estimulante estar entre estranhos. E não é só estimulante, é produtivo. Você tem muito mais escolha em todos os tipos de serviço, ou em qualquer tipo de subcultura à qual você queira pertencer. E é especialmente interessante quando esses mundos diferentes colidem; é quando a inovação acontece, a sociedade se desenvolve. Pra mim, isso que é uma cidade desenvolvida, e eu estou interessado em como a tecnologia pode nos ajudar a reforçar esses encontros. 53
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CIDADE FANTASMA Carol Vargas nos apresenta Humberstone, uma cidade no deserto do Chile. Desenvolvido por conta de exploração de sal e depois abandonada, o lugar mantém-se quase inalterado, quase cenográfico, com marcas apenas do tempo, já que pessoas não passam mais por ali
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CONCEPÇÃO E IMAGENS carol vargas FOTOGRAFADO EM humberstone, no chile
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S A O PAUL O
GUIA PARTICULAR DE ESQUINAS
cidade de são paulo
SÃO PAULO FOI ESCOLHIDA PARA A PRIMEIRA EDIÇÃO DO GUIA PARTICULAR DE ESQUINAS POR REPRESENTAR COMO NENHUMA OUTRA A IDEIA DE TRÂNSITO: NÃO SÓ POR SUAS RUAS E TRENS, SEMPRE CHEIOS, OU POR SEUS RIOS, AGORA TÃO VAZIOS, MAS POR SUA VOCAÇÃO DE SER DESTINO. APRESENTAMOS A CIDADE SOB A PERSPECTIVA DE QUEM NASCEU PAULISTANO E PERTENCE A CADA ESQUINA E DE QUEM CHEGOU AGORA, MAS VÊ NESSE CAOS UMA POSSIBILIDADE DE CASA.
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bruna estevanin NASCIDA EM miracema, MORA EM são paulo
rio de janeiro, em 1990
Bruna Estevanin se formou em jornalismo porque prefere ouvir que contar histórias e porque acredita que o copo está sempre meio cheio e meio vazio. Trabalha com operações de mídia, adora jogar baralho e coleciona guardanapos nas horas vagas.
Para entender, olhe as esquinas
história, mas certamente da fisionomia. É que as pessoas nas filas nunca são as mesmas. Os passageiros que esperam ansiosos no ponto de ônibus também não. Nas ruas, os carros nunca são iguais. E essa é a primeira grande lição que São Paulo te ensina: ser estranho é normal. Você é um estranho todos os dias para quem cruza ao seu lado na calçada. Arrumei um quarto improvisado para morar. Depois outro. E mais um. Até chegar numa pensão improvisada. Na quinta e última mudança, entendi o recado: demora um tempo para você se sentir em casa. Mais tarde, arrumei um emprego, que é pra isso que a gente vem pra São Paulo, muito embora o ficar derive de motivos outros tantos. Comecei a
Quando desci na rodoviária Tietê, eu não sabia. Não sabia se iria ficar, se iria dar certo, se iria ser difícil pra burro ou se iria tirar a cidade de letra. Ainda sem saber, passeei os olhos sonolentos pelos corredores lotados e pela fila do metrô que, se ainda não fosse, faltava pouco. Era gente de todo canto, de todo credo, de toda raça. Nesse primeiro encontro, descobri, também, meu primeiro lugar preferido. O terminal rodoviário, tão longe, tão cinza, tão caótico nas vésperas de feriado, era belo. Não dessas belezas óbvias, escancaradas, mas dessas sutis, escondidas nas frestas e nas histórias anônimas que ora esperam demoradamente pela partida do ônibus, ora correm apressadas para não ficar para trás. “Moço, o senhor me vê por favor um bilhete de metrô sentido Jabaquara?”, pedi, receosa. O moço me devolveu um bilhete e um sorriso. “Não tem sentido, não. É só escolher o lado e ir”, brincou, ainda que estivesse apenas falando a verdade. São Paulo não tem sentido. Agradeci o conselho e, curiosamente, não senti minhas bochechas ardendo e se avermelhando de vergonha como de costume. Sabia que logo ele se esqueceria do meu rosto. Talvez não da minha ESQUINA
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EPÍLOGO
marianna schmidt FOTOS
acordar mais cedo, a voltar mais tarde e a tomar o café da manhã pelo caminho. A vida corre, a cidade anda rápido e, assim, a gente também. Aqui, os passos são mais urgentes, os minutos e as horas se apequenam e se amontoam em meio a agendas cheias de compromisso e até o domingo, bocejante e preguiçoso, corre sem saber o por quê. Em São Paulo, a gente também aprender a reclamar. Reclamar da cidade é um hobby comum a todos os habitantes, de todas as classes sociais – e, se você não reclama, espere alguns meses a mais. Mas basta receber uma visita de fora e identificar um orgulho despontando timidamente toda vez que falar dos seus lugares preferidos, como se você tivesse nascido, crescido e morado aqui a vida inteira. Não é que seja bonito. Aqui não tem praia, não tem bossa, não tem brisa. ESQUINA
Aqui, nem garoa tem mais. Mas aqui tem gente. Muita gente. São Paulos, Antônios e Irenes, do Sul, do Norte ou de Campinas mesmo, dividindo o mesmo cinza. Todos eles vão concordar que essa não é uma cidade fácil. Não é. É preciso domesticar-se e aprender São Paulo. É preciso domesticar São Paulo e aprender você. Você, na cidade grande. Você, no avesso do avesso do avesso. “São Paulo não tem dono”, é o que me vem à cabeça, vez ou outra. Basta observar as esquinas para comprovar: de noite, a cidade do trabalho. De noite, as crianças querem dançar. Faz um ano e nove meses que moro aqui. Mas faz só dois meses que sou apaixonada. Precisei cruzar minhocões, me perder e me estressar no trânsito, subir correndo mesmo estando na escada rolante – e me recriminar mentalmente por isso – até o amor chegar. E me lembro com carinho desse dia. 69
EPÍLOGO
Algumas esquinas AV. PAULISTA COM A RUA AUGUSTA. SE ENCANTAR PELA PAULISTA É UMA DESSAS CERTEZAS QUE VOCÊ APENAS AQUIESCE COM A CABEÇA E ACEITA QUANDO CHEGA A HORA. NÃO É NEM A ARQUITETURA, NEM OS PRÉDIOS GRANDES, NEM AS PESSOAS. É O CONJUNTO TODO – E O CONJUNTO NACIONAL TAMBÉM. DE DIA, EXECUTIVOS ENGRAVATADOS ANDAM APRESSADOS, ENTRANDO E SAINDO DO BANCO SAFRA. DE NOITE E AOS FINS DE SEMANA, O MESMO LOCAL, SÍMBOLO DO PIB OSTENTAÇÃO DA CAPITAL PAULISTANA, VIRA PALCO DAS MAIS DIVERSAS MANIFESTAÇÕES DE ARTE DE RUA. AV. PAULISTA COM A RUA CONSOLAÇÃO. VOCÊ NÃO PRECISA SABER POR QUE O METRÔ DA AV. PAULISTA SE CHAMA “CONSOLAÇÃO”, ENQUANTO A ESTAÇÃO DA RUA CONSOLAÇÃO SE CHAMA “PAULISTA”. NINGUÉM SABE. MAS NÃO PODE DEIXAR DE DESCOBRIR O SEBO QUE HABITA A PASSARELA SUBTERRÂNEA QUE LIGA AS DUAS MARGENS DA CONSOLAÇÃO, BEM NA ESQUINA DA AVENIDA MAIS FAMOSA DA CIDADE.
Chovia. Não tinha dinheiro nem crédito no Bilhete Único para pegar o ônibus para o trabalho. Tentei o caixa 24h perto de casa. Não funcionava. Ao lado, uma loja da Kopenhaguen me encarava, convidativa. Entrei. Pedi um chocolate quente para viagem, mandei a economia às favas e decidi ir para o trabalho de táxi. “Easy”, do Lionel Richie, tocava na rádio ao fundo, enquanto eu observava o céu cinza com um sorriso no rosto. “I’m easy like a Sunday morning”, embalava o refrão, traduzindo que eu sentia. São Paulo é linda quando está nublada. É como se o céu, autossuficiente e solitário, não precisasse do sol para ser bonito. Como se a nuvem imponente prenunciasse uma chuva obrigatória, ainda por vir. E como se todos debaixo dela aguardassem juntos.“São Paulo ainda quer ser”, pensei. Paguei a corrida, agradeci. E, enquanto descia do táxi, lembrei da primeira vez que desci na rodoviária Tietê, ainda sem saber se ia ficar. Besteira. Em São Paulo, o pé gruda e a gente sempre fica. Fiquei. ESQUINA
RUA HARMONIA COM A RUA SIMPATIA. NO CORAÇÃO DA VILA MADALENA, A RUA HARMONIA PEDE ESPAÇO PARA PASSAR. DESCE LENTAMENTE POR ENTRE OS BARES, GRAFITES E LADEIRAS, APRESENTANDO A BOEMIA DA TERRA DA GAROA, ATÉ CRUZAR, QUASE AO FIM, COM A RUA SIMPATIA, LEMBRANDO QUE O PAULISTANO TAMBÉM SABE, AO CONTRÁRIO DO IMAGINÁRIO POPULAR, GOZAR DOS PRAZERES DA VIDA. AV. IPIRANGA COM A AV. SÃO JOÃO. NÃO SEI SE ALGUMA COISA VAI ACONTECER NO SEU CORAÇÃO NO CRUZAMENTO DESSAS AVENIDAS, MAS CAETANO NÃO A MUSICOU A TOA. O CENTRO DE SÃO PAULO, QUE TAMBÉM FOI CENTRO DE REVOLUÇÕES, ARTÍSTICAS, POLÍTICAS E ECONÔMICAS, CONVERGE HOJE TODA A EFERVESCÊNCIA DAS CULTURAS RETIRANTES QUE FAZEM DAQUI A CAPITAL MAIS PLURAL DO PAÍS. AV. FARIA LIMA E RUA TEODORO SAMPAIO. QUEM OLHA DALI – LARGO DA BATATA E SUAS MANIFESTAÇÕES SOCIAIS DO LADO DIREITO, TEODORO SAMPAIO E SEUS CAMELÔS DO LADO ESQUERDO – NÃO IMAGINA QUE, À FRENTE, SE ENCONTRA UMA DAS AVENIDAS MAIS IMPONENTES DA CIDADE. É EM MEIO À MUVUCA À LA 25 DE MARÇO QUE NASCE A FARIA LIMA, SEUS HELIPONTOS E TODOS AQUELES EDIFÍCIOS DE MÁRMORE.
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NASCIDA EM são paulo, MORA EM são paulo
em 1990
Bárbara Carneiro nasceu em São Paulo em 1990. A maternidade ficava na Avenida Paulista, mas sempre morou na Zona Norte. Acostumou-se a dormir na casa dos outros pra não correr o risco de perder o metrô da volta.
As esquinas de São Paulo
Só muitos anos mais tarde descobriríamos que um dia tudo tinha sido rio e colinas, que existe capilaridade - ou deveria existir - fluvial em São Paulo. Fato é que subíamos a Águas de São Pedro em meio a uma de nossas primeiras brigas. Coisa estúpida, brigar na subida da ladeira; logo eu que tenho assim um pulmão tão anêmico e um fôlego tão curto! Não me lembro da razão da discussão. Só lembro que foi na esquina da Águas de São Pedro com a Nova Cantareira que virei meu corpo em direção ao seu, fiz uma barreira intransponível enquanto olhava seus olhos e nos beijamos. A discussão terminou ali, de um jeito tão bobo como começou, imagino agora. Imagino agora que invejo minha própria juventude e o privilégio que ela tinha para resolver seus conflitos. Algo que se perdeu no tempo, levado em alguma enchente, na cheia ocasional do Rio Tremembé e seus córregos afluentes.
I Não importa de que ângulo você olhe: São Paulo sempre parecerá um acidente. Parece acidente quando a gente vê as fotos de satélite, a mancha urbana, seus quarteirões desconfigurados. Os acidentes topográficos distantes do centro da cidade, que nos levam ao alto dos morros do Imirim ou do Campo Limpo. Só pode ser acidental a cor roxa nos crepúsculos de maio, da junção do céu sem nuvens com os componentes tóxicos do ar. E a gente toda ainda por aí achando que é acidente ter parado justamente em São Paulo, quando seus avós vem de sabe-se-lá-onde, os pais vieram de longe e a pessoa mesma sabe que a vida é muito maior (embora não pareça) do que esses doze milhões de habitantes em 1.500 quilômetros quadrados. Imprevisto como um acidente foi a descoberta de que é aqui o meu lugar no mundo - e eu gosto disso.
III No bar da esquina da Vergueiro com a Dr. José de Queirós Aranha, numa dessas sextas-feiras de outubro, com vestibulandos ao nosso redor, garçons displicentes, porções que acabam antes das onze da noite, a mesa vai se enchendo de garrafas de cerveja. Fazia meses que
II A gente subiu a Avenida Águas de São Pedro em uma discussão interminável. Saímos do vale da Avenida Nova, o apelido que os zonanortenses deram à Luiz Dummont Villares, rumo à minha casa. ESQUINA
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a gente não se via e a conversa era sobre “oi, como você tem ido nesses tempos?”, até que poucos copos depois a conversa era sobre como tudo anda tão estranho, como parece que chegamos a um ponto de virada, como esse casal atrás de você parece de filme, assim parado no meio da calçada se beijando apaixonadamente, o que também é estranho. Todos nós parecemos estar num ponto de virada. Muito estranho como ninguém está muito bem. A gente volta pro apartamento andando a pé, abraçadas, ainda matando saudades. E dividimos a cama e a gata divide também e aí tudo fica bem.
IV Havia uma perplexidade desencadeada pelo cruzamento da Cruzeiro do Sul com a Ataliba Leonel. Vinte anos atrás, imagine. Não havia gramado algum nem graffitis coloridos. Eu era muito nova. Muito mesmo. Criança. E meus olhos congelavam naqueles prédios baixos, feito caixas mal-tratadas, com pernas - infinitas pernas - que escapavam pelas grades das janelas. Perseguia com o olhar aquela imagem enquanto percorria aquela esquina. Em um domingo na casa da Patrícia, aos onze anos, fomos surpreendidas com o barulho ensurdecedor de helicópteros e, intercalando idas à janela e olhadas para a televisão, víamos uma fumaça cinza saindo daquela esquina, ouvíamos informações desencontradas sobre reféns, líamos pela primeira vez a sigla do comando. Foi ao vivo, com imagens aéreas, que aquelas pernas dependuradas ganharam corpos na transmissão da rebelião de 2001 do Carandiru. V Não se chama aquilo de esquina, porque são planos diferentes, mas foi no entroncamento das linhas vermelha e azul que ele pegou meu número de telefone. Em São Paulo, acaricia-se o caos e envolve-se em amores fortuitos, sem signos nem sobrenomes. E, ainda assim, resta-nos algo. Resta-nos o dilema de se é preferível ir pelo Paraíso ou pela República para se sair da 3-vermelha e chegar na 2-verde. Resta-nos a cumplicidade do mesmo senso de ironia ao rir da abordagem de senhoras com o Evangelho na mão quando saíamos de um motel barato na esquina da Rua Mauá com a Cásper Líbero.
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bárbara carneiro FOTOS
VI É pela roseira no quintal da frente de uma casa de esquina no Tatuapé que escrevo. É nessa beleza mirrada e diligente que surge meu amor. Por todos os lados São Paulo me apresenta seus acidentes e, nas circunstâncias previstas, nas quaresmeiras floridas em abril às margens do Tietê, nos ipês amarelos de setembro - precisos - eu noto que há momentos em que a cidade sou eu mesma. É na vontade de ser mais, de ser outras, para escutar o galo que do outro lado da rua de paralelepípedos canta à uma da tarde, para continuar me surpreendendo com a quantidade insana de maritacas que imitam cachorros quando voam. A cidade é esse olhar condescendente que lhe lanço enquanto digo baixo, para que só eu escute, que ainda amo esse lugar. E me pergunto se afirmar amor não seria, em certa maneira, inventá-lo. ESQUINA
As não-esquinas A PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO DEVE SER UM DOS PRÉDIOS COM QUE TENHO MAIS INTIMIDADE NESSA CIDADE. SEMPRE VOLTO A SUAS COLEÇÕES DE ARTE DOS SÉCULOS XIX E XX E A SEUS CORREDORES QUE NA ADOLESCÊNCIA ME SERVIAM DE REFÚGIO EM MOMENTOS RUINS. O JARDIM BOTÂNICO FICA NA ZONA SUL DA CIDADE E TAMBÉM CONTA COM UMA COLEÇÃO MARAVILHOSA: SÓ QUE DE ESPÉCIES DE PLANTAS, LINDAMENTE ORGANIZADAS EM DIFERENTES ESPAÇOS DO PARQUE. DE TODOS OS PROGRAMAS TÍPICOS PARA SE FAZER EM SÃO PAULO, UM DOS MEUS PREFERIDOS É ASSISTIR A JOGOS DE FUTEBOL. COMO SOU UMA TORCEDORA NÃO-ORTODOXA, JÁ VI JOGOS DE DIFERENTES EQUIPES NOS ESTÁDIOS DA CIDADE. O ARGUMENTO PODE SER O DE QUE SE TRATA EXPERIMENTO ANTROPOLÓGICO, MAS NO FIM, A COMEMORAÇÃO É BEM POUCO CIENTÍFICA. O NÚCLEO PEDRA GRANDE DO PARQUE ESTADUAL DA CANTAREIRA É COMPOSTO POR VÁRIAS TRILHAS NA MATA ATLÂNTICA E A PRINCIPAL DELAS LEVA À TAL DA PEDRA, DE ONDE DÁ PRA VER A CIDADE DO ALTO. COM SORTE, VÊ-SE FAMÍLIAS DE MACACOS E, COM AZAR, VOCÊ PODE VOLTAR PARA CASA COM ALGUMA DOR MUSCULAR DOS QUILÔMETROS CAMINHADOS.
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OI, PRAZER!
portfólio de polliana dalla barba
polliana dalla barba
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polliana dalla barba
ARTISTA PLÁSTICA NASCIDA EM vitória, MORA EM vitória
em 1988
1. vôo 3129 – vitória x congonhas. 2. ônibus congonhas x guarulhos 3. vôo 3506 – guarulhos x bogotá. 4. sala de embarque: parece aquela banda metá-metá. 5. andrés me busca no aeroporto com um iogurte, trânsito, arepa, karaokê, encontrar casa do samuel. 6. centro da cidade sozinha, museu, galeria, perseguir turistas, subir no cerro. 7. olha, encontrei aquela banda metá-metá por acaso na rua. 8. impressão movimentos contrários. 9. caramba! encontrei a banda de novo. 10. dia de jogo, parque na zona norte, metade do tempo corre pro aeroporto. colômbia 3 x 0 grécia. 11. vôo 3061 – bogotá x cali. 12. vôo 2589 – cali x quito. 13. fernando me busca no aeroporto. 14. festa de uma turma de cinema. 15. fernando tenta me agarrar a força, pego minha mochila e vou pra rua. 4:43 a.m. não sei pra onde ir. 16. apareceu um táxi. hostel. 17. oi, porque você não para de chorar? 18. dia dos pais. camarão. equador 1 x 2 suíça. 19. vôo 2589 – cali x lima. 20. vôo 541 – lima x santiago. 21. ônibus + metro + caminhada: casa do jorge. 22. jogo chile 2 x 0 espanha, plaza italia, spray de pimenta e bombas de efeito moral. 23. ônibus para la serena – bate e volta. 24. vôo 904 – santiago x montevidéu. 25. opa, dois anos se passaram e lembrei do endereço do hostel. 26. não sei onde ver o jogo. 27. me perdi e vaguei: uruguai 1 x 0 itália. 28. ônibus pra colonia del sacramento. 29. barco para buenos aires, hola, donde hay un metro? 30. encontrar a casa da nubia, ufa, uma brasileira. 31. encontrar um lugar para ver a partida, não conheço nada. vou descer nessa estação, gostei do nome. 32. argentina 3 x 2 nigéria. 33. jogo do brasil 0 x 0 chile (pênaltis). fui expulsa do restaurante. 34. como faz pra chegar em la plata? 35. alô, mariela? estou em alguma praça, a placa de endereço está apagada. não encontro nenhum taxi. 36. zero graus, carro não funciona, vamos voltar correndo pra não congelarmos. 37. argentina 1 x 0 suíça. 38. vôo 6473 – buenos aires x galeão CANCELADO [pelo amor de deus, preciso chegar no brasil hoje]. 39. vamos nos encontrar no galeão. 40. vôo 6541 – buenos aires x assunción [merda, me mandaram pro paraguai]. 41. vôo 5471 – assunción x guarulhos. 42. ei, não vou mais pro rio de janeiro. 43. vôo 3154 – guarulhos x ufa, vitória. ESQUINA
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Bogotรก
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Quito
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Santiago
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Montevidéu
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Buenos Aires
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Buenos Aires
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DEIXA EU TE FALAR
permanência
redemoinho POR
ricardo terto ILUSTRA brunna mancuso
Cláudio entendeu tudo quando observou atentamente a disposição das estantes da farmácia onde trabalhava já por recém-completados 20 anos, marco que lhe rendeu um bolo de cenoura com cobertura de chocolate e um dvd de Os 7 Samurais, itens custeados por seus colegas e inspirados por sua tatuagem um pouco mal desenhada de samurai na panturrilha, visualmente descoberta 3 anos antes em decorrência da partida de futebol “Solteiros e Encalhados x Casados e Enrolados”, que terminara com a vitória larga do time dos solteiros, no qual Cláudio cumpriu regularmente a posição de lateral direito. O que Cláudio entendeu diante do seu respeitável tempo de empresa e que nunca antes chegou sequer perto de perceber, mas talvez o tenha notado porque depois de certa idade se vê poética em qualquer besteira, ou realmente a poética sempre esteve ali ignorada, é que havia na farmácia uma representação inespera-
Enquanto refazia com os olhos o caminho das prateleiras algumas vezes, certo de estar sentindo um incômodo sobre algo que não entendia bem, foi interrompido por uma figura humana a sua frente, impaciente diante da distração inoportuna de Cláudio que, como atendente, deveria, sobretudo e obviamente, é claro, atender. Mas Cláudio ouvia as palavras que saíam da boca da figura humana a sua frente e não conseguia formular nenhum tipo de compreensão, como se seus pensamentos diante da descoberta de poucos segundos atrás fossem tão altos que ele apenas assistia aos lábios abrindo e fechando sem afetar qualquer coisa de sua audição. Amplificando o ineditismo da situação, Cláudio abandona a figura humana impaciente a sua frente e desloca-se até o banheiro dos funcionários, liga a torneira e leva um pouco de água ao rosto. Respira e encara o reflexo de sua face molhada e logo percebe atrás de
damente clara, dura e irônica do ciclo da vida: Na prateleira à esquerda, embalagens de fraldas com bebês sorridentes engatinhando e, logo em seguida, frascos de papinha com fotos de bebês bem alimentados. Ao lado da gôndola de band-aids, uma outra prateleira com xaropes para tosse. Do outro lado, embalagens com testes de gravidez, camisinhas, refrescante bucal, barbeador. Logo mais adiante, suplemento alimentar, remédios para dor de cabeça, indigestão, para aliviar ressacas, intestino preso, e continuando, shampoos anti-queda, tinta de cabelo, descolorante, cápsulas de vitaminas. Chegando a extrema direita da loja, embalagens de fraldas geriátricas com imagens de idosos sorridentes junto de pessoas jovens que os abraçam.
si, como um novo signo extraordinariamente explícito, o cartaz com sua foto de 15 anos atrás, mal ampliada através de um programa de edição de imagens, o mesmo programa usado para inserir os caracteres “Funcionário do Mês” com a fonte Comic Sans em azul marinho. Naquela época Cláudio ostentava um cavanhaque tão honesto quanto feio, o que quer dizer que o cavanhaque era de uma honestidade inquestionável. Também não pôde deixar de notar que engordou alguma coisa, imediatamente levando a constatar que no ciclo da vida da farmácia, encontrava-se na estante das barras de cereais, perigosamente ao lado dos óleos e tônicos capilares. Desperdiçara sua vida, será? – pensou olhando para a água que de fato desperdiçava
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enquanto a torneira seguia aberta sem propósito maior além da produção de um ruído confortável. Vinte anos olhando a mesma porta, tirando férias no mesmo mês, testemunhando modas e mudanças sociais diversas, inclusive
repente, ser alguém como a Julia, que foi vendedora por 7 meses lá, tinha cheiro de doce e era vegetariana, pediu as contas do nada e foi morar na Argentina (ou alguma coisa do tipo), mas Cláudio acabou não sendo. Doze anos na farmácia. Com a popularização da internet banda larga ele conheceu Suzana num chat. Ela tinha o cabelo encaracolado e era baiana, com um sotaque que Cláudio dizia botar uns cachos no seu coração. Foi ela quem fez Cláudio desistir do cavanhaque honestíssimo. E, quando ela disse “venha”, ele foi. E nas férias prometeu que ia voltar. E ficar para sempre. Até chegou no chefe e fez o acordo, que se estendeu um pouco porque o chefe prometeu dar uma segurada só até novembro, e acabou sendo até o fim do carnaval, mas quando veio a quarta-feira de cinzas, Suzana já tinha curtido 3 dias com um homem conhecido como Chico Capotagem, um dublê. E a saída de Cláudio acabou não sendo.
do que é uma farmácia, de dentro da confortável estabilidade de um funcionário dedicado, passivo, compreensivo, educado, que sabe de tudo um pouco, tão certo e controlado que uma tatuagem mal acabada de samurai na panturrilha se torna uma excentricidade inacreditável diante de seus pares. Lembrou das palavras de sua mãe quando contou que arrumara o emprego. Uma farmácia nunca vai falir, você vai ter emprego pelo resto de sua vida. Um dia a mãe morreu. Ele, já com seis anos de trabalho, pensou em pedir as contas e viajar, mas acabou não sendo assim. Oito anos de serviço e quase foi atropelado por um ônibus que não lhe arranhou um triz mas assustou um bocado, inquietando Cláudio novamente sobre largar o emprego e, de
Enquanto o redemoinho de água na pia girava, Cláudio pensava em como a vida era um pouco aquilo ali: um movimento que vai te puxando cada vez mais para onde não há saída, e cada volta é mais perto da outra e, quando você vê, está mais ou menos sempre no mesmo lugar. Cláudio então desligou a torneira, secou o rosto e esperou o restinho da água descer. Quando saiu, a figura humana impaciente ainda estava o esperando. Pediu secamente uma droga farmacêutica conhecida como Pílula do Dia Seguinte. Cláudio ficou pensando, enquanto a figura se afastava da farmácia, se era tarde demais para ela e logo mais uma nova vida viria ali para começar naqueles contornos largos do redemoinho e se espremer devagarinho, devagarinho.
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VENTILADOR
marianna schmidt
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marianna schmidt
“que o vento leve pra longe esse cansaco e me traga o cheiro, a brisa e o sal do mar”
MARIANNA SCHMIDT É DESIGNER DE REVISTAS, APAIXONADA POR PESSOAS E ETERNA INDECISA. FEZ PRA VOCÊS E COM VOCÊS ESSA REVISTA E CONTOU AQUI O QUE GOSTARIA QUE O VENTO TROUXESSE E LEVASSE
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NOVEMBRO DE 2015 TRÂNSITO // PERMANÊNCIA R$ 20 // US$ 15 // UK£ 8 FOTO DE ERVIN VON MOOS