Rebento - revista de artes do espetáculo

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Revista de Artes do Espetรกculo no 1 - julho de 2010

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Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Técnico de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP

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Rebento : revista de artes do espetáculo / Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”. Instituto de Artes. - n. 1 (jul. 2010) - São Paulo: Instituto de Artes, 2010Anual ISSN: 2178-1206 1. Teatro – Periódicos. 2. Teatro – Estudo e ensino – Periódicos. 3. Representação teatral - Periódicos. 4. Criação (Literária, artística, etc.) - Periódicos. I. Instituto de Artes. Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”. CDD 792.07

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EXPEDIENTE

Rebento – Revista de Artes do Espetáculo é uma publicação do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Os pontos de vista expressos nos textos assinados são de inteira responsabilidade dos autores. Todo o material documental e as inserções fotográficas deste número foram publicados com a autorização de seus autores ou representantes. Coordenação editorial: Alexandre Mate (UNESP) e Mario Fernando Bolognesi (UNESP). Conselho editorial: Alberto Ikeda (UNESP), Armindo Bião (UFBA), Luís Alberto de Abreu, Maria de Lourdes Rabetti (UNIRIO), Mariângela Alves de Lima, Milton de Andrade (UDESC), Neyde Veneziano (UNICAMP) e Sílvia Fernandes (USP). Conselho consultivo: Amir Haddad (Grupo Tá na Rua – RJ), Carminda Mendes André (UNESP), Cássia Navas (UNICAMP), César Vieira (Teatro Popular União e Olho Vivo – SP), Edélcio Mostaço (UDESC), Eugenio Barba (Odin Teatret – Dinamarca), Fernando Peixoto, Fernando Villar (UnB), Fernando Yamamoto (Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare – RN), Francisco Cabral Alambert Junior (USP), Hugo Possolo (Grupo Parlapatões, Patifes & Paspalhões – SP), Iná Camargo Costa (USP – aposentada), Jaime Gómez Triana (Casa de las Américas – Cuba), José Manuel Lázaro de Ortecho (UNESP), Kátia Rodrigues Paranhos (UFU), Karen Worcman (Museu da Pessoa), Kathya Maria Ayres de Godoy (UNESP), Leslie Damasceno (Duke University – Carolina do Norte), Marcelo Bones (CEFAR-MG e FUNARTE), Maria Silvia Betti (USP), Marianna Francisca Martins Monteiro (UNESP), Marta Colabone (SESC-SP), Marvin Carlson (City University – New York), Milton Sogabe (UNESP), Narciso Telles (UFU), Paulo Eduardo Arantes (USP), Paulo Betti (Casa da Gávea – RJ), Paulo Castanha (UNESP), Peter Burke (University of Cambridge), Roberto Schwarz (UNICAMP), Robson Corrêa de Camargo (UFG), Rosangela Patriota Ramos (UFU), Rosyane Trotta (UNIRIO), Santiago Serrano (Dramaturgo – Argentina), Sérgio de Carvalho (USP), Valmir Santos (Jornalista), Wagner Cintra (UNESP) e Walter Lima Torres (UFPR).

Projeto gráfico: Maurício F. Santana e Alexandre Mate. Revisão técnica: Alexandre Mate. Revisão: Aírton Dantas. Impressão: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Instituto de Artes. Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação. Capa: Teatro de Arena do Parque das Mangabeiras/BH. Registro fotográfico de José Gustavo Abreu Murta.

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ÍNDICE

Apresentação: Os Estudos Teatrais e a Rebento, por Mario Fernando Bolognesi

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Bloco I

Na encruzilhada do ator-narrador: entre o teatro e a teoria, por Armindo Bião

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Ponderações sobre o ator-narrador épico, por Berenice Raulino

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Bloco II

O ator e o trabalho em grupo, por Alexandre Mate

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Dramaturgias da cena: trajetórias em busca de depoimentos poéticos e ideológicos, por Evill Rebouças

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Bloco III

A visão crítica que antecede a personagem cômica, por Hugo Possolo

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Dilemas para a atuação cômica, por Mario Fernando Bolognesi

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O ator cômico e seus procedimentos, por Neyde Veneziano

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Bloco IV (convidados)

Teatro na luta de classes, por Iná Camargo Costa

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Apresentação Os Estudos Teatrais e a Rebento por Mario Fernando Bolognesi

No Brasil, de modo geral, são poucos os seminários, colóquios, jornadas etc. que se voltam à difusão e ao fomento das pesquisas em Artes Cênicas. Algumas universidades se empenham em tal tarefa, mas nem sempre conseguem consolidar um evento. O principal encontro científico no ramo é organizado, a cada dois anos, pela Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas (Abrace), que congrega pesquisadores de todo o Brasil, além de convidados estrangeiros. A prática tímida desse tipo de iniciativa nas universidades brasileiras talvez se deva à recente criação de cursos de Bacharelado e Licenciatura em diversas instituições e suas respectivas consolidações, além, certamente, dos cursos de pós-graduação criados na área, que tiveram aumento acentuado na última década.

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A discussão temática aprofundada se converte em momento fecundo de incentivo aos alunos e pesquisadores, na medida em que aborda o conhecimento de linhas diferenciadas de investigação e pesquisa, que não são necessariamente aquelas desenvolvidas em seus cursos e instituições de origem, a partir dos interesses e da dedicação de seu corpo docente. A organização e a realização de eventos científicos trazem ao próprio corpo docente experiências organizacionais e contatos científicos que ampliam o universo de suas pesquisas. O Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) criou recentemente (2005) um curso de Licenciatura em Artes Cênicas. Tal curso é de responsabilidade do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação. Paralelamente à Licenciatura, foi criada uma Área de Concentração em Teatro no Programa de Pós-graduação em Artes. O Departamento propôs a realização desse primeiro encontro, denominado Estudos Teatrais I – Persona & Personagem, realizado no segundo semestre de 2008, com uma temática voltada especificamente ao trabalho criativo do ator. Além disso, depois de ampla discussão, deliberou-se realizá-lo a partir de temáticas anuais específicas, com vistas a aprofundar a discussão de temas técnicos, artísticos, históricos e teóricos que envolvem as Artes Cênicas. A iniciativa pretende a atualização constante das temáticas que envolvem o fazer teatral. Os Estudos Teatrais I – Persona & Personagem foram organizados em torno de três mesas temáticas, a saber: 1) O ator-narrador; 2) O ator e o trabalho em grupo; 3) O ator e a criação cômica. Certamente, esses três temas não esgotam toda a problemática do ator no teatro contemporâneo. A organização do evento nunca teve essa pretensão. Ela selecionou alguns, dentre vários, que são fontes de intensa pesquisa no País (a exceção se deu em torno da terceira mesa, que investigou a criação cômica, pois o assunto conta, ainda, com número reduzido de pesquisas) e procurou apresentá-los a partir de pontos de vistas diferenciados, com vistas a garantir uma gama significativa de abordagens.

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Para cada mesa foram convidados palestrantes em três categorias: 1) Professores brasileiros das mais diversas instituições de ensino, cujas pesquisas e práticas teatrais se destacam no tema geral do evento e no específico da mesa; 2) Professores do corpo docente do Instituto de Artes da Unesp, com pesquisas voltadas aos temas eleitos; 3) Artistas com notória atuação no tema do encontro e da mesa específica. A participação de pesquisadores e de artistas procurou estabelecer um diálogo entre as investigações científicas e aquelas desenvolvidas no âmbito específico da criação teatral. A primeira mesa, O ator-narrador, investigou o trabalho criativo do ator, que envolve o apropriar-se de concepções alheias, advindas do dramaturgo, do romancista, do poeta, do historiador etc. As fontes são múltiplas. No universo infindo das influências e inspirações, o ator também imprime seus próprios saberes na cena a ser composta. Conceber, construir, vivenciar e mostrar personagens implicam uma dialética intensa entre o exterior e o interior. Esse movimento tende a determinar precisamente estados narrativos e de atuação. Ambos configuram a interpretação e a narração do ator. A segunda, O ator e o trabalho em grupo, partiu do pressuposto segundo o qual a composição cênica, na atualidade, extrapola os limites do trabalho de cunho realista e psicológico. O ator e sua presença induzem a uma ação coletiva que é determinante para a compreensão dos novos parâmetros de interpretação, de criação de personagens e de espetáculos. As funções do ator se estenderam para a criação (e autoria) de uma dramaturgia e até mesmo de uma encenação. O ator é a fonte primeira da criação. A terceira mesa, O ator e a criação cômica, procurou investigar o trajeto e as mudanças que determinam o perfil do cômico teatral contemporâneo. A ação cênica cômica demanda um trabalho específico de preparação de atores. Inversamente ao perfil psicológico que o teatro dramático almeja e requer, o trabalho cômico fundamenta-se, de um lado, na adoção da personagem-tipo como protótipo criativo e, de outro, na expressividade grotesca e ridícula do corpo (o essencial instrumento da eficácia cômica). A especificidade da atuação se orienta para a constante comunicação com a plateia,

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sedimentando aquilo que se convencionou chamar de triangulação, em parte também adotada pelo teatro de cunho épico. Os textos que se seguem trilham o seguinte percurso: a) as mesas e as participações foram gravadas em vídeo; b) posteriormente, foram transcritas; c) retornaram aos palestrantes para os ajustes de pensamento e de escrita e acréscimo de informações. Essa dinâmica imprimiu aos textos um tom mais próximo ao coloquial, ainda que permeados pelos rigores acadêmicos das citações, referências e respectivas indicações de fontes. Todo esse trabalho não teria se realizado se não houvesse o envolvimento de estudantes de graduação e de pós-graduação, de funcionários, técnicos e colegas do Departamento e do Instituto de Artes. A todos, os mais profundos agradecimentos. Por fim, com a realização do segundo Encontro, em 2009, foi possível idealizar um projeto de publicação que contemplasse o lançamento dos dois primeiros volumes, correspondentes ao primeiro e ao segundo eventos. Assim nasceu a Rebento – Revista de Artes do Espetáculo. Espera-se que esta iniciativa tenha vida longa e profícua para as pesquisas em Artes Cênicas. Os dois primeiros números da Revista contam com quatro blocos. Os três primeiros correspondem às mesas temáticas dos eventos; o último é composto por texto de convidados, com temáticas provocativas ao debate. Para as próximas edições, além dos blocos já mencionados, a Revista aceitará artigos, resenhas, ensaios etc. de iniciativa espontânea de colaboradores. Tais realizações não seriam possíveis sem o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e da Unesp, na efetivação dos eventos, e do Banco do Brasil, para as publicações.

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São Paulo, fevereiro de 2010

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Na encruzilhada do ator-narrador: entre o teatro e a teoria por Armindo Bião1

O título de minha fala poderia ser Na encruzilhada do atornarrador: entre o teatro e a teoria. Entendo encruzilhada como um encontro de caminhos, que pode ter várias formas: uma cruz, um xis, um tê, uma estrela etc. Trata-se de um lugar de passagem, dos circuitos efêmeros, que, ao longo da história, vai sendo o lugar onde se constroem as feiras provisórias, os mercados permanentes e, enfim, as cidades. É aí que se formam os artistas profissionais do teatro. A commedia dell’arte, por exemplo, o teatro de profissão como uma referência europeia, é uma coisa dos artistas que se produziam nas feiras, nos mercados, onde havia gente com tempo e dinheiro para pagar para que eles existissem. Penso ser muito importante essa ideia de encruzilhada associada a mercado, a cidade, a local de atores. 1 Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), professor associado da Universidade Federal da Bahia (UFBA), ator e encenador.

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As metrópoles, no sentido das grandes encruzilhadas (e nós estamos em uma das maiores do mundo, que é São Paulo), são o terreno por excelência do teatro, enquanto atividade regular, constante, contínua, de profissionais, pois é aí que há gente com dinheiro e com tempo para pagar para que os artistas existam, de modo regular e continuado. O “dom” e o “contradom” aí se transformam em bem, material e simbólico e, com isso, em terreno da profissionalização. Ao mesmo tempo, é interessante pensar que a encruzilhada, da cidade e do teatro, é, também, o lugar de Exu. Como escreveu Leda Martins (1995, p.6), Exu é o trickster, aquele que brinca, traduz, medeia, demanda atenção e pode criar confusão. Traduttore traditore. Daí poder-se confundir Exu com o diabo cristão, aquele que tira o homem do caminho, por outra via, que o perverte, desvia, e também com o Hermes grego, “o três vezes grande”, que ajuda a humanidade a interpretar os textos sagrados e dá origem à hermenêutica; e, ainda, com o Mercúrio romano, que tem asas nos pés e na cabeça, o patrono do comércio. O que é que acontece quando se está em uma encruzilhada? Tem-se muitas opções ou, no mínimo, duas ou três, pois voltar caracteriza-se em uma opção também. Quando se tem opções, ficase na maior confusão e angústia porque é preciso decidir, escolher um caminho, entre vários. Isso ocorre permanentemente em nossas vidas. Escolhe-se o tempo inteiro, e sempre se ganha e se perde alguma coisa. Então, é esse o lugar de angústia existencialista. JeanPaul Sartre, em Os caminhos da liberdade, discutiu bastante isso. E é isso que me ajuda a pensar a temática proposta pelo professor Mario Fernando Bolognesi: uma reflexão sobre o ator-narrador. Por quê? O que distingue uma coisa da outra? É a linguagem, é o verbo. E a linguagem, que ao mesmo tempo liberta e aprisiona, é o caminho. Busca-se escolher o caminho melhor, mas que, talvez, também seja o que leve à perda de muita coisa. Passemos então a duas palavras libertárias, simultaneamente aprisionadoras, que têm a mesma matriz linguística, a grega clássica do século V a.C., de quando se inventou o alfabeto fonético, adaptandose o alfabeto fenício, que passava então a representar integralmente

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a fala. Foi uma revolução tecnológica, pois, antes, as formas de escrita representavam apenas parcialmente a fala, porque também representava a coisa de que se falava. Para se compreender uma forma de escrita desse tipo, precisava-se de um mestre, de alguém para ajudar no aprendizado e na interpretação do texto. Já esse novo alfabeto fonético grego faz a revolução e oferece mais liberdade ao aprendiz, que passa a dominar aqueles então mais simplificados e com poucos signos. Uma vez que esses são dominados, tem-se uma liberdade muito grande. E, ao mesmo tempo, uma nova prisão. Então, na Grécia dessa época, o olhar, a visão passa a ser considerada como o grande sentido, o mais importante, o mais humano, o que se comprovava até com as primeiras dissecações de cadáveres que ali se fizeram, por exemplo, e que revelavam a complexidade e sofisticação do sistema da visão, do olho. Pois então: teatro quer dizer espaço organizado para o olhar, e teoria quer dizer o olhar de alguém sobre alguma coisa. É interessante pensar que as duas palavras, e até mesmo as duas coisas, surgiram no mesmo momento, na mesma matriz cultural. O teatro é a cena por excelência do ator, aquele que age, porque teatro é ação e espaço organizados para olhar. E teoria é o olhar do sujeito sobre o objeto, é o terreno do narrador, no sentido daquele que comenta e conta uma ação. Teatro e teoria, por sua vez, juntos, são a base da pedagogia, da paideia, que aposta no futuro da humanidade, da cultura. Essa cultura, naquela encruzilhada do Mediterrâneo, lá do fundo, entre a África, a Europa e a Ásia, se espalha pelo mundo com o alfabeto fonético, com a subsequente dominação romana, com a escolástica medieval e, sobretudo, com o Renascimento (que tem como base exatamente essa matriz), quando a imprensa multiplica a possibilidade de uso desse alfabeto fonético. E, nesse novo momento, de valorização da matriz grega clássica, as novas encruzilhadas fixas, as cidades e os teatros permanentes, e as ambulantes, que foram os grupos profissionais de teatro e as grandes embarcações, tiveram um importantíssimo papel. A arquitetura naval e a arquitetura teatral são a mesma, no Renascimento. Os teatros dessa época, como o de

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Évora, em Portugal, por exemplo, são como verdadeiras caravelas, de pau e corda. Muitos desses grandes barcos, que circularam na Carreira da Índia e pelo Brasil, eram maiores que muitas cidades e realmente verdadeiras encruzilhadas ambulantes. Carlos Francisco Moura, pesquisador de Mato Grosso, levantou o repertório produzido nas naus dos séculos XV ao XVIII, num livro muito interessante, já em segunda edição, no qual ele comenta o repertório que era representado, tanto religioso como entremeses, e outros textos do repertório teatral. Moura foi o primeiro a defender que o “gracioso Diogo”, mencionado na carta de Pero Vaz de Caminha, que tocava gaita e que desceu lá no litoral da Bahia e dançou com os índios, tocou e fez o “salto real”, era um ator profissional. De fato, o gracioso era um dos termos usados na época tanto para o ator quanto para um tipo de personagem. É interessante pensar que desde a chegada de Pedro Álvares Cabral, há registro de um ator profissional, que promoveu esse encontro transcultural. No filme clássico de Humberto Mauro sobre a história do Brasil (O descobrimento do Brasil, de 1937) há uma bela cena sobre isso. É também interessante pensar que os povos das encruzilhadas, e há muitos, mas, sobretudo, os povos da diáspora, os judeus e os negros africanos, por exemplo, são muito ligados à tradição das artes do espetáculo. Não lhes sendo dado o poder de possuir grande coisa, eles transformam o próprio corpo, de alguma forma, em arte e em meio de vida e sobrevivência. Estou pensando na codificação da dança na Europa, com Thoinot Arbeau, por exemplo, na presença dos judeus em todo o teatro profissional inglês e norte-americano e, também, em Vsevolod Meyerhold, enfim... O profissional do espetáculo canta, dança, toca e representa, e também pode contar histórias. E eu digo “também” porque vamos entrar na grande contribuição de Bertolt Brecht, que vai buscar nessa ideia de que o ator não deve apenas representar, mas também narrar e comentar, criticando a ação representada por ele, enquanto ator.

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O que eu vou propor agora é explicar um pouco como estou trabalhando com meus alunos no nosso grupo de pesquisa, o GIPECIT2 – criado em 1994 – e que está começando uma série de “GIPE-CIT canta”, como aqueles espetáculos do tipo Arena conta, no sentido de se ter, num formato teatral, informações didática, histórica e artística, tudo junto, em um espetáculo. Assim temos feito com os projetos que tenho coordenado sobre a relação do impresso e da cena, por exemplo. É muito interessante observar que o teatro de cordel em Portugal, no século XVIII, acontecia quando um espetáculo fazia sucesso e alguém transcrevia o respectivo texto, imprimia em papel barato e colocava à venda a cavalo num barbante, sobre um fio, um cordel. Muitas vezes, eram os cegos que vendiam esses folhetos, essas folhas volantes, que memorizavam os textos e cantavam, contavam. E esses cegos contavam, cantavam e interpretavam os textos representados na cena. Roger Chartier, um autor francês que discute a relação entre a oralidade, a literatura, o teatro e a imprensa, é muito interessante, e há outras pessoas que também têm estudado esse fenômeno. E isso me comove muito, porque desde menino eu convivo com essa tradição no próprio seio de minha família. (A família, ah como a família é verdade! Isso é Fernando Pessoa...) Estou me lembrando, ao falar de família, de sangue ou de adoção, do circo e dessa tradição muito importante no âmbito das artes do espetáculo. No Brasil, nas universidades, nós fazemos, aprendemos a fazer teatro. E aprendemos também a refletir sobre teatro e acerca do seu aprendizado. Produzimos, e somos de certo modo também obrigados, pelas agências de fomento, a produzir teoria. Eu faço, por conta própria, uma relação, talvez indevida, entre narrar e teorizar. Narrar-contar, contar-comentar, lembrando de Brecht, comentar para criticar. Isso é a base da teoria. E também agimos e apresentamos (enquanto atores) espetáculos. Nós fazemos teatro! Comprovamos que nosso laboratório científico, por excelência, era nosso teatro, lá na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA). 2 Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade.

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Conseguimos, sem um Real do Ministério da Educação (MEC), nem do Ministério da Cultura (MinC), a não ser o salário dos professores e dos funcionários, restaurar completamente, inclusive em termos de iluminotécnica e cenotécnica, o nosso teatro. Porque nós fazemos: o teatro e – também comentamos o que fazemos, de modo sistemático e reflexivo – a teoria. Somos atores-narradores, práticos e teóricos. E isso é um trabalho muito difícil, porque fazemos, contamos que fazemos e ainda comentamos e falamos sobre tudo isso. Em minha encruzilhada pessoal, o caminho que venho trilhando é um pouco a estratégia que venho construindo, com a ajuda de meus alunos, colegas e professores – acho isso genial em teatro, todo mundo é filho de alguém, como dizia Jerzy Grotowski. Tratemos os mais velhos com amor e humor, como sugeriu Caetano Veloso, parafraseando Oswald de Andrade. Então, quando Jean Duvignaud, que foi presidente do meu júri de doutorado, me convidou para a criação da etnocenologia – essa palavra estranhíssima que designa a etnociência do espetáculo, nossa ideia já era propor uma articulação do teatro com a teoria, a prática teatral e a reflexão teórica, narração épica e ação no espaço dramático, a criação e a crítica, a arte e a ciência, a tradição e a contemporaneidade. Fazemos isso o tempo inteiro, mas às vezes não nos damos conta de que o fazemos. O que nosso grupo de pesquisa realiza é um esforço de fazer, escrever, dizer, comentar, publicar, trocar. E eu acho que a tradição da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), nesse tipo de encontros, já tem como resultado, por exemplo, em quatro anos, uma graduação que está formando 12 licenciados, com uma pósgraduação tão jovem, mas que já formou mais de 30 mestres. Então, o encontro e a reflexão são fundamentais para garantir o espaço de criação e reflexão sobre teatro. Vou apresentar-lhes agora fragmentos de um corpus de pesquisa para mostrar como é que eu falo, faço e transformo em ação tudo isso. Vou mostrar-lhes algumas canções, textos e imagens de um projeto que o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) está patrocinando, desde fevereiro de 2008, e que vai até 2011, quando devo concluí-lo com um espetáculo com

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alunos de graduação do Bacharelado em Interpretação Teatral da UFBA. Vamos ver o que mais poderá nos surpreender – porque cada momento é um flash de surpresa, de novidade. Mas um projeto é isso. Planeja-se para que os inesperados possam ser adaptados. Porque a realidade inteirinha não é completamente controlável. Já o projeto tem de ser bem planejado. A vida é que é outra coisa. Trata-se de um romance, do Romancero viejo español (fundamentado em tema histórico do século XIV, mas é do século XV):

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[...] El Cruel Pedro llamado Caso-se con Doña Blanca Fuese para Montalván Que alli es barraganado Con Doña María Padilla Que lo tiene enhechizado Enhechizado esta suerte La Reina al Rey había dado Una cinta mucho rica De oro muy bien labrado Con perlas piedras preciosas Ceñiala el rey Don Pedro Con placer, de muy buen grado Porque se la Dió la Reina Que del era muy amada. Doña María de Padilla La cinta hubiera en su mano Dió la en poder d’un judío Que era mágico e sábio Puso el ella tales cosas Que al Rey mucho han espantado Culebra le ha semajado3

É a história de Pedro, o Cruel, o rei de Castela, no século XIV, que se casou com a francesa Blanche de Bourbon, e, no dia seguinte ao casamento, abandonou-a para ficar com a amante María Padilla. Esse romance conta que ela teria transformado o cinto, dado pela jovem rainha francesa ao rei, numa cobra.

3 As referências podem ser encontradas em DÍAZ-MAS, Paloma (Ed.). Romancero. Barcelona: 2001. Ramón Menéndez PIDAL. Romancero hispánico (hispano-portugués, americano y sefardí): teoría y historia. Madrid: Espasa-Calpe, 1968. Mercedes Díaz ROIG. (Ed.). El romancero viejo. 23a ed. Madrid: Cátedra, 2007.

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Passando aos séculos XVI a XVIII, aqui estão excertos de Inquéritos da Inquisição, como alguns dos citados em vários livros, como os de Marlyse Meyer, Monique Augras e Laura de Mello e Souza: Eu te conjuro vinagre, pimenta e enxofre em nome de Pedro, com três da padaria, três da cutilaria, três do açougue, três do terreiro, três do haver do peso, todos três, todos seis, todos nove se ajuntarão no coração de Pedro entrarão, se mais são, ou menos são, 56 diabos se ajuntarão, à torre do Primão se treparão, nove varas de amor apanharão, na mó de Caifás as aguçarão, no coração de Pedro as cravarão, que não possa estar, nem sossegar, até comigo não vir estar; Dona Maria de Padilha com toda a quadrilha me trazeis Pedro pelos ares e pelos ventos; Marta a perdida que por amor de um homem fostes ao inferno, assim vos peço que do vosso amor repartais com Pedro, que não possa dormir, nem sossegar, até comigo vir estar. (MEYER, 1993; AUGRAS, 2001; SOUZA, 1993)

Vejam que curioso: aquele romance do século XIV deve ter a ver com isso. Agora, vamos para uma célebre novela francesa, de 1845, de Prosper Mérimée, que gerou uma famosíssima ópera, com música de Georges Bizet e libreto de Ludovic Halévy e Henry Meilhac, dois grandes autores do teatro popular francês. Há na novela, em uma narrativa de Dom José, a personagem que mata Carmen, com uma faca:

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Durante minha ausência, ela tinha desfeito a barra de seu vestido para dali retirar o chumbo. Agora, ela estava diante de uma mesa, olhando dentro de uma vasilha cheia d’água o chumbo que ela havia derretido e que ali tinha jogado. Ela estava tão ocupada com sua magia que de início não percebeu meu retorno. Tanto ela pegava um pedaço do chumbo e o girava de todos os lados com um ar triste, tanto ela cantava uma dessas canções mágicas onde elas invocam María Padilla, a amante de Don Pedro...

Vejam como a história se transforma em mito, entra na literatura e continua... Victor Hugo, no mesmo movimento do romantismo francês, um pouco antes, em 1828, escreveu um poema muito longo – La légende de la nonne –, que Georges Brassens, o grande músico popular francês, musicou, em parte, já no século XX:

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Venez, vous dont l’œil étincelle Il en est à Séville aussi Qui, pour la moindre sérénade A l’amour demandent merci Il en est que parfois embrassent Le soir, de hardis cavaliers Enfants, voici des bœufs qui passent Cachez vos rouges tabliers

Vinde, olhos que brilham Ouvir uma bela história Eu lhes conto a maravilha De Dona Padilla, a Flor Que vem pelo mato andando Num bosque que é bem velho Atenção, há touros passando Ocultem o que for vermelho

Il est des filles à Grenade Il en est à Séville aussi Qui, pour la moindre sérénade A l’amour demandent merci Il en est que parfois embrassent Le soir, de hardis cavaliers Enfants, voici des bœufs qui passent Cachez vos rouges tabliers

Há meninas em Granada E há em Sevilha também Que por qualquer serenata Ao amor só dizem amém Às vezes até abraçando um noturno escaravelho Atenção, há touros passando Ocultem o que for vermelho

Ce n’est pas sur ce ton frivole Qu’il faut parler de Padilla Car jamais prunelle espagnole D’un feu plus chaste ne brilla Elle fuyait ceux qui pourchassent Les filles sous les peupliers Enfants, voici des bœufs qui passent Cachez vos rouges tabliers

Mas não é só frivolidade falar da Padilla assim pois jamais uma tal beldade Teve tão casto o fogo sim Pois fugia até voando Tanto um lobo quanto um espelho Atenção, há touros passando Ocultem o que for vermelho

Elle prit le voile à Tolède Au grand soupir des gens du lieu Comme si, quand on n’est pas laide On avait droit d’épouser Dieu Peu s’en fallut que ne pleurassent Les soudards et les écoliers Enfants, voici des bœufs qui passent Cachez vos rouges tabliers

Ela tomou o véu em Toledo Pra desespero de muito rapaz Como se não fosse por demais cedo Para uma bela buscar a paz E de nada valeu homem chorando Do mais jovem ao mais velho Atenção, há touros passando Ocultem o que for vermelho

Or, la belle à peine cloîtrée Amour en son cœur s’installa Un fier brigand de la contrée Vint alors et dit: “Me voilà!” Quelquefois les brigands surpassent En audace les chevaliers Enfants, voici des bœufs qui passent Cachez vos rouges tabliers

Mas logo ao entrar na clausura Um amor lhe apareceu Um malandro de estirpe mais pura Chegou e lhe disse: “Sou seu!” Por demais ultrapassando A audácia de um espelho Atenção, há touros passando Ocultem o que for vermelho

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Il était laid: les traits austères La main plus rude que le gant Mais l’amour a bien des mystères Et la nonne aima le brigand On voit des biches qui remplacent Leurs beaux cerfs par des sangliers Enfants, voici des bœufs qui passent Cachez vos rouges tabliers

Ele era feio e bem austero Ria como alguém ferido Mas o amor tem muito mistério E a freira amou o bandido pois há quem vá abandonando O real por seu espelho Atenção, há touros passando Ocultem o que for vermelho

La nonne osa, dit la chronique Au brigand par l’enfer conduit Aux pieds de Sainte Véronique Donner un rendez-vous la nuit A l’heure où les corbeaux croassent Volant dans l’ombre par milliers Enfants, voici des bœufs qui passent Cachez vos rouges tabliers

A freira quis, é o que se fala, Seguir seu ladrão ao inferno Aos pés de Santa Verônica Marcou com ele numa sala Do convento do lado interno E à meia-noite foi rezando Como se fosse um escaravelho Atenção, há touros passando Ocultem o que for vermelho

Or quand, dans la nef descendue La nonne appela le bandit Au lieu de la voix attendue C’est la foudre qui répondit Dieu voulu que ses coups frappassent Les amants par Satan liés Enfants, voici des bœufs qui passent Cachez vos rouges tabliers

Quando ela chegou no lugar A freira chamou o bandido E em vez dele já estar lá Ela ouviu um estampido Deus quis os ferir matando Com Satanás por trás de um espelho Atenção, há touros passando Ocultem o que for vermelho

Cette histoire de la novice Saint Ildefonse, abbé, voulut Qu’afin de préserver du vice Les vierges qui font leur salut Les prieurs la racontassent Dans tous les couvents réguliers Enfants, voici des bœufs qui passent Cachez vos rouges tabliers

Essa história é pra vocês E toda freira conhece Pra proteger da gravidez As virgens que querem ser As amantes dos amandos De deus pai o santo o velho Atenção, há touros passando Ocultem o que for vermelho

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Diz a música: “Cuidado, esconda o vermelho, porque os touros estão vindo”. E fala de uma freira que teria rompido seu elo com Jesus e caído de amores por um militar e, por isso, foi destruída por um raio em plena capela. Nós começamos no século XIV e estamos vindo... Minha referência agora é a um espetáculo recente, a partir de um desafio a mim proposto por alguns de meus alunos, que incluía minha

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personagem e uma mulher sofrida de mal de amor: cantar a famosa canção da entrada de Carmen, na ópera de mesmo nome, quando ela canta a habanera. Então eu fiz essa letrinha para caber no espetáculo:

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Oh senhora María Padilla Minha alma venha alegrar Traga paz aqui para sua filha Que só canta para não chorar Amor /Amor /Amor /Amor O amor é mais Mais que um poema

Até agora, tenho alternado narrativas e invocações em torno de uma mesma personagem, que vem a ser a pombajira da umbanda brasileira, patrona (ou matrona) das mulheres que sofrem por amor (inclusive as prostitutas), que é a rainha das encruzilhadas, que bebe champagne, não cachaça, e fuma cigarrilhas, não cigarros, porque é uma rainha. E vou concluir essa série com: María Padilla vem tomar xoxô María Padilla vem tomar xoxô xô Tibiriri vem tomar xoxô Tibiriri vem tomar xoxô xô Pombajira vem tomar xoxô Pombajira vem tomar xoxô xô Lebara vem tomar xoxô Lebara vem tomar xoxô xô Dona da casa vem tomar xoxô Dona da casa vem tomar xoxô xô Tranca rua vem tomar xoxô Tranca rua vem tomar xoxô xô María Padilla vem tomar xoxô María Padilla vem tomar xoxô xô Rosedá.

Rosedá é um dos nomes de María Padilla e, também, para minha imaginação absolutamente pessoal, uma referência à Rosebud, do famoso filme de Orson Welles, Cidadão Kane. Recentemente estive no convento das irmãs Clarissas, construído no século XIV por Doña María de Padilla, a então favorita do Rei Don Pedro, o Cruel. Nele, há uma capela com um retábulo no qual estão representados Doña María de Padilla, com a palma de mártir na mão, e

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Don Pedro, também com a palma. É curiosíssimo eles aparecerem como mártires do Cristianismo. Passei uma tarde lá, praticamente dentro do claustro, o que, supostamente, não é permitido. Falei da pesquisa e a madre foi me levando... Aliás, sobre isso, escrevi um texto para os 80 anos da Marlyse Meyer, uma homenagem que a professora Jerusa Pires Ferreira coordenou. Tanto o altar como a torre do ouro, de onde se vê os alcáceres reais, com o palácio de Don Pedro, erguido para Doña María de Padilla, no século XIV, com os mesmos operários que construíram o Alhambra de Mohamed III, são exemplos da arquitetura moçárabe, cristã e muçulmana. Também se pode ver a Catedral, em cuja cripta real estão guardados os despojos de Don Pedro e de Doña María de Padilla, à qual eu só tive acesso com a ajuda de Carlos Ros, que escreveu uma biografia sobre ela. María Padilla é conhecida no Brasil e nos países vizinhos da América do Sul, porque ela está na Argentina, no Uruguai... É a rainha das encruzilhadas, uma das pombajiras da umbanda brasileira, assim como a Negra de um Peito Só, que é protagonista de vários folhetos de cordel, um dos quais eu produzi com meus alunos em 2001. Voltando à tradição do romanceiro ibérico, cuja rima e métrica contribuem para a memorização, para a narração e representação, marcou nosso imaginário, inclusive fazendo com que algumas pessoas ganhassem dinheiro. Essa experiência, que pode ser usada em nossos exercícios de teatro épico, narrativo e crítico, ao lado do teatro dramático, que é o da identificação, pode permitir a reflexão dos atores sobre si próprios como pessoas, em relação a questões tão candentes atualmente como a do machismo e a do racismo. María Padilla e a Negra de um Peito Só, em uma conclusão parcial, são a mesma encarnação do feminino, sexualizado, como tentação diabólica, tanto da tradição judaica quanto da muçulmana e cristã... São a personificação da natureza, sensual e sensível, do prazer, do gozo. O folheto de cordel O encontro de Lampião com a Negra dum Peito Só, de José Costa Leite, está disponível em: <http://www. revistarepertorioteatroedanca.tea.ufba.br/12/arq_pdf/GIPE-CIT%20 canta%20Padilla_12-4.pdf> (pág. 68-75). Acesso em 26 de maio de 2010.

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O trabalho que venho desenvolvendo no momento me fez voltar a coisas com as quais eu já havia trabalhado, como esse folheto da Nega dum Peito Só. Eu não sabia, mas vi num livro, intitulado Encantados, de Reginaldo Prandi, que trabalha com os cultos afrobrasileiros, que María Padilla e Nega de um Peito Só estão entre os diversos exus e pombajiras. É. São pombajiras, exus fêmeas, o que remete sempre à coisa do teatro. Desde menino, leio folheto de cordel, porque em minha família havia um tio que colecionava folhetos. Enfim... é uma coisa que sempre me fascinou muito. Porque eu conheci alguns cegos... tinha um cego que eu só o via uma vez por ano, em uma feira da cidade de Cachoeira, no recôncavo da Bahia – Seu João de Lima –, de Caruaru... Toda vez que eu o encontrava ele me reconhecia. Claro que era pela voz. Ele tinha uma memória privilegiada: conseguia se lembrar do que a gente havia conversado um ano antes. Eu sempre me surpreendia muito. E ele tinha um repertório memorizado, por conta das rimas e do metro da poesia. Ao mesmo tempo que contava e que cantava, ele interpretava. Pensando em todas as coisas que trabalhamos no Teatro de Cordel com João Augusto – que foi meu professor no Teatro Vila Velha, em Salvador (BA) – em relação à questão do teatro épico, posso comentar: isso, que na tradição popular é terrivelmente conservador e racista, terrivelmente machista, o humor como aquilo que é o politicamente incorreto, é sempre um grande dilema para trabalharmos no campo da educação, sobretudo em uma universidade, em que se tem de formar artistas, mas também cientistas e teóricos. Mas esse é o bom combate, o desafio do ator-narrador. Assim, pensar o narrador como quem conta, comenta e critica, e o ator, como quem interpreta e representa, é apenas um esforço, digamos assim, teórico, para separar coisas que na realidade não estão separadas, como as etnias dessa única raça que é a nossa, a humana. Como ator, fazendo um pouco essas coisas que estou trabalhando com meus alunos. O mais difícil é construir o discurso cientificamente fundamentado para justificar (embora não apenas para isso, é claro), de alguma forma, que continuem sendo dados espaços nas universidades para

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a prática. As universidades, por tradição, têm muito a ver com a teoria, no campo do que hoje entendemos como arte, pois as práticas foram ficando bastante restritas aos ambientes dos conservatórios, de ambientes menos universalistas, digamos assim, sobretudo na Europa. A Bahia está vivendo este grande debate atualmente, com os bacharelados interdisciplinares, porque dizem que a tradição escolástica é aquela do “eu não sei tudo de nada, mas não me escapa algo de tudo”, que é a formação generalista, universitas, na universidade. É importantíssimo que os alunos de química, de medicina tenham aulas conosco, mas nós sempre fizemos isso. Eu sempre dei aula de voz e de expressão corporal para médico, advogado, lá na Escola de Teatro, naquelas disciplinas consideradas optativas. Os grandes colegas dos fonoaudiólogos e dos professores de expressão vocal são os advogados, os médicos e os homens políticos; e os empresários, os vendedores, inclusive... Alguns shoppings contratam professores para ensinar vendedor a vender mais, enfim... Um pouco como demonstração, como apresentação do trabalho tríplice: do ator, do narrador e daquele professor que reflete sobre isso. Interessante que a primeira vez que eu tive contato com essa história da María Padilla foi em 1970, quando eu estava viajando de carona. A certa altura da viagem, cheguei à Catedral de Burgos (Espanha). Nela havia um sepulcro da família Padilha. Eu ri muito: “Ah, que coisa maluca, você veja, a Padilha aqui nesta igreja – lá na Bahia ela é outra coisa”. Nós trabalhamos com a ideia de sujeitoobjeto-trajeto-projeto, para construir um projeto: define-se o objeto, comenta-se como o sujeito chegou a essa definição. Com isso, temse o trajeto, no qual se pode identificar as apetências e competências de cada um, que serão a base da construção do projeto.

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Referências bibliográficas AUGRAS. Monique R. María Padilla, reina de la magia. In: Revista Española de Antropología Americana, n. 31. Madrid: [s. n.], p. 293-319, 2001. CHARTIER, Roger; FERREIRA, Luzmara Curcino (Trad.). Inscrever & apagar: cultura escrita e literatura, séculos XI-XVIII. São Paulo: Unesp, 2007. LEITE, José Costa. O encontro de Lampião com a Negra dum Peito Só. Revista de Artes do Espetáculo no 1 - julho de 2010

[Folheto de cordel]. Condado, PE: [S. L.], [S. N], [S. D.]. MARTINS, Leda. A cena em sobras. São Paulo: Perspectiva, 1995. MEYER, Marlyse. María Padilla e toda sua quadrilha: de amante de um rei de Castela a Pomba-Gira de Umbanda. São Paulo: Duas Cidades, 1993. MÉRIMÉE, Prosper. Carmen et treize autres nouvelles. Paris: Gallimard, 1965. MOURA, Carlos Francisco. Teatro a bordo de naus portuguesas nos séculos XV, XVI, XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Instituto Luso-Brasileiro de História/Liceu Literário Português, 2000. ROS, Carlos. Doña de Padilla: el bueno de Pedro el Cruel. Sevilla: Castillejo, 2003. SOUZA, André Ricardo. Baianos, novos personagens afro-brasileiros. In: PRANDI, Reginaldo (Org.). Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2004, p. 305-317. SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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Ponderações sobre o ator-narrador épico

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por Berenice Raulino4

Esta reflexão tem como ponto de partida o estudo sobre a narrativa e sua transposição para o teatro. A pesquisa teve início com o intuito de investigar de que maneira um texto literário pode ser trazido à cena. Mergulhar nos meandros da criação quando se tem por referência a literatura significa adentrar um universo muito rico, em função das inúmeras possibilidades de encenação daí decorrentes. Um dos objetivos dessa pesquisa é averiguar esse movimento e apontar opções que subsidiem modos de atuação. De que maneira o ator, que parte de um texto que não é escrito para a cena, vai modificar sua performance para torná-la apropriada e incisiva? Como este ator vai aproveitar questões mais diretamente 4 Doutora pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), foi coordenadora do Programa de Pós-graduação em Artes. Autora do livro Ruggero Jacobbi: presença italiana no teatro brasileiro e tradutora do livro O teatro laboratório de Jerzy Grotowski: 1959-1969, ambos editados pela Perspectiva (SP).

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inerentes à literatura para dotar sua arte de uma peculiaridade que difere daquela de um intérprete que pauta seu trabalho pelo realismo? A possibilidade que esse ator tem de beber na fonte da literatura não é apenas formal, da narrativa escrita, mas ele é também desafiado a trazer à cena um narrador, que muitas vezes não tem pessoalidade, e personagens que surgem no decorrer da narração. Como esse ator pode fazer o trânsito entre um narrador que é alheio, que está fora do universo narrado, que não é definido, e essa personagem projetada, que não é realista, mas mantém traços daquele narrador? O ator deve ter em mente esse processo de desentranhamento, digamos assim, pelo qual passa essa personagem, sua emancipação em relação ao autor, para criar um relevo, uma perspectiva que se descole da cópia/recriação da realidade. Ou seja, uma hipótese de trabalho para o ator é não buscar exclusivamente o mergulho na personagem, mas trazer frequentemente à tona pelo menos a ideia de que este autor está com ele, de agregar ao seu trabalho atoral a figura do autor. Ao mesmo tempo, o ator enquanto indivíduo estará constantemente presente, não sendo seu objetivo desaparecer para que a personagem adquira uma existência virtual autônoma. Nesse sentido, podemos nos reportar à distinção que Louis Jouvet faz entre o acteur, o intérprete cuja personalidade aflora ao representar uma personagem, e o comédien, ou seja, o ator camaleônico que encarna a personagem a ponto de a plateia esquecer quem é o intérprete, mas – sempre por seu intermédio – entrar em sintonia direta com o universo ficcional. A personagem individualizada, que instiga o espectador a forjar paralelismos e identificações, é deixada de lado pelo ator na medida em que ele assume a persona do autor. O ator deixa de se orientar pela verticalização psicológica e passa a almejar a dimensão do fato narrado exterior aos indivíduos – compreendidos indiscriminadamente todos aqueles que ocupam o ambiente espetacular. O microcosmo do indivíduo amplia-se para o macrocosmo da condição humana. As questões pretéritas se atualizam imaginativamente no momento da troca com o espectador.

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Uma vez rompidos os liames da verossimilhança, a personagem não é mais circunscrita em dada dimensão espacial e temporal, mas é lançada em universos ficcionais de fronteiras esfumaçadas. A percepção de atores e espectadores de tempo e espaço é relativizada. Ou seja, o “aqui” reporta-se fundamentalmente ao ambiente físico da representação, e o “agora” ganha volatilidade por intermédio do caráter narrativo da enunciação. Existe, em uma primeira instância, a possibilidade de se criar uma realidade da cena propriamente dita, o território espetacular que engloba atores e espectadores, que seria um território real no qual a troca não se dá pelo reconhecimento que o espectador tem do trabalho do ator, mas sim pelo compartilhamento de uma experiência pretérita à qual a performance do ator se refere. Essa consideração tem caráter provisório e é passível de revisão, principalmente tendo em vista os estudos feitos por Mikhail Bakhtin (2002: 349) sobre o espaço-tempo, ou seja, o cronotopo, no âmbito da relação entre ficção e realidade: O cronotopo determina a unidade artística de uma obra literária no que ela diz respeito à realidade efetiva. Por isso, numa obra, o cronotopo sempre contém um elemento valioso que só pode ser isolado do conjunto do cronotopo literário apenas numa análise abstrata. Em arte e em literatura, todas as definições espaço-temporais são inseparáveis umas das outras e são sempre tingidas de um matiz emocional. Mas a contemplação artística viva [...] abarca o cronotopo em toda a sua integridade e plenitude. A arte e a literatura estão impregnadas por valores cronotópicos de diversos graus e dimensões. Cada momento, cada elemento destacado de uma obra de arte são estes valores.

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Uma questão a ser pensada também é que o dramaturgo, que ansiara pela invisibilidade durante um período tão longo da história do teatro, passa a compor o espetáculo: a ideia de autoria é trazida para a cena e é mantida como uma chama acesa para evidenciar ininterruptamente que o todo composto por atores e espectadores tem por objetivo a evocação de algo. Existe a vivência desse compartilhamento e a realidade à qual ele se refere. Nesse processo, a imaginação tem papel preponderante e podem ser percebidos

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claramente alguns recursos que são mais especificamente do narrador, ou seja, a mobilidade espacial, poder brincar com as formas, entrar na história e dela sair, que poderão marcar, substancialmente, esse trabalho de ator. Uma perspectiva que não é constituída apenas por um universo delimitado, pois o microcosmo em circunstância pode ser ampliado a qualquer momento, vai influir diretamente na performance do ator que pode ignorar fronteiras da realidade e abrir-se para um âmbito muito mais vasto. Parece-me que esse exercício é um desafio maior para o ator contemporâneo: dar conta de um universo virtual sem perder a sua expressividade e sem perder o seu tom cênico, digamos assim. Essa alternância não se restringe ao narrador nem à personagem. Em Os lusíadas, por exemplo, há mudanças dentro do próprio narrador. Como o ator pode trabalhar essas alternâncias sem criar um degrau, sem que isso se torne didático, sem que se torne óbvia essa passagem? Aí existe realmente uma possibilidade de expressão a ser explorada. Também não se pode deixar de ter como referência a arte da literatura, da epopeia, no caso, porque ela vai permitir que o ator se alimente dessas transformações e aproveite-as em sua atuação. Para deixar mais claro o meu raciocínio, me reporto à distinção entre narrador e poeta feita por Cleonice Berardinelli (2000). Segundo a grande estudiosa da obra de Luís de Camões, o narrador, em Os lusíadas, é onisciente e tem, portanto, a faculdade de apreensão mais objetiva do mundo narrado, e o poeta tem a possibilidade de mergulhar, de fazer suas observações pessoais, de lançar o seu lamento pessoal. Há um trecho do poema em que isso fica muito claro. Trata-se do final do Primeiro Canto de Os lusíadas, em que o poeta se manifesta: No mar tanta tormenta e tanto dano, Tantas vezes a morte apercebida! Na terra tanta guerra, tanto engano, Tanta necessidade aborrecida! Onde pode acolher-se um fraco humano, Onde terá segura a curta vida, Que não se arme e se indigne o Céu sereno Contra um bicho da terra tão pequeno? (CAMÕES, 1963: 33)

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Imediatamente, no início do Canto II, há uma espécie de corte, pela retomada do narrador: Já neste tempo o lúcido Planeta, Que as horas vai do dia distinguindo, Chegava à desejada e lenta meta. (CAMÕES, 1963: 35)

O grande desafio para o ator, que destaco como exemplo, ocorre nessa passagem de um Canto para outro. Há traços líricos, próprios da voz do poeta mais fortemente impressos nessa última estrofe do Primeiro Canto e, depois, passa-se imediatamente para o tom da epopeia propriamente dita, que é o tom da narração épica, impessoal. Porém, muitas vezes, os excursos do poeta aparecem embutidos em narrativas de outras personagens, como no Canto III, estrofes 142 e 143, em que, embora a voz seja a de Vasco da Gama, os versos sobre o amor são claramente do poeta: Mas quem pode livrar-se porventura Dos laços que Amor arma brandamente, Entre as rosas e a neve humana pura, O ouro e o alabastro transparente? Quem, d üa peregrina formosura, De um vulto de Medusa propriamente, Que o coração converte, que tem preso, Em pedra não, mas em desejo aceso?

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Quem viu um olhar seguro, um gesto brando, Üa suave e angélica excelência, Que em si está sempre as almas transformando, Que tivesse contra ela resistência? Desculpado por certo está Fernando Pera quem tem de amor experiência; Mas antes, tendo livre a fantasia, por muito mais culpado o julgaria. (CAMÕES, 1963: 90)

Em Os lusíadas, além da associação do narrador e do poeta, e todos os desdobramentos que tal sobreposição pode nos oferecer na poética da cena, esse narrador cede sua voz para outras personagens. Então, não se trata de uma estrutura em que o ator sobreponha o narrador e a personagem, e volte para o narrador até que surja outra personagem na narrativa, mas é um narrador inicial que cede sua palavra. Camões, por exemplo, cede sua palavra, sua

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voz para Vasco da Gama que, por sua vez, cede a palavra para outras personagens. É o que se poderia chamar de estrutura em cascata. É evidente, portanto, que o ator, ao fazer uma terceira personagem dessa escala, já tem consciência e domínio que ele assimila ao realizar as duas anteriores, o que vai modificar fundamentalmente sua maneira de atuar, e alterar muitas vezes os cânones do seu oficio. Essa estrutura é ancestral, porque desde os primórdios, o rapsodo, o contador inicial de todas as epopeias, Ilíada, Odisseia, quer dizer, esse Homero inicial não é o autor de seu texto. Em grego, rhaptein significa coser, costurar as histórias que existiam anteriormente. A denominação ator-rapsodo é atribuída àquele que conta e vivencia as personagens. Mas é necessário que se faça a ressalva: o rapsodo tem sua atuação localizada na história e é um aproveitamento dessa nomenclatura que se faz em tempos atuais para denominar o ator com essas características. Uma das questões instigantes que a transposição de uma epopeia para a cena suscita é investigar a maneira de realizar a teatralização de modo a garantir a transcendência própria da literatura. Evidentemente, não apenas o trabalho do ator concorre para isso, mas o som, a luz e elementos cenográficos são considerados dentro desse universo como questões narrativas, e sua tessitura fundamentará a existência de uma obra expressiva. Valeria a pena também pensar sobre a distinção que se faz entre a personagem de cunho histórico, que de fato existiu, na realização do qual, portanto, questões relativas à verossimilhança podem ser consideradas, e a personagem mítica, por exemplo; reporto-me à fase da pesquisa que realizo no momento atual, na qual procuro investigar essas mesmas questões, ou paralelas, ou semelhantes, em Gilgamesh, o espetáculo encenado por Antunes Filho, em 1995, que também parte de uma epopeia, no caso, a primeira epopeia de que se tem notícia. Gilgamesh é a primeira personagem histórica registrada. O poema épico sumério foi cunhado em tabuinhas de barro, e essas tabuinhas, descobertas em pesquisas arqueológicas, passaram a

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integrar acervos de museus de diversas partes do mundo. Só no século XIX os estudiosos conseguiram decifrar a escrita desse poema e houve uma ação investigativa no sentido de juntar essas tabuinhas e reorganizar esse universo. Mas, até o presente, nem todas foram localizadas, ou seja, esse processo não está acabado. O histórico da recuperação da epopeia também é singular, se pensarmos na época atual, em que há tanta informação, em que estamos mergulhados, por vezes afogados, em tanta informação e, de repente, deparamo-nos com o fascínio que exerce o primeiro poema épico. A sua retomada e sua incompletude vão marcar tanto o conhecimento dessa origem como também propiciar ao ator outro tipo de atuação, porque ele estará ciente desse processo a ser assimilado em seu trabalho. Então, considero bastante interessante pensarmos a questão do processo, que muitas vezes é quase esquecido na apresentação do produto artístico; trazer para sua própria elaboração o processo é algo que pode enriquecê-lo. E ao ator-narrador abre-se constantemente essa possibilidade porque ele não tem uma linha completamente definida, ele não tem inclusive uma fisicalidade a ser observada. Gilgamesh, por exemplo, é dois terços Deus e um terço homem. Então, como é ser dois terços Deus em cena? Como é lutar contra outra entidade, Enkidu, que é selvagem? Como essa relação, que vai iluminar o entendimento do ser humano, pode se dar de maneira efetiva, não mais pautada exclusivamente pelo realismo redutor, mas que se amplie em dimensões que tragam ao homem a possibilidade de extrapolar o autoconhecimento e o conhecimento do mundo? Nesse sentido, a narrativa é algo de grande valor, pois não delimita aquele universo exclusivamente a partir de dados de realidade, mas associa figuras ou personagens que extrapolam o próprio ser humano. Então, é evidente que, assim sendo, o trabalho do ator, para atingir a grandeza da reflexão que essa obra suscita, também deve modificar-se, o ator deve estar aberto a dimensões que não sejam as convencionais para atingir esses objetivos. E o que se percebe nesse jogo, nesse movimento da narrativa, é a possibilidade de instauração de diversos planos de atuação. Em Gilgamesh, Antunes Filho, por exemplo, começou a desenvolver a

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encenação a partir do trabalho do ator, da ideia de eliminar os vícios de interpretação desse ator, particularmente o da fala com uma cadência muito repetitiva, difícil de ser excluída e que se torna algo restritivo. Então, o trabalho de Antunes Filho ocorreu no sentido de limpar, de transformar aquele ator em uma espécie de tela branca na qual fosse possível imprimir novas expressões. É um trabalho – ele mesmo reconhece – muito difícil. Mas o que ele solicitava aos atores que faziam, por exemplo, os monges, era não “serem”, ou não se transformarem em monges, mas que buscassem a espiritualidade do monge, serem eles mesmos, mas ansiando a espiritualidade de um monge. Então, o ator se torna interiormente um narrador, ele não vai se emocionar como um monge, ele não vai ter a angústia existencial, a fé de um monge, mas buscar essa espiritualidade do monge e se sensibilizar mais do que se emocionar. Estas duas palavras talvez sejam as mais importantes para a nossa reflexão: não se trata de trazer a emoção para dentro de você, mas sim de identificar aquela emoção existente ali e sensibilizar-se com a plateia nessa mesma ideia de trazer esse universo, de se assenhorar desse universo, de tornar esse universo expressivo e, no caso de Antunes Filho, o propósito de ampliação de entendimento baseou-se na decisão de trabalhar com arquétipos, com questões junguianas. Outro plano, em Gilgamesh, é o ambiente histórico, que pode ser trazido fisicamente para a cena, e em termos de atuação pode ser trabalhado de maneira diferenciada. O terceiro plano é o do ambiente arquetípico do inconsciente coletivo. A articulação entre esses três planos poderá dotar o espetáculo de uma dimensão que ultrapassa os limites do real, que ultrapassa inclusive os limites do conhecido, de modo a lançar o espectador em dimensões inauditas, que ele não consegue abarcar na sua totalidade, mas que o despertam para um conhecimento de mundo diferenciado. Extrapolando o universo das epopeias, e referindo-nos a uma dramaturgia brasileira recente, criada com a contribuição de atores, naquele que se convencionou chamar processo colaborativo, podemos perceber que frequentemente a memória de cada um dos integrantes e a narrativa dessas experiências pessoais mesclam-se para forjar a

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matéria do espetáculo. Em As três Graças, da Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes, por exemplo, os atores reportam-se ao próprio trabalho, explicitando a maneira como chegam ao espetáculo final, como o grupo se debruça sobre si mesmo. E sua indagação sobre percursos é incluída na própria estrutura do espetáculo. Ou seja, a revelação do processo é um caminho bastante enriquecedor: o que se vê em cena não é apenas uma fatia de um processo ou o resultado ao qual aquele processo chegou, mas todo o percurso feito pelo grupo é trazido objetivamente para a cena. É a narrativa do próprio grupo: de que maneira, contando inicialmente com três atores e uma atriz, o coletivo trabalha, e como, de repente, há uma mudança nessa configuração, passando a existir quatro atores e quatro atrizes e, consequentemente, até a temática trabalhada por esse grupo se altera. E o histórico da criação não surge separadamente, não é revelado pela informação publicada em um programa ou pela reflexão teórica feita por um crítico a posteriori, mas integra o espetáculo. Fundir princípios da narrativa com a elaboração do texto cênico propriamente dito é um expediente que pode indicar trilhas inovadoras.

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Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 5a ed. São Paulo: Hucitec, 2002. BERARDINELLI, Cleonice. Estudos camonianos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Cátedra Antonio Vieira/Instituto Camões, 2000. CAMÕES, Luís de. Obra completa. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar Editora, 1963. JOUVET, Louis. Ascolta, amico mio. Roma: Bulzoni, 2007.

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O ator e o trabalho em grupo por Alexandre Mate5

Na experiência teatral popular, homens e mulheres (estas, impedidas de atuar no teatro erudito, não puderam se apresentar até aproximadamente o século XVII) formaram grupos para, em caráter deambulante, levar seus espetáculos aos espectadores interessados. Pela divisão de tarefas estéticas e de produção, os artistas populares têm se afirmado e firmado a necessidade de os sujeitos estabelecerem vínculos com vistas à chamada troca de experiência, por intermédio do simbólico. No Brasil, sobretudo a partir da década de 1960, inúmeros artistas têm formado coletivos para, sem grandes concessões – sobretudo ao mercado –, apresentar seus espetáculos. A partir da década de 1980, na cidade de São Paulo, a organização de artistas em grupo passou a ser conhecida pelo nome de teatro de grupo, expressando uma nova consciência política, de necessidade de intervenção na vida cultural da cidade, de modo coletivo e com propósito também político. Atualmente, os mais expressivos espetáculos teatrais da Cidade são criados por vários desses coletivos. Professor de História do Teatro do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), pesquisador de teatro e integrante do Núcleo Nacional de Pesquisadores de Teatro de Rua.

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Grupos organizados, com assessorias em permanente processo de discussão, têm promovido encontros públicos para discutir questões estéticas e políticas, têm publicado revistas e jornais, interferido nos espaços públicos das cidades em que estão sediados. Divulgar algumas dessas experiências é fundamental e absolutamente necessário para o desenvolvimento da linguagem teatral na Cidade e no País. FARRA DO PASSE DO ATOR: AS MUITAS FACES DE UM FAZER RESSIGNIFICADO PELO MERCADO. QUANTO VALE? Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas./dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes./ Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade/ das tartarugas mais que as dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado/ para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos/ como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática:/ eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor os meus silêncios.

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O apanhador de desperdícios. Manoel de BARROS.

Reflexões sobre o fazer ou, de acordo com Michel de Certeau, “as artes do fazer” (nesse caso, as do ator), normalmente são envoltas por certa glamorização ou por total desqualificação. Dito de outra forma, fala-se sobre os mitos que cercam esse fazer (normalmente de modo idealizado, subjetivo) sem alusão a um trabalho social sempre historicizado. Trata-se de um fazer cuja lógica pressupõe a venda da própria força de trabalho, reconhecido a partir do século XVI, quando os commedianti dell’arte conquistaram esse direito. Considerando, entretanto, as práticas sociais e os direitos do trabalhador do teatro (é

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bom lembrar que a profissão de ator, no Brasil, foi reconhecida apenas em 1977), assiste-se ao permanente processo de transgressão e de burla dos direitos e garantias conquistados pelo conjunto de trabalhadores das artes cênicas. Raríssimos são os casos em que os atores e as atrizes, nesse fazer específico, têm registro em carteira de trabalho. Apesar de a maioria desses fazedores poder ser apreendida pela determinação de trabalho voluntário, há um fosso abissal entre os pouquíssimos artistas que recebem salários e cachês astronômicos e a quase totalidade dos que pouco ou nada recebem. A essa quase totalidade, tendo em vista o modelo social excludente, também em teatro, cabe o pagamento dos prejuízos da forma social organizada em cooperativas. Mario Pedrosa, em várias reflexões, pondera sobre o amplo espectro no mundo capitalista compreendido entre o valor prestígio e o valor trabalho. Nesse sistema de trocas e de disputa do simbólico também as obras artísticas transformam-se em produtos, cujo valor é atribuído e regulado pelo mercado. Agnes Heller afirma que se pode considerar desvalor [...] tudo o que direta ou indiretamente rebaixe ou inverta o nível alcançado no desenvolvimento de uma determinada componente essencial. O valor, portanto, é uma categoria ontológico-social; como tal, é algo objetivo; mas não tem objetividade natural (apenas pressupostos ou condições naturais) e sim objetividade social. É independente das avaliações dos indivíduos, mas não da atividade dos homens, pois é expressão e resultante de relações e situações sociais. (HELLER, 1992: 5)

Desse modo, afirma ainda a autora: [...] consideramos valor tudo aquilo que produz diretamente a explicitação da essência humana ou é condição de tal explicitação. Portanto, consideramos como valores as forças produtivas e como explicitação de valores a explicitação dessas forças, já que essa explicitação significa, direta e indiretamente, aquela das capacidades humanas, na medida em que aumenta a quantidade de valores de uso – e, portanto, de necessidades humanas – e diminui o tempo socialmente necessário para a obtenção dos vários produtos. (HELLER, 1992: 8)

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O valor do trabalho de um ator é determinado pelos critérios mediados e quantificados pelos interesses do mercado. As tabelas confeccionadas pelos sindicatos não servem, com raríssimas exceções, para o pagamento de trabalho profissional. Assim, na condição de mercadoria, o trabalhador tem seu passe definido por esquemas, sobretudo comerciais, ligados ao prestígio conquistado por meia dúzia de seres iluminados ou pelo que pode ser pago pelo grupo, empresarial ou não, que o contrata. Então, a glamorização do ator ou a ilusão de trânsito por certa “zona de triunfo” é proporcionalmente definida pelo camuflar a perversidade ideológica que alimenta um mercado que rende muito lucro aos atravessadores e rentistas: dos donos das escolas de profissionalização às lojas de enfeites, passando pelos castings managers (ou, em bom português, selecionadores de talento). Ampara-se nesses pressupostos, também, o ensino da história das artes. Por intermédio de esquemas de excludência, destacam-se algumas fatias de tempo e de produções artísticas, em detrimento de outras. Na medida em que o conhecimento é uma espécie de exercício de poder sobre o real, imaginemos, pois. Imaginemos a criação de um “gabinete de curiosidades” (um dos primeiros nomes conferidos aos atuais museus), montado por uma grande empresa, com curadoria de um tal Abelardo, que aqui será conhecido como Abelardo I, e um assistente, Abelardo II (ambos saídos das páginas de O rei da vela, de Oswald de Andrade).

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1. Estetizando um pouco o assunto Como antecessor de um futuro museu de artes cênicas, esse imaginado gabinete poderia ter por título experimental: UMA JORNADA POR UM LANCINANTE PASSEIO PELA HISTÓRIA: uma metaphorai6 por intermédio de um roteiro nem tão arquetípico assim. Alusão ao conceito com o qual se nomeia o transporte coletivo na Grécia apresentado por Michel de CERTEAU. A invenção do cotidiano. 2a ed. Petrópolis: Vozes, 1994.

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Imaginemos, então, que nesse espaço de curiosidades o curador, seu assistente e demais personagens pudessem aparecer e disputar o espaço de memória da linguagem teatral, enfatizando nela, sobretudo, o trabalho do ator. Ou, de outra forma, como esse espaço apresentaria o fazer do ator na história das artes cênicas. No âmbito dessa disputa, evidentemente encontra-se em jogo descobrir a partir de que lugar os curadores e cada visitante falariam e apreciariam esse fazer. Nessa disputa, ficcionalizada a partir daqui, pode-se tomar a seguinte estrutura dramática que prefiguraria a criação do futuro museu: QUEM? – Sujeitos “Sabidos” (personagens do Gabinete) e Homens, em sua maioria, (in)Acabados7, cujo apelido alegórico, parafraseando auto famoso de Gil Vicente, pode ser Todo-o-Mundo. O QUÊ? – O fazer do hypokristés em um percurso pancontinental. ONDE? – Salas de um edifício com arquitetura grotesca, pós-pósmoderna, passando por muitos corredores, bastante assemelhados àqueles sufocantes por meio dos quais Kafka criou O processo. Pelo alto-falante, uma voz anuncia que a compra de um opsis-bilhete (bom não esquecer que opsis, em grego, durante a Antiguidade clássica, designava espetáculo) dá direito a uma viagem pela história, esquadrinhada, artificializada e condicionada ao tempo de visita. Afirma a voz que a primeira parada será na Estação Central Aristóteles, da qual partem as diversas metaphorais, pelos mais diversos caminhos. Muito ao fundo, ouve-se Canción por la unidad Latinoamericana, com Pablo Milanés. Apesar de não se estar em Cuba, a escolha pelo cantor e compositor cubano indicam um recorte latino-americano.

O prenome compreende o conceito criado e ancorado em proposição de Paulo Freire do sujeito que vai se fazendo ao andar e ao se relacionar.

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Compra do bilhete Muitos dos passageiros, na condição de homens (in)acabados, perguntam se é necessário, para viajar, conhecimento de alguma etimologia específica. Abelardo I afirma que seria ideal, mas lembra, entretanto, não ser absolutamente fundamental, na medida em que o material iconográfico pode ajudar a deslindar os cenários montados. Lembra, ainda, o motorneiro-personagem que, nessa visita, assim como preconizam tantos, ser importante colocar-se em situação, e permitir a relação em fluxo. Emenda na sequência que aquela visita, como contrapartida social, se tornará possível aos “metaforistas” graças a um projeto contemplado por certa lei de fomento. Por último, avisa que se trata de um espaço concebido ao gosto dos aristói, e roga que sejam evitadas quaisquer formas de exageros, como expressões escatológicas, atitudes iconoclastas, tocar nas obras de arte, questionar o conselho curador, a disposição dos objetos etc. Ao sair da Estação Aristóteles, veem-se maquetes de grandes teatros no corredor-passagem e gente espalhada em torno de alguns poucos artistas. Ao aproximar-se dos grupos, percebe-se que na

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Primeira paisagem Em pequeníssimo e tímido espaço, logo à entrada, quase coberto pela porta de entrada, sem nenhum recurso mais moderno, há uma alusão aos mimos gregos e sua supressão da história documental: conceito de memória autoritária “construída pelo alto”. Dominando a sala, com toda pompa e circunstância, cenas mostram os rituais mnemônicos em homenagem aos deuses imortais. Tespi – um dos rapsodos, ainda portando a capa do bode, e deslocado do ditirambo – parece assumir e representar algo muito maior que si mesmo. As veias do pescoço pronunciadas; o olhar incisivo e o gesto, entre o transido e o magestático, conotam algo, uma profusão de interpretações... Heroica imagem: apolineamente dionisíaca! Em sequência ao quadro heroico, um rápido balé das musas apresentam a tragédia, a comédia e o drama satírico. Uma “voz capitular“, com certo sotaque indecifrável, tece considerações sobre o espetáculo grego. O ator era contratado pelo COREGO

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– cidadão próspero que patrocinava a produção das peças – e recebia determinados talentos (dinheiro) por seu trabalho. Cabia ao contratador, em troca de prestígio, selecionar e pagar salário a um CORODIDÁSCOLO (diretor), pagar comida e bebida, manter o local de ensaios e comprar todo o equipamento necessário à montagem da obra escolhida, legitimada pelo Estado. Nessa concepção, portanto, o hypokristés, e existe alguma documentação histórica nesse sentido, era um protegido (do latim protectðre, significando guarda de corpo, protetor, defensor, por via culta). Hypokristés significa, vejam só: aquele que tem proteção (institucional: espaço, texto e abrigo garantidos) no ato de fingir. “Naturalmente” (leia-se ideologicamente), o mimo significa aquele sem nenhuma forma de proteção institucional e destituído de talentos. De outra forma, sobrevivente por sua astúcia e por conseguir transitar pela periferia.8 Esse tipo de figura, desprotegida e aguerrida, povoou o imenso império romano, trocando experiências9 para além do panis et circenses. As formas populares atelana, satura, fescenino, pantomima apresentam o ator popular (ou o chamado primeiro ator compositor, porque a ele cabia o acúmulo de todas as funções pressupostas pelo ato da representação) e derivam das experiências dos mimos e aclimatam temas e fazeres aos seus contextos. Segundo documentação disponível, esses atores populares atuavam, cantavam, dançavam, faziam malabarismos, prestidigitação... Apesar de o conceito bastante positivo de performer ter surgido apenas no século XX, é possível, mais por necessidade de sobrevivência e de astúcia, encontrá-lo muito antes de sua eclosão e batismo oficial. Primeiro desvio Aproveitando-se da ausência do líder, e talvez resolvendo algum problema exigido pelo cargo, Abelardo II, exageradamente simpático, espécie de flâneur moderno (vestido como a personagem masculina Mary RENAULT, ao conciliar documentação e ficcionalização (cujos pés plantam-se nos acontecimentos, mas não o modo de reordenação, por intermédio de discursos), apresenta interessante reflexão em A máscara de Apolo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

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9 No sentido apontado por Walter BENJAMIN no ensaio O narrador, in Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 4a ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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que cumprimenta Gustav Aschenbach, logo de sua chegada a Veneza, no filme Morte em Veneza, de Lucchino Visconti, de 1971) afirma que poderia conduzir todo-o-mundo em sala ainda não pronta, para mostrar outra grande fatia de tempo. Mais pelo constrangimento de não atender a tão solícito sujeito, entram todos em outra sala, e nela há um grande carroção. Afirma Abelardo II tratar-se de um pageant (palavra vertida do latim, pagina, referindo-se à página, paginação), nome com o qual, sobretudo os ingleses, durante a Idade Média, nomeavam as representações dos mistérios, em narrativa fragmentada e épica, nas festas de Corpus Christi. Além disso, o pageant (ou paginante)10 refere-se também ao meio de transporte, de guarita e de espaço de representação dos atores mambembes durante uma grande fatia de tempo na Idade Média. O reaparecimento da linguagem teatral no culto da missa, a partir do século XI, apresenta um sujeito “refuncionalizado”, antes chamado ator. Esse sujeito (sempre do sexo masculino), protegido e apadrinhado – incluindo aí, também, a despeito da proibição e dos processos persecutórios da Igreja, os menestréis e saltimbancos alojados nos feudos –, um “não ator”, mas na função de representação: “emprestava seu corpo para servir ao Deus onisciente, onipotente e onipresente, imposto pela Igreja”. Surge, portanto, outra categoria: o atuante médium.11 Em tese, esse sujeito, barbarizado e “prostituído por fanatismo cegante”, emprestava-se, dava-se, oferecia-se como tributo louvatório: espécie de cavalo do mal a serviço do bem. Por conta disso, pode-se imaginar a festa representada para o atuante médium ao “vestir” as chamadas figuras do mal, no palco simultâneo representando o inferno... Mas, lembra Abelardo II, retomando assunto apenas mencionado, que ao lado de competente e eugenista

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Sugestão apresentada, e acatada por mim, por Iná Camargo Costa para tradução do termo em português, em correspondência pessoal, de 1o/11/2008.

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De certa forma, e nessa viagem não se passará pela paisagem compreendida pelo teatro simbolista, o conceito ator médium, também refuncionalizado, será defendido por alguns inauguradores da encenação moderna. Cf, por exemplo, Anna BALAKIAN. O simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 1985. Paul FORT (1872-1960) – opondo-se fortemente às ideias de André Antoine e à produção desenvolvida no Théâtre Libre, funda o Théâtre de l’Art e convida significativo número de poetas para redefinir os caminhos do teatro: um teatro anímico e retreatralizado, em que o ator também seria uma espécie de médium. 11

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trabalho realizado pelos representantes de certo e alourado deus na terra, não foi possível conseguir suprimir os atores... Afinal, mesmo com os olhos de Deus em todos os lugares, dentro de muitos feudos, remanescentes e “porta-fazedores” das tradições cômico-populares, desde a Antiguidade clássica greco-romana, contentavam seus senhores e donos com atividade e entretenimento. Os bobos da corte, bufões, menestréis e saltimbancos, pelo domínio de múltiplas técnicas, preservam a existência e os fazeres dos já mencionados performers da prática teatral. Nas ruas, longe dos olhos dos representantes da Igreja, os saltimbancos, mesmo sem pagar indulgências, alegravam a existência dos servos. Ruídos na sala ao lado (algo bastante próximo a certos hermetismos paschoais, de que falou Caetano Veloso, em lindíssima música popular) denunciam a volta do curador. Abelardo II reconduz os visitantes ao trajeto previamente estabelecido, finge-se de morto, arruma as cortinas e assobia um certo sambinha de Paulinho da Viola: “Tá legal, eu aceito o argumento...” No grande salão, com imagens belas, imponentes, significativas, o alto-falante apresenta discurso emocionado que anuncia o ressurgimento do antropocentrismo. Segunda paisagem Seguindo o percurso oficial, a próxima fatia de tempo – o século XVI –, descortina um conjunto de homens e mulheres (naquele momento percebe-se que elas ficaram de fora dos palcos e de espaços oficiais...) com diferentes funções, também no âmbito da representação. No teatro popular, as mulheres ocupam a cena; nos palacianos, ratificado pela documentação, quando é o caso, elas encontram-se na plateia, sempre acompanhadas de seus preceptores: pais ou maridos. Alguma coisa desvia a cabeça de muitos entre Todo-o-Mundo. Em uma performance, alguém recolhe dinheiro de algumas pessoas enquanto os atores se preparam para a função. Trata-se do surgimento dos commedianti dell’arte. Homens e mulheres que conquistaram, na Itália – o berço do Renascimento –, o direito de cobrar ingressos pelo seu trabalho: surge o ator profissional, abrigado pela conhecida commedia dell’arte. Por meio

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de registro em cartório, em 1545, os commedianti organizaram-se por necessidade de sobrevivência e, também, como reação aos poderosos. De certa forma, a sátira ao poder constituído, o que não era novidade, deu origem aos pobres e serviçais criados (zanni) da commedia dell’arte. Ao quebrar a prática protecionista, pelo Estado ou pelos nobres (em sistema de mecenato), homens e mulheres, normalmente da mesma família, conquistaram o direito – para arrepio de tantos – de cobrar por seu trabalho. Para sobreviver, esse trabalhador, portanto, precisará concorrer com os não atores (das confrarias religiosas), os atores protegidos (pelos nobres e conselheiros do rei), com outros atores populares, que sobreviviam passando o chapéu ao fim de suas apresentações. A experiência dos commedianti foi significativa até que, por necessidade de sobrevivência, teve de atender ao gosto dos nobres. As concessões acabaram por fazer com que a forma teatral e os artistas entrassem em processo de decadência. De qualquer modo, a experiência dos commedianti, no concernente à divisão coletiva do trabalho, alimentou diversos autores, encenadores e práticas significativas, tanto os do teatro de feira como os dos séculos XIX e XX, dentre os quais podem ser citados: Vsevolod Meyerhold; o teatro de agitprop; muitos dos chamados teatros de grupo da cidade de São Paulo, em especial a Fraternal Companhia de Artes e Malas-Artes, com seu estudo sobre a comédia popular brasileira e textos de Luís Alberto de Abreu. Chamando a atenção dos visitantes e intervindo no olhar deles (puxando o foco, como se fala em teatro), um certo Tião, sem black-tie, na condição de empregado da instituição – e que dizia a todos estar fazendo cinema – aponta insistentemente para o outro lado da sala, exatamente – grande coincidência – o lado esquerdo de quem entra. Há biombos de vidro muito sujos... Tião passa os dedos sobre o vidro. Abelardo I, de volta ao espaço, muito atento ao que faz, percebe que Todo-o-Mundo olha em direção ao que indica Tião. Mais próximo ao vidro, podem ser percebidos (em projeção) homens e mulheres em atitude de cortejo ou de passeata com imensos cartazes, anunciando, vejam só, o fim do mundo. Nas placas, há frases modelares de oposição a toda e qualquer forma de censura

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às artes e de luta contra a miséria, preconizada por um certo teatro de agitação e propaganda, desde o final do século XIX. Terceira paisagem Decorrente dos impasses entre a burguesia e a classe trabalhadora; da discussão acerca da função da arte: social art versus l’art pour l’art; da produção teatral ilusionista e hegemônica que não dava conta de tantas contradições da realidade, fundamentada na tranche de vie; do paroxismo da intersubjetividade; dos conflitos e intensos embates sociais... Émile Zola, ainda que fundamentado em conceitos de hereditariedade e determinismo, preconiza a necessidade de a arte abarcar, por meio de procedimentos cientificistas, os conteúdos de seu tempo. O Naturalismo, ao mesmo tempo que recorta o real para reapresentá-lo esteticamente, deixa um lastro de novas formas e de trabalho do “novo ator.” Ao criar as personagens com minúcias comportamentais e psicológicas, ajuda a destacar ainda mais o chamado ator concebido como monstro sagrado. Atores ligados às formas hegemônicas, os ditos monstros sagrados, têm uma contundente capacidade em se “transformar” nas personagens que representam, em arrancar lágrimas do público e arrebatar a plateia emocionalmente. Essa experiência, que muito deve ao método de Constantin Stanislavski, chegou à Alemanha especialmente por intermédio da Freie Bühne de Berlim, dirigida por Erwin Piscator. Ligado aos postulados marxistas, Piscator empreende o trabalho COLETIVO de outra forma teatral: um teatro que fosse capaz, sem ilusionismos identificatórios do ponto de vista emocional, de discutir até mesmo a questão da luta de classes, por exemplo. Novo teatro, novo ator, o palco como podium. Piscator, porque o teatro e o ator o interessavam de outro modo, teve de desenvolver um embate entre o utilitarismo e a opacização ideológica preconizados por certo drama realista (mas não aquele dos grandes mestres, de que Peter Szondi, em Teoria do drama moderno, analisa muito bem); embate contra os encenadores que inauguraram a chamada ditadura da encenação e reteatralizaram o teatro e consideraram o ator, sobretudo decorrente de certa

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dramaturgia simbolista, como uma supermarionete (reedição da über-marionette de Heinrich von Kleist e Georg Büchner), ou como uma forma volumétrica em meio a outras formas, igualmente volumétricas formas pictóricas; embate contra a glamorização de certos sujeitos, destacados dos genéricos “grandes elencos”... Bertolt Brecht inicia-se na prática teatral como assistente de Piscator. Depois de estudar teatro e política, Brecht dá início a um processo de radicalização da linguagem. Para ele, o teatro precisa assumir um ponto de vista político. Para o dramaturgo alemão, naquele tempo de urgência, era preciso explicitar o “a que vim de cada um“. Brecht (o pobre B.B.) aprende a fazer teatro com Piscator e com os coletivos dos quais fez parte, antes, durante e depois de seu exílio, em decorrência do Nazismo. Vale destacar que o dramaturgo deixou extensa obra e reflexões importantíssimas. Em Sobre o senhor Puntilla e seu criado Matti e Cenas de rua, o teatrólogo discorre sobre o ator (assim como o conjunto de criadores do teatro: aqueles em ensemble) como mediador, inventarista e problematizador de seu tempo, de sua historicidade. Nessa solicitação, o dramaturgo alemão aproxima-se do solicitado pelo teatro agitpropista russo-soviético. Um ator, representando Vladimir Maiakóvski – “o poeta da Revolução” –, afirma:

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Senhoras e senhores, em algum lugar do mundo, acho que no Brasil, existe um homem feliz!

Quarta (e última) paisagem Por algum problema, o ator “na pele de Maiakóvski” (seria Abelardo II?) entra em uma sala. Nela, há uma placa com a seguinte advertência: “TEATRO BRASILEIRO – EM PROCESSO DE COLETA DE DOCUMENTOS. SEM PREVISÃO DE DATA DE INAUGURAÇÃO”. No chão, outra placa contém o seguinte texto: “Como a mudez em cena pode expressar, eloquentemente, a fala social do homem brasileiro na vida política?!” O ator deixa a porta escancarada. Por conta disso, podem-se ouvir, cada vez mais claramente, alguns

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sons. Distingue-se nitidamente a voz de Zé Celso: “Só a antropofagia nos une! Oswald tinha razão: teatro é desbunde, é iconoclastia, é processionalização. Ator é um ser xamânico!” Sem se contrapor à fala anterior, com muita calma e mansuetude, afirma César Vieira: “Teatro é troca de experiência com a população da periferia. O teatro precisa se colocar a serviço da ética e das comunidades sem acesso à cultura. O ator é como um educador social: ele ensina aprendendo, e aprende ensinando.” Depois de uma risadinha, entre aparente ironia de quem se defende, brada Antunes Filho: “Artista é um demiurgo dos deuses. É um arquétipo dos deuses imortais! É Shiva. É pensamento iluminado!” Na forma de coro, pode-se ouvir sons variados, ao fundo aparece uma mistura da Internacional, com Upa Neguinho, com Aquarela do Brasil... “Ator é porta-voz político do seu tempo. É um despertador e desalienador de consciências!”, afirmam os corifeus Oduvaldo Vianna Filho, Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri. A contenda pega fogo! com atores colocando-se em situação.” “Tudo isso sim... Alguma coisa mais, outra menos, mas, por favor, com elegância, a partir de textos clássicos, levando em conta a vida interior das personagens, com atores colocando-se em situação e ‘sendo’ as personagens. Claro, com rigor e verossimilhança. Enfim: comme il faut! Il s’agit d’un théâtre de classe!”, pontifica um indivíduo cuja silhueta revela um Senhor de meia idade e de gestos bastante elegantes. Abelardo I fica atônito. Não consegue parar o meeting. O público encanta-se porque, de uma forma ou de outra, se viu representado por um daqueles oradores. Como decorrência de simpatia, o público se aproxima, formando um grande coro dos oradores, cada vez mais entusiasmados: na condição de corifeus... Entretanto, cada corifeu não quer falar apenas para aqueles que lhes têm simpatia. Querem discutir com seus opositores, abarcar a totalidade dos presentes ao evento. A contenda pega fogo! De repente, todos se percebem em uma ampla sala art-nouveau, redonda e repleta de portas em sua circularidade. Muitas portas. Orgulhoso, cada orador aponta um conjunto de portas, afirmando que cada uma delas apresenta muito mais que uma concepção de ator. Cada porta apresenta uma

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concepção política e estética. O trabalho do ator, segundo cada um deles (e de modos diferenciados, é claro!) decorreria dessa concepção que transcenderia até mesmo o ético. Abelardo II cria coragem e afirma que existe uma tipologia na qual os diferentes tipos de ator podem ser enfeixados desde sempre. Isso, lembra ele, não segrega ou fecha nenhuma questão. Ao contrário, descortina possibilidades que pressupõem a discussão em torno de disputas que transcendem o estético, posto que ideológicas. Lembra, referindo-se a Adorno, que a forma decanta a ideologia! Ou seria o contrário? Mesmo confuso, Abelardo II se prepara para tecer comentários acerca da reificação por que passam artistas e a sociedade como um todo. Alguém muito enfezado solta ferina risada mefistofélica e afirma para quem quiser ou não ouvir: “Pronto. Começou... Pra ele, tudo é política!” Nova polêmica, sem pancadaria, mas com discursos inflamados. Pode-se ouvir: “Vamu pra Matchu Pichu!” “Mamãe, eu vou pra Califórnia...” “Meu, vou pra casa, tenho que atualizar meu twitter.” Estou com muita coisa pra fazer!” “Meu, vamu cair fora!” “Exigo respeito! Ainda não terminei minhas colocações!!” Panaceia geral.

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Apagão geral Como se estava a imaginar... Depois de algum tempo de luz apagada, ao se tomar contato com o ambiente iluminado em que se estava (para quem conseguiu ler o texto até o fim), cada um de nós pode se deparar com a própria miopia... Minha fala terminou no auditório do Instituto de Artes da Unesp, em 11 de novembro de 2008, sem Abelardos reais nas proximidades. Com quem eu posso dialogar se tocado por algum ponto aqui apresentado?

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Referências bibliográficas BALAKIAN, Anna. O simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 1985. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I – Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1986. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

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HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 2a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. RENAULT, Mary. A máscara de Apolo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950). São Paulo: Cosac Naify, 2001.

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Dramaturgias da cena: trajetórias em busca de depoimentos poéticos e ideológicos por Evill Rebouças12 51

Tenho pensado bastante sobre trajetória... Sobre a minha trajetória, trilhada com o grupo do qual faço parte. A Artehúmus surgiu quando eu ainda era molecote, e nós, os primeiros integrantes, havíamos recém-saídos de uma oficina de teatro no ABCD paulista. Já se passaram mais de vinte anos, mas o percurso do grupo teve interrupções porque, em determinados momentos dessa trajetória, algumas pessoas saíram e outras entraram. Eu sou da primeira formação. Logo em seguida entrou Solange Moreno, que já está no grupo há dezoito anos. Em 2004, ingressaram Daniel Ortega, Leonardo Mussi, Edu Silva e Roberta Ninin, que continuam até hoje. Ator, dramaturgo, encenador e professor de teatro. Licenciado em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e mestre pela mesma instituição com a pesquisa A dramaturgia e a encenação no espaço não convencional, publicada pela Edunesp. Recebeu o prêmio APCA 2006 de melhor autor por Terezinha e Gabriela – uma na rua e a outra na janela; em 2002, APCA de melhor espetáculo jovem por O santo e a porca, entre outros. É fundador da Cia. Artehúmus de Teatro, coletivo que investiga questões relacionadas ao espaço não convencional, apresentando espetáculos nos cenários paulista e internacional.

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Tenho reavivado a memória... Lembrei dos primórdios da Artehúmus fazendo teatro amador, viajando e apresentando espetáculos em festivais. Eu era metalúrgico; conciliava minha atividade operária com a de artista amador. Mas chegou um momento na companhia em que algumas pessoas não conseguiam conciliar as duas coisas, uma vez que passamos a receber muitos convites para apresentar nosso primeiro espetáculo: Explode seiva bruta. No sentido de suprir essa primeira desarticulação, fui estudar teatro. Entrei no Centro de Pesquisa Teatral, coordenado por Antunes Filho, depois passei pela Fundação das Artes de São Caetano do Sul (SP) e, por pouquíssimo tempo, frequentei a Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (EAD-USP). Comecei a fazer testes para grandes produções em São Paulo no final dos anos 1980. Apresentei A volta de Serafim Ponte de Grande, dirigido por Chico de Assis; Turandot, dirigido por José Renato; Brasil, outros 500, dirigido por Roberto Lage; espetáculos com número imenso de atores e técnicos. Se, por um lado, havia segurança financeira, por outro, faltava espaço para pesquisar algo mais autoral. Surgiu, então, a vontade de voltar a procurar novos parceiros e continuar com o grupo. Nesse retorno, descobri realmente que só conseguiria ser honesto comigo e com o teatro se tivesse espaço e tempo para pesquisar, bem como administrar as questões que cativam e distanciam uma relação em grupo. Especificamente sobre criar espetáculo explorando dramaturgias, ou seja, abrir espaço para que todos os elementos humanos e materiais da cena possam suscitar discursos, é prática habitual na Artehúmus. Nossa última experiência aconteceu com a montagem do espetáculo Amada, mais conhecida como mulher e também chama de Maria. Tivemos a subvenção da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo e, consequentemente, tempo e recursos para investir em questões relacionadas ao ator como propositor da cena, bem como trabalhar a exploração de dramaturgias tendo o espaço como elemento que pode suscitar leituras ao espetáculo. Na Artehúmus, a metodologia está próxima daquilo que

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conhecemos como processo colaborativo. Esse termo veio com força maior a partir do momento em que Luís Alberto de Abreu escreveu alguns textos, entre eles: O livro de Jô, para o Teatro da Vertigem. Quando digo próximo, e não exatamente igual, é porque há inúmeros materiais literários que estabelecem premissas em relação ao processo colaborativo e algumas especificidades se distanciam do processo de criação da Artehúmus. Cabe ressaltar que essa dinâmica está muito próxima da criação coletiva dos anos 1980, ou seja, um processo que, em geral, todos contribuíam ou contribuem, o que de certa forma podia gerar um espetáculo sem unidade. É interessante observar que, se pensarmos em teatro pós-dramático, uma das questões mais citadas é justamente explorar a heterogeneidade e não a unidade. No processo colaborativo, todos os integrantes são propositores da cena. O espetáculo pode ser concebido, por exemplo, a partir das proposições do figurinista. A partir do figurino pode-se chegar a um discurso potente em relação ao assunto. Pode partir também de uma sugestão do iluminador. O sujeito não quer utilizar a luz convencional do teatro, quer usar a luz fria, e isso gera uma leitura do espetáculo. Ou o sujeito começa a investigar discursos poéticos e ideológicos a partir do espaço escolhido para a encenação. Na Artehúmus, a experiência mais relevante, objeto do meu mestrado, é Evangelho para leigos, um espetáculo que fizemos em um banheiro público do Viaduto do Chá (SP). Antes, tivemos duas experiências distintas: em um banheiro da Unesp e na Escola Livre de Teatro (ELT), em Santo André (SP), tendo Luís Alberto de Abreu e Antônio Araújo como orientadores. Mas foi no banheiro público do Viaduto do Chá que tivemos mais tempo para pesquisar, pois ganhamos o Prêmio VAI de Iniciativas Culturais – primeira subvenção que a companhia ganhou em 15 anos de existência. No banheiro do Viaduto do Chá, procuramos trabalhar a partir das relações dos atores com o espaço, isto é, como a arquitetura e a carga semântica do local podiam interferir na criação de nossos discursos. A umidade do lugar, o frio do lugar, um espaço reduzido, pequeno; como essas especificidades poderiam ser associadas ao trabalho do ator, do cenógrafo, do

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figurinista, do iluminador. Porém, um dos cânones estabelecidos pelos ensaístas que refletem sobre o processo colaborativo é o não acúmulo de funções. Na Artehúmus, um ator pode assumir a concepção cenográfica, e ele tem autonomia para decidir o que vai ser realizado nessa área. Muitas vezes as proposições vindas de outras instâncias mudam o rumo da encenação; por isso, identificamos o nosso modus operandi como “dramaturgias em processo”. Com relação ao trabalho do ator como propositor da cena, acredito que isso é inerente ao ofício do intérprete, pois, independente do processo ser colaborativo ou não, dele parte a inflexão, a pausa, uma construção específica de voz ou de corpo, a partir de seu entendimento sobre a narrativa. Há, porém, processos que viabilizam um espaço mais acentuado para a contribuição do intérprete. No espetáculo Amada..., os atores eram, inicialmente, propositores de tudo e muitas cenas atingiam potência discursiva pela forma como eles a criavam. Eu, enquanto encenador, era mero espectador daquela imensa variedade de criações, e o que me cabia era apenas sugerir possibilidades para potencializar aqueles discursos, enquanto cidadãos e estetas. Tínhamos, por exemplo, cenas com sete versões distintas enquanto estrutura poética, porém, sempre criadas a partir de um discurso. O que pautava as nossas escolhas era o grau de abertura ou fechamento para esse discurso, pois uma das premissas era fazer com que o espectador se sentisse ligado à cena. Como? Sendo ativo, sendo colaborador de uma dramaturgia própria, criada a partir dos significados que ele vê ou não. S o b r e a apreciação colaborativa, há um exemplo que clarifica o assunto. Fizeram um blog e criaram uma comunidade virtual para Amada... Nele, algumas questões aparecem... Uma delas é “O que significa uma galinha que aparece no espetáculo?” E há inúmeros pontos de vista sobre esse elemento utilizado pelo Descobridor Português, uma das personagens da obra. Introduzimos a galinha portuguesa na cena apenas para indicar possibilidades de associação entre o Descobridor e Portugal, uma vez que a personagem não tinha sotaque. Mas como boa parte do público era de jovens, muitos não associavam a galinha ao país e, assim, outras leituras surgiram.

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Ainda com relação a criar um espetáculo a partir de contribuições coletivas, no processo colaborativo, geralmente o texto se concretiza a partir das experimentações cênicas. Na Artehúmus, pelo contrário, existe um texto esboçado, o que não significa que ele chegará à cena como tal. Um exemplo significativo é o trabalho realizado pela Cia. dos Atores, comandada por Enrique Díaz. Ensaio. Hamlet ou Da gaivota mostram claramente a criação de dramaturgias “depoentes dos atores”, independente de terem partido de texto formalizado. Se o encenador cede espaço para o depoimento da equipe, há um princípio coletivo de criação. Em Amada... tive de reescrever cenas do meu texto, escrever cenas propostas pelo coletivo, porque em muitos casos eram mais interessantes do que as que eu havia apresentado. Ouvi muito, nesse processo, os atores dizerem “Esse seu texto já fala tudo. Você quer a gente para quê?” Rubricas extremamente diretas como, por exemplo, um estupro descrito de forma literal, passaram a receber tratamentos poéticos jamais descritos em minhas rubricas. “Você precisa ir para casa e reescrever essa cena”, ou “Essa personagem não fala isso; quem fala é aquela outra” eram frases frequentes; questionamentos pertinentes ao processo, pois a intenção era potencializar o espaço para as proposições da equipe. Para mediar o processo, elegemos a apreciação como norte para possíveis transformações. Eu formulava questões a partir do material apresentado, levando em consideração entendimento e discurso dos atores e meus para cada trecho do espetáculo. O trabalho era justamente identificar e indicar outras possibilidades para aprofundar a visão de mundo do intérprete e minha. Complementava o nosso trabalho a etapa em que apresentávamos os esboços cênicos aos integrantes do Núcleo Cênico Arion, Teatro das Epifanias e público. Mas era esboço, rascunho de cena mesmo, uma vez que nossa intenção era colher percepções para transformar o material apresentado. Principalmente identificar se nossas escolhas não direcionavam demasiadamente o olhar do apreciador. Dependendo dos depoimentos colhidos, redimensionávamos as cenas, aplicando o conceito de estrutura ausente, comentado por Umberto Eco (2005) que, aplicado ao nosso

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processo, evidenciava a dissonância entre sentido dialógico e ação. Uma questão comum ao processo colaborativo ou às dramaturgias em processo diz respeito ao caráter democrático instaurado, isto é, todos os integrantes de uma equipe têm espaço para experimentar proposições. Porém, há etapas no processo que exigem um direcionamento específico, e tal grau de democracia passa a ser questionável. O alinhavamento das experiências, feito geralmente pelo dramaturgo ou pelo diretor, passa por um critério de escolha, de seleção. Segundo Tzvetan Todorov (2004), toda estrutura narrativa – a forma como o autor e o diretor organizam o material apresentado – pressupõe um discurso. Nas artes plásticas, isso fica mais evidente: quando o pintor escolhe as cores, as linhas, as intensidades, ele constrói um discurso. Nesse sentido, seja processo colaborativo ou dramaturgias em processo, não há como negar que o dramaturgo e o encenador criam discursos pelas escolhas efetuadas. Luís Alberto de Abreu discorda desse pensamento, uma vez que ele trabalha, normalmente, a partir de um canovaccio, mas propor um roteiro – ainda que possa ser elaborado pelo coletivo e modificado quando necessário – não é estabelecer um discurso de quem o organiza? Assim, acredito ser próprio ao ofício do encenador e do dramaturgista a tarefa de realizar um fechamento para as criações coletivas, e isso não anula o discurso coletivo; ao contrário, organiza o pensamento do coletivo. Determinante é a flexibilidade do sujeito que vai organizar ou alinhavar as experimentações coletivas, pois muitas vezes um diretor que parte de um texto pronto pode ser tão ou mais democrático do que aquele que organiza proposições em um processo colaborativo. Nesse processo de criação democrática encontra-se presente o que Jean-Pierre Sarrazac (2002) identifica como tessitura. Para o teórico, a tessitura é realizada pelo autor rapsodo, sujeito que tece fios, que considera não apenas os seus, mas também os de um coletivo. Transportando essa imagem para o processo da Artehúmus, é como se eu apresentasse um esboço de um cachecol, já que eu levo um texto previamente escrito. Mas há espaço para que os integrantes identifiquem fios muito grossos ou espaços fechados entre uma

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malha e outra. Abrir espaço para essas questões, entender que qualquer material pode ser transformado é, para mim, o sentido de fazer teatro em grupo.

Referências bibliográficas ECO, Umberto. A estrutura ausente: introdução à pesquisa semiológica. São Paulo: Perspectiva, 2005. REBOUÇAS, Evill. A dramaturgia e a encenação no espaço não convencional. São Paulo: Edunesp, 2009. SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama: escritas dramáticas contemporâneas. Porto: Campo das Letras, 2002. TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2004. 57

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A visão crítica que antecede a personagem cômica

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por Hugo Possolo13

Ao ser convidado para participar de uma mesa em que se discutiria o cômico, deparei-me com uma primeira questão: é possível expor uma visão sobre o processo de criação do ator cômico? Se fosse possível essa exposição, isso não acabaria por se repetir, de algum modo? Não seria algo mais estanque e fechado em si mesmo? Uma única proposição, à luz de tantas possibilidades, tão conhecidas e pouco sistematizadas, pode compreender um pensamento mais abrangente e crítico? Essa é minha grande preocupação hoje, quando penso em um espetáculo, na formulação criativa de alguma situação cômica ou na construção de uma personagem cômica. Antes de tantas outras questões, penso que há uma questão de entendimento de mundo, de como me coloco diante dele, nele. Isso me parece fundamental para poder gerar algum tipo de obra de arte. Costumo me definir como um “marxista, da linha Groucho”. Aliás, Groucho Marx tem uma ótima definição sobre comediante, que adotamos no espetáculo Nada de novo. Nessa definição, é importante atentar para o contraste entre duas formulações, uma antítese que pode ser muito interessante. Afirma Groucho: Um comediante amador acha que é engraçado se vestir de velhinha, colocar uma peruca, um xale, sentar em uma cadeira de rodas e descer ladeira abaixo até espatifar-se em um muro de pedra. Um comediante profissional sabe que isso tem de ser feito com uma velhinha de verdade.14 13 Palhaço, dramaturgo, poeta, cenógrafo, figurinista e diretor de teatro, circo e ópera. Fundador do grupo Parlapatões, Patifes & Paspalhões. Coordena o Espaço Parlapatões e o Circo Roda Brasil. Colabora com artigos para diversos jornais e revistas.

Segundo Hugo Possolo, trata-se de fala retirada do livro de Ruy CASTRO: O melhor do mau humor. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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Existe um aspecto de crueldade do humor que não corresponde à ideia de bondade e de maldade que trazemos de nossa formação judaico-cristã, de culpa e de perdão. A crueldade, nesse caso, corresponde a ver o mundo de maneira crua. Nua e crua. A comédia contém, potencialmente, o exercício profundo da mentira, para expor algum tipo de verdade. Então, filosoficamente, a comédia tem uma função social fortíssima, na medida em que expõe nossas incapacidades humanas de nos relacionarmos plenamente no sentido mais profundo da existência, no sentido mais sensível. Por conta disso, a comédia trabalha com outro aspecto, uma espécie de construção arquitetural, de certa estrutura fundamentada muito mais no raciocínio. Desse modo, a comédia resulta de nossas apreensões e potências sensoriais, mas é construída e reelaborada de maneira racional. Preconceito sobre a comédia? Sinto isso na pele. Claro, existe uma real divisão entre as pessoas no que se refere às formas de relação, ao modo de conceber a vida... Mas como é ser o alvo do preconceito? Afinal, hoje, os Estados Unidos da América têm um presidente afrodescendente. Na comédia – pelo menos naquela que eu faço –, a gente falaria: “Tem um negão na presidência!...” Tem preconceito nos Estados Unidos da América? Tem! Mas, por outro lado, existe um caminho de luta e de conquista que vai se transformando. Muitos – eu inclusive! – dos que trabalhamos com arte, imaginamos que por meio do nosso fazer, da nossa ação, podemos ajudar a transformar muita coisa, incluindo o modo de nos relacionarmos. A necessidade de criar e produzir arte também se estabelece por certa inquietação, por certa insatisfação de como a realidade se apresenta para nós. Não se trata de uma insatisfação de quem nega a realidade ou de quem lhe vira as costas, mas de quem, ao contrário, se defronta com ela. Na arte, o potencial de comunicação é muito grande. Pela arte, podemos divertir, alertar, despertar, provocar pensamentos... Se você quiser alertar, quiser dizer alguma coisa. Claro, há muita ambivalência entre transformar e conservar. Muito depende de como cada um se posiciona. A visão e a prática críticas se caracterizam naquilo que mais

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me preocupa como criador. A carga de preconceito, que mencionei antes, é oriunda de uma divisão social e, por consequência, dos contrastes criados entre cultura popular e cultura de elite. A história e a divisão social, pela chamada luta de classes, do ponto de vista materialista, ajudam a entender esta questão. “Ah!... Tem uma elite aristocrática aqui oprimindo uma classe inferior burguesa num período; depois, tem a classe burguesa oprimindo a classe operária!...” Porém, não é tão esquemático. Aliás, tais esquemas de “submissão” de uma classe à outra são bem mais complicados de entender e de destrinchar. Hoje, um dos termos da moda é a tal globalização, bonito eufemismo para imperialismo. Vivemos em uma sociedade complexa e com injusta divisão social do trabalho. A industrialização caracterizou-se como uma das bases do pensamento marxista para análise do modo como ocorrem as relações de exploração. Mas já estamos em uma sociedade mais complexa, no capitalismo financeiro internacional, interligado virtualmente, bem mais complicado se comparado ao capitalismo industrial. Muitos não conseguem entender o que está acontecendo, tamanha a subjetividade construída como argamassa das relações sociais. Difícil separar a cultura de elite da cultura popular sem passar pela discussão da chamada cultura de massa, que é a produção da informação em massa e seu modo de fazer, que gera também um tipo de pensamento que molda a vida social. E o tratamento do interlocutor como massa produz enorme diferença. O teatro tem sua força, o circo tem sua força, e as artes cênicas em geral têm sua força, porque tratam o interlocutor diretamente. O interlocutor não é massa para uma peça de teatro ou para um espetáculo de circo. Ele é público. Público aqui abriga o sentido de diálogo, de alguém com quem se vai manter interlocução em embate: repleta de atritos, de cumplicidades, de contradições. Aquilo que se chamava mensagem, ou melhor, imposição da mensagem, ganha hoje outro significado, diferente do diálogo. E o que é massa? É um bloco, um conglomerado. A condição de conglomerado não gera nem permite o diálogo. O que se recebe

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é o impacto, sob pressão, de uma profusão de coisas que negam o direito às manifestações que compreendam a troca de fato. Então, qualquer evento que ultrapasse o limite de mil pessoas se aproxima desse conceito de massa, porque, na maioria das vezes, ele tende a corresponder a isso. Não estou, absolutamente, justificando que a gente deva fazer apenas o contrário, que também pode ser uma grande besteira, adotando as teses que, em certa ocasião, Jerzy Grotowski andou defendendo: de o público ser testemunha. A meu ver, isso é coisa lá para Jeová e a turma dele. Como disse, o artista estabelece diálogos. Se perdermos isso, poderemos perder, também, o próprio espaço do teatro, o espaço do circo, como atividades de interlocução pública. Desse modo, se nos submetermos à tese da cultura de massa, segundo a qual se deve impor a nossa mensagem e não estabelecermos o diálogo, tenderemos a fenecer, a acabar, a perder o sentido. Portanto, nós, que trabalhamos com a comédia, precisamos entender claramente como nos relacionamos com a questão da cultura popular, e não confundi-la com a cultura de massa. Ou seja, compreender aquilo que emana e que vem de uma formação mais popular e aquilo que é mais erudito. O que é erudito? Em tese, o conceito diz respeito a quem detém conhecimentos amplos e mais específicos sobre uma gama de assuntos. Por conta disso, pode-se afirmar que, com relação à cultura popular, há muitos eruditos. Gente que tem conhecimentos específicos sobre um aspecto ou outro, tantas vezes articulados. Nessa medida, um comediante popular é um erudito da questão cômica. Então, todos, de um modo ou de outro, detêm um tipo de saber específico. Não é o conteúdo do saber, portanto, que o faz erudito. É preciso transitar dialeticamente e considerar os processos de elaboração artísticos, conforme o saber que abarcam. Portanto, afirmações segundo as quais tudo já está feito e que não teríamos condições de superá-las, típicas do pós-modernismo, são grandes bobagens. A arte tem a necessidade de se sentir provocada permanentemente pelo conhecimento. Acredito que fenômeno estético seja, principalmente, deixar

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que um determinado conteúdo social, ligado ao sensível, venha à tona. Entre os povos indígenas ou em uma sociedade pós-industrial complexa como a nossa, quando algum tipo de sensibilidade se manifesta, inquietando-nos em relação à realidade que se vive, ela se destaca e pode se tornar um fenômeno estético. Tal manifestação sensível pode se transformar em arte ou não. Ela pode ser enquadrada em determinadas convenções, nem sempre preestabelecidas, mas que podem se inserir em um contexto de compreensão social, com valor simbólico próprio. Aí, ganha o status de arte, ainda que não se pretenda como tal. Se, por exemplo, eu quebrar uma determinada convenção, como na palestra que deu origem a este texto, sem combinar regras antes, e surpreender a todos, teremos uma expressão de cunho artístico em um ambiente não artístico. Se, por algum truque, eu fizer com que o microfone que está à frente dos palestrantes suba repentinamente, estou estabelecendo uma brincadeira, um jogo. Todos os presentes poderão entender que, mesmo parecendo irreal, houve uma combinação para isso. Ou seja, as convenções se constroem como que subentendidas coletivamente. O que aconteceu não foi arte em si, mas uma expressão de cunho artístico em outro contexto. Por outro lado, penso que é muito comum o artista, mesmo não querendo, acomodar-se, moldar-se ao viver, deixando de lado, na própria arte que produz cotidianamente, a expressão artística por repeti-la em série, conforme o modelo industrial. Tal acomodação, evidentemente, promove perda de espaço e pode representar submissão à sociedade de massa, subordinação aos interesses da sociedade industrial. O que é um pão de forma? A produção em série de fatias iguais, não para saciar apenas a fome dos cidadãos, mas para permitir sua comercialização em grande escala. O que é um sanduíche de uma rede de fast food? Ninguém tem dúvida sobre o seu sabor, que resulta de um processo de produção industrial. Esse lanche não é como o do boteco do Zé, onde se pode pedir uma cebolinha a mais, em que o “sujo da chapa” ajude a dar um sabor, digamos, mais especial.

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Há diferença, sim, entre o pensamento produzido por uma sociedade ligada ao comércio, ainda medieval, e outra mais contemporânea, ligada à industrialização. Há quase uma luta entre um mundo higienizado, padronizado, asséptico, limpo... Somos condicionados a depositar grande grau de confiança nesse mundo industrial em detrimento do mundo ligado ao comércio, em que as relações são mais pessoais. Hoje, todo mundo entra no carro e tem absoluta confiança que os parafusos não vão se soltar. Mas, como todos sabemos, além de robôs, foram seres humanos que fizeram aquilo! Tem parafuso que vai soltar, sim! Tem coisa que vai falhar, sim! Somos submissos quando confiamos no pensamento produzido industrialmente. Não nos questionamos sobre as relações humanas envolvidas no processo industrial, nem de um carro, nem de um programa de TV. Ambos são resultado de um mesmo modo de produção e abrigam o mesmo pensamento. O comediante trabalha exatamente com essa ideia da falha humana, do erro. Mas não do ponto de vista da simples quebra da convenção, da redução da quebra da automação de um gesto que nos surpreende. Aqui é preciso apresentar algumas críticas à visão bastante limitada de Henri Bergson, na medida em que ele não contextualiza as situações que aborda, tomando-as apenas sob a ótica de uma quebra de sequência, como se fôssemos máquinas de uma indústria que não atendem à repetição exigida. Ao lidar com o cômico, a partir de uma visão mais abrangente, dialética e materialista, Mikhail Bakthin insere o gesto risível no contexto histórico, compreendendo uma expressão de cunho artístico e, por consequência, um fenômeno estético. O palhaço só existe porque existe o erro: se o ser humano fosse perfeito, ele não existiria. O palhaço erra de acordo com certas convenções e valores impostos socialmente. E ele transita pelo erro, insiste nele e dele não tem tanta dimensão: isso gera o riso. Rimos exatamente disso: de nossa incapacidade de sermos perfeitos. Da nossa incompreensão de sermos apenas uma parte da natureza.

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O ser humano costuma acreditar que é maior que a natureza, mas a natureza é infinitamente maior, senão não existiria o cosmos, não existiria o átomo. O ser humano tende a necessidades objetivas de reprodução do seu pensamento. E tudo o que se pensa está fundamentado em regras e em sua reprodução. O que faz o comediante? O que o artista cômico faz? O que o palhaço faz? Sem tantas sutilezas, simplesmente puxam o cadafalso e dizem: “Olha, você caiu em si, tá vendo? Você faz parte da natureza, escorrega na casca de banana, tropeça, cai...” Donde vem a importância da questão física, do humor corporal, porque ele mostra o nosso lado animal de maneira mais imediata. O imediato é muito importante para o humor: o humor só funciona com tensão e alívio. Se na tragédia existe a junção das sensações de horror e de piedade, na definição aristotélica, essa junção é o ponto culminante da tragédia. Já para a comédia, para o humor de maneira geral, é a repentina substituição da sensação de tensão pela sensação de alívio, sem um único ponto culminante, mas vários instantes de ruptura da tensão, que produzem o riso. O comediante induz o público a isso. Há um tipo de tensão, o público crê que a velhinha é real, o comediante alimenta o jogo, cria e conduz a tensão. Até que puxa o cadafalso. Tem uma brincadeirinha que faço, sobre o poder do comediante, que talvez ajude a esclarecer o que afirmo. Em característica relação ator-público, apresento uma palavra e a pessoa responde com o seu oposto. Assim, nesse diálogo, ocorre quase sempre mais ou menos o seguinte: - Alto? Na plateia, alguém responde: - Baixo. Sigo com o jogo: - Branco? - Preto. - Largo? - Estreito. - Verde? - Amarelo?... Vermelho?... - Não!... O oposto de verde é maduro.

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Claro, fiz uma malandragenzinha. Responder amarelo é quase natural para todo mundo, pois antes de perguntar do verde eu perguntei do branco, que sugeriu o preto. Ocorreu aí uma espécie de indução ao erro e, de certa forma, isso significa poder. A arte é um exercício de poder. O comediante – e qualquer forma de comunicação – tem essa capacidade diante de uma plateia: a possibilidade de manipulá-la. Desse modo, voltando ao começo do texto, preocupo-me muito com a questão da visão crítica. Acredito que, em minha geração, não há tantos atores com formação tão ampla que propicie uma visão crítica. Inúmeros, assim como eu, não estão satisfeitos com o mundo que está aí. Mas, o que fazer para transformá-lo? É possível transformá-lo? As pessoas estão interessadas nisso? Poucos pensam assim. E as gerações que estão vindo? Talvez eu possa formular desse modo: o que querem os estudantes de teatro hoje? Que perspectiva eles têm? Que relação eles estabelecem entre seu futuro fazer teatral e o mundo? Porque é isso que pode determinar o saber fazer de tantos que aí estão. Temos, hoje, grandes comediantes... Muitos deles são extremamente conservadores e têm um humor muito reacionário, um humor que reafirma e endossa preconceitos, um humor que compactua com uma série de falcatruas da sociedade. Em geral, querem que tudo fique como está. Estabelecer rupturas na arte é difícil! No tempo em que o mercado dita regras também a coragem virou mais um produto. Mas, se não houver coragem real, ao se estabelecer um status, a tendência é de nele querer permanecer. Esse status é estável, individualista, confortável... Conduz o acomodado até o fim da vida, de modo agradável. Porém, nossa relação com o mundo não consegue ser tão agradável assim todo o tempo. A necessidade de enfrentamento sempre volta. Quando penso no que significa construir uma personagem, a persona que origina a personagem está sempre submetida a algum contexto. Pode ser uma trama mais complexa ou uma historinha simples, a personagem estará submetida a situações.

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Se não for alta comédia e, sim, uma farsa, com palhaços, por exemplo, será diferente. Convém ressaltar que o palhaço é um arquétipo: ele é metade aquela persona e metade sua própria persona, a persona do ator que conduz o arquétipo. Não existe um palhaço igual a outro porque as pessoas que o representam são diferentes. Dessa forma, cada um apresenta sua visão de mundo. Palhaço, em essência, é uma coisa só. No entanto, os diversos palhaços são diferentes, pois cada um representa o arquétipo à sua maneira. A visão crítica de quem representa um palhaço, para mim, é muito importante, porque houve grande disseminação da ideia de que a persona do palhaço é boazinha, simpatiquinha... Sem contar a difusão do termo clown, que considero uma bobagem utilizá-lo, porque temos o seu correspondente em português. Nem discuto mais isso, porque me parece coisa superada. O que cabe observar mesmo é o seguinte: se quem estiver ali, apresentando o palhaço, não tiver visão crítica, vai fazer a mesma bobagem de sempre... Vai achar que está sendo legalzinho, bonitinho, bacaninha... Para quem achar que veio ao mundo para ser bacaninha, legalzinho, bonitinho, há outras tantas profissões. O palhaço é torto, desajeitado. Ele não é bonitinho, ele é tortuoso, é feio, é distorcido, é grotesco. É também do universo da bufonaria. Por conta de o arquétipo se estruturar a partir dessa concepção, ele se rebela, não se submete às situações. O palhaço não pode ser submisso, assim como não deve ser o ator que conduz seu arquétipo, uma vez que dividem a mesma persona. Jorge Loredo, comediante que faz o Zé Bonitinho, tem uma frase que eu adoro. Ele costuma dizer que: “Comediante não se dirige; no máximo, se controla!...” Na verdade, certo tipo de comediante não se submete às situações. Não adianta pegar essas altas comédias, essas comédias elevadas, cheias de situações “arquiteturadas” e colocar um comediante popular ali. Ele vai escapar daquilo e vai propor coisas, ele vai querer subverter aquilo. Esse ímpeto mais subversivo do comediante popular, do palhaço, é o que me interessa. De certo modo, é isso que possibilita uma visão

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crítica diferente, sem necessariamente decorrer de uma formação determinada. Eu, por exemplo, tenho formação declaradamente marxista e me considero anarquista acima de tudo. Minha formação, minha visão de mundo, é muito materialista. Eu analiso e enxergo as coisas desse ponto de vista. Penso que as novas gerações leem pouco. Complicado isso. Como é que alguém acredita que possa ser um artista se não lê? Eu travei uma briga bem interessante com Nelson de Sá, crítico por dez anos na Folha de S. Paulo. Fizemos faculdade juntos. Ele participou de um grupo de teatro da Faculdade de Jornalismo durante três meses. Dois anos depois de formado, sem nenhuma experiência, ele passou a assinar como crítico do jornal. Encontramo-nos quando da vinda do Dario Fo ao Brasil, no Teatro Mars, em São Paulo. Quando Nelson veio me cumprimentar, disse que era difícil fazê-lo. Fui bem grosso com ele. Afinal, ele não tinha vivência pessoal, não assistia a espetáculos... E se meteu a ser crítico?! Que historia é essa?!... Tempos depois, ele mesmo me contou que havia interrompido as atividades que desenvolvia por um determinado tempo por causa dessa briga, e foi estudar crítica... Com Paulo Francis (que Deus o tenha!) nos Estados Unidos da América. Ao retornar ao Brasil, ficou um tempo com Zé Celso Martinez Corrêa. Acho que o Zé deu uma certa mexida, uma certa subvertida naquele ex-estudante de jornalismo, acomodado, que achava que teria para sempre o empreguinho de crítico no “maior jornal do País”. Nélson nunca foi bom crítico, mas ele melhorou muito como intelectual depois de ter estudado com Paulo Francis, e muito como ser humano depois da experiência com o pessoal do Zé Celso, porque uma rebolada ajuda muito na vida! É isso! Várias pessoas, quando reproduzem alguns modelos, acabam fazendo coisas extremamente conservadoras, estáticas, paradas. Menciono os críticos porque eles me amam muito porque eu sempre os critico. De qualquer modo, eu até consigo tomar café ao lado deles, conversar. Não há problema nenhum, não parto para as questões físicas. Aliás, a porrada dada em palavras, por seu eco, dói muito mais.

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A Academia, por exemplo, nunca gostou muito da comédia. Talvez aceite e, algumas vezes, estude a comédia elevada. Para alguns críticos e acadêmicos sempre foi difícil aceitar certa produção mais popular, especialmente se tiver uma carga burlesca, sexual ou escatológica. Ampliando um pouco a questão da academia – porque esta me parece uma questão importante –, no final da Idade Média e início do Renascimento, surgem as primeiras universidades. O que é a universidade? Uma visão universal sobre o mundo, sobre a história, sobre as ciências, sobre as artes. É a ampliação da capacidade de visão: o mundo que passa a ser revisto a partir da ótica humanista. O que são as universidades hoje? Elas atendem às necessidades do sistema econômico vigente e dominante, do sistema capitalista, cuja divisão de trabalho é cada vez mais setorizada. Então, a tendência da universidade, hoje, é não ser universal, mas específica. No contexto atual, as universidades atendem às necessidades do mercado, no qual as pessoas vão se inserir e nele ficarão reproduzindo modelos de produção, de um pensamento distante do humanismo e mais pragmático. A universidade contemporânea não tem mais o potencial subversivo de outros momentos. Uma visão ampla, aberta, por meio da qual uma pessoa seria preparada para entender e se inserir criticamente na sociedade. É bom ressaltar que das universidades podem sair também artistas submissos, porque eles podem estar ali fazendo curso de teatro, pensando em entrar no mercado da TV, porque a TV é produção em série, produção de massa, produção industrial. Vivemos em um sistema capitalista, que começa a se constituir a partir de nichos mercantis. O teatro ainda tem espaços, a despeito dos nichos mercantis. E o que acontece? Há uma tendência a um pensamento crítico que busca subverter as regras da indústria cultural. Existe a opção de se usufruir o que está dado, sem perder a visão universal e crítica. É preciso se contrapor a uma determinada ordem estabelecida pelo modo de produção vigente, que domina o pensamento.

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Nessa paisagem, mesmo com essa separação e apreensão mais crítica do mundo, a especialidade ganha cada vez mais força. Por que ela se torna cada dia mais importante? Quanto mais setorizado um tipo de atividade, mais ela passa à condição de engrenagem de uma grande máquina. Quase não se enxerga o trabalho inserido nessa máquina perversa; de fora, menos se pode observar a própria máquina, e mais fácil se torna uma atividade “dominada”. A tendência do teatro durante muito tempo tem sido também a questão da especialidade. Surgiram inúmeras oficinas, de tendências de trabalhos diferenciados de corpo, de voz... enfim, várias técnicas. A busca pela especialidade gerou, em determinado momento da nossa história, certa robotização do fazer teatral. Conquista de certos diretores – para mim, “diretores ditadores” –, aos quais os atores eram absolutamente submissos, sobretudo na década de 1980. Felizmente, na década de 1990, aqui em São Paulo, houve um impulso de formação de grupos com apreensão e prática mais críticas. Muitos desses grupos ficaram mais atentos ao que acontecia. Passaram a se reunir, a discutir publicamente, a tentar interferir mais politicamente. Um dos resultados foi o movimento Arte Contra a Barbárie. As discussões que aconteceram a partir daí retomaram o contexto como parte de um processo – o que não é pouco! –, no qual o caráter estético precisava ser reinserido em seu âmbito político. Tratava-se, naquele momento, da percepção de que discutir o teatro significava pensar a produção em termos sociais. A questão da indústria cultural precisava ser redimensionada criticamente para a sobrevivência de grupos, cuja percepção e prática estruturavam-se no teatro e não como mais uma peça da grande engrenagem industrial. As coisas têm estado muito confusas. Parece que poucos têm, de fato, exercitado o raciocínio crítico, ou mesmo a sensibilidade. Claro, todos sabem que arte é sensibilidade, mas esse trabalho tem se desenvolvido? Atualmente, os trabalhos de palhaço aos quais assisto me parecem tão voltados para o interno, para o individual... Talvez nem psicólogos consigam resolver isso. Os atores não manipulam

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os arquétipos, mas são manipulados por eles, conduzidos como se estivessem “possuídos” por uma força sobrenatural. Tem gente que põe o nariz de palhaço e faz aquela vozinha e tal. E eu pergunto: – O que foi? O plástico do nariz abduziu você? Você não consegue conversar comigo de igual para igual? O palhaço precisa conversar de igual para igual com o público! Esconder-se atrás de uma máscara e vender a falsa ideia de troca é puro charlatanismo. Oriundo de um individualismo, exercício de si voltado para si, vendendo a ilusão de uma relação honesta com o interlocutor, o público. É difícil estabelecer diálogos, ou melhor, não é fácil. Significa remar contra a maré. Relações coletivas exigem enfrentamento, principalmente das nossas contradições individuais e do pensamento hegemônico que nos pede a toda hora que sejamos individualistas. Apesar de ser quase impossível não estar ligado a um grupo, estar em um grupo é muito complicado, mas bem menos difícil do que estar sozinho. Aqui em São Paulo temos uma fonte de financiamento para os grupos de teatro, que é a Lei Municipal de Fomento ao Teatro. Dez anos antes a situação não era assim. Formado, o estudante de teatro partia para os testes... Seu maior trunfo ou esperança era ser conhecido por um grande diretor. Da década de 1990 para cá, os grupos formados criaram demanda, preencheram lacunas e descortinaram novos caminhos, pela força gerada pelo coletivo. De 2000 para cá, com a Lei de Fomento, os paradigmas do modo de produção teatral foram se alterando. Se esse processo recente gera outro conteúdo, se isso é realmente contundente como proposta estética, como visão de mundo, como interferência na vida da sociedade, aí teremos de deixar que a história seja analisada mais adiante. O que não podemos perder é o constante questionamento sobre esses elementos todos. Há pouco tempo homenageamos José Renato que, entre outras coisas importantes, fundou o Teatro de Arena. No início, ele foi meio reticente: não queria ser tratado como peça de museu. Então, na cerimônia, fez questão de lembrar que aquela homenagem se dava

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porque estava atuante; porque não havia desistido do teatro. Por meio de algumas de suas palavras ficou claro que se nós não nos contextualizarmos como artistas, se não olharmos para o mundo e nele nos envolvermos, nada fará sentido! Discutir procedimentos técnicos do comediante? Discutir a criação da personagem cômica? Não são poucos os que gostam disso. Pelo meu ofício penso, reflito, vejo o mundo e nele me vejo, busco compreender as dimensões do ser humano e seus embates, os conflitos mais perenes e aqueles que perduram por toda a civilização. Tento, então, praticar uma troca, um diálogo cômico-crítico com meu tempo e com aqueles com quem divido esses precisos instantes da vida. É isso!

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Dilemas para a atuação cômica por Mario Fernando Bolognesi15

As escolas de teatro, no País, dispensam pouca atenção ao universo cômico. Quando muito, alguns comediógrafos e suas obras são tratados do ponto de vista historiográfico. Experimentações cênicas, baseadas na linguagem cômica, são raridades. O assunto é pouco tratado no âmbito da interpretação e da encenação. Tal ausência torna-se ainda mais evidente quando se trata do cômico popular. Para uma primeira investida em torno do universo cômico, no âmbito de uma poética cênica, ao menos três aspectos necessitam ser ponderados. O primeiro deles é o necessário vínculo do ator cômico com algo denominado personagem-tipo, que está próximo do arquétipo e não do estereótipo. O segundo diz respeito ao corpo propriamente dito, que deve explorar o grotesco e o ridículo. O terceiro tópico, importantíssimo e de extrema dificuldade para atores formados na tradição do drama realista, diz respeito à triangulação, uma palavra muito simples de entender porque ela remete a triângulo. Transposto para a cena, um dos vértices do triângulo é justamente o público, e os atores devem instaurar uma comunicação direta entre palco e plateia. Professor do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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Esses tópicos são fundamentais para se estudar e sistematizar um arsenal de procedimentos, um material experimental que propicie o avanço e a superação das dificuldades da interpretação cômica. Evidentemente, esses procedimentos caminham na contramão do ator interiorizado e psicologizado, que é o comum nas escolas de teatro. Note-se que, em São Paulo ao menos, a maioria das escolas foi concebida e implantada a partir desse prisma, cujo paradigma prevê uma consciência individual que se materializa numa personagem, que se orienta a partir de uma subjetividade. O pressuposto inerente a esta concepção é o do sujeito e seu livre arbítrio, mais especificamente ainda o de um indivíduo particularizado. Este indivíduo se porta como organizador de toda ordem mundial (material e espiritual), ou seja, o mundo, as pessoas e as coisas se organizam a partir de um “eu” subjetivo e particular. A investigação em torno do ator cômico deve desvencilhar-se desse paradigma e buscar a coletividade e seus anseios. A manifestação cômica popular tem respaldo em ideias e ideais coletivos. Portanto (e aqui se esboça o primeiro tópico), o trabalho do ator vai ao encontro da personagem-tipo. O que seria, grosso modo, essa personagem-tipo? Ela não é uma personagem de nuanças. Ela não é uma personagem cujos desejos se sedimentam na subjetividade e na individualidade do ator. Ela é permeada por questões diretamente materiais e corporais. A personagem-tipo diz respeito, principalmente, a uma síntese de conteúdos psíquicos e sociais. Longe, portanto, do estereótipo, que é a roupagem primeira, imediata e facilitadora.16 A personagem-tipo está intimamente ligada a arquétipos. Os arquétipos são conteúdos profundos que têm ressonâncias para além de fronteiras históricas e geográficas e que alcançam a psique a mais profunda, alcançando aquilo que Carl Gustav Jung chamou de inconsciente coletivo. Jung, o investigador da psicologia coletiva, aponta como um dos arquétipos o trickster. (JUNG, 2000: 249-266) Este arquétipo tem

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Consultar Daniel Marques da SILVA. Precisa arte e engenho até...: um estudo sobre a composição do personagem-tipo através das burletas de Luiz Peixoto. Rio de Janeiro: Centro de Letras e Artes – UNIRIO. Dissertação de Mestrado em Teatro, 1998, p. 37-45.

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como características a malandragem, a perversidade, a ingenuidade; ele é brincalhão, bobo, astuto etc. A rápida descrição já evidencia a complexidade. Transposto para parâmetros brasileiros, é o Exu, dentre os Orixás, o Pedro Malasartes, as diversas personificações de caipiras que temos presentes na cultura brasileira, as Catirinas, Mateus, as várias modalidades de palhaços etc. Uma das representações imagéticas do trickster é o coringa do baralho, carta que tem a primazia de entrar em qualquer lugar, em qualquer hora (e isso é sintomático), com regras elásticas. Devese notar, também, que Jung utiliza um termo da língua inglesa – trickster – para tal arquétipo. Ele aponta o clown ou palhaço como manifestação concreta desse arquétipo. Esta observação é relevante porque há uma tendência generalizada de considerar o clown como sendo o arquétipo. Praticamente, toda a Europa adotou o termo inglês clown, inclusive os franceses, que são rigorosíssimos com a língua. Mas o clown é uma manifestação do trickster, isto é, um momento histórico em que essa figura se materializa enquanto personagem cômica de ressonância coletiva. Evidentemente, há outros momentos e outras manifestações desse trickster como, por exemplo, a partir da commedia dell´arte, com Arlequim, Brighella, Pantaleão etc. Esses personagens são conformados pelo ideário do momento histórico que os singularizou. Ao observar a sociedade aristocrática pós-renascentista pode-se identificar nos grupos de personagens da commedia dell´arte a presença dos principais extratos atuantes e determinantes na estrutura social: a aristocracia, a burguesia crescendo e se enriquecendo (e sendo satirizada) e a plebe. Asociedade de classes pontuou um refinamento, um afunilamento desta estrutura cômica, a ponto de chegarmos ao espetáculo circense, a partir de meados do século XIX, com uma dualidade fundamental, expressa no Clown Branco e no Augusto. Eles são abstrações, no registro cômico, da sociedade organizada em torno de classes sociais. O Branco é todo bordado, pintado, bem-vestido, elegante, arrogante, autoritário, quer se passar por inteligente, portador da razão etc. Essa autoridade encontra sua oposição (e, ao mesmo tempo, seu complemento) no palhaço, no Augusto de nariz vermelho,

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desajeitado, tolo, que encontra dificuldades com o racional etc. Mas o bobo consegue dar saltos de extrema inteligência e superar seu estágio inicial de tolice, a ponto de se portar como o malandro, o intruso, e usar esses artifícios como “armas” para se defender diante da dominação que o Branco lhe impõe. O palhaço entra em qualquer espaço social e não tem necessidade de se explicar. O mesmo não ocorre com outras personagens de outras épocas e sociedades. Por exemplo, se um bufão entra em cena, por mais que tenhamos na memória algum registro dele, é necessário que ele diga quem é, para quê veio, o que está a fazer no espetáculo, qual seu lugar no enredo, quais suas relações com as demais personagens etc. O mesmo ocorre com um Arlequim. O palhaço não tem essa necessidade: ele está sedimentado na sensibilidade e na forma de percepção do mundo atual – ele cala no inconsciente coletivo. Ele pode, a qualquer momento, adentrar em lugares e situações, subverter a ordem, mostrar sua tolice para, por intermédio dela, descortinar um pouco nossa própria tolice. Esta é uma característica do arquétipo do trickster que está presente nos palhaços. O segundo aspecto a ser tratado está intimamente ligado à manifestação deste arquétipo, que é pouco espiritual, pouco espiritualizado e nada subjetivado. Ele é corpo. A todo o momento ele tem fome, tem sede, tem carências infindas a permear sua matéria frágil. Tomemos por exemplo Pulcinella. Mesmo de barriga cheia, Pulcinella não pode ver uma macarronada à sua frente que se entrega a ela. Ele já é gordinho. Ele pode estar empanturrado, ele pode vir a vomitar, como acontece, mas come. Porque ele não sabe quando é que vai comer de novo. É uma lógica muito concreta, real, calcada no corpo. E realista. O palhaço é um pouco disso também: ele tem fome de tudo. Aliás, as personagens cômicas populares têm uma fome generalizada, principalmente de sexo. Eles costumam estar eternamente no cio. Personagens cômicas populares fundam-se em carências, em ausências, em sofrimento e na exclusão. Na Idade Média, as situações cômicas recebiam sua maior expressão em ocasiões festivas. A festa era importantíssima. A festa medieval tinha uma cosmologia a sustentá-la. As personagens cômicas

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estavam ligadas às festas, principalmente às festas primaveris, associadas ao ciclo da fertilidade, da fartura, da comida, da bebida, cujo símbolo era o falo, em referência à fertilidade, à procriação, à terra. O corpo grotesco e ridículo caracteriza-se no antídoto do corpo sério, bem comportado, consolidado pela moral, servo das instituições que formam e conformam o indivíduo para a vida em sociedade. Mas, tudo que forma, também deforma. Ainda que repressiva, a sociedade medieval apresentava momentos de extravasamento, e muito deles se davam por meio da linguagem cômica, especialmente quando tornavam evidentes as necessidades corporais: comer, beber, cheirar, tocar, evacuar, urinar, praticar sexo etc. Ou seja, tinha-se um jogo de oposição e de complementaridade entre o baixo e o alto, entre o corpo e o espírito, entre a matéria e a alma. A ruptura desse jogo dialógico entre o alto e o baixo começa a se esboçar a partir do Renascimento e se consolida com a sedimentação da sociedade de classes. Basta lembrar que, na Antiguidade Grega, os concursos dramáticos compreendiam uma trilogia, seguida de um drama satírico. A leitura de uma obra como Édipo rei, por exemplo, a partir de um prisma subjetivo, com ênfase na trajetória do herói, só se tornou realidade com o emergir do sujeito como categoria de pensamento. A catarse, nesse aspecto, está ligada à finalização da trilogia, complementada com o drama satírico, uma espécie de arrefecimento dos sentimentos que, nas tragédias, são expostos à condição hiperbólica. A catarse17 se completa como esse momento de superação. Até a época de William Shakespeare, a apresentação de peças “sérias” era permeada de atos cômicos. Durante a maior parte da história do teatro ocidental o cômico e o não cômico, o sério e o risível, o alto e o baixo, o sublime e o grotesco sempre caminharam lado a lado, como dados e visões complementares. O fenômeno O termo catarse tem sua origem na medicina grega e diz respeito a uma incisão no corpo para a retirada dos excessos de fluidos desnecessários. Essa ideia foi absorvida por Aristóteles para entender este fenômeno chamado teatro. Com isso, por intermédio da catarse, o objetivo da tragédia não é a identificação com o herói, mas sim o reconhecimento e a superação do erro do herói, com vistas à retomada do equilíbrio, para recuperar o “reto raciocínio”.

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que se efetivava a partir da oposição e da complementaridade, a partir do século XVII, com a constituição do chamado drama, tende à separação, uma separação que coloca o corpo cômico como desprezível e rebaixado. O relegar do corpo ao esquecimento quis dar a entender que não há mais necessidade de comida, porque isso já não é mais problema. Não há mais necessidade de bebida. A burguesia, uma vez alçada ao poder econômico e depois político, ideologicamente, difundiu a ideia da superação dos problemas sociais. Grosso modo, a ideia posta na ordem do debate ideológico era a de que, na sociedade de classes, ninguém passa fome, ninguém passa sede, todos têm instalações sanitárias adequadas etc. Com isso, selou-se a dicotomia entre o corpo e o espírito, e era tarefa do drama abordar os atos e processos nobres do segundo. O corpo esquecido pelo drama, grotesco, cômico, ridículo, sem peias e dionisíaco é de fundamental importância para a atuação cômica. A personagem-tipo, fundamentada no arquétipo, materializa-se em um corpo grotesco e ridículo O principal instrumento para a atuação cômica – e aqui o terceiro ponto a ser abordado – é a forma comunicativa, que tem como base a triangulação, que se efetiva com a plateia e por intermédio dela. Inclusive os momentos de diálogos explícitos entre personagens em cena podem ser efetivados sem que um ator se volte ao outro.18 Em outras palavras, a cena cômica dispensa a quarta parede. O teatro cômico, nesse aspecto, foge dos cânones da apreciação distanciada. Ele é intrinsecamente comunicativo. Não há separação entre a cena e o público. Evidentemente, há uma situação de espectador e uma situação de atuante; um público e um ator em cena. A cena cômica tem a tarefa de trazer o público para seu interior. Ela não se dá na penumbra. O cômico é a luz do sol. O cômico é a luz aberta – inclusive, às vezes, até na própria plateia. O cômico necessita de uma lógica interna para a qual o público é chamado a participar. Essa lógica é a da narração, a do contar uma história, que necessita da atenção e envolvimento

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Esta é uma das várias possibilidades de triangulação. Consultar Rubens J. S. BRITO. Teatro de rua: princípios, elementos e procedimentos – a contribuição do Grupo de Teatro Mambembe (São Paulo). Campinas: Instituto de Artes/Unicamp, 2004. Tese de livre docência, p.184.

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do público. Isto é essencial, pois um dos recursos utilizados para a eficácia cômica diz respeito justamente ao “desvio”, que permitem escapadelas do enredo, ou mesmo conclusões cômicas outras que não as esperadas pela plateia, cuja realização só ocorre plenamente se os pressupostos estiverem devidamente claros. O desvio cômico é justamente esta apropriação da lógica interna, ou seja, do exercício de raciocínio, para um derivado, para o terceiro ou quarto elemento, igualmente lógicos. O cômico transita no âmbito do entendimento e não do sentimento. Uma piada só é eficaz se ela não for entendida. O domínio desse jogo, lógico e racional, é fundamental para o ator que se volta à comicidade. Para prevalecer o jogo lógico, cujo objetivo é o riso, o ator deve estar sempre distanciado e, ao mesmo tempo, intrínseco à personagem. Para finalizar, é bom lembrar o apontamento de Walter Benjamin a respeito de Bertolt Brecht e seu teatro épico. Para ele, uma boa gargalhada evidencia a eficácia do teatro épico. (BENJAMIN, 1975: 132) O cômico e o teatro épico se aproximam. Nem sempre o cômico popular tem o mesmo intuito político do épico, mas os seus procedimentos são sempre épicos e comunicativos.

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Referências bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1993. BENJAMIN, Walter. Tentativas sobre Brecht. Iluminaciones III. Madri: Taurus, 1975. BRITO, Rubens José Souza. Teatro de rua: princípios, elementos e procedimentos – a contribuição do Grupo de Teatro Mambembe (São Paulo). Campinas: Instituto de Artes/Unicamp, 2004. Tese de livre docência. JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000. SILVA, Daniel Marques da. “Precisa arte e engenho até...”: um estudo sobre a composição do personagem-tipo através das burletas de Luiz Peixoto. Rio de Janeiro: UNIRIO, 1998. Dissertação de mestrado. 79

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O ator cômico e seus procedimentos

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por Neyde Veneziano19

Nossa proposta é refletir sobre o ator e a criação cômica. Será impossível não passar por Mikhail Bakhtin, pelos gregos, embora a ideia seja falar sobre o ator e seus procedimentos de criação diante das novas mídias e do panorama contemporâneo. Na verdade, essa ideia surgiu em outro seminário, no Rio de Janeiro, quando alguém fez a pergunta: “Afinal, o que é este humor contemporâneo?”. Frequentemente, tal questão volta porque é óbvio que as coisas estão mudando. Estão mudando porque há youtube, porque hoje tudo é muito rápido. Está mudando o perfil do teatro em São Paulo. Nosso teatro, por exemplo, está completamente modificado. Mas, para se pensar em procedimentos de ator, há de se pensar, antes de tudo, em dramaturgia (não me refiro à literatura dramática, mas ao conceito de dramaturgia-ação). Em primeiro lugar, lembremo-nos que tragédia e comédia sempre caminharam paralelamente. E que há dois polos na criação artística: existe a “coisa de elite” e a “coisa vulgar”. O lado vulgar (ou popular) não tem escrúpulos para falar das regiões baixas do ser humano, e canta a vida para dizer que ela vale a pena ser vivida. Esse lado popular evoca o simbólico falus erectus da comédia, indicando-nos que há matrizes, que existe uma mitologia já estudada, divulgada e encontrada no estudo de Bakhtin e seus seguidores: Professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), autora dos livros Teatro de revista no Brasil: dramaturgia e convenções; Não adianta chorar: identidade do teatro de revista brasileiro... Oba!; A cena de Dario Fo: o exercício da imaginação e De pernas para o ar: Teatro de revista em São Paulo (cujas informações completas constam em referências bibliográficas). 19

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A dualidade na percepção do mundo e da vida humana já existia no estágio anterior da civilização primitiva. No folclore dos povos primitivos encontra-se, paralelamente aos ritos sérios (por sua organização e seu tom), a existência de cultos cômicos, que convertiam as divindades em objetos de burla e blasfêmia (“riso ritual”); paralelamente aos mitos sérios, mitos cômicos e injuriosos; paralelamente aos heróis, seus sósias paródicos. (1987: 5)

Durante muito tempo, o cômico popular foi o seu próprio dramaturgo. Mesmo se pensarmos que poderia haver um roteiro, poderia haver convenções, esse ator cômico sabia muito bem o que era uma situação, ele sabia muito bem o que era o desfecho, sabia muito bem o que era um clímax. Então, independente da própria dramaturgia do corpo, independente do que hoje se chama dramaturgia do ator, há provas de que existe consciência desse percurso, há elaboração. Existe o “saber” de como levar a plateia. Este saber foi, durante séculos, transmitido por meios não sistemáticos, por intermédio da transmissão oral, do treinamento no próprio trabalho, da passagem de conhecimento e de truques por familiares ou pelos mestres. Comecemos pela Comédia Antiga e Comédia Nova. (Não vai ter jeito! Eu sempre peço desculpas por perseguir o eixo temporal e histórico, mas essa ainda é a melhor forma para se entender nossos processos nos dias de hoje). Pois bem, se puxarmos o fio da história, veremos que há dois caminhos paralelos. As comédias de Aristófanes (Comédia Antiga), por exemplo, eram comédias políticas, fragmentadas, em que ele fazia sátiras por meio de sósias paródicos, quer dizer, caricatura viva mesmo. Ele escolhia um político importante da época, ou uma pessoa importante – governador, por exemplo –, ou alguém de grande influência e poder sobre o Estado e fazia a imitação. Apelava mesmo. Elaborava quase um discurso direto. Nesse caso, Aristófanes não estava fazendo uma comédia de situação, nem uma comédia mimética (imitação da vida). Ele pretendia uma comédia fantástica, na qual apareciam animais falantes e indivíduos que desejavam o impossível. Tudo era fantástico, tudo era hiperbólico. Estava ali a semente do teatro de revista.

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Tomando-se por base ao menos oito das onze comédias de Aristófanes, que chegaram até nós, pode-se verificar, de imediato, que a Comédia Antiga se divide em duas partes bem distintas: a primeira é um “agón”, uma luta, um debate; a segunda é uma revista (grifo nosso). A primeira comporta uma ação, com o prólogo, o párodo, o “agón” propriamente dito, a parábase e o êxodo, que foi deslocado para o fim da comédia; a segunda parte é uma série de “sketches” que esclarecem o sucesso da ação desenvolvida na primeira. Nesta, o coro desempenha o papel de um verdadeiro ator; na segunda, ele é tão-somente porta-voz do poeta, que caustica seus contemporâneos com as chicotadas de sua crítica mordaz e ferina. Ora, estas duas partes tão diferentes não podem ter a mesma origem: numa, o coro desempenha o papel principal, na outra sua função é muito limitada e pouco importante. Em ambas, no entanto, encontramos a farsa, mas sob aspectos diversos. A presença da farsa é sobretudo visível na revista, em que surge, muitas vezes, um desfile de tipos grotescos que vêm provocar o protagonista. (BRANDÃO, 1985: 72-3)

Com a Comédia Média e a Comédia Nova surgem, na Grécia, e posteriormente em Roma, as “comédias de situação”. O representante grego mais expressivo é Menandro. Seguido por Plauto e Terêncio, em Roma. Os enredos baseavam-se em estruturas típicas daquelas “comedinhas” de situação – não estou falando no mau sentido –, com tipos individuais, com uma situação imprevisível e complicada para as personagens resolverem. Há travestimentos, há engodos, há quiproquós. Há vários tipos de situações, há um enredo (bem enredado) e todo o desenvolvimento da história. Documentos sobre os atores dessas épocas não há. Somente desenhos e alguns indícios. Então, quais seriam os procedimentos desses atores? Infelizmente, não há documentos sobre eles. Sabe-se que havia outros gêneros: os mimos, os sátiros, as atelanas. Nas atelanas, em Roma, os atores usavam máscaras expressivas definidas e fixas de determinados tipos. Pode-se dizer que muitos dos tipos da commedia dell´arte são tipos que já existiam nas atelanas. Acontece que a commedia dell´arte é o primeiro movimento profissional de teatro da história mundial. É o começo do teatro profissional organizado. Por isso, o maior interesse. Pelo movimento expressivo que provocou e pelo legado artístico que perdura até hoje.

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Claudio Meldolesi,20 da Universidade de Bolonha, afirma que Arlequim é produto do mercantilismo. Definitivamente, não devemos nos iludir pensando que só porque era commedia dell´arte, algo que está distante e é objeto de estudo, que era tudo maravilhoso e perfeito. De longe, nossa tendência é idealizar. A commedia dell´arte era comercial, sim! Era feita por pessoas que passavam fome e precisavam fazer teatro para ganhar dinheiro. Teatro era a sua forma de sobrevivência. Portanto, elas precisavam agradar a plateia, a que preço fosse. Há, ainda hoje, um grande preconceito com relação a tudo que esteja ligado a palhaços, comédias, revistas e bufões. A turma do teatro popular tem de estar sempre se defendendo. Há grande preconceito, principalmente porque nós – os professores mais velhos – estudamos nos livros do Sábato Magaldi e no do Galante de Souza, que manifestavam mesmo seu preconceito à comédia, considerando-a um gênero menor. Há inúmeros trabalhos mais recentes que apontam essas falas preconceituosas que eram, evidentemente, fruto de toda uma geração. Para alguns críticos antigos, só era bom o que era sublime, só tinha valor o que era escrito. Esses mesmos críticos e teóricos que, um dia, falaram mal, que um dia afirmaram que Arthur Azevedo era o responsável pela decadência do teatro brasileiro, por exemplo, foram revisitados e estudados. As pesquisas e os pensamentos modernos mostram que a oralidade e as formas populares de expressão artística guardam tesouros escondidos. A commedia dell´arte combinou a fantasia e a liberdade de Aristófanes com os procedimentos das ruas. Tratava-se de um teatro ligado à atualidade. E a rua era cheia de sensualidade. Cantava-se a vida, ao mesmo tempo que se lutava pela sobrevivência. Nesse momento, o ator começava a ter procedimentos próprios, com metodologia. Há documentos escritos por atores da época, relatos dos primeiros Arlequins, recém-descobertos, sendo estudados. Trata-se de verdadeiras poéticas de metodologias atorais. Então, aí, pode-se

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Professor do Departamento de Música e Espetáculo da Universidade de Bolonha, autor de diversos livros e artigos sobre o cômico e sobre Dario Fo.

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perceber que, de um lado, a Comédia Nova apresentava um humor mais verbal e, de outro, a Comédia Antiga deveria ter um humor mais corporal, pois enveredava para o fantástico: era ligada à atualidade, fazia caricaturas vivas (o que supunha uma construção física do ator na hora da imitação). A commedia dell´arte realiza uma fusão de vários procedimentos. Como todos sabem, havia as máscaras expressivas, os tipos fixos. O que eles faziam nas diferentes cidades (pois eram atores de rua, ambulantes...)? Eles se preocupavam em saber quem era o dominador da cidade, quem era o governador, quais eram os problemas. Porque se há gente muito rica e gente muito pobre, é sinal de que há explorador e há explorados. A quem, então, esses atores deveriam atacar? Isso era muito importante para ser incorporado ao enredo. Os atores procuravam incorporar fatos e pessoas à estrutura ou ao enredo predeterminado. E de forma improvisada. Mas não era um improviso vazio, que partia do nada, sem repertório, que muitos de nós conhecemos. Era um improviso estudado, já que cada uma das personagens tinha o seu arsenal, a sua forma de se expressar, as suas próprias palavras. Como no jazz, cada intérprete conhece muito bem as notas musicais, o ritmo, a melodia, as escalas. Repito aqui uma fala preciosa de Dario Fo: Quando falo de teatro all’improviso, falo de situações que, na verdade, não eram improvisadas. Falo da aplicação de toda uma bagagem sob o plano das frases, dos conceitos, dos diálogos fixos. Havia mais de cem variações sobre o tema do amor, do ódio, do ciúme e de tantos outros. Com certeza, surgiam improvisos que o outro ator, aquele que faz a escada, a personagem do lado, não esperava. Então, subitamente, contextualizavam, porque já conheciam de memória a situação e o desenvolvimento, retendo uma espécie de código encaixotado no cérebro, como bagagem de base. Assim como existia uma bagagem de memória de palavras, existia também uma da gestualidade e das posições. Isto é, quando um ator entrava em uma determinada posição, existia o contraponto da gestualidade, assim como existe na música. Como no jazz: quando um improvisa, o outro se adapta de súbito à improvisação, porque conhece o acompanhamento que deve realizar ou o contracanto da melodia. Então, era assim para os atores. (FO, apud ALLEGRI, 1990: 55)

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O ator da commedia dell´arte dominava totalmente o seu instrumento. Por isso, podia improvisar. No caso do teatro e, em especial da commedia dell´arte, o instrumento é o corpo, é a palavra. Um dos instrumentos que aprendiam era a estrutura da piada, o chiste, ou a gag (que na commedia dell´arte se chamava lazzo). Eram instrumentais corporais e verbais muito bem dominados. O jogo teatral era muito bem dominado, porque na hora de jogar a “bola” para o outro, imediatamente esse outro ator sabia pegar essa “bola” e usá-la de maneira expressiva e adequada, jogando-a para o espectador. Esse jogo segurava a tensão na plateia. A técnica da triangulação, especial para interpretação com máscara, funcionava a partir desse conceito. Então, tudo isso faz com que a gente reflita que – óbvio – não é do nada que as pessoas se tornam engraçadas. E que esse preconceito que os intelectuais tinham em relação ao riso está desgastado, pois há leis e procedimentos milenares para fazer com que o riso aconteça. Como afirma Cleyse Mendes21 sobre a besteira: “[...] intelectual odeia besteira, não gosta de rir à toa”. Talvez todo esse preconceito tenha existido porque não se pensava que houvesse tanto trabalho por trás, tanto estudo e tanto esforço. E também porque – óbvio – não se está falando de nada elitizado e nada aprofundado: a referência é o popular. Para chegar mais rapidamente ao Brasil, quando José de Alencar escreveu O demônio familiar, a crítica (e até Machado de Assis) se expressou mais ou menos assim: “finalmente, no Brasil, temos a comédia elevada” ou “a alta comédia chegou ao Brasil”. O que havia antes, entre nós, não era a alta comédia. De novo, voltamos ao que se fazia nas feiras, àquilo que se fazia nas ruas. De novo, o cômico e o popular correspondem à baixa comédia. Aliás, estes termos (“alto” e “baixo”) já implicam a ideia de “valor”. Já são uma espécie de avaliação: se é alta ou se é baixa, maior ou menor o valor. Foi exatamente por isso que, quando Arthur Azevedo começou a produzir as Revistas de Ano, a crítica se manifestou

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Professora de Dramaturgia na Universidade Federal da Bahia. Esta fala foi proferida no V Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas (Abrace), no grupo de trabalho Dramaturgia.

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afirmando coisas próximas a: “Artur Azevedo é responsável pela decadência do teatro brasileiro”. Ora, ele não pode ser responsável pela decadência, uma vez que não existia, no nosso teatro, um período tão áureo. Mas nós tínhamos tido, sim, autores significativos de comédias de costumes, como Martins Pena, entre outros. Quando começou a era das revistas – e elas fizeram muito sucesso – havia um desvio no rumo do teatro nacional que abafava, inclusive, as novas experiências realistas e naturalistas que aconteciam pelo mundo. Só Arthur escreveu 19 revistas, mais 25 comédias e 20 operetas e burletas. Não nos esqueçamos que ele era irmão de Aluísio Azevedo. Portanto, não se pode dizer que ele não soubesse nada sobre a estética naturalista e sobre os modismos no mundo. Durante o período das Revistas de Ano, as experiências naturalistas e realistas já estavam a todo vapor na Europa. Mas no Brasil só colava teatro ligeiro. Por quê? Porque teatro é diálogo com o público. Porque este teatro dialogava com o público, além de produzir fantasia, críticas políticas, enredos fragmentados, por meio dos quais ele fazia sátiras com sósias paródicos (a caricatura viva). Era dessa forma que Arthur Azevedo ganhava a vida. Também ele, como um Arlequim mercantilista, declarava: “Tenho muitos filhos”, “preciso ganhar a vida”. Ele até escreveu com o irmão Aluísio Azevedo, que era naturalista, uma peça intitulada O escravocrata. O enredo era assim: Havia uma mulher que era casada com um rico fazendeiro e latifundiário proprietário de muitos escravos. Mas ela se apaixonou por um escravo e a ele se entregou! Essa peça (como podem imaginar) foi censurada. Não se podia nem pensar em um triângulo amoroso com dois homens para uma mulher, porque um triângulo amoroso só aparece no Naturalismo. No Romantismo, são duas mulheres para um homem. No final, uma delas enlouquece, ou vai para o convento, ou morre. Só a outra é a premiada e se casa com o mocinho. E Arthur Azevedo, irmão do autor de Casa de pensão e de O cortiço, resolve fazer Teatro de Revista porque ele sabia que era isso que daria certo naquele momento. O que significa esse tal humor fragmentado da revista (que vem lá de Aristófanes), de ter um ator para costurar a cena ou uma

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espécie de apresentador da revista e para onde ele vai? Esse humor tem a ver com o circo, com atrações, com esquetes, com números independentes. Esse humor fragmentado, hoje, migrou para o youtube. Passou dos palcos da revista para a internet. Quer ver uma piada do motoboy? Vai lá e liga. Quer ver o Tapa na pantera?22 Vai lá e vê. Escolhe-se o que se quer ver. Piada de cachorro? Veem-se lá os cachorrinhos com as patinhas. O humor ligeiro, muito rápido, passou para essa outra mídia. A revista, como a commedia dell´arte, acabou juntando vários procedimentos e ajustando-se a cada momento histórico. O Teatro de Revista, em termos de procedimentos, juntou tudo: corpo, humor verbal, sósias paródicos (que pressupõem códigos específicos que implicam memória recente), vários tipos fixos etc. Esse humor verbal da revista é calcado em alguns velhos truques facilmente entendidos por nós: os primeiros são os sotaques. Havia o português, o italiano, o turco, o caipira, a mulata. Cada um falava uma língua, porque o cenário era o Brasil. Este humor verbal, em determinado momento do teatro, passou para outro plano. Estou falando do teatro já do final do século passado, década de 1990, e já no ano 2000, quando várias linguagens instrumentalizaram-se, mesclaram-se e mudaram os valores: trabalho corporal, clown, dança, mímica, entre outros. O teatro de imagem se fortalece e aquele velho humor verbal fica lá atrás, como se fosse o humor radiofônico. Há uma clara diferença entre o humor radiofônico, em que os atores falavam muito bem e sabiam o tempo certo do esquete, por exemplo, para finalizar a piada com um grande ponto-final de arrancar risos e aplausos. O corpo não se mexia muito. Vou dar um exemplo de humor verbal ou radiofônico:

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Um nobre, na Idade Média, está se aprontando para sair para a guerra: MULHER – Ó, meu querido marido, vais pra guerra? NOBRE – Deixo-te com o cinto de castidade... Eu sei que vai doer, que será terrível, mas tu ficarás protegida. MULHER – “Sim! Quero que o meu corpo fique protegido, 22 Tapa na pantera é um fragmento de entrevista captado em vídeo, com a atriz Maria Alice Vergueiro, publicado no youtube, muito visitado em 2009.

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porque é só teu! (para a empregada) Josefa! Traz a capa do senhor! (E continuam as declarações) NOBRE – Eu voltarei daqui a um ano!. MULHER – Josefa! Traz a espada do senhor! (Finalmente, ele passa a chave e tranca.) MULHER – Josefa! Traz o sapato do senhor! (Ele vai embora, ela escuta os passos – efeito sonoro pelo rádio – e entra o amante.) AMANTE – Ó querida, cheguei! Estás com o cinto de castidade? MULHER – Sim! (Gritando para a empregada) Josefa! Ó Josefa! Traz o abridor de latas!

Esse é um humor tipicamente verbal. Não necessita de grandes habilidades corporais. É outra relação: a da palavra. O público tinha uma relação direta com a palavra no século XIX e na primeira metade do século XX. Não estou falando do teatro de feira, do circo... Refirome ao que eles chamavam de comédia, no teatro. Refiro-me aos atores de teatro. Eles se especializavam muito. E faziam tipos: o português, o caipira, embora eles se utilizassem de deformações e de figurinos. Havia um comediante em São Paulo, Nino Nello (no começo do século XX, década de 1920), que se inspirava em um ator italiano que havia passado por aqui, o Frégoli (que os franceses o chamavam de Fregolí). Ele era performático. Fazia 40 personagens em um espetáculo só. Irma Vap23 era pouco para ele. Trazia na bagagem todos os tipos de cartola, óculos, barrigas, e tudo o mais. Era um Arlequim, nem um pouco aprofundado, nada psicologizado. E ele funcionava nessa estética mais corporal e, consequentemente, mais popular. Os apliques na construção de tipos são indispensáveis. Grande parte do público brasileiro aprecia, também, o humor verbal, que talvez se apresente para nós como um pouco mais antigo. Em determinado momento, aqui no Brasil, ele chegou a desaparecer. O mistério de Irma Vap, de Charles Ludlam, com direção de Marília Pêra, em sua primeira versão brasileira, foi o espetáculo de maior público no Brasil. Com Ney Latorraca e Marco Nanini, o espetáculo impressionava pelas trocas rápidas de roupa. A segunda versão foi com Cassio Scapin e Marcelo Médice. A troca mais rápida era feita em 10 segundos.

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No teatro, continua funcionando a boa dosagem entre verbal e corporal. Sobre os procedimentos, poderíamos enumerar uma série deles. Como é que esses atores trabalham? Há o humor de situação. Há o duplo sentido (o double sens), que é verbal, mas que tem de ser acompanhado de interpretação maliciosa indicada pelo corpo e pela expressão facial. Enfim, está tudo enumerado. Henri Bergson (1980) e também Vladimir Propp (1992) enumeram e dão exemplos do contrataste, das semelhanças, da hipérbole, de vários procedimentos derrisórios. Duas atrizes baixinhas que andam da mesma forma; duas baixinhas e uma alta que se comportam de formas diferentes. Tudo o que pode provocar risos. Os procedimentos estão catalogados. É só tirar da gaveta e ver. O pior defeito é o mau acabamento. Quando é mal-acabado não é mais aceito. É horrivelmente ingênuo acreditar que se está fazendo uma coisa boa e apresentar uma coisa mal-acabada. Isso não pega mais, porque a gente está na era da tecnologia. É sempre bom lembrar que, mesmo em meio a tanta tecnologia, a tanta mistura, neste teatro híbrido, o ator ainda tem de ser o centro da cena. O signo mais forte do teatro, para mim, é o Arlequim, porque ele se tornou, pouco a pouco, o centro da cena, estabelecendo um grande pacto com a plateia. A história da comédia mostra a utilização de vários procedimentos: pacto com a plateia, improviso, duplo sentido, sotaques, brincadeiras, deformações dos bufões, os excluídos (os bufões eram sempre os representantes dos excluídos), a construção do clown, a mímica. Observação: É bom não confundir aparte com “pacto com plateia”. São duas coisas diferentes. O “aparte” é do teatro romântico, está previsto já no texto, porque não havia ainda o método Stanislaviski, no Romantismo, para mostrar o subtexto. Então, devo olhar para o rapazinho bonito e pensar alto e em palavras: “Ó que rapazinho bonito, será que devo beijá-lo?”, olho para a plateia e volto. Nestes casos, o subtexto é explicitado em palavras, porque não havia, ainda, estudos sobre aquelas interpretações “realistas” em que o corpo demonstra uma atitude contrária ao texto, como a mão atrás que pode pegar uma faca enquanto as palavras dos textos expressam bons sentimentos.

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As atitudes contrárias eram estudadas inicialmente pela mímica, que tem outros recursos para demonstrar vontade e contravontade. Há exemplos de “apartes” antológicos na comédia brasileira, que eu ousei chamar de “distanciamento à brasileira”. Lembro aquele do Oscarito em que ele, quase beijando a garota, se dirige a uma pessoa da plateia e comenta: “Essa dona é muito boa. Você queria era estar no meu lugar!”, e aí volta para a cena do beijo. Naturalmente, ele transforma o cara da plateia em cúmplice dos seus desejos, do que ele está querendo, coisas geralmente libidinosas. Porque a comédia está sempre contemplando os temas: dinheiro, amor e sexo. Estes são os conflitos e os desejos mais humanos e mais fáceis de ser compreendidos. Neste caso, podemos dizer que a comédia é mais democrática, porque ela não está falando unicamente para uma classe determinada. Como vimos, esses procedimentos estão todos catalogados. Eu insisti muito em humor verbal porque, neste momento, além da internet, está na moda a comédia stand-up. Este humor verbal, agora retomado, é muito apropriado para os pequenos espetáculos, para os pockets, como “Terça Insana”, “Segundas Intenções”, e que depois, registrados, vão para o youtube. São quadros separados, esquetes com início e fim. Eles começam e fecham. O local é pequeno, ou porque há uma câmera próxima, funciona a piada falada e a composição de tipos por intermédio da voz e da fala. Então, pode-se dizer que há um movimento de retomada daquele humor radiofônico somado e depois mediado, que não é só para o público ao vivo. Se houve improviso, foi na hora. Não vamos nos iludir de novo, o improviso é feito por pessoas que o dominam. Existem regras. Há rigor também no improviso. É como no jazz. Você precisa dominar o instrumento para improvisar. E, principalmente, para fazer rir.

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Referências bibliográficas ALLEGRI, Luigi. Dario Fo: dialogo provocatorio sul comico, il tragico, la follia e la ragione. Roma: Laterza & Figli, 1990. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Universidade de Brasília, 1987. BERGSON, Henri. O riso. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 72-73. FAVA, Antonio. La maschera comica nella commedia dell’arte. Milão: Endromeda Editrice, 1999. FO, Dario. Manual mínimo do ator. São Paulo: Editora Senac, 1998. LECOQ, Jacques. Le théâtre du geste. Paris: Gallimard, 1974. MARINIS, Marco De. Drammaturgia dell’attore. Milão: I Quaderni del Battello Ebbro, 1997. MELDOLESI, Claudio. Su un comico in rivolta. Dario Fo: il bufalo, il bambino. Roma: Bulzoni Ed., 1978.

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_________. Fra Totò e Gadda. Sei invenzioni sprecate dal teatro italiano. Roma: Bolzoni, 1987. _________ e TAVIANI, Ferdinando. Teatro e spettacolo nel primo ottocento. Roma: Bari/Laterza, 1995. PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática. 1992 VENEZIANO, Neyde. O teatro de revista no Brasil: dramaturgia e convenções. São Paulo: Pontes, 1990. _________. Não adianta chorar: Teatro de Revista Brasileiro, Oba! Campinas: Editora da Unicamp, 1996. _________. A cena de Dario Fo: o exercício da imaginação. São Paulo: Cónex, 2002. _________. De pernas para o ar: Teatro de Revista em São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2008. Col. Aplauso. ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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Teatro na luta de classes24 Iná Camargo Costa25 Como a religião, a arte tem suas raízes na pré-história. Ideias, estilos, movimentos artísticos podem sobreviver na mente humana por muito tempo depois de desaparecido o contexto concreto em que surgiram. No fim das contas, a mente humana se caracteriza por seu conservadorismo. Ideias que há muito tempo perderam sua razão de ser permanecem teimosamente arraigadas na psiquê humana e continuam desempenhando um papel, às vezes determinante, no desenvolvimento humano. Isto é mais evidente na religião, mas também se aplica ao campo da arte e da literatura. Alan WOODS. El marxismo y el arte. Sorrindo amarelo, a burguesia transforma poetas e pensadores Em seus lacaios, todos eles. O templo da sabedoria, Ela transforma em bolsa... Bertolt BRECHT. O manifesto. É mais difícil tornar flexíveis as ideias fixas do que mudar a existência sensível. HEGEL. Filosofia do direito.

Nota dos editores. Roteiro para seminário organizado pelo Engenho Teatral no segundo semestre de 2009. Como se trata de um texto escrito para um ciclo de debates, e que também circulou pela internet, resolveu-se publicá-lo do modo como sua autora nos enviou.

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Professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Autora de A hora do teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. Sinta o drama. Petrópolis: Vozes, 1998. Panorama do Rio Vermelho. São Paulo: Nankin Editorial, 2001. (Com Dorberto Carvalho) A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura. Os cinco primeiros anos da Lei de Fomento ao Teatro. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008. 25

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1. Questões preliminares Para quem entende que o proletariado é o verdadeiro sujeito do processo de acumulação porque ele produz capital além da mercadoria e, com essa compreensão, se dedica ao teatro, levando em consideração a luta de classes, impõe-se a necessidade de, além de tomar partido como trabalhador cerebral, identificar as coreografias do inimigo, sobretudo as que se apresentam sob máscaras revolucionárias, inclusive, e sobretudo, procurando revogar ideias como luta de classes, revolução, necessidade de intervenção política, organização, e assim por diante. Estas teses vêm de longe, na frente teatral circulam há mais de cem anos e na elaboração teórica são ainda mais antigas. Por isso, os acontecimentos práticos e teóricos do teatro francês, a partir da segunda metade do século XIX, serão aqui tomados como ponto de partida. Como afirmou Friedrich Engels, no prefácio à edição alemã de 1885 da obra de Karl Marx, O dezoito brumário de Luís Bonaparte, “[...] a França é o país onde, mais do que em qualquer outro lugar, as lutas de classe foram sempre levadas à decisão final e onde, por conseguinte, as formas políticas nas quais se condensam seus resultados tomam os contornos mais definidos.” O livro de Marx trata dos resultados das lutas entre burguesia e proletariado, bem como entre as diferentes frações da burguesia nos anos que vão de 1848 a 1851, estabelecendo assim o referido ponto de partida e, como expressão daqueles resultados no plano ideológico – do qual o teatro faz parte –, encontramos nos acontecimentos franceses relativos ao teatro a manifestação das lutas entre as classes sociais com muito mais clareza do que em outros países. Isto continua valendo até hoje. Grande parte dos materiais presentes neste estudo já apareceu em outros trabalhos, mas os debates que vêm ocorrendo nos últimos dez anos entre os ativistas do atual movimento paulista de teatro de grupo acabaram pautando a retomada e o desenvolvimento mais metódico de alguns temas. Duas questões que serão tratadas aqui dizem respeito, direta ou indiretamente, à persistência do pensamento metafísico na contemporaneidade, bem como à persistência de comportamentos

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que, mesmo não mais se reivindicando como “de vanguarda”, retomam suas pautas, algumas estabelecidas ainda no século XIX. Este teatro das vanguardas de fins do século XIX e diferentes momentos do século XX agora reaparece identificado como matriz, ou modelo, do teatro “relevante” nas últimas décadas do século XX, para o qual foi proposta a designação de “pós-dramático”. A marca dessa espécie de “teoria” é explorar firmemente o campo evanescente da metafísica sob as mais variadas roupagens. Qualquer espírito minimamente crítico percebe a referida persistência da metafísica, pelo menos em sua manifestação mais espalhafatosa, como é o caso das diferentes instituições religiosas em sentido estrito, sobretudo as que se organizam a partir do monoteísmo, que é por definição fundamentalista (judaísmo, catolicismo, protestantismo, islamismo) e continuam se confrontando seja em nome de Jeová (o Estado de Israel), de Alah, ou de Deus (os fundamentalismos americanos e a igreja católica, principalmente a romana). O interesse da indústria cultural pelo assunto por si só já indica o seu peso na organização das nossas percepções, inclusive (ou sobretudo) as políticas. Mas a própria percepção normal da vida cotidiana no interior do sistema capitalista26 é fundamentalmente metafísica, mesmo quando não tem conotação imediatamente religiosa. Há pouco tempo Robert Kurz formulou, mais uma vez, a explicação materialista, ou crítica, para o fenômeno, pois é de fetichismo que se trata: o fetichismo do moderno sistema produtor de mercadorias não constitui apenas uma “analogia” com as representações religiosas, como diz Marx, nem pode ser simplesmente apreendido como simples “ideologia”, porque ele próprio é uma constituição simultaneamente metafísica e real da sociedade e da sua reprodução, tanto material como cultural-simbólica. A modernidade, nas suas relações, não superou “O capitalismo se desenvolveu como parasita do cristianismo no ocidente (isto pode ser demonstrado não apenas através do calvinismo, mas também de outras igrejas cristãs ortodoxas), até atingir o ponto em que a história do cristianismo é essencialmente a história do seu parasita – isto é, do capitalismo.” BENJAMIN, Walter. Capitalism as religion. In Marcus Bullock & Michael W. Jennings, eds. Walter Benjamin, Selected Writings, vol. 1. Cambridge: Harvard University Press, 2004, p. 289.

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a metafísica, como acredita; apenas a fez descer do antigo apego religioso à transcendência (Deus, alma, vida eterna) para uma imanência puramente terrena (indivíduo e sociedade). Ao contrário do que afirmam seus ideólogos, a modernidade (e a pós-modernidade), longe de ser “pós-metafísica”, na verdade é “realmente metafísica”. Mas é metafísica de uma maneira nova, se comparada a suas formulações mais antigas, como a religião. Esta última foi dissolvida enquanto princípio de direção celestial da reprodução da vida e transformada na modernidade em “questão de fé privada”, graças às vitórias na luta contra a igreja católica romana em favor do Estado laico. Seu lugar foi ocupado pelo princípio da direção da vida terrena pelas relações capitalistas de produção, que são percebidas de modo metafísico. O “sujeito automático” do moderno sistema produtor de mercadorias não é a razão humana libertada (das cadeias religiosas), mas sim o paradoxo de uma “transcendência imanente” em processamento cego na forma da abstração do valor – o qual permanece para além das necessidades humanas e para além do mundo físico, mas transformou estas necessidades e este mundo em material exterior a si. Aqui há uma força destrutiva qualitativamente nova, que ultrapassa todas as potências autodestruidoras das formações anteriores do fetichismo, como era o caso do religioso. Não é preciso recorrer a Sigmund Freud ou Ludwig Feuerbach para explicar o que é uma crença religiosa (e portanto metafísica), mesmo quando não se trata mais de religião. Para isso, basta um filósofo pragmático como William James que mais ou menos definiu esta espécie de religiosidade laica, há mais de cem anos, nos seguintes termos: trata-se da crença em alguma ordem invisível, tomada como bem supremo, à qual todos devemos nos ajustar. Esta crença é da mesma natureza que a dos religiosos monoteístas em um Deus criador e responsável pela ordem, tanto a natural quanto a sobrenatural, à qual estaríamos todos submetidos, querendo ou não. A ordem presente que exige de nós uma submissão de “crente” chama-se capitalismo, mas é referida por seus paladinos e sacerdotes como mercado. Por isso, os fundamentalistas de mercado costumam “defini-lo” como “mão invisível”. Ela asseguraria a “ordem

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metafísica” à qual todos acreditam que devemos nos submeter, como já pregava Adam Smith, que recomendava “fé no mercado” e por isso mesmo foi chamado de Lutero da economia por Engels. O primeiro mandamento desta religião laica afirma que o fenômeno básico da vida social é o indivíduo egoísta. Segundo mandamento: agir sempre em busca do seu interesse egoísta. Terceiro: a “mão invisível” do (Deus) mercado assegura a ordem e o interesse (egoísta) de todos, sintetizada no conhecido “cada um por si e Deus por todos”. (Os demais mandamentos são adaptações do decálogo mosaico, como “deve-se matar em defesa da propriedade”, “é bom cobiçar as coisas alheias – greedy is good, dizem os neoliberais – porque estimula a competitividade”, e assim por diante). 2. Nota sobre forma e conteúdo Em seus estudos sobre o teatro moderno, Georg Lukács afirma que em literatura o verdadeiramente social é a forma, por ser ela que permite ao poeta comunicar uma experiência a seu público. A arte se torna social, ou se socializa, nesta comunicação formada, que lhe permite produzir seus efeitos. Nem o artista nem o público têm consciência disso, pois acreditam que o conteúdo age por si mesmo, sem se dar conta de que ele só produz algum efeito quando está formado. Este filósofo foi um dos primeiros a dizer que “[...] a forma é a realidade social e ela participa vivamente da vida espiritual.”27 Com base nestas ideias, Walter Benjamin e Theodor Adorno definem forma como conteúdo social sedimentado. Traduzindo: conteúdos viram formas. Numa tentativa de evitar o pântano metafísico em que cai a maioria dos que tentam enfrentar a questão da forma, comecemos por um exemplo prático e básico, retirado da língua falada: se eu disser “ontem eu quer...”, meu interlocutor não vai me entender, pois esta frase não está formada, está incompleta, ainda faltam informações para que ela seja compreendida. Ela só se formará depois que eu completar a palavra “quer” e, supondo que o complemento seja “ia” (“queria”, pois a palavra “ontem” remete a tempo passado), ainda 27

Georg LUKÁCS. Il dramma moderno. Milano: SugarCo, 1976, p. 9.

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será preciso que eu diga/acrescente “o que” eu queria ontem. Este fato pode ser reconhecido por qualquer pessoa que fale português, porque língua também é uma realidade social; todos os que falam uma língua conhecem a conjugação dos verbos e a sua predicação (independente do conhecimento científico, ou gramatical). A vantagem da língua sobre as demais manifestações sociais é que ela é sempre forma e conteúdo ao mesmo tempo. Pois bem: numa conversa ou num texto, a expectativa do ouvinte ou leitor em relação a tempos, pessoas verbais, predicação etc. é formal. Corresponde às “regras do jogo” que todos começam a apreender desde que nascem e conhecem na prática desde mais ou menos 5 anos de idade, aprendida na convivência com as pessoas que falam essa língua. O conteúdo de uma comunicação só será transmitido se ele estiver formado segundo essas “regras”. As obras de arte também só são entendidas (quando são...) pelo público se estiverem formadas. E são formais inúmeros aspectos tidos por conteúdo, como o ritmo, os cortes, as intensidades, as omissões, os jogos de luz e sombra, e assim por diante. Mas artistas, público e crítica nem sempre se dão conta disso porque acreditam que se relacionam diretamente com o conteúdo. No livro Teoria do drama moderno, Peter Szondi parte das ideias de Lukács, Benjamin e Adorno e avança mais um passo, demonstrando que falhas técnicas em determinadas obras podem ser vistas como sismógrafos sociais, isto é, como indicação de que algumas certezas artísticas (formais), historicamente estabelecidas, se tornaram problemáticas ou duvidosas e, por isso, nem todos continuam dispostos a adotá-las. Para ele, todo conteúdo, proveniente da experiência comum, busca a sua forma e, enquanto o artista não a encontra, tende a adaptar seu conteúdo às formas pré-existentes, havendo uma relação dialética entre o enunciado do conteúdo e o enunciado formal. Quando forma e conteúdo se correspondem, a temática do conteúdo evolui sem problemas no interior do enunciado formal e todos “entendem” a obra. Mas pode acontecer, e acontece muito, de não haver essa correspondência. Em momentos de crise na sociedade

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(que podem durar séculos), o enunciado do conteúdo tende a entrar em contradição com o enunciado da forma, pois o conteúdo (novo) põe a forma (antiga) em questão, na medida em que ele se torna um dado problemático no interior de um quadro que não é. Começam a aparecer ruídos e, neste momento histórico, a forma entra em crise. Um importante sintoma de crise pode ser percebido quando os críticos (ou os artistas, ou o público) começam a “não entender” as obras. Ou então, o que é mais comum, rejeitam uma obra por suas “dificuldades técnicas”. Dificuldades técnicas são sintoma claro de problemas históricos: sinalizam que a história produziu novos conteúdos que têm direito a encontrar sua forma porque as formas existentes não correspondem a eles. Mas o contrário também é verdadeiro: o artista que se recusa a olhar para o conteúdo da experiência social pode optar por formas arbitrariamente escolhidas e montar verdadeiros quebra-cabeças que não querem mesmo dizer nada. Nos últimos tempos, alguns chegam mesmo a declarar que não querem “produzir nenhum sentido, porque não há sentido a produzir”. 3. Drama como forma Como as formas artísticas parecem ser compreensíveis de maneira imediata em momentos de estabilidade social, elas próprias se estabilizam e por isso acabam sobrevivendo a seu tempo. Esta sobrevivência produz um apego de tipo religioso entre praticantes e fruidores da arte. É uma experiência de ordem metafísica, ou alienada, que explica, por exemplo, tanto a postura normativa de críticos e estudiosos quanto reações em nome do “gosto” por parte de alguns fruidores. A experiência é metafísica porque corresponde ao apego subjetivo a alguns aspectos formais que se referem a uma suposta “ordem eterna” correspondente a essas formas, quando na realidade é antes uma desordem que tem caráter histórico e já está, ou precisa ser, superada. No caso do teatro, a forma que dá régua e compasso para todas as discussões é o drama. Vamos fazer um resumo básico de suas regras e exigências, pois a sua síntese configura uma espécie de “forma ideal” que até hoje funciona na cabeça de todo mundo para

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avaliar quase tudo o que se faz no campo das artes cênicas, inclusive filmes28 e novelas de televisão. Esta “forma ideal” corresponde ao que Peter Szondi chamou de “quadro não problemático”, pois ela descreve uma espécie de “funcionamento perfeito” da ordem burguesa (capitalista), na medida em que é uma sedimentação do conteúdo profundo da experiência burguesa, tanto naquilo que tem de verdadeiro (no sentido histórico) como no que tem de idealizado e de ideológico. Em outras palavras: escrever e encenar peças (ou roteiros de filmes, ou até mesmo romances) de acordo com as regras do drama corresponde a endossar as regras de funcionamento da sociedade burguesa (tanto as que o drama enuncia quanto as que ele esconde). Segundo uma definição quase aceitável por qualquer manual do século XIX, drama é a forma teatral que pressupõe uma ordem social construída a partir de indivíduos (ver os mandamentos de Adam Smith acima) e tem por objeto a configuração das suas relações, chamadas intersubjetivas, por intermédio do diálogo. O produto dessas relações intersubjetivas é chamado ação dramática e esta pressupõe a liberdade individual (o nome filosófico da livre iniciativa burguesa), os vínculos que os indivíduos têm ou estabelecem entre si, os conflitos entre as vontades e a capacidade de decisão de cada um. Através do diálogo, as relações vão se criando e entrelaçando de modo a produzir uma espécie de tecido, por isso mesmo chamado enredo ou entrecho, devendo ter claramente começo, meio e fim (de preferência nesta ordem), com direito a nó dramático, nó cego, desenlace etc. Um dos valores mais cuidadosamente cultivados nesta concepção dramática de enredo é o suspense: o público não pode saber de antemão o final da história, devendo ficar “preso” a ela pela curiosidade em relação ao desfecho, e os autores conhecem técnicas sofisticadíssimas para preservar e arrastar este suspense até o fim.

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Um exemplo: no dia 30 de outubro de 2009, o crítico de cinema Luiz Carlos Merten fez a seguinte objeção ao filme Besouro: “[...] tem cenas lindas, mas, no conjunto, parece mais um rascunho que um filme acabado. A evolução dramática é tênue e o desfecho funciona muito mais como anticlímax do que o clímax que talvez devesse ser.” (O Estado de S. Paulo, Caderno 2, D9). Todos os conceitos destacados derivam da forma dramática.

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O princípio formal do drama é a autonomia: ele deve ser um todo autônomo, absoluto. Não pode remeter a um antes, nem a um depois, muito menos ao que lhe é exterior; deve ser uma ação fechada em si mesma. Disto decorre sua determinação temporal. O tempo do drama é o presente-que-engendra-o-futuro: cada instante da ação dramática deve conter em si o germe do futuro e o encadeamento desses instantes obedece também à implacável lógica da causalidade. A exigência desse encadeamento implica a eliminação do acaso, isto é, o drama exige a motivação de todos os acontecimentos. Acaso significa fatalidade, e o drama não a admite, pois para ele os indivíduos livres são donos do seu destino, são capazes de forjá-lo (e, se tiverem sucesso, eles “vencem na vida” – este é o modelo do super-homem de Friedrich Nietzsche). Os temas que interessam ao drama são delimitados, por princípio, ao âmbito das relações intersubjetivas – as da vida privada – por serem os únicos que podem ser configurados exclusivamente por intermédio do diálogo. As personagens do drama devem ser indivíduos bem caracterizados e por isso os críticos exigem que elas tenham profundidade psicológica. Esses indivíduos devem ser capazes de assumir seu próprio destino, bem como as consequências dos seus atos, sem se submeterem a instâncias externas ou superiores (fatalidade, deuses, tradições). Ao contrário, normalmente os heróis dramáticos enfrentam esse tipo de instâncias nas pessoas de seus agentes/representantes: já se vê que não é qualquer um que pode ser herói dramático. A ação dramática é sempre resultado dos atos praticados pelos protagonistas enfrentando os seus antagonistas e o diálogo – expressão da vontade, planos, intenções, objetivos dos personagens –, para ser dramático, deve ser veículo de decisões. Por isso, nem toda conversa pode ser considerada dramática. Decisão é o momento por excelência da ação dramática. Da mesma forma, situações que não possam ser traduzidas em diálogo não são dramáticas. No drama, até mesmo a interioridade (a “alma profunda”) deve se transformar em presença dramática (em fala). No drama, não há lugar para o inexprimível (o que não

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se traduz em discurso), pois o drama expõe relações intersubjetivas (uns precisam compreender o que dizem os outros). Sendo o diálogo o veículo discursivo do drama, não há nele lugar para a narrativa (épica), mesmo que ele sempre esteja “contando uma história”, porque o drama expõe uma história “no momento em que ela acontece”: esta é a essência da ilusão dramática. Por isso o drama moderno eliminou prólogo, coro, epílogo – componentes essenciais à tragédia clássica (grega). Uma consequência literária importante da autonomia do drama, ou de seu caráter absoluto, é que, por ser desligado de qualquer elemento ou referência exterior, ele não admite um narrador. O drama não é “escrito”, mas exposto. As palavras são decisões das personagens: surgem da situação e remetem a ela. Outra consequência é a relação com o espectador, também absoluta, objetivada na quarta parede. O drama exige do espectador uma passividade total e irracional: separação ou identificação perfeita. Uma das convenções mais chocantes do drama é exatamente esta: fica combinado que os atores não são os atores, mas outras pessoas (as personagens) que estão, naquele momento, vivendo aquela história e, mais importante, que o público não está ali, vendo aquelas coisas acontecerem. É por isso que a cena frontal é a cena própria para o drama. Qualquer outro tipo de espaço compromete a relação passiva do espectador. Pela mesma razão, o trabalho do ator exige identificação absoluta com a personagem (desaparece o ator para dar lugar à personagem). Porque drama não é representação; ele se apresenta a si mesmo. No âmbito da restrição formal, portanto de conteúdo, temos ainda uma exigência literária: sendo o drama primário, uma peça sobre assunto histórico jamais poderá ser dramática. Mas é possível fazer drama com personagem histórica: basta colocá-la num momento de decisão (dramática), manipulando a história propriamente dita de modo a transformá-la em simples moldura para a decisão que, por consequência, será antes pessoal do que política. O dramaturgo, porém, deve tomar muito cuidado na seleção dos materiais, pois se não ficar no âmbito da vida privada e a decisão da personagem tiver

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caráter histórico (político), a peça pode cair no gênero épico. Muito dramaturgo foi crucificado no século XIX por não ter obedecido a esta exigência. 4. Drama como freio e ideologia Enquanto a burguesia foi uma classe revolucionária, que queria reorganizar o mundo feudal segundo os seus valores, o drama foi uma arma importantíssima na luta contra a Igreja e outras instituições políticas. Ele chegou a ser apresentado (assim como o romance) como uma espécie de escola de bons costumes. Contrapostos aos medievais, são avançados e progressistas todos os valores que estão sedimentados no drama (autonomia do indivíduo, ou liberdade, igualdade de direitos, concorrência, instituições democráticas, império da lei etc.). Mas acontece que depois de 1848 a burguesia transformou-se em uma classe ferozmente conservadora. Ela passou a lutar com todas as suas armas para que a sociedade permanecesse organizada segundo os seus valores, não admitindo nem mesmo a discussão de outras possibilidades, como o socialismo. Para que não houvesse dúvidas sobre tal disposição, na França, a burguesia levou a efeito dois banhos de sangue: um em 1848 (poucos meses depois do Manifesto comunista) e outro em 1871 (o massacre à Comuna de Paris). Assim como, na esfera pública propriamente dita, ela usou canhões e metralhadoras para não dar margem a dúvidas sobre a sua disposição para defender seus privilégios, para as demais esferas desenvolveu armas de calibre variado, aliando-se às demais forças conservadoras como a Igreja, a monarquia e a aristocracia, requentando os valores que combatera até então. No campo que nos interessa, o teatro, são inúmeros os seus recursos. O mais violento foi a censura policial prévia que, até bem avançado o século XX, proibia uma série de temas e conteúdos, e ponto final (no Brasil, atualmente, este trabalho passou para o Ministério Público e a censura deixou de ser prévia). A arma seguinte é a censura econômica: os empresários teatrais (ou os “patrocinadores”) decidem, segundo os critérios do drama, se uma

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peça é ou não “teatral” (leia-se: clássica, bem encenada, dramática ou, nos últimos cem anos, vanguardista), se dará ou não o devido retorno econômico, ou se vai ou não fazer sucesso (ou barulho), e assim por diante. Há ainda uma terceira arma, que se subdivide em dois campos: a crítica e o ensino. Uma peça que escapa ao crivo do empresário pode ser massacrada pela crítica por meio de argumentos como ser “muito difícil”, ou mesmo incompreensível, “ser muito literária”, não ser “clara”, não ter “qualidade”, ser “banal”, não ter ritmo (dramático), não ter profundidade psicológica na caracterização de personagens etc. Isto é: até hoje a crítica exige a presença dos valores dramáticos, inclusive – para não dizer sobretudo – em espetáculos que não o são. E, naturalmente, elogia os produzidos segundo essas regras (o mesmo vale para as premiações). Mas é preciso compreender esta incompreensão: a crítica, inclusive a feita por nossos amigos, não entende mesmo muitas coisas que nós fazemos porque tem, em graus variados, uma expectativa pautada pela forma dramática com a qual não é fácil romper e as considerações sobre religião acima ajudam a explicar. Através do ensino em geral e das escolas de arte dramática, em particular, por outro lado, a burguesia forma escritores, jornalistas, críticos e profissionais de teatro que são “naturalmente” adeptos do drama. Muitos dentre nós se incluem nesta categoria. Às vezes até mesmo gente que faz espetáculos inteiramente opostos ao drama provém dessa formação, e muitas vezes nem sabe o que está fazendo. É o caso, por exemplo, dos que combinam adesão aos valores dramáticos no plano da atuação com propostas de teor vanguardista desvinculadas de sua determinação histórica.

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5. Capítulos básicos da luta por novos conteúdos e novas formas Desde fins do século XIX, com os experimentos naturalistas, desenvolvidos por trabalhadores franceses, o teatro vem conquistando direitos que (pelo exposto acima) ainda hoje não são respeitados. Tais direitos referem-se aos modos de escolher os

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assuntos, de escrever as peças e de encená-las, seja a partir de temas e improvisações ou de textos propriamente ditos, incluindo aqui o trabalho do ator e as funções do diretor. A própria existência do diretor, que historicamente surgiu para resolver os problemas de encenação das peças naturalistas, já é expressão da crise: é ele quem assume os riscos de produzir uma cena que não corresponde mais às exigências do drama e normalmente sabe de antemão até o que não será entendido pela crítica nem pelo público. Antoine, o fundador do Teatro Livre francês, foi o primeiro, Constantin Stanislavski é o mais conhecido e Bertolt Brecht foi o mais consequente. Gordon Craig, Adolphe Appia e Max Reinhardt fazem parte desta família, mas costumam ser desvinculados dela pelos adeptos metafísicos da vanguarda. A mais importante conquista, até hoje questionada pelos adversários do teatro que rejeita os critérios burgueses, é a do direito de tratar de qualquer assunto sem se submeter ao interdito de ultrapassar a esfera dramática (a das relações interpessoais limitadas ao âmbito da vida privada) ou de se apresentar segundo métodos não realistas de construção da cena. Há mais de um século o teatro pode tratar tanto da subjetividade mais íntima quanto dos mais amplos assuntos da esfera do épico (históricos, políticos, econômicos). Ninguém mais pode dizer, sem incorrer em conservadorismo acadêmico, ou autoritarismo religioso, que algum assunto não é próprio para o teatro. Assim é que, desde o final do século XIX, autores e grupos teatrais começaram a encenar atos públicos, rebeliões de trabalhadores (Os tecelões, de Gerhart Hauptmann, Jacques Damour, de Émile Zola), condições de vida no submundo dos pobres (Ralé, de Máximo Gorki), rotina enlouquecedora no trabalho (A máquina de somar, de Elmer Rice), luta por melhores condições de trabalho ou greve (Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri) e até mesmo a realizar verdadeiros atos de protesto político (no Brasil dos anos 1960: Show Opinião; Liberdade, liberdade). E ainda hoje encontramos quem afirme que especificamente estes assuntos não são próprios para o teatro.

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Esta conquista do direito a tratar de qualquer assunto, inclusive ou sobretudo os censurados, permitiu ao teatro vivo, que dá voz aos excluídos da sociedade burguesa, aposentar compulsoriamente as mais importantes categorias da forma dramática e, por isso mesmo, esta forma imediatamente passou a ser apenas mais uma entre as muitas possíveis. Como afirmou August Strindberg, o novo conteúdo explodiu a velha forma. A partir dos experimentos do Teatro Livre, o artista que optar pela forma dramática (ou pela narrativa realista dramaticamente estruturada) estará, conscientemente ou não, assumindo os valores burgueses, muitas vezes contra o conteúdo que pretende apresentar. Este fenômeno é muito comum, principalmente no cinema. A primeira categoria aposentada foi a da ação fechada em si mesma, até hoje conhecida por unidade de ação. Com ela, foi para o arquivo a categoria do fluxo empírico do tempo (o presente que aponta para o futuro) e em seu lugar apareceram os experimentos com tempos simultâneos, recuos, avanços e todas as combinações possíveis de dimensões temporais. Henrik Ibsen foi o primeiro dramaturgo do século XIX a escrever peças que começam perto do final, quando tudo o que interessa à história já aconteceu e só faltam as últimas consequências. Quem conhece Casa de bonecas sabe que quando a peça começa (presente) só falta saber se Nora será descoberta (toda a ação está no passado), como Torvald vai reagir e de que maneira ela mesma vai lidar com isso. Por isso, a peça dedica dois terços do tempo (presente) a conversas, de caráter épico, com a função de reconstituir os fatos do passado. Em nome da unidade de ação até hoje se exige que uma peça tenha começo, meio e fim, nesta ordem. E também se diz que uma peça, ou filme, são incompreensíveis quando não a seguem. É ela que também pauta a noção que nós ainda temos de “ritmo” de cena pois, segundo a convenção do “fluxo empírico do tempo”, a sequência de cenas, além de obedecer à lógica da ação, deve obedecer a uma sequência supostamente natural de tempos presentes que apontam para os momentos seguintes. Esta noção decorre da exigência de se chegar, de “modo natural”, ao fim do espetáculo: é

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proibido acelerar (a convenção dramática estabeleceu que a rapidez é o ritmo da comédia) ou arrastar as cenas. Esta proibição nunca enunciada (porque “todo mundo sabe!”) explica a impaciência de muita gente com espetáculos, narrativas, filmes etc. que parecem “muito arrastados” (e por isso deveriam “cortar alguma coisa”) ou “sem pé nem cabeça”. Strindberg, mesmo sem o perceber, inventou um narrador e, com ele, aposentou a cena absoluta, ou autossuficiente, ou realista, em que as personagens evoluem sem a mediação de um foco narrativo. Seu narrador assimilado pelo protagonista pratica o monólogo disfarçado de diálogo e o discurso indireto livre. Strindberg arquiva a verossimilhança do teatro realista, despreza todas as convenções (categorias) de individuação (identificação) de personagens, atropela a categoria da causalidade e põe pela primeira vez em funcionamento, para estruturar peças como Rumo a Damasco, aquelas categorias de composição literária identificadas por Freud no livro A interpretação dos sonhos: condensação, fusão, superposição, substituição, alusão, metáfora e metonímia, entre outras menos prestigiadas. Seu “drama de estações” pratica inclusive a citação aberta (na forma e no conteúdo). Não é, pois, exagero dizer que com este dramaturgo está tecnicamente consumada, também para o teatro, a liberdade de trânsito por todos os gêneros literários, teatrais e retóricos (do sermão ao discurso político propriamente dito). O capítulo seguinte foi escrito pelo teatro expressionista, a partir do qual não se pode mais separar texto de encenação. Com o expressionismo vem à tona a consciência de que a cena, com todos os seus elementos – ator e jogo de cena, figurinos, adereços, maquiagem, cenário, iluminação, sonoplastia –, tem tanto peso na definição do que é a obra quanto o texto, que a partir de agora deixa de ser soberano, podendo inclusive nem existir anteriormente ao espetáculo. A partir de agora, texto é apenas um elemento entre outros do teatro, que passa a ser pensado sempre como experimento, e por isso tem tanto o direito de “dar certo” quanto o de “dar errado”. Georg Kaiser assegura, entre outras, as seguintes conquistas para o repertório técnico do século XX: cenários, que servem até mesmo

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para identificar pesadelos e outros processos psicológicos podem ser abstratos, indeterminados, inexistentes, distorcidos, superpostos; adereços, inclusive como substitutos dos figurinos, são reduzidos ao essencial para simbolizar, mais que identificar, tipos sociais; figuras que representam grupos e funções sociais aposentam a categoria de personagem; diálogos e ações fragmentados; cenas coletivas compostas por alusão por intermédio de ritmos coreografados, e assim por diante. É ainda conquista do expressionismo um direito reivindicado desde o naturalismo, o de falar diretamente da luta de classes e de expor as classes em suas diversas formas de luta, diretas e indiretas, como foi o caso de Ernst Toller, que escreveu mais de uma peça sobre revolução e contrarrevolução na Alemanha. Ao mesmo tempo que na Alemanha se desenvolviam os experimentos e conquistas do expressionismo, na Rússia (depois União Soviética) pelo simples fato de ter havido uma Revolução Proletária, todo o repertório até aqui inventariado foi levado a suas últimas consequências. Basta pensar nas inúmeras formas do teatro de agitprop, como o jornal falado, que inaugurou o teatro de improviso independente de um texto “teatral” previamente existente, a revista vermelha e o teatro fórum, ou nas misturas de cena tradicional e novos recursos técnicos como projeções de filmes e slides que abriram todo um universo novo de relações entre atuação e produção de imagens em cena, cartazes funcionando como legendas, uso de alto-falantes, transmissões radiofônicas e todo tipo de equipamentos colocados à disposição pelo desenvolvimento industrial. O movimento construtivista soviético se desenvolveu em íntimo diálogo com o agitprop e produziu as primeiras reflexões que culminaram nas teses de Brecht e Benjamin sobre o “autor como produtor”. O último capítulo desta história de conquistas foi escrito pela geração de Brecht, a começar por Erwin Piscator. Foram autores e diretores como eles que adotaram o conceito de teatro épico para deixar claro que o teatro que faziam já não tinha mais nenhum compromisso com as categorias do teatro dramático, ainda invocadas pelos seus adversários. Em mais de uma ocasião, Brecht declara que seu teatro se inscreve na tradição inaugurada pelos experimentos

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naturalistas e, assim fazendo, quer dizer que o teatro épico reivindica como parte de seu conceito todas as categorias introduzidas pela ruptura da unidade de ação, desenvolvidas pela introdução do foco narrativo e radicalizadas pelo engajamento político do agitprop. Depois de Brecht não há mais lugar para uma estética normativa no teatro. Navegando nas ondas produzidas pela luta de classes no teatro, em diferentes momentos do início do século XX, surgiram movimentos como o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo, proclamados como vanguarda. Mas, se observarmos seus manifestos e feitos, perceberemos que nenhum deles ultrapassou o agitprop ou o teatro épico em matéria de radicalismo e consequência política. E, quando foram consequentes, como é o caso do construtivismo russo, estavam em absoluta sintonia com o seu momento histórico e político, em defesa do interesse do proletariado na trincheira teatral, a exemplo de Serguei Tretiakov. 6. Contrarrevolução prática e teórica: contrabando de velhos conteúdos através das novas formas e restauração dos valores do drama Quem conhece um pouquinho de história sabe que o teatro épico (no sentido estabelecido por Brecht) foi vítima de sucessivas derrotas ao longo do século XX, sendo que a primeira delas, já expressão do golpe que o stalinismo significou para a Revolução, poderia muito bem ser identificada ao suicídio de Vladimir Maiakóvski e ao assassinato de Vsevolod Meyerhold, pois a encenação de Mistério-bufo (texto do primeiro e direção do segundo), para comemorar o primeiro aniversário da Revolução Soviética, constitui um capítulo fundamental da história que nos interessa. As derrotas políticas, artísticas e teóricas constituem hoje parte do problema a ser enfrentado por quem se interessa pelos períodos mais férteis da história do teatro moderno e contemporâneo. Mas, para ter uma ideia do problema, é preciso olhar para o que aconteceu na retaguarda do teatro.

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Não é mais possível subestimar o papel que teve a França na elaboração e cultivo metódico do repertório da contrarrevolução nas artes cênicas. Esta foi promovida pelo establishment teatral (ou show business) tanto na concorrência com a indústria cultural (principalmente o cinema)29 quanto no combate aos assuntos de interesse da luta revolucionária dos trabalhadores, começando pela campanha de desqualificação dos experimentos naturalistas, tanto os literários quanto os cênicos. O feito mais importante, já no século XX, foi resumido por Gaston Baty, diretor que fez parte do mais conhecido empreendimento francês. Vale a pena passar-lhe a palavra, com os devidos destaques, pois sua declaração mostra que estamos falando de campanha consciente: No tempo em que triunfavam o expressionismo alemão e o construtivismo russo, os franceses seguiram esse movimento muito à distância. Seu emprego era tímido e muitos consideravam retrógrados aqueles dentre nós que se consagravam às mais novas pesquisas. Mas eis que a moda passou. As audácias se acalmaram e percebe-se que aquilo que será incorporado ao patrimônio da arte cênica é mais ou menos o que os encenadores franceses tinham aceito desde o começo. Uma vez mais nosso país terá cumprido a sua missão de colocar uma novidade nos seus devidos termos, de eliminar os excessos, de reter o que é durável e de reajustá-la à medida clássica.30

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Como se sabe, nas primeiras décadas do século XX, o teatro reagiu de modo conservador ao processo de industrialização do seu repertório, transformado em matéria-prima a ser explorada pelo cinema e pelo rádio. Brecht denunciou as várias formas de mistificação adotadas pelos exploradores deste ramo dos negócios, principalmente os empresários teatrais e demais formas de espetáculo, secundados pelos críticos que, à esquerda e à direita, viam suas especializações ameaçadas de desvalorização no mercado. Como bom materialista, Brecht explicava que a concorrência do cinema e do rádio obrigava o artista a questionar, de preferência, não o nível da mercadoria cultural, mas a função social do teatro. Ele entendia alta cultura (ópera, balé clássico, teatro dramático ou de vanguarda) e entretenimento (teatro de variedades, cinema e rádio) como as duas faces da mesma moeda – a da transformação da arte em mercadoria. Por isso recomendava aos artistas de teatro que não caíssem na conversa dos empresários e seus aliados, os críticos, comprando uma briga inútil com os novos meios de produção, mas que, aprendendo com a mudança de função social das artes cênicas por eles promovida, tratassem de lutar por uma refuncionalização mais avançada de todas as formas de arte, tanto do teatro quanto do cinema e do rádio. E já identificava nas especulações sobre a “especificidade do teatro” uma nítida vocação para o cultivo da ilusão artesanal, obviamente regressiva. Cf. Bertolt BRECHT. O processo do filme “A ópera de três vinténs”. Tradução, introdução e notas de João Barrento. Lisboa: Campo das Letras, 2005.

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30 Gaston BATY. Rideau baissé. s/l: Bordas, 1949, p. 212. Enquanto ele escrevia estas linhas, seus conterrâneos já preparavam novas investidas sob as bandeiras da vanguarda, do estruturalismo, do pós-moderno e do pós-estruturalismo, como a desconstrução.

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A palavra-chave aqui é reajustar as novidades à “medida clássica”, pois a restauração do “valor atemporal do teatro clássico” foi a grande palavra de ordem dos franceses desde o movimento simbolista31, que começou em 1881, no teatro se autodefiniu como reação ao Teatro Livre, e se inspirava declaradamente no misticismo das religiões orientais. Tratava-se de romper tanto com o drama “realista” (ou burguês) quanto com os experimentos naturalistas e fazer a cena retroceder para os valores clássicos e medievais. Valores clássicos significam convenção teatral (ou teatralidade) e autores como Racine e Molière e valores medievais são os da religião católica romana, sem prejuízo de outras fontes ainda mais antigas, como o budismo. Mas, como disse Baty, aproveitando algumas conquistas formais da revolução cênica. Fica também estabelecido que, para eles, forma e conteúdo são coisas distintas, e as primeiras podem ser escolhidas arbitrariamente em um amplo repertório, que passa a funcionar como uma espécie de depósito, de onde se tira o que estiver à mão. Um dos mestres de Gaston Baty foi Jacques Copeau, que definiu com absoluta clareza as funções reacionárias que o teatro devia desempenhar numa conjuntura teatral que, por sua vez, já era francamente contrarrevolucionária. Quanto aos conteúdos, em lugar da arte “de tese, ou de ideias” (do teatro naturalista, do expressionismo, do agitprop e do construtivismo), o dramaturgo deveria ambicionar a grande arte que consiste em “pintar ingenuamente semelhanças” e, quanto à função, “fazer [o público] sonhar, evocando, sugerindo a vida múltipla e misteriosa, tirar das coisas e dos seres seu canto profundo, não fechar a perspectiva do mundo por um julgamento pesado, não se opor aos fenômenos, ser simples, familiar [...] saber, se assim se pode dizer, não ter ideias, não ter espírito, e ver”32. Em sua opinião, Em 1886 foi lançado um Manifesto Simbolista que pregava, entre outros valores a serem cultivados na cena teatral, o subjetivismo, a valorização do indivíduo, a restauração do ponto de vista romântico, o interesse por temas da esfera espiritual, sobretudo o ocultismo, e assim por diante. Um dramaturgo muito prestigiado por este movimento foi o belga Maurice Maeterlinck, cuja peça O pássaro azul até hoje tem boa acolhida na cena brasileira.

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COPEAU, Jacques. Critiques d’un autre temps. Paris: NRF, 1923, p.230. Este autor era católico e adepto da reação monarquista durante a Terceira República francesa, aquela que massacrou a Comuna de Paris.

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de quem se dirigia a uma elite, o espectador cultivado não quer mais afirmações peremptórias, realismo, ideias; ele prefere abordagens sutis, indiretas; descobrir por si mesmo as intenções do autor. Jacques Copeau foi o diretor e crítico teatral francês que, no início do século XX, praticamente sintetizou os argumentos que nossos inimigos no campo teatral usam até hoje contra o teatro épico. A crítica que fez à peça Le Foyer, de Octave Mirbeau, encenada em 1908 pela Comédie Française, contém argumentos que, além de sintetizarem as objeções da crítica dominante ao teatro naturalista, todos nós já lemos ou ouvimos nas mais variadas circunstâncias: Talvez, numa leitura, poderá parecer menos imperfeita esta peça onde eu acreditei ver tantos defeitos. Eu nada mais fiz que traduzir as impressões que tive durante a representação. Se as qualidades que sem dúvida Le Foyer contém não se deixam perceber com facilidade, é porque a grande fragilidade da obra funda-se em sua composição dramática. A forma, em si mesma, não é concebida com suficiente rigor. Daí uma ausência quase total de contrastes. E quanto mais preciosa a matéria do drama, mais deplorável esta falha orgânica. Pois os fatos e os personagens não são nada se não entrarem em combinações originais. E os traços de observação, mesmo os mais autênticos e mais saborosos, ficam fracos quando permanecem disseminados. Ora, aqui a linha flutua, o ritmo é hesitante. As cenas não se encadeiam, elas se justapõem umas às outras. Em lugar nenhum o drama se manifesta. Há acumulação, superposição de materiais, e não formação de uma matéria submetida à força artística. Falta o ângulo de visão ou, como dizem os pintores, elaboração.33

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Observemos os argumentos: a peça pode ser boa para ler, mas não para encenar. É “muito literária”.34 Se a peça tem alguma qualidade, não dá para perceber. Falta-lhe forma dramática. Não tem contrastes, não tem combinações originais, não tem ritmo, não há relações de causa e efeito entre as cenas, elas estão justapostas, os materiais estão superpostos; falta elaboração. Quem ainda não ouviu ou leu um ou mais desses argumentos a respeito de filmes, peças e livros do início do século XX até hoje? 33

COPEAU, op. cit. p.37-8.

Como se vê, o argumento é bem mais antigo do que fazem parecer os militantes do combate à “literatura” no teatro. Sua versão mais recente foi formulada por Florence Dupont, uma desconstrucionista radical, num livro que responsabiliza Aristóteles pelo “primado do texto”.

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Mas além desta desqualificação no atacado, a contrarrevolução crítica tem uma arma ainda mais insidiosa. Alguns anos depois de escrever esta crítica, o mesmo Jacques Copeau lançou um empreendimento teatral programaticamente antinaturalista. Percebendo que defender o “drama” (como forma ideal a partir da qual avaliar os espetáculos e textos) não produzia mais os efeitos esperados, ele e seus discípulos inauguraram, em 1913, o teatro Vieux-Colombier no qual prometiam recuperar a “teatralidade”, dando continuidade aos feitos de seus antecessores – o Teatro de Arte, de Paul Fort, e o Teatro da Obra, de Lugné-Poe. O argumento básico passou a ser o seguinte: o teatro naturalista estava destruindo as “convenções teatrais”, que para eles eram “imortais”. Claro que as tais convenções teatrais nada mais eram que as convenções dramáticas modernizadas, na medida em que seriam preservados todos os valores acima enunciados, mas em compensação eles tratariam de romper a quarta parede, apropriando-se de um experimento do inimigo de classe já consolidado pela vanguarda. Todos os demais valores dramáticos passaram a ser chamados “teatrais”. Isto é: drama passou a ser sinônimo de teatro (mas esta operação de estelionato semântico já tinha acontecido no século XIX). Por conta do estelionato, produziu-se um dos maiores malentendidos do teatro moderno que até hoje comparece em livros e estudos teatrais pouco exigentes: na medida em que Copeau e seus discípulos se lançaram à luta pela “recuperação da teatralidade”, eles foram abusiva e escandalosamente aproximados de artistas como Brecht e Meyerhold, que também criticavam os métodos de encenação e interpretação naturalistas. Mas estes últimos estavam em busca do que Brecht, seguindo os formalistas russos, chamou de “efeitos de distanciamento”, enquanto Copeau queria envolver o seu público em autênticas experiências (portanto, não mais representações) equivalentes a rituais religiosos, e de modo ainda mais profundo do que fazia o drama. (A semelhança entre seus planos e os de Jerzy Grotowski35 cerca de 50 anos depois não é mera coincidência, como veremos adiante). Como Karol Wojtyla (o papa João Paulo II), “[...] proveniente de uma das comunidades católicas mais reacionárias e piegas da Europa.”. Cf. José Luís FIORI. O poder global. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 204.

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A palavra-chave do mal-entendido é teatralidade pois, desprezadas as finalidades opostas, pode-se dizer que as duas correntes inimigas fazem questão de mostrar ao público que ele está assistindo a um espetáculo, no primeiro caso, ou participando de um ritual, no segundo, e não mais presenciando “fatos realmente acontecendo” (como queriam os defensores do drama). No entanto, sabemos que para Brecht, Meyerhold e demais diretores do teatro épico, os recursos teatrais do distanciamento têm o objetivo de eliminar a identificação ator/personagem, no plano da interpretação e, na relação público/espetáculo, impedir que se produza a empatia, ou a projeção – aquele comportamento que Adorno chama de boçal. Para os restauradores das convenções teatrais, não basta o simples comportamento boçal do consumidor burguês de “arte”, eles querem mais. Citando mais uma vez Copeau, eles querem que a partir de um “íntimo acordo”, a ser estabelecido entre palco e plateia, se produzam ilusões e emoções ainda mais profundas que as provocadas pelo teatro dramático (muito laico para o gosto deles). São ilusões e emoções mais “profundas” porque são experimentos de caráter ritualístico, como aqueles que aconteciam no tempo em que o homem ficava perplexo diante dos “profundos mistérios” estabelecidos pela religião dominante (a católica), como o direito divino dos reis (a reação era declaradamente monarquista). Seus herdeiros, igualmente simpatizantes de valores aristocráticos, passaram a vender a possibilidade de desenvolver a sensibilidade e as percepções embotadas na vida cotidiana.

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7. Persistência e sofisticação da campanha Em 2007, a editora Martins Fontes publicou a tradução de uma obra póstuma de Roland Barthes, só editada na França em 2002 porque seu autor renegara aqueles seus Escritos sobre teatro, publicados em jornal na década de 1950. Havia neles anotações do tipo “referência obsessiva à burguesia”; “militante”; “é tudo o que eu odeio”, e assim por diante. O organizador do livro, Jean-Loup Rivière, explica que Roland Barthes havia renegado sua ligação ideológica ao movimento do teatro popular36. 36

Roland BARTHES. Escritos sobre teatro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. XIII.

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Nem é preciso dizer que os textos sobre a passagem do Berliner Ensemble por Paris são os mais interessantes. Neles, Roland Barthes avalia que depois de Brecht “nada mais restou do teatro francês”. É verdade que ele não entendeu muito bem o espetáculo que viu, mas não deixou passar a oportunidade de contrapor as exigências do Berliner Ensemble às condições de trabalho no show business francês: O teatro brechtiano é, paradoxalmente, um teatro caro, pelo cuidado inaudito das encenações, pela segurança profissional dos atores, tão necessária à sua arte. Tal teatro é impossível numa economia privada, a menos que seja sustentado por um público imenso [...] o brechtismo é uma cultura verdadeira, que precisa de toda uma política por trás. (BARTHES)

O teatro francês, que teria acabado na comparação com Brecht, entretanto, persistia. Um exemplo é a encenação de O livro de Cristóvão Colombo, de Paul Claudel, sobre a qual a declaração mais leve de Barthes foi que “[...] o escopo final é confundir piedosamente a importação de ouro com a exportação de Cristo, é transformar a conquista comercial em imperialismo católico e depois em ecumenismo cristão”. Seu diagnóstico: “é um espetáculo de gente rica”. (BARTHES) Roland Barthes explica por que Brecht é ignorado na França (salvo raras exceções, como ele mesmo): “[...] a razão está na própria natureza de nosso teatro, três quartos submetido ao dinheiro e cujos produtores ou censores37, seja por cegueira, seja por defesa de classe, não querem saber de um teatro de libertação. O procedimento comum de desqualificação consiste em considerar o teatro de Brecht um produto literal do realismo socialista.” (BARTHES) Ou então: “Brecht é vilipendiado ou ignorado por quase toda a crítica.” (BARTHES) No caso da crítica abertamente inimiga, o melhor exemplo é o crítico do jornal Figaro, para o qual “[...] as mercadorias proibidas são as ideias políticas; é bem conhecido esse sofisma de classe que quer nos persuadir de que toda arte ‘política’ é uma manobra de propaganda, como se a arte pretensamente neutra não fosse uma arte terrorista; Nunca será demais lembrar que na França a censura ao teatro só foi revogada em 1968.

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a inteligência é sempre suspeita para os retrógrados; o sonho é um estado considerado contrário ao bom senso”. (BARTHES) Numa avaliação mais geral do cenário, diz ele que, salvo por breves episódios, todo o teatro na França é burguês; e são aliás as regras de uma arte burguesa, revestidas pomposamente de títulos como natureza ou essência do teatro, que nela estabelecem a lei: primazia do psicológico, redução do mundo aos problemas do adultério ou de consciência individual, arte verista da indumentária, representação mágica do ator, palco fechado como uma alcova ou uma cela de polícia de que o público seria o espectador passivo... Alguns segredos da crítica francesa denunciados por Barthes: os mesmos maniqueístas que engolem as “indignas simplificações do universo claudeliano” acusam Jean-Paul Sartre de maniqueísta; o elogio da crítica vai sempre para obras consideradas complexas, imparciais e bem feitas. Mas “complexidade” corresponde à falta de clareza e à ambiguidade; imparcialidade, neutralidade ou “objetividade” é própria de peças inofensivas e bem feitas são peças não engajadas. Em 1957, o mesmo Roland Barthes publicou Mitologias38, com textos de 1954 a 1956, nos quais aprofunda algumas das percepções acima. Apresento uma rápida amostra sem indicação específica de páginas, com adendos entre parênteses. As citações estão sem aspas porque os textos não estão reproduzidos literalmente. Os críticos literários e teatrais utilizam frequentemente dois argumentos bastante singulares. O primeiro consiste em decretar bruscamente como inefável o objeto da crítica e, portanto, a crítica como coisa inútil. O outro argumento consiste em se confessar demasiado estúpido para compreender uma obra considerada filosófica. Eles fingem um pânico de imbecilidade para melhor desacreditar a obra, ou o autor, exilando-os no ridículo do puro cerebralismo. Não é por modéstia que a crítica periodicamente proclama a sua impotência ou incompreensão. É por ironia, autossuficiência e rigidez. Na realidade, este tipo de crítico pensa ser detentor de uma inteligência suficientemente firme para que a sua confidência de incompreensão 38

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Roland BARTHES. Mitologias. 3a ed. Rio de Janeiro: Difel, 2007.

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ponha em causa a clareza do autor, e não a do seu próprio cérebro. Tal operação retórica já foi desmascarada por Proust, quando desenvolveu o raciocínio completo do representante dessa crítica: “Eu, que exerço a função de ser inteligente, não entendo nada disso; ora, vocês também não entenderam nada; portanto, vocês são tão inteligentes quanto eu.” (BARTHES) Essas periódicas confissões de incultura se fundamentam no velho mito obscurantista segundo o qual uma ideia é nociva se não estiver exposta segundo o “bom senso” e o “sentimento” (ou as regras da forma do drama, acima). Na verdade, qualquer reserva em relação à cultura é uma posição terrorista. Exercer a profissão de crítico e proclamar que não se entende nada de alguma teoria é erigir a própria cegueira, ou ignorância, em regra universal de percepção, segundo um critério muito arbitrário que classifica como idiota quem trate de assunto que o crítico ignora. Um crítico que exige firmemente o direito de não compreender os fundamentos teóricos de uma obra é antes mal-intencionado que inculto. (Não resisto a acrescentar que, para Adorno, nesta hora o mau-caratismo, que desde sempre assombrou a profissão, vem para o primeiro plano...). A pequena burguesia, o verdadeiro público do teatro, entende que imanência é sinônimo de tautologia, ou o fenômeno encerrado em si mesmo. Toda obra deve ser analisada pelas equações de causa-efeito, ação-reação, e assim por diante, apresentando todos os seus termos em si mesmos. (Notem como isto corresponde ponto por ponto à receita do drama). Esta mesma tautologia fundamenta a tirania da verossimilhança, entendida como uma verdade circular que deixa de lado a realidade do problema. A verdade da obra coincide com os postulados que são por ela mesma arbitrariamente impostos desde o princípio (este é o segredo da peça-bem-feita, de qualquer romance best-seller ou filme blockbuster). Toda mitologia pequeno-burguesa implica a recusa da alteridade, a negação do diferente, a felicidade da identidade e a exaltação do semelhante até chegar à própria tautologia. Em geral, essa redução equacional do mundo prepara a expansão de um cálculo no qual a “identidade” dos fenômenos humanos bem depressa dá fundamento

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a uma “natureza” e predispõe a uma “universalidade”. Faz parte deste jogo proclamar que romance é romance, teatro é teatro e poesia é poesia. (Com esta arma, basta declarar que um espetáculo “não é teatro” para não precisar dizer mais nada...). A crítica teatral recorre ao conceito de símbolo para não enfrentar os experimentos cênicos que introduzem alguma questão mais complexa. Sobre uma peça que pôs em cena um caça-níqueis, a crítica afirmou tratar-se apenas de um símbolo da complexidade do sistema social. Com isso, esvazia-se um objeto inusitado, aproximando-o, por exemplo, da porta de um palácio de Maeterlinck (o simbolista do século XIX que persistiu em cartaz por muito tempo no século XX), dispensando-se crítica e público de examinar a questão. A ladainha pequeno-burguesa no teatro reza que inteligência em excesso prejudica; a filosofia é um jargão inútil; é preciso reservar um lugar para o sentimento, a intuição, a inocência, a simplicidade (ver Jacques Copeau, acima); a arte morre por excesso de intelectualismo; a inteligência não é uma qualidade do artista; os verdadeiros criadores são intuitivos; obras de arte não cabem em sistemas (teóricos); em suma, o cerebralismo é estéril. A guerra do obscurantismo contra a inteligência é sempre travada em nome do “bom senso” (ou em nome de um “público” que não teria as mesmas referências “intelectuais” do artista e da obra). O recurso à inocência é um dos argumentos anti-intelectualistas mais praticados: armados de divina simplicidade, artistas podem ver melhor os clássicos, por exemplo. Este tema vem do esoterismo: a virgem, a criança, os seres simples e puros têm uma clarividência superior. A invocação da “simplicidade” desobriga a exegese intelectual, autoriza o “despojamento estético” e traz uma vantagem para artistas e críticos que a cultuam: promove o mito do achado crítico. Com ele, a preguiça que dispensa a pesquisa e tomada de posição sobre seus resultados é promovida a rigor (crítico e artístico). Mas não custa lembrar que, do ponto de vista da crítica exigente, achado nada mais é que a designação ingênua, ou desinformada, de metáfora.

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Sempre segundo Roland Barthes, por certo existem revoltas contra a ideologia burguesa. Elas constituem aquilo que de modo geral se chama de vanguarda. Mas tais revoltas são socialmente limitadas e permanecem recuperáveis. Para começar, porque provêm de um fragmento da própria burguesia, de um grupo minoritário de artistas e intelectuais, sem outro público senão a própria classe burguesa que contestam, e que dependem, ainda, do dinheiro dessa mesma classe para poder se exprimir. Além disso, o que a vanguarda contesta é o burguesismo da arte e da moral, a sua linguagem, não o estatuto da arte e da própria vanguarda. Fica impossível saber o que distingue a vanguarda do teatro antigo, pois ela parece ter herdado (e defende com fúria) os mitos do mesmo teatro antigo. Sabe-se, por exemplo, que no teatro burguês, o ator “tomado” por sua personagem deve parecer inflamado por um verdadeiro incêndio de paixão. Desta regra decorrem as formas úmidas da combustão: sangue, suor e lágrimas. Numa peça de vanguarda dois atores/personagens desfizeram-se em choro, suor e saliva. A intenção de tal tempestade visual é fazer da “psicologia” um fenômeno quantitativo, para valer o preço do ingresso, é claro. O público não deve duvidar do quanto custa ao ator trabalhar diante dele (esta é a base material do misticismo em torno do “trabalho do ator”). Naturalmente a combustão do ator se reveste de justificações espiritualistas: ele se entrega ao demônio do teatro, sacrifica-se em sentido literal (como o bode grego), é interiormente devorado por sua personagem; a sua generosidade, a doação do seu corpo à arte e o seu trabalho físico são dignos de admiração e piedade. Nenhum público burguês resiste a um “sacrifício” tão evidente, e um ator que saiba chorar ou transpirar em cada cena pode ter a certeza do sucesso: a evidência do seu esforço laborioso dispensa qualquer julgamento mais profundo. Em nome do achado, o que vemos é a obsessão pela novidade a todo custo; uma série contínua de êxitos meramente formais, porque os processos são gratuitos, puro formalismo. O objetivo é mistificar, o que se obtém é estilo (ou grife). Um jornal de direita lança um “novo” modelo de crítica. Não

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deve ser reacionária, nem comunista, nem gratuita, nem política. Trata-se da mecânica da dupla exclusão (nem isto nem aquilo), característica do bom senso pequeno-burguês, para quem cultura se opõe a ideologia. Cultura, para este estrato social, é um bem nobre, universal, situado fora dos engajamentos sociais; ideologia é invenção partidária. Deste ponto de vista da cultura, a ideologia deve ser rejeitada. A cultura se beneficia do mito da intemporalidade. Aqui liberdade é recusa de ideias preconcebidas e a fruição de uma obra é uma aventura. Por último, o elogio ao “estilo” como valor eterno – o último bastião da mitologia clássica. Depois que Roland Barthes abandonou a trincheira da crítica teatral e passou a dedicar-se a objetos mais sublimes, a cena foi ocupada por variados herdeiros da vanguarda que ele denunciou. Um dos episódios mais marcantes, e com ampla repercussão no Brasil, foi protagonizado por Grotowski, em meados dos anos 1960, com a encenação, na França, de O príncipe constante. A partir deste espetáculo, o diretor polonês foi alçado à condição de celebridade mundial, maître à penser (Eugenio Barba é um dos seus discípulos mais consequentes), e desde logo passou a desempenhar o papel de vacina contra o vírus brechtiano39 no mundo ocidental. No livro O teatro laboratório de Jerzy Grotowski: 1959-1969, publicado em 2007 pelo SESC e pela Editora Perspectiva, encontram-se a reconstituição de sua trajetória, suas motivações e teorizações. Vamos à amostra. Seguindo uma linha religiosa de repertório, tanto católica (caso do Príncipe constante) quanto esotérica (Sakuntala, indiana), isto é, abertamente contrária ao ateísmo do regime comunista, o diretor polonês espertamente adotou o conceito de “teatro experimental” para obter subvenção do Estado para sua ação (obviamente política e anticomunista). “Devorado pela fome de absoluto”, como diz seu colaborador Ludwik Flaszen, desde logo desenvolveu o conceito de ator-espectador, isto é, o teatro ritual com a participação ativa do espectador. Com base na ideia de que Shiva, o deus indiano do

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Brecht, como sintetizador da pauta de lutas dos trabalhadores na frente teatral, é claro. Como já demonstrou Barthes, trata-se de rejeição em bloco de tudo o que ele significa, evidentemente pautada por preconceito de classe que autoriza até mesmo a desfiguração de sua obra, tanto a teórica quanto a teatral.

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teatro, é pulsação, movimento e ritmo, chegou à essência (coração) do ofício teatral, situada na passagem entre Artesanato e Metafísica. Grotowski usava palavras como “laicidade” para camuflar suas verdadeiras intenções religiosas. Com a teologia mística cristã chamada apofática (ver adiante), ele aprendeu que “[...] é preciso evitar as mentiras, mas as coisas nem sequer devem ser definidas com clareza absoluta”. Para ele, a essência do teatro é capaz de satisfazer, “de modo laico”, certos excessos da imaginação e da inquietude desfrutados nos ritos religiosos, porque o teatro é a única arte que possui o privilégio da “ritualidade”: é um ato coletivo (laico) no qual o espectador tem a possibilidade de coparticipar; o espetáculo é uma espécie de ritual coletivo. A causa a que este diretor se dedicou foi a da restauração do jogo ritual no teatro, onde há o xamã, ou celebrante – a figura principal – e, como secundárias, a multidão que dança, gesticula etc., incluindo os “espectadores”. Grotowski recupera, para esta finalidade, o mistério no sentido de segredo (operando, evidentemente, um curto-circuito entre a Grécia dos oráculos e o teatro medieval pois, para quem não admite a história, este arbítrio de artista está plenamente assegurado) e enuncia a tese que até hoje circula entre nós: uma vez que o cinema e a televisão sequestraram as funções do teatro burguês, pois são as artes da literalidade (leia-se: da narrativa realista dramática), ao teatro cabe o cultivo do ritual da religião, uma espécie de magia, de jogo. Todos, artistas e espectadores, precisam raciocinar em termos teatrais (como acima enunciados). Tratava-se, para o seu grupo, de desenvolver as pesquisas da grande reforma do teatro da primeira metade do século XX (se alguém não entendeu, não custa insistir: aquela “iniciada” por Gordon Craig e promovida por Jacques Copeau e companhia). Nas palavras de um deles, como o teatro foi suplantado por formas de espetáculo mais atraentes e de massa, como o cinema e a televisão, ele precisa defender-se, e para isso precisa encontrar aquelas formas que assegurem a sua especificidade e a sua necessidade, a saber, a teatralidade. Pois o específico do teatro é o contato humano vivo. E com base numa apropriação também arbitrária do conceito junguiano

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de inconsciente coletivo, enuncia-se a tarefa política deste teatro: influir sobre a esfera inconsciente da vida humana em escala coletiva. Os temas, objeto dessa operação-resgate, são os da mais profunda fé cristã: imortalidade da alma, ressurreição e similares. Os recursos são os típicos da catequese: oposição entre blasfêmia e devoção, exame crítico da redenção, e assim por diante. Quanto aos materiais e técnicas (num espetáculo chamado Caim), é permitido usar tudo o que a história mundial do teatro já produziu: circo, cabaré, bufonaria, trivialidade, caricatura, sátira, vaudeville, pantomima, enfim, a dieta básica do teatro contemporâneo, num assalto metódico e calculado ao repertório do agitprop e do teatro épico. Para encerrar estas anotações, que começam a ficar repetitivas, uma última observação do já citado Flaszen: o cerimonial teatral é uma espécie de provocação. Uma provocação que tem a finalidade de atacar o inconsciente coletivo. Daí deriva o interesse em atuar com opostos: tanto expor coisas sublimes de modo bufonesco quanto o contrário, coisas vulgares de modo elevado. Eliminada totalmente a divisão entre palco e plateia, naturalmente o espectador nem por um momento deve saber o que lhe acontecerá. Deve ficar completamente refém das surpresas, circundado pelos atores que, frequentemente, se dirigem a ele cara a cara e o induzem até mesmo a cumprir certos atos previstos pela ação. O método do choque e da surpresa psíquica cria a aura da comunidade. A relação entre o espectador e o ator torna-se quase uma ligação ao pé da letra. Quase como nos ritos mágicos, as pré-fontes arcaicas do teatro... Ainda que esta amostra já seja suficiente para indicar o terreno onde deitam raízes as principais mistificações do mundo teatral contemporâneo, não posso encerrá-la sem passar a palavra a um dos mais recentes sacerdotes desta religião mais que centenária. Trata-se de um heideggeriano franco-argelino, autor de O teatro é necessário?, recentemente publicado no Brasil – seu nome é Denis Guénoun. Seu diagnóstico da crise do teatro na França é muito similar ao que nossos grupos teatrais têm apresentado em diversas intervenções, inclusive manifestos propriamente ditos. Por exemplo:

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“[...] o teatro convencional busca heroicamente espectadores que escasseiam e, ao mesmo tempo, está atravancado por hordas de candidatos que batem às suas portas”. Todos eles querem fazer teatro, viver de teatro, viver o teatro. Para tal, buscam os mais variados espaços, como prisões, hospitais, escolas e bairros da periferia em permanente risco social ou de conflagração. Na ausência da militância política, os artistas ocupam esses espaços. (Sendo a abordagem metafísica, obviamente não lhe interessa o sintoma da crise de superprodução...). Como discípulo assumido de Martin Heidegger, o Denis do século XX não precisa pedir desculpas por se perguntar pela essência do teatro e responder sem nenhuma hesitação nos termos de Grotowski, abundantemente citado em sua tese: ela está na relação única entre ator-espectador, que vale tanto para o teatro grego, como para o japonês ou para o francês, seu contemporâneo. (Anotação de leitura: ele assume uma essência a-histórica para o teatro e, curiosamente, ignora outras situações em que essa relação ator-espectador também existe, como é o caso de inúmeros rituais religiosos, para não falar em exemplos ainda mais constrangedores...). Ele mesmo cuida de se apresentar como ex-militante do teatro francês pós-brechtiano (corrigenda: pós-susto que o Berliner Ensemble aplicou na cena francesa, como explicou Roland Barthes) que já aprendeu algumas lições com Brecht. Por exemplo: a identificação ator/personagem/público é regressiva. Mas em compensação “[...] a experiência de observar a criação de um papel justifica o valor metafísico da vida...” Denis Guénoun retoma o “diagnóstico” grotowskiano segundo o qual o cinema “confiscou” o imaginário do teatro (assim como o público, acrescentaria Brecht, que preferia o exame materialista dos problemas) para desenvolvê-lo em duas direções muito curiosas: na primeira, defende a hipótese de que Stanislavski (e seu método para produzir a identificação) já tem o cinema como horizonte e, na segunda, promove Sergei Eisenstein (o cineasta!) a verdadeiro encenador, genial inclusive... Usando como exemplos personagens de peças de Claudel (o dramaturgo favorito de Copeau, de que nos fala

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Barthes), assegura-nos que agora teatro é jogo, finalmente libertado do mimetismo. Como a dança, é um existir remetido a si mesmo (lembram da tautologia?); sua verdade é intempestivamente poética; o trabalho dos atores é fraseado, respiração e exibição dos recursos físicos de uma língua (a receita de Grotowski). Agora, alguém se torna ator fundamentalmente por desejo de ser ator. É o ofício do ator que em si mesmo mobiliza o desejo, até porque o sentido do jogo é o jogo, os espectadores vão ao teatro para ver teatro (lembram das tautologias?). Diante de tanta novidade, os usos brechtianos envelheceram, é claro, porque agora o espectador deve sair do teatro com o desejo de fazer o que o ator faz (que é teatro...). 8. Teologia apofática Antes de tratar das possibilidades da relação crítica produtiva com o teatro contemporâneo, é preciso identificar um movimento teórico – também chamado pós-moderno ou desconstrução – que se empenhou em destruir a própria ideia de crítica. Embora Roland Barthes já tenha identificado o seu método inspirado na teologia apofática – insistência na negação, ou recusa a afirmar o que quer que seja40 –, como estratégia da direita no campo da crítica, vale a pena começar pela sua mais importante fonte filosófica. O profeta dessa espécie de religião que não ousa dizer seu próprio nome foi Nietzsche41, mas Heidegger lhe deu régua e compasso (como Paulo, o apóstolo da Igreja Católica). Por certo não vamos nos deter nas sutilezas da sua intervenção destrutiva (enunciada como programa já em 1927 em sua obra fundamental, Ser e tempo), mas não custa lembrar, a quem possa ter interesse no assunto, que desde 1996 está publicado em livro42 o ensaio em que

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“Neti, neti”, que significa “nem uma coisa nem outra”, é um mantra que se canta nos exercícios de yoga. Provém da convicção de que Brahma está além da compreensão humana, tal como ensinam os teólogos vedantas, a base oriental da teologia negativa ou apofática.

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41 Adorno usa a expressão “religião envergonhada” para identificar o fenômeno. Cf. Theodor ADORNO. La ideología como lenguaje. Madrid: Taurus, 1971. Quanto a Nietzsche, segundo Walter Benjamin, “o paradigma do pensamento religioso capitalista é formulado de modo magnífico na filosofia de Nietzsche” (Cf. BENJAMIN, Walter. op. cit.).

Paulo Eduardo ARANTES. Por que permanecemos na província? in Ressentimento da dialética. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 347-359.

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Paulo Eduardo Arantes resume a contribuição de Heidegger para o estabelecimento do ideário do “artesanato espiritual” que remete ao artesanato pré-capitalista, desenvolvendo as “bolorentas inclinações Kitsch do pequeno-buguês alemão”. Expondo um gosto equívoco pelo arcaico, ao mesmo tempo que defendia firmemente o programa nacional-socialista para a cultura e a educação, este filósofo tratava de explorar a “[...] aura de autenticidade supostamente entranhada nas perguntas simples e essenciais da filosofia”, (ADORNO) traduzindo o seu provincianismo em idílio metafísico-pastoral. Um bom exemplo é a sua Introdução à metafísica, de 1935, que se ocupa sem rodeios com a demonstração da “verdade interna” e da “grandeza” do nacional-socialismo. Mas vale a pena passar a palavra ao “pastor do ser da Floresta Negra”. Em 1933, assim que Adolf Hitler definiu as metas do Estado Nazista, e já na condição de reitor da Universidade de Freiburg, Heidegger ministrou duas disciplinas em que tratou de estabelecer a missão da filosofia no interior deste programa político, a saber: destruir a dialética, entendida como a herdeira da filosofia ocidental (que, como Nietzsche avisara, é um processo de decadência que se inicia com Sócrates e Heidegger trata de apelidar de “esquecimento do Ser”). As citações que seguem estão no livro Ser e verdade, publicado pela editora Vozes em 2007.43 “A juventude acadêmica sabe da grandeza do momento histórico que o povo alemão atravessa. [...] Tomar ciência das condições políticas do povo alemão de hoje [...] é, sem dúvida, indispensável, mas não é o decisivo. Saber da missão político-espiritual do povo alemão é saber o seu porvir. [...] Saber de uma missão é um saber reivindicador daquilo que, antes de mais nada e para tudo o mais, deve acontecer caso a nação tenha de gestar-se em sua e para a sua grandeza.” (p.21-22) “A filosofia [deve ser entendida] como combate histórico [...] se quisermos ou não a grandeza de nosso povo, se tivermos ou não a Trata-se de volume composto pelos cursos dos anos de 1933 e 1934. Os textos permaneceram na condição de manuscritos (e anotações de alunos) até 2001, quando Hardmut Tietjen organizou a publicação.

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vontade duradoura de assumir uma missão única e extraordinária entre os povos [...] se [...] admitirmos, com toda força, que a virada atual do destino alemão carrega em si o desafio mais agudo de nossa presença, colocando-nos diante da decisão; a decisão se queremos ou não criar, se criaremos ou não o mundo do espírito ainda embutido nos acontecimentos por vir [e assumir] A TAREFA DE ESPIRITUALIZAR E ENOBRECER A REALIZAÇÃO CABAL DA REVOLUÇÃO NACIONAL-SOCIALISTA”. (p.24)44 [Para tal, trata-se de combater] “[...] o espírito [que] anda por aí como ‘sutileza’ vazia, como jogo sem compromisso de artimanha, como atividade sem limites de divisão e decomposição, como regência desenfreada de uma assim chamada razão cósmica.” (p. 24-25). “Trata-se de conquistar uma história universal em luta contra a própria história.” (p.27) “O ataque há de atingir a posição capital de toda a história, com cuja conquista tudo se decide [...] esta posição capital [...] é a filosofia de Hegel”. (p.30) “A forma de saber matemático não é, para a filosofia moderna até Hegel, uma moldura externa de apresentação do sistema, mas a lei interna que determina, em princípio, o conteúdo da filosofia e simultaneamente a ideia de verdade.” (p,51) “O matemático é um fundamento essencial de determinação da metafísica moderna; [portanto] demonstrando que Descartes é o início de mais uma decadência na filosofia consegue-se destruir a sua imagem usual (p.53) [...] Tal proposta é, ao mesmo tempo, a primeira estocada num ataque geral que visa a Hegel.” (p.54) “A metafísica de Hegel é teológica e, como tal, é a plenitude da metafísica ocidental.” (p.84) “A ‘lógica’ de Hegel não trata do ‘pensamento’, mas do ser, do nada, do vir-a-ser, presença, possibilidade, realidade, necessidade, fundamento, causa – conceitos primordiais da metafísica.” (p.87)45 Conclamando os seus ouvintes à ação, o filósofo cobra deles coragem: “[...] levar a coragem de agir o mais longe e por mais tempo

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Embora seus discípulos insistam em afirmar que Heidegger apenas “curvou-se” ao nazismo, sabe-se que ele permaneceu filiado ao Partido Nacional Socialista até 1945 e nunca renegou sua condição.

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Não vamos, evidentemente, debater essas proposições verdadeiramente inacreditáveis. Este é um típico exemplo do que Heidegger chama “atravessar/fazer a travessia” de alguma teoria. Seu resultado é a desfiguração completa, destruição no sentido próprio, do objeto.

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possível. [Pois] Em todos os campos de nossa presença política atual ainda há muitos hoje, mesmo entre os que carregam agora o distintivo do partido e coisas assim, nos quais nada mudou na essência e na atitude básica. Comportam-se da seguinte maneira: 1. declaram-se prontos a colaborar; 2. mas esperam ver como as coisas vão se desenvolver; 3. nesta espera, confiam que tudo venha a ser novamente como era antes, só que agora se chama NACIONAL-SOCIALISTA; 4. tal atitude se convence a si mesma de ser superior, racional e objetiva. Exemplo: sempre se diz: ‘o novo Estado ainda não existe [...] ele ainda não existe, mas queremos e vamos criá-lo e já pusemos mãos à obra e não haveremos de fraquejar, mas antes nos comprometeremos com mais força. Somos um povo que ainda deve ganhar a sua metafísica e que a vai ganhar, isto é, somos um povo que ainda tem um destino. Cuidemos para não nos contrapormos a esse destino, mas para nele e com ele atravessarmos as paragens do nosso destino.” (p.94) “Quando, hoje em dia, o Führer fala sempre de novo em mudar a educação para a concepção de mundo nacional-socialista, isso não significa: fornecer uma palavra de ordem qualquer, mas produzir uma mudança total, um projeto de mundo em cuja base se educa todo o povo. O nacional-socialismo não é uma doutrina, mas a transformação, pela base, do mundo alemão e, como acreditamos, do mundo europeu inclusive.” (p.233) “Tudo isso são tentativas de término – esta vontade de originariedade, para uma fundamentação originária, para a simplificação, para a DES-CONSTRUÇÃO. [...] A execução de um ataque desse tipo há de mirar Hegel. (p.283) [trata-se de] disputas – separação; o que, para nós, se decide contra ou a favor.” (285) Também para que não haja dúvidas sobre o verdadeiro inimigo a ser “destruído”, em discurso de 1933, o reitor mostra como se “refuta” o marxismo praticando abertamente a teologia apofática: “O trabalhador NÃO É... O estamento dos trabalhadores NÃO É... Além disso, o trabalho NÃO É apenas... O trabalho TAMBÉM NÃO É simplesmente...”46 Não precisamos obviamente perder tempo aqui com os predicados que foram negados. 46

Apud Paulo Eduardo ARANTES. Por que permanecemos na província?, op. cit., p. 354.

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O professor Heidegger foi muito mais bem-sucedido que seu Führer, pois o mundo “pós-nazista”, especialmente o francês, depois do pesadelo comandado por Hitler, tratou de promover este metafísico nazista a maître à penser de todos os acadêmicos que passavam por progressistas (anti ou ex-comunistas), sobretudo no campo das humanidades47. Jacques Derrida é apenas o mais célebre discípulo na academia francesa que nunca escondeu suas dívidas para com o pensamento de Heidegger, nem mesmo que sua prodigiosa máquina de produção de proposições apofáticas, conhecida como desconstrução, provinha da destruição heideggeriana. Toda a sua intervenção líterofilosófica foi sempre pautada pela regra do pensamento apofático, de nunca afirmar nada. Como explicou Hegel (na Filosofia do direito, denunciando o procedimento jesuítico), esta estratégia argumentativa, caracterizada pelo ódio ao pensamento, consiste numa deslealdade básica para com o interlocutor, pois este nunca sabe, porque não é para saber, o que está sendo dito. Além disso, a sua aparente coerência lógica mantém-se na forma plena da inconsequência, da ausência de pensamento, que se sente inteiramente à vontade na proliferação de contradições meramente discursivas com ares de profundidade. Além de dar continuidade aos ataques de Heidegger à dialética (chegando ao cúmulo de sugerir – nunca afirmar – em Glas a adesão de Hegel a algum tipo de antissemitismo), este literato filosofante tratou de rejeitar a própria ideia de crítica48, tal como inaugurada por Immanuel Kant, para colocar no seu lugar esta atitude “hermenêutica” que consiste em inviabilizar o debate: como debater não afirmações? Como questionar o que nunca é propriamente afirmado, mas apenas insinuado, que sempre pode significar qualquer outra coisa, incluindo o seu contrário, sempre colocando todos os termos do debate, inclusive o próprio, sob “suspeita”?

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No calor da hora, Adorno expôs sem meias palavras algumas das razões para a sobrevivência no pós-guerra do que chamou “jargão da autenticidade”, ou a filosofia de Heidegger. Cf. Theodor ADORNO. La ideología como lenguaje, op. cit.

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Para quem considera a história relevante, crítica neste sentido é inseparável da política moderna, ou seja, da luta de classes ou, como explicou Paulo Eduardo Arantes (cf. op. cit.), do exercício público da inteligência, ao qual Hegel chamou de “espírito de contradição”, que ele mesmo tratou de organizar em método, isto é, a dialética.

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Glas – a obra magna do anti-hegelianismo derrideano – é o exemplo máximo da prática lítero-filosófica destrutiva. Além de mimetizar a montagem (oferecendo uma aparente contraposição entre a obra de Hegel e a de Jean Genet), a máquina gramatológica da différance se empenha em implicar (nunca demonstrar) que o pensamento dialético, para além de suas falhas metafísicas já enumeradas acima por Heidegger, tem a pretensão de conhecer o incognoscível49. Mas, de todas as perversidades praticadas neste livro, a mais grave é a insinuação que não se demonstra, nem mesmo segundo os critérios da honestidade intelectual acadêmica (com o álibi de que se trata de obra literária). Isto é, afirma-se alguma coisa sobre o conjunto da obra de Hegel sem a preocupação de dar as demais referências, o que impede seu leitor de verificar o afirmado, como neste exemplo: “Podem-se verificar as correspondências estruturais entre todas as descrições do Klang [som, em alemão] na Estética, na Fenomenologia do espírito, na Filosofia da natureza” [fica implícito que, quem quiser verificar, que leia tudo e, enquanto isso não acontece, Derrida não corre o risco de ser interpelado em caso de verificação da falsidade da afirmação...]. Seguindo o exemplo de dar fontes genericamente, passemos a algumas citações das seguintes obras de Derrida: Gramatologia, A escritura e a diferença, A verdade na pintura, Glas, A voz e o fenômeno, Posições, Margens da filosofia, A disseminação, Memórias, Otobiografias, Jacques Derrida, além de diversos depoimentos, palestras e intervenções (quem quiser que faça as verificações: são as regras do jogo dele). Lembrando sempre que a crítica pressupõe a ordenação lógica dos seus próprios argumentos, a clareza na exposição, o compromisso com o interlocutor que se traduz na rejeição a qualquer falácia – sobretudo a dos quatro termos50; afirma a história como Desde Kant, o incognoscível, ou coisa em si, é um conceito racional que já permite à filosofia crítica desmascarar as pretensões científicas da teologia. O passo adiante de Hegel foi demonstrar que, sendo criação da razão, a coisa em si pode ser perfeitamente conhecida.

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Sempre que, falando ou escrevendo, se usa uma palavra ora num sentido ora em outro, se produz a falácia dos quatro termos, tal como demonstrado há dois mil anos por Aristóteles.

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pressuposto e conteúdo de verdade das obras do pensamento e que, em oposição metódica a estes valores, a desconstrução opera com repetições infinitas (como mantras indianos), põe toda percepção sob suspeita, sugere que o cógito (eu penso) é uma errância louca e assegura que não há ponto de partida absolutamente justificado; a desconstrução começa sempre em algum lugar sem saber muito bem onde, pois sempre está no não importa o quê; já se apostou tudo e se perdeu. É impossível ter clareza e é melhor dar adeus ao sentido: nunca se compreenderá coisa alguma, até porque não há nada para compreender. Como a repetição é regra deste jogo, vamos a algumas: “não existe significado ou sentido, só há efeitos”, “posso ser a favor ou contra”; “as mais indecidíveis frases que fiz ou desfiz”; “minha vida só foi uma história de preces”; “não só o significante não é material, como também não há significante”, “há uma incoerência no conceito de signo e no conceito de conceito”, “trabalhamos em um meio onde possibilidade e impossibilidade se entre-implicam”; “não se pode [...] evitar a cumplicidade com a metafísica”; “não há coisa, nem signo, nem começo”; “não gosto da expressão ‘ganhar a vida’, daí a remissão indefinida, a chamada TEOLOGIA NEGATIVA [meu destaque], o jogo com os nomes de Deus, a substituição de uma margem pela outra”; “não estou seguro de pertencer a religião nenhuma, por motivo de literatura, nem a literatura alguma por motivo de religião”; “não se atravessando as questões transcendentais [travessia também vem de Heidegger, não custa repetir], corre-se o risco de cair na ingenuidade”. Desconstrução é “[...] atravessar o texto do outro deixando nele o traço dessa travessia: não se terá compreendido nada da desconstrução [então isto é para compreender?] se pensarmos essas travessias do texto do outro unicamente como meio para alcançar um objetivo, conclusões em forma de teses. Só existem travessias” [portanto, não há conclusões nem teses]. “Revelação é um evento que revela a sua revelabilidade; ela irrompe; a existência de Deus é a sua manifestação”; “eu passo por ateu, mas não posso dizer que sou ateu, nem que sou crente. Eu só escrevo”; “o signo nada mais é

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que sua própria representação”; “sempre fui escatológico [nos dois sentidos: o pornográfico e o salvacionista] ao extremo”; “eu prometi a Deus só escrever comandado pela mais incoercível das pulsões”; “hipocrisia, desvio e desleixo [são procedimentos da desconstrução]”; “a televisão é autoritária, seu método operacional é a dissolução da lógica” [então ela é desconstrução também?]; “não há conhecimento, verdade ou percepção enquanto tais – seus opostos são fé, perjúrio e linguagem”; “como negar e não negar? É o segredo: há um segredo da negação e uma negação do segredo”; “escrevo reconstituindo uma estrutura compartimentada e transcendente da religião, de diversas religiões”; “se investido da mais alta autoridade eu escrevesse algo, preferiria fazê-lo de maneira a dar a entender por minhas palavras o que cada um pudesse apreender de verdadeiro a respeito dessas matérias, a propor um significado único, bastante claro para excluir todos os outros” [como os oráculos]; “eis o que eles não suportam, que eu nada diga [...], tese alguma que se possa refutar, nem verdadeiro nem falso, nem isso, não vi, não peguei, não se trata de estratégia, mas da violência do vazio pelo qual em mim Deus se entrincheira, geologicial, eu mesmo nunca pude me contradizer, logo escrevo”. “Deus [...] é a minha única memória, a condição de todas as minhas fidelidades”; “venero e invejo Santo Agostinho”. “Cita-se sempre por definição fora do contexto”; “a possibilidade necessária da citação fora do contexto [...] pode ser generalizada, a partir da escritura, para a linguagem em geral.” Depois dessa torrente de citações, talvez fosse o caso de perguntar: seria Derrida, o frère Jacques, um teólogo ou um desconstrutor da religião? Seria um metafísico ou um destruidor da metafísica ocidental? Um poeta praticante de metáforas, catacreses, citações e deslizamento dos sentidos, ou um filósofo tardio em busca incessante dos sentidos da morte? Dadas as condições de possibilidade e/ou impossibilidade que ele mesmo estabelece para a (in)compreensão profunda de suas escrituras, não diríamos que Derrida responde mais a umas que a outras dessas alternativas, nem que responde a umas e outras, nem que não responde nem a umas nem a outras...

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9. Teologia apofática da cena Embora Derrida tenha muitos discípulos no campo do pensamento contemporâneo sobre o teatro51, aqui vamos nos deter apenas na mais recente manifestação de um deles, particularmente por se tratar de alemão que por assim dizer fecha o périplo da metafísica heideggeriana. Estamos falando de Hans-Thies Lehmann, cujo livro O teatro pós-dramático52 servirá de base para a exposição. Neste caso serão feitas as citações seguidas das páginas da edição brasileira e alguns comentários, retirados da obra de Adorno já referida, serão feitos em nota de rodapé. Lembrando ainda que, como se trata de discurso religioso, dogmático por definição, não nos daremos ao trabalho de contrapor a ele nenhum argumento; além disso, embora nosso autor use inúmeras aspas, não o faremos pois, como disse Adorno, na língua heideggeriana as aspas nada mais são que luvas de uma metafísica melindrosa. Como Lehmann faz questão de colocar entre seus mestres, além de Martin Heidegger e Derrida, teólogos como Emmanuel Lévinas e Jean-François Lyotard, não custa lembrar que Heidegger foi um dos primeiros a postular a “ilusão da presença” no seu programa de espiritualização do nazismo, Lévinas é o formulador da proposição do “outro” como inapreensível; Derrida decreta a crise da representação com base na ilusão da presença heideggeriana e Lyotard é quem determina que a arte deve ambicionar o sublime, isto é, o outro, o ausente, o inapreensível. O próprio Lehmann nos autoriza, para além de sua filiação derrideana, a não debater suas proposições na página 124 do Livro: “Não há nada para debater. O que é realizado e falado tem o caráter de um rito inelutável, concertado, executado quase que cerimonialmente repetidas vezes.” Vamos então ao Evangelho do discurso pós-dramático. “Não se pode mais fazer como Hegel porque o pluralismo dos fenômenos impôs o reconhecimento do caráter imprevisível e súbito

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Interessados podem ler com proveito os dois últimos capítulos do livro de Marvin CARLSON, Teorias do teatro, publicado em 1997 pela Editora Unesp.

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Hans-Thies LEHMANN. O teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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da descoberta, do indeterminável momento da invenção.” (p. 23) “Um novo paradigma do teatro pós-dramático – fronteiras negativas entre modalidades altamente diversificadas do teatro pós-dramático e do teatro dramático.” (p. 29) Pós-dramático, pós-moderno, pósbrechtiano e novo teatro são equivalentes: “teatro pós-dramático supõe a presença, a readmissão e a continuidade das velhas estéticas, incluindo aquelas que já tinham dispensado a ideia dramática no plano do texto ou do teatro.” (p.34) Também pode ser chamado teatro energético, como queria Lyotard: “para além da representação – que por certo não significa simplesmente desprovido de representação, mas não dominado por sua lógica.” (p.58) Adaptando a tese de Heidegger para o discurso pós-dramático, temos: “[com Aristóteles] se desenvolveu uma base essencial para o teatro dramático, a qual se tornou axiomática para a estética ocidental: a totalidade do logos. A cumplicidade entre drama e lógica, depois entre drama e dialética, domina quase que ininterruptamente a tradição aristotélica europeia – que se mostra ainda muito viva na dramática não aristotélica de Brecht. O belo é pensado segundo um modelo lógico, como uma variante dele. Um ponto culminante nessa tradição é a Estética, de Hegel. Sob a fórmula geral do belo ideal como aparência sensível da Ideia, ela desdobra uma complexa teoria da presentificação do espírito no âmbito do sensível de cada respectivo material artístico.” (p.65) “Teatro pós-dramático pode ser concebido, não como um teatro que se encontra além do drama, sem relação alguma, mas muito mais como desdobramento e florescimento de um potencial de desagregação, de desmontagem, de desconstrução do próprio drama. Surge um fenômeno impensável hegelianamente, já que o mero ator individual situa-se acima do teor ético.” (p. 69) “O impulso para a constituição do discurso pós-dramático no teatro pode ser descrito como uma sequência de etapas de autorreflexão, decomposição e separação dos elementos do teatro dramático.” (p.78) “Segundo Heiner Müller, o essencial no teatro é a metamorfose, o ato de morrer. [Interessam] rito e cerimônia, poesia do palco e semiose extralinguística ou no limite do linguístico. Trata-se sobretudo

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da realidade da superação – sempre ambígua – da morte por meio da encenação.” (p.77-78)53. “[Com a indústria cultural] temos a questão constitutiva e incontornável de saber o que o teatro contém de inconfundível e insubstituível em comparação com outras mídias.” (p.82) “Foi somente sob a influência das mídias de reprodução, a fotografia e o cinema, que o teatro tomou consciência da sua especificidade” (p.155)54. “[No teatro pós-dramático] a dissolução de certezas universais é um dado cultural previamente estabelecido.” (p.88) “Não se pode falar de uma continuidade do teatro do absurdo e do teatro épico no novo teatro; deve-se antes indicar uma ruptura, já que tanto o teatro do absurdo quanto o épico, por vias diferentes, se atém ao primado da representação de um cosmos textual fictício, ao passo que o teatro pós-dramático não mais o faz.” (p.89). Como diz Maeterlinck, “a peça de teatro deve ser antes de tudo um poema” (p.94). Para Claudel, “o drama é um evento”55; “a missa católica é um modelo para o teatro.” (p.95) “Na concentração em torno do ritual manifesta-se uma experiência que só pode ser designada com a palavra destino [...] entrega dos homens ao destino de acordo com uma lei que permanece obscura. Seria um erro refutar tais concepções, decerto problemáticas, de um ponto de vista crítico-ideológico [...], essa tradição da manifestação teatral do destino e dos espíritos, que são decisivos para a compreensão de todo o novo teatro.” (p.96) “Com razão [esse teatro] se insurge contra a recusa generalizante que se

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A violência é inerente ao núcleo da filosofia de Heidegger – é uma teologia da morte. Violência é cumplicidade com a morte. A morte determina tudo em Heidegger. Como a morte, enquanto horizonte existencial do ser-aí, é absoluta, ela se converte no absoluto enquanto venerável. Retrocede-se a um culto à morte. (Cf. Adorno, op. cit., p. 101 – 104).

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A exportação deste espírito alemão venceu a concorrência com o pensamento mercantil do ocidente usando a marca de não ser mercadoria – artesanato. Seu lema é levar arte à vida, exercitando os ofícios à sombra da indústria, de modo tão seletivo como barato; coleciona imitações de impulsos reformadores da vida na base do Kitsch (Adorno, p. 83). O discurso cai como uma luva para aqueles que se sentem historicamente condenados, ou em decadência, mas que se comportam diante de si mesmos e dos outros como elite superior (Idem, p. 20). Trata-se da defesa da profissão e da subvenção a favor da manutenção das condições reinantes (Idem, p.30).

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Evento tem algo da seriedade dos sacerdotes (áugures) que têm o compromisso de guardar segredo sobre o objeto sagrado (Adorno, op. cit., p. 13). Assim como as palavras sagradas sem conteúdo sagrado, tem a função de masturbação ideológica da pequena burguesia ameaçada e humilhada pelo desenvolvimento social (Idem, p. 14).

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esquiva ao desafio posto pelas ações em razão de uma aversão ao religioso pretensamente esclarecida.” (p.230) “O teatro estático de Maeterlinck é a primeira dramaturgia antiaristotélica da modernidade europeia porque rejeita a ação.” (p.97) “Os pós-dramáticos renunciaram à ilusão de uma realidade reproduzida.” (p.99) “Conforme Derrida, em lugar da obra teatral fechada nela mesma, tem-se o ato e o processo expostos de uma comunicação teatral agressiva, enigmaticamente esotérica ou comunitária.” (p.100) “O fator estático apareceu cada vez mais como uma oportunidade do teatro na sociedade midiática.” (p.101)56 “Segundo Grotowski, a tarefa da arte seria romper o processo racional e mental por uma via negativa a fim de encontrar um acesso para as imagens do inconsciente. [...] A verdadeira comunicação não se baseia no entendimento, mas se dá por estímulos à própria criatividade do receptor, estímulos cuja comunicabilidade está fundada nas predisposições universais do inconsciente.” (p.109) “O teatro pósdramático é um teatro de estados e de composições cênicas dinâmicas [...]. É evidente que a prática do teatro sempre possui uma dimensão cerimonial. Essa dimensão sempre adere ao teatro [...] por suas raízes religiosas e rituais. [O teatro pós-dramático] é a substituição da ação dramática pela cerimônia. Cerimônia é toda a diversidade dos procedimentos de representação sem referencial” (p.114). “Jean Genet considerava o teatro expressamente como cerimônia e a missa como a forma mais elevada do drama moderno.” (p.116) “A concentração nos processos de metamorfose leva na verdade a um outro modo de percepção, no qual o reconhecimento é continuamente superado por um jogo de espanto57 que não se situa em nenhum ordenamento da percepção.” (p.128) “Deve-se conceder aos signos teatrais a possibilidade de atuar justamente por meio da eliminação da significação [...] é ainda preciso desenvolver formas de discurso e de descrição para aquilo que [...] permanece como não sentido no significante.” (p.138) (Esse discurso) valoriza formas sociais que são incompatíveis com o atual nível das forças produtivas (Adorno, op. cit., p. 40).

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Do grego, thaumásia ou, como Heidegger preferia, thaumátzein, que traduzia como “consideração admirativa do ser”. Admiração que proporciona um saber, mas somente por ter sabido [ou revelação, segundo a teologia]. (Adorno, op. cit., p. 85).

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“[O teatro pós-dramático] é prática artística de desconstrução multimedial ou intermedial do acontecimento instantâneo.” (p.139) “O espectador do novo teatro procura [...] as correspondências baudelairianas no templo do teatro.” (p.140) “[O teatro pós-dramático] é mais presença que representação, mais experiência partilhada que comunicada, mais processo que resultado, mais manifestação que significação, mais energia do que informação.” (p.143) “O caráter fragmentário da percepção [...] se tornará expressamente consciente no teatro pós-dramático. Aqui se nega ao espectador o desejo de orientação. O espectador escolhe o que vai ver.” (p.146)58 “Torna-se decisivo que o abandono da totalidade não seja pensado como déficit, mas como possibilidade libertadora.” (p.147) “[Gilles] Deleuze e [Félix] Guattari propuseram rizoma para [definir] realidades nas quais ramificações intangíveis e conjunções heterogêneas impedem a síntese.” (p.149) “A aura da presença corporal continua a ser o ponto do teatro no qual se dá o desvanecimento de todo o significado em favor de uma fascinação distante do sentido, de uma presença espetacular, do carisma ou da irradiação [...]. O signo central do teatro, o corpo do ator, recusa o papel do significante.” (p.157) “O sujeito da percepção não pode mais se apoiar num ordenamento representativo [...] Em sentido estrito, aqui nada se transmite ou reproduz, pois não há nada que possa ser transmitido ou reproduzido. A visão vidente acompanha o surgimento do visto e do vidente que está em jogo no acontecimento da visão, do tornar-se visível, e do fazer-se visível.” (p.161-2)59. “O pós-dramático explicitou o campo do real como [...] objeto da própria configuração teatral. Isso ocorreu [...] de modo especialmente elucidativo por meio de uma estética da indecidibilidade em relação aos recursos básicos do teatro [...] torna possível a estética da irrupção do real [...] como se quisesse tornar conhecidos eventos enigmáticos em função de um objetivo desconhecido [...] intenção de produzir um acontecimento.” (p.164-169).

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Como nas gôndolas do supermercado, ou nos cadernos de cultura da imprensa burguesa...

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A pura tautologia que expande o conceito ao se negar a determiná-lo e em vez disso o repete de modo rígido é espírito enquanto ato de violência (Adorno, op. cit. p. 100).

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“O último Heidegger compreende o conceito de acontecimento como uma des-apropriação [...] ele destitui a certeza e permite que se experimente uma indisponibilidade.” (p.171) “Um impulso performático que escapa à categorização narrativo/não narrativo [...] traz para o teatro uma sensibilidade extremamente aguçada para o fenômeno e para a ruína da morte.” (p.187)60 “Hermenêutica da produção da presença é a eucaristia.” (p.235) “A presença do ator é epifania autorreferente.” (p.238) “A dimensão da estética teatral é a estrutura de um choque cuja excitação não se prende a um objeto – de um espanto não com a história, não acerca de um fato, mas acerca do próprio espanto. O teatro pós-dramático é teatro da presença [...] como algo que acontece. Não pode ser objeto nem substância; não pode ser objeto do conhecimento [...] Contentamo-nos com entender essa presença como algo que acontece.” (p.239) “A arte se torna o outro estritamente vazio de conteúdo, como uma epifania sui generis.” (p.240) “Derrida explicou que para [Antonin] Artaud interessava a dimensão de acontecimento.” (p.246) “No teatro radical não se afirma nem se rejeita esta ou aquela posição; antes, o próprio posicionar-se permanece em aberto [...] palavra como significado e apelo (Zu-Sprache, nos termos de Heidegger) à desconstrução poética do Logos.” (p.247) “Vivenciamos um monótono fluxo de signos que se esvaziaram de seu caráter comunicativo, e já não podem ser apreendidos como totalidade poética, cênica e musical: versão pós-dramática e negativa do sublime.” (p.310) “Nesses momentos da não compreensão, do choque, da percepção do indizível, experimenta-se a exposição a um outro tempo.” (p.319) “O teatro teve início quando um indivíduo se desligou do coletivo e fez algo notável de si mesmo, saiu da coletividade protetora e adentrou um espaço além e adiante do grupo. Este outro âmbito permanece estranho e inquietante, de modo que o palco conserva algo do Hades: nele perambulam espíritos. O corpo do teatro é sempre A filosofia de Heidegger é uma teologia da morte. (Adorno, op. cit., p. 101). A substância humana é constituída de impotência e nulidade. Por isso é preciso aceitar o sofrimento, o mal e a morte. (Idem, p. 53).

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da morte.” (p.331) “Na evocação do não representável, isto é, da dor, deparamos com um problema central do teatro: a exigência de tornar presente o inapreensível.” (p.355) “O teatro pós-dramático não oculta que o corpo está destinado a morrer; ao contrário, enfatiza este fato [...] é espantosa a presença de Grotowski no pensamento das pessoas de teatro radicais, o respeito que sua insistente aproximação do sagrado conquistou: é o programa da espiritualização do corpo.” (p.359-60) “Na oração, no ritual, no coro e na comunicação de tipo comunitário, o teatro segue o rastro de suas raízes religiosas e místicas [...] almejam-se grandes paixões [...] na era tecnológica o teatro continua a ser um lugar de metafísica mais sugestivo [...] evidencia-se a necessidade de buscar outros mundos, atopias e utopias nas cifras do palco para realizar uma autêntica experiência espiritual.” (p.361) “O teatro é uma espécie de insinuação da mortalidade.” (p.370) “No fundo, é esse espaço-tempo comum da mortalidade, com suas implicações éticas e teóricas, que persiste como diferença entre o teatro e as mídias.” (p.372) “O que a tragédia antiga já tornava possível era o pensamento de que era preciso que à vida humana fosse inerente algo como uma coerência inacessível ao saber dos próprios homens, uma configuração, um contexto, representável, visível apenas a partir de um ponto de vista que os homens não podem assumir: o ponto de vista dos deuses.” (p.401) “No teatro, o que é percebido não está dado, mas apenas dá, chega, remetido à réplica de coro e público em um circuito incandescente [...] A representabilidade é inerente a esse processo temporal e permanece em tensão inconciliável com todas as representações que [...] ela atravessa. Destino é uma outra palavra para representabilidade.” (p.401) Para encerrar, o mandamento supremo do Evangelho pós-dramático, ou teologia apofática da cena: “[...] a representabilidade, movimento da realidade teatral, não se opõe de modo nenhum à noção de que se pode tratar da realidade humana sob a condição de que ela permaneça não-representável.” (p.402)

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10. Desafios correntes para a ativação simbólica da luta de classes Em lugar dos valores a serviço da continuidade da dominação denunciados por Roland Barthes, mas reafirmados por Denis Guénoun, e transformados em teologia apofática por Derrida e seguidores; mas em aliança com a prática experimental que, inaugurada pelo naturalismo, culminou no teatro épico, a crítica pode e deve cultivar outros, que enumeramos a seguir, rejeitando enfaticamente os vetos desses sacerdotes “laicos”, particularmente Lehmann e consortes. Os valores que nos interessam estão presentes na Teoria estética de Adorno, que também será citado sem aspas e sem outras referências porque estão reelaborados, como fizemos com os franceses e com Grotowski. A crítica não só se justifica como é necessária (e após os ataques da desconstrução se tornou problema político) porque, assim como a realidade, o conteúdo de verdade das obras não é imediatamente apreensível. Sua tarefa é sempre apreender e expor a verdade ou falsidade de uma obra. Embora as obras não sejam conceptuais nem enunciem discursivamente juízos, elas têm lógica, mas uma lógica própria, que a análise tem o dever de identificar. A consonância de todos os momentos lógicos de uma obra constitui a sua forma, que é difícil de isolar devido a seu entrelaçamento com o seu conteúdo. A forma deve ser concebida tanto contra o conteúdo como através dele: o artista é soberano para decidir da relação e o crítico deve começar seu trabalho perguntando-se sobre ela. Ou, para dizer o mesmo, não se pode estabelecer de fora nem previamente qual é a relação entre forma e conteúdo. A forma estética é a organização objetiva de tudo o que, no interior de uma obra de arte, aparece como linguagem coerente. Toda obra é um sistema de contradições. É na forma que as obras se revelam críticas em si mesmas e é por ela que aniquilam as práticas e as obras consagradas do passado, ao mesmo tempo que reinventam aquelas práticas que a dominação soterrou. O modelo secreto da obra de arte é a história. Uma vez desembaraçada das convenções, nenhuma obra de arte pode mais manifestamente concluir de modo convincente. É por

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isso que, nos espetáculos mais consequentes, o público não sabe se a peça acabou ou vai continuar. O não poder concluir torna-se princípio livremente escolhido de procedimento e expressão. O conceito capaz de fazer avançar a dialética de forma e conteúdo é o de material, que pode ser definido como conteúdo mediado pela forma. Uma definição para conteúdo pode ser “tudo aquilo que tem lugar no tempo”. O recorte operado nesse conteúdo pelo artista chama-se tema e material é tudo aquilo com que ele trabalha: palavras, cores, sons, suas combinações e procedimentos técnicos. Numa palavra, formas também são materiais. A ampliação dos materiais disponíveis nos tempos modernos liquida as antigas fronteiras entre os gêneros artísticos; como o conteúdo, o material é inteiramente histórico e depende das transformações da técnica, assim como esta depende dos materiais que, por sua vez, a técnica elabora. Dar configuração artística a qualquer assunto, tema ou motivo, consiste em dar importância a alguma coisa. A criação artística é sempre uma presunção: o artista assume que tem alguma coisa de relevante a dizer. No como esta coisa é configurada sedimentam-se experiências profundas e socialmente relevantes. A intenção do artista, que não pode ser confundida com o conteúdo, atua como força subjetivamente organizadora da obra. Por isso a análise também deve examinar o processo existente entre material e intenção, sabendo que muitas intenções podem dar no seu contrário. Desta dialética resulta o sentido da obra, que não tem a última palavra. Nas obras de arte contemporâneas multiplicam-se as rupturas entre intenção e o que efetivamente se realiza: o conteúdo se manifesta nas rupturas tanto quanto naquilo em que houve conexão. Para a produção do sentido de uma obra contribui, mediata ou imediatamente, tudo o que nela aparece, mas nem tudo o que aparece tem o mesmo peso. A diferenciação dos pesos é um dos mais eficazes meios de articulação das partes. A montagem, um dos mais eloquentes modos de articulação, é também o modo como a arte explicita a sua impotência diante do capitalismo; a negação da síntese torna-se princípio de configuração; seus resíduos dão sentido às cicatrizes visíveis. A montagem denuncia e renega a

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aparência de organicidade da experiência. Por meio do episódio (que começou a ser explorado por Strindberg), a obra incorpora e manifesta a impossibilidade da identidade do uno e do múltiplo como momento da sua unicidade, explicitando o seu caráter de elaboração deliberada (pensada). Assim como a razão, as obras têm astúcia e a renúncia à unidade como princípio formal ainda permanece como unidade. Também por isso, toda obra de arte contemporânea está exposta ao perigo do fracasso, ou à incompreensão total. Com a sua fraqueza, as suas manchas, a sua falibilidade, a obra de arte é a crítica do sucesso. Por seu caráter linguístico, em qualquer obra o eu que fala é coletivo. Nas obras de arte, mesmo nas chamadas individuais, fala um nós e não um eu. A música diz nós imediatamente, independente da sua intenção. O nós estético é globalmente social no horizonte de uma certa indeterminação que, entretanto, é tão determinada quanto as forças produtivas e as relações de produção dominantes numa dada época. A estruturação interna e o rigor de uma obra dependem de algum tipo de compreensão da realidade. Vem do exterior, portanto, aquilo que lhe dá coerência interna. O nome dessa compreensão é reflexão social. O momento histórico é constitutivo das obras de arte; as obras autênticas são as que se entregam sem reservas ao conteúdo material de sua época e sem pretensão sobre ela. São a historiografia inconsciente de si mesma de sua época. Tal como a arte se realiza em si mesma, também o seu conhecimento (a recepção crítica) procede de modo dialético. A arte se manifesta de modo mais vivo exatamente nas ocasiões em que destrói o seu conceito. O que a arte é não depende da consciência das próprias obras de arte, e muito menos das expectativas de um suposto público virtual. Muitas obras, documentos, por exemplo, são arte mesmo quando não se apresentam como tal. O artista não teme a acusação de incompreensível lançada às obras exigentes. Ao contrário do que recomendam os cultores do “bom senso”, o que a todos parece inteligível é exatamente o que se tornou incompreensível; e aquilo que os indivíduos manipulados (pela ideologia) repelem, alegando a sua incompreensibilidade,

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é perfeitamente compreensível: como diz Freud, no fundo o inquietante é demasiado familiar. Por isso é repelido. Obras que se submetem à convenção, porque ela é bem conhecida, morreram no mesmo instante em que se tornaram imediatamente acessíveis. Sua acessibilidade sem tensão consiste em sua liquidação. O contrário também é verdadeiro: interpretações vanguardistas de obras tradicionais, com raras exceções, são falsas, absurdas e objetivamente incompreensíveis. A qualidade de uma obra de arte é definida essencialmente pelo fato de esta se expor ou se esquivar ao inconciliável (a luta de classes). São profundas as obras que não mascaram as divergências ou as contradições. Ao obrigá-las a aparecer, as obras admitem a possibilidade de uma conciliação, mas dar forma aos antagonismos não os suprime nem os reconcilia: a época atual recusa de modo radical qualquer possibilidade de reconciliação. A qualidade de uma obra também depende do seu grau de articulação e a exigência de articulação significa que toda e qualquer ideia deve ser especificamente levada a seu extremo. Quanto mais articulada é a obra, tanto mais a sua concepção se exprime a partir de sua articulação. A qualidade das obras de arte depende de seu conteúdo de verdade, que é profundamente histórico. Técnica é o nome que se dá na teoria estética para o domínio do material (no sentido artesanal), e a técnica de uma obra é constituída pelos seus problemas (assim como a textura de um pedaço de cedro, que determinará o instrumento capaz de realizar o entalhe pretendido pelo escultor). Por si mesmas, as forças técnicas de uma época não são nada. Elas só recebem seu valor posicional na relação com a sua função na obra e, em última análise, com o conteúdo de verdade do que é escrito, composto, esculpido, pintado, fotografado ou filmado. Não existe nada de formal na arte que não tenha implicações de conteúdo que se estendem até a política. A arte deve proclamar a sua liberdade em relação ao princípio da propriedade. E a função da estética (ou da crítica) é tornar as formas eloquentes.

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11. Saídas práticas Não custa repetir: teologia é a hipocrisia da igreja católica transformada em método; é o modelo de toda mentira e hipocrisia, na qual a missão de produzir desconversa e confusão é prioritária. A raiz da hipocrisia teológica é a pretensão humana de ser sobrenatural. Desprezando a história e o desenvolvimento da humanidade, afirma-se um mundo no além, ao qual terão acesso apenas os seus devotos. É deste além que os escolhidos recebem por revelação ou epifania as “verdades eternas” que tratam de divulgar por todos os meios, inclusive a arte, para melhor manterem a humanidade em sua condição de rebanho dócil e resignado. Artistas e intelectuais, pequeno-burgueses por sua condição social e econômica, precisam encarar seus desafios se realmente quiserem enfrentar todas as manifestações do fetichismo e combater a alienação em que eles mesmos vivem. Começando por adotar uma postura com largueza de visão, e se entenderem como parte do proletariado (todos os que só têm sua força de trabalho ou seus produtos, frutos de seu próprio suor, cérebro e músculos, para vender num mercado que se estreita cada vez mais). Precisam abandonar as fórmulas estereotipadas da desconversa no exame de questões concretas; entender a conjuntura histórica e usar a razão crítica para vencer seus preconceitos e pretensões de privilegiados (em relação aos que sofrem os horrores do trabalho assalariado). Em alguns casos tais pretensões são inconscientes, mas na maioria deles são assumidas. A psicologia do intelectual (e do artista) pequeno-burguês, que se considera integrante de uma elite imaginária “do espírito”, faz com que ele se coloque acima de qualquer organização e da necessidade de ter disciplina. Quando não é meramente adepto da ordem, da qual espera continuar recebendo migalhas, tende no máximo ao anarquismo. Por isso as ideias de organização e disciplina, necessárias à luta política consequente, aparecem para ele como submissão, servidão ou perda de autonomia. E reage a este sentimento denunciando o esmagamento da iniciativa individual. Anarquistas são aristocráticos sempre. São portadores de uma paranoia latente: em geral veem-se como perseguidos, oprimidos,

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expulsos, cerceados, atropelados. São sempre eles os ofendidos. Para assegurar os seus supostos direitos individuais, atuam como burocratas, afirmando que os direitos individuais são ilimitados e que, em caso de conflito, cada indivíduo tem o privilégio de definir os limites do seu próprio direito. Os candidatos a burocratas sacrificam os interesses de qualquer causa (necessariamente coletiva) em nome dos interesses de suas próprias carreiras; têm interesse por cargos em vez de interesse pelo trabalho; e acreditam em adesão às causas por cooptação ao invés de vencer no campo da confrontação das ideias. Sobre todas estas questões, o ponto de vista dialético afirma que, desde que nasce, o indivíduo já tem seus direitos definidos pela sociedade e pela classe a que pertence. Na sociedade capitalista, a própria ideia de direito (a começar pelo direito de propriedade) é sinônimo de privilégio. E numa sociedade sem classes só terá estatuto de direito aquilo que tiver alcance universal, a começar pelo direito à vida. Enquanto vivermos em um mundo em que dois terços da humanidade não têm reconhecido sequer o seu direito à vida, falar em “liberdade de expressão” já é escarnecer dos que não têm nem o direito de falar. Nos meios de comunicação burgueses, os porta-vozes dos interesses da especulação financeira são os apologistas da “originalidade pessoal”, da individualidade e outras mistificações que, em sua opinião, seriam destruídas pelo socialismo e pela organização partidária. Em política, chama-se oportunismo o discurso vago, impreciso, inapreensível, daqueles que evitam sempre pôr as questões de maneira clara e definida. Arrastam-se como cobras entre pontos de vista que se excluem mutuamente, procurando acordo entre uns e outros, reduzindo suas divergências a ligeiras modificações, a dúvidas, a votos piedosos e inocentes etc. No fim das contas, seu papel é empurrar todas as questões com a barriga, pois nunca apresentam teses definidas. Faz parte dessa estratégia a avaliação pessimista em relação à disposição das massas para a revolução. Porque estes oportunistas adotam as ideias burguesas sobre o proletariado e, no interesse da burguesia, sempre combaterão a perspectiva insurrecional (um dos maiores

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pesadelos da burguesia, como recentemente demonstraram a peça A comédia do trabalho, da Companhia do Latão, e a peça The Fever, de Wallace Shawn, filmada por Carlo Nero em 2004). É por temer a vitória do proletariado na luta de classes que os oportunistas, secundando a burguesia, pregam e cultivam o desânimo, prognosticam uma série de calamidades como consequência da revolução e ridicularizam as palavras de ordem que a colocam no horizonte. Como ideólogos da burguesia, os liberais (hoje neoliberais e social-democratas) compreendem perfeitamente que interessa à classe a que servem o espírito prático, o que chamam de lucidez, realismo e pragmatismo da classe proletária. Na realidade, estão empenhados na limitação do seu campo de ação às fronteiras do capitalismo, das reformas, da luta meramente corporativa ou, como se diz atualmente, da luta por inclusão (no mercado, é claro, e de preferência como pequenos produtores ou, como já ficou demonstrado no Manifesto contra o trabalho, como empresários de si mesmos). Para a burguesia e estes seus sócios menores, é perigosa a “estreiteza revolucionária” do proletariado e por isso seus porta-vozes denunciam o “maniqueísmo” e o “radicalismo” dos que insistem em falar em luta de classes, revolução, partido, organização e todas essas experiências “fracassadas” e “ultrapassadas”. Mas, como já disse Marx, as revoluções são a locomotiva da história; são a festa dos oprimidos e explorados. E Brecht avisava que a arte e a cultura não se salvam sozinhas; seu destino depende da reconstrução da sociedade em novas bases. Por isso a tarefa dos artistas que se consideram herdeiros da luta que se iniciou com o teatro naturalista, pelo direito da classe proletária de ver seus assuntos e problemas alçados à condição de objeto da representação artística, é a de ampliar ao máximo o campo e o conteúdo da luta de classes. E a dos intelectuais que se consideram parte desta luta é travá-la no plano das ideias sobre arte e revolução.

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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO Rebento – Revista de Artes do Espetáculo publica artigos, ensaios e resenhas na área das artes do espetáculos, com interlocuções com as Ciências Humanas em geral. Solicita-se aos colaboradores, entretanto, que sigam as seguintes indicações: 1. O material para publicação deverá ser encaminhado em duas vias impressas e uma em CD, em formato “doc” ou “rtf”. Os artigos deverão conter no máximo 20 páginas; as resenhas, até 6 páginas. Os textos deverão ser digitados com letra Times New Roman tamanho 12, em espaço 1,5. 2. Os artigos deverão conter os seguintes itens: Título, Subtítulo (quando for o caso), Autor ou Autores, Dados curriculares básicos do autor ou autores, Resumo, Palavras-Chave, Abstract, Keywords, Texto e Referências Bibliográficas. 3. A simples remessa de originais implica autorização para publicação. 4. As traduções devem vir acompanhadas de autorização do autor e do original do texto. 5. Os artigos serão submetidos à leitura de pareceristas ad hoc. 6. Os editores poderão encomendar artigos e colaborações, que terão prioridade sobre os artigos enviados espontaneamente.

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7. As notas, quando existirem, deverão ser indicadas no corpo do texto por algarismo arábico, em ordem crescente, e listadas no rodapé da página. Ao mencionar uma obra pela primeira vez, fazer citação bibliográfica completa. Em caso de nova referência à mesma obra, utilizar o padrão SOBRENOME, Nome, op. cit ., p., ou idem, ibidem , quando for o caso de uma segunda citação consecutiva de um mesmo autor e/ou de uma mesma obra. 8. Serão admitidas notas explicativas, desde que imprescindíveis e limitadas ao menor número possível. As notas devem ser digitadas em espaço simples, com caracteres tamanho 10. 9. Para as citações com mais de cinco linhas, não é preciso abrir e fechar aspas, bastando colocar o trecho em itálico, proceder ao recuo das margens e digitá-lo em letra com tamanho 11, em espaço simples. 10. Para as citações com cinco linhas ou menos que apareçam no corpo principal do texto, simplesmente “abrir” e “fechar” aspas, sem recorrer a itálico ou a recuo das margens. 11. Os artigos podem ser acompanhados de imagens (reduzidas ao mínimo indispensável), em formato JPG e com resolução de 300 dpi, enviadas em arquivos separados do texto, com os devidos créditos.

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PADRÃO PARA CITAÇÃO Livro: SOBRENOME, Nome. Título em itálico. Local de publicação: Editora, ano de publicação, página citada (p.) ou páginas citadas (p.). Coletânea: SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In : SOBRENOME, Nome (org.). Título

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em itálico. Local de publicação: Editora, data, página citada. Artigo: SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico, volume, número do periódico, local, mês (abreviado) e ano de publicação, página citada. Tese acadêmica: SOBRENOME, Nome. Título da tese em itálico: subtítulo. Tipo de trabalho: Dissertação ou Tese (Mestrado ou Doutorado, com indicação da área do trabalho) – vinculação acadêmica, local e data de apresentação ou defesa, mencionada na folha de apresentação (se houver), página citada. Documentos eletrônicos: AUTOR(ES). Denominação ou Título: subtítulo. Indicações de responsabilidade. Data. Informações sobre a descrição do meio ou suporte. Para documentos online, são essenciais as informações sobre o endereço eletrônico, apresentado entre os sinais < >, precedido da expressão “disponível em” e a data de acesso ao documento, precedida da expressão “acesso em”.

ENDEREÇO Rebento - Revista de Artes do Espetáculo Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Instituto de Artes – Campus de São Paulo. Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação. Rua Dr. Bento Teobaldo Ferraz, 271 Barra Funda – São Paulo (SP). CEP: 01140-070

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