Mau Começo

Page 1





MAU COMEÇO


Título Original The Bad Beggining Escritor Lemony Snicket Ilustrações Mara Abreu Edição Original The Harper Collins Tradução Rui Wahlon Edição Portuguesa Editora Orelhas Moucas


MAU COMEร O Escritor Lemony Snicket Ilustradora Mara Abreu

ORELHAS MOUCAS Editora Imaginรกria


4


PRÉ-DESGRAÇA O projeto ‑ Livro imaginado - da disciplina DC1, visava a escolha de um texto em que a história narrada remetesse de certa forma para o imaginário, para o mundo da fantasia. Cada aluno projetou e concretizou as suas ilustra‑ ções para esse mesmo texto privilegiando a referência dos lugares utópicos. ‘‘ Mau Começo’’ de Lemony Snicket é um dos vários livros que compõem uma coleção de desgraças acontecidas aos irmãos Baudelaire. Pequena cor‑ reção - Orfãos Baudelaire. Esteja ciente de que o autor da história que está prestes a ler possui uma linguagem muito própria de narrar o infortúnio. Não se assuste se muitos dos cenários remeterem para o desconjunta‑ do, ou o prestes a desfazer-se. Os lugares utópicos são transportados para as ilustrações através da presença real dos elementos que os compõem. Quando se fala em enferrujado, encontrará certamente peças mecâ‑ nicas e quando se fala em praia não faltará a areia... Privilegia-se o cená‑ rio em que ocorre a ação, nunca aparecendo «em cena» as personagens principais. Todas as figuras humanas reduzem-se a frágeis silhuetas, que transparecem luminosidade nos espaços em que se encontram. Sob nu‑ vens de melancolia. São simplesmente silhuetas negras sobre um fun‑ do que as circunda estranhamente e as torna estranhas como são... Lemony Snicket, incumbido de relatar tantas desgraças acontecidas aos Baudelaire, alerta que se estão há espera de um livro com final feliz , FECHEM IMEDIATAMENTE ESTE LIVRO...


"Se todos os nossos infortúnios fossem colocados juntos e, posteriormente, repartidos em partes iguais por cada um de nós, ficaríamos muito felizes se pudéssemos ter apenas, de novo, só os nossos." Sócrates


Se vocês se interessam por histórias com um fi‑ nal feliz, o melhor é lerem outro livro. Neste, não só o final não é feliz, com não é feliz o come‑ ço, e muito poucas coisas felizes acontecem pelo meio. E isso porque não houve muitos aconteci‑ mentos felizes na vida dos três jovens Baudelaire. A Violet, o Klaus e a Sunny Baudelaire eram crianças inteligentes,encantadoras e desembaraça‑ das, com agradáveis traços fisionómicos, mas imenso azar. Na maior parte das coisas que lhes aconteciam intervinha a má sorte, a infelicidade e o desespero. Lamento dizer-vos isso,mas esta história é assim. Os três irmãos Baudelaire viviam com os pais numa mansão enorme, no coração duma cidade suja e movimentada. Esporadicamente, os pais davam-lhes

licença para apanhar sozinhos um eléctrico descon‑ juntado - a palavra ‹‹desconjuntado», como provavel‑ mente sabem, aqui significa ‹inseguro›› ou «prestes a desfazer-se» - até à beira-mar, onde podiam passar o dia numa espécie de férias, desde que voltassem para casa a tempo de jantar. Na manhã referida, o dia estava cinzento e nu‑ blado, o que não incomodava nada os três irmãos Baudelaire. Sempre que estava calor e havia sol, a Praia Salobra enchia-se de turistas e era impossível arranjar um sítio bom para se estender a toalha. Em dias cinzentos e enevoados, os Baudelaire ficavam com a praia por conta e faziam o que lhes apetecia. Violet Baudelaire, a mais velha, gostava de fazer saltitar pedras na superfície das águas.

7


8


Esporadicamente, os pais davam-lhes licença para apanhar sozinhos um eléctrico desconjuntado - a palavra ‹‹desconjuntado», como provavelmente sabem, aqui significa ‹inseguro›› ou «prestes a desfazer-se».

9


Como a maioria das raparigas de catorze anos, era dextra. Por isso, sobre as águas turvas, quando usava a mão direita as pedras saltitavam até mais longe do que quando usava a esquerda. Enquanto atirava as pedras, olhava para o horizonte e pensava numa invenção que lhe apetecia construir. A Violet tinha mesmo jeito para construir estra‑ nhos mecanismos, por isso ficava muitas vezes com o cérebro cheio de imagens de roldanas, alavancas e engrenagens. Nunca lhe apetecia ser distraída por coisas insignificantes. Nessa manhã estava a pensar na maneira de construir um aparelho capaz de re‑ cuperar uma pedra, depois de ela saltitar no oceano. Klaus Baudelaire, o filho do meio e único rapaz, gostava de examinar seres vivos nas poças da maré.


Nessa manh達 estava a pensar na maneira de construir um aparelho capaz de recuperar uma pedra, depois de ela saltitar no oceano.

11


Klaus tinha pouco mais de doze anos e usava ócu‑ los, o que lhe dava um ar inteligente. Mas ele era inteligente. Os pais Baudelaire tinham na mansão uma biblioteca enorme, uma sala a abarrotar de milhares de livros sobre quase todos os assuntos. Com apenas doze anos, é claro que o Klaus não tinha lido todos os livros da biblioteca dos Baude‑ laire, mas tinha lido muitos e adquirido bastantes conhecimentos com essas leituras. Sabia diferen‑ ciar um jacaré dum crocodilo. Sabia quem tinha assassinado Júlio César. E sabia imenso sobre os minúsculos e viscosos animaizinhos da Praia Salo‑ bra, que agora examinava. Sunny Baudelaire, a mais nova, gostava de morder nas coisas. Era bebé e muito pequena para a idade, pouco maior do que uma bota.

Contudo, o que lhe faltava em altura era com‑ pensado pelo tamanho dos seus quatro afiadíssi‑ mos dentes. Sunny tinha aquela idade em que uma pessoa fala sobretudo através de guinchos ininteli‑ gíveis. Excepto quando a Sunny usava os escassos termos do seu vocabulário, coisas como ‹‹biberão››, ‹‹mamã›› e ‹‹morder››, a maior parte das pessoas sentia dificuldade em perceber o que ela dizia. Por exemplo, nessa manhã repetia Gaque! vezes sem conta, o que talvez quisesse dizer «olhem para aquela figura misteriosa a emergir do nevoeiro! De facto, à distância e ao longo da brumosa costa da Praia Salobra, via-se um vulto alto caminhar ao encontro dos irmãos Baudelaire. A Sunny já havia guinchado e olhado fixamente para o vulto, quando

12


o Klaus ergueu o olhar do caranguejo minúsculo que examinava e também o viu. Estendeu a mão e tocou no braço da Violet, arrancando-a aos seus inventivos pensamentos. - Olha para aquilo - disse o Klaus, apontando para o vulto. Estava a aproximar-se, e os miúdos só conseguiam destrinçar um ou outro pormenor. Tinha a altura dum adulto, mas a cabeça era alta e a modos que quadrada. - Que te parece? - perguntou a Violet. - Não sei - disse o Klaus - Mas parece que vem ao nosso encontro. - Estamos sozinhos na praia - disse a Violet, algo nervosa. Não pode ir ao encontro de mais nin‑ guém. Esta sentiu na mão esquerda a pedra acha‑

tada e lisa que estivera prestes a fazer saltitar na água, o mais longe possível. Pensou de repente em atirá-la ao vulto, pois metia medo. - Só mete medo - disse o Klaus como se ti‑ vesse adivinhado os pensamentos da irmã. Quando o vulto chegou ao pé deles, as crian‑ ças viram, aliviadas, que não era afinal ninguém assustador, mas sim um conhecido: o Sr. Poe. O Sr. Poe era um amigo do Sr. e da Sra. Bau‑ delaire, com quem os miúdos tinham estado mui‑ tas vezes em vários jantares. Uma das coisas que a Violet, o Klaus e a Sunny gostavam nos pais, era o facto de não mandarem os filhos embora quan‑ do tinham visitas, antes os deixavam sentar-se com os adultos à mesa do jantar e participar na con‑

13


Estava a aproximar-se, e os miúdos só conseguiam destrinçar um ou outro pormenor. Tinha a altura dum adulto, mas a cabeça era alta e a modos que quadrada.

14


15


versa, desde que ajudassem a levantar a mesa. Os três irmãos lembravam-se do Sr. Poe, por‑ que ele estava sempre constipado e passava o tem‑ po a pedir licença para se levantar da mesa, de modo a ter os seus ataques de tosse na sala ao lado. O Sr. Poe tirou o chapéu alto, que fizera a sua ca‑ beça parecer alta e quadrada no meio do nevoeiro, quedando-se por instantes a tossir ruidosamente para um lenço branco. A Violet e o Klaus avan‑ çaram, para lhe apertar a mão e dizer como está. - Como está, passou bem? - disse a Violet. - Como está, passou bem? - disse o Klaus. - Czmtá! - disse a Sunny. - Muito bem, obrigado - disse o Sr. Poe. Durante alguns segundos ninguém disse nada e os miúdos

quiseram saber o que faria o Sr. Poe ali na Praia Salobra, a uma hora em que devia estar na cidade. Não trazia roupa adequada à praia. - Está um lindo dia - disse finalmente a Violet, como quem faz conversa. A Sunny fez um barulho parecido com o duma ave zangada, e o Klaus levan‑ tou-a e pegou nela ao cólo. - Sim, está um lindo dia - disse o Sr. Poe, dis‑ traído, olhando fixamente para a praia vazia. - Lamento, mas trago-vos uma notícia muito má. Os três irmãos Baudelaire olharam para ele. Algo envergonhada, a Violet sentiu a pedra na mão es‑ querda e ficou contente por não a ter atirado. - Os vossos pais - disse o Sr. Poe - perecera num terrível incêndio. - As crianças não disseram nada.

16


- Pereceram - disse o Sr. Poe - num incên‑ dio que destruiu a casa toda. Lamento muito, mas muito, ter de vos dizer isto, meus queridos. A Violet desviou do Sr. Poe os olhos e fixou de‑ moradamente o mar. O Sr. Poe nunca antes tra‑ tara os irmãos Baudelaire por «meus queridos››. Ela compreendera as palavras que ele proferira, mas achou que devia estar a brincar, a pregar-lhes uma partida horrível, a ela, ao irmão e à irmã. - Perecer - disse o Sr. Poe - quer dizer ‹‹morrer››. - Sabemos o que quer dizer ‹‹perecer›› - disse o Klaus, arreliado. Sabia, de facto, o que significava a palavra ‹‹perecer», mas sentia ainda dificuldade em perceber exactamente o que o Sr. Poe dissera. Pa‑ recia-lhe que o Sr. Poe a pronunciara erradamente.

- Os bombeiros foram lá, é claro, mas demasiado tarde. Toda a casa estava envolta em chamas. Ardeu de alto a baixo. - disse o Sr. Poe. O Klaus imaginou os livros na biblioteca a desfa‑ zerem-se em labaredas. Agora é que nunca os leria a todos. O Sr. Poe tossiu várias vezes para o lenço. - Mandaram-me cá buscar-vos e levar-vos para minha casa, onde ficarão algum tempo até arran‑ jarmos alguma coisa. Sou o executor testamentário do património dos vossos pais. Isso significa que vou gerir a sua enorme fortuna e decidir para onde é que vocês vão, meus meninos. Quando a Violet for maior, a fortuna será vossa, mas o banco cui‑ dará dela até terem idade. - Apesar de o Sr. Poe ter dito que era o executor testamentário, a Violet

17


sentiu que ele era antes o executor duma sentença. Que tinha, simplesmente, ido á praia transformar as suas vidas para sempre. - Venham comigo - disse o Sr. Poe, estendendo a mão. Para lhe dar a mão, a Violet teve de largar a pedra que segurava. O Klaus deu a mão à outra mão da Violet e a Sunny deu a mão à outra mão do Klaus. Foi assim que os três irmãos Baudelaire - agora, os órfãos Baudelaire - foram conduzidos para fora da praia e da sua vida anterior. É inútil descrever‑ -vos o horror que a Violet, o Klaus e a Sunny sofre‑ ram nos tempos que se seguiram. Se alguma vez perderam alguém importante para vocês, então já sabem o que se sente, mas se não perderam,então nem conseguem imaginar.

Para os irmãos Baudelaire, foi terrível sobretudo porque perderam ambos os pais ao mesmo tempo e, durante alguns dias, sentiram-se tão tristes, que mal conseguiram levantar-se da cama. As engrenagens do inventivo cérebro da Violet pareciam ter parado. E até a Sunny, que, é claro, era nova de mais para compreender o que se pas‑ sava, mordeu nas coisas com menos entusiasmo. É claro que o facto de também terem perdido o lar e todos os pertences não tornou as coisas mais fáceis. Como tenho a certeza de que sabem, estar-se no nosso quarto, na nossa cama, pode muitas ve‑ zes tornar melhor uma situação aflitiva, mas as camas dos órfãos Baudelaire tinham ficado redu‑ zidas a cinzas. O Sr. Poe levara-os a ver as ruínas

18


da mansão dos Baudelaire, para verem se alguma coisa escapara, mas foi horrível: o microscópio da Violet tinha-se fundido com o calor do incên‑ dio, a caneta preferida do Klaus transformara-se em cinza e tinham-se derretido todos os anéis de borracha com que a Sunny aliviava as raivinhas. Aqui e ali, as crianças viram vestígios da enorme enorme casa que tinham adorado: fragmentos do piano de cauda, o elegante frasco em que o Sr. Baude‑ laire guardava a aguardente,incinerada a almofada em que a mãe gostava de sentar no banco junto à janela. Com o lar destruído, os Baudelaire tiveram de recuperar da sua perda em casa dos Poe, o que não foi nada agradável. O Sr. Poe pouco estava em casa, pois andava muito atarefado a gerir os

assuntos dos Baudelaire e, quando estava, tossia tanto, que mal conseguia manter uma conversa. A Sra. Poe comprou aos órfãos roupa de cores grotescas e que provocava comichão. E os dois filhos do Sr. Poe - o Edgar e o Albert - eram dois rapazes barulhentos e antipáticos, com os quais os Baudelaire tiveram de partilhar um quarto minús‑ culo, que cheirava a uma ascorosa flor desconhecida. Mesmo no meio desse ambiente, as crianças ex‑ perimentaram sentimentos contraditórios quando, durante um jantar de frango cozido, batatas cozidas e feijão-verde escalfado - aqui, a palavra ‹‹escalfa‑ do» também significa ‹‹cozido» - o Sr. Poe anun‑ ciou que elas iam deixar a casa na manhã seguinte. - Óptimo - disse o Albert, com um bocado de

19


20


Os Baudelaire tiveram de partilhar um quarto minúsculo, que cheirava a uma ascorosa or desconhecida

21


batata entalado nos dentes. - Assim, já pode‑ mos ficar outra vez com o quarto só para nós. Es‑ tou farto de o partilhar. A Violet e o Klaus pas‑ sam o tempo a lamuriar-se e nunca se divertem. - E a bebé morde - disse o Edgar, atiran‑ do um osso de frango para o chão, como se fosse um animal do jardim zoológico e não filho dum respeitado membro da comunidade bancária. Os órfãos Baudelaire foram para o quarto e so‑ rumbáticamente emalaram os seus poucos pertences. O Klaus olhava com desagrado para cada camisa feia que a Sra. Poe lhe comprara, enquanto as do‑ brava e enfiava numa mala pequena. A Violet olha‑ va em volta, para o quarto acanhado e malcheiroso em que tinham estado a viver. A Sunny gatinhava.

-Vamos para onde? - perguntou, enervada, a Violet. O Sr. Poe abriu a boca para dizer qual‑ quer coisa, mas teve um curto ataque de tosse. - Arranjei as coisas - disse finalmente - de modo que sejam educados por um parente afastado e que mora na outra ponta da cidade. Chama-se Olaf. A Violet, o Klaus e a Sunny entreolharam-se, sem saber o que pensar. Por um lado, não lhes ape‑ tecia continuar a viver com os Poe. Por outro, nun‑ ca tinham ouvido falar no conde Olaf e não sabiam como ele seria. - O testamento dos vossos pais - disse o Sr. Poe manda que vocês sejam educados da forma mais adequada possível. Aqui na cidade, estarão habitua‑ dos ao ambiente que vos rodeia, e o conde Olaf é

22


o vosso único parente que vive no perímetro ur‑ bano. O Klaus pensou nisso uns instantes, en‑ quanto engolia um rijo pedaço de feijão-verde. - Mas os pais nunca nos falaram em nenhum conde Olaf. Qual é, exactamente, o parentesco? O Sr. Poe suspirou e olhou para a Sunny que mordia um garfo e escutava tudo com atenção. - Ou é vosso primo em terceiro grau, quatro gerações afastado, ou primo em quarto e afas‑ tado três gerações. Não é o parente mais che‑ gado na árvore genealógica da família, mas é o mais próximo, geograficamente. Por isso é que... - Se ele vive na cidade - perguntou a Violet porque é que os nossos pais nunca o convidaram? - Possivelmente, por ele ser uma pessoa muito

ocupada - disse o Sr. Poe. - Tem o ofício de actor e viaja frequentemente por esse mundo, integrado em várias companhias de teatro. - Julgava que era conde - disse o Klaus. - É conde e ator. Não quero encurtar o vosso jan‑ tar, mas vocês têm de fazer as malas, e eu de voltar ao banco, para regressar ao trabalho. - disse o Sr. Poe. Os três irmãos Baudelaire ainda tinham muitas perguntas a fazer ao Sr. Poe, mas este levantou-se da mesa e, com um ligeiro aceno de mão, saiu da sala. Ouviram-no tossir para o lenço e, a seguir, a porta da frente rangeu e fechou-se, quando ele saiu de casa. - Bem - disse a Sra. Poe - vocês três, é me‑ lhor começarem já a fazer as malas. Edgar! Albert! Por favor ajudem a levantar a mesa.

23


Ali de roda, mordendo cada um dos sapatos do Albert e do Edgar, estava Sunny, deixando neles marcas de dentinhos, para que não fosse esquecida. De vez em quando, os manos Baudelaire entreo‑ lhavam-se, mas com um destino desconhecido e tão misterioso pela frente, não descobriam nada para di‑ zer. Depois de se deitarem, deram voltas e mais vol‑ tas na cama, toda a noite, mal conseguindo dormir, por causa do ressonar do Edgar e do Albert, para não falar nos seus pensa- mentos aflitivos. Finalmente, o Sr. Poe bateu à porta e enfiou a cabeça no quarto. - De pé, meninos Baudelaire - disse ele. - Está na hora de irem para casa do conde Olaf. A Violet olhou em volta, para o quarto a abar‑ rotar e, mesmo sem gostar dele, a ideia enervou-a.

- É mesmo preciso irmos já? - perguntou ela. - Sim. Deixo-vos a caminho do banco, temos de ir o mais depressa possível. Por favor saltem da cama e vistam-se - disse com vivacidade. A ex‑ pressão «com vivacidade» aqui significa ‹‹depressi‑ nha, que é para tirarmos já os manos Baudelaire cá de casa››. E os manos Baudelaire saíram lá de casa. O automóvel do Sr. Poe avançava ruidosa‑ mente pelas ruas calcetadas da cidade, em di‑ recção ao bairro onde morava o conde Olaf. Passaram por carruagens puxadas a cavalos e motociclos, ao longo de todo o Passeio da Me‑ lancolia. Passaram pela Fonte do Capricho, um monumento esculpido de forma elaborada que, ocasionalmente, cuspia água onde costumavam

24


brincar crianças. Passaram por uma enorme pilha de terra que outrora tinham sido os Jardins Reais. Não muito tempo depois, o Sr. Poe dirigiu o carro ao longo duma alameda com casas de tijolo claro de ambos os lados e parou a meio do quarteirão. - Cá estamos - disse o Sr. Poe, numa voz que sem dúvida desejou mais alegre. - A vossa nova casa. Os irmãos Baudelaire olharam e viram a casa mais bonita do quarteirão. Os tijolos tinham sido muito bem limpos e, através de janelas abertas de par em par, via-se uma profusão de. plantas bem cuidadas. À porta, com a mão numa maçaneta de latão cintilante, estava uma senhora de certa idade, bem vestida, a sorrir para as crianças. Na outra mão se‑ gurava um vaso de flores. A Violet abriu a porta

da frente do automóvel saiu para apertar a mão à senhora. Era firme ecalorosa e, pela primeira vez desde há muito tempo, a Violet sentiu que a sua vida e a dos irmãos talvez se pudesse compor. - Sim - disse - somos nós. Chamo-me Violet Baudelaire, este é o meu irmão Klaus e esta a mi‑ nha irmã Sunny e este é o Sr. Poe. - Olá, como estão? - disse a senhora, enquanto to‑ dos diziam passou bem - sou a juíza Strauss. - Que primeiro nome tão invulgar - disse o Klaus. - É o meu título - explicou ela - não o meu nome de baptismo. Sou juíza do Supremo Tribunal. - É casada com o conde Olaf ? - disse a Violet. - Meu Deus, nem por sombras - disse a juíza Strauss. - Nem sequer o conheço muito bem.

25


26


Passaram por carruagens puxadas a cavalos e motociclos ao longo de todo o Passeio da Melancolia.

27


O conde é só o meu vizinho do lado. - As crianças desviaram o olhar da casa limpinha da juíza Strauss para outra degradada, logo ao lado. Os tijolos estavam encardidos e cobertos de pó de carvão. Só tinha duas janelas pequenas, fechadas e com as persianas corridas, embora estivesse um dia bonito. Erguendo-se acima das janelas via-se uma torre, ligeiramente inclinada para a esquerda. A porta principal precisava de pintura e tinha um olho esculpido a meio. Todo o edifício parecia inclinado para o lado, como um dente torto. - 011! - disse a Sunny, e todos perceberam o que ela quis dizer. Ela quis dizer «que lugar horrível! Não quero viver ali, de maneira nenhuma››!!! - Bom, foi um prazer conhecê-la - disse a Violet.

- Pois - disse a juíza Strauss, fazendo um gesto em direcção ao vaso de flores. Talvez um dia possas cá vir ajudar-me a tratar do jardim. - Isso seria muito agradável - disse a Violet, com imensa tristeza. Seria, é claro, muito agradavel aju‑ dar a juíza Strauss a jardinar, mas a Violet não con‑ seguia deixar de pensar que seria muitíssimo mais agradável morar na casa da juíza Strauss, do que na do conde Olaf. Que género de homem, interrogou‑ -se aViolet, esculpiria um olho na porta da frente? O Sr. Poe inclinou o chapéu para a juíza Strauss, que sorriu às crianças e entrou na sua linda casa. O Klaus avançou e bateu à porta do conde Olaf com os nós dos dedos, mesmo no centro do olho esculpido. Seguiu-se uma pausa, depois a porta

28


rangeu ao abrir-se e as crianças viram o conde Olaf pela primeira vez. - Olá, olá, olá! - disse o conde Olaf, num sussurro sibilante. Era muito alto, magro e tra‑ zia um fato cinzento cheio de nódoas. Tinha a barba por fazer e, em vez de duas sobrancelhas, como tem a maioria dos seres humanos, o con‑ de tinha apenas uma muito comprida. Os olhos eram muito, mas muito brilhantes, o que lhe dava um aspecto ao mesmo tempo faminto e zangado. - Olá, meus meninos! Por favor entrem para o vosso novo lar e esfreguem bem os pés aí fora, não tragam lama para dentro. Ao entrarem em casa, o Sr. Poe atrás deles, os órfãos Baudelaire perceberam quão ridícula fora a

recomendação do conde Olaf. A sala onde se vi‑ ram era a mais suja em que alguma vez tinham estado e, um pouco de lama do exterior, não te‑ ria feito a mínima diferença. Mesmo à luz fraca da única lâmpada que havia, sem quebra-luz e sus‑ pensa do tecto, as crianças perceberam que tudo naquela sala era nojento, desde uma cabeça de leão empalhada e pregada à parede, até uma tige‑ la com restos de maçã numa mesinha de madeira. Enquanto olhava em volta, o Klaus esforçou-se muito para não chorar e não chorou. - Esta sala está a precisar de um toque - disse o Sr. Poe olhando em volta na penumbra. - Sei que o meu humilde lar não tem o requinte da mansão Baudelaire - disse o conde Olaf - mas

29


talvez com um pouco do vosso dinheiro o pudés‑ semos pôr mais bonito. Os olhos do Sr. Poe arre‑ galaram-se de surpresa, e a sua tosse ecoou pela sala escura, antes de falar. - A fortuna dos Baudelaire - disse muito sério não será usada para esses fins. Aliás, não será usada, dc todo, antes de a Violet atingir a maioridade. O conde Olaf virou-se para o Sr. Poe, com uma chispa no olho, tal qual um cão danado. Por ins‑ tantes, a Violet pensou que ele ia dar um murro na cara do Sr. Poe. Mas, depois, o conde engoliu em seco - as crianças bem viram a sua maçã-de-adão subir e descer - e encolheu os ombros desiguais. - Então, muito bem - disse o conde. - Muito obrigado, Sr. Poe, por tê-los trazido.

- Adeus Violet, Klaus, Sunny! - disse o Sr. Poe, recuando e saindo pela porta da frente. - Espe‑ ro que sejam muito felizes aqui. Continuarei a ver-vos, esporadicamente. Podem contactar-me no banco, sempre que tiverem perguntas a fazer. - Mas se nem sabemos onde fica o banco - disse o Klaus desesperado. - Eu tenho um mapa da cidade - disse o con‑ de.lnclinou-se para a frente quando fechou a por‑ ta, e os órfãos Baudelaire sentiram-se demasiado desesperados para deitarem um último olhar ao Sr. Poe. Agora já desejavam poder ficar antes em casa dos Poe, por muito malcheirosa que fosse. A seguir, em vez de olharem para a porta, os ór‑ fãos olharam para o chão e viram que, apesar de

30


estar de sapatos, o conde Olaf não trazia meias. Também viram, na porção de pele exposta, entre a bainha esfiapada das calças e o rebordo do sapato preto, que o conde Olaf tinha tatuado a imagem dum olho igual ao da porta principal. Perguntaram a si mesmos quantos olhos haveria em casa do con‑ de Olaf e se, para o resto das suas vidas, iriam con‑ tinuar a ter aquela sensação de que o conde Olaf os observava, mesmo quando não estava por perto. Não sei se já repararam nisso, mas as primeiras impressões estão muitas vezes completamente er‑ radas. Por exemplo, a primeira vez que olhamos para um quadro, podemos não gostar nada dele, mas depois de olharmos mais tempo, acabamos por achá-lo muito agradável. Quando a Sunny

nasceu, o Klaus não gostara nada dela, quando a miúda fez um mês e meio, os dois passaram a ser unha com carne. A nossa opinião inicial, so‑ bre quase tudo, pode com o tempo modificar-se. Quem me dera poder dizer-vos que estava er‑ rada a primeira impressão que os Baudelaire ti‑ veram do conde Olaf e respectiva casa, uma vez que as primeiras impressões frequentemente o estão. Mas essas impressões - que o conde Olaf era uma pessoa horrível e a sua casa uma pocilga deprimente - estavam absolutamente correctas. Durante os primeiros dias em casa do conde Olaf, a Violet, o Klaus e a Sunny bem se esforçaram por se sentir em casa, mas foi inútil. Embora a casa do conde Olaf fosse bastante espaçosa, as três crianças

31


foram enfiadas num quarto nojento e que só tinha uma cama pequena. Com o intuito de fazer uma cama para a Sunny, a Violet tirou dos varões os re‑ posteiros poeirentos que cobriam a única janela do quarto e dispô-los de modo a formar uma espécie de almofada, suficientemente grande para a irmã. No entanto, sem cortinas a tapar os vidros racha‑ dos, o sol da manhã entrava logo pela janela, e todos os dias as crianças acordavam muito cedo e doridas. O conde Olaf não era interessante nem bon‑ doso; era exigente, tinha mau génio e cheirava mal. A única coisa boa que se pode dizer do con‑ de Olaf é que nunca estava muito tempo em casa. Depois de se levantarem e escolherem a rou‑ pa na arca frigorífica, as crianças iam à cozinha

e liam a lista de instruções deixada pelo conde Olaf. Frequentemente, este só voltava à noite. Passava a maior parte do dia fora de casa, ou na torre onde as crianças estavam proibidas de en‑ trar. O conde costumava mandá-los executar ta‑ refas difíceis, como pintar a varanda das traseiras ou reparar as janelas. Em vez de assinar, o con‑ de Olaf desenhava um olho ao fundo do bilhete. Uma manhã, no bilhete estava escrito o seguin‑ te: «A minha trupe do teatro vem cá jantar, depois da representação desta noite. Tenham uma refei‑ ção pronta para dez quando eles chegarem às sete horas. Comprem a comida, preparem-na, ponham a mesa, sirvam o jantar, limpem tudo a seguir e saiam-nos da frente».

32


A Violet e o Klaus leram o bilhete enquanto to‑ -mavam o pequeno-almoço, uma papa de flocos de aveia cinzenta e cheia de grumos, que o conde Olaf lhes deixava todas as manhãs num panelão no for‑ no. A seguir olharam um para o outro, assustados. - Nenhum de nós sabe cozinhar - disse o Klaus. - Isso é verdade - disse a Violet. - Soube conser‑ tar as janelas e limpar a chaminé, porque esse gé‑ nero de coisas me interessa. Mas não sei cozinhar, a não ser torradas. - E às vezes até as queimas - disse o Klaus. Os dois lembraram-se de um dia em que se tinham levantado mais cedo, com a intenção de fazer um pequeno-almoço especial para os pais. A Violet queimara as torradas, e os pais, sentindo cheiro a

fumo, correram ao rés-do-chão para ver o que se passava. Quando viram a Violet e o Klaus espe‑ cados, a olhar desconsolados para torradas negras como o carvão, fartaram-se de rir e depois fizeram panquecas para a família toda. - Quem me dera que eles cá estivessem - disse a Violet que não precisou de dizer que se referia aos pais - Nunca nos deixariam ficar neste sítio medonho. - Se eles cá estivessem - disse o Klaus, erguendo aos poucos a voz, à medida que se ia sentido cada vez mais aflito. - Não estaríamos em casa do con‑ de Olaf. Odeio isto aqui, Violet! Odeio esta casa! - Eu também - disse a Violet. O Klaus olhou aliviado para a irmã mais ve‑ lha. Às vezes, o simples facto de se dizer que se

33


34


A Violet queimara as torradas, e os pais, sentindo cheiro a fumo, correram ao rĂŠs-do-chĂŁo para ver o que se passava.

35


odeia uma coisa e haver alguém que concorda connosco, pode fazer com que nos sintamos me‑ lhor quando passamos por uma situação horrível. - Hoje em dia odeio tudo na nossa vida, Klaus disse a Violet , mas temos de manter a cabeça erguida. Era uma expressão que o pai das crianças costuma‑ va utilizar e que significa »tentar manter o ânimo». - Juque! - guinchou a Sunny, batendo na mesa com a colher da papa. Com um pulo de susto, a Violet e o Klaus acabaram a conver‑ sa e voltaram a ler o bilhete do conde Olaf. - Talvez haja um livro de cozinha onde possa‑ mos aprender a cozinhar - disse o Klaus. - Não deve ser assim tão difícil preparar uma refeição simples. A Violet e o Klaus passaram alguns mi‑

nutos a abrir e a fechar os armários da cozinha do conde Olaf, mas não havia livros de culinária... - Não me admira nada - disse a Violet. - Ainda não vimos um único livro nesta casa. - Eu sei - disse o Klaus, com tristeza. - Tenho tantas saudades de ler! Um dia destes temos de sair à procura duma biblioteca. Mas hoje, não - disse a Violet. - Hoje temos de cozinhar para dez pessoas. Nesse instante ouviram bater à porta. A Violet e o Klaus olharam um para o outro, desassossegados. - A quem é que apetece visitar o conde Olaf ? - Talvez seja alguém que nos queira visi‑ tar a nós - disse o Klaus, sem grande esperança. Desde que os pais dos Baudelaire tinham morri‑ do, a maior parte dos amigos dos órfãos tinha fica‑

36


do pelo caminho, expressão que aqui significa «dei‑ xaram de telefonar, de escrever e de visitar qualquer dos Baudelaire, fazendo-os sentir-se muito sós». Vocês e eu, é claro, jamais faríamos isso a conhe‑ cidos que estivessem a sofrer, mas a triste verda‑ de é que nesta vida, quando uma pessoa perde um ente querido, por vezes os amigos evitam-na, justa‑ mente quando a presença de amigos mais falta faz. A Violet, o Klaus e a Sunny foram devaga‑ rinho até à porta da frente e espreitaram pelo postigo, que era do feitio dum olho. Ficaram encantados quando viram a juíza Strauss tam‑ bém a espreitar para eles. Abriram a porta. - Senhora Juíza Strauss! - exclamou aViolet. - Que maravilha vê-la! - E ia acrescentar ‹‹por favor entre»,

quando percebeu que o mais certo era a juíza Strauss não querer aventurar-se naquela sala sombria e suja. - Por favor desculpem-me, por não vos ter visitado mais cedo - disse a juíza Strauss, enquanto os Baudelaire ficavam pouco à vontade na soleira da porta. - Já me tinha apetecido saber como se esta‑ vam a adaptar, mas tive um processo muito dificil no Supremo Tribunal, e ele tomou-me muito tempo. - Que género de processo? - perguntou o Klaus. Privado de leitura, andava sequioso de informação. - Não posso falar nele - disse a juíza Strauss - porque está em segredo de justiça. Só vos posso dizer que tem a ver com uma planta venenosa e a utilização ilegal do cartão de crédito de alguém. - Ieca! - guinchou a Sunny, parecendo com isso ter

37


dito «que interessante››, embora, é claro, não houves‑ se hipótese de a bebé perceber o que se estava a dizer. A juíza Strauss baixou o olhar para a Sunny e riu-se. - Ieca, mesmo! - disse ela, estendendo a mão para fazer uma festa na cabeça da criança. A Sunny pegou na mão da juíza Strauss e mordiscou-a com cautela. - Isso quer dizer que gosta de si - explicou a Violet. - Morde com muita, mas mesmo muita força, quando não gosta duma pessoa. Ou quando lhe querem dar banho. - Estou a perceber - disse a juíza Strauss. - E en‑ tão, como têm passado? Apetece-vos alguma coisa? As crianças olharam umas para as outras, pen‑ sando naquilo tudo que lhes apetecia. Outra cama, por exemplo. Um berço a sério para a Sunny. Re‑

posteiros na janela do quarto. Um guarda-fato, em vez duma caixa de papelão. Mas o que mais dese‑ javam, é claro, era não terem absolutamente nada a ver com o conde Olaf. O que mais desejavam era voltar a viver com os pais, no seu verdadeiro lar. Mas isso, é claro, era impossível. A Violet, o Klaus e a Sunny olharam infelizes para o chão, ponderando a pergunta. Até que, final‑ mente, o Klaus disse: - Podia emprestar-nos um livro de cozinha? O conde Olaf deixou-nos instruções parafazer o jan‑ tar para a trupe do teatro dele, mas não encon‑ trámos nenhum livro de culinária em toda a casa. - Meu Deus - disse a juíza - Pedir a crianças para cozinhar para um grupo de teatro inteiro!

38


- O conde Olaf responsabiliza-nos muito - dis‑ se a Violet. O que gostaria de ter dito era ‹‹o con‑ de Olaf é um malvado››, mas tinha boas maneiras. - Bom, porque não vêm até minha casa - disse a juíza Strauss - e escolhem um livro que vos agrade? Os miúdos concordaram e seguiram a juíza Strauss até casa dela. A senhora atravessou com eles um átrio muito elegante, que cheirava a flores, entrou numa ala enorme e, quando as crianças vi‑ ram o que lá estava dentro, quase desmaiaram de prazer. Sobretudo o Klaus. A sala era uma biblioteca. Não uma biblioteca pública, mas privada; isto é, uma vasta colecção de livros que pertencia à juíza Strauss. Havia estantes e estantes cheias, em todas as paredes, do chão até

ao tecto, além de estantes separadas, a meio da sala. O único sítio em que não havia livros era um can‑ to onde estavam umas cadeiras amplas, de aspecto confortável, bem como uma mesa de madeira com candeeiros suspensos por cima, ideais para leitura. - Ena! - disse a Violet. - Que biblioteca maravilhosa! - Muito obrigada - disse a juíza Strauss. - Há anos que compro livros, e orgulho-me muito da minha colecção. Desde que os tratem com cuida‑ do, podem , levar qualquer livro meu, em qualquer altura. Os de culinária estão ali na parede leste. - Sim - disse a Violet. - E depois, se não se im‑ portar, adorava ver os seus livros de engenharia mecânica. Gosto muito de inventar coisas.

39


- E eu gostava de ver livros sobre lobos - disse o Klaus. - Ultimamente, deixei-me fascinar pelos animais selvagens da América do Norte. - Libo! - guinchou a Sunny, querendo com isso dizer «por favor não se esqueçam de escolher um livro com bonecos, para mim››. A juíza Strauss sorriu. - É um prazer ver gente nova interessar-se por livros. Mas, primeiro, julgo que é melhor escolhermos uma boa receita. As crianças concordaram e, durante quarenta mi‑ nutos, ou assim, examinaram com atenção alguns livros de culinária que a juíza Strauss recomendara. Para vos dizer a verdade, os três órfãos estavam tão fascinados por terem saído da casa do conde Olaf, por encontrarem numa biblioteca tão agradá‑

vel, que estavam um nadinha distraídos e incapazes de se concentrar na culinária. Mas, finalmente, o Klaus descobriu uma receita que lhes pareceu deli‑ ciosa e fácil de fazer. - Ouçam lá esta - disse ele. - Puttanesca. É um molho italiano para acompanhar esparguete. Só precisamos de azeitonas salteadas, alcaparras, anchovas, alho, salsa picada e tomates, tudo junto num tacho. E de cozer o esparguete. - Parece fácil - concordou a Violet. Os órfãos Baudelaire entreolharam-se. Com a bondosa juí‑ za Strauss e a biblioteca logo na porta ao lado, as crianças talvez ainda conseguissem uma vida agra‑ dável, com a mesma facilidade com que iam prepa‑ rar o molho puttanesca para o conde Olaf.

40


Os órfãos Baudelaire copiaram depois, para um pedaço de papel, a receita do molho puttanesca que vinha no livro de culinária. A juíza Strauss teve a amabilidade de os acompanhar ao mercado, para comprarem os ingredientes necessários. O conde Olaf não lhes tinha deixado muito dinheiro, mas as crianças conseguiram comprar tudo o que precisa‑ vam. A um vendedor ambulante compraram as azei‑ tonas, depois de provarem algumas variedades e op‑ tarem pela preferida. Na loja das massas alimentícias escolheram um macarrão com um feitio interessante. Perguntaram à senhora que dirigia a loja qual se‑ ria a quantidade suficiente para treze pessoas - as dez que o conde Olaf mencionara e eles os três. Depois, no supermercado, compraram alho (uma

planta bulbosa de sabor penetrante); anchovas (pei‑ xes pequeninos e salgados); alcaparras, que são bo‑ tões da flor dum pequeno arbusto e têm um sabor delicioso; e tomates, que por acaso até são frutos e não legumes, como a maioria das pessoas pensa. Acharam que seria adequado servir uma sobre‑ mesa e compraram vários pacotes de uma mistu‑ ra para fazer pudins. Talvez, pensaram os órfãos, se preparassem uma refeição deliciosa, o con‑ de Olaf passasse a ser mais simpático com eles. - Muito obrigada pela ajuda que nos deu hoje - disse a Violet, quando ela e os irmãos voltavam para casa, ainda na companhia da juíza Strauss. - Vocês parecem pessoas inteligentes - disse a juíza Strauss. - Julgo que não erro, se disser que

41


vos teria ocorrido uma solução qualquer. Continuo é a achar estranho o conde Olaf exigir de vós a preparação duma refeição tão abundante. Tenho de entrar e guardar as compras. Espero que em breve voltem cá, para pedir livros da minha biblioteca. - Amanhã? - perguntou logo o Klaus. - Não sei porque não! - disse a juíza Strauss, a sorrir. - A senhora nem calcula o quanto apreciámos o que fez - disse a Violet, cautelosamente. Com a morte dos seus carinhosos pais e o conde Olaf a tratá-los de forma abominável, as três crian‑ ças não estavam habituadas a bondades por par‑ te dos adultos. Compreendiam por isso, que estes exigissem aos três irmãos a retribuição de favores. - Amanhã, antes de voltarmos a usar a sua bi‑

blioteca, o Klaus e eu teremos muito gosto em ar‑ rumar-lhe a casa. A Sunny ainda não tem propria‑ mente idade para trabalhar, mas tenho a certeza de que arranjaremos uma forma de ela lhe ser útil. A juíza Strauss sorriu às três crianças, mas com uma expressão triste no olhar. Estendeu a mão e passou-a pelo cabelo da Violet, que se sentiu con‑ solada como há muito não se sentia... - Não é preciso - disse a juíza Strauss. - Vocês serão sempre bem recebidos em minha casa. A Violet, o Klaus e a Sunny levaram a maior parte da tarde a cozinhar o molho puttanesca, se‑ guindo a receita à risca. O Klaus pelou os tomates e tirou os caroços das azeitonas. A Sunny bateu num tacho com uma colher de pau, cantando uma can‑

42


ção algo repetitiva, que ela mesma compusera. E os três sentiram-se menos infelizes do que se tinham sentido, desde que chegaram a casa do conde Olaf. O aroma de alimentos a cozinhar é muitas vezes calmante, e a cozinha ia-se tornando gradualmente mais aconchegada, á medida que o molho ‹‹apurava››. Os três órfãos falaram de agradáveis recor‑ dações dos pais, da juíza Strauss que, concor‑ daram, era uma vizinha maravilhosa e em cuja biblioteca tencionavam passar muito tempo. À medida que conversavam, iam misturando e provando o pudim de chocolate. No preciso instan‑ te em que colocavam o pudim no frigorífico, para o arrefecer, a Violet, o Klaus e a Sunny ouviram um estrondo, depois de a porta se escancarar. Nem é

preciso de dizer quem é que tinha chegado a casa. - Órfãos! - berrou o conde Olaf, com a sua voz roufenha. - Onde estão vocês, ó órfãos? - Na cozinha, Senhor Conde Olaf ! - exclamou o Klaus. - Estamos a acabar o jantar. - É melhor que estejam - disse o conde Olaf, entrando de rompante na cozinha. Olhou fixamen‑ te para os três irmãos Baudelaire com os seus olhos muito, mas mesmo muito, brilhantes. - A minha trupe está mesmo atrás de mim e com muita fome, que é do rosbife? - Não fizemos rosbife - disse a Violet. - Fize‑ mos molho puttanesca. - O quê?! - perguntou o conde. - Não há rosbife? O conde Olaf pareceu deslizar até ao pé das

43


44

Nem é preciso dizer quem é que tinha chegado a casa. - Órfãos! - berrou o conde Olaf, com a sua voz roufenha. - Onde estão vocês, ó órfãos?


45


crianças, pelo que ficou ainda mais alto do que pa‑ recia. Os seus olhos ficaram ainda mais brilhan‑ tes, e o seu único sobrolho franziu-se, colérico. - Ao concordar em adoptar-vos - disse ele tornei-me vosso pai e, enquanto nosso pai, não admito que trocem de mim. Exijo que me sir‑ vam rosbife, a mim e aos meus convidados. - Não temos! - gritou a Violet. - Fizemos foi molho puttanesca. - Na! Na!- Na-! - gritou a Sunny. O conde Olaf baixou o olhar para ver a Sunny, por ela se ter exprimido de forma tão inesperada. Com um rugido desumano, pegou-lhe com uma mão descarnada e ergueu-a até ela poder olhá-lo de olhos nos olhos. Nem é preciso dizer que a Sunny

ficou muito assustada e desatou a chorar. Tão assus‑ tada que nem tentou morder a mão que a segurava... - Ponha-a imediatamente no chão, sua besta! gritou o Klaus. Saltou, tentando resgatar a Sunny das garras do conde, mas ele segurava-a dema‑ siado alto para o Klaus chegar lá. O conde Olaf olhou com sobranceria para o Klaus e fez um sor‑ riso horrível, mostrando os dentes. Ergueu ainda mais a Sunny. Parecia que a ia largar quando se ouviu uma explosão de gargalhadas na sala ao lado. Logo a encheram - uma amálgama de persona‑ gens estranhas, todos os tamanhos e feitios. Um careca de nariz muito comprido e com um sobre‑ tudo preto, muito alto. Duas mulheres, com o rosto coberto de um pó branco brilhante, parecidas com

46


fantasmas. Atrás das mulheres estava um homem com uns braços muito compridos e magrinhos, na ponta dos quais estavam de ganchos em vez de mãos. E uma pessoa extremamente gorda, que não se sabia se era homem ou mulher. Atrás dessa pes‑ soa, à porta, uma colecção de pessoas que as crian‑ ças não conseguiam ver, mas que prometiam ser igualmente assustadoras. - Ah! Estás aí, Olaf ! - disse uma das mulheres de rosto branco. - Que raio estás tu a fazer? - A pôr estes órfãos na ordem - disse o conde o Olaf. - Pedi-lhes para fazerem o jantar e só fize‑ ram um molho nojento. - Não se pode ser brando com as crianças - disse o homem dos ganchos.

- Têm de aprender a obedecer aos mais velhos. O careca muito alto olhou com atenção para os três. - Basta de conversa - disse ele. - Pelos vistos, temos de comer o jantar que eles prepararam, embora não seja o que devia ser. Sigam-me todos até à sala de jantar, que eu sirvo-vos o vinho. Quando chegar a altura de estes fedelhos nos servirem, talvez esteja‑ mos tão bêbados, que tanto faça ser rosbife como não. - Urra! - exclamaram vários membros da trupe, antes de atravessarem a cozinha a caminho da sala de jantar, atrás do conde Olaf. Ninguém prestou a mínima atenção às crianças, excepto o careca, que parou e olhou para a Violet, de olhos nos olhos. - És bonita - disse ele, tomando o seu rosto nas mãos rugosas. - Se fosse a ti, esforçava-me por não

47


provocar a cólera do conde Olaf, não vã ele dar cabo dessa cara bonitinha. A Violet estremeceu, o care‑ ca soltou um risinho esganiçado e foi-se embora. Os irmãos Baudelaire, sozinhos na cozinha, deram consigo a arfar, como se tivessem acabado de correr uma distância muito grande. A Sunny continua‑ va lavada em lágrimas, e o Klaus deu com os seus olho marejados. Só a Violet não chorava, tremia de ‹‹repulsa››, palavra que aqui significa «desagradável mistura de horror e nojo››. Durante alguns instante nenhum deles conseguiu falar. A mão direita da Violet doía, de tanto usar a pesada concha. Pensou em usar antes a mão esquer‑ da, mas, porque era dextra, teve medo de derramar o molho, o que poderia provocar um acréscimo da

ira do conde Olaf. Deu consigo a olhar com triste‑ za para o prato do Olaf e a desejar que tivesse com‑ prado veneno no mercado, para o pôr no molho. Entretanto, puseram-se a debicar nos pra‑ tos, demasiado infelizes para comerem. Não tardou que os amigos do Olaf voltassem a ba‑ ter ritmicamente na mesa, obrigando os órfãos a voltar à sala de jantar, com o intuito de levan‑ tar os pratos e servir o pudim de chocolate. Era evidente, nessa altura, que o conde Olaf e os co‑ legas tinham bebido muito vinho, pelo que se es‑ parramavam pela mesa e falavam muito menos. Finalmente, acordaram e desfilaram pela co‑ zinha, mal olhando para as crianças ao sair. O conde Olaf olhou em volta, e só viu louça suja.

48


- Porque ainda não lavaram a louça - disse ele aos órfãos - não assistem à representação desta noite. Os manos Baudelaire ficaram sozinhos na co‑ zinha. A Violet ajoelhou-se ao lado do Klaus e deu-lhe um chi-coração, para ele se sentir melhor. O Klaus começou a chorar convulsivamente, não por causa da dor, mas de revolta pela situação em que se encontravam. A Violet a Sunny choraram com ele, e os três não pararam de derramar lágrimas, enquan‑ to lavaram a louça toda, apagaram as velas da sala de jantar, se despiram e deitaram para dormir. O luar entrava pela janela, e se alguém tivesse es‑ preitado para dentro do quarto dos Baudelaire , teria visto três crianças a chorar em silêncio a noite toda.





Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.