Re(a)cordados Mara Abreu
Re (a) cordados Mara Abreu
Conservar algo que possa recordar seria admitir que eu pudesse esquecer. William Shakespear
A fotografia em si transparece, de certo modo, a necessidade do Homem poder preservar-se e de representar a realidade que o rodeia. Mesmo que se trate de uma representação, a imagem em si, fascina. Permite pensar numa apropriação rápida do mundo. Torna a ideia de um mundo vasto em algo que pode ser enquadrado num determinado espaço e contexto, que pode ser compreendido pela nossa capacidade de conhecer. Torna possível rever um gesto irrepetível da vida humana e das suas manifestações. Documentar um comportamento comum é necessário para que nos sintamos parte de um todo. Identificar-se é uma caraterística da partilha de habitos comuns. É esta partilha de caraterísticas comuns que nos faz pertencer a uma determinada cultura, ou mesmo num aspeto mais lato, à Humanidade. Muito pela efemeridade da nossa existência e da nossa própria espécie, a representação de nós próprios e do todo é uma necessidade. Não é possível
demonstrar aos nossos semelhantes a partir de uma mesma perspetiva comum algo que só pode ser visto de formas diferenciadas. Não podemos saber como veem outros, sem vermos através desses outros olhos. Esta será por outras palavras a barreira intransponível da comunicação. Neste projeto em especial, composto por três temáticas, objetos memória, conversas retratadas e fios intemporais. Foca-se o objetivo de tornar a existência do Homem em algo registável através de elementos inerentes a si, porém, numa relação direta com o tempo. Sendo o tempo o principal fator para o seu esquecimento, mas também a estrutura que nos faz querer Re (a) cordar as memórias existentes em nós. Somos inevitávelmente feitos da matéria que os sonhos são feitos e das memórias que queremos recordar. Assim a verdadeira morte do Homem é o seu esquecimento. Existir é também ser lembrado por outros.
objetos
mem贸ria
As memórias que nos acompanham podem ser relembradas a partir de um som, de um cheiro ou mesmo através de uma imagem fugidia. Uma leve pista. Uma indício que nos surge neste instante já na eminencia de escapar. O capítulo que se segue torna visível o que pode, de algum modo, ser chamado de um santuário de objetos. Foca-se a necessidade de o homem preservar momentos com os quais jamais terá uma ligação no momento presente, posteriormente a se terem sucedido. Esta ligação a momentos passados e pertencentes inevitavelmente à vida de uma pessoa, são ligações que se estabelecem por meio de memórias, que quanto mais pensadas mais distanciadas da realidade se tornam. Os objetos que se seguem são objetos mantidos pelas próprias pessoas que guardam essas memórias e que vivenciaram esses momentos.
O objeto mantém uma ligação presencial num dado momento comum que pertence à pessoa que o experienciou. A necessidade de manter, preservar, torna-se um problema real devido à natureza efémera da nossa memória ou mesmo existência. Estes objetos são meras bric-à-brac, para quem seja exterior às suas narrativas ou sem o conhecimento à priori das histórias que lhes estão entranhadas. E é este elo que permite preservar momentos pertencentes à vida de diversas pessoas. Muitas vezes não é necessário querer guardar um objeto, basta que este esteja presente a determinada altura e que continue a existir. Um simples relance sobre ele desperta uma mescla de emoções.
Quando era pequena, quase nunca tinha a oportunidade de passar tempo com a minha irmã mais velha, já que ela não morava connosco. Costumava levar-me a mim e às minhas irmãs a passear, uma de cada vez, para que pudéssemos passar tempo juntas. Eu via-a como a melhor pessoa do meu pequeno mundo, e ficava ansiosa pelos pequenos bocados que passávamos juntas. No entanto, ela tinha cada vez menos tempo para nos visitar, já que estava a estudar e a trabalhar ao mesmo tempo. Ela deu-me este porta-chaves quando apareceu em minha casa de surpresa e nos levou às três ao teatro.
Sempre que olho para ele recordo-me do esforço que a minha irmã fazia para estar comigo e o amor que sinto por ela.
Objecto sem memória. Não tenho hoje vontade de objectos associados a memórias, substituo-os pelo momentâneo. Nada que me ligue a experiência nenhuma. Nada que me ligue a nada. Esvazio o efémero?
Encontrei esta pedra-quase-pesada, aqui, agora. Observo, penso, pouso-a, repenso, levo-a, não levo. Esvazio, esvazio-me. E não sei mais, que diga.
Apesar de não ser uma pessoa muito religiosa, guardo a minha figura do santo antónio religiosamente dentro da minha mala. Ainda hoje me trás imensas recordações de pessoas que actualmente já não se encontram presentes no mundo físico. É uma figura bastante antiga com certa de 90 anos, e foi-me dada pela minha avó quando eu tinha 6 anos. Depois do falecimento de uma tia que eu tinha grande afinidade. Desde esse dia que o levo para todo e lado. Sinto uma enorme segurança com ele,
por isso posso admitir que“o meu antónio” é um verdadeiro indiana jones uma vez que me acompanha todos os dias nas minhas diversas actividades, viajando comigo para todo o lado. Creio que este sentimento de segurança, surge pelo facto de na verdade sentir que este pequeno objecto foi de alguém pelo qual nutria um enorme carinho. Como se essa pessoa ainda estivesse comigo e me acompanhasse. Um luto que permanece escondido ainda hoje.
Hoje em dia, tendo eu 20 anos, esta figura continua com o mesmo significado e valor que sempre teve. Ainda hoje o guardo dentro da minha mala…
Um ponto marcante na minha vida. Ponto em que uma porta se fechou e uma janela se abriu. Lembra-me uma experiência negativa que se transformou em algo mais. Recorda-me que na vida, por vezes, tudo o que é certo é errado e que tudo o que é errado, é certo. Nada está garantido e nunca deixamos de ter surpresas. Lembra-me a dor, a felicidade e tudo o que está adjacente a uma ilusão, que nos conduz a um ponto sem retorno. Lembrame a escuridão e o que é não saber que chão pisamos e para onde caminhamos. Lembra-me o que é arriscar, dar tudo de mim, para no fim, nada ser certo. Contudo, hoje, quando olho para ele, a sensação que tenho é a de ganhar e perder. A de querer e não querer. Lembra-me o impasse de todos os dias que vivemos. O quente e o frio, todas as sensações contrárias, tornadas numa só.
Lembra-me, a vida que há em mim.
Esta ainda é uma batalha a decorrer, mas tenho sempre estas duas liberdades uma em cada pulso, porque são parte de mim. Os meus dois pulsos são histórias de libertação.
A pulseira arco-íris, para além de ser um manifesto pelo fim da discriminação baseada na identidade e expressão de género ou orientação sexual, marca o momento em que aprendi a ser livre. Aprendi o que significava aquela expressão tão cliché que já estava farto de ouvir: " Sê tu próprio!" Nós não somos nós próprios quando temos um grande segredo a esconder. Um medo enorme que alguém descubra. Não saboreamos a vida. " Isto não precisa de ser um segredo! A partir de hoje já não é segredo!" e nesse dia em vez de caminhar, flutuei pelos corredores da escola.
No entanto, ainda tinha outra liberdade a conquistar. O relógio. Sem ele sinto-me nu. Ou será que me sinto sem controle sobre o tempo, e é isso que me deixa em pânico? Há dias em que controlo os minutos de maneira obsessiva. A minha dificuldade em gerir o tempo afectou muitas coisas da minha vida e impediu-me de fazer o que gosto. Mas dizer "Não temos tempo!" é o primeiro passo para não termos tempo. Agora vejo o relógio de uma maneira um pouco diferente. Gosto de pensar que sou uma pessoa um pouco mais crescida e sábia, que consegue levar a vida com calma e fazer tudo sem pressa.
conversas
Retratadas
Todo o desenrolar de uma conversa é algo cujo rumo pode ser planeado, ou livremente desenrolável, com um fim inesperado e um conjunto de temáticas diferenciadas que se unem a partir de um unico fio condutor. As conversas retratadas, são pensamentos expostos e partilhados entre fotógrafo e fotografado. Conversas que são aleatórias consoante a pessoa com que falamos ou mesmo dependentes do estado de espírito e contexto em que surgem. Assim sendo, o fio condutor desta conversa que poderia estar a ter consigo, poderia ser demonstrado visualmente de diversas maneiras. Neste caso em particular, as expressões e movimentos realizados pela pessoa com quem converso. Foco-me na pessoa que enfrenta a câmara. A pessoa que sente o peso ou descontração de se ser observado. Sendo que todas estas
pessoas estiveram, sentaram-se, despenderam tempo, abriram-se e deixaram um mesmo lugar. O lugar da troca de ideias. O lugar do expressar expectativas ou apenas de deixar passar o tempo. Os movimentos corporais dizem muito relativamente ao entusiasmo deste trocar de ideias, da pausa que se faz para responder a uma pergunta. Do colocar-se mais perto ou mais longe consoante o estranhar ou o identificar-se com algo que o interlocutor tenha referido. Limito-me a tornar possível a leitura de uma linguagem corporal. Torno possível o imaginario de uma narrativa que não se expõe por palavras. Apenas por gestos. As conversas são retratadas num determinado local e espaço que não se repete. São pertencentes a um tempo que não volta. A um instante que só fez sentido nesse instante.
Paris, só Paris. Ouve-se a melodia só ao pronunciar o nome e, é como se as letras se combinassem instantaneamente numa obra de arte.
Esta pequena torre-eiffel remete para algo além do sonho. Algo que foi sonhado um dia, realizado noutro e que promete mais para o dia seguinte. Como se o que foi vivido nessa altura pertencesse a uma outra vida, um universo paralelo e esta, esta pequena lembrança, é um vestígio, algo que rompeu com as leis da metafísica e que se conseguiu transportar de um universo para o outro. É sobretudo uma nostalgia de algo que ainda não foi vivido.
Uma pulseira roubada, que nunca devolvi. Dei algo em troca, é certo, e acho que mesmo que não tivesse dado teria sido sempre um furto consentido. Foi apenas um mês depois que executei o “crime” há muito planeado, com toda a certeza do seu sucesso. Um mês depois dessa fatídica viagem, a essa distante ilha ventosa onde as estrelas brilhavam mais do que eu achava ser possível. Nesse lugar de sonho, em que encontrei alguém como nunca tinha pensado encontrar, onde ouvi palavras e testemunhei gestos que nunca me tinha atrevido esperar. Foi o contrário de um desapontamento.
Agora que perdi tudo isso, só me resta esta irónica metáfora, esta pulseira roubada que uso como símbolo de orgulho do que não é mais meu.
Esta foi a minha primeira agenda. Eu gosto do equilíbrio e da estabilidade. E de ter controlo sobre tudo o que acontece na minha vida. Registo todos os passos: o que fiz, onde e com quem estive, como me senti. Porque tenho medo que a narrativa da minha vida se perca no esquecimento. Este é o meu objecto charneira. O ano de 2010 marcou a minha entrada na fase estúpida, o deixar de jogar às escondidas para passar aos jogos do toca e foge. E desde então, através de cada dia, eu revisito-me,
revejo-me, observo como cresci. Este objecto foi o início do mapeamento da minha vida, torna visivel aquilo que fui e aquilo que sou. Clarifica a imagem que tenho de mim mesma. Hoje, quando abri esta agenda, fui ler bocadinhos de mim, e ri-me com isso. Rime do quão pequenina eu era, mas também do quão feliz e simples a minha vida sempre foi. E senti-me aconchegada por saber que, apesar do equilibrio e da estabilidade, estou em constante progresso e renovação.
É uma recusa a esta coisa de seleccionarmos inconscientemente o que fica e o que vai. É um grito de revolta contra essa impotência.
É uma forma de eu sentir que tenho as “minhas pessoas” comigo, e as pessoas são o melhor que existe.
Quando era pequena deram-me este fio com uma cruz de prata, que eu usava por hábito, mas sem lhe dar grande significado. Um dia quis pôr uma estrela no meu fio. Simplesmente porque gostava de estrelas. E fui com a minha mãe a uma ourivesaria. A partir desse dia toda a gente começou a ficar confusa. Só hoje percebo porquê. Tratava-se de uma “estrela de David”, mais tarde adotada como símbolo Judeu e que eu usava junto a uma cruz cristã. Este colar simboliza nada mais nada menos que a inocência de uma criança, que age mesmo sem pensar demasiado no sentido e
nas susceptibilidades que pode ferir. A natureza de uma criança traduzida num ato puramente inocente, e isso é algo que nunca mais consegui fazer. Provavelmente nem eu nem ninguém. Todas as peças deste colar começam com a ideia mais simples e pura de todas, mas vão ganhando valor e valores com as alterações que o tempo causa em mim. Parece que há uma corrupção de toda a inocência que existia, mas isso não é mau. Gosto de saber que as coisas mudam, porque reparei que há coisas constantes, como o facto de ter comprado a estrela e a concha com a minha mãe.
Por vezes coloco-o só para sentir o conforto que me dá tê-lo ao pescoço, mas nunca mais será a mesma coisa.
O meu objecto é o meu lenço dos escoteiros, um objecto que agora me é bastante nostálgico e do qual me quero fazer acompanhar durante o resto da minha vida. Representa um período extremamente marcante na minha vida. Que gerou uma grande mudança. Para além de me ter trazido pessoas que vão continuar comigo muito tempo, trouxe-me aventuras e memórias que nunca esquecerei.
Daquelas histórias que se contam aos netos. Lembro-me perfeitamente do momento em que a minha madrinha escotista me pôs o meu lenço pela primeira vez, do quanto chorei baba e ranho naquela cerimónia, enquanto me ria simultaneamente. Lembro-me da Honra que foi para mim ter aquele lenço e tornar-me Escoteira com E grande.
fios
intemporais
Embora num contexto mais científico, estes são os elemento mais caraterizadores da indivídualidade de cada homem. Permanecem durante um tempo superior ao período de vida de um ser humano apesar de esse mesmo indivíduo a quem pertencem já não existir de um modo vivo. Os cabelos são um dos únicos elementos naturais pertencentes ao corpo humano, que apesar de se tratarem de elementos compostos por células mortas, neles está contido o ADN - uma cadeia de proteinas. Podemos ter acesso a histórias de vida de pessoas que viveram em momentos temporais muito distantes do presente, através destes mesmos elementos, muito pela peculiaridades dos cabelos não necessitarem de ser irrigados pelo sangue ou mesmo por não conterem nervo.
Esta é uma coletânea visual de elementos naturais pertencentes a pessoas em vida e o que inevitavelmente restará de identidade desse mesmo corpo outrora vivo. Sabendo que a fotografia, neste caso em especial, se torna na representaçãoa de algo que não o elemento real em si, o objetivo desta coletânea não será preservar a componente científica, mas o aspeto visual que esse elemento teria num determinado momento e a individualidade que esse aspeto pode ter comparativamente com outros tipos de cabelo e que são certamente influenciados por outros tipos de ADN, diferenciados, muitas vezes, de acordo com peculiaridades relativas a um dado meio geográfico e cultural.
Re (a) cordados Fotografia, texto e edição por Mara Abreu
Lisboa, 2015