Jorge Figueira

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PROJECTO INVESTIGAÇÃO ESCRITA CICLO DE LIÇÕES FAUP


PRÁTICA(S) DE ARQUITECTURA

PROJECTO | INVESTIGAÇÃO | ESCRITA Presente a condição histórica de um lugar, de uma comunidade particular – o Porto – queremos tomar como referência a “aventura comum percorrida por três personagens” – Fernando Távora, Álvaro Siza, Eduardo Souto de Moura – e por um círculo variável de amigos. Uma experiência que partilhou, que partilha, o sonho de resgatar Portugal do seu isolamento e, ao mesmo tempo não renunciar à sua identidade histórica – projecção de uma prática da arquitectura que se libertou, que se liberta, das formas históricas, mas não do carácter profundo da sua cultura. Sinal e sedimento de uma identidade não linear, talvez sejam tão só a reunião de gestos de simplicidade de quem procura (procurou) processo e pauta para a elevação da cultura do lugar, para a transformação de uma paisagem – desassossegos da arte da casa-mãe, a Arquitectura. Arquitectura que é afinal um modo de aprender a modificar a circunstância criando nova circunstância, foi, tem sido, princípio e experiência, manifesto e espaço de uma cumplicidade mínima para (a)firmar um projecto para o ofício da arquitectura, estendido, transportado e traduzido, sem grande distância criativa mas com mágica convicção, como atmosfera festiva, como abraço instalador de prática de escola. Prática mansamente cultivada como escola hospitaleira e plural na evolução do “território da arquitectura”. Mas na agitação dessa condição ou na inteligibilidade desse processo, temos como seguro que os passos de hoje ou próximos interseccionam, atravessam, tocam diferentes confabulações e derivações, cruzamentos e desvios. Hoje, sabemo-lo bem, aquela aventura serve a muitas outras hospitalidades, de muitos outros lugares, de muitos outros praticáveis de conhecimento e desenho, de es-

tudo e investigação, de ensino e aprendizagem. É que em boa verdade “fazer um projecto é construir uma distância objecto-sujeito para, nesta distanciação, inventarmo-nos a nós próprios e, simultaneamente, o projecto”. Hoje, talvez seja instrutivo e operativo aceitar que projecto, investigação, pensamento são estações problemáticas na agitação do argumento e na manifestação de sentido da marca “Escola do Porto”. Hoje, talvez seja exigência: libertar o projecto na evolução da arquitectura enquanto encontro controverso entre prática disciplinar e experiência artística – criação, pensamento, conhecimento; averiguar, problematizar na investigação sobre a capacidade propositiva da arquitectura para a definição de lugares, a produção de significados, a sinalização de uma linguagem; tematizar, aprofundar na história o sentido de fundação, de perturbação, de (in)fidelidade do que o que aqui se foi proporcionando e partilhando como arquitectura, como escola, como lugar. Criação, pensamento, conhecimento são, seguramente, condição-disponibilidade de acolhimento do outro: gestos de simplicidade de quem prossegue processo e pauta para desassossegos da arte da casa-mãe – a Arquitectura – na transformação de uma paisagem. À mobilidade dos significados e à complexidade dos materiais que se oferecem à construção da arquitectura, de que forma servir criativamente o destino desta como expressão e projecção física da imaginação, como experimentação e experiência, como conhecimento e acontecimento, sem subverter a sua “coerência aventurosa” pela manipulação arbitrária e/ou abusiva da complexidade dos materiais que a movimentam, que a constroem?

Porto, Fevereiro de 2012 Manuel Mendes


BIOGRAFIA

É licenciado em Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (1992) e Doutorado em Arquitectura, especialidade Teoria e História, pela Universidade de Coimbra (2009). É Director e Professor Auxiliar do Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Integra o corpo docente do Programa de Doutoramento, Patrimónios de influência portuguesa, CES/IIIUC. Integra o corpo docente do Programa de Doutoramento, Cultura Arquitectónica e Urbana, Departamento de Arquitectura/ FCTUC. É professor convidado no Programa de Doutoramento em Arquitectura da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. É coordenador do Mestrado de Crítica de Arte e Arquitectura, Colégio das artes, Universidade de Coimbra. É investigador do Centro de Estudos Sociais, Laboratório Associado. Foi professor convidado no Curso de Arquitectura da Universidade do Minho, entre 2001 e 2003. É coordenador editorial do serviço de Edições eIdIarq do Departamento de arquitectura, FCTUC. É orientador de Dissertações de Mestrado e de Doutoramento. É coordenador em Portugal, pela Universidade de Coimbra, da Red PHI Património Ibero-americano. Integrou Comissão Científica da exposição “Des-continuidade. Arquitectura Contemporânea do Norte de Portugal”, Centro Fecomercio de Eventos, São Paulo, Brasil, em 2005. Foi co-comissário da representação oficial portuguesa na Bienal de S. Paulo, Brasil, em 2007, e comissário da exposição “Álvaro Siza. Modern Redux”, no Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, Brasil, em 2008. Em 2009 in-

tegra a representação nacional portuguesa na 8º Bienal de Arquitetura de S. Paulo, 2009, no âmbito do projecto “Cinco Áfricas. Cinco Escolas”. Como co-editor publicou: Europa, Arquitectura Portuguesa em Emissão, Catálogo da representação Oficial Portuguesa na 7ªBienal de Arquitectura de S. Paulo. Lisboa, Ministério da Cultura, Direcção-Geral das Artes, 2007; Des-continuidade. Arquitectura Contemporânea do Norte de Portugal. Catálogo da Exposição, Civilização Editora, 2005; Porto 1901-2001, Guia de Arquitectura Moderna, 2001, Civilização, Ordem dos Arquitectos (SRN), 2001. Como editor publicou: Álvaro Siza. Modern Redux, Berlim: Hatje Cantz, 2008;SMS:SOS. A Nova Visualidade de Coimbra, (Concepção e coordenação), Coimbra 2003/Edições ASA, 2003 Como autor publicou: “Escola do Porto: Um Mapa Crítico”, Coimbra, eIdIarq, DAFCTUC, 2002, “Agora que está tudo a mudar - Arquitectura em Portugal”, Caleidoscópio, 2005, “A Noite em Arquitectura”, Relógio d´Água, 2007; “O Arquitecto Azul”, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010; “Macau 2011”, Circo de Ideias 2011; “Reescrever o Pós-Moderno”, Dafne, 2011. É colaborador do jornal Público na área de crítica de arquitectura e tem artigos publicados em diversos países em revistas especializadas. Tem obra de arquitectura construída e publicada, onde se destaca o Campus Universitário de Angra do Heroísmo, Terceira, Açores.

BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA FIGUEIRA, JORGE; “Escola do Porto: Um mapa crítico”, Coimbra, e|d|arq, 2002 FIGUEIRA, Jorge; “Local e Cosmpolita”, AV Monografia Souto de Moura, 2012 FIGUEIRA, Jorge; “Um Mundo Coral”, in Álvaro Siza Fundação Iberê Camargo, Cosacnaify, São Paulo, 2008 (também em O Arquitecto Azul, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010) FIGUEIRA, Jorge; “Álvaro Siza: Modern Redux. Ser Exacto, Ser Feliz” “Álvaro Siza: Modern Redux. FIGUEIRA, Jorge; “Being Precise, Being Happy”, Álvaro Siza: Modern Redux, Hatje Cantz, Berlin, 2008 (também em O Arquitecto Azul, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010) FIGUEIRA, Jorge; “The Perfect Periphery”, Siza and architects in Portugal, A+U, 430, Japan, August 2006 (também emO Arquitecto Azul, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010) FIGUEIRA, Jorge; “Traduzir para a mesma língua” [Alexandre Alves Costa - Candidatura ao Prémio Jean Tschumi UIA 2005, Caleidoscópio, OA 2005] (também em A Noite em Arquitectura, Relógio d´Água, 2007) FIGUEIRA, Jorge; “A Casa do Lado” in Só nós e Santa Tecla, Equações de Arquitectura, Dafne Editora, 2008 FIGUEIRA, Jorge; “Linguagens de Prazer”, Público, Mil Folhas, 6 Maio 2006 (também em O Arquitecto Azul, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010) FIGUEIRA, Jorge; “Luz Cubista sob Solo Portuense”, Público, Mil Folhas, 24 Novembro 2006, (também em O Arquitecto Azul, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010) FIGUEIRA, Jorge; “Uma espécie de regresso”, Público - Arquitectos Portugueses Contemporâneos, (também em A Noite em Arquitectura, Relógio d´Água, 2007) FIGUEIRA, Jorge; “Uma paisagem exacta”, Público - Arquitectos Portugueses Contemporâneos, (também em A Noite em Arquitectura, Relógio d´Água, 2007) FIGUEIRA, Jorge; “Explicado às crianças”, Público - Arquitectos Portugueses Contemporâneos, (também em A Noite em Arquitectura, Relógio d´Água, 2007)


ESCOLA DO PORTO: UM MAPA CRÍTICO

Jorge Figueira, Escola do Porto: Um mapa crítico, Coimbra e|d|arq, 2002,p. 17-18

Por pressupor para o arquitecto um papel instrumental – contemplar a revolução, cumprir a disciplina –, a Escola do Porto vai deixar cair o saber analítico e repudiar a artisticidade experimental, actos que ditarão a sua dificuldade em digerir a cultura contemporânea. Quando exactamente a contemporaneidade é tomada pela excentricidade das culturas arquitectónicas e pela agressividade e objectividade crítica que o estatuto universitário e a sociedade requerem. Dir-se-ia que, na recusa reiterada de integrar o outro, de compreender as suas intrigas e pressupostos, a Escola do Porto teve que se confrontar com a experiência contemporânea da pior maneira: sem preparação e sem amparo. E aquilo que, no plano da articulação do discurso com uma prática inteligível, é difícil para toda a gente, tornou-se para a Escola do Porto quase impossível de vislumbrar. A densidade de algumas propostas individuais e a relevância das experiências partilhadas colectivamente foram, no entanto, acrescentando sentido a um debate e uma prática profissional de outro modo pobres de desejo, e é esse património que é incontornável e perene. Sem que isso impeça de pensar que a história da Escola do Porto é a de um projecto que não se ousou pensar radicalmente, e ao não experimentar libertar-se de si mesmo foi perdendo as amarras do futuro.

O FRIGORÍFICO DE GROPIUS

Jorge Figueira, Escola do Porto: Um mapa crítico, Coimbra e|d|arq, 2002,p. 34-38

Mas, se a Escola do Porto é, nas suas origens, alheia à matriz mecanicista do Moderno, encontrase sem dúvida do lado da razão como suporte absoluto para guiar a construção, e do gosto que permite retirar dos edifícios todas as evidências de excessiva personalização, atributos decorativos ou historicistas. Na Escola do Porto o instrumento fundador do acto Moderno é o “corpo” e não a “máquina”, o que inevitavelmente traduz uma ligação mais forte à cultura humanista, do que ao projecto construtivista. ... Se a máquina equivale a desenraizamento o corpo equivalerá a lugar, e assim, todas as asserções mais rupturais do Moderno não serão sentidas ou experimentadas na Escola do Porto. ... A prática pedagógica do que será conhecido como Escola do Porto encontrar-se-á no aprofundamento de um sentido oficinal da prática e ensino da arquitectura que não se desligam, sem necessidade do mistério teórico ou literário, apenas objectividade construtiva e heranças do gosto. ... Uma confluência permitida pela desaceleração das componentes teóricas envolvidas, onde a Escola vai encontrar uma metodologia caracterizada e abrangente que, sem alterações profundas, se prolonga até aos nossos dias: “as técnicas de desenho e perspectiva, desenho à vista, desenho anatómico, são técnicas de tradição Beaux-Arts, que, sobreviventes em Portugal, estão praticamente desaparecidas nos cursos nascidos em sua substituição”.1 E que conduz inevitavelmente à valorização das aprendizagens instrumentais em detrimento da procura de reforços conceptuais. ... O ensino faz-se na procura da modelação da sensibilidade de cada um, no aprofundamento de um inato bom instinto. O racionalismo e o funcionalismo são entendidos como pressupostos naturais e não como teorias que merecem debate e disputam confrontos. …

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Antonio Angelillo, “A Miragem Portuguesa”, Architécti 11/12, 1991, p.19 1

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O CICLO REVOLUCIONÁRIO

Jorge Figueira, Escola do Porto: Um mapa crítico, Coimbra e|d|arq, 2002,p. 60-62

No interior da Escola, organizam-se os Encontros do Curso de Arquitectura, uma espécie de plenário que analisa os currículos com base no plano de estudos pela Comissão Coordenadora. Só que se tratava de estabilizar uma prática pedagógica no contexto de um processo revolucionário em curso, onde a instabilidade é instrumental para os objectivos em vista. Militância e entusiasmo não faltam, é certo, mas o momento não parece ser o mais apropriado para a institucionalização de um curso de arquitectura. Para que não restem dúvidas, o documento referente ao II encontro do curso de arquitectura, Bases Gerais 76/77 vai defender a “colocação da Escola, como centro aglutinador e dinamizador da actividade intelectual na perspectiva do Socialismo, ao serviço das massas trabalhadoras e da luta do povo pela sociedade sem classes”. Contudo, no meio desta energia revolucionária surgem elementos de referência disciplinar que se revelarão decisivos. Siza dá um contributo essencial, nesse documento, ao estabelecer alguns dos mais vincados fundamentos pedagógicos do Curso, nomeadamente no que diz respeito ao conteúdo das cadeiras de Projecto e ao perfil da cadeira de Construção, entendida como um espaço que visa “relacionar forma e materialização, desenvolvendo e tornando imediata tal capacidade de síntese.”. Conforme estabelece o programa que aí se faz constar, esse pressuposto é suportado pelo entendimento “que o processo de projectação não é analítico e linear (partindo da informação para a forma) e que, pelo contrário, envolve uma proposta de forma desde o primeiro contacto com uma realidade em transformação. Este princípio conduz ao aforismo “a ideia está no sítio” e a toda a nebulosa criativa que faz a especificidade da Escola do Porto, na recusa, agora maturada, da análise como caminho redentor para o projecto.

O DESENHO ÚTIL

Jorge Figueira, Escola do Porto: Um mapa crítico, Coimbra e|d|arq, 2002,p. 63-67

O Inquérito tinha, como vimos, validado a ideia que o Moderno se podia construir a partir do que existe e não somente na permanente miragem de uma arquitectura que benificia de hipotéticos amanhãs que cantam. O património, como conceito que abrange um campo físico mais largo do que o que define o monumento, nasce aqui: nesta revelação poética da preexistência como algo por existir, mesmo que residual ou modestamente, tem já uma carga material de reflexo a considerar. O projecto Moderno não assenta mais num horizonte abstracto entregue ao futuro, mas antes na utopia da recriação e manutenção radical do passado – é este o dado fundamental a fixar.

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DISSOLVER, INVERTER, REGRESSAR

Jorge Figueira, Escola do Porto: Um mapa crítico, Coimbra e|d|arq, 2002,p. 68-78

A arquitectura deixa-se mediatizar e efemerizar, saindo do circuito dos ateliers e das câmaras para a convulsão da rua como produto cultural. … É verdade que não há ruptura, mas há já distância: é por uma via formal que a “escola-atelier” se pratica, isto é, a actividade profissional dos professores já não é integrada pelos alunos no trabalho de escritório, na Escola ou na vida, mas a partir de modelos expostos numa publicação. E isto não é somente resultado da maior dimensão da Escola, mas de uma alteração qualitativa na relação professor-aluno e de um curto-circuito na reciprocidade que funda o ensino: nem os professores precisam já tanto da Escola, nem os alunos compreendem ou ao compreenderem se identificam com o que a Escola significa. Ao findar a década, depois da poeira pousar, a Escola ganhará no plano público aquilo que não consegue encontrar no plano interno: identidade e sentido.

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ZIG ZAG: A INTUIÇÃO COMO POÉTICA DA RAZÃO

Jorge Figueira, Escola do Porto: Um mapa crítico, Coimbra e|d|arq, 2002,p. 79-83

As suas manifestações, sejam pedagógicas, sejam profissionais, - e até meados de 80 são correspondentes -, traduzem essa singular confluência, fixada numa vocação exclusivista que não evita a integração de espaços de ambiguidade nem uma sempre presente inércia teórica. ... Esta via abrangente, informada pela catarse Moderna e por uma, cada vez mais exposta, intrínseca razão Clássica desenvolve-se no caminho comum entre a luta política e a definição disciplinar. A experiência do Inquérito permite a leitura convergente da matriz racionalista com os processos da arquitectura popular; o SAAL permite testar esse encontro num momento de exultante entrega onde se expõe todo o tentativo universo ideológico da Escola do Porto: a função instrumental do arquitecto no âmago da revolução cultural que o Moderno exige. Estes dois eventos são a matéria prima que sutém a Escola do Porto como estrutura integrada e integradora da cultura portuguesa. ... É a luta política, e não nenhuma súbita inclinação teórica, que encontrará uma outra espessura para o “racionalismo”. ... Sem sentir necessidade de um trabalho teórico legitimador, a Escola do Porto flutuará à deriva, ancorada nas precisões infinitas dos desenhos de Siza. Esta flutação deixa lugar a ser português, onde ser português é ser o instinto que mistura o universal com o apego ao território vivido. A cultura da Escola do Porto é, nesse sentido, muito desenvoltamente portuguesa, isto é, nostálgica do mundo todo e de cada parte em particular. ... A afinidade com a cultura Moderna experimenta-se desviada num centro”eurocepticismo” que comanda o gesto de integrar o erudito e o popular, o regional e o internacional, sem distinguir ou moralizar. Experimenta-se o cruzamento livre de pulsares culturais e contextuais, sob o apelo da mestiçagem como caracterologia portuguesa. ... No interior da Escola do Porto – com a excepção de Nuno Portas – não há críticos, há manifestantes; não há críticas, há manifestos. Há uma determinante: a razão não se separada poesia, o objecto de estudo é sempre o objecto amado que se quer revalidar. ... A Escola do Porto pretende inaugurar a “última ciência”: onde o desenho é um gesto poético de afirmadas ressonâncias, que subentendem e traduzem o passado, no vislumbre mais ou menos militante de um mundo transformado pela regra e pela moralidade da arquitectura.

O MODERNO COMO REAL

Jorge Figueira, Escola do Porto: Um mapa crítico, Coimbra e|d|arq, 2002,p. 84-88

Do ponto de vista pedagógico, a necessidade da análise e do conhecimento científico colidirá sempre com a presença do desenho como matriz de um ensino oficinal, praticista. Estas correntes atravessam a Escola, desde os anos 50, criando tensões que, a partir do fim da década de 60, terão em Távora a figura que reúne um consenso improvável, conseguido pela confiança que inspira mas também pela ambiguidade que é capaz de gerir. ... O instinto é que é forte: há um tácito reconhecimento que não necessita de prova – a relação entre a vida e a obra encarrega-se disso.

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A INEVITABILIDADE DO ESTILO

Jorge Figueira, Escola do Porto: Um mapa crítico, Coimbra e|d|arq, 2002,p. 89-98

A cultura clássica da arquitectura como uma arte formada na satisfação da tríade de Vitruvio, enforma crucialmente a Escola do Porto. ... A arquitectura é entendida como uma arte do sólido e do grave, portanto não se concebe o registo de sua crescente efemerização. A arquitectura para a Escola do Porto é um facto olímpico, entre o Parthenon e a Villa Savoye. ... A consequência prática dos trabalhos dos “arquitectos que, sempre na linha da nossa tradição empírica e e pragmática, vão sobretudo seguindo o instinto ou a paixão, procedendo por múltiplas aproximações, recorrendo a desvios”2 é a amarração à imagem mais forte, a que está a dar em determinado momento ou circuito, numa correlação do gosto que tende naturalmente para a formulação de um estilo. O empirismo e o pragmatismo implicam um sentido de obediência e continuidade que favorece o seu culto. Por fim, a Escola é, com modernidade, contra o código estilístico, mas reconhece-se no campo da intuição, o que cria uma contradição: porque a intuição funciona na arquitectura a partir do reconhecimento de códigos preexistentes de onde se elabora. ... No entanto, Távora, ao não se fixar em nenhum denominador ideológico, reúne condições que lhe permitem evitar o estilo evidente, carceador. O estilo não conta, mas sim a relação entre a obra e a vida, o seu famoso aforismo, é uma proposição de alguém cuja afinidade com o Moderno, como já referi, é uma “construção”, e portanto está em melhores condições de evitar as tonalidades do estilo que por aí se conforma. A qualidade intuitiva de Távora, ao misturar o saber tradicional com o erudito, permite-lhe não se fixar exclusivamente ou hegemonicamente nas flutuações de qualquer estilo internacional. “Passam os estilos (…) fica a qualidade, fica o que é permanente na evolução. Não é o estilo que define a qualidade3 - Távora interessa-se pela qualidade abstracta e intemporal que define a boa arquitectura, uma qualidade a-ideológica. É esta qualidade disciplinar - “o que é permanente” - que torna o estilo irrelevante e, por consequência, também a ideologia. Se entendermos que o “estilo” é a roupa da ideologia, isto é, cria códigos de representação dos seus significados. ... A qualificação dos sistemas construtivos é desde o princípio uma marca distintiva da Escola do Porto, e a Casa de Chá da Boa Nova (1963), de Siza, demonstra-o bem. Mas, a prática construtiva corrente na arquitectura da Escola vai conformar um sistema que afunila as soluções mais do que propicia divergências qualificadoras. ... A estabilidade e previsibilidade dos sistemas construtivos usados, contra as instruções esboçadas, aguçou a reconhecibilidade do “estilo Escola do Porto”. No fundo, a sensibilidade empírica que no campo construtivo, como em outros, domina, faz com que vença sempre a mesma solução – aquela que já resolveu bem anteriormente.

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Alexandre Alves Costa, “Mostrar o ensino da arquitectura no Porto. Outubro 1991”, In Páginas Brancas II, Porto, AEFAUP, 1992, p.12 2

Fernando Távora, “Para um urbanismoe uma arquitectura portuguesas”, Comércio do Porto, 25 de Maio de 1953, policopiado em edição dos Discursos de Arquitectura, ciclo de conferências organizado pela FAUP, em 1990 3

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AS NOVAS CONDIÇÕES

Jorge Figueira, Escola do Porto: Um mapa crítico, Coimbra e|d|arq, 2002, p.105-108

Tendo que se confrontar com a inviabilização, no plano político, dos seus ideais pressupostos, a carga romântica e o sujeito colectivo que definem a Escola do Porto são postos em causa. ... Há uma sublevação da forma em relação ao contéudo - a carga política é trocada pela sobrecarga dos sentidos. O prestígio e a competência são valores de mercado que vão resolver o problema, sem que o significado ou os pressupostos da arquitectura da Escola tenham qualquer relevância. ... Neste contexto, a Câmara de Matosinhos (1987), de Alcino Soutinho, surge como uma obra pontual capaz de integrar, e até celebrar, a nova realidade política. Com a adopção de dispositivos arquitectónicos abrangentes, Soutinho mostra-se capaz de romper o círculo intimista e abstracto, no sentido de um maior apelo público; adopta recursos classizantes numa controlada composição que não trai a sua genealogia Moderna, daí o seu sucesso, daí a sua carga polémica. Noutro plano, a construção do Mercado de Braga (1984) e da Casa das Artes (1988), de Eduardo Souto Moura, davam sinais de uma determinação e radicalidade expressiva que iriam ter forte impacto disciplinar, constituindo-se como a “saída” mais perfomativa e bem sucedida da Escola do Porto. ... Paradoxalmente, não será a revolução, mas a economia de mercado a permitir uma crescente visibilidade dos seus arquitectos. De fora do sistema crítico e moral da Escola do Porto virá a sua consolidação e apogeu.

O MEIO CÍRCULO DA “ESCOLA-ATELIER”

Jorge Figueira, Escola do Porto: Um mapa crítico, Coimbra e|d|arq, 2002,p. 109-114

Provavelmente também como consequência dessa inalteridade, à ascensão do ponto de vista do reconhecimento público vai corresponder a debilitação, do processo pedagógico. A Escola do Porto começa a acontecer publicamente, quando no plano interno se começa a manifestar maior dificuldade em articular a experiência do passado com as novas condições. ... A Escola não foi entretanto capaz de encontrar, na subida para a Universidade, um corpo sujeito à propagação de um saber, uma inteligibilidade para o seu método. ... A intuição revelar-se-á um domínio insuficiente na ausência dos sustentáculos que a enquadram. E ao perder-se isto, perde-se aquilo que distinguia a Escola do Porto, para o bem e o mal: a facilidade insinuosa do gosto que perdura, subtraídos das contingências das ideias e das modas, permitindo continuidades, gesto recíproco. ... Távora resolveu subjectivamente contradições insanáveis, o que não significa que tenha objectivado um projecto pedagógico – a sua síntese é demasiado pessoal e consequentemente algo intransmissível. E por isso, facilmente mitificável.

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“UM BARCO CARREGADO DE MEMÓRIAS”

Jorge Figueira, Escola do Porto: Um mapa crítico, Coimbra e|d|arq, 2002, p.127-132

Aquilo que hoje define a proposta mais qualificada no arco tenso da relação Escola do Porto com a contemporaneidade é a hegemonia da memória no comando do acto criativo e a utilização da História num fluxo interpretativo de onde decorre o projecto de arquitectura. ... A História que se lê e projecta, carregada de invenção, cria uma estrututra relacional mas não inibe necessariamente a formulação do novo, sem o estigma do historicismo. ... Távora é evidentemente o portador, desde cedo, deste enunciado de dar a razão à História e, é caso para dizer-se, a História veio dar-lhe razão. ... Se descontarmos a mencionada ofensiva realista de Nuno Portas – centrada na sociedade, portanto, lateral na Escola - , a Escola do Porto é hoje um lugar determinado pela História como principal sustentação do projecto. A proverbial desconfiança do que é novo, a precariedade das matérias teóricas, o viciado uso do desenho, dá à História, como poética do que existiu ou está a deixar de existir, o protagonismo de fundamentação crucial.

O QUE ESTÁ PARA VIR

Jorge Figueira, Escola do Porto: Um mapa crítico, Coimbra e|d|arq, 2002, p.133-134

Como instituição de ensino, a Escola do Porto, cuja base de funcionamento actual assenta no modelo que vence as convulsões dos anos 60 até às Bases Gerais, é academicamente instável, não cumpre preceitos puramente científicos ou artísticos, corre áreas de ambiguidade entre a necessidade do conhecimento e a atracção pelo arbítrio. Mas, simultaneamente, a disposição contra o esquematismo e a tecnocracia produziu, em última análise, um legado de conceitos que conformam uma singular cultura de ensino e de projecto. ... Desta constantemente adiada elaboração, sobram particulares conquistas: a Escola do Porto, a ter alguma teoria pedagógica consequente é a da proposta de investimento nas questões metodológicas e instrumentais que convencionam o projecto. E a convicção que é no interior do projecto que a arquitectura sobrevive, ou dito de outro modo, que “a origem da arquitectura não está no programa mas nela própria; é intrínseca ao próprio acto de projectar”. Em contrapartida, a procura de uma fundamentação exclusiva no interior do projecto de arquitectura, ao não ser consciencializada enquanto estratégia para um qualquer fim – ou ao não ter a vocação vertiginosa de Siza – debilita a aprendizagem, criando preconceitos que fundamentam uma espécie de iliteracia.

SELEÇÃO DE TEXTOS E ORGANIZAÇÃO DO CADERNO PELO COLECTIVO “PRÁTICA(S) DE ARQUITECTURA”.

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AGENDA 29 FEV 15:00H 29 FEV 15:00H 29 FEV 15:00H 01 MAR 18:30H 15 MAR 21:30H 19 ABR 21:30H 26 ABR 21:30H 03 MAI 21:30H 17 MAI 21:30H 24 MAI 21:30H 29 MAI 21:30H 31 MAI 21:30H 06 JUN 21:30H A ANUNCIAR

ORGANIZAÇÃO

APOIO INSTITUICIONAL

APOIOS

APOIOS À DIVULGAÇÃO

GONÇALO CANTO MONIZ JOSÉ MIGUEL RODRIGUES MARTA OLIVEIRA JORGE FIGUEIRA JACQUES LUCAN FRANCISCO JARAUTA MAURICI PLA LUIS MARTINEZ SANTA-MARIA LUZ VALDERRAMA FEDERICO SORIANO JEAN-PHILIPPE VASSAL ALEXANDRE ALVES COSTA ANTHONY VIDLER VITTORIO GREGOTTI


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