Literatura das águas e das encantarias

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LITERATURA DAS ÁGUAS E DAS ENCANTARIAS Referências a seres espirituais sempre fizeram parte dos escritos literários deautores de várias nacionalidades e em diferentes tempos históricos. Centenas de criaturas fantásticas foram criadas pela imaginação humana e povoam desde as narrativas ancestrais, como a Odisseia, de Homero até a literatura atual, como O Senhor dos Anéis, de Tolkien. O tema aqui desenvolvido, as encantarias na literatura, exige que se diferencie os seres espirituais, como os santos, dos seres encantados. Então, qual seria essa diferença? Para Raymundo Maués, antropólogo paraense, a principal diferença entre as entidades encantadas e os santos, é que os santos foram humanos e morreram, enquanto que as entidades encantadas são seres humanos que não morreram apenas se encantaram, ou seja, desapareceram misteriosamente, tornaram-se invisíveis ou se transformaram em animais, plantas, pedras ou até mesmo em seres mitológicos. No caso de desaparecerem, as pessoas se encantam porque são atraídas por outros encantados para o “encante”, seu local de morada que normalmente se encontra no fundo dos rios e lagos, em cidades subterrâneas ou subaquáticas. Se alguém for levado por um encantado para o encante, deve evitar comer as coisas que são oferecidas, caso contrário se encantará, e não poderá mais viver na superfície, como os demais seres humanos. Raymundo Maués relata um fato ocorrido na Vila de Monsarás, Salvaterra que foi narrado pela senhora Maria Teodoro, segundo ela um de seus sobrinhos de sete anos sumiu da beira do rio. Sendo encontrado sete dias depois, em cima de uma árvore, todo molhado, apresentando muita febre. A criança foi levada até um pajé. Durante a consulta, um dos caruanas – que são energias viventes nas águas – revelou a família que os encantados malinaram a criança, porque ele não comeu o que foi oferecido e por isso ele teve que ser devolvido a sua família. Outro fato, contado pelo pajé Assis de Kajulece, citado por Ruy Coelho, ocorreu na vila de Joanes com o menino Rosemiro Frazão, também de sete anos de idade, que sumiu da ponte de um igarapé e não o encontraram mais. Ao passar 30 anos, ele retornou ainda aparentando ter 7 anos, para quebrar esse encantamento a irmã do menino teria que reconhecê-lo através de uma cicatriz no pé. No entanto isso não


aconteceu e fez com que o encante não fosse quebrado, dessa forma Rosemiro permaneceu no mundo dos encantados. A Amazônia, uma região geograficamente cercada de florestas e entrecortadas por rios e igarapés, reunida às histórias inventadas e mantidas pela tradição oral do seu povo favorece a criação de uma literatura rica em seres sobrenaturais. O conto Fogo Fátuo, presente na antologia Fogo Fátuo e outras histórias, publicado pela Editora Novo Romance, em 2014, conta uma história que se passa no interior do Pará, na floresta amazônica e nessa história aparecem o personagem Gilmar da Silva e sua família, sua esposa e seus três netos. Tudo decorre tranquilamente até ele se encontrar com Ramiro, um amigo de longa data. E esse amigo diz para ele que viu uma criatura. Na página 15, quando o protagonista Gilmar pergunta ao amigo Ramiro como era a criatura que ele viu, o amigo responde: Era uma labareda de fogo, mas... Mas esse fogo, ele parecia enxergar! Parecia que tava me vendo e que via tudo ao seu redor. Era um fogo sobre a água do rio. A presença dos elementos água e fogo, nos lembra, a teoria da filosofia présocrática que dizia que o mundo era composto por quatro elementos básicos: ar, água, terra e fogo. No conto Fogo Fátuo há uma tensão entre o personagem Gilmar e o ser de fogo surgido nas águas. O dilema está entre acreditar na visão do ser de fogo ou procurar a cura nos remédios que a família de Gilmar oferece a ele. Não fica claro quem vence esse dilema, a ciência ou a deidade, ambos continuam suas existências, ligados à natureza. Em outro cenário, no conto Pode entrar! publicado na antologia de contos Horas Sombrias, pela editora Andross, em 2014, a história se passa no meio urbano, no bairro do Guamá, bairro situado próximo ao rio e há o encontro de uma criatura também de fogo com uma velha senhora, onde ele lembra da sua história antes de se transformar em fogo e conta para esta senhora. Esse ente era um ser encantado, pois foi um ser humano e se transformou em um ser de fogo. Para finalizar, vamos lembrar que os personagens encantados oriundos dos elementos da natureza não se limitam a histórias orais e da literatura, mas na modernidade alcançam o cinema e a televisão, como na série norte-americana Lost, em que aparece um personagem que era um ser humano e foi encantado e transformado.



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