Cy Twombly

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Cy Twombly


1928, Lexington2011, Roma Cy Twombly (Edwin Parker Twombly Jr.) nasceu em 1928, em Virginia, nos Estados Unidos. Foi estudando na Art Student’s League, em Nova Iorque, que conheceu seu grande parceiro de carreira e de vida, Robert Rauschenberg. Sua primeira exposição ocorreu em 1951, também em Nova Iorque, na Kootz Gallery. Nessa época, seu trabalho era influenciado sobretudo pelo Expressionismo Abstrato de Franz Kline e pelas imagens alusivas ao universo infantil de Paul Klee. Em 1952, partiu, com apoio do Virginia Museum of Fine Arts, em viagem para o Norte da África, Espanha, Itália e França. Em seu retorno, em 1953, serviu no Exército como criptologista. Entre 1955 e 1959, trabalhou em Nova Iorque e na Itália, acabando, por fim, por se estabelecer em Roma, onde permaneceria até o final de sua vida. Esse momento representou um ponto de inflexão em sua obra, visto que seu distanciamento em relação ao Expressionismo, que outrora tanto o cativara, cedeu lugar a uma abordagem artística em maior escala, em que textos e números utilizados de forma literal passavam a assumir protagonismo. Já em 1964, foi convidado a expor seu trabalho na Bienal de Veneza. Em 1968, teve montada sua primeira retrospectiva, no Milwaukee Art Center, e foi, a partir de então, amplamente homenageado.



O infantil em TW: antes do homem, a criança; antes da arte, o artista A obra de Twombly é, por muitos, encarada à primeira vista como infantil: “meu filho poderia fazê-lo”, diriam muitos. Esse é um tipo de comentário que não se dirige a TW de forma específica; na realidade, ele ecoa uma das mais clássicas colocações a respeito da arte moderna. Pois bem: a obra de TW, de fato, está relacionada com rabiscos de crianças, no entanto, de uma forma mais complexa e indireta do que a princípio se imaginaria. Esse aspecto, em verdade, já vinha sendo incorporado à arte moderna há algum tempo. Henri Matisse, Vassily Kandinsky, Paul Klee e muitos outros vinham estudando as formas de representação infantil com muito interesse e foi aí que encontraram elementos para sustentarem suas novas formas de representação frente àquilo que era defendido pela academia. Em seguida, os Surrealistas relacionaram a infância às experiências irracionais do libido adulto, e olharam para o grafismo como maior evidência dessa relação.


TW herdou tudo isso, tendo sua reflexão já partido do conhecimento de que uma arte potente poderia vir de elementos que a princípio poderiam ser considerados desordenados ou até distantes daquilo que era entendido por artístico. O desafio era, então, tecer uma nova linguagem a partir dessa desordem aparente - linguagem essa que respondesse aos seus anseios enquanto indivíduo e que dialogasse com o que vinha sendo proposto enquanto experiência moderna. Sua produção da década de 1950 herdou aspectos do Surrealismo: voltou-se à exploração do inconsciente (mediante a inovadora forma de escrita de Jackson Pollock), e adotou algo de indolente, um aspecto “vândalo” das scarred surfaces (VARNEDOE, 1994) (superfícies

Academy, 1955, oil-based house paint, pencil, colored pencil, and pastel on canvas

marcadas) e das primitivas figurações de Jean Dubuffet. De alguma forma, a obra de TW constituiu-se da união da escala e da abstração da escola novaiorquina de De Kooning e Pollock com a serenidade da arte europeia de Dubuffet. TW expunha em seu trabalho finas camadas de lápis, cujos traçados eram nervosos e episódicos - não se via mais a expulsão catártica de uma angústia existencial (como se via na escola novaiorquina), ou as gestuais pinceladas cheias e decididas do Expressionismo Abstrato. O que antes fora encarado de forma

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densa, agora era retratado de forma, a um só tempo, compulsiva e hesitante - isto é, infantil. Constituia-se mediante formas desfiguradas, conflituosas em sua sobreposição e cujo conjunto não estava dotado de um propósito específico: o elemento juvenil se manifestava em impureza e desordem. Apenas cinco anos depois, o Expressionismo gestual voltou ao trabalho de TW. No lugar dos rabiscos secos a lápis e superfícies marcadas, entrou em cena uma matriz repleta em matizes. A explosão em cores podia ser associada à fase Pop da pintura americana, apesar de sua maior influência ser marcadamente europeia, seja em suas referências à mitologia antiga nos títulos de sua obra, seja em sua admiração pelos pintores expressionistas, evidenciada pela particular sensualidade de suas obras do período. Sua mudança para Roma em 1957 e sua exposição para o que ele viria a chamar de “infantile” indulgence (VARNEDOE, 1994) , dada pela vida mais sensível e instintiva na cultura mediterrânea, representaram um impulso importante no que diz respeito a sua adoção de uma nova técnica de pintura (diretamente com as mãos) e à incorporação de novos tons ao seu trabalho. A série black-boards produzida na década de 1970 em Nova Iorque apresenta, por outro lado, características relacionadas à infância completamente diversas. Preenchidas por marcas repetitivas e contínuas, as pinturas parecem ser uma resposta aos efeitos do Minimalismo. A série de telas cinza e brancas foi especialmente bem recebida pela crítica americana, apesar de, ironicamente, ter sido esse trabalho redutor, sem cor e linear que conduziu Twombly, quase que diretamente, de volta às largas ambições de um Expressionismo Abstrato já ultrapassado.

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Untitled, 1970, collage: (postcard, drawing paper, transparent adhesive tape), pencil, wax crayon, ink

Study for Treatise on the Veil, 1970, collage: (glossy paper, masking tape, transparent adhesive tape), wax crayon, pencil, ballpoint pen, ink

Leda and the Swan, 1962, oil, pencil, and crayon on canvas


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Untitled, 1969, oil paint, wax crayon

Untitled, 1967, oil-based house paint, pencil, wax crayon


Entre o real e o simbólico Como compreender a escrita presente na arte de TW? Em que medida ela é deve ser interpretada? Em que medida ela é interpretável?

Lacan diz que concebemos apenas parcelas do real, e que o real enquanto estigma não se liga efetivamente a nada, uma vez que não é atribuído de significado - é insignificante. No plano da escrita, diria-se que as palavras são atribuídas de sentido, ocupando a posição de significantes, assumindo assim o campo do simbólico. Enquanto isso, a letra corresponde à materialidade que é suporte do significante, ao real em seus fragmentos (e, portanto, não dotada de significado). A “secundariedade da letra”, nesse sentido, deve-se a sua morada material, ao fato de só poder ser percebida uma vez que já se tenha passado pela dimensão do significante. Giorgio Agamben (2015), teórico italiano, por sua vez, propõe a distinção entre duas partes da imagem: a imago (que deve ser entendida como a “máscara” da imagem, sua parte imutável e que, assim, corresponde ao campo do simbólico) e a dynamis (parte em transformação, que corresponde ao âmbito do real). Essa distinção se deve ao fato de que o cinema teria sido responsável por trazer à tona na imagem sua dimensão enquanto gesto - a imagem no cinema é uma imagem em movimento, e, portanto, desafia a anterior noção de divisão psicológica entre imagem


como realidade psíquica e movimento como realidade física. A liberação da imagem por parte de sua dimensão gestual, de acordo com Agamben (2015), dáse mediante à sua introdução na esfera da ação - a imagem, a partir de então, abandona sua dimensão estática de símbolo (fim) e se constitui enquanto processo. O gesto, nesse sentido, é definido por Agamben, como um meio puro, um meio que é, por si só, absoluto, sem a pretensão de tornar-se um fim.

“uma finalidade sem meios é tão alienante quanto uma medialidade que só tem sentido em relação a um fim (…) o gesto é a exibição de uma medialidade, o tornar visível um meio como tal” ¹ Nesse âmbito, caso se entenda por palavra o meio da comunicação, a exposição de uma palavra significa expô-la sem nenhuma transcendência, em sua própria medialidade, em seu próprio ser-meio. O gesto, portanto, é a comunicação de uma comunicabilidade; dessa forma, ele não tem especificamente nada a dizer. O que se traduz, por exemplo, na insignificância da letra apontada por Lacan: a letra é insignificante quando avaliada frente a algo dotado de significado (a palavra, um fim), no entanto, quando entendida enquanto gesto a letra constitui-se enquanto elemento puro, intransitivo, e basta - já está por si só justificada. Partindo do entendimento de que no trabalho de um artista é o seu corpo que está sendo vendido, e que o corpo sempre excede a troca em que ele está envolvido - isto é, não há comércio ou política que o esgote -, há sempre


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Roman Notes 1-6, 1970, litography

Virgilius, 1975-1976, litography


um ponto extremo em que o corpo se entrega por nada (sem objetivo, sem finalidade). O artista, então, pode ser entendido como um operador de gestos. Segundo o filósofo Roland Barthes (2003), a essência da escrita presente em Twombly repousa sobre o gesto. Sua obra repousa sobretudo na noção de que o gesto está de alguma forma atrelado à destruição, no sentido de que ele corresponde àquilo que normalmente se interpretaria como estando em excesso, aquilo que normalmente seria dispensado. Essa dimensão está presente em Twombly em sua opção pelos traços “infantis”, pela sua indolência, pela sua ociosidade. Pois só assim, com a ausência de um sentido, sua obra pode, de fato, se manifestar enquanto gestual. Só assim, as palavras desenhadas em suas telas podem deixar de ser compreendidas em seu significado e passam a poder ser entendidas em sua dimensão gráfica. Está a falar de letras e não de palavras. O artista, enquanto operador de gestos, não se interessará por romper uma cadeia causativa de ações, mas sim de contorcê-la até que ela perca seu significado. Isso pode ocorrer, por exemplo, mediante a repetição incessante de uma mesma palavra. como ocorre em TW. A obra de Twombly está em absoluta suspensão, habitando um tempo indefinido entre o passado e o futuro, habitando a espera intermitente pelo que o lápis virá a fazer no papel. O produto, nessa perspectiva, aparece como elemento de traição à arte a partir do momento em que é imaginário, em que representa um fim, e que, portanto, não traduz efetivamente o processo artístico (está no futuro). O artista que está interessado apenas nos fins do seu trabalho esquece que o que é de fato real já foi há muito deixado para trás. A obra de TW habita a medialidade pura e sem fim, um tempo sem fronteiras entre o passado e futuro, pois se traduz enquanto produção e não enquanto


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Untitled, 1957, guache, giz de cera e lĂĄpis sobre papelĂŁo de cortado irregularmente.

Mars and the Artist, 1975, Collage: (drawing paper, cardboard, staples) oil paint, wax crayon, charcoal, pencil


produto, enquanto processo de manipulação e não enquanto objeto produzido.³ Mais adequado seria dizer que o trabalho de TW não deriva de uma atividade (o processo de manipulação), mas sim do espaço possibilitador desse processo: a folha de papel. Da mesma forma que, analogamente, Winicott diria que o ato de brincar vê-se subordinado ao parquinho (ou à área do brincar), o desenho vê-se subordinado à superfície em que irá se materializar. Nessa medida, o suporte em Twombly assume uma relevância a princípio inesperada. A cor que aparece em sua obra não se traduz apenas pelas telas em que há tinta, em que há matizes - até porque essas aparições se dão de forma rara, instantânea e interrompida -, mas sobretudo pela cor que está presente na superfície sobre a qual ele se desdobra - uma superfície suja, usada, marcada.

“he does not paint color, (…) he colors in” ² O papel branco, em seu vazio, é utilizado pelo escritor, por ser adequado ao pensamento (está pronto para a recepção de novos significados, devindos da escrita). Por outro lado, a escrita proposta por TW em sua obra, como aqui já discutido, não busca comunicar significados, uma vez que está circunscrita à dimensão do gesto. Dessa forma, o que está sendo proposto ao fim é uma posição extrema: o desaparecimento do signo. Nesse cenário, o papel ganha relevância pois se torna objeto do desejo e, nessa medida, o suporte de sua obra jamais poderia ser uma folha em branco. A escrita na obra de TW é, ao fim, um graffiti, uma vez que é constituída, sobretudo, pelo seu suporte. De forma que, é a partir da completa existência de seu suporte, enquanto área uma vez já viva da pintura (evidenciada pelas suas manchas e marcas) que a superfície em questão torna-se adequada a receber o gesto.


Nessa superfície sobressairá aquilo que sobra, aquilo que persiste apesar de já ter sido jogado fora - o gesto por excelência. Aqui, o desenho pode reaparecer, absolvido de qualquer função técnica, expressiva ou estética. É nessas manchas que a gestualidade se expressa de forma mais material e evidente, e em que TW ganha singularidade frente à astuta gaucherie. Sem violência, de forma sutil e delicada, Twombly opta por manter as marcas daquilo que estaria sendo apagado. Manchas estas que também são partes daquilo que sobra, daquilo que não se quis, e, ao fim, evidências daquilo que não existe mais (a indicação de um vazio). É mediante a indicação desse vazio que se cria que TW justifica sua obra. Sem um fim ao qual atender, seu trabalho constitui-se alla prima, isto é, de primeira. Não há por que atender a um objetivo, a um modelo; não há risco. Assim como suas manchas são indolentes, suas letras são indolentes. E o vazio a ser indicado é o esvaziamento de significado pelo qual sua obra passa, é o resgate do olhar para a medialidade: TW quer olhar para a letra, e vêla não mais em sua insignificância, e também não em seu código gráfico (graphic code), mas sim em sua tecitura enquanto imagem na tela. Esse vazio, se antes visto em negatividade quando pairava sobre a medialidade (como ocorre em Lacan a respeito da letra, ao apontar sua insignificância), agora assume uma face positiva. Partindo do pressuposto de que um copo pode sempre estar meio cheio assim como meio vazio, entende-se que esse vazio no âmbito do significado, na realidade, pode também significar o império da medialidade, e, que, nesse sentido, ele nada mais é do que a gestualidade por excelência: a efetiva comunicação de uma comunicabilidade.

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Diferente de outros artistas, em que a concisão significa necessariamente a criação de uma densidade, de uma profundidade, no caso de TW tem-se uma arte paradoxal, visto que sua concisão não conduz a uma densidade enigmática da obra. Ela flutua em sua superfície, onde suporte e evento gráfico não mais se distinguem. A sua superficialidade não deve ser avaliada por um viés pejorativo - pelo contrário, foi o que TW se dedicou a construir em sua obra: uma não-ambição controlada, delineada por traços que continuam a ser vistos por muitos como infantis.

1 AGAMBEN, 2015, p. 59. 2 BARTHES, 2003, p. 166. 3 Em inglês, essa dualidade é expressa pelos termos “product” e “producing”. (BARTHES, 2003, p. 172) 4 BARTHES, 2003, p. 176.


Note I (from an untitled series), 1967, etching

“He produces without taking for himself, He acts without expectation, His work done, he is not attached to it, and since he is not attached to it, his work will remain.”

(Tao Tê Ching)⁴

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Bibliografia AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o gesto. In: AGAMBEN, Giorgo. Meios sem fim: notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. BARTHES, Roland. Cy Twombly/Non multa sed multum. In: SCHAMA, Simon; BARTHES, Roland. Cy Twombly: Fifty Years of Works on Paper. Nova Iorque: Whitney Museum, 2003. MALT, Johanna. Cy Twombly: Sign, Meta-Sign and Sense. Sillages critiques, [S.l.], dezembro 2016. Disponível em: http://journals.openedition. org/sillagescritiques/4671. Acesso em: 27 jun. 2019. MELLO, Marcello Reis de. Nascimentos da escrita: entre o satori e o êxtase. Revista Arte ConTexto, [S. l.], julho 2017. Disponível em: http://artcontexto.com.br/artigo-edicao13_ marcelo-reis.html. Acesso em: 28 jun. 2019. NAIME, Khalil Andreozzi. Insignificâncias: a escrita sem fim e as letras de Mira Schendel. 2018. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018. VARNEDOE, Kirk. Your Kid Could Not Do This, and Other Reflections on Cy Twombly. MoMA, 1823, New York, 1994. Disponível em: http://www. jstor.org/stable/4381274. Acesso em: 27 jun. 2019.

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Imagens http://images.cytwombly.org https://www.moma.org/collection/works https://d2u3kfwd92fzu7.cloudfront.net/catalog/ artwork/gallery/2953 /AR-02.1_Twombly_ Roman_Notes_Sheets.jpg https://p8.storage.canalblog. com/81/80/119589/66266184.jpg https://i.pinimg.com/

Marina Gaido Cortopassi 4672842 AUH0310 12.07.2019


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