Debatendo comunicação, cultura e cidadania

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A interface entre cultura e comunicação ocupa, cada vez mais, o centro das relações contemporâneas. Assim, democratizar a comunicação e a cultura passa a ser uma tarefa fundamental para a construção de sociedades mais justas. Essa democratização ocorre tanto através da realização de experiências alternativas, comunitárias, populares, quanto da reflexão e da análise do cenário atual, das práticas e políticas já existentes.

Foi pensando assim que o Tangolomango surgiu: uma multiplicidade de práticas, de ações e de vivências. Mas, também um momento especial para podermos debater com grandes nomes da comunicação e da cultura, do Brasil e do mundo. Um momento para refletir e analisar.

O ciclo de palestras foi dividido em cinco mesas, com cinco diferentes aspectos da comunicação e da cultura: a face do poder, as experiências democráticas, as políticas públicas, as redes e as novíssimas mídias. E só uma regra: o respeito à diversidade, a pluralidade de práticas e visões de mundo, o livre debate de idéias.

Enfim, viver a própria democracia no pensar.

Gustavo Gindre Coordenador do Encontro Debatendo Cultura, Comunicação e Cidadania.


INTRODUÇÃO Nos dias 3 a 7 de novembro de 2004, foi realizado no Espaço Arte Sesc, no Flamengo, Rio de Janeiro (RJ), o encontro "Debatendo cultura, comunicação e cidadania", ciclo de debates dentro da segunda edição do Tangolomango. A programação do evento, cuja proposta foi discutir cultura, comunicação e cidadania, incluiu palestras, oficinas, mostras, exibições de filmes, apresentações teatrais e musicais. Uma das novidades desta edição ficou por conta de uma pequena agência de notícias formada por jovens participantes de iniciativas de comunicação comunitária. Os jovens foram treinados pela Rede de Informações para o Terceiro Setor (Rits) e as matérias apuradas e escritas por eles eram publicadas em tempo real no site do evento. Parte desse material, bem como transcrições das palestras e dos debates realizados, compõe este memorial.

ABERTURA A cerimônia de abertura do Encontro Debatendo Cultura, Comunicação e Cidadania foi conduzida pela diretora do evento, Marina Vieira, e contou com a participação de Pedro Lessa, da Unesco; Mirane Albuquerque, do Ministério da Cultura; Eliane Costa, da Petrobras; Loana Maia, representando o Sesc; Ricardo Macieira, secretário Municipal de Culturas do Rio de Janeiro, e Gustavo Gindre, coordenador executivo do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indecs) e coordenador dos debates. Todos os participantes da mesa ressaltaram a importância de um evento como o Tangolomango - que conjuga a discussão articulada de cultura, comunicação e exercício da cidadania e da democracia - e reiteraram o apoio ao evento por parte das instituições que representam. Gustavo Gindre resumiu bem a idéia expressa pelos participantes da sessão de abertura: "As mesas tentarão abordar o entrecruzamento de produção e transmissão de informação, comunicação e cultura. Não sairemos daqui com respostas prontas. Mas, com certeza, sairemos com muito mais subsídios e riqueza de conhecimentos para orientar nossas práticas e, assim, conseguir fortalecer a Comunicação e a Cultura. E, como não existe uma democracia sem cultura e comunicação democráticas, estaremos, em última instância, ajudando a fortalecer a própria democracia".


PAINÉIS Comunicação e poder O painel de abertura do evento foi mediado pela publicitária Nádia Rebouças, do movimento Imagens e Vozes da Esperança, e por Gustavo Gindre, coordenador do encontro. Participaram da mesa como palestrantes César Bolaño, da Universidade Federal de Sergipe; Albino Rubim, da Universidade Federal da Bahia, e Murilo Cesar Ramos, da Universidade de Brasília.

César Bolaño O professor César Bolaño falou sobre "O poder da informação como mercadoria". Ele defendeu a socialização e a horizontalização do fluxo da informação, a qual - enfatizou - não é mercadoria, mas um "bem público". Portanto, afirmou, "é preciso que o trabalho informacional seja coletivo e contínuo". Bolaño comentou ainda, referindo-se ao papel das tecnologias de informação e comunicação, que o "processo de digitalização do mundo auxilia no combate à hegemonia da informação, apesar de não ter sido criado para isso". É preciso que o trabalho informacional seja recorrentemente realizado, para valorizar os grandes bancos de dados. O trabalho é essencialmente de pesquisa e necessariamente coletivo. Há uma contradição fundamental nessa nova forma de produção em que o trabalho se organiza, esse novo trabalho intelectual no capitalismo. Uma contradição entre uma lógica acadêmica de reconhecimento pelos pares etc. e uma lógica mais propriamente capitalista, que procura realizar um processo de acumulação a partir desse trabalho. Isto gera uma contradição, e essa contradição se materializa justamente no fato de que esse trabalho exige a constituição de campos extensos de comunicação produtiva para que essa comunicação tenha uma função, se transforme de ciência em tecnologia. Para que, por exemplo, a indústria farmacêutica possa se apropriar do conhecimento que foi realizado num laboratório público e transformar aquele conhecimento em mercadoria. O processo de digitalização geral do mundo e o desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação apontam a possibilidade de superação das formas de dominação, mas em geral não é para isso que eles foram criados e não são esses os interesses hegemônicos neste momento. O capital, para explorar a natureza e a sociedade, precisa empregar trabalho, e isto gera, na realidade, uma dupla contradição: a contradição fundamental do capitalismo, a contradição capital-trabalho, que é


evidente, e uma contradição que também é específica do capitalismo, mas que nunca foi tomada com a devida proporção que ela tem, que é a contradição entre economia e cultura. A questão cultural se torna, portanto, cada vez mais essencial nesse processo. Nós, trabalhadores da cultura, como tantos outros, devemos tomar muito claramente essa discussão e saber muito bem a nossa posição no sistema e a quem estamos servindo, para pensar na possibilidade de superação e de autocrítica. É preciso pensar que, em princípio, a informação não é mercadoria. É, essencialmente, bem público. A economia vai se transformar em direito, e as lutas pela cultura e pelos direitos vão ser as grandes batalhas do século XXI nessa perspectiva.

Albino Rubim O segundo a falar foi o cientista social Albino Rubim, cuja palestra se debruçou sobre a relação entre cultura e sociabilidade. Ele concentrou sua fala na perspectiva estrutural da comunicação e defendeu que a cultura seria uma camada formada historicamente que se coloca entre as pessoas e a natureza e onde se encontram informações diversas. A subjetividade contemporânea, afirmou, é construída pelo trânsito das pessoas entre as várias camadas culturais, ao mesmo tempo. Se pensarmos no que caracteriza a sociabilidade contemporânea, vamos entender que ela é muito singular. O que a caracterizaria, por exemplo, seriam algumas conjunções, como a dos espaços geográficos com espaços eletrônicos, que muita gente chama de espaços virtuais; a conjunção de convivências, quer dizer, aquela vivência que exige a presença do outro, e as vivências à distancia, que eu chamaria de televivências. Um amigo meu me disse que nos anos 60 precisou ligar para Salvador - na época ele morava em Israel e levou praticamente um dia inteiro tentando fazer esse telefonema, porque o telefonema ia para Roma, depois vinha pra cá pro Rio de Janeiro e então, depois, do Rio ia pra Salvador. Isso no final dos anos 60. Vivemos hoje num mundo que é totalmente distinto desse, um mundo onde todos esses elementos de que falei aqui - espaços eletrônicos, televivências, fluxos globais e realidade midiatizada ou telerrealidade - são absolutamente presentes. Vivemos essa mesclagem, esse mundo, a convergência dessas coisas. Uma convergência, é claro, tensa, complicada, conflitiva. E a sociabilidade em que vivemos é essa. Pela primeira vez na vida, temos a possibilidade de viver numa dimensão planetária e em tempo real. A política contemporânea desloca totalmente o espaço central de construção da política dos espaços geográficos para os espaços virtuais ou eletrônicos. Afinal de contas, qual é o centro das eleições? São os


espaços geográficos, são os comícios ou passam a ser, na verdade, aqueles espaços que mídia produz? Essa mídia, essa comunicação, ela constitui de tal forma uma rede, uma estrutura, que isso configura uma determinada forma de sociabilidade na qual estamos imersos com uma naturalidade impressionante. Como se sempre a relação de sociabilidade entre os homens se desse dessa maneira. O termo cultura é sempre muito complicado porque comporta centenas de sentidos, é uma noção muito escorregadia. Para efeitos operativos, vamos pensar que a cultura é uma espécie de uma camada que se coloca entre nós e a natureza e que essa camada é carregada de sentidos e significações. É exatamente a camada que dá sentido a esse mundo, através de nomeações e juízos de valores que fazemos constantemente. Quando dizemos que não temos tempo, que é uma característica do mundo contemporâneo, é porque estamos vivendo simultaneamente várias camadas culturais, várias experiências simultâneas. Vivemos esta experiência que estamos partilhando aqui, mas muitas das pessoas que estão aqui não conseguem desligar seu celular, porque estão conectadas em outro tipo de experiência diferente da que estamos compartilhando. Uma das características do contemporâneo, em termos culturais, é essa vida de várias experiências simultâneas. Não temos mais uma experiência única, mas várias experiências vividas simultaneamente, e todas elas produzindo sentidos e significados. Isso faz com que cada vez mais tenhamos pouco tempo. Também aqui, o poder da comunicação está em constituir essas várias camadas culturais que fazem parte da nossa experiência contemporânea, nossa experiência cultural contemporânea. Não estou falando de conteúdo específico. Estou falando que a experiência cultural contemporânea é essa conjunção de camadas sobre camadas, que não simplesmente se sobrepõem, mas interagem entre si.

Murilo Cesar Ramos O último palestrante do painel foi Murilo Cesar Ramos, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, que abordou o poder da mídia e os desafios contemporâneos. Ramos frisou que é preciso democratizar a informação e "radicalizar" o direito à comunicação, citando que na Europa Ocidental diversos canais de TV e emissoras de rádio são públicos, ao passo que no Brasil existe um grande conglomerado privado de mídia. Instituições de comunicação só adquirem sentido e existência democráticas quando livres da propriedade privada e organizadas na forma de propriedades públicas. No limite, caso se admita o seu controle por instituições privadas, isso somente se pode dar por licença da autoridade pública e em caráter precário e irreversível, sob normas de processos regulatórios claros, democraticamente instituídos. E


aqui não faço diferença entre instituições que precisam utilizar recursos públicos escassos nas radiofreqüências, caso do rádio e da televisão, ou instituições que independem desses recursos, caso de jornais, revistas e periódicos assemelhados - e hoje também, até certa medida, da internet. Enquanto na Europa Ocidental tivemos e temos em grande parte, até hoje, sistemas de rádios e TVs públicos em diversos países {um dos mais conhecidos é o sistema BBC}, aqui no Brasil só foi possível conhecer a Rede Globo de Televisão, ainda hegemônica em seu mercado, enquanto os mercados radiofônicos, razoavelmente pulverizados, jamais tiveram peso econômico significativo. Essa concentração de poder econômico em um mesmo grupo de televisão, rádio, jornais, revista e internet é agravada pela inexistência de uma imprensa ampla e acessível à maioria da população. A crise do paradigma socialista que levou ao fim da União Soviética e de todo o ideal revolucionário do final dos anos 80 do século 20 provocou, a meu ver, um efeito teórico de grande repercussão política, que foi o quase total abandono do Estado como categoria central de análise e como instituição decisiva para o avanço democrático, sociocultural e político-econômico. Ao negarmos o Estado, como se ele tivesse sido condenado para sempre pelos absurdos de Estados comunistas, em especial dos soviéticos, e ao tentarmos substituí-lo por conceitos como esfera pública, em um primeiro momento, e por terceiro setor, em momento seguinte, passamos a negar a própria possibilidade de alternativas democráticas fora do liberalismo político e, sobretudo, do capitalismo econômico. Negação acentuada pela exacerbação, prática de um outro conceito essencial de sociedade civil cuja polissemia nos levou a misturá-lo indiscriminadamente com esfera pública e terceiro setor, sem nos darmos conta de que a sociedade civil é um conceito que constitui com o Estado tramas essenciais teóricas sem as quais nossas análises político-econômicas e socioculturais podem perder totalmente o sentido. Quando Gramsci {O italiano Antonio Gramsci viveu de 1891 a 1937 e foi político, filósofo e cientista político, comunista e antifascista. Nos seus escritos, defendeu a idéia de que a hegemonia cultural é um meio de manutenção do Estado capitalista} nos legou a idéia de conceitos de um Estado ampliado, Estado restrito, Estado civil, hegemonia, coesão e consenso, guerra de posição e guerra de movimento, legou também a possibilidade de pensarmos a transformação revolucionária pela via democrática. Logo, a democracia social somente será politicamente possível pela via liberal desde que equacionado de vez o acesso direto de todos os trabalhadores à potencialidade do capital, ou seja, a democracia social é incompatível com a propriedade privada do capital. Esses são termos de uma equação complexa da qual não conseguimos escapar. Por fim, desprivatizar a comunicação, despublicizando-a a partir de um Esta-


do em processo de democratização progressiva por movimentos, por uma sociedade política civil classista, é a hipótese aqui proposta para debates.

Debate com o público Educação como parceira em uma comunicação democrática Murilo César Ramos A relação é absolutamente indispensável e necessária. A educação formal é muito conservadora, Então ela resiste aos avanços e à presença da comunicação. É fundamental trabalhar com conceitos, idéias e formas de comunicação nos processos de educação em todos os níveis, mas não é uma relação fácil. Basta ver a relação que existe nas universidades entre as escolas de comunicação e as escolas de educação.

Comunicação, capitalismo e sociabilidade Albino Rubim A questão é entender até que ponto certas coisas são determinadas pelo capitalismo ou outras, apesar de serem construídas pelo capitalismo, sobrevivem a uma lógica de sociedade capitalista. É óbvio que as tecnologias da informação foram forjadas numa sociedade capitalista. O que estou propondo aqui é que, para além de uma determinação capitalista, temos alguns movimentos e dinâmicas sociais que configuram a sociedade de uma tal maneira que qualquer que seja a sociedade que pensemos no futuro, certamente ela vai nascer a partir desse patamar. Nenhum de nós imagina uma sociedade em que a gente abra mão, para o bem e para o mal, das possibilidades que temos hoje de viver em tempo real e numa sociedade cada vez mais planetária. A sociedade socialista, se ela vier, e espero que venha, certamente se fará a partir dessa base.

Comunicação, velocidade e dominação Albino Rubim Vivemos, paradoxalmente, uma sociedade que alguns pensadores chamam de sociedade do ócio criativo {um dos principais defensores do ócio criativo é o filósofo italiano Domenico De Masi}. No entanto, na sociedade do ócio, não temos tempo pra nada. Ao mesmo tempo em que todos louvamos o


computador, temos que lembrar o seguinte: a introdução do computador significa a destruição de uma barreira que existia nítida entre local de trabalho e local de descanso, local de lazer e local de moradia. O computador introduz em nossas casas o trabalho, o ritmo de trabalho. Agora, esse aumento de velocidade é algo que deriva de uma lógica capitalista de exploração cada vez maior do trabalho ou é algo que está inerentemente associado a uma nova sociedade? Isso indica que no mundo contemporâneo podemos ter várias identidades, porque estamos introduzidos em várias redes de significação e em vários grupos de identidades. Felizmente somos capazes de, vivendo num regime capitalista - que é um regime de exploração, de desigualdade -, fazer em várias dimensões humanas coisas que superam marcas.

César Bolaño O sistema, pra se desenvolver, está baseado cada vez mais em parcelas muito restritas da população. Há um processo de exclusão crescente, e é preciso apertar cada vez mais a laranja, espremer seu suco, valendo-se de uma parcela da população que está incluída e que tem uma capacidade de consumo. É uma sociedade de controle que está sendo constituída, e isso tem muito a ver com o desenvolvimento das tecnologias da comunicação. Mas por mais que essa sociedade de controle se implante, sempre haverá perspectivas de possibilidade de ruptura, e essas perspectivas são inerentes à própria forma contraditória como o capitalismo se implanta.

Rede Globo e democratização da comunicação Murilo César Ramos Democratizar a comunicação significa pensar a democracia como um todo. Você tem o liberalismo político e o capitalismo econômico. Então eu posso, em curto prazo, por exemplo, submeter a Globo a determinados controles normativos regulatórios. Agora, isso não vai resolver meu problema da democratização dos meios de comunicação. O desafio é muito mais abrangente. Ele é civilizatório, é de médio e longo prazo. Isso virá muito além dos tempos das nossas vidas. No fundo, o que se tem que pensar é no resgate das antigas energias utópicas e no longo prazo das potencialidades de mudança. Então a democracia da comunicação tem que ser vista nessa perspectiva. Sem abandonar o curto prazo, é um momento que exige o desafio de pensar em mudanças estruturais profundas. Os veículos chamados privados têm de ser vistos como passíveis de submissão para controles públicos claros. Uma maneira de começar esse processo de mudança estrutural é radicalizar a idéia da propriedade pública dos meios de comunicação.


Comunicação como mercadoria César Bolaño Toda discussão sobre serviços e, principalmente, sobre propriedade intelectual carrega a marca da produção reestruturativa do capitalismo e da retomada da hegemonia dos Estados Unidos. Essa discussão é fundamental, mas é preciso que se aponte também para a questão da contradição fundamental capitaltrabalho e para a questão fundamental do socialismo, porque não se trata somente de uma questão de relações comerciais, mas de uma coisa profunda e de possibilidades de fato importantes de superação do sistema. Essa questão, a separação ente trabalho manual e trabalho intelectual, está posta hoje de uma maneira muito forte e muito clara, não apenas a um processo de subjunção do trabalho intelectual, mas um processo generalizado de intelectualização dos processos de trabalho. A forma de mercadoria apresenta complicações muito importantes. O direito vem como uma maneira de garantir apropriação privada daquilo que é naturalmente público, e o trabalho intelectual se apresenta claramente como um trabalho de mediação, um trabalho do qual o capital necessita para explorar as riquezas naturais e sociais do conjunto da sociedade e das comunidades.

Democratização dos meios de comunicação para o desenvolvimento O painel "Democratização dos Meios de Comunicação para o Desenvolvimento" foi composto pelo mediador Sebastião Santos, da Rádio Viva Rio; por Taís Ladeira, da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc); Eduardo Homem, da TV Viva, de Olinda (PE), e Arturo Bregaglio, da FM Trindad, do Paraguai.

Arturo Bregaglio Arturo Bregaglio abriu a palestra, ressaltando que a história das rádios comunitárias se confunde com a história da democratização dos meios de comunicação. Ele defendeu a total capacidade de as emissoras comunitárias fazerem um contraponto às emissoras privadas, cumprindo o papel de mediadoras entre sociedade civil, governo e setores empresariais.


A história das rádios comunitárias tem a ver com a história da democratização da comunicação. O problema é que estamos discutindo um recurso finito, porque o espaço radioelétrico é um recurso que se esgota e, portanto, o lugar será dos que primeiro se apoderarem dele. Isso, hoje, é uma realidade relativa. Faz três dias que, em Buenos Aires, duas emissoras, Rádio Mitre e Rádio Continental, lançaram no ar suas senhas digitais. Isso significa que essas emissoras cruzam o país com uma senha AM com perfeita qualidade. E não é só isso. Por cada freqüência saem seis novas freqüências. Há algum tempo havia capacidade para umas 45 emissoras. Multiplicamos por 6 e estamos ao redor de 240. Materialmente, não deveria haver nenhum problema em torno dos espaços de freqüências. No Brasil, entretanto, é uma discussão pendente em termos de legislação e de telecomunicações. Como se distribuem racional e eqüitativamente e, sobretudo, otimamente, para que seja aproveitado da melhor forma o espectro rádioelétrico. Não descobriram alguns setores comerciais que a rádio comunitária se desenvolveu muito bem na América Latina e que os públicos se segmentaram. Já não existem audiências fiéis. E quando alguém passa a escutar uma rádio comunitária, porque esta representa os interesses e gostos de uma determinada comunidade, obviamente deixou de escutar outra emissora AM tradicional. No Uruguai, há dois anos, se prometia pena de prisão para quem ousasse levantar ou desenvolver movimentos desse tipo nos meios comunitários. Isso também nos desafia. Vocês se perguntaram se devemos ter pretensão de sermos excelentes, de fazer boas rádios, de competir com os grandes meios. Temos que nos dar a chance de sair e colocar uma programação de igual a igual. E esta situação possivelmente se dá em muitos países da América Latina. E aí, um horizonte enorme e um papel que os meios tradicionalmente não aceitam, que é o segmento dos conflitos. Para colocar um pequeno exemplo, todos você estão inteirados do trágico incêndio no supermercado, no Paraguai {ocorrido em 1º de agosto de 2004, provocou a morte de cerca de 400 pessoas}. Começamos então um programa de duas horas de duração, todos os dias, passando pela casa de cada um dos familiares dessas 400 vítimas. Isso vai recriando uma história de todos aqueles que haviam ido até lá fazer compras, e essa história não aparece nos meios de comunicação porque 85% dessa população é do setor pobre. Outro tema sempre tenso é a questão do financiamento dos meios comunitários. Diz-se por aí que dificilmente os meios comunitários podem ser sustentáveis, e creio que é bastante certo. Isso termina se resolvendo com trabalho voluntário, com centros de produção radiofônica, com projetos de desenvolvimento, com o apoio da cooperação internacional, enfim. É preciso continuar pensando em uma múltipla variedade de alternativas.


Por fim, a rádio tem a ver com a capacidade de um grupo articular um projeto político e jornalístico maduro e poder trabalhar de forma conjunta, enfrentando as contradições que surgem. Isso também nos desafia internamente a um processo de gestão e de discussão muito ágil, mas que também tenha a capacidade de saber como articular-se com as demandas da sociedade civil.

Taís Ladeira Taís Ladeira reforçou a posição de Bregaglio e acrescentou a importância de políticas públicas que contemplem as rádios comunitárias. Ela lembrou que houve um retrocesso, com o aumento da repressão e da fiscalização da Anatel, durante o governo Lula - o que impedia a expansão e a abertura de novas rádios. Nós, rádios comunitárias, só existimos por causa de um quadro em que a comunicação é reconhecidamente um espaço de disputa de poder, pela concentração dos meios de comunicação e uma exclusão muito grande da sociedade brasileira com relação ao seu direito de produzir informação. No momento em que a sociedade brasileira começa a ocupar esse espaço, a gente vai percebendo reações por parte da iniciativa privada e do governo querendo impedir essa tomada de poder - se considerarmos comunicação como poder. Essa conjuntura cria condições para que as rádios comunitárias no Brasil existam em grande número. E é por isso mesmo que quando nós, do Movimento pela Democratização da Comunicação, começamos a pensar no que consegue materializar essa vontade da democratização, não podemos deixar de pensar nas rádios comunitárias, porque são a manifestação mais pulsante, seja pela característica dos projetos, seja pela grande quantidade de experiências e pela capilaridade. O rádio no Brasil, de um modo geral, não apenas as rádios comunitárias, continua com um status privilegiado em relação aos outros meios de comunicação. Estamos ainda falando de um país de semi-alfabetizados, que tem na oralidade a sua principal forma de expressão. Em 86% dos lares brasileiros há um aparelho de rádio - esse é um dado do IBGE de 2003. Mas qual o modelo de relação social, a cultura, a mensagem, a forma de auto-organização da sociedade? Qual o projeto social que essas emissoras trazem para o país? Nós temos total capacidade de ser um contraponto à mídia comercial e privada, talvez menos pela qualidade da nossa programação e mais pela não qualidade da programação dessas emissoras comerciais. Quando a gente remonta a história do rádio no Brasil, vê que ela começa com Roquete-Pinto {o médico, antropólogo, etnólogo e ensaísta Edgar Roquette-Pinto fundou, em 1923, na Academia Brasileira de Ciências, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, que tinha fins exclusivamente educacionais e culturais


e que, em 1936, passou a pertencer ao Ministério da Educação}, que queria trabalhar o rádio social e educativo. Mas se olhamos para o que hoje sintonizamos em casa, a situação é totalmente oposta. Isso começou na década de 30, onde o rádio era utilizado com fins políticos, religiosos e comerciais. Não há espaço nessas três fatias para nenhum projeto que seja democrático, que seja comunitário, que nade na contramão da globalização, que valorize a cultura local e consiga sair desse grande lobby das grandes gravadoras que estão sempre mostrando os mesmos artistas. O panorama está construído. No Rio de Janeiro, por exemplo, 50% das emissoras eram ligadas a algum tipo de Igreja. E a gente fica pensando como é que se dividem os outros 50%. Entre quais interesses estão representados? Nesse caldo, nesse panorama, na década de 70, surgem as primeiras manifestações de rádios de baixa potência. E somente na década de 80 elas foram tomando um volume. Existe um fenômeno conhecido como o Verão de 82, que aconteceu em Sorocaba (SP). Foi um verdadeiro boom de rádios autodenominadas rádios livres, em que mais cem emissoras foram colocadas no ar naquele verão e 43 conseguiram continuar existindo a partir desse verão de 82. Mas na década de 80 tivemos um período em que o desafio era ir para o ar. Óbvio, você não vai pensar em mais nada se estiver com a emissora lacrada pela Polícia Federal. Mas o que desejamos é que, vencida essa etapa da questão da legislação, a gente possa realmente reiniciar uma discussão que ficou interrompida e precisa rapidamente ser feita, que é exatamente a discussão do projeto comunicacional da emissora. A convergência tecnológica, por exemplo, é um desafio. Como é que você consegue fazer a convergência, otimizar a internet, juntar algo que é centenário, como o rádio, com a internet? Como é que você potencializa esses dois veículos? Como você discute digitalização da radiodifusão e como as rádios comunitárias ficam nesse advento da digitalização? Há ainda o problema da auto-sustentação. O Brasil é muito grande, existem propostas de auto-sustentação muito criativas por esse Brasil afora, e a gente precisa começar a sistematizar, fazer intercâmbio entre elas, dar visibilidade, para que as rádios não fiquem sob ameaça, nos grandes centros, do tráfico e, no interior, do padre, do pastor ou do político, porque essa é a realidade. Um outro desafio, acho que o maior de todos, é: como a rádio vai parar, respirar, olhar para um lado, olhar para outro, ver que não tem a polícia por aí, nem a Anatel, e começar a pensar pra que ela existe, por que ela existe e aonde quer chegar com esse projeto? Quando a gente fala de projeto, político ou comunicacional, é o projeto da rádio em si e na sociedade brasileira. Em última instância, o projeto de sociedade brasileira que as rádios comunitárias vão ajudar a construir e vão defender e divulgar.


A rádio pode ser um espaço de auto-organização das comunidades. Elas ali podem decidir, opinar, construir juntas. Aquele espaço que a gente fazia no grêmio da escola, no sindicato, no grupo de jovens na igreja e que, hoje em dia, é muitas vezes desacreditado. O projeto político comunicacional de uma emissora comunitária é, portanto, o grande desafio que temos a vencer, passado esse problema de legislação. A partir desse projeto político-comunicacional, sabemos qual é a programação que a gente quer, quais os parceiros da comunidade que a gente quer, quais as formas de auto-sustentação que queremos, qual a música que vai tocar ou que não vai tocar na emissora. Enfim, é como se fosse, em tempos de clonagem, a célula-tronco {tipo de célula que pode se diferenciar e constituir diferentes tecidos no organismo}. É dali que partem todas as outras conclusões da emissora. Sem a discussão profunda, clara e responsável de qual o projeto político-comunicacional de uma emissora comunitária, fica muito difícil discutir todo o resto.

Eduardo Homem Eduardo Homem situou o panorama atual do vídeo popular num nível ainda inferior ao das rádios comunitárias. Lamentou a dificuldade de investimentos via cooperação internacional e apresentou o desafio da emergência de novos atores sociais - povos indígenas, quilombolas etc. - como elementos de uma nova cultura para disputar a hegemonia na sociedade. Vinte anos atrás, havia iniciativas de vídeo popular pelo Brasil e pela América Latina com mais intensidade e muito mais quantidade do que acontece hoje. E isso, obviamente, implica que o processo de reflexão sobre esse tipo de prática tenha ficado mais pobre, menos freqüente. O que é vídeo popular? É o que desvenda, revela e informa os jeitos de ser, de fazer e de representar de atores sociais, individuais e coletivos, que não encontram e nem possuem canais eletrônicos de expressão e comunicação capazes de atingir a sociedade de forma permanente e constante. É também vídeo feito por, com, ou a partir desses atores sociais para eles, mas também para o todo social. Portanto não é alternativo, nem marginal, não é sequer independente, mas plural, diverso, interrogador, questionador. Dirige-se mais à razão do que à emoção, embora pretenda contribuir para a afirmação de uma outra cultura, de uma outra subjetividade. Para tanto, não fica na superfície da realidade social, reproduzindo os acontecimentos como mercadoria para consumo, mas penetra na realidade para mostrar os fatos como acontecimentos únicos, produzidos por seres vivos também únicos individuais ou coletivos, que fazem história e não espetáculo.


Bom, fiz essa definição para poder chegar à discussão da perspectiva do vídeo popular hoje. E para chegar à perspectiva do vídeo popular hoje, queria começar com a perspectiva do vídeo popular no passado, quer dizer, quando ele surgiu, 20 anos atrás. A TV Viva surgiu em 1984, aparentemente com uma idéia singular, e imediatamente depois a gente teve notícia de surgimento de experiências parecidas no Chile, na Bolívia, no Peru, na Argentina, no Equador. Por toda a América Latina surgiam experiências de produção de informação via vídeo e de transmissão dessa informação via canais próprios de produtores para a população, para a sociedade, através de telões em praça pública, através de rede de sindicatos, de associações de moradores, de igrejas, enfim, a mesma coisa que se fazia em Olinda (PE), a partir de julho de 1984, começou a se fazer em Santiago do Chile, La Paz, Cochabamba... E eram essas condições em todos esses lugares. Lutava-se contra a tirania política em todos esses lugares, emergiam atores sociais novos. Obviamente que havia também uma facilidade, pelo surgimento de novos aparelhos e novas técnicas, e um outro facilitador, ou até um outro insumo muito importante, eram os recursos financeiros da cooperação internacional, que via na América Latina uma prioridade para o seu investimento. Então eu diria que, naquele tempo, a perspectiva nossa era ser alternativo e existir à margem da televisão, afirmando, divulgando, registrando as ações desses novos atores sociais muito no plano da política e da economia - diria que pouco no plano da cultura ou das artes. Hoje a gente tem no Brasil, e praticamente por toda a América Latina, uma consolidação da democracia representativa. A gente tem uma explosão dos meios de comunicação. A gente tem a afirmação da ideologia do consumo como a força motriz da nossa sociedade, ou das nossas sociedades. A gente tem o esplendor da comunicação como espetáculo e o aguçamento das exclusões sociais, a pasteurização, a padronização, a intolerância como o adverso à violência. Então temos o surgimento de novos atores sociais, muito nesse campo das artes, mas não só no campo das artes. Se há uma certa mudança em relação aos movimentos sociais que havia nos anos 80, um certo deslocamento também pro campo, a gente tem a emergência dos movimentos das nações indígenas, dos povos quilombolas, dos sem-terra, da pequena produção familiar... todos esses são atores sociais novos sobre os quais se debruça a nossa ação de produtores, difusores dessa informação diferente que se cria.


Então parece que ao vídeo popular cabe registrar, divulgar o mais amplamente possível essas ações, essas manifestações, amplificando-as, para fortalecer exatamente essa idéia: a idéia de uma nova cultura que venha, claro, até onde nosso sonho consiga enxergar. E onde fazer isso? Há 20 anos, a gente quase ignorava os canais de televisão, até porque havia muito poucos canais, eram todos eles canais abertos. Hoje a gente tem muitas oportunidades. Então me parece que as nossas prioridades são os canais públicos de televisão - aliás, canais estatais -, inclusive para que a gente colabore na sua transformação em canais verdadeiramente públicos, porque hoje eles ainda são muito mais estatais do que públicos. Nos canais privados também, inclusive para quebrar a hegemonia das redes, porque são as que pasteurizam a informação, que não abrem o espaço para a diversidade. A TV Viva, por exemplo, hoje, não se bastaria em estar em 20, 30, 40 praças de Recife. Para nós, é muito mais importante fortalecer redes de produção e exibição de informação. Para encerrar, recursos públicos: a cooperação internacional praticamente se foi, sobretudo para a área de comunicação. Mas nem é por isso. A tarefa política nossa também é disputar recursos públicos nacionais. É obrigação do governo financiar a produção de informação de toda a sociedade, e não apenas a que é feita pela Rede Globo, que fica com, sei lá, 90% da verba publicitária do governo. Isso é recurso público.

Debate com o público Como mudar a realidade Sebastião Santos Pelo que a gente acabou de ouvir aqui, o problema, hoje, da comunicação popular, alternativa, comunitária na América Latina é mais de Estado que de governo. Havia muita expectativa de que com as mudanças dos governos na América Latina os comportamentos com relação à mídia popular também iam mudar. No Brasil a gente tinha uma esperança enorme no governo Lula, que a gente ajudou a construir. E tem mais fechamento de rádios comunitárias no Brasil, no governo Lula, do que tinha no governo de Fernando Henrique Cardoso. O governo tem apostado clara e objetivamente na grande mídia, porque a grande mídia dá impacto. Rádio comunitária, não. Não muda as coisas de um dia para o outro. Muda lentamente, igual a chuva fina, vai molhando devagar. E talvez esse governo tenha mais pressa do que a gente possa estar imaginando, mais pressa em fazer coisas e mostrar coisas, por isso prioriza unicamente a chamada grande mídia em


detrimento da mídia comunitária, coisa que o outro governo não fazia. O outro governo fechava, metia a porrada, tinha polícia na porta. Mas tinha investimento em capacitação, em DST{sigla para Doenças Sexualmente Transmissíveis}/aids - investimentos que, de alguma forma, beneficiavam a chamada mídia comunitária. E hoje não há investimento, e há aumento de repressão concreta. Isso é um absurdo, é para a gente se indignar muito. Mas é um problema de Estado, não de governo. E se é um problema de Estado, é um problema nosso. Esse governo não vai ter nenhuma posição clara, formal e objetiva a favor das mídias comunitárias, a não ser que a gente comece a encarar isso como um problema nosso, da sociedade. Mas o que mais nos deixa, de alguma forma, "consolados" diante do caos que a gente vive no cotidiano das rádios comunitárias no Brasil é ver que é um espaço onde as pessoas estão se expressando. O que mais nos interessa nesse momento é saber se a rádio, além de ser e estar numa função de desenvolvimento, de crescimento comunitário, de resgate e valorização da cultura, é de fato um espaço onde a comunidade está se expressando. À medida que ela é o espaço de expressão da comunidade, começamos a fazer uma revolução naquilo que chamamos de comunicação popular e democrática. Porque são as pessoas que estão fazendo, e elas só vão aprender a fazer a coisa direito se tiverem chance de fazer a coisa errado. O Iser {Instituto de Estudos da Religião} fez uma pesquisa em 36 favelas do Rio de Janeiro para medir a audiência da rádio comunitária. Ficamos impressionados. Um terço da audiência em rádio pertence às rádios comunitárias. E o tráfico não tem nada a ver com isso. Todo mundo fala muito: "Ah, mas as rádios das capitais, Recife, Porto Alegre, São Paulo, Rio, estão muito próximas de serem convencidas e ganhas pelo tráfico". O tráfico não está nem aí para isso! É claro que em qualquer comunidade não há nada - nem escola, nem igreja, nenhuma instituição - que não tenha alguma relação com o tráfico. Mas não estou dizendo submissão. É que o tráfico faz parte da vida das favelas. Então não há essa história, isso é bobagem. Procuro não alimentar essa ilusão de que rádio comunitária na favela está à mercê do tráfico. Eu não creio nisso, eles têm outros interesses. Falta para nós, da sociedade, das ONGs, dos movimentos, das entidades de rádio comunitária, enfim, um trabalho sério de saber o que essas rádios estão fazendo e o que elas conseguem mudar na sua realidade, na sua comunidade, no espaço onde estão atuando. Se formos a fundo numa pesquisa que procure saber de fato o que está acontecendo, a gente vai ter um retrato, talvez, de um Brasil que a gente ainda não conhece, porque as rádios comunitárias estão conseguindo fazer essa modificação.


Conselho Regional de Rádios Comunitárias Arturo Bregaglio Vemos no Mercosul {Mercado Comum do Sul, bloco político-econômico inicialmente fomado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, criando em 1991, com a assinatura do Tratado de Assunção} há anos que os meios de comunicação comerciais não somente se reúnem, mas também formam acordos e tecem conjuntamente estratégias, sinal de que os governos da região estabelecem seus planos nacionais de freqüência em função de uma lógica administrativa de espectro radioelétrico na qual, é claro, não teremos nenhuma participação. Creio que este é o momento também de começarmos a pensar que a democratização dessas decisões também deve ir para toda a região.

Controle social Taís Ladeira O problema todo da comunicação no Brasil é a falta do controle social. Não é à toa que o Conselho Nacional de Comunicação demorou séculos pra ser instituído. E é o que é! Quem olha não vê representado, por exemplo, esse setor que todo mundo que veio citou como exemplo: a rádio comunitária. O Eduardo [Homem] acaba de colocar como é que está a situação do vídeo. A gente sabe quanto é que custa fazer um panfleto, um fanzine ou jornal, ou seja, a rádio comunitária ainda é essa expressão maior. Mas mesmo assim a gente perdeu o assento da sociedade civil organizada, no Conselho Nacional de Comunicação, para Jayme Sirotsky, empresário {Jayme Sirotsky é proprietário e presidente do Conselho de Administração da Rede Brasil Sul (RBS), grupo de mídia que detém, entre outros empreendimentos, seis jornais, 18 emissoras afiliadas da Rede Globo de Televisão e duas emissoras locais de TV. Sirotsky é também ex-presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ)}. Então a gente precisa colocar uma vírgula no Conselho Nacional de Comunicação e começar a pensar nos conselhos estaduais e municipais de comunicação. A gente precisa pensar em comunicação de uma forma ampla, senão estaremos sempre segmentando esse setor, e acho que enfraquece a nossa luta, que é maior. Me pergunto: por que um pool de organizações sociais não pode gerenciar um veículo de comunicação, uma rádio de alta potência? Este é um ponto pelo qual a gente precisa brigar dentro do sistema de radiodifusão como um todo.


Outra questão seria o fundo público para aquelas emissoras que fossem sem fins educativos. Já estamos falando isso há muito tempo e até agora não existe proposta, não se sabe como. Recursos a gente sabe que existem. O que precisa ser pensado é como a gente vai estruturar isso. Tornar públicas as rádios estatais, acabar de vez com a comunicação chapa-branca, fazer com que essas rádios estatais sejam rádios do Estado. E se nós entendemos que a sociedade faz parte do Estado brasileiro, obviamente temos de ter aí uma parcela boa de participação. Isso tudo significa também ter controle social sobre a rádio, o rádio brasileiro. Com esse controle social, acho difícil a gente ter o monopólio político-partidário. Se todo mundo aqui fosse consultado, se a gente fizesse parte de um conselho, você acha, por exemplo, que 25% da comunicação brasileira deve estar na mão de deputados, senadores e vereadores? Todo mundo vai dizer que não! Então, se a gente tivesse que escolher, a gente diria não. E a gente só não diz não porque não tem poder de voto e, às vezes, nem de voz. Então acho que o cerne da questão está no controle social da comunicação e, por conseguinte, no setor da radiodifusão.

Parceria entre Globo e Rádio Viva Rio Taís Ladeira Tem uma pergunta aqui que é muito polêmica, e eu não imaginava que fosse me ver nessa situação de ter que respondê-la publicamente. A pergunta é a seguinte: houve muitas críticas à retransmissão de programas da TV Globo pela Rádio Viva Rio. O que vocês acham do assunto? Olha, a retransmissão não foi feita para as rádios comunitárias. Existe no site do Viva Rio uma relação de programas da TV Globo, e as rádios comunitárias podem fazer o download desse áudio, que é cadastrado para as rádios que fazem parte de uma rede criada pela própria Viva Rio. As rádios que estão lá fazem parte da rede do Viva Rio, estão ali porque querem, baixam os programas porque querem, têm liberdade de não baixar os programas. Mas os programas estão ali porque o Viva Rio tem uma parceria com a Globo, com as Organizações Globo, e todo mundo sabe disso. Agora, a liberdade é de quem acha que os programas da TV Globo têm algo para contribuir com sua programação de rádio. Eu, como uma radioapaixonada, acho que misturar alhos com bugalhos, TV com rádio, não pode dar samba. Todo mundo sabe, aqui, que o rádio recria imagens - e se você tem um áudio de uma TV, a coisa fica comprometida. Mas quero co-responsabilizar as emissoras por estarem ali, livremente. Se estão ali, é porque, em parte ou no todo, concordam com a política do Viva Rio e com a sua remissão com o Sistema Globo de Rádio.


Políticas públicas A tônica deste painel foi a discussão sobre formas de se garantir, em leis e em programas de Estado, o direito à comunicação. Mediada por Ana Toni, da Fundação Ford, a mesa contou com a participação do irlandês Sean O. Sióchru, representante da Campanha Communication Rights in the Information Society (Cris); Gustavo Gindre, do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indecs), e João Brant, coordenador do Coletivo Intervozes.

Sean O. Sióchru Siochru esclareceu o que é e como funciona a Campanha Cris e deu exemplos das dinâmicas dos direitos à comunicação. O ativista enfatizou a necessidade de liberdade de expressão, lembrando que todos precisam ter acesso à informação e a garantia do direito à educação. Segundo ele, o acesso à informação no Brasil é dificultado pelo alto índice de analfabetismo. Para Siochru, é necessário explorar atividades no nível local, para apropriação dos meios de comunicação pelos cidadãos e cidadãs. Os direitos da comunicação se deparam com uma comparação entre o limite e a idéia da liberdade de expressão. A pergunta é: podemos realmente exercer a liberdade da expressão, uma vez que todos os jornais que lemos ou canais de TV a que assistimos pertencem a poderosas corporações? O que significa o direito à privacidade, nesta época de vigilância eletrônica? Quem tem o privilégio de exercer o direito à instrução? É necessário fazer três questionamentos sobre a sociedade de informação: quem são os donos da informação, quem controla o fluxo da informação e quem pode utilizar ou se beneficiar das informações que circulam. Ao responder estas perguntas, fica fácil visualizar que, atualmente, quem ganha com a sociedade da informação são as corporações. São elas que detêm boa parte das informações que circulam através da apropriação dos direitos autorais de jornalistas e outros trabalhadores - e quem controla o fluxo. E quem mais tem se beneficiado são as elites econômicas, que têm acesso ao mundo digital. Mas o pior dos mundos é quando as corporações que detêm o controle das informações se unem a interesses políticos - como no Brasil ou na Itália de Berlusconi {Silvio Berlusconi é, desde 2001, presidente do Conselho de Ministros da Itália. É também líder do partido político Forza Italia (que ele criou especificamente para sua entrada na vida política) e proprietário do império italiano de mídia Fininvest}.


Considero que estamos frente a todo um sistema de comunicação, por isso mesmo os direitos da comunicação devem ser considerados direitos sistêmicos. Este sistema envolve um ciclo que passa da criação do conhecimento à sua disseminação e ao seu uso, à educação social e à retroalimentação do conhecimento. Nas diferentes fases deste ciclo, encontra-se uma situação de debilidade em matéria de direitos frente a novas tendências nesta área, que levantam sérias ameaças. Entre estas tendências, enfatizo a concentração dos meios de comunicação, sua mercantilização, as implicações do atual regime de direitos de propriedade intelectual, o enfoque predominantemente neoliberal no desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação e a privatização do espaço eletrônico, entre outros. Apesar de tanto a declaração intergovernamental como a da sociedade civil assinalarem a idéia de que a comunicação é um processo social fundamental, uma necessidade humana básica e a base de toda a organização social, a Declaração da Sociedade Civil {Documento produzido pelas ONGs que acompanham e participam do Processo da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI)} é a que mais avança nas propostas de como podemos construir uma sociedade da informação e da comunicação que diga respeito às pessoas. Salienta, por exemplo, a idéia de que se deve reforçar o marco regulatório e jurídico em todas as sociedades de informação e da comunicação para garantir o compartilhamento universal da tecnologia, da informação e do conhecimento e promover o controle comunitário, respeitando os direitos e liberdades humanas.

João Brant "Onde está o sistema público de comunicação no Brasil?". Essa foi a questão que João Brant levantou na mesa, em uma palestra que abordou políticas locais e prioridades para sua implementação. Entre as ferramentas que podem ser criadas pelas políticas públicas na área de comunicação, ele propôs a formação de um fundo público para fomentar veículos comunitários, alternativos, independentes, ONGs etc. O problema, segundo ele, é definir de onde seriam estes recursos, "que poderiam vir da taxação de publicidade comercial e da publicidade governamental". Intervozes é um coletivo que tem umas 55 pessoas de diferentes partes do Brasil, militantes na área de comunicação, que se juntaram para trabalhar as questões do direito à comunicação. Vou colocar aqui algumas das idéias que a gente tem tido. Nem sei se todos sabem aqui, mas vale repetir: a Constituição Brasileira, em seu artigo 223, prevê a complementaridade entre os sistemas público, estatal e privado de comunicação.


No entanto o comercial a gente sabe bem onde está. O estatal... a gente tem pelo menos um por estado, ocupando o espaço. O público fica no limbo, onde está? Que sistema público é esse? O que está previsto, o que se fala, o que se discute e a gente nunca vê materializado? Eu acho que por aí está um dos espaços possíveis pra gente caminhar no que diz respeito à democratização da comunicação, especialmente discutindo o caso brasileiro. Se há 20 anos a gente era preocupado com a censura e tinha como referência o Estado, a censura no Brasil continua existindo. Mas ela é eminentemente privada. No momento em que você tem uma mídia concentrada, em que seis grupos controlam o sistema de televisão brasileiro, nove famílias detêm a maior parte dos meios, 86% dos meios de comunicação no Brasil, você tem uma censura que se dá no filtro das informações, no que vai ao ar, em como essas coisas se materializam, quais as versões que estão sendo trabalhadas. E essa censura, ela é privada. Então a gente tem que reorganizar a nossa referência, que antes se baseava na censura como proteção do cidadão em relação ao Estado, pra entender como a concentração de propriedade gera uma censura privada no tratamento da informação. Para falar sobre o enfrentamento disso, eu queria, na verdade, tratar de três aspectos. Primeiro, da regulação sobre o setor privado; em segundo lugar, da constituição de fato de um sistema público de comunicação e em que termos isso se daria; e em terceiro, de políticas locais para a democratização da comunicação. A primeira parte da regulação sobre o privado parte de um princípio quase liberal. Hoje os Estados Unidos, por exemplo, têm um limite de audiência potencial das emissoras de 35%. Significa que a mesma emissora, a mesma empresa, não pode alcançar mais de 35% dos lares norte-americanos. A FCC, que é o conselho que coordena a comunicação nos Estados Unidos, tentou mudar isso e aumentar para 40%. O Senado, inclusive com o voto republicano, recusou essa questão. Para eles, dentro de uma chamada democracia liberal, isso é uma lei antitruste: você não pode permitir a uma mesma empresa um alcance desses em determinado setores.

Gustavo Gindre Gustavo Gindre afirmou existir, hoje, um cenário de mudanças ocorrendo em todo o Brasil, por exemplo, com o desenvolvimento de tecnologias que permitem mais acesso às diversas mídias, em um movimento de convergência. Gindre lembrou que houve um enfraquecimento da capacidade de regulação do Estado e disse ser necessário repensar a legislação - que, segundo ele, é confusa, envelhecida, segmentada e veta a participação da sociedade civil.


A primeira grande condição para pensar em políticas públicas é perceber que temos um cenário de convergência tecnológica. Que está se dando muito mais velozmente, inclusive, do que nós acreditávamos que se daria. Não sou futurólogo para tentar imaginar o que vai surgir disso, mas é preciso saber que esse cenário clássico que tínhamos de rádio, TV, internet, telefone, essas coisas, sempre tratadas de forma estandardizada e segmentada, ele desaparece. A segunda grande característica é a concentração empresarial, que inclusive se vale desse próprio fenômeno de convergência tecnológica. Mais aptos estarão a sobreviver aqueles atores do mercado que conseguirem dar conta de todos esses meios. Eu costumo usar para classificar essas empresas um conceito de um amigo muito caro que faleceu no ano passado, o sociólogo uruguaio René Dreifuss, que morou muito tempo no Brasil: é o conceito de tecnobergs, que são atores de mercado com uma base tecnológica extremamente sólida, que cada vez mais fazem uso intensivo da produção de conhecimento. É impossível pensar na sobrevivência de grandes atores no mercado que não sejam ao mesmo tempo grandes produtores de conhecimento e não tenham um laboratório funcionando a todo vapor. O fundamental é onde está a produção do conhecimento, onde estão os laboratórios. E esses espaços são pouquíssimos descentralizados. Mas então por que tecnobergs? Porque ele faz uma brincadeira com a idéia dos icebergs, aqueles colossos imensos de gelo nos oceanos que, curiosamente, só têm uma parte visível. A parte da produção, aquela parte que nos é mais evidente, é a parte da superfície. É pouco visível o resto todo. E esse resto, na metáfora dos tecnobergs, é a produção de sentido, é a produção simbólica. E a terceira pré-condição pra gente pensar no cenário das políticas públicas de comunicação no Brasil é o absoluto enfraquecimento da capacidade da regulação do Estado. Estado que vem sendo desmontado, ao longo dos tempos. Na nossa área, o paradigma é o "silêncio ensurdecedor" do Ministério das Comunicações. O Ministério das Comunicações foi recuando, recuando, e o governo Lula manteve essa característica. O discurso do governo acabou sendo o de que a regulação se faz exclusivamente pelo viés técnico e que o viés técnico não é político, portanto não cabe a participação da sociedade. Ora, se eu considero as comunicações um fenômeno técnico como, por exemplo, o espectro eletromagnético, que só nós cabe reconhecer ou não, obviamente descarto a possibilidade da política e retiro a possibilidade da participação da sociedade. E é a esse fenômeno que temos assistido nos últimos anos.


É a retirada do Estado do seu atributo de regulação. Curiosamente, em uma área em que grande parte dos meios utilizados são outorgas públicas, portanto trafegam por propriedade pública, ou seja, justamente numa área em que o Estado deveria ter uma maior incidência. Para lidar com esse fenômeno de velocíssima convergência tecnológica, de crescente concentração empresarial e de um Estado enfraquecido, qual é a legislação que temos hoje que suporte, por exemplo, a ação da sociedade civil? Temos, digamos assim, o que deveria ser a coluna vertebral das políticas de comunicação no Brasil, que é o Código Brasileiro de Comunicações. Ele é de 1962, portanto de quando a TV em preto e branco ainda estava se introduzindo no Brasil. Sofreu algumas transformações em 1967, e não preciso lembrar a vocês o que acontecia no Brasil em 1967, portanto qual o espírito que embasou essas alterações. Depois, em 1997, sofreu um transformação ainda mais radical, que é o legado com o qual temos de lidar hoje. O governo Fernando Henrique fez justamente o contrário do governo americano. E isso um ano depois de os EUA reverem sua legislação na área das comunicações aprovando o Telecommunication Act, que é uma lei que já começa reconhecer de maneira acentuada esse processo de convergência. O Brasil criou uma divisão absolutamente artificial entre radiodifusão e telecomunicações, como se se tratasse de dois universos distintos. A lei vai no sentido contrário, separa artificialmente esses dois, cria uma Lei Geral de Telecomunicações que é um, digamos, marco regulatório para a área. Esse marco está ultrapassado, insuficiente, mas cria uma agência pra dar conta dessa regulação, que é a Anatel, e cria um limbo no outro lado. Há uma eterna proposta de que um dia virá uma Lei Geral da Comunicação Social Eletrônica {o acompanhamento dessa discussão pode ser feito no site do Indecs}. capaz de regular o que ficou de fora da Lei Geral de Telecomunicações. Essa lei nunca vem, não surge. Houve esboços que vazaram para a sociedade, mas de fato isso nunca se tornou oficial, no governo Lula tampouco. O motivo dessa separação me parece bastante fácil de entender: o governo Fernando Henrique precisa correr velozmente com a privatização do sistema Telebrás antes do processo eleitoral de 1998. E ele sabia que tocar na questão da radiodifusão era um vespeiro. A polêmica em torno da Ancinav, que tem uma abrangência muito menor, mostra o tamanho do vespeiro se ele propusesse discutir a questão da radiodifusão no Brasil. Então era preciso privatizar de um lado, velozmente, sem tocar no outro. E qual é o cenário em que nos encontramos hoje? Temos uma legislação absolutamente incapaz, confusa, envelhecida. E ela veda de uma maneira quase radical a participação da sociedade civil.


A sociedade civil não existe nesse cenário. E precisa arrombar a porta dessa festa e se fazer presente de forma mais incisiva, sob pena de estarmos completamente desaparelhados para os desafios que o século 21 vai colocar para a comunicação e para a própria democracia.

Debate com o público Acesso à informação Sean Sióchru Eu concluo minhas palavras enfatizando a necessidade de liberdade de expressão, lembrando que todos precisam ter acesso à informação e a garantia do direito à educação. O acesso à informação no Brasil é dificultado pelo alto índice de analfabetismo. Eu acho que é necessário explorar atividades no nível local, para apropriação dos meios de comunicação por cidadãos e cidadãs. Eu desejo que as pessoas entendam o quanto este assunto é complexo e entendam também a importância de buscarmos soluções permanentes

Marco regulatório Gustavo Gindre Me parece que o grande problema da comunicação hoje é um marco regulatório, ou seja, pensar isso do ponto de vista unificado, e não mais fragmentado. Me incomoda muito quando vejo o movimento de radiodifusão comunitária atirando para um lado, outro pensando em uma outra política para cá, e a gente está indo na contramão do que a própria tecnologia e do que próprio mercado nos impõem. Quer dizer, cada vez mais isso é tratado de maneira global. E a gente, para se contrapor a isso, pensa de modo fragmentado. Portanto eu acho que a regulação é mais do que regulamentar o artigo 223 da Constituição, que pensa o público, o privado e o estatal. É pensar o marco regulatório para o campo da comunicação. Aí que entra a capacidade de agir taticamente, sabendo modular esse grande universo de acordo com a conjuntura, trabalhando com o interior do Congresso, enfim, nos articulando com a sociedade civil. Eu acho que a gente tem a tarefa aí de pensar globalmente.


Representatividade no Ministério das Comunicações Gustavo Gindre A gente tem que resgatar a bandeira, essa deveria ser uma das nossas lutas: resgatar a idéia de que o Ministério das Comunicações é um espaço importante do governo e que deve ser ocupado como outros ministérios. O Ministério do Meio Ambiente tem lá militantes da sociedade civil, que vieram do movimento socioambiental. Mesma coisa serve para o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Ministério da Cultura, que tem lá pessoas que são da militância na área da cultura e estão lá. O Ministério das Comunicações não tem isso.

Governança da internet Gustavo Gindre Uma das vitórias no interior do governo Lula é a governança da internet, esse termo tão estranho. Afinal de contas, a internet tem governança? Isso não é anárquico? Como é que isso funciona? Um amigo meu costuma dizer que internet é água e Deus. Então por que tem governança? E quando você fala em que existe a possibilidade de ter uma governança disso, a pessoa até estranha, foge ao senso comum. Enfim, existem espaços de governança da internet, existem espaços internacionais. Talvez o mais discutido seja a Icann {[www.icann.org] A Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (Icann), ou Corporação Internet para Nomes e Números, coordena o sistema de registro e distribuição de nomes de domínio e endereços IP na Internet}, que tem sede na Califórnia, nos Estados Unidos. Cada país tem a sua própria estrutura de governança, que não segue um modelo único, cada país adota o seu. O Brasil, desde o governo de Fernando Henrique, tem o seu Comitê Gestor da Internet, que é o órgão que cuida da governança da internet no Brasil. E, por conta de uma pressão, de uma articulação da sociedade civil, a partir do governo Lula, o Comitê Gestor da Internet no Brasil passou a ser o primeiro órgão de governança da internet no mundo a ter eleições.


REDES Estiveram na mesa os palestrantes Leonardo Brant, International Network for Cultural Diversity (INCD); Luiz Antônio Correia de Carvalho, da Rede de Informações para o Terceiro Setor (Rits), e Pablo Ortellado, do Centro de Mídia Independente, além da mediadora Cristiane Ramalho, do Portal Viva Favela.

Leonardo Brant Leonardo Brant centrou sua fala na experiência da rede International Network for Cultural Diversity (INCD). A rede fomenta práticas de valorização da diversidade cultural e defende que os bens simbólicos não são menos importantes do que os produtos e serviços convencionais. A International Network for Cultural Diversity (INCD) é uma rede internacional da sociedade civil, que trabalha em paralelo com rede de ministros de cultura, formada por produtores culturais, artistas, intelectuais que pensam a cultura e que tentam formar uma agenda política, uma estratégia de ação em torno da questão da diversidade cultural. Essa rede funciona basicamente em processos virtuais (há apenas uma reunião presencial anual; a de 2004 aconteceu em Xangai, China), desenvolvendo estratégias para - nos ambientes de interlocução, de debate e de formulação de políticas internacionais - conseguirmos minimizar os efeitos da globalização sobre as culturas locais. Trabalhamos pelo direito à opção, pelo direito da autonomia dos cidadãos poderem ter o direito a escolher, ter um leque de opções, um cardápio para poder assistir ao filme que quiser, ligar a televisão e assistir a variadas produções de imagens cinematográficas, de audiovisual e também de música etc. Esse trabalho é um trabalho de articulação. Ou seja, estamos obviamente trabalhando em rede, nãohierárquica, animada por um escritório que fica no Canadá. Temos mais dois escritórios regionais e um que está sendo montado aqui no Brasil, que vai ser comandado pelo Instituto de Diversidade Cultural. Os Estados Unidos fazem uma pressão forte em relação à inclusão dos chamados produtos culturais nos acordos bilaterias de comércio. O audiovisual para os EUA é tão estratégico que é considerado como uma porta de entrada de toda uma série de produtos e serviços, de um modo de vida daquele país e, obviamente, de todos os seus produtos e marcas. O importante neste processo de trabalho em rede é estarmos conectados e nos informando das políticas dos outros países, para podermos trocar exemplo, ter diálogos com os governos, fazer pressão


quando necessário, prestar informação e ajudar os governos a estabelecerem políticas efetivas na promoção e na preservação da diversidade cultural. Discutiremos na nossa rede agora justamente o papel das novas mídias e dos meios de comunicação, além de formas de democratizar, criar instrumentos efetivos e, junto com os colegas da América do Sul, uma agenda comum, a fim de trabalharmos em rede, não-hierárquica, mas animada por nós pois pretendemos ter um sistema de distribuição de informação entre as pessoas interessadas nessa troca.

Pablo Ortellado Pablo Ortellado, na contramão da literatura sobre redes que vem sendo consolidada, defendeu que a internet, apesar de teoricamente ser uma rede perfeita, não é um bom exemplo para se pensar em rede, porque "não ilumina" os conflitos presentes na realidade social. Para Ortellado, é justamente a capacidade auto-organizativa dos movimentos sociais que está na base das grandes mudanças organizacionais. A questão das redes surge com dois aspectos importantes: em primeiro lugar, quando se lê a literatura sobre o assunto, normalmente toma-se como referência a internet. Por outro lado, a questão fundamental é que existem as redes sociais, que têm formas diferentes de organização social. Assim, não acho que a internet seja um bom modelo para pensar redes sociais. Porque, quando se fala em rede, evocase a idéia de uma forma de colaboração ou de associação descentralizada, onde as partes interagem umas com as outras sem um centro. Essa é a idéia de rede que está sendo aplicada a várias coisas: redes neurais, forma de organização em biologia, uma série de coisas. Assim, a internet pode ser, de certa forma, um bom modelo para se pensar redes, porque nela todas as pessoas a acessam de seu computador e podem interagir umas com as outras, a princípio sem mediação de um centro. Se olharmos simplesmente o aspecto de todas as possibilidades de comunicação, ela é uma rede perfeita. E é justamente por isso que acho que ela não traz, não dá luz, não consegue iluminar as redes sociais. A princípio, o modelo mais ou menos perfeito da internet não gera os conflitos que existem nas redes sociais. Na internet, existe a situação ideal, onde os conflitos são muito minimizados. E isso não acontece em outras formas de organização social, onde existem muitos conflitos. Nas formas de organização tradicional, há centralização do poder, e isso é defendido como unidade que dá força para a estrutura. Neste contexto, as redes, porque descentralizadas, são uma enorme revolução e, em teoria, cada vez mais tendem a se organizar de maneira democrática. Ao contrário do que dizia a velha teoria da organização centralizada - segundo a qual isso enfraqueceria o movimento -, a descentralização cria uma enorme força. Permite que pessoas que normalmente não se associariam - pois teriam que abrir mão de


diversas coisas e se submeter a uma ordem superior - possam trabalhar de maneira plural, coexistindo, articuladas de acordo como uma necessidade comum. A unidade se baseia em princípios e um objetivo comum. Isso é a grande novidade que existe na organização social contemporânea. E, para mim, é o grande problema novo, pois traz uma série de outros problemas que aos quais as respostas antigas não se aplicam.

Luiz Antônio Carvalho Luiz Antônio Correia de Carvalho destacou a necessidade de se articularem mobilizações sociais e políticas públicas. Ele afirmou que o fortalecimento da sociedade civil exige a presença do governo para promover mudanças estruturais. Carvalho defendeu ainda a inclusão digital, que, para ele, também deve ser garantida pelas políticas de inclusão social. As revoluções que o século XX trouxe para nós parecem, de um lado, muito venturosas, com as possibilidades abertas. Talvez a revolução mais característica dessa nossa geração seja a o salto brutal na capacidade de processar informação proporcionada por computadores e pela internet. As desigualdades sociais brasileiras são algo que não se precisa esclarecer, são nítidas. O problema da inclusão digital é um reflexo disso. Ou seja, não há como o país avançar, as organizações, os direitos, mais e mais pessoas terem acesso às tecnologias de informação e comunicação, enquanto, no interior dessa revolução digital, houver o padrão de desigualdade que aí está. Uma rede de colaboradores, movidos pelo impulso voluntário não resolve sem uma mobilização e uma política pública que garanta algumas questões infra-estruturais básicas. Sou historicamente adepto das redes, de se identificar quando não se está sozinho, quando existem redes trabalhando em torno dos mesmos objetivos e temas. É preciso transformar essas redes que existem em si, em redes para si. Ou seja, conscientes de que existe ali uma rede, de que existem outros atores e de que é necessário promover um diálogo com esses atores, em torno de seus objetivos, mantendo as diferenças, as identidades. Ultimamente ando preocupado com a idéia de que o fortalecimento da sociedade civil e de sua organização em rede para tratamento de algumas questões libere o Estado de suas responsabilidades. No interior do país, as opções de telecentro - sobretudo nos cantões da Amazônia - se restringem a um ponto em quartéis, igrejas, muitas vezes sem luz elétrica. Neste contexto, a articulação de redes, como o Fórum Amazônia, pode ajudar a solucionar problemas ou pensar políticas públicas.


Debate com o público Descentralização e relações de poder Leonardo Brant Como não sou teórico em questão de redes, vou falar o que acontece com a nossa rede, a INCD. Ela trabalha em colaboração com os governos que desejam implementar políticas culturais de preservação e promoção da diversidade. E trabalhamos, obviamente, fazendo pressão, no mais legítimo papel da sociedade civil, naqueles governos em que não tenham uma agenda política direcionada para essa questão. No caso brasileiro, o governo é de total colaboração, embora existam pontos de pressão.

Pablo Ortellado Na questão do poder dentro das redes, muitas tentam buscar a independência e combatem poderes como o Estado e o mercado. A questão é como se relacionar com eles de forma a garantir a autonomia, e não a comprometê-la. As redes são uma espécie de política pré-figurativa, a forma de organização descentralizada e autogestionada é um anúncio de como a sociedade deveria ser. Mostram que nós temos capacidade de gerir as coisas por nós mesmos, sem a necessidade do Estado e de formas hierárquicas e controle.

Autonomia das redes sociais Pablo Ortellado Fala-se das organizações e redes como se fossem uma espécie de contraparte da forma mais avançada de organização do capital e que elas estariam corroborando para o processo de deterioração dos direitos sociais. Isso é completamente infundado, porque, em primeiro lugar, esse movimento veio das pessoas que estavam resistindo. Em segundo lugar, existe uma diferença fundamental entre essas redes sociais e as redes das empresas. Hoje em dia as empresas desmembraram a cadeia produtiva: cada parte é feita por uma equipe relativamente organizada que tem metas a cumprir. Mas quem determina as metas é a empresa. E é absolutamente isso que as organizações sociais não fazem, porque elas definem suas próprias metas. Elas são autônomas no sentido muito mais radical, porque sempre foram autônomas.


Problemas inerentes Pablo Ortellado As redes, por natureza, são dinâmicas e um tanto precárias. Visam a uma finalidade determinada, agregam-se a partir de acordos muitos pontuais. O que se faz quando uma rede se estabelece de maneira permanente e você se organiza ainda em forma de rede? Como proceder quando vai incorporando mais pessoas e vão surgindo novos problemas ou há que se acrescentar novos princípios, novos objetivos? Existem problemas enormes quando se lida com uma rede nacional: tomar decisões políticas, gerar recursos dentro desse contexto etc. Qual a autonomia dos grupos individuais? O que fazer quando membros da mesma rede tomam atitudes discordantes?

Dicotomias competição/cooperação e global/local Pablo Ortellado Essas duas oposições entre global/local e cooperação/competição estão misturadas na forma de organização em rede. Uma das grandes inovações deste modelo é que essas duas coisas, antes separadas, conseguem estar juntas. Uma empresa capitalista, que é competitiva por natureza, pela própria lógica dos sistemas, incorpora elementos de cooperação que sempre estiveram ali, mas estavam escondidos e que passaram a ser mobilizados pra fomentar a competição entre as empresas. Ou seja, fomenta-se a cooperação dentro da empresa pra promover a competição entre as empresas. Por outro lado, sobre a dicotomia global/local também se integra. Como a organização em rede dá muita autonomia para as partes, permite que estas partes possam se auto-determinar, ter seu trabalho local sem comprometer o todo. Ou seja: podem se articular em nível global internacional, tendo um trabalho comum sem comprometer sua autonomia do trabalho local. O formato das redes está misturando essas separações.

Novas mídias Do painel que encerrou o encontro Debatendo Cultura, Comunicação e Cidadania, participaram Lorenzo Vilches, professor da Universidad Autónoma de Barcelona e autor do livro Migração Digital; Giseli Vasconcelos, do Grupo Mídia Tática Brasil; Luis Cerquinho Cajueiro, do projeto Re:Combo, e, como moderador, o cineasta Francisco César Filho.


Lorenzo Vilches "O que é mais importante: escrever ou se comunicar?". Esta foi a pergunta lançada por Lorenzo Vilches para demonstrar a importância da apropriação cotidiana das tecnologias e das novas mídias digitais, por parte dos indivíduos. Segundo ele, todos têm possibilidade de receber informação. Porém, nem todos têm acesso a ela ou a capacitação para usá-la. A realidade é cada vez mais desenhada, independente de ser ou não digital. Fala-se também de uma realidade aumentada, pois, cada vez que utilizamos uma tecnologia, uma interface, estamos aumentando a realidade. Nesse momento manejamos a televisão, os celulares, o computador e uma série de outros materiais tecnológicos que são a interface para nossa vida. Assim como os meios são cada vez mais dispersos, também nosso contato com o mundo tecnológico e o teclado do computador em breve vai desaparecer. Por que isto? Ele vai estar superado rapidamente, assim como foi com o telefone, porque os computadores hoje em dia já escutam e falam. A questão então será como escrever, se nos tomam esse meio de fazer? Não é importante a escrita? Como vamos nos comunicar? A questão é: escrevermos ou nos comunicarmos? O que é mais importante? Há que se entender que devemos responder que é a escrita o mais importante, pois vivemos numa cultura literária onde a lingüística é dominante. Mas há quem diga que com essa cultura não se vai a lugar algum, pois o mais importante é comunicar-se, e não necessariamente escrever. A questão é sentir. Nós nos comunicamos para sentir coisas, e não para escrever. Isto é a migração digital, isto é o que se está propondo como problema no universo desta imigração e é isso que nos impulsiona cada vez mais a alcançar outros mundos. As mensagens escritas são cerca de 10% do faturamento das empresas de comunicação. A previsão da União Internacional de Telecomunicações diz que nesse momento os telefones móveis já superam os 100 milhões de telefones fixos em todo o mundo. O problema, segundo os experts do instituto, não é de infra-estrutura, não é a falta de celulares, não é a falta de tecnologias, e sim uma questão de mentalidade. Todo mundo tem possibilidade de acesso a esse meio, independente de questões econômicas ou de mentalidade. O problema consiste em descobrir os caminhos para vender esses objetos, essas tecnologias, para as classes chamadas baixas. Por isso é que havia um papel importante por parte dos estados, da ONU, das ONGs, para terminar com a exclusão digital, entre outras coisas, para a universalização dos celulares. Outra alternativa que surge cada vez com maior força é o corpo humano como autogerador de tecnologia, onde a gesticulação, os movimentos oculares e de nossos membros podem dar ordem às interfaces com as quais seria possível gerar comunicação.


Experimentando esses meios na Europa, teve-se uma grande aceitação nas empresas, fundamentalmente porque trata-se de uma nova tecnologia que incorpora o corpo, que, além disso, passa a ser uma tecnologia a partir do momento que armazena informação. A questão é o direito da palavra aos povos, a questão é o direito de imagem, e isso fundamentalmente é a questão do patrimônio universal da humanidade, o audiovisual. Toda imagem - tanto das telas do televisor quanto do cinema - que se pode patrimonializar, que se pode guardar como em bibliotecas, vai de alguma maneira permitir que os povos tenham um próprio reconhecimento de sua identidade. Por isso os documentários são tão importantes. Já há muitos anos a Unesco solicitou a todos os governos do mundo que se preocupem justamente em preservar a identidade que carregam os audiovisuais. A informação é a porta do conhecimento. É possível que tudo aquilo que é expressão cultural não tenha que passar pelo mercado? Depende de uma série de fatores: dos efeitos dessas tecnologias na sociedade, da teoria das representações, das políticas sociais que de alguma maneira contemplem uma democracia de comunicação, dos mediadores, do que são os representantes políticos e os culturais. Assim tem sido sempre. Não é verdade que o povo crie seus próprios mitos. Os mediadores são os artistas, são sempre pessoas de elite da sociedade que criam os mitos e logo depois o povo os assume. No âmbito da tecnologia, dos novos meios, existe uma autonomia de respeito aos valores sociais, mas não necessariamente aos valores que transmitem a tecnologia. Não existe cultura pré-tecnológica. Quando nós pensamos em utilizar o computador não temos nenhuma cultura que esteja preparada para se pensar em como utilizar o computador, nem para usar os celulares ou os meios interativos. Para onde vai a cultura, então? Espectadores e usuários dependeriam, portanto, em parte de valores culturais e das mediações da cultura e, por outro lado, de relações interindividuais, diretas, em tempo real com outras pessoas que estariam atuando, por exemplo, nos teatros, nos correios.

Giseli Vasconcelos Giseli Vasconcelos apresentou o projeto do Grupo de Mídia Tática Brasil, explicando o que é este conceito e contando a história do surgimento da iniciativa. O festival Mídia Tática {evento inaugural do projeto Mídia Tática, realizado de 13 a 16 de março de 2003} trouxe uma série de aproximações reais, entre produtores independentes brasileiros e da forma como eles costumavam se relacionar. Até então, existia o [Centro de] Mídia Independente, que conseguia reunir essa rede de produtoras de mídia trocando e publicando estas informações, mas não conse-


guia formar uma rede em que trocavam participações e ações. O Mídia Tática nasceu daí, provocando essa reação entre os grupos. Durante os quatro dias do evento inicial, na Casa das Rosas, em São Paulo (SP), o envolvimento entre os grupos deu as bases para os próximos passos dos projetos desenvolvidos dentro do Mídia Tática.org. A forma como os workshops foram propostos e como os grupos de mídia comunitária e da periferia se aproximaram do Festival trouxeram as bases para um projeto chamado Autolabs, nascido quase um mês depois do Festival de Mídia Tática Brasil. Um dos objetivos era discutir o que é essa tal inclusão digital e a formação de redes e telecentros - que possibilitavam o acesso livre à internet, mas não fomentavam a discussão sobre a conscientização do uso desses meios. Como possibilitar que jovens comecem a repensar o que é TV, o que é rádio, o que são esses meios muito próximos às pessoas, que influenciam na formação de opinião e no processo educativo de todos nós? O Autolabs nasce daí. A idéia central era que nenhuma organização não-governamental participasse dessa rede de replicação e troca de informação, somente grupos independentes ativistas ou produtores independentes. O Autolabs foi encaixado dentro de um projeto de política pública {o projeto "Formação Cidadã, Capacitação Ocupacional e Aprendizagem em Atividades de Utilidade Coletiva no Município de São Paulo", financiado pela Unesco e pela Prefeitura de São Paulo - com duração prevista de 18 meses e atuação em três distritos da zona leste de São Paulo - no qual ficou responsável pelo eixo Novas Mídias. Dentro deste contexto, uma questão importante que se colocou foi como desenvolver metodologias para práticas espontâneas e, muitas vezes, dependentes de um contexto para se realizarem? Mesmo assim, os grupos envolvidos desenvolveram metodologias muito particulares e riquíssimas, que na prática discordavam e, mesmo assim, transformaram-se e originaram planos de trabalho extremamente válidos. Foram realizadas oficinas sobre informática livre para mídia independente e manutenção para computadores reciclados; houve o núcleo de mídia eletrônica - que tratava de O Re:Combo é um grupo, um coletivo, uma cooperativa de produção artística, formada por músicos, designers, artistas plásticos, advogados, professores, jornalistas, psicólogos, poetas, escritores, que está espalhada por todo o Brasil. A maioria das pessoas está em Recife, mas há membros em João Pessoa, Salvador, Rio, São Paulo, Londres, México. Produzimos em todo tipo de mídia, usando música, texto, imagem etc. A partir da criação de música, depois da criação de imagens e de obras de arte, artes plásticas, acabamos descambando para fazer software, muito voltado para artes plásticas.


O Re:Combo recebeu convite para tocar no festival Abril pro Rock [Festival anual de música independente, que acontece desde 1993, em Recife, Pernambuco], três ou quatro anos atrás. Fizemos uma instalação, com música ao vivo: dentro da feira paralela que acontece no mesmo espaço do festival, ocupamos um quiosque, gradeamos e ficamos durante quatro horas, nos três dias do evento, fazendo música. Mas antes, para fazer isso, o pessoal do Re:Combo percebeu que teria pouco material para sustentar doze horas de apresentação. Na época, todos do Re:Combo se mobilizaram e mandaram emails para todas as listas que puderam, do mundo todo. A exemplo do que se faz antes de uma conferência - quando acontece o call for papers, a chamada de trabalhos a serem apresentados no evento - fizemos o que chamamos de call for noises, pedindo "barulho" do mundo todo. Chegou barulho do México, da Iugoslávia, da antiga União Soviética. São coisas que a gente usa até hoje e nunca pararam de chegar. Quanto mais ambiciosos eram os projetos, mais gente se juntava no Re:Combo. Já existia o senso comum de que tudo feito dentro do Re:Combo era livre para quem quisesse pegar e modificar. Mas não havia um texto realmente dizendo isto, de acordo com a lei. Então, em 2003, um advogado chamado Caio Mariano, que já fazia parte do grupo, escreveu a Lucre - Licença de uso completo Re:Combo. Qualquer coisa, qualquer manifestação, qualquer objeto sob esta licença estaria desatrelado de direito autoral. Qualquer pessoa pode usar, contanto que a obra fruto do uso desse objeto também fosse alienada pela mesma licença. Surgiu daí um raciocínio bem simples: o da criação da licença. Só não tínhamos percebido que isso era uma semente de direito autoral livre. A partir do momento que vários objetos começassem a ser feitos sob essa licença, com o tempo isso se expandiria exponencialmente e o direito autoral ia ser eliminado. Na primeira visita de um representante da http://www.creativecommons.org/ {uma organização sem fins lucrativos dedicada a expandir a quantidade de trabalho criativo, para que pessoas possam legalmente partilhar conhecimento e criar a partir de trabalhos desenvolvidos por outras pessoas. Mais informações aqui} ao Brasil, o John Perry Barlow, ele conversou com o ministro da cultura Gilberto Gil e foi a Recife, conheceu o Re:Combo, fez uma palestra no Porto Digital {um dos maiores parques tecnológicos do Brasil, com foco em desenvolvimento de software e soluções de tecnologia da informação e comunicação. Criado em julho de 2000, num investimento conjunto do poder público, da iniciativa privada e do meio acadêmico em Pernambuco, o Porto Digital tem o objetivo de promover o desenvolvimento econômico e a revitalização urbana, além de combater a exclusão social}. Ele se interessou muito pela nossa proposta e viu que a licença do Re:Combo poderia se encaixar como sendo uma das licenças Creative Commons. Resolveram fazer uma homenagem ao Re:Combo, pegaram a licença de


sample {técnica que consiste em extrair um trecho de uma música e reproduzi-lo, transformando em um extrato que será reutilizado em músicas; ato de capturar e registrar digitalmente sons, frases musicais ou timbres sonoros, por meio de um aparelho chamado de sampler, com o propósito de manipulálos e recombiná-los} da Creative Commons e renomearam para licença Re:Combo. O que foi lindo, achamos o máximo, mas não tinha nada a ver com a nossa licença. As licenças Creative Common são bastante radicais no que diz respeito à autoria: elas atrelam o nome do autor à obra e às suas conseqüências até o infinito. E o Re:Combo conseguiu ser bastante radical também, porém no sentido contrário. A nossa licença se baseia em abrir mão do direito autoral, do nome do autor na obra. Assim, ficamos muito agradecidos pela homenagem da Creative Commons, mas no fundo não tinha nada a ver. Posteriormente retiraram o nome da Re:Combo da licença de sample, que agora chama-se Samplemy. Eles disseram que o nome Re:Combo não era explicativo o suficiente. No futuro do direito autoral, vejo claramente duas questões. Primeiro, existe um arcabouço de conhecimentos já existentes que, para o bem e para o mal, tornaram-se mercadoria e estão na mão de corporações por força da lei. Foram feitos honestamente, porém vai ser muito difícil para a humanidade, para o senso comum, para as pessoas comuns, terem acesso à utilização dessas obras, que são de copyright {significa o direito que o autor, o criador, o tradutor, o pesquisador ou o artista tem de controlar o uso que se faz de sua obra. Ou seja, o direito do autor sobre alguma obra} de alguém, a essa altura do campeonato. Em outro cenário, para o novo conhecimento - aquele que é criado agora - o Re:Combo tenta dar o exemplo. Se ele altruisticamente for feito e cedido a outras pessoas, em um futuro bem breve pode-se ter um arcabouço de conhecimento muito grande que seja de uso de todo mundo.

Debate com o público Possibilidade de Internet livre e democrática Lorenzo Vilches Eu diria que efetivamente existe um controle e, com o segundo mandato de Bush, o controle vai continuar. Acredito que, por um lado, vá existir muito mais controle no âmbito das comunicações, sob o pretexto da guerra preventiva, o que passa pelas informações, pelas comunicações, pelas tecnologias. Porém, creio que, por outro lado, ao mesmo tempo, sempre que nasce um sistema de domínio, nasce diretamente sua contraparte.


Direito autoral Lorenzo Vilches Não é verdade que não exista o autor; o autor vai continuar existindo. E diria mais: o conceito do autor é a única luta que se pode ter contra o sistema político. É a maneira que se pode vender, pode-se dizer quem é o responsável, está defendendo uma identidade e a origem de uma cultura. Entendo o autor não como indivíduo, uma pessoa. Pode ser uma pessoa ou uma entidade coletiva. Quando existe um filme, hoje em dia, só quem assina é o diretor, por exemplo, o Woody Allen. Mas, por trás do Woody Allen, existem umas 35 pessoas trabalhando, e elas não assinam. Então, em primeiro lugar, quem é o autor? Em segundo, tem-se que defender o autor. Não é o autor quem defende o mercado. Ao mercado interessa que o autor cultural desapareça. O jornalista, o fotógrafo, eles não assinam a matéria, a fotografia. Assinam uma só vez. Na segunda vez, a agência já não lhes dá mais o crédito. Aparece "Agência tal Express" etc.

VJ Yellow Quando se tem um mercado dominado pela lei do copyright (que é uma palavra que tem etimologia muito interessante: direito de cópia), não se está recompensando o autor da obra. Recompensa-se quem domina os meios para multiplicar as instâncias daquela obra. Com a popularização dos meios de comunicação, mesmo que hoje a gente não viva em um cenário muito bom ou democrático, no futuro próximo as pessoas vão ter o direito de ser disseminadoras de seu próprio trabalho. Então o direito de autor seria um obstáculo para o desenvolvimento. Acredito que o conhecimento da humanidade se constrói em cima dele próprio e que está na hora de parar com méritos de quem é dono ou de quem não é dono do conhecimento.

Conceito, objetivo e proposta do Mídia Tática Giseli Vasconcelos É um conceito que abrange as formas que ativistas, técnicos, cientistas utilizam para combater a forma como a grande mídia se expõe e predomina no mundo. A partir deste conceito, criou-se uma rede em torno do termo Mídia Tática, reunindo pessoas que discutem principalmente as práticas - uso de rádio, streaming, wi-fi, novas e velhas tecnologias - como forma de subverter o padrão de informação nos processos midiáticos.


A proposta é experenciar mais essas novas pedagogias, a partir das práticas dos grupos envolvidos ou em vias de se envolver neste processo, estudar, escrever e transformar isso em uma realidade passível de ser processada não só por ativistas ou técnicos, mas dentro de um sistema de educação, de iniciativas governamentais e institucionais, a fim de ser absorvida, como forma de uso de espaços e de meios por quem queira transformar e tornar sua voz ativa dentro desse processo.


DIREITO À COMUNICAÇÃO PARA PÔR FIM AO CICLO PERVERSO DE DOMINAÇÃO Sean Ó Siochrú* Um boa porta de entrada para novos comentários sobre a idéia do direito à comunicação é a idéia da liberdade. A maioria das pessoas acredita que é capaz de entender a estrutura básica da liberdade de expressão. O ponto mais freqüentemente citado é o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, endossado por cada membro das Nações Unidas:

"Todos tem o direito à liberdade de opinião e de expressão; este direito inclui a liberdade de expressar opiniões sem interferência e de procurar, receber e repassar a informação e as idéias através de todo e qualquer meio, independentemente de limites".

O que parece claro e transparente é algo que todos nós podemos compreender: o humilde e o poderoso, cada um tem liberdade idêntica para procurar, receber e dar informação? Isso é realmente simples? É suficiente? Quão real será a liberdade para procurar e receber informação, se nossos governos insistirem em manter sigilo? E se a liberdade de atos da informação for demasiado restritiva? E se você não tiver nenhum direito de participar nos debates do governo? E se não tivermos acesso aos meios básicos de recepção, como a internet? E se houver o monopólio de algumas vozes e elas escolherem não "virar o barco", se a mídia tiver interesse políticos ou empresariais, se der prioridade ao lucro sobre os povos? E se usar sua voz igualmente para todos? E se os estudantes não tiverem recursos para os preços cobrados pelo monopólio? Ontem pro curei um artigo que me custou 24 euros para lê-lo por 30 dias. Quão real é a liberdade de informação se a língua "oficial" não for sua língua materna? E se o preconceito e o racismo pararem de se escutar? E se você não puder demonstrar publicamente seu ponto de vista? E se não puder se comunicar confidencialmente, sem medo de fiscalização? E se a informação que você dá for usada para finalidades diferentes daquelas pretendidas?


Um problema com a idéia da liberdade da expressão é que há aqueles que a querem somente para si. E, quando apresentam sua versão, ela de fato suporta apenas uma realidade muito estreita. Na prática, é esta versão que nos está sendo imposta na agenda neoliberal. Ela é baseada conceitualmente num grupo de indivíduos intercomunicados, cada um com um mesmo direito a considerar: o de dar e receber idéias para que se chegue a decisões de benefício mútuo - esse é o grande ideal. O problema, porém, é que não vivemos como um grupo de indivíduos com os mesmos poderes. Vivemos em uma sociedade em que a maior parte da comunicação entre os povos é dada, mediada e filtrada por meios de comunicação de massa, governos, corporações comerciais, grupos de interesse e muitos outros, todos buscando chamar atenção, influenciar e controlar o fluxo de informações. Vivemos também em uma sociedade com instâncias muito variadas de acesso ao poder. A liberdade de expressão, por si só, pouco pode fazer para limitar o poder dominador das vozes mais fortes, como as da grande mídia e dos poderosos. Se um sem-teto que busca chamar atenção para a injustiça e um empresário de mídia têm, perante a lei, exatamente o mesmo direito de expressão, na prática o primeiro carece de meios para fazer ouvir sua voz, ao passo que o segundo tem todos os recursos para divulgar sua mensagem e ampliar seu alcance para o maior número de pessoas. Assim, um desafio estratégico para a liberdade de expressão é a alternância conceitual entre a idéia do debate entre um grupo de indivíduos e uma sociedade complexa e diversa com uma forte comunicação de massa e várias configurações de poder. Um objetivo do conceito de direito à comunicação é justamente contribuir para essa alternância. Quem defende o direito à comunicação deve apoiar firmemente a idéia da liberdade de expressão. Mas reconhecemos que é preciso ir mais longe, se desejamos articular e assegurar uma comunicação para todos. Mas o que é esse direito? A premissa do direito à comunicação não é apenas o direito de manifestar opiniões ou de procurar, receber e partilhar informação - que são direitos de um indivíduo ou de uma entidade -, mas também o de se comunicar, que é a realização de uma interação entre pessoas. Ou seja: trata-se de consolidar um ciclo que inclui não apenas procurar, receber e compartilhar, mas também ouvir e ser ouvido, compreender, aprender, criar e reagir. A idéia do direito à comunicação sustenta que a liberdade de interagir é, em última análise, gerar um ciclo de comunicação a partir do qual possam resultar o aprendizado, a compreensão e a cooperação. Mas como assegurar esse ciclo? Não é possível forçar as pessoas a ouvir ou aprender. Em vez disso, devemos considerar as condições capazes de viabilizar esse ciclo positivo de comunicação.


Na verdade, a legislação internacional já reconhece a maioria das condições para que esse ciclo se realize. E isso inclui:

- o direito de se reunir e se manifestar - o direito à privacidade - o direito à expressão cultural e ao uso da sua língua-mãe - o direito a uma mídia plural - o direito de acesso à informação e produção de informação - o direito à autodeterminação - o direito de receber informação de interesse público ou particular - o direito à educação - o direito de aproveitar os benefícios da criação e do progresso científico

Todos esses direitos têm ao menos uma dimensão fortemente baseada no ideal de que a liberdade de expressão se torne uma realidade. E a maioria deles já está contemplada na legislação internacional. Juntos, compõem um claro painel do direito à comunicação e podem conduzir ao florescimento da liberdade de expressão. Quebram barreiras entre pessoas, reduzem as distorções e a contaminação do conhecimento, oferecem mecanismos de capacitação e autodeterminação, alimentam um ambiente de respeito e tolerância. Não obrigam ninguém a ouvir e aprender, mas criam as condições sociais que tornam isso possível e mais provável. Dessa forma, o direito à comunicação é mais do que a soma das partes. A dinâmica do mundo atual justifica o uso do conceito de direito à comunicação de forma distinta do foco na liberdade de expressão? Sim. Existem várias tendências preocupantes, como esta: embora o controle governamental da mídia tenha diminuído nas últimas décadas, dando espaço a uma cada vez maior multiplicidade de fontes de informação, não houve um aumento equivalente da pluralidade e da diversidade de conteúdo dessas fontes independentes. Em vez disso, a comercialização da mídia estreitou ainda mais o leque de conteúdos significativamente.


Risco de longo prazo No começo, o processo de comunicação e interação era focado na interação e no diálogo entre pessoas. No âmbito da sociedade, percebia-se, a comunicação podia ser vista como um ciclo de interatividade através do qual elementos-chave da sociedade se relacionavam, concluindo um processo de geração de conhecimento, troca e aprendizado, favorecendo o bem-estar social. No que diz respeito aos próprios indivíduos, o processo constitui uma série de "momentos" em um ciclo que envolve criatividade, comunicação, acesso, interação, entendimento mútuo e aprendizado, gerando ainda mais criatividade. Num ciclo positivo, toda a sociedade se beneficia em um contexto mais fértil e criativo, com maior disseminação e uma interação mais profunda, com níveis mais sólidos de entendimento mútuo e aprendizado social. Isto resulta em instituições sociais mais democráticas, atividade econômica sustentável e uma vida cultural mais rica e diversificada. Naturalmente, este é um raciocínio simplista. A criatividade, o conhecimento e o aprendizado estão envolvidos em cada estágio e não se mantêm isoladamente. Os meios de comunicação são parte integrante da esfera pública, da cultura, de tudo o mais. Entretanto é destacando esses "momentos" que conseguimos distinguir mais claramente o impacto dessa dinâmica no processo de comunicação social. Assim, essas tendências podem moldar fundamentalmente as conseqüências da comunicação social e seus beneficiários, através do controle da criação e da propriedade do conhecimento, dos seus processos e meios de disseminação e comunicação e do seu uso na conquista de metas políticas, econômicas e sociais. O risco iminente é que cada momento nesse ciclo vem sendo canalizado para as necessidades do capital e do mercado. A fonte da criatividade se polui e o fluxo do conhecimento é interrompido em diversos pontos, com os frutos dessa criatividade indo alimentar interesses corporativos cada vez mais prósperos e poderosos. O risco maior é que o ciclo do processo de comunicação social seja interrompido, o processo de aprendizado social perca o vigor e, ao final, o processo criativo se transforme e se reduza a uma geração insustentável, de curto prazo, de benefícios para uma minoria. O direito à comunicação - como conceito e como prática - tem o potencial necessário para enfrentar esses perigos.

* Sean Ó Siochrú é representante da Campanha Cris (Direito à Comunicação na Sociedade da Informação), que defende a idéia da comunicação como um direito humano. Mais informações em www.crisinfo.org e www.crisbrasil.org.br. Esta é uma versão resumida do pronunciamento feito durante o Tangolomango 2004.


Encontro Debatendo Cultura Comunicação e Cidadania Coordenação dos Debates Gustavo Gindre

Edição dos Debates Maria Eduarda Mattar Fausto Rêgo

Transcrição dos debates Márcia Lemos

Revisão Fausto Rêgo

Coordenação editorial Marina Vieira

Programação Visual Maria Clara de Moraes

Patrocínio A edição do Encontro Debatendo Cultura, Comunicação e Cidadania foi patrocinada pela Fundação Ford.

Realização Projeto Tangolomango Mil e Uma Imagens Comunicação

www.tangolomango.com.br


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