Arquitetura Agudá: formas e ressonâncias da arquitetura introduzida por ex-escravos retornados do Brasil no sudoeste nigeriano Marina Gaido Cortopassi
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo Iniciação Científica PIBIC CNPq 2020-2021 Marina Gaido Cortopassi Orientação Prof. Dr. Guilherme Teixeira Wisnik
MARINA GAIDO CORTOPASSI
Arquitetura Agudá: formas e ressonâncias da arquitetura introduzida por ex-escravos retornados do Brasil no sudoeste nigeriano
Relatório final apresentado à Comissão de Pesquisa da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo para conclusão do Programa de Bolsa de Iniciação Científica PIBIC/CNPQ Área de concentração: História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo Orientador: Prof. Dr. Guilherme Teixeira Wisnik
SÃO PAULO 2021
Índice 1. Introdução
001
2. "Brasileiros" ou agudás
004
2.1. Localização
005
2.2. Posição econômica
008
2.3. Estrangeiros
013
2.4. Arquitetura: diferenciação e prestígio
014
3. A casa iorubá
030
4. A casa agudá ou “brasileira"
046
4.1. Soluções internas: a planta e sua relação com o lote urbano
047
4.1.1. Construções em Lagos
047
4.1.2. Construções no Brasil
058
4.1.3. Sistematizações e tensionamentos
072
4.2. Soluções externas: aberturas e ornamentos
081
4.2.1. Novos cenários: virada do século XIX
082
4.2.2. Palácio de Bello Kuku, em Ijebu-Ode
087
4.2.3. Estilos regionais: Ebenezer House, em Ikirun e Olayinka House, em Ife 5. Conclusões
135 170
5.1. Arquitetura “brasileira" x arquitetura colonial britânica: Por que a escolha dessa forma arquitetônica em detrimento de outras?
170
5.2. Quais os imperativos culturais subjacentes ao fenômeno arquitetônico em questão?
179
Resumo Essa pesquisa teve como objetivo reunir elementos de análise que auxiliassem na compreensão do fenômeno da Arquitetura Agudá, ocorrido no sudoeste nigeriano na transição entre os séculos XIX e XX. Tendo sido introduzida em Lagos pelo grupo de ex-escravos retornados do Brasil, a arquitetura também ficou conhecida como arquitetura de estilo “brasileiro”, constituindo-se enquanto um importante símbolo identitário do grupo retornado frente à população local. Posteriormente, essa arquitetura se difundiria por todo o território do sudoeste nigeriano, tornando-se a nova arquitetura local por excelência. Dessa forma, o trabalho em questão faz-se relevante na medida em que se propõe a: entender que ressonâncias existem entre essa forma arquitetônica e aquela edificada pelos escravos quando em território brasileiro; explicitar que informações e símbolos subjazem às soluções formais e espaciais dessa arquitetura, que possam explicar sua ampla difusão; ressaltar a existência de uma forma arquitetônica conhecida como “brasileira” que, no entanto, não tem sido objeto de estudo no Brasil. Realizou-se um levantamento bibliográfico e iconográfico da Arquitetura Agudá, de forma a selecionar publicações que tensionassem de forma mais explícita as relações dessa forma arquitetônica com a arquitetura brasileira. Conjuntamente, realizou-se um levantamento bibliográfico e iconográfico da arquitetura colonial brasileira, sobretudo urbana. Privilegiaram-se estudos de amplo trato temporal, que associassem o desenvolvimento formal das edificações ao contexto em que estavam inseridas. O desenvolvimento da pesquisa centrou-se, dessa forma, na análise de documentos visuais, assim como na leitura e no fichamento de livros, artigos e teses. A pesquisa conseguiu demonstrar em que medida a arquitetura Agudá sempre representou uma solução espacial e formal de caráter eminentemente moderno no contexto local, deixando de estar vinculada ao estrangeirismo, e tornando-se um símbolo de prestígio e desejo à medida que a Nigéria se ocidentalizava e se modernizava sob a situação de domínio colonial britânico. Além disso, a pesquisa identificou, a partir da análise da distribuição espacial interna dos edifícios, o papel estrutural desempenhado pela arquitetura brasileira na conformação da Arquitetura Agudá, e, por consequência, no seu processo de assimilação e difusão. Paralelamente, relativizou-se o caráter unívoco por vezes conferido a essa relação, tendo em vista as variações regionais e temporais que definem essa forma arquitetônica, entendendo que sua unicidade foi, na realidade, reflexo do intercâmbio de referências de proveniências diversas. Palavras-chave: Arquitetura; Nigéria; Golfo do Benim; Brasil; ex-escravos; modernidade; agudá; iorubá; colonialismo; diálogos atlânticos.
Abstract This research aimed to bring together elements of analysis that would help in understanding the phenomenon of Agudá architecture, which occurred in southwestern Nigeria during the transition between the 19th and 20th centuries. Having been introduced in Lagos by the group of former slaves returned from Brazil, the architecture was also known as “Brazilian” style architecture, constituting an important identity symbol of the returned group vis-à-vis the local population. Later, this architecture would spread throughout the territory of southwestern Nigeria, becoming a new local architecture par excellence. Thus, the work in question becomes relevant insofar as it proposes to: understand what echoes exist between this architectural form and that built by slaves in Brazilian territory; elucidate which information and symbols underlie the formal and spatial solutions of this architecture, which can explain its wide diffusion; to emphasize the existence of an architectural form known as “Brazilian”, which, however, has not been studied in Brazil. A bibliographical and iconographic survey of the Agudá Architecture was carried out, in order to select publications that tensioned more explicitly the relations of this architectural form with Brazilian architecture. At the same time, a bibliographic and iconographic survey of Brazilian colonial architecture, especially urban, was carried out. We favored studies with a broad temporal tract, which associated the formal development of buildings to the context in which they were inserted. The development of the research thus focused on the analysis of visual documents, as well as on the reading and abstracts of books, articles and theses. The research was able to demonstrate the extent to which Agudá architecture has always represented a spatial and formal solution of an eminently modern character in the local context, no longer linked to foreignism, and becoming a symbol of prestige and desire as Nigeria became westernized and modernized under a situation of British colonial rule. Furthermore, the research identified, from the analysis of the internal spatial distribution of buildings, the structural role played by Brazilian architecture in shaping the Agudá architecture, and, consequently, in its assimilation and diffusion process. At the same time, the univocal character sometimes given to this relationship was relativized, in view of the regional and temporal variations that define this architectural form, understanding that its uniqueness was, in fact, an outcome of the exchange of references from different sources. Key words: Architecture; Nigeria; Bight of Benin; Brazil; former slaves; modernity; Aguda; Yoruba; colonialism; Atlantic dialogues.
Lista de imagens Imagem 1 - Mapa do Golfo da Guiné, em cuja porção setentrional localiza-se o Golfo do Benim. Imagem retirada de: https://st2.depositphotos.com/3687841/44616/v/600/depositphotos_446161628stock-illustration-vector-map-of-the-gulf.jpg Imagem 2 - Mapa da Nigéria (1992). Imagem retirada de: https://www.infoplease.com/atlas/africa/nigeria-map Imagem 3 - Inserção regional da cidade de Lagos, capital da Nigéria. Fonte: Google Maps. Imagem 4 - Mapa aproximado da cidade de Lagos. Fonte: Google Maps. Imagem 5 - Família Rocha: à esquerda, João Esan da Rocha; à direita, a esposa, Louisa Angélica Nogueira da Rocha, com seu filho Cândido da Rocha. Uma das famílias mais proeminentes de Lagos. Fotos anteriores a 1870. Foto Pierre Verger da coleção da família Rocha-Thomas. Imagem retirada de CUNHA, Marianno C. da; CUNHA, Manuela C. da. Da senzala ao sobrado: Arquitetura brasileira na Nigéria e na República Popular do Benim. Fotografia: Pierre Verger. São Paulo: Nobel: Edusp, 1985. Imagem 6 - À esquerda, Joaquim Devodê Branco. À direita, casa principal dentre o conjunto de 21 casas que Branco possuiu entre Lagos e Porto Novo, em Kakawa Street. Fotos Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 7 - Boutique de Barbier (Loja de Barbeiro). Aquarela, 1821. Jean Baptiste Debret. Segundo Debret, “... o oficial de barbeiro no Brasil é quase sempre um negro ou pelo menos um mulato. Este contraste chocante para o europeu não impede o habitante do Rio de entrar com confiança numa dessas lojas, certo de aí encontrar numa mesma pessoa um barbeiro hábil, um cabeleireiro exímio, um cirurgião familiarizado com o bisturi e um destro aplicador de sanguessugas. Dono de mil talentos, ele tanto é capaz de consertar a malha escapada de uma meia de seda como de executar, no violão ou na clarineta, valsas e contradanças francesas, em verdade arranjadas a seu jeito." (J. B. Debret, 1972 (1839), p. 151. Imagem retirada de: https://ensinarhistoriajoelza.com.br/vida-urbana-no-brasil-segundo-debret/ Imagem 8 - Holy Cross: primeira Catedral Católica de Lagos, construída em 1881 por Balthazar dos Reis, Francisco Nobre e Lázaro Borges da Silva. Fonte: Societé des Missions Africaines, Roma. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 9 - Irmãos da família iorubá “Alakija”, enviados por seus pais para estudar medicina ou direito na Europa ou na Bahia. Pelo fim do século, embora perdurasse a tradição artesanal e comercial, duas outras carreiras atraíam os descendentes “brasileiros”; a de funcionário no governo colonial ou em grandes firmas estrangeiras, e a de mestre escola e catequista. Documento de família fotografado por Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 10 - Planta da cidade de Lagos, 1887. Fonte: Syndics of Cambridge University Library. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 11- O bairro “brasileiro em Lagos” (“Popo Aguda”), 1887, centrado em Campos Square, Bamgboshe Street e Tokunboh Street. Fonte: Syndics of Cambridge University Library. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit.
Imagem 12 - Uma vista de “Kakawa Street”, no final do século XIX. Fonte: Societé des Missions Africaines, Roma. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 13 - Mesquita de Shitta Bey, construída em Martin Street, em Lagos, por João Baptista da Costa, em 1844. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 14 - Mesquita central, em Victoria Road, em Lagos. Sua construção foi iniciada por João Baptista da Costa e concluída pelo seu aprendiz Sanusi Aka. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 15 - Templo de Orixá-vodun, construído por Martiniano do Bonfim, em Badragri, na década de 1890. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de TERIBA, Adedoyin. Afro-Brazilian Architecture in Southwest Colonial Nigeria (1890s-1940s). Orientador: Esther da Costa Meyer. 2017. Tese (Doutorado em Filosofia) - Princeton University, Princeton, NJ, 2017. Imagem 16 - tumbas funerárias em Ijebu Ode. Foto Adedoyin Teriba. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 17 - Cemitério "brasileiro" de Lagos. O cemitério brasileiro é uma novidade, pois tradicionalmente os iorubás e os fons sepultavam seus mortos no compound familiar. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 18 - Uma das casas de Joaquim Devodê Branco, situada em Lagos. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 19 - Mulheres da comunidade "brasileira" de Lagos. Fonte: Societé des Missions Africaines, Roma. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 20 - Grupo de mulheres iorubá na mesma época em que foi tirada a foto da Imagem 19, com roupas tradicionais, “adirés” e panos da costa. Fonte: Societé des Missions Africaines, Roma. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 21 - Vista de uma casa rural de três módulos. Atiba, Nigéria, 1974. Foto John Michael Vlach. Imagem retirada de VLACH, John Michael. Affecting Architecture of the Yoruba. African Arts, Los Angeles, v. 10, n. 1, p. 48-99, 1976. Imagem 22 - Pilares esculpidos do Palácio de Queto, em foto de 1914. Fonte: Musée de l'Homme Paris. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 23 - Planta de um palácio iorubá. Desenho de John Michael Vlach a partir do livro "Yoruba Palaces". Imagem retirada de VLACH, 1976, Op. cit. Imagem 24 - Planta do compound do chefe Fawole Onitiju Obalorun. Ile-Ife, Nigéria, 1974. Desenho de John Michael Vlach. Imagem retirada de VLACH, 1976, Op. cit. Imagem 25 - Planta do compound da família Aronmaye. Ile-Ife, Nigéria, 1974. Desenho de John Michael Vlach. Imagem retirada de VLACH, 1976, Op. cit. Imagem 26 - Planta de uma casa de fazenda básica, em Aroko, Nigéria, 1974. Desenho de John Michael Vlach. Imagem retirada de VLACH, 1976, Op. cit.
Imagem 27 - Vista de uma casa de fazenda básica. Ilefunfun, Nigéria, 1974. Foto John Michael Vlach. Imagem retirada de VLACH, 1976, Op. cit. Imagem 28 - Planta da casa rural de três módulos da imagem 21, Atiba, Nigeria, 1974. Desenho de John Michael Vlach. Imagem retirada de VLACH, 1976, Op. cit. Imagem 29 - Planta de uma casa-de-três-pernas. Desenho de John Michael Vlach a partir de CROOKE, Patrick."A sample survey of the Yoruba Rural Building", 1966, p. 69; fundamentado a partir de trabalho de campo realizado em 1974. Imagem retirada de VLACH, 1976, Op. cit. Imagem 30 - Exemplar de casa-de-três-pernas, na região de Ilorin. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 31 - Planta do compound da família Seru. Ile-Ife, Nigéria, 1974. Desenho de John Michael Vlach. Imagem retirada de VLACH, 1976, Op. cit. Imagem 32 -Planta do compound da família Folarin. Edunabon, Nigéria, 1974. Desenho de John Michael Vlach. Imagem retirada de VLACH, 1976, Op. cit. Imagem 33 - Planta do reino de Adó-Èkὶtὶ mostrando o palácio no centro e os bairros residenciais que o circundam. Desenho dos anos 1960. Fonte: G. J. A. Òjó, Yoruba Palaces: A Study of Afins of Yorubaland. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 34 - O palácio de Iléṣà (Ilesha) no centro do território. Fonte: G. J. A. Òjó, Yoruba Palaces: A Study of Afins of Yorubaland. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 35 - O palácio no centro de Ọ̀ wò .̣ (Desenhado nos anos 1960). Fonte: G. J. A. Òjó, Yoruba Palaces: A Study of Afins of Yorubaland. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 36 - Compounds de chefes ao redor do palácio do Rei em Ọ̀ yó ̣ em 1966. Fonte: G. J. A. Òjó, Yoruba Palaces: A Study of Afins of Yorubaland. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 37 - Egbeti, cidade tradicional iorubá, composta de compounds. Fonte: Western Nigeria Information Service. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 38 - A Water House (também conhecida como Casa da Água), em Kakawa Street no bairro "brasileiro". Construída em 1875. Fotografia cedida por Tatewaki Nio. Imagem 39 - Foto aproximada da Water House (também conhecida como Casa da Água), em Kakawa Street no bairro "brasileiro". Construída em 1875. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 40 - Planta do primeiro pavimento da "Water House". Fonte: Brigitte Joubert Helene Kowalski, "L'Héritage Architectural Afro-Brésilien Sur La Côte Des Esclaves". Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 41 - Casa da família Pereira, nos anos 1990. Fonte: Brigitte Joubert Helene Kowalski, "L'Héritage Architectural Afro-Brésilien Sur La Côte Des Esclaves". Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit.
Imagem 42 - Imagem do corredor da casa da família Pereira a partir de sua fachada posterior. Fonte: Brigitte Joubert Helene Kowalski, "L'Héritage Architectural Afro-Brésilien Sur La Côte Des Esclaves". Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 43 - Planta-baixa da casa da família Pereira. Fonte: Brigitte Joubert Helene Kowalski, "L'Héritage Architectural Afro-Brésilien Sur La Côte Des Esclaves". Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 44 - Maja House na Garber Square, Lagos. Construída entre 1890 e 1895, e projetada por Herbert Macaulay. Fonte: Alan Vaughan-Richards, "Le Nigéria." Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 45 - Plantas-baixas da Maja House (primeiro pavimento acima e térreo abaixo). Fonte:Alan Vaughan-Richards, "Le Nigéria." Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 46 - Típica distribuição interna de uma casa urbana brasileira do período colonial. Desenho de Nestor Goulart Reis Filho. Imagem retirada de REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1970. Imagem 47 - Esquema de rebatimento das plantas: as construções maiores eram concebidas a partir do espelhamento das plantas mais simples, tendo o corredor como eixo central. Desenho de Nestor Goulart Reis Filho. Imagem retirada de REIS, 1970. Op. cit. Imagem 48 - Sítio do Calu, Embu, Brasil. Exemplo de casa bandeirista, com pretório e cozinha em puxado na parte posterior da construção. Foto Herman Graeser, 1942, arquivo do IPHAN. Imagem retirada de LEMOS, Carlos A. C. Casa Paulista: História das moradias anteriores ao ecletismo trazido pelo café. 1. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999. Imagem 49 - Planta-baixa do sítio do Calu, Embu, Brasil. (C=cozinha; Ri=dormitório da família; O=oratório; Rh=dormitório de hóspedes; Co=corredor/pretório; Sa=Sala de jantar).Fonte: Carlos Lemos, "Casa Paulista". Imagem 50 - Casa de Fazenda Passa-Três, Brigadeiro Tobias, Sorocaba, Brasil. Casa de fazenda paulista do tempo do açúcar. Foto Carlos Lemos, 1958. Imagem retirada de LEMOS, 1999. Op. cit. Imagem 51 - Planta-baixa da Casa de Fazenda Passa-Três, Brigadeiro Tobias, Sorocaba, Brasil. Observa-se o fechamento do corredor, ou pretório, da casa bandeirista, com o consequente surgimento de uma grande sala de recepção, a sala da frente. As linhas tracejadas indicam uma primitiva cozinha. Fonte: Carlos Lemos, "Casa Paulista". Imagem 52 - Casa bandeirista urbana de Sant'Ana do Parnaíba, localizada na rua Susana Dias, nº380. Arquivo do Condephaat. Imagem retirada de LEMOS, 1999. Op. cit. Imagem 53 - Planta-baixa da casa urbana de Sant'Ana do Parnaíba, na qual se vê um corredor que liga a rua ao quintal. Fonte: Carlos Lemos, "Casa Paulista". Imagem 54 - Residência do dono de engenho Luciano Teixeira Nogueira, em Campinas, construída em 1834. Rara planta original de casa urbana do tempo do açúcar, na qual se observa a consolidação do corredor como elemento de distribuição. Levantamento original de Celso Maria de Mello Pupo. Fonte: Carlos Lemos, "Casa Paulista".
Imagem 55 - Típica "casa de porão alto", na rua Pedro Costa, em Taubaté. Foto de Antônio Luís Dias de Andrade. Imagem retirada de LEMOS, 1999. Op. cit. Imagem 56 - Distribuição interna de uma casa urbana típica do tempo do café (séc. XIX), organizada esquematicamente em três faixas: uma social, uma íntima e outra de serviços. Verifica-se a presença definitiva do corredor, assim como o surgimento da escada e da porta a separar os universos público e privado. Desenho de Nestor Goulart Reis Filho. Imagem retirada de REIS, 1970. Op. cit. Imagem 57 - Casa urbana em Campinas, já do tempo do café. Sua planta chega a uma espécie de tipologia cafelista extensível, inclusive, à arquitetura rural: porta central e corredor com alguns degraus que indicam a presença de porão para a ventilação do soalho; duas salas da frente e baterias de alcovas no centro, sob a cumeeira; grande varanda e o puxado de serviço. Fonte: Carlos Lemos, "Casa Paulista". Imagem 58 - Esquema da casa de "planta simétrica". Fonte: autora, 2021. Imagem 59 - Atual continuação da rua José Bonifácio, São Paulo, 1862. Arquitetura preponderantemente geminada. Foto Militão de Azevedo. Imagem retirada de LEMOS, 1999. Op. cit. Imagem 60 - Centro histórico de São Luís do Paraitinga. Construções geminadas. Imagem retirada de LEMOS, 1999. Op. cit. Imagem 61 - Sobrados em Santo Amaro, Bahia. Apesar do edifício à esquerda estar isolado, ele representa uma exceção, visto que as edificações vizinhas são geminadas. Foto Alexandre Luiz Rocha. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 62 - Solar São João de Cima, em Salvador. Casas de esquina normalmente representavam uma variação em relação ao tradicional esquema de planta da casa geminada por possuírem duas fachadas sobre a rua. Foto E.C. Falcão. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 63 - Mapa de expansão da arquitetura brasileira na região iorubá. Fonte: Marianno Carneiro da Cunha, Manuela Carneiro da Cunha, "Da Senzala ao Sobrado". Imagem 64 - Palácio de Balogun Kuku em Ijebu-Ode, construído por Balthazar dos Reis entre 1897 e 1900. Foto Adedoyin Teriba, 2011. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 65 - Fachada principal do palácio. Foto Adedoyin Teriba, 2011. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 66 - Imagem aproximada do Palácio do Balogun em Ijebu-Ode mostrando detalhes das colunas embutidas na fachada principal. Foto Adedoyin Teriba, 2011. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 67 - Escada em espiral que conduz ao primeiro pavimento. Foto Adedoyin Teriba, 2011. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 68 - Segundo andar do vestíbulo. Foto Adedoyin Teriba, 2011. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit.
Imagem 69 - Interior do salão com mobiliário e chandelier. Foto Margaret Thompson-Drewal, 1983. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 70 - Yoyo Arárò mi ̣ House, construída e habitada por Lázaro Borges da Silva no final do século XIX. Foto Pierre Verger, década de 1940. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 71 - Palácio do rei de Owu no sudoeste da Nigéria em 1946. Fonte: School of Conservation Studies, Bornemouth University. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 72 - Palácio de Queto, República Popular do Benim. Fonte: Musée de l'Homme, Paris. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 73 - Fachada principal e fachada Sul da Ebun House, construída em Lagos em 1913, pelo arquiteto Herbert Macaulay, muito provavelmente junto de Balthazar dos Reis. Sua fachada principal (Oeste) volta-se para a Odunfa Street. Foto Pierre Verger, década de 1970. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 74 - Outra vista da fachada principal da Ebun House. Foto Pierre Verger, década de 1970. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 75 - Fachada sul da Ebun House, na qual destacam-se janelas em arco emolduradas e coroadas por motivos florais feitos em baixo relevo em gesso. Foto Pierre Verger, década de 1970. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 76 - Ebun House com cúpula no terceiro pavimento. Fonte: Allister Macmillan, ed., The Red Book of West Africa. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 77 - Colunas da arcada da Ebun House, na esquina das fachadas norte e oeste (principal). Foto Pierre Verger, 1977. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 78 - Casa térrea em Herbert Macaulay Street, em Lagos, na década de 1940. Destaca-se sobre a molduras das janelas o motivo decorativo chamado "Flower of Lagos", definifo por Joanne Nagel Shaw. Fonte: Yale University Photographic Archive. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 79 - Detalhe da mesma construção da imagem 78. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 80 - Desenhos de motivos florais feitos por Alan Vaughan-Richards da década de 1960 revelam o léxico visual de ornamentos dos construtores agudás em Lagos. Source: Kunle Akinsẹmoyin and Alan Vaughan-Richards, Building Lagos. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 81 - Sobrado em Lagos. Motivos florais coroam as molduras das janelas em arco do andar superior. Fotografia cedida por Tatewaki Nio, 2017. Imagem 82 - German House em Lagos, em 1914. Fonte: Alan Vaughan-Richards, "Le Nigéria." Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 83 - Fenômeno da "superfenestração" em Ilesha, uma adaptação local: sobrado com águasfurtadas. Fotografia cedida por Tatewaki Nio, 2017.
Imagem 84 - Fenômeno da "superfenestração" em Ilesha, uma adaptação local: sobrado com venezianas e águas-furtadas. Fotografia cedida por Tatewaki Nio, 2017. Imagem 85 - Fenômeno da "superfenestração" em Ilesha, uma adaptação local: sobrado com águafurtada. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 86 - Fenômeno da "superfenestração" em Ilesha, uma adaptação local: sobrado com águafurtada. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 87 - Esquema da conformação típica do telhado em duas águas em casas urbanas geminadas. Desenho Nestor Goulart Reis Filho. Imagem retirada de REIS, 1970. Op. cit. Imagem 88 - Corte esquemático demonstrando o sistema de aeração, iluminação e condução de águas pluviais em um típico sobrado geminado urbano do período colonial. Desenho Nestor Goulart Reis Filho. Imagem retirada de REIS, 1970. Op. cit. Imagem 89 - São Paulo em 1862, já "cosmetizada" pelo dinheiro do açúcar. Observam-se implementações modernas nas fachadas: janelas de vergas recurvadas, beirais com cachorros ocultos por tabuado, gradis de ferro forjado. O sobrado à direita mantém características próprias das construções do final do século XVIII, a fim de comparação. Foto Militão de Azevedo. Imagem retirada de LEMOS, 1999. Op. cit. Imagem 90 - Sobrado em São Roque. Foto Carlos Lemos, 1971. Imagem retirada de LEMOS, 1999. Op. cit. Imagem 91 - Sobrado em São Roque. Foto Carlos Lemos, 1971. Imagem retirada de LEMOS, 1999. Op. cit. Imagem 92 - Imagem aproximada da fachada da casa da família Fernandes em Lagos, mostrando sua janela de formato ogival e seu exclusivo gradil de ferro forjado, um dos três encontrados na cidade na época. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 93 - Detalhe do balcão de ferro forjado existente na casa de Joaquim Devodê Branco, em Kakawa Street, Lagos. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 94 - Casarões de estilo neoclássico na rua do Catete, à altura do palácio, no Rio de Janeiro. Imagem retirada de: https://vemqueteconto.com.br/wp-content/uploads/2021/01/flamengo-catete-3.jpg Imagem 95 - Casa da família Fernandes: construída originalmente em 1846 na Tinubu Square, é considerada a mais antiga construção agudá em Lagos. Destaca-se das outras casas de estilo “brasileiro" pela sua balaustrada, que tem por função esconder o telhado de duas águas, e por suas janelas ogivais. Uma figura humana feita em terracota posicionada sobre a platibanda coroa o alinhamento da pilastra central. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 96 - Sobrado em Ondo com balaustradas. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit.
Imagem 97 - Sobrado em Ilé-Ifé com balaustradas. Fotografia cedida por Tatewaki Nio, 2017. Imagem 98 - Sobrado em Ilesha com balaustradas. Fotografia cedida por Tatewaki Nio, 2017. Imagem 99 - Sobrado em Ilé-Ifé com balaustradas. Fotografia cedida por Tatewakio Nio, 2017. Imagem 100 - Lion House: sobrado construído no bairro "brasileiro" em Lagos pelo agudá Santan da Silva na década de 1880. O revestimento da parte superior da fachada é feito com azulejos, enquanto o da parte inferior é feito com um acabamento em argamassa que imita a aparência da alvenaria feita em pedra silhar. Trata-se da terceira estrutura com um balcão de ferro forjado em Lagos. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 101 - Detalhe da fachada da Lion House mostrando janela de formato ogival e acabamento que imita a aparência da alvenaria feita em pedra silhar. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 102 - General Post Office, Lagos. Alvenaria feita em pedra silhar ("ashlar stone"), como se verifica na imagem superior. Fonte: Kunle Akinsẹmoyin and Alan Vaughan-Richards, Building Lagos. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 103 - Detalhe da fachada da Lion House, revestida por azulejos em sua parte superior. Fonte: O.A. Akinyeye, Eko: Landmarks of Lagos, Nigeria. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 104 - Vista aproximada da fachada de sobrado em São Luís do Maranhão, Brasil. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 105 - Detalhe de persiana e treliça feitas em madeira em uma construção agudá. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 106 - Escada em madeira feita por artesão "brasileiro". Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 107 - Exemplo do trabalho dos artesãos "brasileiros": “Os ‘brasileiros’ introduziram também o gosto pelo mobiliário ocidental, lançando a moda, por exemplo, das cadeiras de balanço e sofás, mesas e armários.” Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 108 - Exemplos do trabalho dos artesãos "brasileiros". Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 109 - Edificações de estilo "brasileiro" na cidade de Ibadan, Nigéria. Fotografia cedida por Tatewaki Nio, 2017. Imagem 110 - Cidade de Ilesha: em primeiro plano e ao fundo, edificações de estilo "brasileiro". Fotografia cedida por Tatewaki Nio, 2017. Imagem 111 - Cidade de Ilesha. Fotografia cedida por Tatewaki Nio, 2017.
Imagem 112 - Plantas típicas de casas iorubás contemporâneas: mesmo na menor das estruturas, uma série de aposentos ligam-se a um corredor. A. Conformação simétrica com corredor central, construída para Nimota Aremi em Ifé, 1969; B. Conformação assimétrica com corredor central, Construído por Ganiyu Agbobini em Ajebandele, 1944; C. Conformação com corredor lateral, construído por Moliki Aliu em Iwaro, 1973. Desenho John Michael Vlach. Imagem retirada de VLACH, John Michael. The Brazilian House in Nigeria: The Emergence of a 20th-Century Vernacular House Type.. The Journal of American Folklore, [s. l.], v. 97, n. 383, p. 3-23, 1984. Imagem 113 - Ebenezer House em Ikirun, construída em 1944. Foto Adedoyin Teriba, 2011. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 114 - Escultura heráldica no topo da torre da Ebenezer House em Ikirun. Foto Adedoyin Teriba, 2011. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 115 - Lion House, Lagos. O tema dos leões: esculturas heráldicas de leões posicionadas nos dois lados do arco de entrada inspirariam outras estátuas em reinos ao Norte de Lagos pelos sessenta anos seguintes. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 116 - O tema dos leões: sobrado em Osogbo. Fotografia cedida por Tatewaki Nio, 2017. Imagem 117 - O tema dos leões: sobrado em Ilé-Ifé. Fotografia cedida por Tatewaki Nio, 2017. Imagem 118 - O tema dos leões: detalhe sem localização. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 119 - O tema dos leões: detalhe de portal em Osogbo (construção de Kadiri). Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 120 - Casa do Barão de Almeida Lima, Capivari, Brasil. Construção datada da segunda metade do século XIX. O portão de entrada com pilares de tijolos e leões de cerâmica são posteriores à obra. Foto Carlos Lemos. Imagem retirada de LEMOS, 1999. Op. cit. Imagem 121 - Casa do Barão de Almeida Lima, Capivari, Brasil. Construção de taipa de pilão de porão alto. Foto Carlos Lemos. Imagem retirada de LEMOS, 1999. Op. cit. Imagem 122 - Foto dos anos 1940 da Ebenezer House com vasos nas duas extremidades da varanda. Fonte: “Yoruba Architecture,” Nigeria Magazine, no. 37 (1951). Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 123 - Detalhe da fachada da Ebenezer House em Ikirun, mostrando balaustrada e aparência áspera e rústica do acabamento feito com uma mistura de areia e argamassa, evocando a aparência da alvenaria em pedra silhar. Foto Adedoyin Teriba, 2011. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 124 - Mesquita Central em Osogbo em 2009, provavelmente construída na década de 1940. Fonte: Flickr Online. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 125 - Casa de três andares construída por Kadiri em Osogbo nos anos 1940. Fonte: Ulli Beier, “Yoruba Architecture and Wall Painting,”. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit.
Imagem 126 - Planta-baixa do térreo da casa em Osogbo. Fonte: Nichola Saunders and Austine Merzeder-Taylor, Susanne Wenger: Her House and her art collection. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 127 - Exterior da mesma casa, em 2007. Foto Adedoyin Teriba. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 128 - Vista aproximada da torre da Ebenezer House e das varandas que partem dos seus dois lados. Foto Adedoyin Teriba, 2011. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 129 - Vista da Mesquita Central de Ikirun, localizada na mesma rua da Ebenezer House. Foto Adedoyin Teriba, 2011. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 130 - Elevação lateral da Ebenezer House. Foto Adedoyin Teriba, 2011. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 131 - Desenho de Adedoyin Teriba da planta-baixa do térreo da Ebenezer House, baseado em visita feita ao local em 2011. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 132 - Desenho de Adedoyin Teriba da planta-baixa do piso superior da Ebenezer House, baseado em visita feita ao local em 2011. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 133 - Olayinka House em Ifé, construída em 1929. Foto John Michael Vlach, 1974. Imagem retirada de TERIBA, 2017. Op. cit. Imagem 134 - À esquerda, Olayinka House em Ifé, construída em 1929. Foto Pierre Verger. Imagem retirada de CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit. Imagem 135 - À esquerda, Olayinka House em Ifé, construída em 1929. Fotografia cedida por Tatewaki Nio, 2017. Imagem 136 - Planta-baixa do térreo da Olayinka House. Desenho de John Michael Vlach, 1974. Imagem retirada de VLACH, 1984. Op. cit. Imagem 137 - Planta-baixa da casa de um oficial do governo colonial em Lagos desenvolvida pelo Public's Works Department, em 1911. A casa é basicamente um bloco retangular circundado por varandas com tela. Na ala de serviço à esquerda estão, a partir da escada em direção aos fundos: um banheiro, a dispensa, a cozinha, a garagem, o quarto de serviços e um estábulo. Desenho de John Michael Vlach a partir de MILLER, N.S. The begginings of Modern Lagos: Progress Over 100 years. Imagem retirada de VLACH, 1984. Op. cit. Imagem 138 - Planta da tradicional "casa-de-três-pernas". Desenho de John Michael Vlach. Imagem retirada de VLACH, 1976. Op. cit. Imagem 139 - Planta de uma típica construção urbana do Brasil colonial (apenas metade, ou rebatida). Desenho de Nestor Goulart Reis Filho. Imagem retirada de REIS, 1970. Op. cit.
Imagem 140 - Esquema da casa de planta simétrica. Tipologia da arquitetura colonial brasileira que mais se espalhou em território iorubá. No Brasil, era mais popular a aplicação de apenas metade da planta, devido à predominância de casas urbanas geminadas; já em território iorubá, popularizou-se sua versão rebatida. Desenho da autora a partir de Marianno Carneiro da Cunha e Manuela Carneiro da Cunha, "Da Senzala ao Sobrado". Imagem 141 - Alguns exemplos de plantas típicas de casas iorubás contemporâneas: a versão com corredor central é preponderante, no entanto a simetria não se revela necessariamente uma constante. Desenho John Michael Vlach. Imagem retirada de VLACH, 1984. Op. cit. Imagem 142 - Planta da Olayinka House, com corredor, átrio central e distribuição relativamente simétrica dos aposentos, a não ser pela escada ao fundo e à esquerda. Desenho de John Michael Vlach. Imagem retirada de VLACH, 1984. Op. cit. Imagem 143 - Planta de um compound tradicional, conformado a partir da organização de múltiplas unidades em torno de um pátio central. Desenho de John Michael Vlach. Imagem retirada de VLACH, 1976. Op. cit.
1. Introdução A atual pesquisa pretende investigar o fenômeno da arquitetura “brasileira” ocorrido no sudoeste nigeriano entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX. Também conhecida como Arquitetura Agudá, a arquitetura “brasileira” foi uma forma arquitetônica ocidental oitocentista que se desenvolveu majoritariamente na região costeira do Golfo do Benim (antigo Golfo do Daomé) a partir da segunda metade do século XIX. Apesar dessa arquitetura ter se espalhado geograficamente entre a Nigéria, o Benim e o Togo, optouse, para melhor adequação do projeto ao tempo disponível para sua realização, pela definição de um recorte, de forma a selecionar o caso da Nigéria como objeto da pesquisa. A opção pelo caso nigeriano viu-se sobretudo influenciada pelo fato de já existirem bibliografias brasileiras que tratassem com maior profundidade a esse respeito. Tem-se como ponto de partida o fato de que a arquitetura em questão vê-se fundamentada primordialmente numa ambiguidade, que é reflexo da situação de seus construtores. Os agudás, ou “brasileiros”, eram um grupo social formado por ex-escravos brasileiros retornados ao continente africano, que eram vistos como brancos pelos habitantes de Lagos e como negros pelos europeus.1 Frente a essa condição incerta e imobilizante, os agudás introduziram, em 1850, uma nova forma arquitetônica em Lagos, ambicionando a consolidação de sua identidade frente aos locais. Afirmavam sua superioridade por meio de edifícios que se revelavam muito distantes da tradição arquitetônica local, devido às suas soluções formais essencialmente ocidentais e modernas. O papel de dispositivo de distinção social dos retornados frente às populações locais representou, no entanto, apenas uma primeira fase desse fenômeno arquitetônico, que se desenvolveu exclusivamente em Lagos. Com o passar do século XX, contudo, verificou-se sua progressiva e então massiva difusão pelo interior do sudoeste nigeriano, deixando de estar necessariamente associada a uma questão identitária “brasileira”, e passando a estar eminentemente vinculada a um ideal de modernidade, ao qual os locais (iorubás) desejavam associar-se. Essa forma arquitetônica disseminada a interior, interessa notar, apresentava variações formais significativas em relação à arquitetura introduzida em Lagos - sobretudo na porção externa dos edifícios, aspecto que refletia a interação da nova forma arquitetônica com referências locais.
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CUNHA, Manuela C. Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 83.
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Isto posto, a pesquisa vê-se motivada por duas principais indagações: a primeira delas busca entender de que maneira a arquitetura brasileira pode ter contribuído para o desenvolvimento e disseminação dessa forma arquitetônica - frente ao fato de que ela é conhecida localmente como arquitetura “brasileira” -, questionando, portanto, se existem associações possíveis, se há diálogos e ressonâncias entre essas duas formas arquitetônicas. A segunda indagação volta-se para o entendimento dos símbolos e acontecimentos que subjazem ao fenômeno arquitetônico, e busca compreender como uma forma arquitetônica tão distante das formas vernaculares tradicionais, e inicialmente introduzida por uma minoria estrangeira, pode ter sido absorvida pelos locais a ponto de se tornar a nova forma arquitetônica local por excelência, um símbolo tão prestigioso de reconhecimento cultural. A fim de revelar os caminhos para as respostas dessas indagações, optou-se por dividir o relatório em três blocos principais. O primeiro deles, de caráter mais antropológico e histórico, realiza uma contextualização social, econômica e política do momento que envolveu a chegada desses ex-escravos à cidade de Lagos. Além disso, explorando e pormenorizando a condição ambígua de estrangeiros que eles viviam localmente, explicitam-se as razões pelas quais essa forma arquitetônica teria ali despontado, e vigorado. O segundo capítulo volta-se a uma leitura e reconhecimento das formas arquitetônicas tradicionais locais, e define-se portanto por uma leitura analítico-formal combinada à leituras antropológicas e históricas. Buscando caracterizar as formas vernaculares substancialmente, identificam-se seus elementos fundantes em termos de: tecnologias construtivas; soluções espaciais e tipológicas; e ideais e intenções subjacentes à forma construída. Trata-se de um importante momento na pesquisa, na medida em que ele cria um referencial a partir do qual fazse possível entender em que medidas a forma arquitetônica ocidental e moderna introduzida pelos ex-escravos se aproximou e se distanciou daquilo que era reconhecido pelos locais, e, nessa medida, o que ela significou para essa população. Por fim, o terceiro capítulo realiza a caracterização da arquitetura “brasileira" em suas diferentes etapas, evidenciando o papel ocupado pelas introduções formais e espaciais em relação às formas tradicionais. Para que se pudesse melhor discernir as múltiplas referências dessa forma arquitetônica, assim como compreender a sua condição variável frente à percepção local, optou-se por categorizar essas introduções formais e espaciais em duas esferas: aquelas referentes à dimensão interna da construção e aquelas referentes à dimensão externa. Por soluções internas, entendeu-se sobretudo aquela da distribuição interna dos aposentos, mas 2
também explorou-se em que medida essa conformação não seria resultante da relação estabelecida entre o edifício e o lote urbano. Por soluções externas, por sua vez, entendeu-se aquelas que afetaram os desenhos externos dos edifícios, suas aberturas e suas ornamentações. O capítulo, dessa forma, fundamenta-se em análises históricas, antropológicas, formais e comparativo-formais de diversos exemplos de construções de estilo “brasileiro" existentes em território iorubá, edificadas em diferentes períodos e localidades, ilustrando a ampla variedade formal que definiu o fenômeno arquitetônico em questão. A seleção dos exemplos a serem estudados, assim como a metodologia utilizada para sua análise formal, tiveram como base a rica e profunda análise feita por Adedoyin Teriba em sua tese de doutorado “Afro-Brazilian Architecture in Southwest Colonial Nigeria (1890s-1940s)”, responsável por situar esse trabalho numa dimensão tangível e material, prevenindo-o de análises demasiado especulativas e generalistas. Auxiliados pela documentação visual desses objetos arquitetônicos, obtida majoritariamente a partir de ensaios fotográficos de Pierre Verger e de Tatewaki Nio, assim como de desenhos de John Michael Vlach, procuraremos resgatar as diferentes referências e diálogos estabelecidos por essa arquitetura. A realização de comparações formais tendo como base registros fotográficos e desenhos seja da arquitetura brasileira, como da arquitetura tradicional iorubá, nos auxiliará a elaborar as razões culturais que estiveram por trás da ampla difusão da forma arquitetônica em questão.
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2. “Brasileiros” ou agudás Como colocado por Milton Guran: no Benim, Togo e Nigéria são chamados de agudás2, ou de “brasileiros”, os descendentes de comerciantes de escravos brasileiros e portugueses que se instalaram na região entre os séculos XVIII e XIX, assim como os descendentes de africanos, e africanos escravizados no Brasil que para essas localidades retornaram ao longo do século XIX.3 Esse movimento de retorno de libertos africanos e crioulos vindos do Brasil para a “Costa dos Escravos” tem início a partir da década de 1830. Ganha intensidade a partir de 1835, após a Revolta dos Malês, pois os escravos começam a sofrer represália mediante uma lei que permitia “reexportar africanos forros sob simples suspeita de promover, de algum modo, a insurreição de escravos” (Lei de 13 de maio de 1835)4. Apesar dessa identidade ter sido inaugurada pelos comerciantes no final do século XVIII, já atribuída de autoridade, a comunidade “brasileira” nesses países viria apenas a ganhar expressividade com o retorno em massa de ex-escravos, que apresentavam uma questão identitária muito mais pungente uma vez que se caracterizavam pela assimilação de costumes e inclusive de sobrenomes dos seus senhores no Brasil.5 A origem étnica desses retornados, portanto, remonta ao momento em que deixaram a África em primeiro lugar. A maioria provinha das cidades-Estado mais afetadas pelas guerras que assolavam as cidades do interior, na medida em que a escravização ocorria mediante: raptos, capturas de guerra e vendas por parentes ou superiores, para quitação de dívidas; ou após um processo judicial como criminosos. Apesar de hoje a região ser referida como iorubá, referir-se a ela dessa forma no século XIX constitui anacronismo. Iorubá, no sentido oitocentista da palavra, referia-se exclusivamente àqueles que eram habitantes ou originários de Oyo, enquanto o termo correto para referir-se aos habitantes da região de forma geral era “akus”. O termo “akus” abrange diversas etnias: os "iorubás" (provindos de Oyo), os "egbás" (provindos de Abeokuta), os 2
“A origem da palavra agudá tem provocado controvérsias, mas é, muito provavelmente, uma transformação da palavra “ajuda”, bastante conhecida na região por ter sido, até o século XIX, a designação mais corrente em português da cidade de Uidá, onde se situa o Forte Português de São João Baptista de Ajudá.” (GURAN, Milton; CONDURU, Roberto. Architecture Agouda au Bénin et au Togo. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, 2016, p. 8.) 3 Idem 4 CUNHA, Marianno C. da; CUNHA, Manuela C. da. Da senzala ao sobrado: Arquitetura brasileira na Nigéria e na República Popular do Benim. Fotografia: Pierre Verger. São Paulo: Nobel: Edusp, 1985, p. 13. 5 GURAN; CONDURU, 2016, loc. cit.
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"ijexás" (provindos de Ilesha), os "yagbás", os "bornus", os "ekitis", os "ottas", os "condos", os "ifes" (provindos de Ifé), os "galas".6 Dentre os escravos na Bahia, os escravos “akus” representavam uma maioria, composta, por sua vez, majoritariamente por membros das etnias "iorubá" e "egbá". Essa preponderância se vê explicada pela ruína do Império de Oyo entre o final do século XVIII e início do XIX, e pelo fortalecimento do império do Daomé, no início do XIX, que passou a predar regularmente a cidade de Abeokuta para se abastecer dos escravos. Também dentre os escravos da Bahia, a grande quantidade de muçulmanos devia-se possivelmente aos seus levantes nas cidades iorubanas e às perseguições movidas contra eles pelos tradicionalistas. Dentre as famílias “brasileiras” que se instalaram em Lagos a partir de 1850, apresentavam-se membros de outras etnias não iorubanas: de ascendência nupe, hauçá, bornu, entre outras. Muitas vezes, o movimento de retorno não significava necessariamente um retorno ao local de origem, pelo risco que se corria de ser escravizado em outros territórios. 2.1. Localização Os “brasileiros” a princípio se espalharam pelas cidades da costa, onde localizavam-se, a essa altura, os portos de comércio de escravos. Alguns retornaram para o interior de onde eram originários, mas a maioria manteve-se na costa, onde havia mais oportunidades de comércio, e, sobretudo, onde não se corria o risco de ser escravizado como no interior. Nesse sentido, com o passar do tempo, a opção por Lagos em detrimento de suas cidades de origem, ou mesmo de outras cidades costeiras, não foi de forma alguma casual. Em 1851, o bombardeio de Lagos pelos ingleses e o estabelecimento de um consulado submeteram por fim a cidade à condição de “Pax Britannica”, tornando-a um porto seguro para os libertos. Além disso, geográfica e historicamente Lagos sempre ocupara um ponto de escoamento estratégico do comércio da costa, uma vez que se encontra na única saída para o mar do sistema de lagunas em que desembocavam vários rios importantes que passavam pelas cidades iorubanas do interior7(Imagens 1 a 4).
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CUNHA, 2012. Op. cit., p. 133. MABOGUNJE, A.L. Yoruba Towns. Ibadan: Ibadan University Press, 1962, p. 12.
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Imagem 1 - Mapa do Golfo da Guiné, em cuja porção setentrional localiza-se o Golfo do Benim.
Imagem 2 - Mapa da Nigéria (1992).
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Imagem 3 - Inserção regional da cidade de Lagos, capital da Nigéria. Fonte: Google Maps.
Imagem 4 - Mapa aproximado da cidade de Lagos. Fonte: Google Maps.
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Lagos, portanto, representava, a partir da segunda metade do século XIX, um importante ponto de encontro em termos econômicos, políticos e culturais: o encontro do comércio da costa com o comércio do interior; e o ponto de disputa de interesses entre os ingleses, os lagosianos, e os retornados. 2.2. Posição econômica O início do movimento de retorno dos ex-escravos coincidiu com o progressivo fechamento do mercado baiano para os escravos libertos que, além de sofrerem o estigma da revolta, estavam sofrendo concorrência de uma nova leva de imigrantes portugueses. Incentivados a abandonar o país, no próprio ano de 1835 foram emitidos mais de 700 passaportes para afro-brasileiros8. Restavam, aos escravos libertos, portanto, duas opções: empregar-se nos latifúndios, ou então, tendo dinheiro, pagar uma passagem de volta à África. Simultaneamente, a situação na África era favorável aos retornados. Até 1850, o comércio em Lagos pautava-se basicamente na importação de fumo e aguardente e na exportação de escravos. Os libertos “brasileiros” entravam com vigor no ramo do comércio de escravos, sem, no entanto, se tornarem comerciantes de primeira importância, posição geralmente ocupada por “brasileiros” nativos, brancos ou mulatos. No entanto, a aprovação da Lei Eusébio de Queiroz no Brasil em 1850, seguida da intervenção britânica em Lagos em 1851, levou, enfim, ao cessamento do comércio negreiro em Lagos em 1852: extinguiram-se ambos os mercados, tanto o de importação, quanto o de exportação de escravos. O fim do comércio negreiro leva evidentemente a um rearranjo da economia de Lagos em torno de outros mercados, e os “brasileiros” terão sua parte nesse processo. Já desde 1830, o azeite de dendê (também conhecido como óleo de palma) começa a ser negociado e ganha importância como produto de exportação, uma vez que, assim como outros óleos vegetais, era muito solicitado por países industriais da Europa: era utilizado como lubrificante e combustível industrial, assim como na fabricação de velas de estearina. Já em 1840, os abolicionistas pressionavam o governo para apoiar o “comércio inocente” (nome dado ao comércio do azeite de dendê em contraposição ao comércio negreiro), visando o impedimento do colapso da economia local com o fim do comércio de escravos, que, nesse momento, já se anunciava. A sua comercialização atingiu seu auge em 1850, e começou a sofrer
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VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Baía de Todos os Santos, dos sécu los XVII a XIX (1968). Salvador: Corrupio, 1987, p. 338, 358, 535-6.
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queda a partir de 1860, quando o uso do petróleo e seus derivados tornou-se preponderante no meio industrial europeu. No que tange às relações comerciais com o Brasil, essas se mantiveram, a partir de 1852, primeiramente, baseadas no mercado de importação do fumo baiano e da aguardente de cana, produtos que tinham um mercado solidamente estabelecido na Costa do Benim. Rapidamente, no entanto, esses comércios são suplantados por países que têm condições de oferecer os mesmos produtos por preços mais competitivos (a aguardente pela Alemanha, e o fumo pela Inglaterra, a partir de 1880). Apesar de as relações comerciais com o Brasil terem se visto mais uma vez ameaçadas, elas encontraram um caminho para subsistir na sua reestruturação sobre um mercado especializado. Ganharam terreno, assim, os produtos importados exclusivamente do Brasil, como a carne-seca e sapatos como alpargatas, que possuíam uma demanda assegurada pela própria comunidade “brasileira”. Passou-se a importar uma grande variedade de artigos em pequenas quantidades: balcões de ferro e material de construção para os sobrados, mobília, louça, talheres e até carruagens; comidas como bacalhau e carne do sertão, ingredientes da culinária dita “brasileira”, que depois se popularizou e fez muito sucesso em Lagos9. Os valores étnicos foram responsáveis por abrir novos mercados. A competitividade dos preços estava muito relacionada ao transporte: enquanto as linhas comerciais com a Europa viam-se firmemente estabelecidas pelo comércio do azeite de dendê, o mesmo não podia ser dito sobre as linhas comerciais com o Brasil, pautadas num comércio de caráter marginal e atípico. Além de escassas, eram muito mais lentas do que as europeias, uma vez que dependiam da circulação de veleiros no lugar de vapores. Essa demora afetava os produtos perecíveis e mantinha o frete muito elevado. No entanto, foram justamente o caráter marginal do comércio e a diversidade dos produtos envolvidos na comercialização com o Brasil que permitiram com que “brasileiros” de Lagos se apropriassem totalmente desse comércio, sem ter de competir diretamente com as firmas europeias que dominavam Lagos. A vantagem que se invertia a favor dos primeiros nesse caso era totalmente atípica dentro do padrão geral, e se assegurava no extremo cuidado com que foram mantidos os contatos comerciais dos “brasileiros” de Lagos com a Bahia: os negociantes faziam com frequência a travessia do Atlântico para reativá-los e parentes que haviam ficado na Bahia eram usados como agentes comerciais. Dentre esses comerciantes estão
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CUNHA, 2012. Op. cit., p. 148.
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Cândido da Rocha (uma das grandes fortunas de Lagos no fim do século XIX) (Imagem 5), Manoel Joaquim de Sant’Anna (o mais bem-sucedido dos comerciantes de Lagos, possuía dois vapores, além de veleiros), Joaquim Branco (Imagem 6) e Walter Siffre (que eventualmente fretava navios). Até o fim da década de 1880, a preferência em Lagos era por um sistema de aviamento e de escambo no qual circulava muito pouco dinheiro. O circuito completo de troca de produtos se dava sem a intermediação de bancos, num sistema cuja base era o crédito e a confiança pessoal. Apenas em 1887 foi criada uma caixa econômica oficial e apenas na década de 1890 foram implantados bancos comerciais em Lagos, até então inexistentes. Nessa condição, competia aos grandes negociantes não só manter estoques importantes, mas financiá-los sobre longos prazos aos seus varejistas, ressarcindo-se só quando estes acabassem de vender as mercadorias ou voltassem com os produtos do interior.10 A outra possível participação econômica dos “brasileiros” retornados, além de comerciantes com o Brasil, estava diretamente relacionada ao caráter de descapitalização do sistema econômico. No âmbito do comércio do azeite de dendê, evidenciavam-se dois setores, um externo e outro interno. O primeiro referia-se ao ciclo comercial com a Europa, que era controlado pelas grandes firmas europeias. Além do grande volume de capital de giro, essas firmas possuíam matrizes e corretores nos mercados ingleses, contatos comerciais que lhe conferiam vantagem sobre os exportadores africanos. Essas casas exportadoras abasteciam-se de duas possíveis formas: ou através de representantes que compravam nos mercados da laguna, ou através de uma rede independente de intermediários africanos. O segundo setor, interno, era administrado por negociantes africanos, dentre os quais predominavam “brasileiros”, devido à condição econômica que a posição impunha: eles encomendavam bens manufaturados às firmas inglesas, e então, por meio de um sistema de crédito, confiavam esses bens a comerciantes menores, na expectativa de serem ressarcidos com azeite de dendê. Estes comerciantes menores, também chamados de intermediários, por sua vez, tinham como tarefa, portanto, a concentração e o transporte do azeite de dendê, que era produzido quase domesticamente, e distribuído por uma vasta área.
10 HOPKINS, Antony Gerald. An Economic History of Lagos 1880-1914. 1964. Tese (Doutorado) - University of London, Londres, 1964. Citado em CUNHA, 2012. Op. cit., p. 154.
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Imagem 5 - Família Rocha: à esquerda, João Esan da Rocha; à direita, a esposa, Louisa Angélica Nogueira da Rocha, com seu filho Cândido da Rocha. Uma das famílias mais proeminentes de Lagos. Fotos anteriores a 1870. Foto Pierre Verger da coleção da família Rocha-Thomas.
Imagem 6 - À esquerda, Joaquim Devodê Branco. À direita, casa principal dentre o conjunto de 21 casas que Branco possuiu entre Lagos e Porto Novo, em Kakawa Street. Fotos Pierre Verger.
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O sistema de crédito no qual os intermediários viam-se inseridos, permitia um ingresso fácil nesse comércio, mas a situação de dependência que acarretava dificilmente permitia aos intermediários uma grande ascensão econômica. A princípio, poderia se concluir que a acessibilidade econômica da posição teria sido o único fator a levar os “brasileiros” mais pobres a se inserirem nesse comércio; numa análise mais aprofundada, no entanto, outro fator torna-se evidente. Os “brasileiros” dispunham nessa condição de uma carta mestra11: o fato de poderem reivindicar suas origens nas cidades do interior, reatando as suas ligações familiares e políticas, que estavam imbricadas (ao afirmarem suas identidades como egbás, ijexás, ondos, eram retribuídos com benefícios políticos). Essa condição possibilitava-lhes acesso direto aos mercados do interior, revolucionando o sistema tradicional no qual os reinos intermediários eram etapas comerciais incontornáveis. Os seus laços de origem, que lhes davam uma nítida vantagem sobre seus concorrentes europeus e os tornavam indispensáveis, eram mantidos à custa de um envolvimento ativo na política das cidades do interior. Estas necessitavam, para sua sobrevivência, das armas e munições que seus aliados na costa eram os únicos a prover; e, portanto, necessitavam, em última análise, de influência política junto ao governo de Lagos. Desse modo, os alinhamentos políticos dos retornados no interior eram comandados pelas políticas das cidades do interior e por interesses clientelísticos em Lagos, seguindo de perto os interesses comerciais e, de forma mais precisa, as fontes de abastecimento. A associação política entre as cidades do interior e os grupos étnicos em Lagos era, portanto, vital para ambas as partes. Dessa forma, os retornados se envolveram e se viram envolvidos em uma política complexa: Lagos comandava o comércio transatlântico, mas para a sua sobrevivência dependia das cidades-Estado do interior, que controlavam as rotas comerciais e produziam as matériasprimas de exportação.12 Evidenciavam-se, assim, duas facetas na política de Lagos a partir de 1850: a primeira dizia respeito à totalidade da rede de comércio com o interior da região e definia-se por seu aspecto extremamente intrincado, dominado por especificidades e interesses em conflito; já a segunda, dizia respeito às dinâmicas internas à cidade de Lagos, e centrava-se nas relações entre as comunidades estrangeiras e as autoridades indígenas da cidade. Enquanto a primeira faceta envolvia as diversas comunidades de Lagos de forma diferenciada, a partir de suas etnias, a segunda faceta tratava todos os segmentos da comunidade de origem estrangeira de maneira homogênea.
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CUNHA, 2012. Op. cit., p. 162. CUNHA, 2012. Op. cit., p. 169.
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2.3. Estrangeiros Diferentemente da posição assumida pelos retornados nas políticas do interior, que era de identificação étnica e se dava no nível da individualidade, em Lagos, os retornados eram vistos como parte de um único grande grupo de estrangeiros, destituídos de suas qualificações de origem. Desde 1851, os retornados apoiaram-se nos ingleses para manter sua independência em relação às autoridades locais em Lagos: a comunidade desejava inserir-se como parte a ser considerada nas tomadas de decisão, situação que feria frontalmente as prerrogativas tradicionais do rei. Se por um lado, a inserção dos retornados na economia foi positiva, o mesmo não se pode dizer da sua inserção na estrutura social local, que se revelou extremamente resistente. As sociedades tradicionais têm papéis reservados para estrangeiros, de forma que o estrangeiro, na realidade, possui um lugar reservado para si na estrutura social local. No entanto, esse lugar se define a partir de uma distância socialmente prescrita: o estrangeiro está na sociedade, ele não é da sociedade. É a potencialidade de sua partida, sua indiferença às relações internas da sociedade - que encobre as relações de fato padronizadas com a sociedade -, que constroem o papel do estrangeiro. “Assim, a posição dos ‘brasileiros’ em sua busca por diferenciação e autonomia não era apenas uma opção de grupo: era uma forma de ajustamento à sociedade hospedeira, e exige, para ser inteligível, uma análise de seu contexto. A manutenção de uma identidade separada não se deve simplesmente à saudade da Bahia ou a um desejo unilateral de distanciamento, mas à importância de se preservar uma distinção. As distinções eram, como vimos, de vários tipos. Em um nível, era-se 'brasileiro', noutro, juntamente com os saros, 'retornado' , noutro ainda era-se 'egbá' retornado, 'ijexá' retornado... Essas diversas identidades eram operativas em determinados contextos. Eram essas distinções que permitiram ação política e o comércio."13
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CUNHA, 2012. Op. cit., p. 186. "Os saros eram iorubás escravizados que haviam sido resgatados pelo esquadrão britânico já a caminho do Novo Mundo. Eram levados para Serra Leoa, estabelecimento fundado por abolicionistas ingleses em fins do século XVIII e convertido em colônia britânica a partir de 1808. Serra Leoa foi um centro missionário anglicano e metodista importante, e os saros, submetidos à influência missionária, voltam para a costa iorubana fortemente anglicizados. (J. Peterson, 1969; J. H. Kopytoff, 1965)". (CUNHA, 2012. Op. cit., p. 131).
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2.4. Arquitetura: diferenciação e prestígio Além de comerciantes, os “brasileiros” também desempenhavam atividades alternativas e complementares, como era o caso da agricultura e do artesanato, nas quais também se notabilizaram. Em 1850, alguns “brasileiros” compraram propriedades ao redor de Lagos, na região de Ebute-Metta, e, a partir da mão-de-obra escrava, cultivaram a mandioca e o milho, introduzindo-os na cultura culinária local, em adição à já existente cultura do inhame. O fim da escravidão, no entanto, significou uma falta de mão-de-obra crônica que impedia o desenvolvimento da agricultura na região. Lagos, nesse cenário, passou a depender das cidades de Abeokuta e Ijebu para seu abastecimento, e a agricultura local só voltaria a receber novos investimentos em momentos de dissensões entre Lagos e o interior, como foi o caso durante a crise econômica de 1880. Mas os “brasileiros” se orgulhavam antes de serem artesãos: pedreiros, mestres de obras, marceneiros, carpinteiros, alfaiates, ourives, barbeiros-cirurgiões, como no Brasil (Imagem 7). As mulheres eram conhecidas como costureiras e quituteiras. E rapidamente estabeleceram reputação como o grupo de artesãos mais qualificado de todo o Golfo do Benim e seus arredores14. Entre grandes nomes estão o do mestre de obras Lázaro Borges da Silva, que trabalhou na construção da igreja Holy Cross (Imagem 8), iniciada em 1879; e o do marceneiro Balthazar dos Reis, que ganhou uma medalha de bronze na Exposição Colonial de 1886 com uma mesa marchetada.15 A tradição do artesanato se manteve nas famílias “brasileiras”, passando de geração em geração. Mesmo filhos de famílias mais abastadas, que a partir do início do século XX iam estudar na Europa, aprendiam também um ofício manual16 (Imagem 9).
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TERIBA, Adedoyin. Usando noções de beleza para recordar e ser conhecido na região do Golfo de Benim. Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v.10, n.1, p. 19-29, mai. 2013, p. 25. Tradução de Bárbara Lima. 15 CUNHA, 2012. Op. cit., p. 168. 16 Entrevista ao juiz Francisco Eugenio Pereira com Marianno Carneiro da Cunha, 1985.
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Imagem 7 - Boutique de Barbier (Loja de Barbeiro). Aquarela, 1821. Jean Baptiste Debret. Segundo Debret, “... o oficial de barbeiro no Brasil é quase sempre um negro ou pelo menos um mulato. Este contraste chocante para o europeu não impede o habitante do Rio de entrar com confiança numa dessas lojas, certo de aí encontrar numa mesma pessoa um barbeiro hábil, um cabeleireiro exímio, um cirurgião familiarizado com o bisturi e um destro aplicador de sanguessugas. Dono de mil talentos, ele tanto é capaz de consertar a malha escapada de uma meia de seda como de executar, no violão ou na clarineta, valsas e contradanças francesas, em verdade arranjadas a seu jeito." (J. B. Debret, 1972 (1839), p. 151.
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Imagem 8 - Holly Cross: primeira Catedral Católica de Lagos, construída em 1881 por Balthazar dos Reis, Francisco Nobre e Lázaro Borges da Silva. Fonte: Societé des Missions Africaines, Roma.
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Imagem 9 - Irmãos da família iorubá “Alakija”, enviados por seus pais para estudar medicina ou direito na Europa ou na Bahia. Pelo fim do século, embora perdurasse a tradição artesanal e comercial, duas outras carreiras atraíam os descendentes “brasileiros”; a de funcionário no governo colonial ou em grandes firmas estrangeiras, e a de mestre escola e catequista. Documento de família fotografado por Pierre Verger.
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Contudo, foi indubitavelmente na arquitetura que os “brasileiros” alcançaram a maior reputação. São inúmeros os exemplos de obras “brasileiras” notáveis em Lagos, dentre as quais um programa edilício se destaca, parecendo ser único: a residência unifamiliar, que será objeto central do nosso estudo. O bairro “brasileiro”, conhecido como “Popo Aguda” (Imagens 11 e 12), centrado em Campos Square, Bamgboshe Street e Tokunboh Street, foi completamente edificado no estilo “brasileiro”, com sobrados que eram conhecidos localmente como “ile petesi” (“ile” = casa, em iorubá; “petesi”=sobrado, em iorubá). Todavia, há exceções a justificar essa aparente uniformidade do programa edifício: a mesquita de Shitta Bey, internacionalmente reconhecida; a mesquita central de Lagos; o templo de Orixá/Vodun, fotografado por Pierre Verger em Badagry; além de tumbas funerárias, algumas bem simples, outras bastante elaboradas (Imagens 13 a 18).17 E esse sucesso não se deu de forma casual: os “brasileiros” perceberam que as formas arquitetônicas deveriam ter integridade, proporção e clareza - ideias estéticas que influenciaram o design de casas e igrejas durante séculos no Brasil; e então criaram uma arquitetura que ressaltava sua formação artesanal, adquirida de várias formas no Brasil, reforçando assim sua reputação no Golfo do Benim. Escolheram a arquitetura, portanto, como meio para remodelar suas identidades sociais, mediante a manifestação de "concepções de beleza"18. Sobre a escolha da arquitetura senhorial como referência em detrimento de outras formas conhecidas no cativeiro, Conduru diz: “Obviamente, quiseram esquecer muitas e guardar outras tantas das experiências que tiveram no cativeiro na América. Não parece lhes ter ocorrido a possibilidade de desdobrar a mistura de América, África e além gerada nos quilombos, se é que a conheciam. Na memória dos espaços que construíram e experimentaram na América, devem ter obliterado as vivências nas senzalas, valorizando os modos de viver das casas senhoriais.”19
17
GURAN; CONDURU. Op. cit., p. 24. TERIBA, 2013. Op. cit., p. 25. 19 CONDURU, Roberto. “Entre a cabeça e a terra - arquitetura dos agudás no Golfo do Benim”. Arte & Ensaios, n. 24, p. 145-161, 2012, p. 153. 18
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Imagem 10 - Planta da cidade de Lagos, 1887. Fonte: Syndics of Cambridge University Library.
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Imagem 11- O bairro “brasileiro em Lagos” (“Popo Aguda”), 1887, centrado em Campos Square, Bamgboshe Street e Tokunboh Street. Fonte: Syndics of Cambridge University Library.
Imagem 12 - Uma vista de “Kakawa Street”, no final do século XIX. Fonte: Societé des Missions Africaines, Roma.
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Imagem 13 - Mesquita de Shitta Bey, construída em Martin Street, em Lagos, por João Baptista da Costa, em 1844. Foto Pierre Verger.
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Imagem 14 - Mesquita central, em Victoria Road, em Lagos. Sua construção foi iniciada por João Baptista da Costa e concluída pelo seu aprendiz Sanusi Aka. Foto Pierre Verger.
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Imagem 15 - Templo de Orixá-vodun, construído por Martiniano do Bonfim, em Badragri, na década de 1890. Foto Pierre Verger.
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Imagem 16 - tumbas funerárias em Ijebu Ode. Foto Adedoyin Teriba.
Imagem 17 - Cemitério "brasileiro" de Lagos. O cemitério brasileiro é uma novidade, pois tradicionalmente os iorubás e os fons sepultavam seus mortos no compound familiar. Foto Pierre Verger.
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Imagem 18 - Uma das casas de Joaquim Devodê Branco, situada em Lagos. Foto Pierre Verger.
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Lançando mão da experiência, os estrangeiros definiam assim sua condição enquanto grupo frente à sociedade hospedeira, da qual se distinguiam e se destacavam: os retornados haviam “nascido de novo” no Brasil, e diferenciavam-se da população local por falar português e por serem católicos ou muçulmanos. Destacavam-se enquanto comunidade ocidentalizada, passando a ser vistos pelos demais africanos como “aqueles que têm maneiras de branco”.20 (Imagens 19 e 20) Sua arquitetura, como veremos, de caráter essencialmente modernizante em relação às pré-existências locais - no que diz respeito à sua forma, sua altura, sua decoração, sua inserção urbana, e ao modo de vida por ela implicado -, representaria, num primeiro momento, um meio de distinção étnica para a comunidade “brasileira” de Lagos. Com o passar do tempo, no entanto, à medida que se adentra o século XX, e sobretudo a partir da década de 1930, verificase o aparecimento massivo de formas arquitetônicas “brasileiras” no interior do território iorubá, ao norte de Lagos, em cidades como Abeokutá e Ijebu-Ode. Sua adoção ocorreu de forma tão difusa que as casas de estilo “brasileiro” passaram a formar a grande maioria das moradias urbanas em mais ou menos 90% do país iorubá.21 Resta-nos entender quais poderiam ter sido as raízes culturais que possibilitaram o desenvolvimento deste processo. Isto é, como uma forma arquitetônica que a princípio esteve associada ao estrangeiro transformou-se na forma de habitação iorubá moderna por excelência. Muito dessa explicação repousa no entendimento de que, nesse processo, a arquitetura “brasileira” abandonou sua posição enquanto símbolo de distinção étnica para se tornar um símbolo de prestígio entre a população local, na medida em que foi primeiro adotada por reis, chefes e elites locais no interior do território. Esse quadro nos permite levantar algumas hipóteses que serão discutidas e desdobradas nos itens a seguir: a primeira é a de que o processo de modificação da arquitetura local se deu de forma não disruptiva, na medida em que, apesar de constituir uma formalização do modo de vida moderno ocidental, a arquitetura “brasileira" não representou uma ameaça aos compromissos formais tradicionais iorubás - o que se evidencia pelo fato de que ela foi 20
Pode-se afirmar que os agudás estão na origem da introdução da cultura ocidental na Costa dos Escravos, mediante a introdução de palavras de origem portuguesa nas línguas locais (sobretudo aquelas relacionadas à móveis e utensílios domésticos, como “garfou” e “saia”, significando “garfo” e “saia”, ou ligadas ao culto católico, como “Natà”, que significa “Natal”). Também por meio da construção da primeira igreja, e de uma forma geral, da introdução de técnicas construtivas ocidentais, sobretudo relativas às construções de alvenaria, que tornaram possível a construção do primeiro sobrado da região, a residência de Chachá I. (GURAN; CONDURU. Op. cit., p. 14). 21 CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit., p. 81.
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rapidamente aceita por chefes tradicionais, figuras, a princípio, eleitas para salvaguardar as tradições culturais básicas de seu povo; por outro lado, no que toca à sociedade, pode-se dizer que sua difusão é indicativa na medida em que revela uma transformação no modo de vida do sudoeste nigeriano. Rapoport afirma que são imperativos culturais que fornecem critérios para as decisões arquitetônicas, pois então, quais seriam os imperativos subjacentes à atitude iorubá, com relação ao estilo e às novas técnicas?22
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CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit., p. 85.
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Imagem 19 - Mulheres da comunidade "brasileira" de Lagos. Fonte: Societé des Missions Africaines, Roma.
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Imagem 20 - Grupo de mulheres iorubá na mesma época em que foi tirada a foto da Imagem 19, com roupas tradicionais, “adirés” e panos da costa. Fonte: Societé des Missions Africaines, Roma.
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3. A casa iorubá Para que se compreenda devidamente o que significou a introdução de uma forma arquitetônica ocidental e modernizante nesse contexto é necessário antes de tudo entender as formas arquitetônicas vernaculares tradicionais, às quais os povos locais estavam ambientados. Tradicionalmente, a casa iorubá era construída ao rés-do-chão, e definia-se por sua extrema funcionalidade: feita inteiramente de adobe, sem aberturas e com uma única porta de entrada, as casas organizavam-se “(...) em composições chamadas “agbo ile” (literalmente, “grupo ou rebanho de casas”), em forma de quadrado, de círculo ou ferradura, cercando um pátio central aberto, com um portão principal, sendo a casa dividida em compartimentos destinados a abrigar muitas famílias”23. A essa unidade habitacional compartilhada dá-se o nome de “compound”. Essas unidades estavam interligadas por uma longa varanda, com pilares de terra ou madeira, e por um único telhado comum de palha (sapé). Além de manter uma temperatura estável dentro das casas (quando comparada ao ferro corrugado, que viria a ser posteriormente adotado como cobertura), o telhado de palha era feito de material acessível e pressupunha uma técnica que permitia reposição rápida, aspectos de alta relevância em uma cultura em que atear fogo à casa de um desafeto era prática corrente em toda a região - o que em parte também explicava a inexistência de aberturas nas construções (Imagem 21). A casa iorubá caracterizava-se por sua organização uniforme, sendo seu único aspecto distintivo a dimensão, definida, por sua vez, pelo número de pátios, que variava de acordo com o número de residentes, com o número de funções espirituais realizadas no edifício, e por fim, com a riqueza: enquanto o palácio é um edifício enorme, intricado e labiríntico, cheio de elementos decorativos, com portas, paredes e pilares esculpidos (Imagens 22 e 23), a casa do chefe será muito menos impressionante, sendo muito mais simples e menor (3 ou 4 pátios), apesar da manutenção de seu signo de autoridade representado pelo alpendre triangular (kobi) (Imagem 24). O ‘compound’ de um ancião, por sua vez, é ainda menor, com apenas 1 ou 2 pátios, e a partir daí os signos arquitetônicos de prestígio são menos notáveis. Um ‘compound’ familiar é uma estrutura bastante simples e sem decoração. É dotada normalmente de um único pátio, apesar de ele poder ter até 30m de largura.24 (Imagem 25)
23
JOHNSON, Samuel. The History of the Yorubas. Lagos: CSS, 1973, p. 98. VLACH, John Michael. Affecting Architecture of the Yoruba. African Arts, Los Angeles, v. 10, n. 1, p. 48-99, 1976, p. 50. Nota: todas as traduções desse texto foram realizadas pela autora. 24
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Imagem 21 - Vista de uma casa rural de três módulos. Atiba, Nigéria, 1974. Foto John Michael Vlach.
Imagem 22 - Pilares esculpidos do Palácio de Queto, em foto de 1914. Fonte: Musée de l'Homme Paris.
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Imagem 23 - Planta de um palácio iorubá. Desenho de John Michael Vlach a partir do livro "Yoruba Palaces".
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Imagem 24 - Planta do compound do chefe Fawole Onitiju Obalorun. Ile-Ife, Nigéria, 1974. Desenho de John Michael Vlach.
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Imagem 25 - Planta do compound da família Aronmaye. Ile-Ife, Nigéria, 1974. Desenho de John Michael Vlach.
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O povo iorubá tem uma cultura arquitetônica complexa e possui uma longa tradição de manutenção, tanto da residência rural quanto da urbana. Desde o século XVI viviam em cidades grandes, a maioria com mais de 50000 habitantes, onde possuíam suas casas em formato de pátio ou “compound”. No campo, contudo, mantinham um segundo edifício habitacional, cuja ocupação se dava de forma temporária, apenas na época de plantio e de colheita. Tratavam-se de estruturas em sua maioria lineares, que representavam, conceitualmente, fragmentos do “compound” urbano.25 À forma mínima dessas estruturas dá-se o nome de “casa de fazenda básica”: com 3x6m de dimensão, ela é composta por dois aposentos e representa a unidade básica da arquitetura iorubá (Imagens 26 e 27). O primeiro dos aposentos é uma cozinha-sala, enquanto o segundo, sem entrada independente, é o dormitório. Essa unidade dupla consiste no módulo básico para o desenvolvimento de outras tipologias, sendo normalmente multiplicada. Uma casa de fazenda pode se definir por duas ou mais unidades duplas posicionadas em sequência, alternativa utilizada quando se deseja uma separação completa das famílias, passando a dispor de cozinha e saleta individualizadas (Imagem 28). Essa dinâmica era diversa daquela estabelecida no “compound”, onde a vida comum se desenvolvia na varanda e no pátio central, enquanto os quartos, também de aproximadamente 9m2, eram majoritariamente utilizados como dormitórios. Outra tipologia mínima também interessante de ser aqui analisada é aquela da “casa de três pernas”, dos Oyo iorubá. Também esta assume inicialmente a forma de uma estrutura linear retangular comprida composta a partir de quatro unidades nucleares, em que os quartos encontram-se encostados ao longo da parede dos fundos, enquanto a área remanescente converte-se em varanda ou vestíbulo. Pode ser construída como uma unidade solitária ou pode ser unida na forma de um L, até formar um “compound” completo, com 4 unidades, “em volta de grandes pátios ou de pequenos implúvios d’água” .26(Imagens 29 e 30)
25
VLACH, John Michael. The Brazilian House in Nigeria: The Emergence of a 20th-Century Vernacular House Type. The Journal of American Folklore, [s. l.], v. 97, n. 383, p. 3-23, 1984, p. 4. Nota: todas as traduções desse texto foram realizadas pela autora. 26 VLACH, 1976. Op. cit., p. 52.
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Imagem 26 - Planta de uma casa de fazenda básica, em Aroko, Nigéria, 1974. Desenho de John Michael Vlach.
Imagem 27 - Vista de uma casa de fazenda básica. Ilefunfun, Nigéria, 1974. Foto John Michael Vlach.
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Imagem 28 - Planta da casa rural de três módulos da imagem 21, Atiba, Nigeria, 1974. Desenho de John Michael Vlach.
Imagem 29 - Planta de uma casa-de-três-pernas. Desenho de John Michael Vlach a partir de CROOKE, Patrick."A sample survey of the Yoruba Rural Building", 1966, p. 69; fundamentado a partir de trabalho de campo realizado em 1974.
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Imagem 30 - Exemplar de casa-de-três-pernas, na região de Ilorin. Foto Pierre Verger.
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A observação das conformações finais de alguns “compounds” urbanos (Imagens 31 e 32) torna evidente a natureza conglomerativa27 do seu processo conceptivo, no qual as unidades arquitetônicas, usadas nas aldeias rurais antes de a família chegar à cidade, são progressivamente multiplicadas, e, à medida que se adicionam, fecham-se em torno de um núcleo. Nesse processo, no qual a construção se fecha em torno de si mesma, o seu núcleo ganha funcionalidade. Os interiores, que, por não possuírem aberturas, permanecem sempre escuros, passam a servir exclusivamente como dormitórios; por outro lado, a varanda, o vestíbulo e o pátio ganham protagonismo enquanto locais de convívio social prolongado. Na varanda, de até 2,5m de largura, assim como no pátio, serão desempenhadas as atividades de caráter artesanal. A maioria da vida ocorre no espaço comum que conecta os quartos, à vista de todos. Uma vez esclarecida a sistematização iorubá de espaço doméstico, deve-se voltar à intenção que existe por trás da realidade material de casas e cidades. Para realizar essa argumentação, tanto John Michael Vlach, quanto Marianno Carneiro da Cunha resgatam um conceito do pensador Amos Rapoport, em que ele diz: “(…) um tipo de casa existe independentemente das técnicas e métodos necessários para construí-la. Os levantamento etnográficos estão cheios de exemplos de uma mesma forma de edificação mantendo-se com alto grau de similaridade apesar da grande variação nos meios de construção (…) As formas dos edifícios primitivos e vernáculos são menos o resultado de desejos individuais que das necessidades e desejos do grupo como um todo por um ambiente ideal.”28
Subjacente a esse raciocínio está a reflexão de que, essencialmente, a arquitetura definese enquanto forma dada a um espaço. E a casa, nesse sentido, por mais aparentemente insignificante que se revele enquanto tipologia, é, na realidade, a um só tempo, um símbolo espacial e material, um reflexo microcósmico de expectativas sociais e culturais. Uma habitação é, portanto, uma expressão ao mesmo tempo pessoal e cultural - uma casa e um habitat, levando Rapoport a concluir que são, em última análise, imperativos culturais que fornecem os critérios para as decisões arquitetônicas.
27
VLACH, 1976. Op. cit., p. 53. RAPOPORT, Amos. House, Form, and Culture. Englewood-Cliffs, N. Jersey: Prentice Hall, 1969, p. 46. Tradução de Marianno Carneiro da Cunha.
28
39
Imagem 31 - Planta do compound da família Seru. Ile-Ife, Nigéria, 1974. Desenho de John Michael Vlach.
Imagem 32 -Planta do compound da família Folarin. Edunabon, Nigéria, 1974. Desenho de John Michael Vlach.
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Vlach retoma em sua argumentação um conceito de Robert Plant Armstrong29, em que ele diz que a tendência para um foco interno em seus elementos de composição é o aspecto que define o cânone criativo iorubá, tendência essa que ele nomeia como “continuidade intensiva”30. O processo de composição iorubá define-se essencialmente pela reorganização de diferentes unidades isoladas em um todo articulado, mediante um movimento em direção a uma unidade cada vez mais coerente, em que o espaço se fecha em torno a uma zona privilegiada: casas rurais são transformadas em unidades habitacionais urbanas. Por sua vez, o fenômeno em questão foi chamado com pertinência por Vlach de “focalização interna”: “a forma da cidade, do ‘compound’ e da casa rural, todos enfatizam o senso de foco interno”31. Como os iorubás sempre viveram em grandes conglomerados urbanos, acabaram por desenvolver um plano urbano específico, que pode ser entendido como uma grande ampliação da organização do “compound” (Imagens 33 a 37). Além de as cidades possuírem forma circular, e serem envolvidas por um muro de defesa (de forma a se voltar para dentro, e a não se expandir radialmente na paisagem), seu plano tem como foco seu centro, onde estão localizados o palácio do rei (afin) e o mercado principal. Há um ideal concêntrico que permeia o plano urbano, não apenas em maior escala, mas também no nível da administração política e social dos distritos: se por um lado os chefes dos distritos se reportavam ao centro (rei), a população, por sua vez, se reportava ao chefe do seu respectivo distrito. Ainda, no plano da escala arquitetônica, os padrões construtivos ajudavam a estabelecer o significado simbólico do plano urbano ao orientar a atenção em direção ao centro, na medida em que os edifícios se distinguiam hierarquicamente pelos seus atributos decorativos e dimensões. Dessa forma, o plano urbano caracterizava-se como intenso na medida em que seu funcionamento e sua forma reiteravam o foco interno, e como contínuo na medida em que os elementos políticos e sociais da cidade não só estavam atraídos para o centro, como estavam imbricados uns nos outros em um contínuo sistema de dependência. Igualmente, a organização dos espaços pessoais era regida pelo princípio da continuidade intensiva, sendo esta evidenciada: em sua dimensão intensiva, pela característica primária do “compound” de ser um espaço cercado que se voltava para dentro e não para a rua, de forma a criar um universo interno para a família; e em sua dimensão contínua, pela ligação 29
ARMSTRONG, Robert Plant. The Affecting Presence: An Essay in Humanistic Anthropology. African Arts, Los Angeles, v. 4, n. 3, p. 63-64, 1971. 30 VLACH, 1976. Op. cit., p. 48. 31 VLACH, 1976. Op. cit., p. 52.
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entre os aposentos, na medida em que estes cercavam o espaço, e pela natureza dos espaços criados, que incentivavam um contato prolongado entre os membros familiares. "O que alguns considerariam como caos é para os iorubá a continuação da família, e o ‘compound’ é claramente um exemplo de arquitetura familiar. Essa característica é definitivamente sugerida nas linhas de abertura de um dos poemas no sistema divinatório iorubá de Ifá: ‘I build a house around you Ifa, so you can build a house around me, sou you can let your children surround me, so you can let money surround me’.” 32
Apesar de no caso da casa de fazenda, por sua estrutura linear, o sentido de um foco comunal interior não ser tão evidente, a maneira como o espaço se encerra enfatiza também a interioridade: os quartos são pequenos, e com nenhuma ou poucas aberturas, pois os iorubás acreditam que a sensação de confinamento provocada pelo espaço seja um estímulo ao contato pessoal, de forma análoga ao que ocorreria no pátio de um “compound”, só que num espaço menor, e entre menos pessoas. Diferentemente do “compound”, a casa de fazenda era concebida para a intimidade individual, de forma que a ideia total de vivência em grupo não poderia, por princípio, ser nela reproduzida, no entanto, seu caso é relevante pois evidencia como, mesmo em diferentes conjunturas, o incentivo à interação pessoal se mantém. Em resposta à investigação proposta de quais seriam as intenções e ideais por trás do conjunto arquitetônico iorubá, é possível concluir que sua arquitetura vem imbuída de um desejo de envolvimento e de participação intensa nas questões sociais, familiares e pessoais. O design do “compound”, assim como o da cidade, e das casas rurais, expressam o desejo de uma arquitetura da intimidade por meio de soluções que são intensas e contínuas em sua configuração e forma, reiterando e estimulando o ambiente de convivência familiar.
32
VLACH, 1976. Op. cit., p. 51.
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Imagem 33 - Planta do reino de Adó-Èkὶtὶ mostrando o palácio no centro e os bairros residenciais que o circundam. Desenho dos anos 1960. Fonte: G. J. A. Òjó, Yoruba Palaces: A Study of Afins of Yorubaland.
Imagem 34 - O palácio de Iléṣà (Ilesha) no centro do território. Fonte: G. J. A. Òjó, Yoruba Palaces: A Study of Afins of Yorubaland.
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. Imagem 35 - O palácio no centro de Ọ̀ wò .̣ (Desenhado nos anos 1960). Fonte: G. J. A. Òjó, Yoruba Palaces: A Study of Afins of Yorubaland.
Imagem 36 - Compounds de chefes ao redor do palácio do Rei em Ọ̀ yó ̣ em 1966. Fonte: G. J. A. Òjó, Yoruba Palaces: A Study of Afins of Yorubaland.
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Imagem 37 - Egbeti, cidade tradicional iorubá, composta de compounds. Fonte: Western Nigeria Information Service.
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4. A casa agudá ou "brasileira" Como já citado, a arquitetura “brasileira” na África Ocidental, apesar de não ter representado uma disrupção em termos de compromissos formais, estava inevitavelmente atrelada a um novo modo de vida, partindo da premissa de que a organização espacial é um dos referenciais da vida social. Esse novo modo de vida era essencialmente moderno, ocidental e urbano. Tendo como base exemplos de construções de estilo “brasileiro" existentes em território iorubá em diferentes períodos e localidades e pautando-se essencialmente na análise realizada por Adedoyin Teriba sobre essas mesmas construções, procuraremos resgatar, auxiliados pela documentação visual desses objetos, as diferentes referências e diálogos estabelecidos por essa arquitetura. A realização de comparações formais com registros fotográficos e desenhos da arquitetura brasileira, e da arquitetura tradicional iorubá nos auxiliará a entender quais são os elementos eminentemente novos dessa arquitetura, e quais são aqueles que refletem um diálogo com as formas tradicionais. Para que se pudesse melhor discernir as múltiplas referências dessa forma arquitetônica, optou-se por categorizar as soluções apresentadas pela arquitetura “brasileira” em duas esferas: aquelas referentes à dimensão interna da construção e aquelas referentes à dimensão externa. Por soluções internas, entendeu-se sobretudo aquela da distribuição interna dos aposentos, mas também explorou-se em que medida essa conformação não seria resultante da relação estabelecida entre o edifício e o lote urbano. Por soluções externas, por sua vez, entendeu-se aquelas que afetaram os desenhos externos dos edifícios, as aberturas e as ornamentações. Pois é apenas a partir do reconhecimento das múltiplas referências associadas a essa forma arquitetônica que se torna possível a elucidação das intenções que subjazem à conformação final desses edifícios, e, por consequência, das razões para sua ampla variedade formal, e para sua condição mutável frente à percepção local. Isto é, esclarecidas as intenções subjacentes à forma arquitetônica, chega-se às razões culturais que estiveram por trás de sua ampla difusão.
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4.1. Soluções internas: a planta e sua relação com o lote urbano 4.1.1. Construções em Lagos As primeiras manifestações da arquitetura “brasileira”, ou Agudá, foram construções surgidas em Lagos nos anos 1850, tornando-se cada vez mais comuns no último quarto do século XIX. Em 1853, havia 130 famílias “brasileiras” em Lagos; em 1871, 1237 ex-escravos brasileiros; e no final de 1880, 3321 ex-escravos brasileiros, o que representava, aproximadamente, 9% da população de Lagos33. Mesmo nunca tendo representado uma maioria, os “brasileiros” foram responsáveis por uma importante contribuição no cenário arquitetônico da cidade. Como vimos, os "brasileiros" construíram mesquitas, igrejas, mausoléus, templos de orixás, palácios e casas. As casas poderiam ser moradias próprias, investimentos, ou construídas para fins de aluguel. As edificações eram um destino conveniente às economias acumuladas no comércio, pois, além de muitas vezes garantirem retorno financeiro, representavam a confirmação imediata de uma posição social de prestígio frente à população local. Compounds de até 30m de largura, portanto, dividiam o espaço urbano com os edifícios “brasileiros” de dimensões reduzidas, próximas à média das casas urbanas, o que significava uma dimensão de 8 por 20 metros em geral. Entravam em conflito, nessa medida, concepções urbanísticas radicalmente distintas: por um lado, tinha-se uma forma construtiva que se organizava a partir de um princípio conglomerativo, o “compound”, em que unidades básicas somavam-se à medida da necessidade em torno de um núcleo que dava as costas para a rua; por outro, o sobrado “brasileiro”, de volumetria e dimensões intimamente atreladas ao conceito de lote urbano, o que implica uma noção de racionalização da cidade muito distante da natureza conglomerativa do “compound”. Além disso, diferentemente do compound, os edifícios “brasileiros” eram repletos de janelas, o que, a priori, já colocava em xeque o sentido único de focalização interna, na medida em que voltavam suas faces para a rua. A implementação de janelas, na realidade, teria muitos outros significados, como veremos a seguir, mas o tratamento dado para as fachadas, em disposição clássica idiossincrática, em suas decorações com padrões florais em baixo-relevo, esculturas heráldicas, bem como a estrela de Davi e a lua crescente
33
VERGER, 1976; COLE, 1975. Citados em VLACH, 1984. Op. cit., p. 7.
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islâmica,34 já indicavam uma preocupação com o impacto exterior até então desconhecida para a arquitetura local. Intimamente ligadas à volumetria e ao espaço, ainda que a princípio virtual, definido pelo lote urbano, estavam as plantas dessas novas construções, que possuíam mais de um cômodo de profundidade, e mais de um pavimento. Nelas, o corredor, ou vestíbulo, despontava como elemento básico de organização, em contraposição ao pátio ou à varanda iorubás: ladeado por aposentos em ambos os lados, o corredor ocupava a posição central da planta. Menos definidas pelo lote urbano de Lagos propriamente, essas construções traziam em suas soluções internas a estrutura urbanística brasileira, tendo em vista o desenvolvimento da arquitetura brasileira em sua relação com o lote com o passar dos anos. Para dar início a uma maior aproximação a essa forma arquitetônica original e singular, vamos observar um de seus melhores exemplos em Lagos. A “Water House”, também chamada de “Casa da Água”, foi construída em 1875 em Kakawa Street, no bairro “brasileiro” de Lagos, Popo Aguda (Imagens 38 e 39). João Esan da Rocha, seu proprietário, tornou-se escravo aos dez anos de idade, e foi mandado para o Brasil, de onde retornou para Lagos, enquanto escravo alforriado, aos 35 anos. O nome dado ao seu sobrado advém do fato de ter sido a primeira casa com um poço de água potável em Lagos, cavado pelo próprio Da Rocha, simulando os poços que ele observara em propriedades em Salvador. A parte superior da fachada principal é revestida por azulejos que ecoam a prática dos portugueses no processo de "cosmetização" da cidade de São Luís do Maranhão, no Brasil, a partir do século XVIII35. “A casa tem todas as exigências de um sobrado de classe alta da Bahia, Rio ou São Luís do Maranhão, ou da residência rural de um próspero latifundiário do nordeste Brasileiro; esta casa tem dois vestíbulos, com duas escadarias, uma para os proprietários e outra para os comerciantes, uma varanda, uma grande sala de estar e quartos. No piso térreo ficam as lojas, armazéns e garagem.”36 (Imagem 40)
34
TERIBA, 2013. Op. cit., p. 25. Esse processo foi beneficiado e em muito influenciado pelo evento da reconstrução de Lisboa após o terremoto de 1755. A reprodução tal e qual das técnicas construtivas adotadas em Portugal em território brasileiro levaria a cidade de São Luís a se tornar "a mais lusitana das capitais brasileiras". (Isabella Bogéa de Assis, "A Herança Lusitana da Cidade dos Azulejos"). 36 CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit., p. 103. 35
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Imagem 38 - A Water House (também conhecida como Casa da Água), em Kakawa Street no bairro "brasileiro". Construída em 1875. Foto Tatewaki Nio, 2017.
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Imagem 39 - Foto aproximada da Water House (também conhecida como Casa da Água), em Kakawa Street no bairro "brasileiro". Construída em 1875. Foto Pierre Verger.
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Imagem 40 - Planta do primeiro pavimento da "Water House". Fonte: Brigitte Joubert Helene Kowalski, "L'Héritage Architectural Afro-Brésilien Sur La Côte Des Esclaves".
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Interessa fazer aqui uma caracterização mais aprofundada do vestíbulo térreo, espaço de muito interesse para a nossa discussão, que era utilizado pela família como meio para apresentar à sociedade seus gostos refinados.37 “(…) Assim, não apenas a distribuição espacial, como também o funcionamento e o modo de vida da casa eram e são, ainda, em certa medida, brasileiros patriarcais, porque a neta do Sr. Esan da Rocha faz questão de manter as tradições de seu antepassado. A maneira como ela recebe seus visitantes ilustra esse ponto de vista, por ser de fato uma réplica do comportamento senhorial do Brasil patriarcal até há algumas gerações, e um exemplo vivo do funcionamento de uma casa colonial brasileira em seus mais minuciosos detalhes e estrita etiqueta.”38
Vale aqui uma pausa para entender do que se trata a introdução do vestíbulo e do interesse pela recepção de um público externo em uma arquitetura que tradicionalmente se caracterizava essencialmente por um pátio internalizado, voltado para si mesmo e de costas para o mundo exterior, onde se desempenhavam atividades de caráter comunal e familiar. Essa internalização, ou privatização da vida familiar que acontece em concomitância a uma maior abertura ao mundo exterior pode ser também bem observada em dois outros exemplos de casas “brasileiras” em Lagos, nas quais o corredor se faz pela primeira vez presente. Também nessas construções, identifica-se o deslocamento do vestíbulo (agora de caráter mais íntimo) em direção aos fundos da casa - isto é, distante do olhar curioso de estranhos -, de forma que outras acomodações passam a desempenhar o papel de intermediação entre público e privado. A casa da família Pereira foi construída também em Kakawa Street na segunda metade do século XIX (Imagem 41). Seu proprietário, Benedicto Florência Pereira, agudá, recebeu a propriedade em 1864 do vice-governador da Colônia de Lagos John Hawley Glover. A planta da construção, térrea, revela um corredor em sua extremidade direita que conduz a um vestíbulo na parte posterior da residência, onde eram realizadas as atividades de caráter comunal e familiar (Imagens 43). A privatização da vida familiar, nessa medida, ocorre em detrimento da 37
MEISNER, Christine. Recovery of an Image: A Video Tale. In: PHAF-RHEINBERGER, Ineke; PINTO, Tiago de Oliveira. Africamericas: Itineraries, Dialogues, and Sounds. Madrid; Frankfurt am Main: Iberoamericana; Vervuert, 2008. p. 74: "Construí a Waterhouse na Kakawa Street no estilo brasileiro. Dentro havia uma fonte que deu nome à nossa casa. Foi a primeira fonte do centro da cidade de Lagos e as pessoas vinham de todos os lugares para comprar água. Até o Oba bebeu disso. Quando se entrava na casa, os pássaros saudavam o ingressante cantando e cantando. O papagaio vermelho em seu suporte de ébano sempre chamava meu nome. Tínhamos aviários tão grandes quanto cômodos no jardim, com grous coroados, perus, galinhas d'angola, pombos e perdizes. Tínhamos todo tipo de animal - gatos que alimentei com peixes caros que eu mesmo desossava. Tínhamos tartarugas, plantas e flores. Eu plantei rosas. Se não tivessem cuidado com elas, eu repreendia meus netos em português. Quando estava chateado, sempre falava português, mesmo quando os ingleses pararam de usar tradutores para fazer negócios conosco." 38 CUNHA; CUNHA, 1985, loc. cit.
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segregação e perda de importância de espaços que antes assumiam uma posição de protagonismo na estrutura comunal. O corredor (Imagem 42), nova introdução nessa tipologia edilícia, acaba por inevitavelmente reduzir o espaço reservado às atividades coletivas, apontando mais uma vez a prioridade dada à separação das áreas públicas e privadas da residência. Por fim, o aposento voltado para a rua, o salão, apesar de apresentar dimensões inferiores ao vestíbulo, converte-se no local de encontro da família. O mesmo movimento pode ser observado na Maja House (Imagem 44), construída entre 1890 e 1895 na Garber Square em Lagos, pelo arquiteto saro Herbert Macaulay. Macaulay foi autor de muitas outras casas de estilo “brasileiro” de grande relevância em Lagos, como a Ebun House em Odunfa Street, de 1913, que veremos mais adiante. As soluções encontradas pelo arquiteto para o sobrado na Garber Square revelam uma preocupação patente com a questão da privacidade em diversos níveis, que ficam evidentes a partir de uma observação mais atenta de sua planta (Imagem 45). Em primeiro lugar, como na casa da família Pereira, o vestíbulo não apenas é deslocado para a fachada posterior do edifício, como também é duplicado no pavimento superior. Diferentemente do que ocorria no compound iorubá tradicional, no qual os visitantes tinham acesso imediato à vida íntima das famílias - uma vez que a porta de entrada era imediatamente procedida pelo átrio no qual as tarefas domésticas e familiares eram desempenhadas, na casa Maja essas atividades viam-se de uma vez por todas afastadas do olhar de estranhos. Depois, dentre os outros elementos na construção que também apontam para esse movimento em busca da privacidade estão: uma escada que parte do vestíbulo e conduz a um sótão iluminado por três clerestórios - configuração que, como na Ebun House, parece indicar uma relação entre altura e isolamento, ou seja, quanto mais alta fosse a estrutura, mais invisível ela seria; e por último, um acesso externo para o pavimento superior do edifício anexo, o que sugere uma vontade por parte do proprietário de possuir um retiro da casa principal. O que mais nos interessa nesse ponto da discussão, tendo em vista esses exemplos, é sobretudo o entendimento dessa nova organização espacial interna da casa “brasileira”, no que se refere às suas origens e às razões que explicam sua ampla aceitação em território iorubá na virada do século XX.
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Imagem 41 - Casa da família Pereira, nos anos 1990. Fonte: Brigitte Joubert Helene Kowalski, "L'Héritage Architectural Afro-Brésilien Sur La Côte Des Esclaves".
Imagem 42 - Imagem do corredor da casa da família Pereira a partir de sua fachada posterior. Fonte: Brigitte Joubert Helene Kowalski, "L'Héritage Architectural Afro-Brésilien Sur La Côte Des Esclaves".
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Imagem 43 - Planta-baixa da casa da família Pereira. Fonte: Brigitte Joubert Helene Kowalski, "L'Héritage Architectural Afro-Brésilien Sur La Côte Des Esclaves".
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Imagem 44 - Maja House na Garber Square, Lagos. Construída entre 1890 e 1895, e projetada por Herbert Macaulay. Fonte: Alan Vaughan-Richards, "Le Nigéria."
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Imagem 45 - Plantas-baixas da Maja House (primeiro pavimento acima e térreo abaixo). Fonte:Alan VaughanRichards, "Le Nigéria."
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4.1.2. Construções no Brasil A partir de uma observação dos edifícios coloniais que os afro-brasileiros conheceram durante cativeiro, é possível identificar um predomínio semelhante de casas cujas plantas estão organizadas ao redor de corredores, levando-nos a levantar a hipótese de que a organização espacial interna inaugurada em Lagos teria suas origens em território brasileiro. Esse predomínio, de acordo com Nestor Goulart Reis Filho, em seu livro “Quadro da Arquitetura no Brasil”, pode ser em grande parte explicado pela uniformidade de partidos arquitetônicos que assolava a arquitetura brasileira à época, uniformidade esta que refletia diretamente a uniformidade dos terrenos urbanos. Reis parte da premissa de que “um traço característico da arquitetura urbana é a relação que a prende ao tipo de lote em que está implantada”39. O lote urbano do Brasil colonial possuía características bastante definidas, baseadas nas antigas tradições urbanísticas de Portugal, possuindo cerca de dez metros de frente e grande profundidade, isto é, era estreito e comprido. “Na cidade de São Paulo, os lotes sempre foram estreitos e compridos (…). Esse é um dado importante, porque elimina de vez a hipótese de casas de grande fachada e, também, de casas providas de pátios internos, como aqueles caracterizadores das moradas espanholas…”40 As arquiteturas nele construídas, portanto, respondiam a essas condições mediante estruturas que se distribuíam de forma contínua sobre o alinhamento das vias públicas e sobre os limites laterais dos terrenos. O alinhamento em relação às vias tinha como função demarcar o traçado das ruas, que, sem calçamento, nada mais eram do que o negativo da parte edificada; já o caráter geminado dos edifícios, devia-se: em primeiro lugar, ao baixo nível tecnológico das construções que, por serem construídas em taipa de pilão, valiam-se das paredes das divisas dos lotes para o enrijecimento da estrutura; em segundo lugar, à busca pelo máximo aproveitamento da dimensão do lote que fazia frente para a rua, uma vez que ele possuía apenas dez metros. A uniformidade das fachadas, além de refletir as limitações colocadas pelo lote, também respeitava as imposições colocadas pela legislação, que definia as dimensões e a quantidade de aberturas, a altura dos pavimentos e o alinhamento com as edificações vizinhas, postulando 39
REIS, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1970, p. 41. Citado em VLACH, 1984. Op. cit., p. 16. 40 LEMOS, Carlos A. C. Casa Paulista: História das moradias anteriores ao ecletismo trazido pelo café. 1. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 28.
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uma preocupação de caráter essencialmente formal. A organização interna das edificações, por sua vez, apesar de não estarem sujeitas a um padrão oficial, revelavam-se igualmente monótonas. As casas dividiam-se basicamente em duas tipologias, o sobrado e a casa térrea. Os sobrados eram edifícios de dois andares, com dois aposentos de largura e três de profundidade; e os térreos, edifícios com a mesma planta, mas com apenas um andar41. A grande diferença entre esses dois tipos de construção repousava na diferenciação econômica representada pela presença do piso assoalhado no pavimento superior do sobrado. Como viria a ser futuramente o caso da família Da Rocha na Water House em Lagos, nos sobrados coloniais brasileiros a família vivia apenas no pavimento superior, enquanto o térreo, de piso batido, era usado como armazém, loja, garagem, ou acomodação dos escravos. (Imagem 46) “As salas da frente e as lojas aproveitavam as aberturas sobre a rua, ficando as aberturas dos fundos para a iluminação dos cômodos de permanência das mulheres e dos locais de trabalho. Entre essas partes com iluminação natural, situavam-se as alcovas, destinadas à permanência noturna e onde dificilmente penetrava a luz do dia. A circulação realizava-se sobretudo em um corredor longitudinal que, em geral, conduzia da porta da rua aos fundos. Esse corredor apoiava-se a uma das paredes laterais, ou fixava-se no centro da planta, nos exemplos maiores.”42(Imagem 47)
É certo que a planta e a fachada da edificação relacionam-se de forma interdependente, de forma que, sendo a fachada uniformizada e pré-estabelecida, era então natural que a planta também apresentasse poucas variações. Mas há também na opção por essa forma de distribuição a reprodução de uma tradição que remonta ao tempo das casas bandeiristas. Descrição muito semelhante à de Reis se verifica no livro de Carlos Lemos “Casa Paulista”, ao tratar das casas urbanas do período ainda anterior ao tempo do açúcar, quando certamente ainda não havia sobrados, apenas construções de “chão batido”, e por isso bem de caráter bem mais simplório: “Programas os mais simples: alcovas para dormir no núcleo central da casa, cozinha, onde também se comia e se permanecia durante o dia, e sala da frente, onde invariavelmente se instalava, conforme o caso, a “tenda” do artesão, tudo isso ligado eventualmente por um corredor que unia a rua ao fogão, à cantareira, à varanda alpendrada dos fundos, ao quintal. Lotes estreitos e compridos. Nas casas de dois ou mais lanços, o quase obrigatório corredor de distribuição era ou central, no eixo da planta, ou ainda lateral, como logo veremos quando tratarmos das residências do século XVIII”.43
A fim de esclarecimento, a palavra “lanço” correspondia a uma série de cômodos encarreirados, um atrás do outro, formando uma fila perpendicular à rua ou ao terreiro (quando
41
REIS, 1970, loc. cit. Citado em VLACH, 1984. Op. cit., p. 9. REIS, 1984. op. cit., p. 24. 43 LEMOS, 1999. Op. cit., p. 24. 42
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se tratava de casa rural). A palavra “corredor”, por sua vez, tinha o sentido de “distribuidor” de circulações, de forma que tanto podia designar a passagem estreita e comprida situada entre compartimentos, como hoje a conhecemos, quanto indicar o alpendre ou “pretório” da casa rural, para o qual deitavam portas a sala central, o quarto de hóspedes e a capela familiar. O resguardo da família era característica fundamental na organização do programa, de forma que o pretório garantia o isolamento e a segregação da família na parte íntima da casa. Portanto, em seu papel de “distribuidor”, o termo “corredor" via-se associado a múltiplas simbologias. Por um lado, quando assumia a feição de passagem estreita, ele realizava a separação entre os ambientes internos à casa, na medida em que possibilitava a circulação direta entre a rua e os fundos, sem que houvesse necessidade de passar pelo interior dos aposentos; por outro, quando assumia a feição de pretório na casa rural, tornava-se uma “faixa de recepção”, cuja função era a intermediação entre o público e o privado, à maneira de um vestíbulo (Imagens 48 a 51). Interessa notar como, na Arquitetura Agudá, e sobretudo nos exemplos aqui levantados, a reprodução desses dois elementos é facilmente identificada. Tanto o vestíbulo, quanto o corredor mantêm-se, nos exemplos em questão, como elementos de separação e de isolamento, na medida em que criam camadas de interceptação entre o mundo externo e o universo íntimo familiar. No entanto, não se observa uma constância ou definição no papel desempenhado por esses dois espaços, o que pode ser resultado desse embaralhamento em torno da terminologia: por vezes o corredor também exerce o papel de intermediação entre público e privado, e por vezes o vestíbulo não desempenha a função de hall de entrada. Como vimos, o vestíbulo, no caso da Casa Pereira e da Casa Maja, em Lagos, não só representava uma área neutra de distribuição interna da casa, mas também uma área de desempenho de atividades comunais. Aqui, muito mais do que nos outros casos, poderíamos falar em uma interiorização do pátio do compound iorubá, dado o caráter simultaneamente comunal e distributivo desempenhado pelo espaço em questão. Particular a esses exemplos é a posição a princípio inusitada ocupada pelo vestíbulo, na parte posterior da construção.
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Imagem 46 - Típica distribuição interna de uma casa urbana brasileira do período colonial. Desenho de Nestor Goulart Reis Filho.
Imagem 47 - Esquema de rebatimento das plantas: as construções maiores eram concebidas a partir do espelhamento das plantas mais simples, tendo o corredor como eixo central. Desenho de Nestor Goulart Reis Filho.
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Imagem 48 - Sítio do Calu, Embu, Brasil. Exemplo de casa bandeirista, com pretório e cozinha em puxado na parte posterior da construção. Foto Herman Graeser, 1942, arquivo do IPHAN.
Imagem 49 - Planta-baixa do sítio do Calu, Embu, Brasil. (C=cozinha; Ri=dormitório da família; O=oratório; Rh=dormitório de hóspedes; Co=corredor/pretório; Sa=Sala de jantar).Fonte: Carlos Lemos, "Casa Paulista".
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Imagem 50 - Casa de Fazenda Passa-Três, Brigadeiro Tobias, Sorocaba, Brasil. Casa de fazenda paulista do tempo do açúcar. Foto Carlos Lemos, 1958.
Imagem 51 - Planta-baixa da Casa de Fazenda Passa-Três, Brigadeiro Tobias, Sorocaba, Brasil. Observa-se o fechamento do corredor, ou pretório, da casa bandeirista, com o consequente surgimento de uma grande sala de recepção, a sala da frente. As linhas tracejadas indicam uma primitiva cozinha. Fonte: Carlos Lemos, "Casa Paulista".
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Vale notar que, no tempo das bandeiras, existia aos fundos da casa, um terceiro espaço que também poderia ser chamado de “corredor” - contribuindo certamente para o embaralhamento supracitado -, que tanto na cidade, como na roça, fatalmente serviria de cozinha44. Apesar das diferentes configurações e nomenclaturas que esse espaço recebeu com o passar do tempo - passando a ser tratado como sala de jantar ou varanda, ele invariavelmente manteve-se como um local de encontro da família. “Com isso já podemos esquematizar a casa urbana do tempo do açúcar e a casa do café em geral dizendo que elas são compostas de três faixas paralelas e justapostas, cada qual com a sua função específica: a da frente para receber, a do meio para dormir, e a de trás para viver o cotidiano. As duas primeiras são perpassadas pelo corredor central, que liga o mundo exterior à vida doméstica, à faixa íntima. Velho zoneamento doméstico vindo do tempo das bandeiras.” 45(Imagens 52, 53, 54 e 56)
Portanto, a dimensão comunal de núcleo familiar que perpassa a parte posterior da construção nesses exemplos da arquitetura de estilo “brasileiro” em Lagos, muito estava relacionada à distribuição programática da casa urbana do Brasil colônia, que se manteria essencialmente a mesma até o período do café. Há, no entanto, alguns elementos desse esquema programático que foram ganhando maior definição com o passar do tempo. O já mencionado corredor que ligava a rua aos fundos da casa, por exemplo, se concretiza apenas tardiamente, com o desenvolvimento da cultura cafeeira. Em resposta ao enriquecimento e densificação da cidade, responsável por tornar as construções geminadas em ambas as divisas, o corredor se tornaria o único meio de ligação entre o mundo público (rua) e o privado (varanda e sala de jantar) dos fundos da casa: “(…) O corredor, verdadeira rua ou beco interno ligando o mundo com a cozinha e o quintal, foi aperfeiçoado tardiamente e definiu-se obrigatoriamente na casa do tempo do café. Na época da colônia, tanto fazia: os cômodos pobres e vazios podiam ser devassados e atravessados pelas criaturas sem luxo, pelos animais.”46
Seria na residência do dono de engenho Luciano Teixeira Nogueira (Imagem 54), em Campinas, que se observaria o surgimento, pela primeira vez, de uma porta na metade do corredor, que tinha por função interceptar olhares curiosos à área íntima, assim como passos distraídos de alguma visita47. A casa, de aproximadamente vinte metros de frente, pode ser considerada como do tipo antecessor ou até mesmo gerador da casa urbana do tempo do café.
44
LEMOS, 1999. Op. cit., p. 38. LEMOS, 1999. Op. cit., p. 124. 46 LEMOS, 1999. Op. cit., p. 114. 47 LEMOS, 1999. Op. cit., p. 122. 45
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A casa urbana do tempo do café, mantendo sua implantação em relação à via pública, implementaria ainda outros elementos de separação entre a rua e o universo íntimo familiar, definidos sobretudo pelo desnível criado entre o piso da habitação e o passeio. De maneira geral, pode-se dizer que houve, nesse momento, um abandono do térreo e da tradição colonial de se viver em casas de “chão batido”: vivia-se ou no pavimento superior de sobrados, ou nas chamadas “casas de porão alto”. Tratava-se de uma tipologia que, apesar de térrea, possuía soalho, o que explica a existência de um espaço sob o piso da habitação ao qual era dado o nome de porão (Imagem 55). Esse distanciamento entre o nível do piso da habitação e o passeio, ou entre o mundo público e o mundo privado era, nesse contexto, representado pela escada (Imagens 56 e 57). Buscando afirmar sua identidade estrangeira, seja por meios econômicos como socioculturais, os ex-escravos retornados reproduziram nas plantas de seus sobrados em Lagos a distinção social existente entre a ocupação do térreo e do primeiro pavimento dos sobrados brasileiros. “Estes antigos escravos trocaram o piso térreo ou os anexos do Brasil pelos primeiros andares de Lagos, tal qual patriarcas de antanho, reproduzindo em muitos detalhes o tipo de vida de seus antigos senhores”48 A organização interna dos edifícios brasileiros, apesar de não legislada, manteria-se por muito tempo inalterada. O principal motivo para isso repousava no fato de que, seja para a sua construção, seja para o seu uso, as habitações urbanas tradicionais continuaram dependentes do regime escravagista49. Seria apenas a partir de 1850, com a decadência do trabalho escravo e com o início da imigração europeia, que teriam início no Brasil transformações sócioeconômicas e tecnológicas, levando a uma redefinição dos hábitos de construir e habitar.
48 49
CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit., p. 99. REIS, 1984. Op. cit., p. 32.
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Imagem 52 - Casa bandeirista urbana de Sant'Ana do Parnaíba, localizada na rua Susana Dias, nº380. Arquivo do Condephaat.
Imagem 53 - Planta-baixa da casa urbana de Sant'Ana do Parnaíba, na qual se vê um corredor que liga a rua ao quintal. Fonte: Carlos Lemos, "Casa Paulista".
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Imagem 54 - Residência do dono de engenho Luciano Teixeira Nogueira, em Campinas, construída em 1834. Rara planta original de casa urbana do tempo do açúcar, na qual se observa a consolidação do corredor como elemento de distribuição. Levantamento original de Celso Maria de Mello Pupo. Fonte: Carlos Lemos, "Casa Paulista".
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Imagem 55 - Típica "casa de porão alto", na rua Pedro Costa, em Taubaté. Foto de Antônio Luís Dias de Andrade.
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Imagem 56 - Distribuição interna de uma casa urbana típica do tempo do café (séc. XIX), organizada esquematicamente em três faixas: uma social, uma íntima e outra de serviços. Verifica-se a presença definitiva do corredor, assim como o surgimento da escada e da porta a separar os universos público e privado. Desenho de Nestor Goulart Reis Filho.
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Imagem 57 - Casa urbana em Campinas, já do tempo do café. Sua planta chega a uma espécie de tipologia cafelista extensível, inclusive, à arquitetura rural: porta central e corredor com alguns degraus que indicam a presença de porão para a ventilação do soalho; duas salas da frente e baterias de alcovas no centro, sob a cumeeira; grande varanda e o puxado de serviço. Fonte: Carlos Lemos, "Casa Paulista".
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O desenvolvimento do trabalho remunerado e a importação de equipamentos importados levaria enfim ao aperfeiçoamento das técnicas construtivas: a substituição da taipa de pilão pelo tijolo permitiria o surgimento das casas urbanas com novos esquemas de implantação, afastadas dos vizinhos e com jardins laterais. Muito dessa transformação foi motivada pelos hábitos diferenciados da população imigrada, que tinha como referência a arquitetura de estilo eclético que vinha sendo edificada na Europa50. O novo edifício revelava-se, por um lado, como uma resposta à valorização de novos costumes nos grandes centros, na medida em que apresentava vínculos diretos com a estética vigente da Europa civilizada; no entanto, quando observado em maior profundidade, verificase que seu novo partido foi originalmente motivado por um compromisso com os novos princípios científicos ligados às questões de higiene das edificações, tema primeiro introduzido no Brasil por periódicos importados e por médicos, que ressaltavam a importância da iluminação e da ventilação dos compartimentos internos.51 A nova arquitetura aproveitava o esquema da casa de porão alto, com a diferença de que a sua libertação em relação aos limites laterais dos lotes levaria ao aparecimento de aberturas em todas as suas quatro elevações, e não apenas na fachada principal e nos fundos, como ocorria nas casas geminadas. Em todas as tipologias, as alcovas viam-se suprimidas, com evidentes vantagens higiênicas. Apesar de a entrada ter sido transferida para a fachada lateral, a destinação geral dos compartimentos manteve-se organizada a partir da lógica das três partes, inaugurada pela casa bandeirista: a parte fronteira da construção, voltada para a rua, continuava reservada às atividades de caráter social, de estar e de lazer, que aconteciam na sala de visitas; no centro, dispunham-se os quartos, em torno de um corredor, ou sala de almoço; aos fundos, ficavam os serviços, como cozinha e banheiro. A grande inovação no partido arquitetônico desse período foi a introdução, na planta, do vestíbulo distribuidor dos passos: “esse novo cômodo era uma área neutra, mera passagem que, no entanto, podia acumular a velha função de faixa de transição entre o público e o privado”52. Inaugurava-se a "interindependência" das zonas de habitação, levando ao abandono de velhos costumes que toleravam cômodos ou zonas de passagem obrigatórias. Trocava-se um 50
REIS, 1984. Op. cit., p. 44. LEMOS, 1999. Op. cit., p. 211. 52 LEMOS, 1999. Op. cit., p. 255. 51
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modo de viver à antiga em torno do resguardo da intimidade familiar por maneiras mais descontraídas e galantes: a nova distribuição espacial interna permitia a coexistência dessas duas dimensões - a da vida privada e a da vida pública, voltada à rua e à exibição. A ressonância entre essa solução e o caso já analisado da Water House, em Lagos, é notável: além da existência de dois vestíbulos, um no andar inferior e outro no superior, o caráter eminentemente público do primeiro dos vestíbulos revela-se em seu tratamento enquanto espaço expositivo, onde a família fazia-se notar socialmente pelos seus gostos refinados. 4.1.3. Sistematizações e tensionamentos Uma vez traçado o perfil evolutivo da casa urbana brasileira até o período no qual tem início o retorno dos ex-escravos para o continente africano, e estabelecidas já algumas comparações entre essa forma arquitetônica e a arquitetura de estilo “brasileiro” em Lagos, é o caso de retomarmos a sistematização realizada por Marianno Carneiro da Cunha, em seu livro “Da Senzala ao Sobrado”, a fim de melhor entendê-la e também de tensioná-la em algumas de suas generalizações. Marianno constrói em seu livro um percurso argumentativo no qual, após identificar os traços que afastam a Arquitetura Agudá da arquitetura tradicional iorubá, ele reconhece que serão dois, em particular, que permitirão, a partir do reencontro de suas origens, a construção de uma hipótese que pode dar início à explicação de por que a Arquitetura Agudá se tornou a nova arquitetura iorubá por excelência. Para a construção dessa tese, Marianno volta seu olhar, como fizemos aqui nos últimos parágrafos, aos edifícios coloniais que os afro-brasileiros conheceram durante o cativeiro. Nesse contingente, ele identifica a predominância de plantas organizadas ao redor de corredores, e dos floreios decorativos neoclássicos, sobretudo naquela arquitetura feita imediatamente antes da repatriação iorubá, o ponto alto do ornamento Gregorenascentista na arquitetura brasileira53. O reconhecimento de elementos, a princípio dissonantes, na arquitetura brasileira lhe dá motivos suficientes para postular a tese de que a casa “brasileira” de Lagos e suas posteriores
53
REIS, 1970. Op. cit., p. 41.
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derivações têm sua origem no Brasil, na medida em que se revelam uma reafirmação direta da arquitetura encontrada em locais como Bahia, Recife ou Rio de Janeiro54. Adedoyin Teriba também argumentaria em favor dessa visão no primeiro capítulo de sua pesquisa. A partir de observação de pinturas de Rugendas e sobretudo de Debret, que retratam a participação dos escravos na indústria da construção no Brasil, e frente à ausência de registros históricos tradicionais, Teriba se propõe a reconstruir o cenário no qual esses exescravos teriam tido suas preferências estéticas moldadas. Ele entende que as habilidades adquiridas por esses ex-escravos, seu conhecimento prático, e sobretudo seus ambientes de trabalho, ou seja, os estímulos visuais a que estavam expostos diariamente - seja em momentos de trabalho, como em seu tempo livre, teriam influenciado o resultado de seus projetos arquitetônicos no Golfo do Benim.55 “Este capítulo também levantou a probabilidade de que alguns escravos se lembrassem da grande arquitetura eclesiástica e residencial em torno das praças de cidades do Nordeste e do Rio de Janeiro, talvez até memorizando qualidades intangíveis desses locais, como o som de sinos de igreja, de música litúrgica ou carnavalesca.”56
Sua argumentação também se pauta na identificação de que, apesar da diversidade de treinamentos que esses construtores recebiam no Brasil - seja em sua condição enquanto escravos, seja enquanto homens livres, mas sobretudo influenciada pelo maior ou menor nível de inserção social de cada indivíduo, - “alguns dos detalhes arquitetônicos que vemos no Brasil reaparecem em diferentes formas no Golfo do Benim”.57 Dessa forma, a identificação de reciprocidades entre essas duas formas arquitetônicas e o entendimento de que os novos elementos da Arquitetura Agudá poderiam ser ressonâncias da arquitetura brasileira são reflexões absolutamente plausíveis. Retornando ao percurso argumentativo de Marianno: uma vez postulada a sua tese, dáse início a uma observação, à luz dessas definições, das características da casa colonial brasileira - como aqui desempenhamos, porém de maneira mais objetiva e sistemática. Destacase nesse estudo um tipo específico de moradia: a casa de planta simétrica (Imagem 58), por ter
54
OLINTO, Antônio. Brasileiros na África. Rio de Janeiro: Edições GRA, 1964, p. 161. Citado em VLACH, 1984. Op. cit., p. 9. 55 TERIBA, Adedoyin. Afro-Brazilian Architecture in Southwest Colonial Nigeria (1890s-1940s). Orientador: Esther da Costa Meyer. 2017. Tese (Doutorado em Filosofia) - Princeton University, Princeton, NJ, 2017, p. 22. Nota: todas as traduções desse texto foram realizadas pela autora. 56 TERIBA, 2017. Op. cit., p. 45. 57 TERIBA, 2017. Op. cit., p. 38.
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sido a sua distribuição espacial incorporada nas construções “brasileiras”, tornando-se a tipologia da arquitetura colonial brasileira que mais se espalhou em território africano. Sua caracterização não difere muito do que identificamos até aqui, o que é coerente frente à constatação de que a arquitetura colonial brasileira apresentasse certa monotonia e uniformidade, seja em suas fachadas como em suas plantas. Na tipologia em questão verificamse as mesmas técnicas construtivas, o mesmo programa de necessidades, a mesma organização interna - orientada pela presença do corredor como elemento de distribuição, ligando a rua ao quintal; a mesma distinção social entre térreo e sobrado. No entanto, há duas nuances na análise feita por Marianno que valem ser aqui salientadas. A primeira delas gera certo estranhamento frente às informações até então apresentadas, e diz respeito ao fato de que Marianno descreve a planta simétrica de um sobrado de tamanho médio (ao que tudo indica urbano) como tendo quinze metros de frente, sendo isolada e possuindo janelas laterais.58 As primeiras construções não geminadas, como verificamos nos parágrafos anteriores, só apareceriam após 1850 em meios urbanos, seja por adventos técnicoconstrutivos, seja pelo aparecimento de novas tendências vindas do continente europeu, quando o movimento de retorno dos ex-escravos já se iniciara. A segunda das nuances de certa forma nos traz algum alento em relação à incompatibilidade de informações, na medida em que evidencia a condição sistemática e arquetípica atribuída por Marianno a esse tipo de planta. “Se reduzirmos esta planta às suas linhas elementares, obteremos uma estrutura quadrangular com uma área central. Em dois de seus lados estão os quartos, e nos outros dois estão colocadas uma ou duas varandas, que fecham o todo. Este espaço central, às vezes, torna-se simplesmente um corredor, quando a casa é geminada, ou um acesso para a escada, quando se trata de um sobrado. Por outro lado, se a casa for pequena e térrea, temos apenas metade da planta. Se a estrutura é dividida exatamente no meio em todo seu comprimento, de uma extremidade à outra, produz-se a planta de casas urbanas geminadas edificadas em sequência. (…) Estas casas enfileiradas urbanas eram tradicionalmente a típica habitação brasileira de classe média no Brasil. (…) Como hipótese de trabalho, podemos dizer que esta casa constituiu de fato a unidade básica na arquitetura urbana porque, como já pudemos ver, a habitação de planta simétrica é apenas uma ampliação ou sofisticação.”59
Por um lado, sua sistematização garante com que se estabeleçam paralelos diretos entre a unidade básica na arquitetura urbana em território brasileiro (que correspondia à 1/2 planta
58 59
CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit., p. 93. CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit., p. 93.
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simétrica) e as casas de planta simétrica presentes em território africano60. Por outro, devido ao seu caráter eminentemente sintético, acaba por perder nuances em algumas de suas generalizações. É certo que houve sobrados no Brasil com janelas laterais, mas certamente não se tratava da maioria (Imagens 59 a 62). Nesse sentido, faz-se o momento de questionar se o caráter majoritariamente isolado dos edifícios de Lagos - e como veremos da maioria das construções de estilo “brasileiro” em território nigeriano, e a adoção resoluta da planta simétrica (e não de sua metade apenas) não seriam indícios do processo de apropriação e adaptação sofridos pela arquitetura quando em novo território. Isto é, apesar do desenho e da organização espacial dos edifícios reproduzirem o modelo brasileiro, o seu sentido mais profundo era africano: o substrato cultural africano era fundamental para sua verdadeira compreensão - os tais “imperativos culturais” de Rapoport. Evidenciam-se, nesses dois casos: primeiramente, a particularidade das relações existentes entre o edifício e o meio urbano, que, como sabemos, regionalmente têm sua origem no compound, uma forma arquitetônica isolada, de aproximadamente trinta metros de frente, e de natureza conglomerativa, muito distante, portanto, da organização urbana racional e fracionária vinculada ao lote; em segundo lugar, o vínculo entre organização espacial e modo de vida, na medida em que a opção pela planta simétrica sugere uma reiteração da distribuição interna do compound, ao organizar-se em torno e ao longo de um espaço comunal, o corredor.
60
Indo além, Marianno estabeleceria paralelos entre a metade da “planta simétrica” e a planta da “casa-de-trêspernas”, sugerindo coincidências tipológicas entre esses dois tipos de planta, que exploraremos mais adiante.
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Imagem 58 - Esquema da casa de "planta simétrica". Desenho feito pela autora, a partir de Marianno Carneiro da Cunha, "Da Senzala ao Sobrado".
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Imagem 59 - Atual continuação da rua José Bonifácio, São Paulo, 1862. Arquitetura preponderantemente geminada. Foto Militão de Azevedo.
Imagem 60 - Centro histórico de São Luís do Paraitinga. Construções geminadas. Fonte: Carlos Lemos, "Casa Paulista".
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Imagem 61 - Sobrados em Santo Amaro, Bahia. Apesar do edifício à esquerda estar isolado, ele representa uma exceção, visto que as edificações vizinhas são geminadas. Foto Alexandre Luiz Rocha.
Imagem 62 - Solar São João de Cima, em Salvador. Casas de esquina normalmente representavam uma variação em relação ao tradicional esquema de planta da casa geminada por possuírem duas fachadas sobre a rua. Foto E.C. Falcão.
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Por fim, também é importante observar que a arquitetura praticada no Brasil não era a única referência desses construtores, para além de sua própria referência local. A influência islâmica também era muito presente e faz-se notar em edificações como a Shitta Bey Mosque, construída em Lagos em 1844, e em elementos decorativos de diversas construções, seja em Lagos, seja no interior. É verdade que dentre os edifícios de Lagos já se podem notar muitas experimentações que distanciam as construções “brasileiras" de sua inspiração original, sobretudo os desenhos exteriores dos prédios, as suas decorações, e tudo o que estava ligado a aeração e iluminação, mas essas adaptações ganham maior relevância à medida que a arquitetura “brasileira" migra para o interior, a partir de 1930, sendo atribuídas de significado localmente. As adaptações eram determinadas pelas condições e possibilidades específicas de cada situação, sendo a arquitetura “brasileira” portanto marcada por diferenças em seu conjunto, observáveis ao longo do tempo (entre o início do século XIX e meados do século XX) e do espaço (entre Togo, Benim e Nigéria). Como registrado por Marianno Carneiro da Cunha: “Em Lagos nada encontramos da extravagância do Daomé”.61 A tese de Adedoyin Teriba destaca-se nesse ponto frente ao restante da bibliografia pelo olhar inovador a partir do qual escolhe enfrentar essa questão, ao superar uma compreensão apenas saudosista desse empréstimo de formas arquitetônicas brasileiras em território iorubá. É certo que houve nostalgia - o que se evidencia seja na forma como os retornados foram recebidos pelos locais, seja em suas decisões construtivas, no entanto, há dimensões e repercussões dessa incorporação que eles mesmos não poderiam ter previsto. O trabalho de Teriba esforça-se em construir relações entre as formas e ornamentações propostas pelos agudás e as inovações culturais por elas inspiradas, entendendo em que medida seus efeitos não se dão apenas em escala local, mas regional62. Em suma, Teriba argumenta que o ambiente criado pelos retornados em Lagos foi responsável por gerar novos símbolos, cujas qualidades arquitetônicas acabariam por articular desenvolvimentos em contextos religiosos e políticos de diferentes locais.63 Teriba parte sua argumentação de um lugar-comum, com base no qual constata que a criação de uma nova forma arquitetônica, originada do empréstimo de princípios e formas da 61
CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit., p. 75. TERIBA, 2017. Op. cit., p. 10. 63 TERIBA, 2017. Op. cit., p. 105. 62
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casa colonial brasileira, significou não apenas a difusão de inovações arquitetônicas, tecnológicas e decorativas, mas, intrinsecamente, a criação de um novo modo de viver cotidianamente, pressuposto em uma espacialidade completamente diversa daquela gerada pelas formas arquitetônicas locais (reflexão que vimos ter sido apresentada primordialmente por Rapoport). A grande contribuição de Teriba está na percepção de que a arquitetura “brasileira” representou um impacto cultural significativo na medida em que foi o instrumento escolhido pelos retornados para colonizar informalmente a população local64. De forma análoga, em alguns aspectos, à doutrinação experimentada pelos colonizados em territórios coloniais65, a arquitetura “brasileira”, com seus elementos visuais e espaciais inovadores, originados de uma nova concepção de beleza, teria sido criada para reforçar a autopromoção das identidades dos grupos de retornados frente aos locais, em termos morais e intelectuais. “Beleza, aos olhos dos imigrantes afro-brasileiros, dos monarcas locais, dos chefes e dos comerciantes, era conceito que conjugava ideais estéticos e políticos, e ajudou a unir o que, aos olhos dos nativos, constituía comunidades diferentes.”66 Teriba, na medida em que revela o jogo de forças estético e político existente por trás do conceito de beleza, em toda sua sinceridade expressiva, esclarece de uma vez por todas o que significou culturalmente o aparecimento dos edifícios de estilo “brasileiro” em Lagos. Não foram apenas o novo modo de vida ou as novas técnicas construtivas veiculadas por essas construções que levariam a sua difusão por todo o território iorubá. Teriba defende, como veremos, que a sua comunicação em âmbito estético teria papel central nesse processo, na medida em que foi responsável por revolucionar as percepções urbanas locais. A narrativa de superioridade construída pelos ex-escravos estruturou-se, portanto, nos planos técnico e estético dessa nova arquitetura. A partir da demonstração de edifícios amplos, arejados, iluminados e limpos67 a origem da comunidade, baseada na experiência compartilhada da escravidão, era metamorfoseada num mito de heróis civilizadores68 em que eles teriam 64
TERIBA, 2013. Op. cit., p. 26. LAOTAN, A.B. The Torch Bearers or Old Brazilian Colony in Lagos. Lagos: Ife-Olu Printing Works, 1943, p. 1. Citado em TERIBA, 2013. Op. cit., p. 26. 66 TERIBA, 2013. Op. cit., p. 26. 67 “suas [dos “brasileiros”] fazendas eram cuidadosamente mantidas, eram limpos, viviam confortavelmente em casas bem construídas e mobiliadas: contrastavam, assim, favoravelmente com os demais, que nunca haviam deixado seu país na condição de escravos e eram ignorantes desse modo de vida.” (DUNCAN, J. Travels in West Africa (1845-1846). Londres: 2 vol., 1847, p. 137 e 185). Citado em CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit., p. 73. 68 CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit., p. 179. 65
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prosperado como cidadãos no Brasil. Os “brasileiros” se percebiam como focos de luz e de progresso: “a escravidão civilizara a região”, diziam. O elo da comunidade passava, assim, a ser o Brasil como um todo, e os “brasileiros”, de certa forma, se consideravam uma etnia do mesmo tipo que as etnias da região: com uma origem específica, a brasileira, uma língua própria, o português, roupa ocidental, cozinha, festas e cultos religiosos singulares. Paralelamente, do ponto de vista dos locais, esse movimento tinha como reflexo o reconhecimento dos “brasileiros" enquanto grupo - abandonando portanto a condição de descaracterização que os definia enquanto estrangeiros para os nativos. Essa passagem fica evidente na citação de Teriba acima recuperada quando ele argumenta que a beleza foi o fator que ajudou a unir o que aos olhos dos nativos constituía comunidades diferentes. Em suma, a ideia aqui defendida é a de que as diversas ressonâncias do ponto de vista técnico-espacial (exploradas a fundo nesse último capítulo), se bem muito elucidativas e fundamentais, não são suficientes para explicar a aceitação e difusão dessa forma arquitetônica, tampouco sua ampla variabilidade formal e decorativa. Dessa forma, faz-se necessário analisar esses edifícios tendo como perspectiva a intenção estética que os define desde seu momento inaugural, na medida em que se verifica a importância dessa dimensão no processo de sua apropriação local. 4.2. Soluções externas: aberturas e ornamentos Retomaremos aqui, para fins de sistematização e introdução do próximo capítulo, as duas fases que definem a Arquitetura Agudá, ocorridas em tempos e espaços distintos. A primeira, delineada no último capítulo, diz respeito à revolução arquitetônica ocorrida em Lagos, implementada por agentes retornados do Brasil - primeiro por colonos, e então, e de maneira preponderante, por ex-escravos. As edificações manifestavam interpretações de elementos construtivos da arquitetura cívica e residencial dos centros urbanos brasileiros, mediante os quais estabelecia laços de afinidade e representatividade em relação à comunidade “brasileira" em Lagos, e de superioridade moral e intelectual em relação aos nativos, tornandose o símbolo identitário “brasileiro" por excelência. A segunda fase, a ser introduzida a seguir, tem início com transformações econômicas, políticas e sociais ocorridas no final do século XIX, que levariam as elites locais - monarcas, chefes, fazendeiros e comerciantes do interior do território iorubá, a erguerem suas próprias versões da arquitetura “brasileira”, que eles, acima de tudo, entendiam como muito atraente. A 81
arquitetura “brasileira", então, é desvinculada de seus propósitos identitários para se tornar um símbolo de progresso local. 4.2.1. Novos cenários: virada do século XIX Para melhor entendermos o que impulsionou as elites locais à busca por novas formas de edificação, e como se deu a desvinculação da arquitetura “brasileira”, símbolo identitário por excelência, de seus propósitos iniciais, é necessário que primeiro façamos uma breve contextualização histórica. Esse movimento tem, entre seus pontos inaugurais, a derrocada da posição de superioridade entre os “brasileiros”, iniciada com a queda na comercialização do azeite de dendê. A Grande Depressão, que assolou a Inglaterra em 1873, estagnou a indústria siderúrgica, principal consumidora do produto. A queda nos preços internacionais dos derivados do dendê gerou uma série de protestos entre os produtores do interior da Nigéria. Junto a isso, dissensões entre etnias locais acabaram por finalmente fechar as rotas comerciais do interior, interrompendo o abastecimento de Lagos e dando início a uma crise comercial na década de 1880. Em meio aos protestos e reivindicações, os comerciantes intermediários foram os mais duramente atingidos, pois ficam sem margem de manobra em meio à disputa de interesses dos negociantes da costa e aquela dos comerciantes do interior: a baixa nos preços fez com que os produtores interrompessem seus trabalhos; os negociantes, por sua vez, exigiam a continuação da produção, deixando de ressarcir os intermediários enquanto os produtos não retornassem ao mercado. Para o governador de Lagos na época, Moloney, a crise evidenciava de modo patente a debilidade de um sistema baseado na monocultura e sujeito às instabilidades políticas de cidades interioranas independentes entre si. Como na época o “Colonial Office” ainda se mostrava relutante à intervenção no interior, Moloney, para remediar a situação, propunha a diversificação dos produtos de exportação, e, simultaneamente, tentava conseguir paz no interior. Dessa forma, em 1887, criou a estação botânica, com mudas de café, cacau e algodão egípcio. Pesquisou árvores nativas produtoras de borracha e madeira de lei, e queria treinar os “brasileiros” (sobretudo o grupo de recém-libertos, que ainda estavam na América, em vias de retornar) no cultivo das novas espécies, sob o discurso implícito de que sua experiência no 82
exterior os qualificara para a atividade rural69. No entanto, seu plano fracassou, pois, além dos recém-libertos do Brasil não terem retornado, os “brasileiros” que já se encontravam na África não tinham interesse em trabalhar com a agricultura. Por fim, foi o processo de intervenção britânica no interior, na década de 1890, com a construção de ferrovias, e a interiorização de firmas da costa, que fez desaparecer o hiato em que se moviam os intermediários autônomos, na medida em que solapou as bases de sua influência. Nesse momento, concretizaram-se inovações produtivas: foi criada uma Companhia Industrial de borracha, e teve início a cultura do cacau em Ondo, Ilesha, Abeokuta e Ijebu, sustentada pela migração de habitantes de Lagos para o interior após a crise comercial da década de 1880. Grupos de lagosianos conseguiram das autoridades tradicionais doações de glebas para os novos cultivos, valendo-se para isso de suas origens étnicas e de seus préstimos acumulados, mantendo assim, de certa forma, o padrão de uma associação com a estrutura de poder local. Mas a grande influência política dos retornados nunca mais seria recuperada. “No serviço público como nas igrejas, um racismo crescente rebaixa os ‘retornados’ a postos subalternos e mal pagos (Lagos Standard, 26.11.1902). Não se verão mais, como anteriormente, superintendentes de Polícia, dos Correios, fiscais de impostos e procuradores da Coroa nem muito menos bispos negros. Aos poucos, todos esses cargos serão assumidos por brancos. Acabou a época de ouro dos retornados: nem no comércio nem na política poderão recuperar a preeminência de que gozaram. Suas últimas esperanças de ser administradores nas cidades do interior após a penetração britânica se esvaem quando o Colonial Office, sempre cioso de conter as despesas, prefere governar através dos reis e das autoridades locais.”70
Se por um lado os “brasileiros” perderam protagonismo no cenário político e econômico local, a casa “brasileira”, que a princípio simbolizava o requinte de uma minoria, se disseminaria por todo o interior do sudoeste da Nigéria, deixando de estar associada a questões identitárias, e passando a simbolizar os desejos de uma Nigéria moderna, tornando-se assim a nova forma arquitetônica local por excelência, um símbolo de reconhecimento cultural. As crescentes intervenções britânicas no interior a partir de 1890, foram o fator que definitivamente contribuiu para essa difusão, primeiramente por ter gerado instabilidades nas formas de poder locais, levando a situações de guerra, disputa e vácuos de poder; e, em segundo
69
CUNHA, 2012. Op. cit., p. 167. Manuela observa, em uma última nota sobre o tema, que o processo pelo qual passaram os retornados não foi de forma alguma isolado, e tem paralelo com quase todos os países da África ocidental submetidos ao colonialismo europeu: “a formação de uma burguesia comercial africana ocidentalizante e sua consequente liquidação no período imperialista.” (CUNHA, 2012. Op. cit., p. 175.) 70
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lugar, pela introdução de um novo modo de vida, de caráter essencialmente ocidental, em novas porções do território iorubá. Dessa forma, a adoção dessa forma arquitetônica só ganharia proporções massivas no entreguerras, durante a década de 1930, quando esse novo modo de vida já se apresentava de forma bastante consolidada. Suas aparições anteriores a esse período são de caráter pontual, e estiveram principalmente atribuídas a chefes de Estado, os primeiros a trazer essa nova tendência arquitetônica para as regiões mais a interior do território. Portanto, ao contrário do que a princípio poderia se imaginar, essas construções não foram uma consequência direta e pura da interiorização de “brasileiros” em sua nova condição de desprestígio social (apesar de alguns terem de fato partido de Lagos, estimulados pelas doações de glebas pelas autoridades tradicionais), mas sim do crescente desejo entre os chefes de Estado e, posteriormente, entre os produtores de cacau iorubás de possuir habitações prestigiadas. Como já foi mencionado no final do capítulo anterior, existiam diferenças entre as formas arquitetônicas de estilo “brasileiro" encontradas no interior e aquelas encontradas em Lagos, sobretudo no que diz respeito aos desenhos exteriores dos edifícios: seu volume, suas decorações, e tudo o que estava ligado a aeração e iluminação - algumas dessas mudanças, como veremos, eram apenas exacerbações de movimentos que já haviam sido iniciados em Lagos, em relação à arquitetura colonial brasileira. Muitas, no entanto, eram inéditas, e configuraram o que chamaremos de estilos regionais. Por outro lado, a organização da distribuição interna pouco se alterou nesses novos exemplares, de forma que as ressonâncias com a arquitetura tradicional iorubá e com a casa colonial brasileira foram mantidas e seus votos renovados. Veremos que, apesar da introdução regional de uma nova forma de organização interna ter se constituído como uma condição sine qua non nesse processo de difusão, foi por meio do âmbito estético que as traduções dos edifícios “brasileiros” encontrados em Lagos ganharam significado local: o uso de novas técnicas construtivas e de ornamentos edilícios prevalentes na região transformou esses edifícios em símbolos modernos do poder político local.71 Analisaremos a seguir alguns exemplos de construções localizadas no interior da Nigéria: um palácio de um chefe de estado, e outros dois exemplos de habitações urbanas, uma delas de um produtor de cacau em Ifé. Buscando entender em que medida elas simultaneamente
71
TERIBA, 2017. Op. cit., p. 105.
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se apropriam e se distanciam das formas arquitetônicas encontradas em Lagos, recuperaremos e caracterizaremos algumas dessas construções. Identificaremos a variação interna que define a arquitetura “brasileira” seja em sua primeira, como em sua segunda fase, realizando comparações de forma a delinear um de seus “estilos regionais”. Por fim, chegaremos a uma conclusão quanto às razões culturais para a difusão da casa de estilo “brasileiro" em território nigeriano ao longo da primeira metade do século XX.
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Imagem 63 - Mapa de expansão da arquitetura brasileira na região iorubá. Fonte: Marianno Carneiro da Cunha, Manuela Carneiro da Cunha, "Da Senzala ao Sobrado".
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4.2.2. Palácio de Bello Kuku, em Ijebu-Ode O palácio de Bello Kuku, nosso primeiro objeto de análise, foi erguido entre 1897 e 1900 em Ijebu-Ode (Imagem 64). Bello Kuku era o conselheiro militar (Balogun) do rei Awulaje Fidipote, mas sempre se apresentou como uma figura que ambicionava riqueza e poder. Kuku, quando soube das intenções do monarca em eliminá-lo, partiu em direção a Ibadan. Em seu retorno, construiu para si uma nova mansão, no local da casa que seus adversários haviam destruído. O edifício em questão, inaugurado em 1902, tornou-se o mais importante marco da cidade, especialmente porque as forças militares coloniais haviam destruído o palácio de Awulaje anos antes. Na perspectiva dos chefes locais, os movimentos de Kuku até então, e tantos outros que sucederiam, apontavam sua pretensão em relação ao trono de Awulaje. Após muitas ofertas, foi apenas com a retirada das forças britânicas de Ijebu-Ode que Balogun concordou em assumir um cargo político superior, no qual, ao aceitar um salário do governo colonial, ele passaria a governar lado a lado com Awulaje. Sua arquitetura, muito antes de sua efetiva ascensão política, foi o que de fato consolidou seu status, lançando-o como figura de importância não apenas frente à comunidade local, como também frente ao governo colonial. O palácio existe até hoje, e credita-se sua construção a Balthazar dos Reis, o carpinteiro agudá que construiu a famosa Ebun House, em Lagos, que conheceremos mais a fundo a seguir.72A mansão, construída em tijolo, anuncia-se para a rua por meio de um arco, que conduz a um pátio ladeado por duas construções térreas e delimitado, ao fundo, pela construção principal de dois andares (Imagem 64). O pátio, portanto, serve como um primeiro vestíbulo de acesso ao edifício. A fachada vê-se caracterizada por uma entrada central envolta em um arco, e por janelas emolduradas por colunas embutidas coroadas por capitéis de pequenas flores (Imagens 65 e 66). Após a porta de entrada, um primeiro vestíbulo interno abriga uma escada de formato espiral feita em madeira (Imagem 67), que conduz a um segundo vestíbulo no andar superior, que, finalmente, introduz um salão à época inteiramente decorado por mobília importada (Imagens 68 e 69) . É provável que o Balogun tenha se apropriado do popular recurso entre muitos sobrados agudás da planta simétrica com uma escada central, organização interna dos espaços que, como já identificamos, apresenta muitas frentes de diálogo com aquela da casa colonial brasileira. A
72
Conhecedor de muitos ofícios construtivos, dos Reis recebeu uma medalha por seu trabalho em marcenaria na “Colonial Exhibition of India”, realizada em Kensington, Inglaterra, em 1887. Também participou na confecção de peças para a Holy Cross Cathedral, em Lagos, inaugurada em 1881. (CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit., p. 75).
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primeira escada em formato espiral em território iorubá fora construída em Lagos, na Yoyo Araromi House, a residência do mestre de obras agudá Lázaro Borges da Silva (Imagem 70). A casa, construída nos anos 1880, foi consumida pelo fogo em 1980, mas o tataraneto de da Silva, Sylvanus Gançallo, recorda viver na casa quando criança, e constantemente deslizar pelo corrimão da prestigiosa escada.73 A comparação do edifício de Bello Kuku com as estruturas arquitetônicas reais tradicionais iorubá torna evidente o fato de que a grande revolução introduzida pelo Balogun estava na verticalidade de sua edificação. Ainda que as estruturas tradicionais apresentassem em alguns casos fachadas simétricas, elas eram decididamente planas, e sua imponência era afirmada justamente em seu espraiamento horizontal. Os agudás, ao fazer uso da simetria em pavimentos distintos, inauguravam a noção de diferenciação espacial no plano vertical. A comparação do edifício em questão com aquele do rei de Ijebu-Ode revela em que medida a casa de Bello Kuku era única, de forma a simbolizar a sua supremacia visual, e sugere de que maneira o estilo Agudá de arquitetura teria primeiro surgido entre os chefes de governo no sudoeste nigeriano. O que a residência do Balogun não possuía em área, fator até então utilizado para comunicar a imponência dos palácios, ela projetava por meio de sua verticalidade, seus clerestórios, suas colunas embutidas, assim como pelas molduras das janelas na fachada principal, e pelo pátio que separava o edifício principal do limite da rua.74 Além disso, muito desse impacto visual via-se garantido pelo fato de que dos Reis optou por criar paredes externas que, diferentemente daquelas dos palácios tradicionais - que muitas vezes viam-se cobertas pelos telhados de palha (Imagens 71 e 72) -, podiam ser vistas a partir de todos os ângulos, servindo portanto como telas em branco a serem preenchidas por decorações. As paredes externas ganhavam assim relevância enquanto suportes comunicativos até então ignorados pela tradição, que priorizava unicamente a parte interna das construções. Por sua vez, internamente à construção, por meio do planejamento distributivo dos espaços e da criação de hierarquias, Kuku inaugurava a possibilidade de fluxos controlados e lineares, em contraposição ao movimento perambulatório dos cidadãos nos corredores e pátios do palácio tradicional.
73 74
TERIBA, 2017. Op. cit., p. 10. TERIBA, 2017. Op. cit., p. 141.
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Imagem 64 - Palácio de Balogun Kuku em Ijebu-Ode, construído por Balthazar dos Reis entre 1897 e 1900. Foto Adedoyin Teriba, 2011.
Imagem 65 - Fachada principal do palácio. Foto Adedoyin Teriba, 2011.
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Imagem 66 - Imagem aproximada do Palácio do Balogun em Ijebu-Ode mostrando detalhes das colunas embutidas na fachada principal. Foto Adedoyin Teriba, 2011.
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Imagem 67 - Escada em espiral que conduz ao primeiro pavimento. Foto Adedoyin Teriba, 2011.
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Imagem 68 - Segundo andar do vestíbulo. Foto Adedoyin Teriba, 2011.
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Imagem 69 - Interior do salão com mobiliário e chandelier. Foto Margaret Thompson-Drewal, 1983.
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Imagem 70 - Yoyo Arárò mi ̣ House, construída e habitada por Lázaro Borges da Silva no final do século XIX. Foto Pierre Verger, década de 1940.
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Imagem 71 - Palácio do rei de Owu no sudoeste da Nigéria em 1946. Fonte: School of Conservation Studies, Bornemouth University.
Imagem 72 - Palácio de Queto, República Popular do Benim. Fonte: Musée de l'Homme, Paris.
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Como se pode ver, dentre os muitos temas introduzidos por essa construção, alguns já haviam sido inaugurados em Lagos, outros, por outro lado, ganhariam maior repercussão no interior do território. Muitos desses temas podem ser identificados na Ebun House, em Lagos (Imagens 73 e 74). Balthazar dos Reis, segundo a memória oral, teria participado da sua construção junto do arquiteto saro Herbert Macaulay, o que certamente explica tantas ressonâncias. Tendo sido edificada em 1913, o exemplo mostra que o movimento não era unívoco, e que os arquitetos iam e voltavam do interior, trazendo novas referências. De toda forma, uma análise mais aprofundada desse exemplo faz-se relevante pelo fato de muitas de suas soluções representarem a sedimentação de conceitos inaugurados pelos agudás em seu retorno e adaptação à cidade de Lagos. A primeira das ressonâncias que analisaremos diz respeito à noção de autoridade associada à verticalidade. A “Ebun House” também era conhecida por outros nomes, entre eles “Petesi Anduru”, que significa “sobrado de Andrew” (seu proprietário), em iorubá, e “Ile Awosifila”, que significa “a casa que faz você tirar o chapéu quando admirando sua altura” ou “casa dos segredos, remova seu chapéu”, em iorubá. Além disso, sobre a casa foi criado o aforismo “Alamoga bi Petesi Anduru”, que significa “Se alguma coisa for boa, ela vai ser como a casa do Andrew”, o que sugeria que a altura da estrutura exprimia totalmente a importância da autoridade no pensamento local. Essa relação entre altura e autoridade é muito anterior à chegada dos “brasileiros” com suas experimentações arquitetônicas. Nos reinos do sudoeste nigeriano, o senso de divindade e a posição de liderança ocupada pelo rei via-se simbolizada pela condição elevada de seu trono. Além disso, os palácios reais eram sempre as construções mais impressionantes do reino, e muito dessa grandiosidade advinha da altura das estruturas reais frente às edificações circundantes (o que explica porque a construção de Bello Kuku representou uma afronta tão grande à autoridade real). Dessa forma, entende-se que possa ter existido uma lei que reforçava a associação dos nativos entre altura e poder político, na medida em que determinava a natureza elevada do trono do Oba (rei) e a altivez de seu palácio. A frase “Ile Awosifila”, portanto, sugere que os vizinhos de Andrew Thomas (proprietário da Ebun House) acreditavam que ele tivesse redefinido a expressão de autoridade por meio da arquitetura.75 Dando seguimento às ressonâncias, a Ebun House, assim como o palácio de Bello Kuku, foi construída com tijolos e revestida com argamassa. Suas janelas eram fechadas por persianas 75
TERIBA, 2017. Op. cit., p. 79.
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feitas em madeira e ornadas com emolduramentos diversos. A fachada principal, voltada para Odunfa Street, apresentava um volume projetado de cinco faces, flanqueado por duas paredes recuadas. As janelas posicionadas na parede recuada do primeiro pavimento viam-se emolduradas por colunas embutidas, como no palácio de Bello Kuku. Janelas em arco coroadas por motivos florais feitos em baixo relevo em gesso, conformação muito popular entre as casas de estilo “brasileiro”, desenhavam todas as fachadas do edifício, e dois clerestórios despontavam em sua cobertura (Imagens 73 a 75). Ademais, coroando o volume central, havia um terraço contornado por uma balaustrada, onde inicialmente foi pousada uma cúpula, que seria depois removida (Imagem 76). Uma arcada de três colunas e uma pilastra de bases esféricas moldadas em gesso rústico ornava o térreo da construção (Imagem 77). Os capitéis compostos das colunas eram adornados entre suas volutas pelo mesmo motivo floral que adornava o centro dos arcos das janelas, descrito pela arquiteta e historiadora Joanne Nagel Shaw como “Flower of Lagos” (Imagens 75, 77 a 81) - ornamentação que os retornados utilizaram para se distinguir localmente, e que se manteria popular entre os construtores agudás no bairro “brasileiro” de Lagos mesmo depois da Primeira Guerra Mundial.76 A decoração das bases das colunas era repetida na decoração das pilastras que emolduravam algumas janelas. O trabalho em gesso dessa construção revela em que medida foi feita a manutenção da referência à a cultura greco-romana nos elementos arquitetônicos e decorativos, revelando a “tentativa de acompanhamento das variações da linguagem clássica no âmbito da arquitetura historicista e acadêmica”77. Diz-se tentativa pelo fato de os elementos muitas vezes desviarem totalmente das normas e ordens clássicas. Esse acompanhamento, vale observar, era feito mediante um vínculo indireto com os centros de irradiação de princípios e modelos, que ocorria via Brasil - um intercâmbio que, como vimos, manteria-se por muito tempo após o momento do primeiro retorno desses ex-escravos. No entanto, esse desvio em relação às ordens clássicas surgia também como uma reação aos edifícios de estilo neogrego (Greek-Revival) dos residentes europeus em Lagos, como era o caso da German House (Imagem 82).78
76
SHAW, Joanne Nagel. Historic Buildings of Lagos. Research Paper, Northwestern University, [s. l.], 1980. Citado em: TERIBA, 2017. Op. cit., p. 92. 77 CONDURU, 2012. Op. cit., p. 148. 78 TERIBA, 2017. Op. cit., p. 77.
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Imagem 73 - Fachada principal e fachada Sul da Ebun House, construída em Lagos em 1913, pelo arquiteto Herbert Macaulay, muito provavelmente junto de Balthazar dos Reis. Sua fachada principal (Oeste) volta-se para a Odunfa Street. Foto Pierre Verger, década de 1970.
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Imagem 74 - Outra vista da fachada principal da Ebun House. Foto Pierre Verger, década de 1970.
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Imagem 75 - Fachada sul da Ebun House, na qual destacam-se janelas em arco emolduradas e coroadas por motivos florais feitos em baixo relevo em gesso. Foto Pierre Verger, década de 1970.
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Imagem 76 - Ebun House com cúpula no terceiro pavimento. Fonte: Allister Macmillan, ed., The Red Book of West Africa.
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Imagem 77 - Colunas da arcada da Ebun House, na esquina das fachadas norte e oeste (principal). Foto Pierre Verger, 1977.
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Imagem 78 - Casa térrea em Herbert Macaulay Street, em Lagos, na década de 1940. Destaca-se sobre a molduras das janelas o motivo decorativo chamado "Flower of Lagos", definifo por Joanne Nagel Shaw. Fonte: Yale University Photographic Archive.
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Imagem 79 - Detalhe da mesma construção da imagem 78. Foto Pierre Verger.
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Imagem 80 - Desenhos de motivos florais feitos por Alan Vaughan-Richards da década de 1960 revelam o léxico visual de ornamentos dos construtores agudás em Lagos. Source: Kunle Akinsẹmoyin and Alan VaughanRichards, Building Lagos.
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Imagem 81 - Sobrado em Lagos. Motivos florais coroam as molduras das janelas em arco do andar superior. Foto Tatewaki Nio, 2017.
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Imagem 82 - German House em Lagos, em 1914. Fonte: Alan Vaughan-Richards, "Le Nigéria."
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O fenômeno da “superfenestração”, nome que atribuiremos à aparição irrefreada de dispositivos de aeração variados - janelas, treliças em profusão e águas-furtadas dotadas apenas de venezianas -, na arquitetura de estilo "brasileiro", merece uma observação mais aprofundada, na medida em que reflete um processo de adaptação local da arquitetura, tendo sido uma das principais contribuições dos “brasileiros" em sua chegada a Lagos (Imagens 83 a 86). Veremos como a introdução não apenas de aberturas, mas também de ornamentos esteve associada ao melhor desempenho dos materiais construtivos, sendo indicativas, portanto, de um maior nível tecnológico no processo construtivo agudá. O aparecimento de aberturas e ornamentos na construção representa uma novidade seja em relação à arquitetura tradicional iorubá, seja em relação à arquitetura colonial brasileira. Marianno Carneiro da Cunha, ao tratar do fenômeno da “superfenestração”, diria que os “brasileiros" foram responsáveis por “colocar janelas onde nunca antes haviam existido”. Aqui, Marianno tem como referência primeira a casa colonial brasileira, que, como vimos no capítulo anterior, só passaria a apresentar janelas em suas quatro fachadas a partir de 1870, com o distanciamento da construção dos limites do lote. A casa isolada no terreno não foi, portanto, o tipo de referência edilícia conhecida pelos escravos quando ainda em cativeiro, mas sim a casa urbana geminada que, como vimos, determinara o aparecimento do corredor que ligava a rua ao quintal dos fundos, elemento que muito influenciou a planta típica da Arquitetura Agudá. Interessa, nessa medida, entender de que maneira essas aberturas e esses ornamentos tornaram-se possíveis, tecnicamente e ideologicamente, seja em território brasileiro, seja em território nigeriano. Para isso, retomaremos brevemente a evolução da fachada da casa colonial brasileira, entendendo de que forma ela se relaciona às limitações e possibilidades das técnicas construtivas utilizadas. A casa colonial brasileira viu-se, desde o seu princípio, limitada por suas técnicas construtivas, sendo a grande maioria das residências construídas em pau-a-pique, adobe, ou taipa de pilão. Por esse motivo, as construções em meio urbano eram edificadas de forma geminada, de forma a garantir uma certa estabilidade, e a proteção das empenas contra a chuva. Dessa organização urbana resultavam: um sistema de iluminação e ventilação bilaterais, com janelas dando para a rua e outras para o quintal; e o surgimento das alcovas, aposentos sem iluminação e aeração localizados no centro da construção.79(Imagem 88)
79
LEMOS, 1999. Op. cit., p. 124.
108
Imagem 83 - Fenômeno da "superfenestração" em Ilesha, uma adaptação local: sobrado com águas-furtadas. Foto Tatewaki Nio, 2017.
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Imagem 84 - Fenômeno da "superfenestração" em Ilesha, uma adaptação local: sobrado com venezianas e águas-furtadas. Foto Tatewaki Nio, 2017.
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Imagem 85 - Fenômeno da "superfenestração" em Ilesha, uma adaptação local: sobrado com água-furtada. Foto Pierre Verger.
Imagem 86 - Fenômeno da "superfenestração" em Ilesha, uma adaptação local: sobrado com água-furtada. Foto Pierre Verger.
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As dificuldades técnico-construtivas também limitavam o desenvolvimento do telhado, que se apresentava sistematicamente como um telhado de duas águas, com cumeeira paralela ao alinhamento da rua (Imagem 87). A inexistência de chapas de cobres ou zinco, e a consequente utilização de telhas, não aconselhava telhados movimentados que exigissem águas furtadas ou telhados circundando pátios de insolação, o que certamente comprometia a devida aeração das construções. Tendo suas raízes na arquitetura tradicional portuguesa, a arquitetura colonial brasileira já apresentava, no entanto, adaptações ao clima dos trópicos, mediante emprego de recursos para melhor aeração: generosos pés-direitos, paredes que não alcançavam a cobertura, presença de sótãos, janelas com venezianas, basculantes e treliças. As vias viam-se portanto definidas por fachadas contínuas monotonamente definidas por legislações que ambicionavam a atribuição de uma aparência portuguesa às vilas brasileiras. Seria apenas após a introdução da economia do açúcar em São Paulo, no último quartel do século XVII que se modificariam pela primeira vez os frontispícios tradicionais, extremamente singelos e próprios da taipa rústica, com a introdução de fachadas “modernas”, advindas do barroco surgidas sobretudo após o terremoto de Lisboa, em 175580. Tem início um processo de "cosmetização", com reformas e acréscimos da moda dita pombalina, no qual pela primeira vez se implementam vergas curvas nas aberturas, balcões salientes em ferro forjado na fachada (semelhantes àqueles que se encontrariam em algumas residências em Lagos) (Imagens 92 e 93), vidraças de guilhotina com desenhos caprichosos nos seus pinázios e telhados com beirais forrados a omitir os cachorros (também conhecido como “tabeira”). (Imagens 89 a 91)
80
LEMOS, 1999. Op. cit., p. 118.
112
Imagem 87 - Esquema da conformação típica do telhado em duas águas em casas urbanas geminadas. Desenho Nestor Goulart Reis Filho.
Imagem 88 - Corte esquemático demonstrando o sistema de aeração, iluminação e condução de águas pluviais em um típico sobrado geminado urbano do período colonial. Desenho Nestor Goulart Reis Filho.
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Imagem 89 - São Paulo em 1862, já "cosmetizada" pelo dinheiro do açúcar. Observam-se implementações modernas nas fachadas: janelas de vergas recurvadas, beirais com cachorros ocultos por tabuado, gradis de ferro forjado. O sobrado à direita mantém características próprias das construções do final do século XVIII, a fim de comparação. Foto Militão de Azevedo.
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Imagem 90 - Sobrado em São Roque. Foto Carlos Lemos, 1971.
Imagem 91 - Sobrado em São Roque. Foto Carlos Lemos, 1971.
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Imagem 92 - Imagem aproximada da fachada da casa da família Fernandes em Lagos, mostrando sua janela de formato ogival e seu exclusivo gradil de ferro forjado, um dos três encontrados na cidade na época. Foto Pierre Verger.
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Imagem 93 - Detalhe do balcão de ferro forjado existente na casa de Joaquim Devodê Branco, em Kakawa Street, Lagos. Foto Pierre Verger.
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Há um certo aprimoramento nos acabamentos, no entanto, as alterações ainda são pequenas quando comparadas àquelas que sucederiam. As fachadas ainda se definiam por uma supremacia dos cheios sobre os vazios: a utilização da taipa tornava impossível a criação de ritmos de fachadas (tal qual as fachadas feitas de alvenaria de pedra portuguesas), uma vez que o distanciamento entre os vãos deveria ser compatível com as exigências da terra socada.81 Além disso, os frontispícios ainda eram demasiado despojados, sendo marcados apenas pela sombra do beiral profundo. A inexistência de grandes atavios mais uma vez se devia às limitações impostas pela taipa, que não permitia ornamentações em alto-relevo e cimalhas de grande balanço, restringindo a ornamentação às vergas de portas e janelas, e a um eventual camisamento da terra socada com tijolos. A partir do início do século XIX, diversos fatores levarão a um refinamento das construções, refletindo o esforço de adaptação às condições de ingresso do Brasil no mundo contemporâneo. A presença da Missão Cultural Francesa na Corte e a fundação da Academia de Belas Artes influenciam, na primeira metade do século, na adoção de padrões menos rígidos nas fachadas, e na difusão de elementos inspirados na arquitetura neoclássica: escadarias, colunas e frontões de pedra adornavam a fachada dos edifícios, e balaustradas compunham as platibandas junto de vasos e figuras de louças que tinham por função marcar a prumada das pilastras (Imagem 94). Ressonâncias desse tipo de ornamentação podem ser encontradas em Lagos na já citada Water House (Imagens 38 e 39) e na casa da família Fernandes (Imagem 95), assim como em tantas outras construções no interior do território (Imagens 96 a 99). A fachada, obrigatoriamente simétrica, apresentava em seu eixo central a porta de entrada e via-se dividida em painéis. Cada painel agrupava três ou quatro janelas ou porta balcões, que agora passavam a possuir vergas de curva de pleno cinto, isto é, “bandeiras compreendendo um meio círculo de cujo centro partiam os raios da decoração”82. Foram também comuns nesse período janelas ogivais, prenunciando o ecletismo que logo chegaria83. Os vidros, simples ou coloridos - sobretudo nas bandeiras de portas e janelas, ganhavam preponderância frente às velhas urupemas e gelosias (tipos de treliça). Aos poucos, ensaiavamse soluções de coberturas mais complicadas, já com quatro águas, cujas laterais avançavam livremente sobre os telhados vizinhos de menor altura, ou dotadas de calhas e condutores
81
LEMOS, 1999. Op. cit., p. 197. LEMOS, 1999. Op. cit., p. 198. 83 Ressonâncias desse tipo de solução podem ser encontradas em Lagos na casa da família Fernandes (Imagens 92 e 95), na Lion House (Imagens 100 e 101) e na Yoyo Araromi House (Imagem 70). 82
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importados. No entanto, por trás das implementações de ordem decorativa do período, escondia-se a solidez e a rigidez das construções de tipo colonial. Seria apenas com a decadência do trabalho escravo a partir da segunda metade do século XIX que se começaria a repensar as técnicas construtivas tradicionais, uma vez que o uso e a construção dos edifícios viam-se até então baseados na presença e abundância de mão-de-obra determinada pela existência do trabalho escravo84. Modelo que, como vimos, levou à manutenção de um primitivismo tecnológico e à ausência de inovações. Teria sido o café o responsável pela chegada do tijolo ao estado de São Paulo, uma vez que o beneficiamento dos grãos exigia obras de alvenaria. Ainda assim, a taipa de pilão se manteria até o final do século XIX como técnica “nobre” e foi a duras penas que o paulista conservador se convenceu das vantagens trazidas pela nova técnica construtiva. Entendia-se que o tijolo haveria de manter a estética da taipa, ignorando-se sua versatilidade e optando-se pela conservação do partido, da volumetria e do arcabouço tradicional, pautados nas limitações definidas pela taipa. Apenas o ecletismo soube aproveitar todas as vantagens do tijolo.85 Introduzido a partir de 1870, o estilo eclético era visto como a estética erudita e civilizada vinda da Europa, e trazia em seu discurso a defesa da salubridade e do conforto (pensava-se de modo premonitório sobre a funcionalidade implícita na “máquina de morar” mais tarde imaginada por Le Corbusier86). O repúdio às velhas compartimentações abafadas e escuras nos centros das construções e o uso do tijolo queimado motivaram e tornaram possível o afastamento das edificações dos limites do lote, que não mais dependiam das edificações vizinhas para se sustentar. O edifício, agora isolado, tinha janelas em todas as suas faces e em todos os seus cômodos, extinguindo permanentemente as alcovas.
84
REIS, 1984. Op. cit., p. 26, p. 43. LEMOS, 1999. Op. cit., p. 122. 86 LEMOS, 1999. Op. cit., p. 252. 85
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Imagem 94 - Casarões de estilo neoclássico na rua do Catete, à altura do palácio, no Rio de Janeiro. Fonte: vemqueteconto.com.br
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Imagem 95 - Casa da família Fernandes: construída originalmente em 1846 na Tinubu Square, é considerada a mais antiga construção agudá em Lagos. Destaca-se das outras casas de estilo “brasileiro" pela sua balaustrada, que tem por função esconder o telhado de duas águas, e por suas janelas ogivais. Uma figura humana feita em terracota posicionada sobre a platibanda coroa o alinhamento da pilastra central.
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Imagem 96 - Sobrado em Ondo com balaustradas. Foto Pierre Verger.
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Imagem 97 - Sobrado em Ilé-Ifé com balaustradas. Foto Tatewaki Nio, 2017.
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Imagem 98 - Sobrado em Ilesha com balaustradas. Foto Tatewaki Nio, 2017.
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Imagem 99 - Sobrado em Ilé-Ifé com balaustradas. Foto Tatewakio Nio, 2017.
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Imagem 100 - Lion House: sobrado construído no bairro "brasileiro" em Lagos pelo agudá Santan da Silva na década de 1880. O revestimento da parte superior da fachada é feito com azulejos, enquanto o da parte inferior é feito com um acabamento em argamassa que imita a aparência da alvenaria feita em pedra silhar. Trata-se da terceira estrutura com um balcão de ferro forjado em Lagos. Foto Pierre Verger.
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Imagem 101 - Detalhe da fachada da Lion House mostrando janela de formato ogival e acabamento que imita a aparência da alvenaria feita em pedra silhar. Foto Pierre Verger.
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O velho patrimônio cultural arquitetônico baseado na mão-de-obra escrava e nos recursos do meio ambiente era finalmente confrontado e substituído por uma forma modernizante viabilizada graças à integração do Brasil ao mercado mundial e à modernização dos transportes, que tornavam possível a importação e o transporte de materiais via porto de Santos. Portanto, quando Marianno diz que os “brasileiros” em Lagos colocaram janelas onde nunca antes havia existido, refere-se à arquitetura construída no período anterior a 1870 no Brasil, aquela que os ex-escravos conheciam e dominavam. Diferentemente do caso brasileiro, em que a casa teve que se desprender dos limites do lote para abrir-se para o mundo exterior, em Lagos, ela esteve isolada desde o princípio. Talvez seja o caso de recuperarmos algumas das técnicas construtivas da Arquitetura Agudá para entendermos o que subjaz a essa conformação final, e entendermos o que ela significou em termos técnicos e o que comunicou, mediante sua tecnologia, em termos ideológicos. Como sabemos, a arquitetura tradicional iorubá era feita inteiramente de adobe, não possuindo aberturas a não ser por uma única porta de entrada. Dando continuidade à tradição, a arquitetura de estilo “brasileiro”, de início, foi feita de terra: “privilegiaram o uso do adobe, agregando às tradições locais novos elementos, como os do mar, que atribuíram mais rigidez e resistência à massa portante. A conjugação do adobe à madeira, em barrotes, permitiu a constituição de pisos acima do solo, a configuração de edifícios assobradados. Mais adiante, a terra foi usada para produzir outros componentes da construção, sendo instaurados processos de fabricação de tijolos e telhas87, por exemplo. Elementos arquitetônicos como colunas, pilares, arquitraves, tríglifos, métopas, cornijas, cimalhas, frontões e balaustradas tanto foram modelados diretamente a partir dos muros, quanto fabricados para ser aplicados ou justapostos à construção.Também foram feitos ornamentos em massa aplicados às fachadas e a algumas paredes, e elementos internos, que algumas vezes eram complementados por pinturas ornamentais. Nesse processo de coexistência de diferentes sistemas e técnicas de construção, mais adiante, no século 20, o ferro e o concreto armado passaram a ser usados em elementos de sustentação de edifícios.”88 "Essa arquitetura era composta de elementos fabricados na África ou importados. Para a fabricação, além dos construtores, pedreiros e carpinteiros treinados no Brasil durante a experiência no cativeiro, a mão de obra especializada contou com africanos que, algumas vezes, foram 'enviados à Bahia como aprendizes'. Da mesma região brasileira, mas não apenas de lá, 'provinham, igualmente, muitos itens de luxo', tais como azulejos ornamentais, balcões em ferro forjado, janelas em vidro e objetos de 87
"Em Lagos, o palácio real fora, segundo a tradição oral, construído por portugueses, no fim do século XVIII, (...) era parcialmente caiado e coberto de telhas. Telhas significavam pois, desde cedo, prestígio, mas o modelo de telhas do palácio não podia ser usado pelos súditos do rei sem riscos de lesa-majestade. Os brasileiros, que não dependiam da jurisdição do rei de Lagos, adotaram telhas e até fabricaram-nas durante certo tempo, em Abeokutá. A longo prazo, porém, não puderam competir com o ferro corrugado mais barato que a Inglaterra industrial queria exportar" (CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit., p. 63. Ver imagem 109. 88 CONDURU, 2012. Op. cit., p. 147.
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faiança, entre outros elementos. Sobre essas casas na Nigéria, Pierre Verger observa que 'as janelas eram em vidro emolduradas com estuque branco, quase sempre ornadas com balcões de ferro forjado que mandavam buscar na Bahia'89."90
Frente a essas colocações feitas por Roberto Conduru em seu texto “Entre a cabeça e a terra - arquitetura dos agudás no Golfo do Benim”, podemos fazer algumas ponderações quanto à proveniência desses materiais, tendo como base a pesquisa de Adedoyin Teriba. As casas de estilo “brasileiro" construídas em Lagos eram, em sua grande maioria, feitas de tijolos, e revestidas em argamassa. Eventualmente, a argamassa poderia vir a ter um tratamento especial, de forma a imitar o efeito visual das paredes de pedra silhar (“ashlar stone”)91 do General Post Office do governo colonial (Imagem 102). Foi um acabamento que muito se difundiu na Arquitetura Agudá, não apenas em paredes como em outros elementos compositivos. Além disso, observavam-se, é claro, exceções: a Water House e a Lion House, por exemplo, tinham suas paredes externas revestidas por azulejos, ecoando o acabamento das construções da cidade de São Luís do Maranhão, no Brasil. (Imagens 38, 39, 103 e 104) Teriba em seu texto credita o fornecimento dos tijolos de algumas das construções a James Churchill Vaughan, um ex-escravo vindo da Carolina do Sul, que possuía um forno para queima de tijolos92. Ele foi um dos poucos retornados que, ao chegar à cidade, aventuraram-se na produção em larga escala de unidades de alvenaria. Vaughan possuía um estabelecimento em outra parte da cidade onde realizava o comércio de ferro e vendia materiais de construção.93 Quanto ao trabalho de serralheria dos balcões, Teriba propôs-se a realizar uma pesquisa aprofundada no sentido de verificar se havia serralheiros em Lagos no século XIX, mas a pesquisa revelou-se inconclusiva. O trabalho em marcenaria das persianas e treliças das janelas (Imagem 105), assim como das escadas e de diversos mobiliários (Imagens 106 a 108), por sua vez, era realizado por artesãos locais, como foi o caso de Balthazar dos Reis, que ficou conhecido internacionalmente por seu trabalho no altar e no trono do Bispo da Holy Cross Cathedral, em Lagos. 89
VERGER, Pierre. Influências África-brasil e Brasil-África. In: Verger, Pierre. Brasil África Brasil. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1992. Citado em: CONDURU, 2012. Op. cit., p. 148. 90 CONDURU, 2012. Op. cit., p. 148. 91 Silhar é o nome que se dá, no âmbito da construção, à “pedra grosseiramente aparelhada ou lavrada, geralmente em quadrado, usada em obras de alvenaria.” (SILHAR. In: MICHAELIS, Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2021. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/modernoportugues/busca/portugues-brasileiro/silhar. Acesso em: 08/09/2021) 92 TERIBA, 2017. Op. cit., p. 60: “A partir de 1857, os agudás compraram tijolos de fornos estabelecidos pelo Cônsul Geral da Sardenha, assim como por missionários como Joseph Harden e James Vaughan, que estavam estabelecidos em Lagos. Os agudás anteriormente haviam construído suas casas com adobe e argamassa. Ver AKINSẸMOYIN, Kunle; VAUGHAN-RICHARDS, Alan. Building Lagos. Lagos: F & A Services, 1976, p. 18 e 26.” 93 TERIBA, 2017. Op. cit., p. 86.
129
Imagem 102 - General Post Office, Lagos. Alvenaria feita em pedra silhar ("ashlar stone"), como se verifica na imagem superior. Fonte: Kunle Akinsẹmoyin and Alan Vaughan-Richards, Building Lagos.
130
Imagem 103 - Detalhe da fachada da Lion House, revestida por azulejos em sua parte superior. Fonte: O.A. Akinyeye, Eko: Landmarks of Lagos, Nigeria.
Imagem 104 - Vista aproximada da fachada de sobrado em São Luís do Maranhão, Brasil.
131
Imagem 105 - Detalhe de persiana e treliça feitas em madeira em uma construção agudá. Foto Pierre Verger.
132
Imagem 106 - Escada em madeira feita por artesão "brasileiro". Foto Pierre Verger.
133
Imagem 107 - Exemplo do trabalho dos artesãos "brasileiros": “Os ‘brasileiros’ introduziram também o gosto pelo mobiliário ocidental, lançando a moda, por exemplo, das cadeiras de balanço e sofás, mesas e armários.”94Foto Pierre Verger.
Imagem 108 - Exemplos do trabalho dos artesãos "brasileiros". Foto Pierre Verger.
94
CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit., p. 77.
134
4.2.3. Estilos regionais: Ebenezer House, em Ikirun e Olayinka House, em Ifé
Por mais que as técnicas construtivas e as ornamentações apresentassem certa uniformidade entre as construções de Lagos, esse raciocínio não se aplica para as construções espalhadas pelo território. As ressonâncias, como aquelas identificadas para o palácio de Bello Kuku, somavam-se ao uso de técnicas construtivas e de ornamentos edilícios prevalentes na região, fatores que acabavam por alterar significativamente o resultado formal das construções, configurando estilos regionais. Esse aspecto devia-se ao fato da atribuição de significado local desses edifícios dar-se sobretudo a partir do âmbito estético, pois era por meio do impacto e reconhecimento visual que esses edifícios se tornavam símbolos modernos do poder político local. Antes de nos adentrarmos na análise dos dois exemplos construídos a interior, faz-se relevante pontuar a razão pela qual a nova forma de organização interna, introduzida pela arquitetura “brasileira” em Lagos, também representou uma condição sine qua non para esse processo de difusão. Apesar de não ser o elemento que necessariamente comunicou uma nova condição de poder político e econômico, ela teve papel substancial na medida em que possibilitou o novo modo de vida que subjazia a essa transformação. A difusão da casa “brasileira” só ocorreu de fato no entreguerras, durante a década de 1930, e o seu aparecimento no interior, ao contrário do que a princípio poderia se imaginar, não se deveu à interiorização de “brasileiros” (apesar de alguns terem de fato partido de Lagos, estimulados pelas doações de glebas pelas autoridades tradicionais), mas sim ao crescente desejo entre os produtores de cacau iorubás de possuir habitações prestigiadas. No início da década, algumas importantes mudanças sociais que haviam sido iniciadas durante o final do século XIX, mais especificamente após a intervenção britânica, começaram a ter um impacto significativo no interior do sudoeste da Nigéria, fazendo emergir novos padrões em habitação doméstica. Em primeiro lugar, a cristandade tornou-se uma alternativa significativa à religião tradicional iorubá, o que, por sua vez, afetava diretamente a estrutura familiar tradicional. Para os convertidos, isso significava abandonar a prática tradicional de casamento poligâmico, tendo por consequência o abandono do antiquado e amplo “compound”, concebido para grandes famílias, em favor de novos padrões residenciais. Nesse sentido, apesar de um segmento de um “compound” revelar-se como uma escolha razoável para uma casa, um edifício de um andar 135
com 2 ou 3 aposentos não era entendido pelos fazendeiros e comerciantes como uma forma efetiva de exibir a sua riqueza conquistada no intenso crescimento da economia exportadora de café e cacau: eles queriam exibir casas de dois pavimentos com elementos importados. E, se em determinado momento a construção de uma casa com dois pavimentos representou uma afronta às autoridades tradicionais, por ser mais alta que os “compounds” de reis e chefes, essa não era mais o caso, visto que, sob o domínio colonial, os chefes locais haviam sido reduzidos a líderes de poder representativo. Em suma, a conjugação dessas mudanças em termos de religião, estrutura familiar, economia e política levou o iorubá ascendente a escolher a casa “brasileira” como sua nova casa95. Evidentemente, a aprovação e a adoção da casa “brasileira” se deram de forma progressiva, e sob diferentes perspectivas. Como já mencionado, ela tem início em 1930, entre fazendeiros e comerciantes prósperos, no início de sua participação na economia capitalista. Nesse contexto, a casa “brasileira” era considerada um símbolo de status por uma classe de ambiciosos novos ricos, que, em detrimento da escolha de padrões conservadores e tradicionais, buscavam expressões exóticas e estrangeiras, dissociadas da sua origem inferior. Quase 80 anos antes, vimos que esse precedente de superioridade arquitetônica já se estabelecera entre os nativos, com as construções “brasileiras” em Lagos. A utilização de formas arquitetônicas europeias tinha por expectativa a atração do comércio e o estabelecimento de uma hegemonia política sobre a região. Uma segunda onda de difusão se deu na década de 1960 com a independência da Nigéria em relação à Inglaterra. Ela ocorreu entre fazendeiros de forma generalizada, e não tem explicação econômica, mas sim cultural: a casa de estilo “brasileiro” deixava de ser necessariamente um símbolo de status econômico, passando a estar mais intensamente associada ao ideal de uma vida moderna. Durante o século XX, a sociedade tradicional iorubá assimilou muito da cultura europeia e estadunidense, intensificando as mudanças que já tinham se iniciado no final do século XIX. De forma geral, pode-se dizer que “a celebração da vontade pessoal se tornou progressivamente mais pronunciada, não sendo mais contida pelos valores de uma comunidade orientada pela tradição. Com o declínio da tradição, uma nova ordem se instaurou.”96 Por suas características ocidentais em termos de distribuição espacial interna, estética, e pelo estilo de vida que, por consequência, veiculava, a casa “brasileira” foi diretamente associada à participação na nova ordem social da Nigéria moderna, sendo tão 95 96
VLACH, 1984. Op. cit., p. 14. VLACH, 1984. Op. cit., p. 18.
136
entusiasticamente recebida por alguns assentamentos iorubá que, em menos do período de uma geração, cidades térreas transformaram-se inteiramente em cidades assobradadas (Imagens 109 a 111). A cidade de Ikare, na região de Ondo, que possuía 128 sobrados em 1945, passou a ter 1800 em 1961, um número que representava 43% de todas as casas da cidade. Nesse mesmo período de 15 anos, em Emure, esse número passou de 9 para 226; em Ikole, de 32 para 228; e a cidade de Ado-Ekiti ganhou 900 construções.97 Mesmo o mais pobre dos fazendeiros estava inclinado a construir uma casa que evocasse o térreo “brasileiro”. Na menor dessas estruturas encontrava-se uma série de aposentos ligados a um corredor, confirmando o aumento da privacidade e uma maior individualidade entre os iorubás: o elemento externo (visitante) era distanciado dos residentes ao ter que passar por um espaço transitório antes de atingir as dependências íntimas da casa; os residentes, por sua vez, passavam a ter a possibilidade de se evitar, graças à inclusão do corredor no desenho da casa (Imagem 112). Os corredores e vestíbulos sempre foram um aspecto distintivo do desenho “brasileiro” na Nigéria, mas mais do que simplesmente alterarem a distribuição da planta, eles vinham associados a protocolos sociais de compartimentação, de individualização, que, como vimos, já se manifestavam desde 1850 no diferente estilo de vida da sociedade “brasileira”. “A nova arquitetura atendia às necessidades do que entendiam como suas novas vidas, nas quais o comprometimento da individualidade era mais importante do que a obrigação com terceiros. Essa reorientação de valores sociais não era algo consciente, mas com certeza explica em parte o fato de uma específica forma ou aspecto arquitetônicos terem sido adotados de forma tão ampla por tantos níveis sociais: eles satisfaziam uma necessidade profundamente sentida por todos os membros daquela sociedade.”98
97 98
VLACH, 1984. Op. cit., p. 15. VLACH, 1984. Op. cit., p. 18. Ver RAPOPORT, 1969. Op. cit., p. 46.
137
Imagem 109 - Edificações de estilo "brasileiro" na cidade de Ibadan, Nigéria. Foto Tatewaki Nio, 2017.
138
Imagem 110 - Cidade de Ilesha: em primeiro plano e ao fundo, edificações de estilo "brasileiro". Foto Tatewaki Nio, 2017.
139
Imagem 111 - Cidade de Ilesha. Foto Tatewaki Nio, 2017.
140
Imagem 112 - Plantas típicas de casas iorubás contemporâneas: mesmo na menor das estruturas, uma série de aposentos ligam-se a um corredor. A. Conformação simétrica com corredor central, construída para Nimota Aremi em Ifé, 1969; B. Conformação assimétrica com corredor central, Construído por Ganiyu Agbobini em Ajebandele, 1944; C. Conformação com corredor lateral, construído por Moliki Aliu em Iwaro, 1973. Desenho John Michael Vlach.
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Evidentemente, isso não significa que a casa “brasileira” tenha sido adotada tal e qual aquela construída pelos primeiros retornados em 1850: certo que houve iorubás que se apropriaram da casa “brasileira” sem modificações, no entanto a grande maioria a modificou para atender suas necessidades, motivada por precedentes tradicionais. Em alguns casos, o exterior parecia “brasileiro”, no entanto a planta conservava uma sensação de pátio, pela presença de um grande aposento central. Muitas vezes, os balaústres, pilastras e outros elementos decorativos comuns nas casas “brasileiras” viam-se substituídos pelos postes esculpidos e paredes decoradas das casas de chefes tradicionais, uma vez que esses elementos estavam igualmente a serviço da autoridade e estima. No caso de falta de recursos, havia casas que eram construídas sem reboco, e sua cobertura era feita de palha, conservando a aparência externa de uma casa iorubá tradicional, apesar de sua planta ser moderna. Por fim, quando os recursos fossem tão poucos quanto os da menor casa imaginável, seria uma habitação de dois aposentos com um corredor lateral. Essa casa conserva a profundidade, a entrada e o corredor de uma casa “brasileira”, ao mesmo tempo em que utilizava a mesma unidade mínima a partir da qual os “compounds” eram gerados. Em uma estrutura tão mínima quanto essa é possível visualizar como tradição e mudança são unidos no pensamento iorubá: o passado não é perdido e o presente não é ignorado; os aposentos são antigos, o corredor é novo.99 A Ebenezer House e a Olayinka House são exemplos interessantes de serem analisados pois permitem a comparação de diferentes distribuições espaciais internas, ambas organizadas ao redor de corredores, ao mesmo tempo em que atestam a existência de um estilo regional, em termos de técnicas construtivas e ornamentação. A Ebenezer House foi construída em Ikirun, uma cidade 47 quilômetros ao Norte de Ifé, em 1944 (Imagem 113). Ainda existente, a construção trata-se de um sobrado, com uma torre que se projeta para fora, em posição levemente deslocada em relação ao centro da fachada principal, e coroada pela escultura heráldica de um leão (Imagem 114). Segundo Teriba, a escultura é reminiscente dos leões que flanqueiam a entrada do sobrado da família da Silva (Imagem 115), construído em Lagos pelo artesão Santan da Silva, nos anos 1880, e sua emulação pode ter dado início a uma prática que se difundiu por Ikirun e pela região em geral. (Imagens 116 a 119)
99
VLACH, 1984. Op. cit., p. 19.
142
Essa hipótese vê-se corroborada pela visão de Marianno Carneiro da Cunha, que em seu livro “Da Senzala ao Sobrado” trata do “Tema dos Leões”, observando: “O leão foi um elemento decorativo amplamente usado. Bastide100 dedicou um artigo às vicissitudes desse animal de fauna africana que floresceu, esculpido em pedra, nos portais dos sobrados no Brasil (Imagem 120 e 121), como em Lagos, e que acabou se instalando, agora esculpido em gesso e esteticamente islamizado, nos balcões africanos. Símbolo, sugere Bastide, de uma nova elite africana, a burguesia colonial enriquecida, que o usa em contraposição ao leopardo da realeza e das chefias tradicionais.”101
A metade superior da torre interrompe o plano horizontal criado pela varanda, que originalmente via-se decorada por vasos de cimento em ambas suas extremidades (Imagem 122). As paredes, construídas em alvenaria, possuem um acabamento externo completamente diferente daquele dado aos sobrados de Lagos. Feito de uma mistura de areia com argamassa, o revestimento dá à superfície um efeito áspero e rústico ao mesmo tempo em que busca a aparência da alvenaria feita com pedra silhar (Imagem 123). Esse tipo de acabamento foi popular nas comunidades próximas a Ikirun e constitui o que se pode chamar de um estilo regional. Outras construções que apresentavam acabamentos similares foram as Mesquitas Centrais de Erinle e Osogbo (Imagem 124), assim como uma residência também em Osogbo, construída nos anos 1940 por um gerente de construções e comerciante conhecido como Kadiri (Imagem 125 e 127). Diferentemente do sobrado em Ikirun, a residência construída por Kadiri foi erguida em blocos de pedra, e apresentava, em seu interior, um corredor central e uma escada, que levava aos três pavimentos(Imagem 126). Seu cliente havia originalmente solicitado uma construção de dois pavimentos, mas mudou de ideia ao se deparar com um segundo projeto de Kadiri realizado em outra parte da cidade.
100
BASTIDE, Roger. O leão do Brasil atravessa o Atlântico!. In: Estudos Afro-Brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 377-384. 101 CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit., p. 101.
143
Imagem 113 - Ebenezer House em Ikirun, construída em 1944. Foto Adedoyin Teriba, 2011.
Imagem 114 - Escultura heráldica no topo da torre da Ebenezer House em Ikirun. Foto Adedoyin Teriba, 2011.
144
Imagem 115 - Lion House, Lagos. O tema dos leões: esculturas heráldicas de leões posicionadas nos dois lados do arco de entrada inspirariam outras estátuas em reinos ao Norte de Lagos pelos sessenta anos seguintes. Foto Pierre Verger.
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Imagem 116 - O tema dos leões: sobrado em Osogbo. Foto Tatewaki Nio, 2017.
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Imagem 117 - O tema dos leões: sobrado em Ilé-Ifé. Foto Tatewaki Nio, 2017.
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Imagem 118 - O tema dos leões: detalhe sem localização. Foto Pierre Verger.
Imagem 119 - O tema dos leões: detalhe de portal em Osogbo (construção de Kadiri). Foto Pierre Verger.
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Imagem 120 - Casa do Barão de Almeida Lima, Capivari, Brasil. Construção datada da segunda metade do século XIX. O portão de entrada com pilares de tijolos e leões de cerâmica são posteriores à obra. Foto Carlos Lemos.
Imagem 121 - Casa do Barão de Almeida Lima, Capivari, Brasil. Construção de taipa de pilão de porão alto. Foto Carlos Lemos.
149
Imagem 122 - Foto dos anos 1940 da Ebenezer House com vasos nas duas extremidades da varanda. Fonte: “Yoruba Architecture,” Nigeria Magazine, no. 37 (1951).
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Imagem 123 - Detalhe da fachada da Ebenezer House em Ikirun, mostrando balaustrada e aparência áspera e rústica do acabamento feito com uma mistura de areia e argamassa, evocando a aparência da alvenaria em pedra silhar. Foto Adedoyin Teriba, 2011.
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Imagem 124 - Mesquita Central em Osogbo em 2009, provavelmente construída na década de 1940. Fonte: Flickr Online.
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Imagem 125 - Casa de três andares construída por Kadiri em Osogbo nos anos 1940. Fonte: Ulli Beier, “Yoruba Architecture and Wall Painting,”.
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Imagem 126 - Planta-baixa do térreo da casa em Osogbo. Fonte: Nichola Saunders and Austine MerzederTaylor, Susanne Wenger: Her House and her art collection.
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Imagem 127 - Exterior da mesma casa, em 2007. Foto Adedoyin Teriba.
155
O volume projetado de cinco faces na Ebenezer House certamente apresenta ressonâncias com a Ebun House, em Lagos, mas foi, simultaneamente, e preponderantemente, uma referência à torre da Mesquita Central da cidade, localizada na mesma rua (Imagens 128 e 129). No caso da Ebenezer House, contudo, a torre representa uma solução projetual que tem por função expressar a localização das escadas na forma final do edifício. A escada, portanto, vê-se iluminada por um óculo na sua parte superior, e, abaixo, por duas janelas retangulares, que foram posicionadas de forma a estar alinhadas com as janelas localizadas nas paredes recuadas do andar superior. Entre as janelas, na parte externa da torre, identifica-se uma faixa composta por motivos de diamantes preenchidos por pedras de cascalhos, que se estende ao longo das cinco faces. Abaixo do par de janelas retangulares, visualiza-se uma inscrição em árabe, que diz “Al-hamdu li-llah” (“Louvado seja Deus”). Compreensível ou não, as palavras devem ter causado uma impressão nos espectadores locais, conferindo à estrutura um caráter exótico e poderoso. Poderoso porque era um sinal de instrução, o que, por sua vez, anunciava o acesso e domínio do proprietário em relação ao universo moderno e colonial. Nas elevações laterais, o acabamento diferenciado dado ao revestimento de areia e argamassa caracteriza-se pela repetição contínua de semicírculos que se assemelham à balaustrada arqueada na varanda (Imagem 130). Esses desenhos à moda de arabescos amplificam a vinculação da construção ao universo islâmico. Os trabalhos realizados nas paredes e balcões são atribuídos ao trabalho manual do agudá Lázaro Borges da Silva e seus aprendizes, que residiam na região. Lázaro Borges da Silva mudou-se para Ibadan - cidade cerca de 100 quilómetros a sul de Ikirun - na virada do século XX, e, junto de um carpinteiro agudá conhecido como Bernardo, construiu diversas casas e treinou inúmeros aprendizes.102 Paralelamente, outros notáveis artesãos e construtores da região aprenderam seus ofícios na Bahia, tendo partido do Daomé. Quando retornavam, implementavam suas novas habilidades na indústria da construção que englobava o Daomé, o sudoeste nigeriano e a Costa do Ouro103. Além do domínio dessas novas técnicas, eles foram responsáveis por introduzir novos elementos em seus edifícios, entre os quais estavam: painéis 102
Alguns desses aprendizes eram simplesmente conhecidos como Ṣódẹὶ̀ ndé, Samuel, Julius, e Alhaji Rafiu Ọdúnlàmi (CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit., p. 80). 103 TERIBA, 2017. Op.cit., p. 150.: “Para informações sobre construtores itinerantes entre a Nigéria, República Popular do Benim e Gana nesse período, ver Alan Vaughn-Richards, "Le Nigéria," in VAUGHN-RICHARDS, Alan. Le Nigeria. In: SOULILLOU, Jacques. Rives Coloniales: Architectures, De Saint-Louis à Douala. Marseilles: Editions de l'Orstom, 1993, p. 265.”
156
de portas, balaustradas, treliças e venezianas, além de tabeiras para acabamento dos telhados. Essa informação é interessante na medida em que reitera a múltipla proveniência dos elementos introduzidos em relação à arquitetura de Lagos: as influências locais se desenvolviam em meio à perpetuação de diálogos com o universo ocidental. Pensando nisso, Teriba reflete sobre uma possível sobreposição de signos nas fachadas laterais da Ebenezer House: talvez houvesse ali, para além da referência islâmica, um desejo de superar a tradição das paredes de silhar. Tratava-se de um acabamento que simultaneamente ecoava e excedia a antiga técnica de alvenaria que foi por muito tempo uma fonte de inspiração para os imigrantes africanos no sudoeste nigeriano. “Especulando ainda mais, poderia-se conjecturar que os agudás e os locais tivessem associado as paredes de silhar com os colonialistas britânicos e a comunidade de Ikirun queria expandir as possibilidades visuais de sua aparência [das paredes de silhar] para se adequar aos gostos locais.”104
Um estudo da distribuição interna do edifício, baseado na planta desenhada por Teriba em uma visita à casa em 2011 (Imagens 131 e 132), revela paralelos claros com a casa colonial brasileira, que se manifestam por meio de um corredor que, tanto no térreo, quanto no segundo pavimento, servem como uma espinha dorsal que avança até os fundos da construção. O corredor estrutura e distribui os espaços, dividindo as áreas de cada pavimento em dois conjuntos de quartos. A escada vê-se encerrada pela torre, atestando a prática, inspirada pelos construtores agudás, de posicionar a escada no centro da construção. Prática essa que, por sua vez, ressoa à tipologia da casa de planta simétrica, originalmente brasileira. Os espaços comunais da casa reúnem-se ao redor da escada em ambos os pavimentos, tornando essa região o novo ponto de encontro por excelência, em substituição ao espaço do pátio central.
104
TERIBA, 2017. Op. cit., p. 152.
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Imagem 128 - Vista aproximada da torre da Ebenezer House e das varandas que partem dos seus dois lados. Foto Adedoyin Teriba, 2011.
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Imagem 129 - Vista da Mesquita Central de Ikirun, localizada na mesma rua da Ebenezer House. Foto Adedoyin Teriba, 2011.
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Imagem 130 - Elevação lateral da Ebenezer House. Foto Adedoyin Teriba, 2011.
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Imagem 131 - Desenho de Adedoyin Teriba da planta-baixa do térreo da Ebenezer House, baseado em visita feita ao local em 2011.
Imagem 132 - Desenho de Adedoyin Teriba da planta-baixa do piso superior da Ebenezer House, baseado em visita feita ao local em 2011.
161
A Olayinka House, por sua vez, foi construída em Ife, em 1929, provavelmente por um arquiteto agudá (Imagens 133 a 135). Seu proprietário, J. S. Olayinka, fazia parte na época de um grupo de fazendeiros de cacau que competiam entre si sobre quem, dentre os ricos cidadãos membros desse grupo, construiria e possuiria a maior estrutura. O raciocínio por trás disso era o de que um empreendimento como esse beneficiaria seus respectivos comércios de cacau105. A casa possuía adicionalmente um átrio junto ao sistema de corredor, talvez para que a família Olayinka pudesse afirmar sua modernidade. O desenho feito por Vlach da planta do térreo em 1974 (Imagem 136), revela o corredor, mais uma vez, como elemento estruturante e distributivo que, nesse caso, também tinha por função conduzir a esse espaço central que lembrava um pátio.106 Na cobertura, duas águas-furtadas garantiam a entrada de luz natural no átrio, que, ademais, permanece fechado para o exterior. Os aposentos presentes no térreo gradualmente reduziam de tamanho, em ambos os lados do corredor e ao redor do átrio, à medida em que se avançava em direção aos fundos da construção. Essa solução projetual, que provavelmente deve ter sido duplicada no andar superior do sobrado, leva-nos a pensar se esses quartos localizados ao fundo da construção não teriam sido destinados às atividades mais privativas. Se esse fosse o caso, o decrescente fluxo de pessoas entre aposentos à frente do edifício e aqueles localizados mais ao fundo revelaria a direção em que o arquiteto desejou que se desse a transição entre espaços públicos e privados. Seguindo esse raciocínio, o átrio/pátio introduzido pelo arquiteto servia como uma barreira, impedindo que os visitantes avançassem para além daquele espaço. O exterior da construção possui um acabamento em argamassa, que muito provavelmente cobre paredes de alvenaria em tijolo. Além disso, notam-se na fachadas elementos que apontam a influência da Arquitetura Agudá de Lagos sobre a edificação: as pilastras e o arco que enfeitam a entrada principal da casa, o motivo floral que coroa as molduras das janelas, assim como os volumes modelados sob as janelas superiores, são similares a exemplos encontrados em casas em Lagos.
105
VLACH, 1984. Op. cit., p. 14. Fazendo um paralelo, poderia-se dizer que essa solução de recúo da intimidade também fora adotada em Lagos, na Casa da família Pereira (Imagens 41 a 43).
106
162
Imagem 133 - Olayinka House em Ifé, construída em 1929. Foto John Michael Vlach, 1974.
163
Imagem 134 - À esquerda, Olayinka House em Ifé, construída em 1929. Foto Pierre Verger.
164
Imagem 135 - À esquerda, Olayinka House em Ifé, construída em 1929. Foto Tatewaki Nio, 2017.
165
Imagem 136 - Planta-baixa do térreo da Olayinka House. Desenho de John Michael Vlach, 1974.
166
Devidamente caracterizadas e analisadas, interessa-nos, tal qual proposto por Teriba, comparar essas duas construções, de forma a ilustrar a variabilidade, assim como as semelhanças, existentes nas soluções residenciais encontradas por arquitetos agudás do sudoeste nigeriano. Primeiramente, estabeleceremos essa comparação em termos da lógica das plantas dessas construções. Diferentemente do que ocorre na casa tradicional iorubá, que, por apresentar uma natureza conglomerativa, define-se como uma série de aposentos adicionados em sequência, subjaz ao projeto da Ebenezer House, assim como na Olayinka House e, por que não à Arquitetura Agudá como um todo, a noção de predeterminação: a organização interna dessas construções não considerava expansões futuras. Pré determinava-se um número específico de aposentos que se anexariam ao núcleo central representado pelo corredor que, de caráter axial, reciprocamente prevenia a adição de mais aposentos à construção. Revela-se nesse ponto uma interessante complementaridade de visões entre Teriba e Conduru. Teriba argumenta que esse senso de finalidade que definia a casa agudá em contraposição às formas tradicionais iorubás levou os arquitetos a adotarem preferencialmente formas básicas e compactas, como quadrados e retângulos, para suas construções a interior do território, na medida em que essas formas permitiam a existência de átrios centralizados - onde se desempenhavam atividades de caráter semi-privado, que, como já vimos, foram de extrema relevância para a aceitação e difusão dessa arquitetura. Conduru, tratando da evolução da forma arquitetônica agudá desde o período de sua introdução em Lagos, diz que as primeiras edificações apresentavam caráter mais austero, na medida em que apresentavam relações formais mais claras com as residências senhoriais da economia do açúcar: volumes com formas regulares (formados a partir de retângulos e quadrados) e fachadas já adornadas com arcadas, molduras de vãos e outros elementos em linguagem greco-romana. Conduru reconhece que, com o tempo, outras referências foram incorporadas a essa arquitetura, e as alusões ao universo rural brasileiro caíram em desuso, levando ao surgimento de outras volumetrias, “um pouco mais variadas, menos monolíticas, compostas pela articulação de espaços derivados de retângulos, quadrados, círculos e outros polígonos”107, e à manutenção da referência à cultura greco-romana nos elementos arquitetônicos e decorativos.
107
CONDURU, 2012. Op. cit., p. 148.
167
Resta-nos relativizar ambas as visões e entender em que medida elas se complementam. Conduru, ao falar no surgimento de outras volumetrias, fala na articulação de novos volumes, e não na transformação do volume principal, o que se observa com clareza quando comparamos, por exemplo, a Water House, em Lagos, com a Ebun House, ou com a casa em Osogbo construída por Kadiri, ou ainda com a Ebenezer House. Apesar de elas por vezes apresentarem volumes que sobressaem ao corpo principal da construção, suas plantas mantêm a organização herdada das casas brasileiras do tempo do açúcar, constatação que se vê corroborada pela tese de Marianno, na qual ele defende que a planta que mais se popularizou a interior do território nigeriano foi a planta de casa simétrica - uma planta de forma essencialmente regular. Teriba, por sua vez, fala que houve uma preferência por plantas compactas, mas isso também não era necessariamente uma regra, até porque os arquitetos agudás faziam seus projetos “sob medida”, de acordo com os interesses de seus clientes - fator que mais uma vez confirma o caráter predeterminado dessas construções. Voltando à comparação entre a Olayinka House e a Ebenezer House, um segundo elemento a ser observado é justamente a função coletiva atribuída ao átrio presente na Olayinka House. A existência das águas-furtadas no centro da construção ressaltam a função atribuída a esse espaço na medida em que o transformam num espaço de convivência. Fortalecendo tradições passadas pelos seus antecessores iorubás, o átrio ecoa o espaço do pátio existente nas construções tradicionais da região, sem, no entanto, representar uma equivalência, na medida em que nenhuma parte da Olayinka House era aberta para o céu. Ali, podiam ser desempenhadas atividades de caráter semi-privado e familiar, como o ato de uma mãe pentear os cabelos de sua filha. A renúncia do átrio no caso da Ebenezer House revela, por sua vez, em que medida o arquiteto desejava associar o proprietário do sobrado, um negociante muçulmano, a um universo de riqueza e sofisticação cultural. Sua desvinculação da tradição do pátio central - ou de releituras do mesmo - era uma forma de atestar sua modernidade, e de se remodelar frente aos locais. Ambas as construções representam bons exemplos de como a visão progressista dos arquitetos imigrantes indiretamente reforçou e expandiu a influência de certos indivíduos no interior, afetando o percurso e as vidas de indivíduos em muitas comunidades. Essas posições eram, como vimos, acima de tudo reforçadas ou até mesmo criadas pelos esteticismo forjado pelos construtores e proprietários em um cenário de competitividade. 168
Dessa forma, os dois edifícios em questão são relevantes na medida em que materializaram o poder e influência almejado por seus proprietários em formas tangíveis, ao incorporar signos de diversas origens culturais e assim superar o vocabulário do universo construtivo moderno introduzido pelos agudás.108
108
TERIBA, 2017. Op. cit., p. 156.
169
5. Conclusões 5.1. Arquitetura “brasileira" x arquitetura colonial britânica: Por que a escolha dessa forma arquitetônica em detrimento de outras? Nesse momento, faz sentido relembrar que apesar de a casa “brasileira” ter sido, com o tempo, adotada por uma maior parte da população, ela foi, num primeiro momento (em 1930), selecionada pelas classes sociais mais abastadas para fins de simbolização de seu status social. Nesse sentido, vale questionar por que, nesse primeiro momento, a casa de estilo “brasileiro” foi escolhida em detrimento de outras formas arquitetônicas ocidentais também ali presentes. A arquitetura colonial inglesa (Imagem 137) estava à disposição para cópia tanto quanto a “brasileira”, e, a princípio, poderia se imaginar que a estratégia de adoção de um símbolo colonial somado à sua remodelagem a partir de preferências nativas poderia ser uma boa forma de se valer da cooptação da autoridade colonial, autoridade esta que o iorubá ascendente tanto almejava. Além disso, considerando sua forma isoladamente, poderíamos concluir precipitadamente que ela teria sido usada como modelo para as casas contemporâneas iorubás109. No entanto, esse não foi o caso. Retomando as supracitadas ideias de Rapoport, relativas à importância dos imperativos culturais no fornecimento de critérios para as construções arquitetônicas: o presente relatório buscou, a partir da compreensão das formas vernaculares tradicionais e da concepção de espaço a elas imanente, entender em que medida a forma arquitetônica introduzida pelos “brasileiros” (em sua configuração primeira) delas se distanciava. Pois é a partir dessa relação original que se poderão depreender os imperativos culturais subjacentes à atitude iorubá na incorporação de novas técnicas e estilos à sua forma arquitetônica. Verificam-se, em meio a todo o conteúdo levantado, dois principais motivos que poderiam explicar a transição natural da arquitetura vernacular iorubá em direção à arquitetura “brasileira”.
109
As casas eram inicialmente de um pavimento construídas sobre palafitas, com seu pavimento inferior posteriormente preenchido com aposentos adicionais. No térreo, a sala de estar, jantar dando para uma varanda, e no pavimento superior os dormitórios e escritório. Suas plantas lembravam a tradicional “Engligh Ihouse”, modificada pelas varandas, devido ao clima. A maioria era pré-fabricada na Inglaterra, completa, exceto pela areia para argamassa. Para os fazendeiros iorubá, certamente não foi o valor da importação da casa que deteve os mais ambiciosos, uma vez que a casa “brasileira” também requeria a aquisição de uma quantidade considerável de materiais importados. (VLACH, 1984. Op. cit., p. 15).
170
Imagem 137 - Planta-baixa da casa de um oficial do governo colonial em Lagos desenvolvida pelo Public's Works Department, em 1911. A casa é basicamente um bloco retangular circundado por varandas com tela. Na ala de serviço à esquerda estão, a partir da escada em direção aos fundos: um banheiro, a dispensa, a cozinha, a garagem, o quarto de serviços e um estábulo. Desenho de John Michael Vlach a partir de MILLER, N.S. The beginnings of Modern Lagos: Progress Over 100 years.
171
O primeiro deles é explicitado por Marianno Carneiro da Cunha em sua pesquisa e refere-se às correspondências tipológicas entre as duas formas arquitetônicas. Havia uma coincidência, de certa forma casual, entre a organização espacial da planta da casa “brasileira” e da planta do “compound” iorubá. Comparando-se a casa-de-três-pernas (Imagem 138) e uma casa “brasileira” geminada urbana (Imagem 139), verifica-se que suas plantas são praticamente as mesmas, diferenciando-se apenas por suas qualificações espaciais. A planta da casa simétrica (Imagem 140), isto é, basicamente a ampliação da casa geminada, foi justamente a que mais agradou os iorubás, penetrando de forma predominante no interior do território. Mesmo assumindo múltiplas tipologias, as construções em território africano obedecem ao esquema espacial da casa simétrica brasileira (Imagens 141 e 142), que se assemelha essencialmente ao núcleo da arquitetura do “compound” iorubá (Imagem 143): uma grande área central, dotada de uma entrada principal, e circundada por unidades de moradia (os quartos), interligadas entre si por um longo corredor ou varanda. O pátio, agora convertido em corredor, manteve-se, apesar de sua limitação dimensional, como o foco para o qual convergia toda a vida do “compound” isto é, manteve-se, por definição, como o local do convívio social da casa “brasileira”110. No entanto, correspondências tipológicas não são suficientes para explicar a questão, visto que, como já se observou, a arquitetura colonial inglesa também estava disponível para cópia, e no que toca a sua forma, assemelhava-se muito à casa contemporânea iorubá. Evidencia-se assim um segundo motivo para a incorporação da arquitetura “brasileira” à cultura arquitetônica iorubá, definido por Vlach como “ocidentalização sem submissão”. Vlach explica que, aparentemente, as casas britânicas eram censuráveis em dois níveis: além de estarem ligadas à dominação colonial, eram decoradas de forma antiga e antiquada. Por contraposição, a casa “brasileira”, por ser a criação de primos iorubás há muito tempo perdidos, parecia uma escolha mais acertada, pois, mesmo que não fosse tão bem adaptada às condições tropicais quanto a casa colonial britânica, podendo apresentar algumas deficiências ecológicas (como quartos internos sem ventilação), sua decoração requintada tinha um estilo e maneira que se aproximavam da exuberância da arte tradicional iorubá. Além disso, em 1930 e 1940 já fazia quase 100 anos que esse tipo de casa fazia parte da paisagem cultural do sudoeste nigeriano. Em suma, apesar das casas da elite inglesa serem altas e impressionantes, a busca da nova elite iorubá era por casas altas e extravagantes.
110
CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit., p. 107.
172
Imagem 138 - Planta da tradicional "casa-de-três-pernas". Desenho de John Michael Vlach.
Imagem 139 - Planta de uma típica construção urbana do Brasil colonial (apenas metade, ou rebatida). Desenho de Nestor Goulart Reis Filho.
173
Imagem 140 - Esquema da casa de planta simétrica. Tipologia da arquitetura colonial brasileira que mais se espalhou em território iorubá. No Brasil, era mais popular a aplicação de apenas metade da planta, devido à predominância de casas urbanas geminadas; já em território iorubá, popularizou-se sua versão rebatida. Desenho da autora a partir de Marianno Carneiro da Cunha e Manuela Carneiro da Cunha, "Da Senzala ao Sobrado".
174
Imagem 141 - Alguns exemplos de plantas típicas de casas iorubás contemporâneas: a versão com corredor central é preponderante, no entanto a simetria não se revela necessariamente uma constante. Desenho de John Michael Vlach.
175
Imagem 142 - Planta da Olayinka House, com corredor, átrio central e distribuição relativamente simétrica dos aposentos, a não ser pela escada ao fundo e à esquerda. Desenho de John Michael Vlach.
176
Imagem 143 - Planta de um compound tradicional, conformado a partir da organização de múltiplas unidades em torno de um pátio central. Desenho de John Michael Vlach.
177
Pode-se dizer que, na busca por algo que fugisse ao tradicional (que remetia às suas origens inferiores), os iorubás estivessem optando por expressões exóticas e estrangeiras, contudo, esse não foi necessariamente o caso: a casa “brasileira” fornecia um jeito familiar de ser ostentoso, orgulhoso e moderno, independente dos ditames do governo colonial. Ela era sociológica, política e esteticamente apropriada. Estando posicionada na metade do caminho entre os mundos europeu e africano, representava uma escolha acertada em termos de motivos culturais (“cultural grounds”) para um povo nativo que se deslocava em direção a esse meio termo.111 Foi porque os iorubá perceberam que poderiam se apropriar da casa “brasileira”, refazendo-a ou extraindo dela aquilo que gostavam, que eles a adotaram tão entusiasticamente para sua vida moderna. Em vez de seguir os ditames culturais do meio colonial, os iorubá acharam uma maneira de reafirmar seu controle. Suas casas do século XX mostram que eles aceitaram a modernidade não a partir da adoção direta das metáforas europeias, mas sim experimentando com as ideias europeias à medida em que estas eram filtradas pela experiência de uma população hospitaleira. Eles mudaram, mas não da maneira que lhes era esperada. A presença, improvável, mas crucial, da comunidade “brasileira” lhes ensinara como era possível aceitar algumas maneiras dos homens brancos sem sucumbir totalmente às mesmas: as maiores mansões eram europeias em aparência, mas não britânicas; a menor das casas era nova, embora ainda conservasse quartos familiares. Em toda a sociedade iorubá, descobriu-se que havia algo na arquitetura “brasileira” que era ou o que eles já queriam ou era como o que eles já conheciam112. Por fim, emprestando a reflexão proposta e respondida por Vlach em “Brazilian House in Nigeria”, questiona-se: como as tradições mudam? Como novas tradições têm início? Formas antigas persistem, muitas vezes inertes, apesar de sua passagem pelos anos. No século XX na África Ocidental, verificou-se que o balanço entre tradição e mudança convergiu para a mudança. O exemplo da casa “brasileira” na Nigéria sugere que, mesmo quando as pressões em favor da mudança são inevitáveis, as sociedades tradicionais ainda lutam para ter o controle das suas vidas: ao buscar as mudanças eles mesmos, os iorubás garantiram que a experiência do novo assumisse uma feição familiar, resultando na apropriação de casas que eles entendiam e aceitavam, em detrimento de outras formas arquitetônicas, que se revelariam estranhas e 111 112
RAPOPORT, 1969. Op. cit., p. 48. Citado em VLACH, 1984. Op. cit., p. 16. VLACH, 1984. Op. cit., p. 21.
178
opressoras. “Quando uma nova forma cultural serve tanto os precedentes do passado quanto as expectativas do presente, ela está então destinada a ganhar um lugar favorecido na vida de uma comunidade e a virar uma nova tradição”113. 5.2.
Quais
os
imperativos
culturais
subjacentes
ao
fenômeno
arquitetônico em questão? Uma vez apresentados todos os argumentos, fatos e ponderações, faz-se o momento de sistematizar a resposta à questão colocada ainda no início do texto: quais seriam os imperativos culturais subjacentes ao fenômeno arquitetônico representado pela Arquitetura Agudá no sudoeste nigeriano? Leva-se em consideração, para a realização primeira dessa questão, a premissa de que a organização espacial de uma sociedade é menos o resultado de desejos individuais do que das necessidades e desejos de uma coletividade. A Arquitetura Agudá, apesar de representar uma solução arquitetônica muito distante das formas tradicionais, curiosamente não representou uma ameaça às formas de organização espacial existentes, o que significou que o processo de modificação da arquitetura local se deu de forma não disruptiva. Muito da resposta dessa pergunta parte do entendimento de que a adoção dessa forma arquitetônica se deu, antes de tudo, como um reflexo às mudanças que já haviam se dado nas organizações social, política e econômica da região. A arquitetura, que já estava disponível, representou uma confortável e conveniente forma de adequação da organização espacial a esse novo modo de vida em questão. Contribuíram para que esse processo se desse de forma não disruptiva, uma condição principal, da qual derivam duas circunstâncias necessárias: a condição, explorada no item anterior dessa conclusão, diz respeito à familiaridade. Seja em nível tipológico - entre a arquitetura “brasileira” e as formas arquitetônicas tradicionais iorubás; como em nível ideológico - entre o que a arquitetura “brasileira” representava simbolicamente e a identidade almejada pelos iorubás no seu processo de inserção na Nigéria moderna. Interessa-nos resgatar nesse momento a resposta apresentada por Vlach, no final de sua argumentação, às perguntas: “como as tradições mudam?”, e “como novas tradições têm início?”. Segundo o autor, a condição sine qua non para uma nova forma ganhar um lugar
113
VLACH, 1984. Op. cit., p. 21.
179
favorecido na vida de uma comunidade e, assim, virar uma nova tradição, é a de que ela sirva, simultaneamente, tanto os precedentes do passado quanto às expectativas do presente. Evidenciam-se nessa condição, portanto, duas circunstâncias necessárias: a primeira delas é a de que a forma tradicional em questão (e tudo que lhe é subjacente) deve estar aberta a mudanças; a segunda é a de que a nova forma introduzida deve estar em diálogo com as préexistências - ou seja, mesmo que não as reproduza, deve reconhecer sua existência. Ambas as circunstâncias podem ser claramente identificadas no fenômeno em questão: de um lado, tem-se a arquitetura tradicional iorubá, que estava aberta ao desenvolvimento técnico114, assim como o estava a sociedade iorubá em sua busca por se adaptar ao universo moderno; do outro, tem-se uma forma arquitetônica que majoritariamente se consolidou devido à sua forma híbrida, que unia modernidade a elementos locais. À respeito dessa capacidade receptiva, Teriba diria: “eles [os edifícios híbridos] eram símbolos modernos em sociedades que queriam ser desenvolvidas”115. E, enquanto signos de modernidade, funcionavam em sentido amplo: formal, técnico e sociocultural. Pode parecer estranho associar essa forma arquitetônica à modernidade, mas foi o que ela significou naquele contexto. Essa dimensão modernizante tampouco é associada à arquitetura da economia do açúcar no Brasil - forma geradora desta arquitetura na África. Mesmo assim, é interessante pensar como essa forma arquitetônica possa representar um desdobramento do processo modernizante vivido no Hemisfério Sul a partir da presença portuguesa no mundo, iniciado no século XV. E, possivelmente, interpretada como um “desdobramento de um fluxo anterior de modernidade”, se pensarmos que novas ondas de modernidade artística se instauravam em outros contextos. O que não significa que ela seja uma modernidade “en retard”, atrasada, mas faz-nos refletir sobre como a modernidade arquitetônica e artística é, na verdade, relativa ao contexto no qual o fenômeno se apresenta.116 Mesmo nos seus primeiros exemplos construídos em Lagos, a Arquitetura Agudá representou uma solução espacial e formal de caráter eminentemente moderno frente ao contexto local. Para que se conseguisse, por um lado, entender quais eram as referências dessa forma arquitetônica e, por outro, compreender a sua posição cambiante de elemento de estrangeirismo a símbolo de prestígio frente à população local, optou-se por setorizar essas
114
CUNHA; CUNHA, 1985. Op. cit., p. 83. TERIBA, 2017. Op. cit., p. 161. 116 CONDURU, 2012. Op. cit., p. 149. 115
180
manifestações modernas em duas categorias: a primeira referente às soluções internas da arquitetura e a segunda, às soluções externas. Por soluções internas entendeu-se sobretudo aquela da distribuição interna dos aposentos. Explorou-se adicionalmente em que medida esse aspecto não seria um reflexo direto da relação do edifício com o lote urbano, também este um conceito moderno no contexto local. Por soluções externas, por sua vez, entendeu-se aquelas que afetaram os desenhos externos dos edifícios, as aberturas e ornamentações. Uma categorização portanto que se viu muito influenciada pelo discurso de Marianno Carneiro da Cunha, no qual ele afirma que as modificações e inovações introduzidas localmente afetariam principalmente o desenho externo dos edifícios, enquanto a distribuição interna se manteria essencialmente a mesma daquela da “casa de planta simétrica”, surgida na arquitetura colonial brasileira. Apesar de essa afirmação não ser completamente verdadeira, adotou-se essa categorização por ela possibilitar uma demonstração clara da participação fundamental da arquitetura brasileira no desenvolvimento do fenômeno em questão. Sendo uma das motivações do trabalho entender o que de brasileiro havia na arquitetura “brasileira" na Nigéria, essa opção mostrou-se relevante. Complementarmente, e buscando evitar a consolidação de uma visão demasiadamente unívoca na opção por essa sistematização, relativizaram-se “verdades" a esse respeito. É verdade que a “planta simétrica” se difundiu território adentro, mas ela tampouco permaneceu intocada, e suas formas finais foram resultado, tanto quanto os desenhos externos dos edifícios, do intercâmbio de referências de proveniências diversas. Ainda nessa dualidade entre soluções modernas internas e externas, buscamos entender de que forma elas, em conjunto, representaram soluções para problemas surgidos no interior da Nigéria a partir do início de sua modernização. A apropriação por parte dos locais sobretudo dos elementos da fachada do edifício pode sugerir, num primeiro momento, que os aspectos visuais tiveram maior relevância nesse processo de difusão da forma arquitetônica. No entanto, o trabalho buscou revelar em que medida essa ampla difusão não teria sido possível caso não houvesse um interesse por parte dos locais em uma nova forma de organização interna da vida doméstica. Apesar de não ser o elemento que necessariamente comunicou uma nova condição de poder político e econômico, a distribuição interna da casa “brasileira" teve papel substancial no seu processo de difusão na medida em que possibilitou o novo modo de vida que subjazia a essa transformação. 181
Dessa forma, entende-se que as soluções modernas internas apresentadas por essa arquitetura tiveram um papel substancial na sua difusão, enquanto as externas tiveram um papel definidor. Por “definidor” não se quer dizer menos relevante, mas apenas fazer uma oposição a “substancial”, que aqui busca comunicar a importância de algo que não necessariamente é facilmente perceptível. As soluções externas, por outro lado, estavam na ordem do visível, e sua aceitação estava a todo momento em debate. O diálogo com as pré-existências, sugerido por Vlach como circunstância imprescindível para que uma forma se torne uma nova tradição, ocorria nas duas soluções, mas seria apenas na externa que ela se tornaria palpável, tangível. Foram as traduções acima de tudo locais dessas tendências de modernização, as estéticas híbridas das arquiteturas europeia, americana e africana que moldavam o exterior desses edifícios, que tornaram possível essa difusão em última instância, e por isso a opção pela palavra “definidor”. O trabalho revelou como agudás e nativos realizaram seus sonhos e ideais em termos materiais por meio de uma arquitetura sobre a qual eles detinham a última palavra, e que simbolizava, simultaneamente, seus desejos: de se sentir em casa nos reinos do sudoeste nigeriano, e de criar espaços através dos quais eles poderiam remodelar suas identidades.
182
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