Revista de Artes do Espetรกculo no 2 - julho de 2010
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Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Técnico de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP
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Rebento : revista de artes do espetáculo / Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”. Instituto de Artes. - n. 2 (jul. 2010) - São Paulo: Instituto de Artes, 2010Anual 2010 (2) ISSN: 2178-1206 1. Teatro – Periódicos. 2. Teatro – Estudo e ensino – Periódicos. 3. Representação teatral - Periódicos. 4. Criação (Literária, artística, etc.) - Periódicos. I. Instituto de Artes. Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”. CDD 792.07
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EXPEDIENTE
Rebento – Revista de Artes do Espetáculo é uma publicação do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Os pontos de vista expressos nos textos assinados são de inteira responsabilidade dos autores. Todo o material documental e as inserções fotográficas deste número foram publicados com a autorização de seus autores ou representantes. Coordenação editorial: Alexandre Mate (UNESP) e Mario Fernando Bolognesi (UNESP). Conselho editorial: Alberto Ikeda (UNESP), Armindo Bião (UFBA), Luís Alberto de Abreu, Maria de Lourdes Rabetti (UNIRIO), Mariângela Alves de Lima, Milton de Andrade (UDESC), Neyde Veneziano (UNICAMP) e Sílvia Fernandes (USP). Conselho consultivo: Amir Haddad (Grupo Tá na Rua – RJ), Carminda Mendes André (UNESP), Cássia Navas (UNICAMP), César Vieira (Teatro Popular União e Olho Vivo – SP), Edélcio Mostaço (UDESC), Eugenio Barba (Odin Teatret – Dinamarca), Fernando Peixoto, Fernando Villar (UnB), Fernando Yamamoto (Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare – RN), Francisco Cabral Alambert Junior (USP), Hugo Possolo (Grupo Parlapatões, Patifes & Paspalhões – SP), Iná Camargo Costa (USP – aposentada), Jaime Gómez Triana (Casa de las Américas – Cuba), José Manuel Lázaro de Ortecho (UNESP), Kátia Rodrigues Paranhos (UFU), Karen Worcman (Museu da Pessoa), Kathya Maria Ayres de Godoy (UNESP), Leslie Damasceno (Duke University – Carolina do Norte), Marcelo Bones (CEFAR-MG e FUNARTE), Maria Silvia Betti (USP), Marianna Francisca Martins Monteiro (UNESP), Marta Colabone (SESC-SP), Marvin Carlson (City University – New York), Milton Sogabe (UNESP), Narciso Telles (UFU), Paulo Eduardo Arantes (USP), Paulo Betti (Casa da Gávea – RJ), Paulo Castanha (UNESP), Peter Burke (University of Cambridge), Roberto Schwarz (UNICAMP), Robson Corrêa de Camargo (UFG), Rosangela Patriota Ramos (UFU), Rosyane Trotta (UNIRIO), Santiago Serrano (Dramaturgo – Argentina), Sérgio de Carvalho (USP), Valmir Santos (Jornalista), Wagner Cintra (UNESP) e Walter Lima Torres (UFPR).
Projeto gráfico: Maurício F. Santana e Alexandre Mate. Revisão técnica: Alexandre Mate. Revisão: Aírton Dantas. Impressão: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Instituto de Artes. Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação. Foto da capa: Augusto Boal , 1981. Acervo Idart/Centro Cultural São Paulo. Registro fotográfico de autoria desconhecida.
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ÍNDICE
Apresentação: A dramaturgia em foco – o tecimento de um trabalho de reflexão unindo contexto mnemônico e produção documental, por Alexandre Mate
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Bloco I
A democratização da dramaturgia no teatro contemporâneo, por José Manuel Lázaro de Ortecho
17
O dramaturgo e suas funções, por Luís Alberto de Abreu
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Brincando no campo dos senhores, por Luiz Carlos Moreira
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Dramaturgia – um procedimento de (re)criação. O caso Dercy Gonçalves e o retorno do texto escrito à sua oralidade original, por Virginia M. S. M. Namur
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Bloco II
A dramaturgia do ator nos processos cênicos coevolutivos do Grupo Katharsis, por Andréia Nhur
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Anotações para uma dramaturgia de ator, por Eduardo Okamoto
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O ator como propositor de discursos, por Evill Rebouças
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Um relato sobre a dramaturgia do ator contemporâneo, por Carlos Henrique Guimarães
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Bloco III Algumas questões da pedagogia do teatro, por Francisco Medeiros
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Processos cênicos coevolutivos, por Roberto Gill Camargo
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Dramaturgia em jogo, por Carminda Mendes André
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Bloco IV (convidados) A dramaturgia da imagem no teatro de Tadeusz Kantor, por Wagner Cintra
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Dialética dramatúrgica dos objetos cênicos, por Anderson Zanetti
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Apresentação A dramaturgia em foco: o tecimento de um trabalho de reflexão unindo contexto mnemônico e produção documental
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por Alexandre Mate1
Bertolt Brecht, em um dos seus textos, lembra que é preciso, ao lado do esforço despendido para a realização de um trabalho, recordar o quanto ele proporcionou de prazer. Mencionando outro momento do mesmo autor, em Galileu Galilei: “É preciso ferrar o nariz no objeto do conhecimento.” Então, não apenas pelas palavras de Brecht, mas particularmente por elas, inicio a apresentação desta publicação tornando público o absoluto prazer ao concluir a tarefa que se finaliza com esta publicação. Em tese, desde a primeira ideia – criar e acompanhar um evento cuja reflexão básica transitasse em torno de dramaturgia, em parceria com o professor José Manuel Lázaro de Ortecho, até a reunião e apresentação dos textos escritos por profissionais convidados a participar do evento, organizando-os em torno de uma publicação, três meses se passaram. Trata-se, em termos universitários, de curtíssimo tempo. A possibilidade de publicação do resultado do encontro tornou-se possível, sobretudo pelo apoio e gestão do deputado federal João Dado, do Partido Democrático Trabalhista – São Paulo junto ao Banco do Brasil, que patrocina a edição desta revista, batizada Rebento – Revista de Artes do Espetáculo. Escolheu-se o tema dramaturgia para desenvolvimento de uma ação de reflexão, tendo em vista tanta confusão conceitual cercar o trabalho de construtura de ações teatrais. Quem constrói o texto teatral? Quem pode construir o texto teatral? Que intervenções podem ser aceitas depois de o texto teatral ser escrito? Que papel 1 Professor doutor do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Instituto de Artes e do curso de pós-graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), pesquisador teatral e integrante do Núcleo Nacional de Pesquisadores de Teatro de Rua.
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e tipos de intervenções pode ter o espectador em uma partitura de ações aberta? Como articular conteúdos a uma estrutura arquetípica? Qual a contribuição dos processos colaborativos? Esses processos são diferentes dos adotados para o texto escrito em gabinete? Existe a dramaturgia do ator? Quais são os critérios ou expedientes importantes para o desenvolvimento de uma dramaturgia de sala de aula? Enfim, inúmeras foram as questões e nas páginas desta publicação algumas respostas-questionamentos ampliam as solicitações iniciais apresentadas aos participantes do evento. Esses participantes foram convidados pelo conhecimento de que dispõem com relação ao assunto, cuja dinâmica foi dividida em três dias, compreendendo questões distintas e articuladas conforme a planilha apresentada a seguir, cujos temas específicos foram divididos em blocos.
I. O evento Batizado “Dramaturgia: as tessituras da cena”, o evento contou com três mesas temáticas, demonstração de processos de criação dramatúrgica por cinco profissionais e apresentações de um espetáculo teatral, em 11, 12 e 13 de novembro de 2009. De acordo com a peça gráfica de divulgação, fizeram parte do encontro:
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Manhã 11/11 (das 9h às 12h) A construção da dramaturgia da cena I: Os processos de “tecimento” do texto por autores-diretores • Dramaturgia contemporânea: surgimento, processos e transformações na dramaturgia do Ocidente, por José Manuel L. de Ortecho – professor do Instituto de Artes da Unesp. • Dramaturgia e criação do texto teatral: da ideia à versão final, passando por um canovaccio, por Luís Alberto de Abreu – dramaturgo, roteirista de cinema e de televisão. • Dramaturgia – um procedimento de (re)criação do texto teatral. O caso Dercy Gonçalves e o retorno do texto escrito à sua oralidade original, por Virgínia Namur – professora da Faculdade de Tecnologia de São Paulo e da Faculdade de Artes da FMU. • A criação da dramaturgia textual “colada” à dramaturgia da cena e estas à realidade político-social, por Luiz Carlos Moreira – encenador e dramaturgo do Engenho Teatral.
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Manhã Dia 12/11 (das 9h às 12h) A construção da dramaturgia da cena II (parte 1): Os processos de “tecimento” do texto pelos atores: a dramaturgia do ator • A dramaturgia do ator pautada sobretudo nos processos da partitura corporal, por Andréia Nhur, doutoranda em Comunicação e Semiótica, com enfoque em dança, pela PUC-SP.
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• O trabalho de mimese corpórea de um ator-colaborador nos diversos processos de criação do espetáculo Eldorado, por Eduardo Okamoto, doutor em interpretação pela Unicamp. • A dramaturgia textual e da cena por um dramaturgo-encenador: os processos de criação desenvolvidos pela Cia. Artehúmus de Teatro, por Evill Rebouças – mestre em teatro pelo Instituto de Artes da Unesp. • Os processos de colaboração para criação da cena vivenciados por um ator do Centro de Pesquisa Teatral – CPT, por Leandro Paixão – estudante do Instituto de Artes da Unesp. • Um ator-criador experimentando palcos, a rua e os espaços alternativos pela Cia. Livre e pelo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos – por Henrique Guimarães, graduado em Educação Artística – Habilitação em Artes Cênicas do Instituto de Artes da Unesp. Mediação – Alexandre Mate, professor do Instituto de Artes da Unesp. Tarde 12/11 (das 14h às 17h) A construção da dramaturgia da cena II (parte 2): Demonstração de processos de criação dramatúrgica Por meio de um mesmo trecho de obra literária – “Os alunos”, do livro As bocas do vento2, de Eduardo Galeano – os debatedores da manhã demonstram e explicitam processos e metodologias utilizadas para a composição da cena. No procedimento em epígrafe, cada ator-diretor, em quinze minutos, apresenta, como ator e criador, a cena desenvolvida. “Se a professora pergunta o que elas querem ser quando cresceram, elas se calam. E depois, falando baixinho, confessam: ser mais branca, cantar na televisão, dormir até meio-dia, casar com alguém que não me bata, casar com quem tem automóvel, ir para longe e que nunca me encontrem. E eles dizem: ser mais branco, ser campeão mundial de futebol, ser o Homem-Aranha e caminhar pelas paredes, assaltar um banco e não trabalhar nunca mais, comprar um restaurante e comer sempre, ir para longe e que nunca me encontrem. Não vivem a grande distância da cidade de Tucumán, mas não a conhecem nem de vista. Vão para a escola a pé ou a cavalo, dia sim, dia não, porque fazem rodízio com os irmãos no uso do único avental e no único par de alpargatas. E o que mais perguntam para a professora é: quando chega o almoço?” Após a apresentação de todas as cenas, criadores e público participam de discussão, tomando como mote o assunto (dramaturgia) e as cenas resultantes. 2 Eduardo GALEANO. Os alunos, in: Bocas do tempo. Tradução: Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2004, p.62.
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Manhã 13/11 (das 9h às 12h) A construção da dramaturgia da cena III (parte 1): As diferentes possibilidades de criação de uma dramaturgia em sala de aula • Os procedimentos estéticos e a pedagogia libertária para a construção dramatúrgica da cena, por Francisco Medeiros – diretor e encenador teatral. • Os substantivos e sua metaforização para a construção da cena: uma excelente alternativa para a sala de aula, pelo Prof. Dr. Roberto Gill Camargo, da Universidade de Sorocaba (Uniso). • O trabalho de criação da cena em A ferida Woyzeck: o embricamento do texto teatral com jogos teatrais, por Joaquim Gama, doutorando pela ECA-USP. • A dramaturgia em jogo na sala de aula, por Carminda Mendes André – professora doutora do Instituto de Artes da Unesp. Mediação – Lígia Borges Matias, estudante de pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp. Tarde 13/11 (das 14h às 18h) A construção da dramaturgia da cena III (parte 2): Apreciação crítica
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Tendo em vista o processo de discussão e reflexão, o evento fecha-se com a apresentação do espetáculo Astros, patas e bananas, criado pelos integrantes do grupo de Sorocaba Katharsis, grupo de teatro da Universidade de Sorocaba (Uniso), dirigido por Roberto Gill Camargo. Após o espetáculo, promove-se um debate acerca da obra e dos três dias de evento. Mediação – Alexandre Mate e José Manuel L. de Ortecho.
II. A produção dos textos A ordem dos textos aqui apresentada corresponde à sequência das falas durante os três dias de evento. Com doutoramento pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), tendo a professora Renata Pallottini por orientadora, José Manuel Lázaro de Ortecho desenvolve uma reflexão sobre concepções, linhas filosóficas e procedimentos fundamentais para a produção de determinada dramaturgia na modernidade ou pós-contemporânea. Em sua reflexão, Ortecho
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destaca a crise por que passam o autor dramático e a própria linguagem teatral. Não se trata de uma crise estética, mas hierárquica, iniciada na Idade Moderna. Com a refuncionalização das funções teatrais, e com as experiências coletivas e cooperativas, conceitos estéticos redimensionam-se. No século XX, com o surgimento das vanguardas e pelas experiências formais radicais, como aquelas do teatro da absurdidade, o hibridismo que se verifica na construtura do texto assemelha-se às contradições conceituais, das especulações e das práticas. A crise da dramaturgia (e do dramaturgo) corresponde à crise do poder e a um incessante processo de embate e confronto para a democratização das relações Um dos mais importantes dramaturgos brasileiros de todos os tempos é Luís Alberto de Abreu. Com aproximadamente 70 textos teatrais escritos, a maioria deles montada em palcos pelo Brasil, o autor desenvolve (a pedido dos organizadores) uma reflexão na qual explicita os procedimentos e expedientes no trabalho de uma dramaturgia épica. Lembra o autor que, intrínseco a certa divisão de trabalho e modelo especializado de produção, o dramaturgo, sobretudo a partir de determinado momento histórico, não se caracteriza mais em figura central do teatro, como o fora em certo tipo de proposição estética hegemônica. Antes da realização de experiências mais coletivas, lembra o dramaturgo, em certo momento, a dramaturgia, ambientada na sala de visitas burguesa, alienou-se do mundo real e substituiu a observação do mundo pela auto-observação. Sem possibilidades de troca, a dramaturgia e o teatro apostaram na beleza estética apartada do mundo. O teatro vai conseguir dialogar de modo mais concreto com o espectador na década de 1970. A dramaturgia muda porque mudam as relações entre seus fazedores; o dramaturgo é mais um em um conjunto que vislumbra a prática democratizante. Atendo-se, portanto, a partir desse período histórico e de práticas nas quais se envolveu, Abreu discorre sobre procedimentos, experiências e resultados de um processo de construção da cena partilhada e colaborativa. Tive a oportunidade de participar da banca de doutoramento de Virgínia Namur (a convite dela e de sua orientadora, Neyde Veneziano). Tive prazeres imensos: pelo assunto, pelo texto
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muitíssimo interessante (que a banca indicou para publicação) e pela análise desenvolvida pela pesquisadora. Afinal, além das qualidades enumeradas, a grande comediante e atriz Dercy Gonçalves era uma “dramaturga de mão cheia” e representava inúmeros artistas subsumidos da história do teatro. Os procedimentos de construção dramatúrgica, que amalgamam de modo intrínseco texto e ação da atriz-comediante, têm sido desenvolvidos desde as primeiras trupes de atores deambulantes da história da representação teatral. Devolver ao texto escrito e ao espetáculo pronto seu viço e oralidades iniciais, realmente não é para muitos: Dercy Gonçalves soube fazê-lo; Virgínia Namur soube homenageá-la. Luiz Carlos Moreira, que “não veio ao mundo a passeio”, dedica-se ao teatro épico, em perspectiva brechtiana, desde o final da década de 1970. No teatro de lona, com aproximadamente 200 lugares, chamado Engenho Teatral, Moreira tem apresentado espetáculos, sobretudo pela periferia da cidade de São Paulo, desde meados da década de 1980. Brechtiano e marxista, seus textos e espetáculos têm buscado estimular a reflexão por meio de uma dramaturgia cuja temática abriga a história, os processos de luta. Desse modo, o texto Brincando no campo dos senhores remete, de modo crítico e absolutamente irônico, ao Brincando nos campos do Senhor (At play in the fields of the Lord), de 1991, dirigido por Hector Babenco. No texto, Moreira mostra a que veio e aponta desmontagens do teatro erudito com relação a procedimentos épicos, inserido em proposições e olhares brechtianos. Henrique Guimarães e Evill Rebouças referem-se fundamentalmente a processos vividos durante a montagem de espetáculos dos quais participaram. Guimarães refere-se especialmente a Vem vai – o caminho dos mortos, dirigido por Cibele Forjaz. Ao apresentar o processo de criação dramatúrgica criado inicialmente pelo conjunto de atores, por meio de estímulos específicos, Guimarães defende a tese de que, naquele surpreendente processo vivido, o trabalho do ator “desenvolvido em processo”: potencializado, intensificado, engravidado pela criação, imbricando ator e personagem, ultrapassa os limites do espaço cênico e se transforma em ação demiúrgica. Evill Rebouças, ao tomar por mote
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o texto Amada, mais conhecida como mulher, e também chamada de Maria aponta os procedimentos dramatúrgicos e coletivos adotados por ele como diretor e dramaturgo: propositor inicial de um texto e organizador das improvisações do conjunto de atores da Cia. Artehúmus de Teatro. Aproximam-se, ainda, de certa terminologia e procedimento de natureza épica que concebe o intérprete como uma espécie de depoente da cena. Em tese, tendo em vista a matriz apreendida em seus trabalhos, e também pelos parceiros de ambos, o conceito se refere às teses da representação crítica preconizadas por Bertolt Brecht (Cenas de rua demonstra magistralmente o conceito) e às que Mikhail Bakhtin nomeia de dialogismo. Andréia Nhur e Eduardo Okamoto, que parecem concentrar certa timidez na vida, mas ousadia infinda e deslumbrante na criação, são dois grandes talentos que desenvolvem pesquisas fundamentadas em dramaturgia corporal e prosódica absolutamente exploratórias, radicais e encantatórias. Em seus textos, os dois artistas revelam procedimentos e fontes lastreantes de seus processos de criação como intérpretes rigorosos que são. Referindo-se aos mais recentes espetáculos dos quais participaram – Astros, patas e bananas (Nhur) e Eldorado (Okamoto) –, os jovens artistas articulam referências teórico-práticas aos espetáculos. No processo de criação de ambos os artistas, os expedientes de construção dramatúrgica desenvolvem-se por meio da construção da personagem. Desse modo, Andréia Nhur e Eduardo Okamoto, bem como Evill Rebouças e Henrique Guimarães (estes dois últimos participantes do segundo dia do evento), ainda que por caminhos diferenciados, afiançam existência e prática, com trabalhos significativos da chamada dramaturgia de ator. A professora de jogos teatrais do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Carminda Mendes André, apresentou uma palestra-espetáculo. O modo de apresentação da professora Carminda articula-se às teses apresentadas no texto (que decorrem de seus achados e procedimentos pedagógicos) e ao seu trabalho como diretora teatral, envolvida com grupos de performance e de intervenção urbana. Carminda defende em seu texto um processo de intensa vivência pedagógica durante o tempo de aula, cuja estrutura inicial desmonta-se pelos
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infindos achados do trabalho coletivo. Dramaturgia em processo, a cada encontro de aula uma nova experiência é vivenciada, tentando esgotar o inesgotável potencial e manancial de criação do estudante. Por intermédio do relato de algumas ações, é possível divisar os procedimentos dramatúrgicos adotados pela professora, em conluio e cumplicidade com os estudantes. O professor e diretor Roberto Gill Camargo, conhecido e respeitado pelo seu trabalho teatral (como diretor e iluminador), cujo epicentro criativo sedia-se na cidade de Sorocaba (SP), mas que não permanece apenas ali (para sorte de todos que gostamos e precisamos de bom teatro), apresenta um relato no qual explicita alguns expedientes, na condição de diretor, cuja dramaturgia é criada em processo e com a maioria dos adereços necessários à construtura da cena. O grupo Katharsys, dirigido por Roberto Gill Camargo, revela pelo texto alguns processos criativos desenvolvidos pelo conjunto de criadores e atém-se ao processo desenvolvido por interessantíssima e bela trilogia, partindo de uma construção, que indevidamente nomeio dramatúrgica-desafio. Isto é, ao partir de um substantivo, que ganha conotações metafóricas e babélicas, o texto dramatúrgico se articula e se estrutura coletivamente. O mestre Francisco Medeiros, que se diz diretor e não professor (ou mais diretor que professor), encantou a todos em sua intervenção. O texto, que decorre do encontro, apresenta vários meandros especulativos, maiêuticos... Ato de partilha em processo. A educação, as relações humanas e a dramaturgia, como extensão de um viver significativo, são uma tentativa de apresentar respostas provisórias a questões fundantes do existir cúmplice e partilhado. Os professores Wagner Cintra e Anderson Zanetti, que não participaram do evento como palestrantes, foram solicitados a contribuir com textos para a Rebento. Cintra, “discípulo” da professora Ana Maria Amaral, e pesquisador da obra e da importância de Tadeusz Kantor, caracteriza-se, hoje, em um dos mais importantes pesquisadores do legado do diretor polonês. Em seu texto, Cintra articula algumas questões fundamentais para o desenvolvimento da chamada dramaturgia da imagem. Zanetti, formado em Filosofia pela Unesp de Marília, ministrou, em 2009, aulas de Filosofia no Instituto
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de Artes. Professor presente e inquieto, apresenta uma abordagem, lastreada em algumas teses filosóficas, segundo as quais a reflexão – nomeada Dialética dramatúrgica dos objetos cênicos – de determinado objeto pressupõe sua apreensão a um contexto e materialidade. Pela reflexão desenvolvida por Zanetti, acorda-se para o fato de a dramaturgia representar um procedimento epistemológico, fruto de embates de negação aparente entre materialidade e expedientes constitutivos. Desse modo, com relação aos processos coletivos, afirma o professor, próximo da conclusão de sua reflexão: Nos coletivos, cada ator tende a se transformar de objeto em sujeito da nova composição, que não é apenas dramatúrgica. Como sujeito, o ator interage com os demais atores também por meio da linguagem verbal. Desse modo, ao se interpretar como objeto cênico, por meio da linguagem material, ao ser concretamente o próprio objeto. Essa relação dialética é mais direta e produz um elemento novo para o palco. Agora não é só o homem enquanto sujeito que é um ser mimético, mas o próprio mundo dos objetos ganha poder de mímesis ao ser o que é homem. Os objetos cênicos tornam-se sujeitos na medida em que são contidos de códigos que se transformam em signos da transmissão da linguagem teatral.
À luz do exposto, é hora de agradecer a todos os envolvidos com esse evento: os professores, os estudantes que colaboraram diretamente, os funcionários (sempre presentes e dispostos a superar todas as dificuldades estruturais e de excesso de trabalho), ao já mencionado patrocínio do Banco do Brasil e ao deputado federal João Dado.
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A democratização da dramaturgia no teatro contemporâneo por José Manuel Lázaro de Ortecho3
Sobre contemporaneidade (pós-modernidade) A democratização dos conceitos e das experiências humanas na contemporaneidade é um tema importante, com um debate profundo sendo desvendado na incipiente e ainda confusa vivência atual. No entanto, é fato que a existência dessa democracia tão almejada e idealizada ainda está em incerto processo de desenvolvimento. Ela gera efeitos sociais de expressão cultural que, aos poucos, começam a ser entendidos, questionados, e, o que é muito importante, reavaliados. Professor do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Instituto de Artes e do curso de pós-graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp); dramaturgo e ator. 3
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Esse debate está intimamente relacionado à procura de definição do que começa a ser entendido como “este nosso período atual”. Seguindo a análise de diferentes filósofos e sociólogos, há um momento histórico que se vivencia de maneira definitiva desde a segunda metade do século XX. O termo mais usado é pós-modernidade (como exposto inicialmente por JeanFrançois Lyotard, Fredric Jameson, Perry Anderson, David Harvey, entre outros). No entanto, não é o único; existem também outras nomeações, como a de hiper-modernidade (Gilles Lipovetsky) ou modernidade líquida (Zygmunt Bauman). No caso específico do termo pós-moderno, é preciso esclarecer que não estamos nos referindo àqueles conceitos aos quais ficou ligado, especialmente na década de 1990, como um vale-tudo estético (um pastiche sem limites), nem como um acomodamento ao neoliberalismo instaurado nas últimas décadas. Empregamos essa palavra mais em conexão com as leituras conceituais desenvolvidas pelos filósofos e sociólogos bastante ligados às correntes do pós-estruturalismo e pós-marxismo.4 Os estudos desses teóricos contemporâneos revelam noções primordiais para entender de maneira crítica nosso momento atual. Seja como for, encerrada essa primeira década do século XXI, parece necessário tomar consciência de que vivenciamos um momento presente, com traços de épocas particulares. Essas características precisam ser conhecidas e apreendidas por todos para ter uma experiência muito mais participativa na convulsão da multifacetada cultura atual. Assim, a democratização dos conceitos sociais é só uma manifestação contemporânea relevante e complexa, entre outras. Com o avanço da democracia e a convivência com a diversidade, configura-se a necessidade da livre apropriação de definições e estruturas sociais concebidas até então de maneira mais unilateral (na modernidade). Isso provoca a necessidade de novas percepções sobre fenômenos sociais e culturais, assim como a procura de uma nova ética humana. Com isso, experiências socializadas, que Entre os diversos autores que se manifestam podemos mencionar Jean Baudrillard, Fredric Jameson, Jacques Derrida, Michel Foucault, Gilles Deleuze, entre outros. 4
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antes se encontravam de maneira mais centralizada, começam a se expandir. Os sinais começam a aparecer por toda parte, mesmo que não estejamos cientes disso. Podemos mencionar um exemplo: a democratização do masculino e do feminino nas construções de identidade de gênero contemporâneas. Diante das novas manifestações sexuais, percebe-se que ambos os conceitos não estão mais relacionados a uma naturalidade absoluta, revelando sua “culturalização” construída socialmente. É então que começam as diversas apropriações. Elas podem ser híbridas, gerando androginias ou intersexualidades. Também é possível manter o estatuto convencional do gênero, mas sob a apropriação de qualquer ser humano; ou seja, ainda identificar o arquétipo do masculino e feminino, em cada cultura, na pele de qualquer homem ou mulher, independentemente de idade, físico ou orientação sexual. Esse é um exemplo de um dos paradigmas, entre tantos outros, se democratizando no fluxo do contemporâneo. Obviamente não entraremos aqui na complexidade desse tema – o contemporâneo e a democratização como uma de suas características. O intuito aqui é apenas fazer referências de contextualização.
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Sobre dramaturgia contemporânea No concernente à manifestação cultural, sabemos que a arte foi uma das principais propulsoras dos ensaios dessa democratização. No século XX, especialmente a partir das décadas 1950 e 19605, é conhecida a explosão de diferenciadas procuras artísticas, trazendo à tona um jogo de desestruturação/reestruturação que continua em evolução. Portanto, a arte encontra novos caminhos de experimentação por meio do hibridismo e da fragmentação dos elementos de composição de uma obra. E, assim, vivemos o momento da constante renovação das linguagens. Ao ingressarmos na área de discussão específica, vemos como a arte cênica e as dramaturgias em geral começam um processo de 5 Vale esclarecer que no século XX essa eclosão artística já havia acontecido nas vanguardas do entreguerras.
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desestruturação/reestruturação que se consolida durante o século XX. A estrutura dramática, já desenvolvida no século XIX, passa a ser repensada quando suas bases passam a assimilar elementos da conformação épica. O complexo trabalho realizado por Bertolt Brecht – na prática cênica, na dramaturgia e na teoria teatral – deu conta dessa importante hibridização na primeira metade do século XX. A corrente nomeada por Martin Esslin como Teatro do Absurdo propiciou o retorno de um caminho iniciado pelos simbolistas, surrealistas e expressionistas, em que as estruturas dramáticas e épicas são, por sua vez, repensadas por meio da assimilação de estruturas líricas que se afirmam na segunda metade do século passado. Dessa vez, essa manifestação se mostra no trabalho de inúmeros artistas e teóricos. Nessa trilha, as utopias de Antonin Artaud serão um norteador muito presente. No caso, a dramaturgia de Samuel Beckett será uma referência primordial. Assim, finalizado o século XX, percebemos que a dramaturgia e a arte cênica desenvolveram um intrincado hibridismo, cujas estruturas dramáticas, épicas e líricas começam a se entrelaçar. É nesse ponto que começa um diverso jogo de fragmentação e de intertextualidade na construção de uma obra dramática ou de um espetáculo teatral. É a partir daí também que se manifesta a procura por novas linguagens que deem conta de uma maneira diferente de encarar o fato cênico e sua dramaturgia. Os artistas que trabalham os novos rumos desse acontecimento artístico se preocupam em renovar o ritual teatral até então estabelecido. Pesquisam modernos procedimentos em que o encontro entre receptores e artistas fosse sustentado de maneira mais orgânica. Para isso, procura-se também ir além da palavra, ultrapassar o “logos” associado ao todo do texto, fortalecendo o discurso da própria imagem da cena. Esse fortalecimento acontece ao consolidar, na semiótica da cena, a importância da expressão do corpo do ator e da estrutura de espaço, seja ela palco ou não. A partir dessa perspectiva, as experiências de performance, de teatro-dança (ou vice-versa) e as criações coletivas produzem importantes contribuições para o percurso desse caminho. Tudo isso gerou uma crise na dramaturgia, pelo
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menos da maneira como tinha sido construída na modernidade. Essa conjuntura coloca em xeque basicamente duas coisas: a) um teatro que prioriza a literatura dramática como texto cênico a ser representado6; b) o papel do dramaturgo como ente individual absoluto fornecedor de uma fonte textual para representação. O surgimento das criações coletivas e, depois, os processos colaborativos, foram determinantes para essa transformação. A dramaturgia na modernidade Mencionamos que essa crise coloca em xeque uma dramaturgia e uma perspectiva cênicas edificadas na modernidade. Mas como entender a modernidade do teatro? Passaremos por alguns pontos importantes que ajudam a refletir sobre esse fenômeno. Pelo menos até antes do século XX, o teatro sempre foi um meio de comunicação primordial para o homem. Na Idade Média, isso funcionava muito bem, desde que se mantivesse a aliança com a Igreja. Mas quando os artistas deram início a um processo de independência do discurso da Igreja e desenvolveram um outro, fundamentado no humano, rompeu-se o vínculo, e a arte teatral passou a ser perseguida pelos algozes da Igreja diante da emissão dos novos conteúdos, que se contrapunham àqueles até então conquistados diante de muita repressão. A modernidade defende outra constituição da arte teatral, como meio de comunicação independente entre os homens, fora do discurso teológico. A dramaturgia, mais do que um texto literário, é um documento histórico que atesta e transmite os ideais para a construção do homem durante a evolução dessa época. A partir desse momento, a cultura moderna, até o século XIX, procura se afirmar e se fortalecer, fazendo da estrutura dramática uma máquina de comunicação inquebrantável. Para essa exata efetividade, a organização precisava funcionar de maneira perfeita. Tal sistema
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Cientes de que o próprio conceito de texto cênico muda, amplia-se, a partir dessa crise, não ficando mais restrito à estrutura literária, ou basicamente, ao roteiro de falas das personagens. 6
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gerou uma hierarquia assumida e respeitada para o efetivo funcionamento desse arcabouço dramático cênico. Há dois tipos de metáforas que nos ajudam a entender essa maneira de encarar o processo. A primeira é uma metáfora mais relacionada ao século XIX, de teor ainda teológico: o dramaturgo é Deus, criador do Universo a ser representado; o encenador é Semideus, com a capacidade de convocar e organizar o ritual da representação da obra criada; os atores são os sacerdotes que efetivam o ritual estabelecido; e o público, são os seguidores da fé (na representação) que assistem ao ritual. A segunda metáfora, mais atual, se relaciona com a ideia de maquinaria perfeita de produção desenvolvida no século XX: o dramaturgo é o dono da empresa; o produtor é o investidor da empresa; o encenador é o gerente; os atores, os empregados; e os técnicos são os subempregados. Essa imagem, mais seca e objetiva, menos idealista que a primeira, acabou se instalando como modelo principal de criação dramática, seguindo os termos elaborados em uma modernidade. O intuito não era simplesmente produzir para preservar um mercado capitalista. Isso seria injusto e parcial. Havia o objetivo de preservar um sistema cultural, necessário para o ideal perfeccionista-científico da época, construído há mais de quatro séculos. No entanto, sabemos que o teatro, como meio de comunicação primordial, entrou em crise no século XX. Os avanços da tecnologia produziram outros veículos de divulgação massiva7 que ampliaram sua efetividade e intensidade. O teatro, como arte e meio de comunicação, precisou ser repensado. Sobre a democratização da dramaturgia Como mencionamos, especialmente na segunda metáfora, estabeleceu-se uma hierarquia no processo criativo cênico, que era necessário derrubar. Essa relação de subordinação era uma convenção estabelecida em países dos blocos neoliberal e 7 Do advento do cinema até a complexa rede de mídias contemporâneas em permanente expansão.
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social-comunista, mesmo que funcionasse com estruturas totalmente diferentes. No caso, o autor teatral, como especialista da escrita do drama e de sua estruturação poética, tinha a primeira e a última palavra na criação. O movimento de criação coletiva, nos anos 1960, fora uma das principais expressões cênicas que se preocuparam por redefinir a estrutura de relação de trabalho. Cabe mencionar que, na América Latina, as manifestações tornam-se referências importantes no mundo. A hierarquia dramaturgo – produtor/encenador – atores – técnicos é desmontada. É precisamente nesse momento que acontece a democratização de diferentes conceitos antes diretamente concentrados em um “especialista” de determinada atividade cênica. O conceito e a função da dramaturgia, que estavam no topo da pirâmide hierárquica, são tomados pelos trabalhadores da encenação. Há uma apropriação de tais conceitos, pelo menos quando há esse interesse, por parte de encenadores, atores, cenógrafos, figurinistas, técnicos. A própria dramaturgia, ou sua função, se expande, criando outras áreas até chegar a uma noção contemporânea, mesmo sendo retomada do século XVIII, como “dramaturgismo”. Sabemos que a criação coletiva, dos anos 1960 até hoje, passou por diferentes etapas. Não vem ao caso entrar em detalhes agora. Mas ao chegarmos ao estágio atual de criações cênicas em grupo, ou do que se nomeia processo colaborativo, observa-se um retorno aos papéis específicos (antes estabelecidos) para o processo criativo. É aí que o dramaturgo/dramaturgista surge como necessidade implícita. Só que agora tais atribuições não estão estruturadas de acordo com uma hierarquia vertical, havendo agora mais horizontalidade. O autor teatral ainda tem um papel importante e “direitos de autor” correspondentes à obra escrita por ele. Mas essa função se amplia. Ele agora é também aquele que se responsabiliza por reunir e estruturar, em uma obra, os elementos dramático-cênicos levantados pelo conjunto criador8. Assim, o dramaturgo passa a ser, além do convencional autor teatral, o autor “do grupo”, ou um
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Dependendo de como esse trabalho seja encarado, é ele quem define e toma decisões finais nessa estrutura (deixando seu nome de autor) ou simplesmente orienta e coordena uma estrutura decidida pelo próprio coletivo, cuja autoria geralmente também é coletiva. 8
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dramaturgista do coletivo. No entanto, ao democratizar os conceitos de dramaturgia, não é só a função do dramaturgo que muda. Os outros artistas do processo também inserem-se nisso e com o desafio de encarar novas exigências na hora de apreender e compartilhar a criação dramática da obra. O encenador é o principal autor do texto cênico (como mencionamos, o texto literário é mais um elemento; portanto, precisa de uma noção de estrutura dramático-teatral para conseguir uma orgânica poética da encenação. O ator apreende conceitos de dramaturgia, agora que ele é parte da autoria do texto e sente essa responsabilidade, os quais ele acaba adotando na hora da criação de suas propostas, improvisadas ou previamente estruturadas. Assim, os diferentes “autores” do processo precisam tomar consciência da nova complexidade do papel assumindo. Então, com a democratização da dramaturgia, principalmente na prática da criação coletiva, o conceito se expande. Sua apropriação não é mais especializada ou monopolizada. Obviamente isso gerou a crise do autor dramático na contemporaneidade que, em um primeiro momento, parecia quase barrado do fato cênico. No entanto, esse processo de transformação gerou novos dramaturgos que, pela experiência do trabalho coletivo ou da performance (ou ambas), renovaram a própria linguagem da escrita teatral, assim como também provocaram essa reinvenção da teoria da dramaturgia, ainda em discussão. Certamente a teoria da dramaturgia está agora mais aberta,9 propondo obras que estejam mais dispostas às transformações dos encenadores e à interatividade com o público.
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Muito mais em sintonia com a proposta de “obra aberta”, de Umberto Eco.
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O dramaturgo e suas funções por Luís Alberto de Abreu10
Até há bem poucas décadas a dramaturgia se confundia com o próprio teatro, e o dramaturgo era a figura central da criação teatral. A ele, exclusivamente, cabia a organização das ações, do texto, do espetáculo, por meio das rubricas e pela articulação dos conteúdos ideológicos de uma peça e de sua forma de transmissão. A obra escrita era quase um manual de encenação; atores, diretores e técnicos deviam seguir à risca as instruções indicadas. Esse modus operandi, comum na produção de um espetáculo teatral, era uma metáfora mecânico-industrial em que as funções eram organizadas segundo uma especialização e hierarquizadas de acordo com uma importância ditada pelo modelo. Resultado de um processo histórico que modificou profundamente as relações de produção de bens materiais e de bens do espírito, o desenvolvimento exacerbado do valor do indivíduo estimulado pela cultura burguesa, em detrimento do valor do coletivo, gerou essa concentração de poderes nas mãos do dramaturgo. Paralelamente, o trabalho intelectual tornou-se um valor mais apreciado que o trabalho corporal, levando à hipervalorização do dramaturgo e alienando-o da construção física da cena. O dramaturgo tornou-se quase um escritor, um idealizador solitário da cena e não mais um de seus construtores. Dramaturgo dos mais importantes do teatro brasileiro, com mais de 70 obras, muitas delas encenadas, Abreu dedica-se também à criação de roteiros para cinema e televisão. Sobre seu trabalho, consultar, dentre outros: Adélia Nicolleti. Até a última sílaba. São Paulo: Imprensa Oficial, 2004.
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Não vamos, porém, demonizar o dramaturgo nem esse modelo especializado de produção. A sensibilidade e a consciência dos artistas levaram-nos à produção de obras notáveis e ao avanço da linguagem em que pese a ausência de melhores condições de atuação. Foi um momento histórico passível de crítica, mas, talvez, não de juízo de valor. Os anos 1970 marcaram o início do desmoronamento da hegemonia daquele modelo de produção cuidadosamente construído. No bojo da convulsão cultural e social ergueram-se chamamentos a uma nova forma de construção da arte, e o foco da organização da cena teatral começou a derivar para diretores e atores. Independente dos dramaturgos experimentaram-se novas vias, novos caminhos para se representar o mundo e o ser humano. Houve visível contestação do papel hegemônico do autor e, nos anos seguintes, o conceito de construção partilhada da cena ganhou força e evidência nas produções teatrais. O dramaturgo foi chamado a desempenhar um novo papel, o do artista que, em igualdade de condições com os demais, debate, acata, leva em conta ideias, conteúdos, formas, sonhos e expectativas dos demais criadores. A demanda era para que ele fosse porta-voz, que abrisse mão de seu próprio discurso hegemônico e criasse uma polifonia com as contribuições do coletivo. Vale lembrar que o dramaturgo não foi o único a perder com a divisão de trabalho e a especialização. O enfraquecimento dos valores do coletivo contribuiu para outro tipo de alienação: a da obra em relação ao mundo que lhe dá origem. O mundo e suas forças sociais, o ser e seus conflitos, o mistério e as expectativas que esta relação entre o mundo e o indivíduo abriga gradativamente começam a perder importância para o artista, que já não é mais o narrador de que nos fala Walter Benjamin: alguém que transforma significativas experiências humanas em material comunicável, alguém que conhece e respeita a tradição e, ao mesmo tempo, está em sintonia com os movimentos da ruptura, alguém que constrói sua arte a partir de uma amálgama do ensinamento mais ancestral e do que sopram, para o tempo presente, os ventos do futuro. O
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artista, via de regra, não é mais alguém atento à observação do mundo e do ser humano com a função de extrair daí um sentido. Com a exacerbação do individualismo, o artista troca a observação do outro pela auto-observação. O eu torna-se medida de avaliação do mundo, que não é mais coisa a ser observada, decifrada e vivida. O mundo torna-se uma ideia do eu, a representação que o artista lhe dá. Essa é uma das explicações para o excesso de sentimentalismo e para a demasiada idealização do mundo presentes no melodrama, por exemplo. Neste gênero, o mundo não é mais o território da ação de heróis e de heroínas que lutavam por estabelecer novas leis que pudessem regulá-lo. O mundo, nesse caso, é um sistema indecifrável e mau: o refúgio do herói é a família, a moral e seus próprios sentimentos. No melodrama, gênero preferido da cultura burguesa, o material gerador do fato artístico transfere-se do mundo e de seus conflitos para o eu. A arte não busca mais expressar o mundo e o seu conhecimento, mas investiga o eu, seus sentimentos, seus conceitos, suas idealizações. Nesse ambiente, o artista não é mais o escultor que da matéria-prima que o mundo lhe oferece constrói sua arte, mas um artífice, alguém muito bem dotado de técnicas e que as manipula, e que dali extrai sua arte. É sabido que técnicas são fundamentais, são conhecimentos estabelecidos, guias imprescindíveis para a construção de qualquer obra. O problema não são as técnicas, mas o material a ser trabalhado por elas – pouco vale técnica refinadíssima sobre material precário ou insuficiente. O que se percebe é que a arte contemporânea possui enorme e refinado aparato técnico, passa por significativas renovações formais, mas ainda não se debruça sobre o material que mais a desafia: o mundo. Ao contrário, é como se se voltasse para contemplar a si mesma, extraindo daí o material de sua produção artística. Sabemos que o momento é de transição e que inúmeras iniciativas artísticas buscam outros caminhos, mas a tônica dominante parece ser a do contemptus mundi, o desprezo pelo mundo, conceito cristão que estava na base do pensamento melodramático e parece ter sua validade estendida até os nossos dias. Algumas obras de teatro a que
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assistimos são extremamente refinadas em todos os seus elementos, mas ao final do espetáculo nos perguntamos: para que tanto empenho, para que tanto conhecimento e refinamento acumulados, para que tanta precisão e beleza se nada disso nos arrebata? Se nada deixa saldo em nós? Se nada apura nossa sensibilidade? Se não amplia nossa visão sobre o ser humano, seus conflitos, suas perdas, suas conquistas e seus sonhos? * * * Tudo o que foi escrito até aqui não é mais que um extenso preâmbulo, a meu ver, necessário, para expressar o que para mim são as funções do dramaturgo. Penso que existe uma função técnica da dramaturgia, que são os limites de sua competência e atuação dentro de um trabalho individual ou coletivo. E existe uma função social que abrange todo e qualquer artista, e que diz respeito à sua importância e responsabilidade na construção e fixação dos valores civilizatórios, claramente dizendo, na transformação do mundo. Esta função social, a meu ver, é básica, primordial, que organiza, ou deveria organizar, toda sua função técnica. A função social de um artista está intimamente ligada à importância, sempre menosprezada, das linguagens artísticas na transformação do ser humano e da sociedade. Pergunto-me constantemente por que o fazer artístico esteve sempre ou umbilicalmente ligado ao poder dominante ou reprimido por esse próprio poder. Por que o teatro, no ocidente, era divertimento das cortes e, ao mesmo tempo, perseguido nas praças? Por qual razão o poder constituído insiste em cooptar ou reprimir as linguagens artísticas senão em razão de sua potência transformadora? As linguagens artísticas não são as únicas a produzir pensamento e a organizar novos sistemas de ideias ou novos sentidos para o mundo, mas talvez sejam as mais eficientes em popularizar, disseminar e fixar valores gerados pelo pensamento humano. Querendo ou não, os artistas têm poder e responsabilidade no que se refere à fixação dos valores presentes na transformação do mundo ou em sua manutenção.
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Tratemos, agora, rapidamente, da função técnica do dramaturgo. Digo rapidamente porque, por um lado, a inserção do dramaturgo em um processo coletivo vai variar caso a caso. Por outro, a arte da dramaturgia e suas atribuições dentro do processo da construção da cena já estão estabelecidas. Todavia não custa repetir: fundamentalmente, cabe ao dramaturgo organizar as ações de uma peça, dando-lhes um fluxo coerente e comunicativo que lhes outorgue um ou vários sentidos. No teatro, a ação interna, ou seja, os conflitos internos da personagem também são valorizados. Nesse sentido, é atribuição do dramaturgo não só o estabelecimento da intriga ou do enredo, como também o desenvolvimento coerente das tensões internas das personagens nesse enredo. Dentro de um processo coletivo, o que se espera de um dramaturgo é que partilhe com os outros criadores seu procedimento criativo. Como já afirmei, isso pode variar dependendo do coletivo e do processo adotado. Há dramaturgos que trabalham desde o primeiro instante na sala de ensaios; outros, acompanham a produção de material dos atores e diretor em momentos específicos. Eu pertenço ao segundo grupo. No meu caso, comumente, o princípio do processo coletivo de criação ocorre com a discussão de um tema que possa representar o interesse de todos os artistas envolvidos. Em seguida, sucede um período de investigação teórica e/ou de campo e produção de material sob forma de improvisação. Estabelecido esse material bruto de criação, ausento-me por um período para escrever o canovaccio, uma visão geral das ações e das personagens que comporão o espetáculo. Isso é apresentado ao grupo para discussão, aperfeiçoamento, mudanças. Esse é um momento verdadeiramente delicado, e cabe ao dramaturgo ser realmente o porta-voz de cada criador. O dramaturgo deve ter respeito profundo pelo material produzido pelos outros criadores, deixar-se penetrar pelo material, ser permeável a ele; ter o cuidado, que nunca será excessivo, para não transformar todo aquele material em discurso pessoal. Ele deve preservar as vozes dos criadores e encarar o desafio de construir uma obra de dramaturgia verdadeiramente polifônica. E, aqui, é discutível se o teatro dramático, com sua unidade de ação e sua precisão quanto ao andamento dos conflitos e tensões, pode dar
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conta de organizar essas inúmeras vozes. Comumente tem-se que lançar mão de uma relação mais flexível com o gênero épico ou lírico, com peso maior na organização da dramaturgia. Baseado no canovaccio, começo a escrever as cenas propriamente ditas, enquanto atores e diretores igualmente começam a construí-las na sala de ensaio. Como o canovaccio é uma plataforma comum para todos não haverá discrepância significativa entre o texto produzido pelo dramaturgo e o material cênico produzido pelos atores e diretores. Com algumas alterações ou supressões de cenas – criadas pelo dramaturgo ou pelos atores, não importa – o espetáculo começará a ser produzido. É importante que todo o processo seja permeado por discussões e ajustes. O que gostaria de ressaltar em meu processo de criação com um coletivo é que, a partir do canovaccio, minha relação preferencial se dá com o diretor. Isso porque, a partir desse momento, cabe a ele a condução do processo de criação do espetáculo. É ele quem vai receber, em primeira mão, as cenas vindas da dramaturgia e vai decidir se é o momento ou não de passá-las aos atores. Talvez ele considere que seja precipitado apresentar uma proposta de cena finalizada enquanto os atores ainda estão em processo de construção. Mas não é só por esta razão que considero o diretor o parceiro privilegiado do dramaturgo neste momento. Tanto o diretor como o dramaturgo são incumbidos do que chamo de escritas mortas do espetáculo teatral. Chamo de escritas mortas porque, no contexto de um espetáculo, tanto a dramaturgia quanto a geometria cênica tendem à estabilização. São escritas que, comumente, uma vez estabelecidas, não se modificam mais em essência. A arte do ator, ao contrário, é uma escrita viva que requer em cada apresentação o fluxo de uma energia sempre renovado, que transforma seu trabalho em algo constantemente em movimento. Quando a arte do ator se cristaliza em mera repetição de gestos e falas, torna-se estéril e transforma o espetáculo em algo morto. Considero que a afinidade entre dramaturgo e diretor, neste momento do processo de criação, é resultado da afinidade de suas artes, que se propõem ao desafio de criar uma escrita morta, mas com potência germinadora, capaz de ser reavivada pela arte do ator.
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Brincando no campo dos senhores por Luiz Carlos Moreira11
1. A dramaturgia ligada à cena – coletiva, colaborativa –, que parte do trabalho com os atores, experimentou um desenvolvimento significativo nos últimos 10 anos na cidade de São Paulo. Essa história vai mais longe e teve experiências significativas no início dos anos 1960, ou mesmo antes, e não só no Brasil. 2. Fiquemos na cidade de São Paulo, última década e seus antecedentes imediatos. 3. Anos 1950, um marco: o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) surge para implementar o moderno teatro brasileiro. 4. Moderno era assim: um empresário, Franco Zampari, contratou diretores italianos, atores e técnicos brasileiros e botou todo mundo para trabalhar, numa típica linha de montagem fordista, a mesma utilizada pela indústria automobilística da época. 5. Teatro moderno, brasileiro e fordista, era assim: o empresário, secundado por seus artistas, escolhia um texto – normalmente europeu ou norte-americano, a tal dramaturgia universal –, e o diretor centralizava o planejamento no ensaio de mesa. Definido como seria o espetáculo, cada um ia para o seu canto realizar a tarefa: diretor e atores, para o palco; cenógrafo, figurinista, iluminador “criavam” a parte que lhes cabia, coordenando cenotécnicos, costureiras, aderecistas na execução de suas tarefas etc. 11 Dramaturgo e diretor do grupo Engenho. Tem destacado papel nos processos de luta da categoria teatral, sobretudo no concernente às reflexões e militância política.
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6. Tudo muito organizado e competente, se possível. Com períodos de ensaios muito breves, em um mês a bilheteria teria de se abrir para confirmar essa eficiência porque o dinheirinho aplicado tinha de voltar com lucro; caso contrário, a máquina substituiria o produto no palco depressinha. 7. Os anos 1960 acordaram com o TBC falido. Ele e seus filhos prediletos não chegaram à década de 1970: depois dele, desapareceram as companhias de Maria Della Costa-Sandro Polônio, Sergio Cardoso-Nydia Lícia, Adolfo Celi-Tonia Carrero-Paulo Autran, Cacilda Becker-Walmor Chagas... 8. Ficou, entretanto, o modelo e seus respectivos valores modernos: linha de montagem fordista e a consequente divisão de funções, a identidade do artista e técnico como um ser profissional, a estética como algo universal e eterno, umbilicalmente ligado a uma natureza humana também universal e eterna, a uma história do teatro desligada de suas condições reais de existência, transformada num repertório de linguagens, recursos e técnicas também universais e eternos. Pouco importa se universal e eterno são as experiências europeia e norte-americana, engravidadas por personagens e situações brasileiros pelo Teatro de Arena que, apropriados (tudo apropriado) pela indústria, vai dar na novela de TV e em “especiais”, como A grande família, por exemplo. 9. Ah, sim! Fundamental: esse processo varreu para debaixo do tapete, como panfletária, política e não teatral, as experiências do teatro europeu e norte-americano desenvolvidas no front da luta dos trabalhadores desde meados do século XIX, ainda que muitas de suas “formas” e recursos cênicos e dramatúrgicos sejam expropriados e incorporados pelo tal teatro moderno em nome de certa teatralidade, depois de expulsos seus conteúdos, temas e significado, evidentemente. 10. Ressaltando-se o saneamento apontado anteriormente, configurou-se ali o cardápio do chamado teatro de qualidade, ou o não reconhecimento das qualidades do teatro expropriado que se queria “naturalmente” exilar dos palcos. 11. Probleminhas no modelito: uma vez quebrado o TBC e
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afilhados – leia-se: o mercado faliu, não deu certo –, o profissional naufragou. Profissional é aquele que vende seu trabalho para um produtor, empresário, patrão. Eu só me defino e existo como profissional na relação com meu patrão. Se ele desaparecer, eu desapareço. Eu não existo “em si” (nem mesmo na gramática). Mas continuo existindo como pessoinha. E pessoinha que quer fazer teatro, aquele teatro cujas bases desmoronaram. 12. Primeira tentativa: início dos anos 1970. Alguns se juntaram para bancar uma produção por cotas de capital, e os demais (poucos deles, a maioria nem isso consegue) toparam trabalhar por porcentagem de bilheteria e não mais por salário nominal e contrato assinado. 13. Segunda tentativa: 1979. Surgiu a Cooperativa Paulista de Teatro: desempregados, os artistas se juntaram em grupos para fazer teatro. 14. Mais defeitos colaterais. O teatro moderno busca o profissional adequado para cada papel ao produzir suas montagens. Esse diretor produz um determinado espetáculo, o que exige esse cenógrafo e não aquele; essa personagem exige aquele ator velho; esse outro pede aquela mocinha bonita; no caso de um musical, que seja soprano e alcance tais e tais notas. O grupo tem de se virar com o que tem: se somos 6 e não podemos ou não queremos contratar ninguém, nós 6 teremos de fazer tudo ou adaptar tudo ao nosso jeito. A obra parte do grupo e não o contrário: um produtor reúne momentaneamente profissionais para produzir determinada obra. 15. Ainda lá atrás, nos anos 1970, outros ingredientes a configurar o grupo: desejo de se expressar e não apenas de atuar, vendendo seu trabalho para produções “de qualidade” ou de sucesso; vontade de falar da realidade brasileira ou do povo brasileiro (ó o Teatro de Arena, a pressão/presença dos movimentos sociais e políticos, o nacional e o popular aí); briga contra a censura, que impede a realização desses desejos; luta maior contra a ditadura militar e, com isso, o mesmo desastre já vivenciado pelos empresários – a bilheteria não paga a conta. 16. E chegamos ao fim do milênio. Salada completa.
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17. O grupo não é e não pode ser autossustentável, mas as pessoas têm de pagar aluguel e comer. 18. O artista – formatado pelo mercado que o cerca – se diz profissional, pensa como profissional, age como profissional, mas não tem patrão. No grupo, tem de fazer tudo, pensar tudo e enfrentar tudo, mas, como profissional (aquele da divisão de trabalho, lembram?), só quer ser ator. 19. E se a obra nasce dessas relações e condições (ver também item 14), é com elas que o grupo se depara e grita: pela minha existência e sobrevivência, contra a mercantilização da cultura (aprenderam que o mercado e sua bilheteria não funcionam)! Mas seus integrantes sonham: meu reino por um empresário! 20. Com isso, criaram, nos últimos 10 anos, a estética do desmanche. Deram forma, no palco, ao desmanche social promovido pelo capital e seu mercado, do qual eles são parte como mão de obra excluída, descartada. Mas, contraditoriamente, persistem na manutenção do ideário estético (a começar pelo sonho de ser profissional) que os formou (aquele do teatro pretensamente “em si”, dos itens 8 e 9 acima; aquele que faliu nos anos 1960). 21. Esse grupo, esse artista que se pensa profissional, essa dramaturgia e essa cena darão o pulo do gato: romperão com certos padrões de qualidade teatral e darão às formas mais combativas que herdaram seus conteúdos correspondentes? Enfrentarão, enfim, o teatro universalizado pela civilização burguesa ou continuarão sonhando com um lugarzinho ao sol como gênios criativos?
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Dramaturgia – um procedimento de (re)criação O caso Dercy Gonçalves e o retorno do texto escrito à sua oralidade original por Virginia M. S. M. Namur12 Teatro é vida e a vida não é estática. (...) Eu invento a vida e deixo a literatura para os intelectuais. Dercy GONÇALVES13
Dercy Gonçalves era inteligentíssima, mas praticamente analfabeta: “de pai e mãe”, como ela mesma diria. De origem humilde, nascida e criada em cidadezinha provinciana, tudo o que aprendeu foi de ouvido. Valeu-lhe muito a aprendizagem, permitindo que seguisse com sucesso uma carreira artística genuinamente popular, num país em que o popular, embora agrade a gregos e troianos, nunca foi considerado nada além de folclore. Dercy começou como cantora melodramática no teatro mambembe, muito próximo das improvisações do circo. Dali passou ao teatro de revista, espetáculo urbano-popular que, apesar de ser chamado teatro, foi por muito tempo ignorado pela crítica e pela historiografia teatral. Preferia-se entendê-lo como um fenômeno menor, indigno da chamada grande arte, pois além de não trabalhar com conflitos, era espetáculo heterogêneo, com números distintos, Mestra em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutora em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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Apud Simon KHOURY. Bastidores: Dercy Gonçalves, Rubens Correa, Suely Franco, Renato Borghi. Rio de Janeiro: Letras e Expressão, 2000, p. 105 e p.15, respectivamente.
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fragilmente alinhavados por um fio condutor, nos quais também cabiam canto, dança e humor. A verdade é que não se sabia o que fazer com a vivacidade do gênero. Marcado pela metalinguagem, afrontava a forma hegemônica do teatro vigente, ainda bem assentado na ilusão naturalista. Ao rejeitar as abstrações, fazia questão de transformá-las em alegorias, cuja inusitada materialidade não raro beirava o nonsense. A contraposição definitiva vinha, contudo, do fato de sua estrutura festivamente híbrida e coletiva, recheada de caricaturas, anedotas e trocadilhos, ser por demais estranha à perspectiva individualista e autoritária que caracterizava o bom e nobre teatro da época, para o qual só o didatismo justificaria a comédia. Por isso, o menosprezavam, desconsiderando a bizarra eficácia crítica de seu riso. A revista partia, sim, da autoridade de um texto que, em geral, era construído às pressas e, no mais das vezes, por diversos autores que não pretendiam dar-lhe grande duração, rascunhava-se quase sempre sobre uma mesma e repetida fórmula, dúctil e flexível o suficiente para se amoldar ao instante. Seu modelo era a fala do povo e o diz-que-diz das ruas, absorvendo tendências político-sociais, fatos e personagens em evidência; costumes e figurinos em voga; ritmos e cadências da moda. Estava-se, portanto, no terreno da tradição. De algo há muito tempo já decodificado e sabido, mas que sobrevivia graças exatamente à sua surpreendente capacidade de atualização. Sua prontidão em metamorfosear-se nas qualidades do presente, além da singular presteza na improvisação, tornava o discurso apto às mudanças e, assim, confiante na sua própria perenidade. Bastava-lhe refletir a vida em estado de movimento e transição, ou seja, em pleno porvir. Portanto, como construção aberta à plurivalência das possibilidades. Este foi o fundamento da cena de Dercy, tanto no teatro como no cinema e, também, na televisão, mídias que tratou sempre com o mesmo desembaraço. Do mambembe, passou para a revista paulista que, em vez de carnavalizada, era regional, ou caipira. Nesta, tornou-se por acaso cômica de sucesso quando, ao se apresentar
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na Casa de Caboclo carioca, de Duque (Antonio Lopes de Amorim Diniz) e De Chocolat, foi obrigada a servir de “escada” para Jararaca e Ratinho, e tomou-lhes a cena. Sentindo-se estrela só porque seu quadro musical fora elogiado no jornal A Noite, por Dias Cruz, enfezou-se por ter de substituir uma atriz que ficara doente e subir ao palco só para atender ao tilintar de um telefone e, a partir dessa estratégia atualizadora, anunciar a grande dupla. Desmanchando o truque cênico, pôs-se a digladiar-se com o aparelho, que era ainda daqueles pregados à parede, com um pequeno cone para ouvir, outro para falar. Dizia não ouvir nada e fazia grotescos malabarismos para estabelecer comunicação. Como a telefonia nativa era novidade cantada em verso e prosa, mas com funcionamento ainda muito restrito e precário, o público logo reconheceu na cena os exageros ridículos de uma dificuldade cotidiana, e veio abaixo, com a atriz se entusiasmando cada vez mais. Em certo momento, deu-lhe de cuspir no cone de ouvido para ver se o desobstruía e, sem querer, cuspiu na plateia, que adorou o atrevimento. A companhia também gostou da invenção e, assim, a cuspida passou a integrar o espetáculo, ganhando Dercy, além de cantora, também um lugar de comediante na peça. Dali em diante, tornou-se excêntrica, fazendo o papel de antivedete, que dançava, cantava e se requebrava, mas não levava a sério os apelos sensoriais do gênero, senão para desmistificá-los. Também fez da cusparada sua marca registrada, havendo até casos de espectadores importantes, senhoras da sociedade, que, ao ir ao teatro para se deliciar com o quadro, mandavam-lhe bilhetinhos pedindo que, ao cuspir, se virasse para tal e tal lado, pois ali estavam sentados. Nesse período, trabalhou com Jardel Jércolis em sua famosa Companhia de Revistas Brejeiras Paradise, uma das primeiras a entabular diálogos com os novos meios de massa, como o rádio e o cinema. Foi, porém, no Teatro Recreio, com Walter Pinto, de quem foi braço direito, comandando um elenco extremamente disciplinado e codirigindo com grande competência, que se firmou como atriz. Mas nas mãos desses empresários, que no rastro das produções
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americanas entregavam a revista ao music-hall, o espaço para o humor e para a crítica social foram-se tornando cada vez mais reduzido, o que fez a comediante procurar saídas. Abriu sua própria companhia, associando-se a empresários que ainda apostavam em revistas à moda antiga, como Nicolau Bachá e Zilco Ribeiro, e montou simultaneamente revistas de bolso, em pequenos teatros. São dessa época Quero ver isso de perto e Pro Catete eu vou a pé, em que o tema era a candidatura de Getúlio Vargas, e Dercy contracenava com Oscarito. Mas também Nega maluca, grande sucesso de Walter Pinto, na qual a parodiada era Josephine Baker, que visitara o País logo após a guerra. Ao abrasileirar sua dance sauvage, a comediante a levava aos estertores de um transe de macumba. Quando a revista já não significava nada mais que mero teatro rebolado, com cascatas no cenário e vedetes seminuas entre plumas, Dercy se viu forçada a mudar de gênero, se quisesse sobreviver artisticamente. Passou a produzir vaudeville, mas como esse já não agradava tanto o público, teve de se aventurar na comédia. Havia, no entanto, um empecilho – o gênero exigia texto e certa continuidade de cena, à qual a atriz não estava acostumada, nem se sentia à altura. Não teve dúvida: revoltou-se com a autoridade do texto e o devolveu à oralidade, recortando-o e enchendo-o de cacos, não a seu bel-prazer, mas segundo o interesse e o prazer do público, com o qual assim se mantinha, tal como nos velhos tempos da revista, em constante e fertilíssimo diálogo. Estreou em São Paulo em 1954, no Teatro Cultura Artística, com Uma certa viúva, adaptação de Miroel Silveira à peça Dorothée, de Jean Wall, cuja fonte primeira era a novela Jane, de Sommerset Maughan, levada pela primeira vez ao teatro em adaptação de Berhman. Era, portanto, a quarta versão de uma série de recriações. Talvez por isso a atriz, depois de muito lutar com o texto, não conseguindo repeti-lo com a fidelidade exigida pelo diretor, Armando Couto, sentiu-se à vontade para livrar-se dos dois e resolver ao seu jeito o impasse. Chamou para ajudá-la o ator Sadi Cabral, que também fazia parte do elenco, e juntos refizeram a peça toda, chegando a amputar o terceiro ato, considerado por ambos um obstáculo para o ritmo do
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espetáculo. Foi um retumbante sucesso. O que só funcionava no papel começou de repente a fluir, levando consigo o espectador, que para Dercy sempre foi a peça mais importante do teatro. Desde então, a artista foi se aprimorando numa espécie singular de comédia, que misturada a procedimentos de circo e revista, resultava em discurso desautorizado e metalinguístico. No trajeto, assumiu de vez um sempre mesmo e, no entanto, surpreendente tipo: o bufão caricato que ousou encarnar pelo resto de seus dias, numa mescla entre arte e vida, outro princípio popular. Por meio dele, Dercy dessacralizou o palco italiano, equiparando-o ao picadeiro ou ao “baixo plano” dos teatros da Praça Tiradentes, do Rio de Janeiro. Contudo, ao se considerar o grande e heterogêneo público que atraía, também propôs aos brasileiros, senão uma modalidade nova de comédia, uma metacomédia, muito mais próxima da ambivalência a que sempre esteve fadada a dependente cultura nacional. As metacomédias de Dercy desvelavam e punham em xeque os procedimentos convencionais da comédia burguesa. Apropriando-se de seus textos, a atriz encomendava a bons intelectuais nativos adaptações de Georges Feydeau, Louis Verneuil, e outros, só para poder transcriá-las livremente, numa supermoderna concepção de dramaturgia. Ao reatualizá-las, fazendo com que se dobrassem à sua corpo-oralidade popular, também firmava um pacto indissolúvel com o público, a ponto de Sábato Magaldi sugerir que o verdadeiro antagonista da atriz era a plateia.14 Se no seu anonimato coletivo o espectador era o grande parceiro da comediante, esse teatro já era interativo muito antes de a palavra entrar em moda. Tendo como fonte a realidade, as interferências dialógicas com o público desautorizavam o texto e o democratizavam, reduzindo-o a mero canevas (roteiro) sobre o qual eram enoveladas as mais variadas atualizações. A improvisação era o mote; a estética, a da precariedade, no sentido em que tudo se Sábato MAGALDI. In A futura dama. São Paulo: Revista Veja, no 139, 5 de maio de 1971, p.45. O crítico acrescenta ainda que, guardadas as devidas proporções, o estilo da atriz estava dentro da tendência muito atual de colocar o ator em primeiro plano. Esta se caracteriza, por exemplo, na base do Living Theater, em que a comunidade escreve e representa o que sente e não o que escreveu e sentiu o autor. 14
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construía no presente, de forma prevista, mas instável, num processo em aberto, ou, como se diria hoje, de acordo com certa tendência hegemônica, in progress. É interessante observar que a carreira da atriz só se solidificou no momento exato em que seu teatro se liquefez. Exímia nas exigências ágeis e efêmeras da ação e da oralidade, mas fragilizada diante da autoridade pré-programada e estanque do texto, só lhe restava solapá-lo, devolvendo-o às origens. Como bem cedo descobriu, sendo o teatro um jogo, e o corpo sua matéria, desde que houvesse uma combinação de regras entre as partes, no caso, o ator e a plateia, só não podia perder o fio condutor, nem perder o ritmo teatral. Fora isso, podia brincar à vontade.15 Com o texto, com o contexto, com as personagens, isso sem falar das vãs hierarquias de gênero, estilo e linguagens. Em A dama das Camélias, por exemplo, além de parodiar o texto de Alexandre Dumas Filho, recusou-se a morrer em cena, inventando para ele outro final, mas também estilizou de tal forma as crises de tísica da personagem, tossindo em “cofó-cofó”, que a plateia se acabava em riso, não importando quantas crises viessem à maneira de bordão. Evidentemente, enfrentou muitos problemas. Com escritores como Henrique Pongetti, que adaptou para ela La mamma, de André Roussin e, depois, cioso do texto, escreveu carta para a censura, delatando desmandos e descomposturas da atriz. Considerando que o autor conhecia perfeitamente seu trabalho, recebendo boa quantia pela adaptação, Dercy ignorou suas ameaças, mas previdente, tratou de evitar atrasos na estreia, guinando rapidamente as atenções. Aproveitando o sucesso recente de um filme italiano, com Marcelo Mastroiani no papel principal, trocou o nome da peça para A mãe do Belo Antonio, e acabaram-se os problemas. Assim era Dercy: se não dava certo de um jeito, sempre haveria outro, em aguçada percepção da alteridade. Viera de um tempo em que viver de teatro significava viver às pressas, com três a quatro récitas por dia, com novos espetáculos a cada semana. Criavam-se a duras penas as condições da arte no País. Atores se 15
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Maria Adelaide AMARAL. Dercy de cabo a rabo. São Paulo: Globo, 1994, p. 122.
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responsabilizavam pelos figurinos; cenários eram continuamente reaproveitados; reciclavam-se enredos e achados cênicos. Com tanta autonomia, era muito difícil dirigi-la. Embora seus espetáculos contassem com diretores célebres, como Ruggero Jacobbi e Flávio Rangel, esses diretores sabiam que enfrentavam um desafio quase tão impossível quanto tentar desviar o curso do Rio Amazonas, como Marcos Caruso classificou sua experiência na televisão.16 Falava-se também, à boca pequena, que contracenar com a comediante era uma empresa de risco. Ficou famoso o caso de Luiz Tito, vindo de Os Comediantes. Por ter feito César e Cleópatra no Teatro de Arte de Dulcina e ganhado medalha de melhor ator ao interpretar o Conde de Essex, em Elizabeth da Inglaterra, de Mme Henriette Morineau, este se gabava de ser o ator brasileiro que melhor sabia usar um manto em cena, o que era verdade, como disse Nídia Lícia em suas memórias.17 Dercy, entretanto, não se impressionava com empáfias. Em Escândalos romanos, de 1953, numa cena em que o ator deveria entrar vigorosamente no palco e atacar sua personagem, que se defendia, este entrou com excessiva “finura”, por demais concentrado em sua própria majestade. Irritada com a debilidade do ataque, pois o campo não era do nobre teatro, mas da paródia popular, a comediante gritou ao defender-se: Cai fora, seu viado! Tito, que era homossexual, passou num segundo da surpresa para a fúria com a ousadia da atriz. Respondeu: É pra já! E retirou-se do palco, mas também do teatro, não havendo quem pudesse fazê-lo desculpar o episódio. Na cena seguinte, sem ter quem substituí-lo, Dercy lançou mão do ponto, que ao contrário de Tito, era um homem franzino. Nem assim se emendou. Ao dar com ele em cena, vestido com o figurino do ator, espantou-se: “Mas não é que o homem encolheu? Tão corajoso e encolheu!!!” A plateia riu da disparidade visível, mas só o elenco entendeu realmente o comentário. Apud Eliana ROCHA. Marcos Caruso – um obstinado. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008, p.116.
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17 Nydia LÍCIA, em Ninguém pode fugir de seus fantasmas. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 272.
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Da crítica, então, nem se convém falar. Apenas os mais corajosos e desabridos, como Clovis Garcia e Sábato Magaldi, se permitiam assistir às suas peças e comentá-las. Por isso mesmo, o nome da atriz até hoje não consta da história oficial do teatro brasileiro. Nada disso, porém, a assustava ou a demovia. Bastava-lhe a enorme aceitação do público. Não se preocupou sequer com o fato de que revelava de alguma forma a verdadeira natureza do teatro nacional e fazia escola. Deixou tais questões para a posteridade.
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A dramaturgia do ator nos processos cênicos coevolutivos do Grupo Katharsis por Andréia Nhur18
O corpo no teatro do Grupo Katharsis O Grupo Katharsis foi fundado em 1989, como grupo universitário vinculado à Universidade de Sorocaba (SP). Em 1995, o dramaturgo, diretor e pesquisador Roberto Gill Camargo assumiu sua direção, permanecendo no cargo até o momento. Durante quase dez anos, o grupo voltou-se para modos convencionais de se pensar a dramaturgia, verticalizando a relação entre texto, encenação e ator. No entanto, o constante trabalho de preparação corporal – que antes era desenvolvido pela coreógrafa e musicista Janice Vieira e, depois, foi assumido por mim –, aos poucos deixou de atribuir ao corpo um papel instrumental, para gestá-lo como elemento fundacional na produção cênica do grupo. Atriz, bailarina e pesquisadora, graduada em dança pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutoranda em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente, desenvolve o projeto de relançamento do Grupo Pró-Posição (www.proposicaodanca.com.br), colabora com o Coletivo KD e trabalha como atriz e preparadora corporal do Grupo Katharsis (www.grupokatharsis.com.br), em Sorocaba (SP).
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Em 2005, o espetáculo Endoscopia marcou a opção do grupo de tornar-se um núcleo de pesquisa, preocupado em investigar como a teatralidade opera nas tramas da cena. No mesmo ano, iniciou-se uma trilogia sobre a teatralidade, à luz de uma linha de pesquisa intitulada “Processos cênicos coevolutivos”, em que três obras se complementam, sem almejar a uma conclusão: Aves, ovos e parafusos (2006-2008), Água, luz e clorofila (2008) e Astros, patas e bananas (2009). Catalizada pelo corpo, a teatralidade – como a entendemos – é uma espécie de mosaico coevolutivo que agencia as diversas relações da cena: corpo-luz, corpo-som, corpo-figurino, corpo-objeto, corpo-palavra, corpo-plateia etc. “Co” porque estabelece a conjunção e combinação de fatores em um processo multidirecional, “evolutivo” porque se opõe a um trajeto linear e progressivo.19 Com isso, adotou-se o corpo (expresso, neste caso, pela figura do ator), como elemento central de análise e de produção nesse modo de proceder, já que, nele, todos os processos são vivos, correlacionais e coevolutivos.
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Dramaturgia do Corpo Antes de tratarmos da dramaturgia operando “no” e “pelo” ator, voltemos à etimologia da palavra dramaturgia, a fim de entendermos em que medida o termo nos oferece direcionamentos distintos dos que já estão convencionalmente estabelecidos. Da origem grega drao, que significa ação, o termo dramaturgia (drama ergon) quer dizer construção ou trabalho da ação. É interessante notar que as palavras construção e trabalho são, por elas mesmas, designativas dos verbos construir e trabalhar, que são verbos de ação. Assim, se a dramaturgia implica o trabalho das ações, poderíamos tratá-la como uma ação “em ação”. Diferentemente de Enquanto o conceito de progresso remonta a uma linearidade que segue de um ponto de origem a um ápice final, a evolução se dá por meio de processos irreversíveis e não lineares, que implicam adaptação, organização e complexidade de relações. (PRIGOGINE,1976: 93133)
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sua definição habitual – em que primeiro dá-se a ideia, para depois empenhá-la em ação – a dramaturgia, como proponho aqui, não separa ação de ideia. Nesse sentido, partimos, logo de cara, de uma visão não dualista de corpo, já que adotamos corpo-mente como uma só palavra, em que não se coloca pensamento e movimento, conceito e percepção, como coisas de naturezas distintas. “E corpo é sempre corpoemente assim mesmo, tudo junto.” (KATZ, 2005: 128-129). A relação de mão dupla entre movimento e pensamento ocorre no corpo por meio de um processo denominado por Christine Greiner de “dramaturgia do corpo”. Greiner parte das asserções do neurocientista português Antônio Damásio para explicar o modo como os estados do corpo geram uma coerência nascida das relações entre corpo e ambiente. Se a dramaturgia do corpo é uma espécie de nexo de sentido que ata ou dá coerência ao fluxo incessante de informações entre o corpo e o ambiente; o modo como ela se organiza em tempo e espaço é também o modo como as imagens do corpo se contróem no trânsito entre o dentro (imagens que não se veem, imagens-pensamentos) e o fora (imagens implementadas em ações) do corpo organizando-se como processos latentes de comunicação. (GREINER, 2005: 73).
Esta noção de dramaturgia refere-se ao corpo cotidiano e não necessariamente ao corpo cênico. A maneira como nos movemos, falamos, sentimos e percebemos o mundo, no dia a dia, gera um fluxo contínuo de representações internas no corpo. Essas representações são imagens20 geradas no cérebro. O modo como essas imagens fluem no tempo geram nexos de sentido evidenciados por um processo de construção de ações, ou seja, de dramaturgia.
Antônio Damásio se refere à imagem não como imagem fotográfica ou figura, mas como imagem mental. Para ele, uma imagem mental é construída pela alteração estrutural transitória no corpo, advinda tanto do estado das vísceras e do meio interior, quanto do contato com o meio externo. O cérebro constrói mapas referentes a essas alterações no corpo, com a ajuda de sinais químicos da corrente sanguínea e elétricos, do sistema nervoso. A partir desse mapeamento, formam-se as imagens mentais. (DAMÁSIO, 2004: 206-207).
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Por uma dramaturgia do ator Jean-Marc Adolphe, redator-chefe da revista Mouvement, propõe que a lógica teatral evoca tanto o sentido das ações quanto aquilo que poderia entrever uma dramaturgia própria da dança, isto é, a ação do sentido. (ADOLPHE, 1997). Se juntássemos esses dois caminhos, teríamos um mapeamento de duas direções: o sentido emanado da ação e a ação emanada do sentido. Ao integrarmos, então, a ideia de dramaturgia do corpo a esse mapeamento, chegaríamos a um processo de contínua retroalimentação, já que das ações emergem sentidos que geram novas ações, e assim por diante. Este fluxo remonta ao conceito peirceano de semiose21, ou seja, o processo de ação do signo, cujo funcionamento é possibilitado pelo que a mente (corpo) apronta. Em Astros, patas e bananas, a mais recente peça da trilogia do Grupo Katharsis, algumas cenas são sintomáticas da ação signo-corpo-signo. Por exemplo: uma portuguesa canta um fado e, num dado momento, apóia um cacho de bananas na cabeça. A partir daí, uma série de pequenas alterações musculares — elevação das sobrancelhas, rebolado, movimentos dos olhos e das mãos – configuram uma nova cadeia sígnica que faz a portuguesa desaparecer, instantaneamente, à luz do nascimento de outra figura, Andréia Nhur - Foto de José Neto a Carmen Miranda.
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A semiose consiste em uma ação sígnica que resulta na determinação de interpretantes. São signos que levam a outros signos, numa sucessão sem princípio nem fim. (VIEIRA, 2004: 02)
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É no corpo e na carne que a ação do signo deve transitar; é do corpo e da carne que a proposição dramatúrgica deve emergir. Mas para que o ator permita a emergência dessa dramaturgia processual, ele precisa estar disponível. Para o ator, essa “disposição” é um modo de operar a materialidade que lhe cabe, ou seja, seu corpo. É um modo de agir, simultaneamente, com abandono e apreensão. Entre a tensão e o relaxamento ocorre o bote, uma explosão calórica que evidencia o ciclo ação-sentido-ação. Nesse modo de operar, expressam-se padrões de escolhas que possibilitam mais ou menos vazão dessa relação entre abandono e apreensão. Quando se trabalha com personagens, há o risco de se optar pela apreensão, em detrimento do abandono, já que é muito convidativo para o ator postar-se atrás da representação ficcional da personagem. A noção de persona rompe essa apreensão total da qual o ator se torna dependente e anulado atrás da personagem: O ator-criador afirma as suas idiossincrasias e o seu ser na persona e não na identificação com a personagem de uma obra. Na construção da persona, ele rompe com a dualidade ficção/ realidade e, com isso, o ator-criador se serve das personagens para fortalecer a expressão de seus pensamentos, de suas indignações e não para ficar atrás delas e se anular através de uma tentativa de encarná-las. (LOUIS, 2005: 105).
O ator, assim, utiliza-se do trânsito entre tipos, figuras, estereótipos e personagens para construir raciocínios e friccionar realidades que se intercambiam num movimento cênico de constante entrelaçamento. Da complexa trama nascente das correlações entre persona, ambiente cênico e processos de semiose, surge a possibilidade de arriscarmos que há uma dramaturgia do ator, reguladora de uma instância mais abrangente e codependente, denominada dramaturgia do espetáculo.
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As partituras corporais e a “gramática transitória” A ideia de partitura surge da necessidade de fixação da mobilidade que se apresenta na ação do signo, quando se tensiona corpo e ambiente em trocas contínuas. No entanto, tal denominação provém da geração da Mímica Moderna — encabeçada por Etienne Decroux, Jacques Coupeau e Jean-Louis Barrault – e nos remete à perspectiva de corpo instrumentalizável, equipado por escalas, combinações de movimentos etc. Obviamente, esse era o corpo do ator do início do século XX, que precisava, primeiramente, tomar consciência de que tinha corpo e, para isso, precisou de técnicas para instrumentalizá-lo. (LOUIS, 2005: 31). Isto se torna evidente quando estudamos a técnica de Decroux, que divide o corpo como se fossem notas musicais, criando escalas corporais, como as de música, combinações de movimentos como nos acordes [...]. (LOUIS, 2005, p. 31-32).
No trabalho corporal do Katharsis, talvez a noção de partitura possa ser substituída pela expressão “gramática transitória”, tomando gramática como a resultante de um sistema organizacional que atingiu complexidade e capacitou-se a estabelecer regras e combinações dentro de uma coleção de informações dispostas nos corpos dos atores. Todavia, para que essa gramática não se torne uma partitura rígida, deve sempre estar sujeita a crises, motivadas pelo fluxo constante entre sentido e ação e, por isso, deve ser transitória. O que nos interessa não são pontos estáveis, ou códigos que se tornam rígidos, mas as trilhas que os unem, gerando novas combinações. A “gramática transitória”, nesse caso, é uma base fluxional, emergente das trilhas que cada ator consegue compor, dentro das possibilidades combinatórias de sua coleção de informações corpóreas. Por exemplo, se eu propuser uma personagem “velha”, terei de passear por escalas corporais, dinamorritmos, fatores e qualidades de movimento. Terei de conhecer os lugares de instrumentalização do corpo que proporcionam o “estado do corpo velho”. Mas é preciso ir além, lidar com a ação do tempo sobre a carne, propor novas
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combinações que desestabilizem o significado usual da palavra “velho”, para que daí surjam sentidos múltiplos.
Andréia Nhur e Douglas Emílio. Foto de Ramon Vieira
É na negação da ideia de corpo como instrumento que o ator escapa do aprisionamento do personagem e libera a ação “em ação”, ou seja, a dramaturgia de si próprio na cena. Para isso, a partitura deve pairar entre sua implementação e seu abandono, pois a construção de uma gramática singular depende do caráter coevolutivo da ação na cena.
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Referências bibliográficas ADOLPHE, Jean-Marc. La dramaturgie est un exercice de circulation, in: Dossier Danse et Dramaturgie. Nouvelles de Danse. Bruxelles, Contredanse: no 31, p.31-35, 1997. DAMÁSIO, Antônio. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. GREINER, Christine; KATZ, Helena. O Corpo: pista para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. KATZ, Helena. Um, dois, três: A dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte: FID Editorial, 2005. LOUIS, Luis. A comunicação do corpo na mímica e no teatro físico. Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, 2005. (dissertação de mestrado) PRIGOGINE, Ilya. Order through fluctuation: Self-organization and social systems, in JANTSCH, E. e WADDINGTON, C. (ed.). Evolution and
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consciousness: human systems in transition.1976. VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Semiose no mundo físico. VI Jornada do Centro de Estudos Peirceanos. Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUCSP/Museu Nacional da UFRJ, 2004.
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Anotações para uma dramaturgia de ator por Eduardo Okamoto22
A dramaturgia de ator, como a vejo, é uma modalidade de criação teatral em que a narrativa do espetáculo tem seu fundamento na organização de repertórios físico-vocais do atuante. Diferentemente do trabalho que se funda na estruturação de uma narrativa literária, a dramaturgia de ator centra-se no potencial narrativo do corpo. O ator revela suas narrativas corporais e organiza-a poeticamente.23 Sendo o substrato primeiro desse processo de criação o corpo do ator, é preciso sempre relativizar a produção teórica que procura sintetizá-la. Ora, estando o corpo sempre em movimento e em transformação, haveria de se encontrar palavras igualmente instáveis para sua tradução teórica. Por isso, aqui, mais que procurar encerrar em definições estanques esta prática, prefiro apresentá-la Ator, professor e pesquisador de teatro, estuda as relações entre o potencial expressivo do corpo e suas relações com a produção dramatúrgica: dramaturgia de ator.
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Vale deixar claro que a delimitação do conceito de dramaturgia de ator, neste trabalho, não coincide com a definição de outros autores. Eugenio Barba (1995), por exemplo, considera que dramaturgia de ator refere-se à organização de sequências de ações pelo ator em nível orgânico, ou seja, sem ainda considerar as implicações ficcionais da dramaturgia do espetáculo. Para ele, aqui, o ator detém-se, sobretudo, na coerência física necessária à execução de uma sequência de ações. Já neste trabalho, a dramaturgia de ator é entendida como possibilidade de organização da própria dramaturgia do espetáculo a partir de um repertório físico e vocal previamente fixado pelo ator.
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na forma de anotações. Ao aceitar certa provisoriedade do registro do estudo, aceito também a transitoriedade das próprias soluções práticas encontradas até aqui: a investigação, como o corpo, permanentemente em processo. Apresento, aqui, algumas das minhas experiências no estudo desta dramaturgia: uma breve introdução sobre o entendimento do corpo como produtor de dramaturgia; treinamento psicofísico; mimese corpórea como metodologia de codificação de repertórios; a montagem destes materiais como cena. Escrita do corpo No processo criativo teatral, é difícil separar as ações previstas pelo dramaturgo daquelas encontradas na sala de ensaios. A própria origem da palavra dramaturgia – do grego drama-ergon, “trabalho das ações” – pode revelar isso. Mesmo a palavra texto originalmente significa “tecendo junto”. Assim, pode-se dizer que o trabalho das ações produz a tessitura do espetáculo, a sua trama. Para Patrice Pavis, a dramaturgia define-se pelo “[...] conjunto de escolhas estéticas e ideológicas que a equipe de realização, desde o encenador até o ator, foi levada a fazer. [...] A dramaturgia, em seu sentido recente, tende, portanto, a ultrapassar o âmbito de um estudo do texto dramático para englobar texto e realização cênica.” (2001: 113-114). Para José Sanchez, o teatro contemporâneo desenvolve novas formas dramatúrgicas, superando o esgotamento do drama burguês, em que a cena era vista a partir do ponto de vista da literatura. Em Dramaturgía de la imagen (1994), o autor reconstrói a história da dramaturgia ocidental. Para ele, as imagens cênicas constituem uma dramaturgia que se apóia não só em palavras, mas, sobretudo, na tensão espaço-temporal, e somente deste ponto de vista pode ser analisada. A proposição conceitual da dramaturgia de ator é possível a partir desse redimensionamento do próprio conceito de dramaturgia, no século XX. De certa maneira, esse processo de revisão conceitual da escrita cênica culminou numa certa “explosão de dramaturgias”:
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do espaço, do corpo, dos diversos elementos que constituem o espetáculo. Vale dizer que localizo, na segunda metade do século XX, somente a formulação conceitual da dramaturgia de ator, não a sua prática. Isto porque, em muitos momentos da história do teatro e em diferentes geografias, é possível detectar vários elementos que, mais tarde, serão caros à formulação teórica dessa modalidade criativa. Nas tradições dos teatros orientais, ou mesmo nas tradições populares do Ocidente, por exemplo, são inúmeros os exemplos de uso de repertórios corporais na cena. O entendimento de uma dramaturgia de ator pressupõe um trabalho artesanal de montagem de ações: revelação da dramaturgia inscrita no espaço, no corpo do ator. Treinamento O treinamento é o espaço em que o ator se trabalha, independentemente de qualquer outro elemento externo, como cena, texto ou personagem. Ou, como Constantin Stanislavski preferiu nomear, é o “trabalho do ator sobre si mesmo”. Em meus trabalhos, influenciados por práticas do diretor polonês Jerzy Grotowski, tenho procurado, no treino, não a coleção de habilidades técnicas, mas certa experiência desestabilizadora: trata-se de procurar, a partir da execução de determinados exercícios, afastar-me do uso cotidiano que faço do corpo. Esse uso ordinário do corpo, lembra-nos Eugenio Barba, é regrado pela economia de tempo e de energia e, desta maneira, permeado de automatismos. Assim, mais que a execução precisa de determinados exercícios corporais, interessam as novas relações psicofísicas que podem emergir da tentativa de executá-los. Os exercícios interessam até o momento em que o ator não sabe como praticá-los; do contrário, a técnica transforma o treino em novo automatismo. Em verdade, o treinamento interessa na medida em que o ator “se debate” com ele: a busca por aprender alguma coisa que não sabe pode revelar ao ator relações inesperadas.
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Treinamento liga-se, então, a certa capacidade de espanto fundamental: conscientizar a permeabilidade do corpo às experiências; atentar às sensações; cuidar de si.
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Eduardo Okamoto em Eldorado (2009) - Foto de Fernando Stankuns
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Mimese e apreensão de materiais Para Grotowski, o corpo é a memória de vida do ator. O corpo se constrói a partir da experiência vivenciada. Por isso, o corpo é narrativa. Em cena, para além de criar narrativas ficcionais, o ator poderá revelar as narrativas impressas em si, isto é, seu desnudamento. Este é um importante princípio de trabalho que poderá fomentar uma dramaturgia de ator: o corpo é produtor de narrativas e poderá, também no teatro, expressar o mesmo que na vida. O corpo cotidianamente apreende repertórios físicos e vocais: a experiência somatizada. No entanto, nem sempre o ator consegue acessá-los tecnicamente, tornando-os materiais de criação. Por isso, além das experiências de treinamento, tem sido útil, em meus trabalhos, uma fase de apreensão de materiais. Isso tem se dado fundamentalmente a partir da mimese corpórea – metodologia desenvolvida pelo Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp (Lume Teatro), cujo fundamento é a observação e imitação de pessoas do cotidiano, de animais, de fotografias, de pinturas. Essa imitação não se pretende cópia da realidade. Aliás, seria difícil imaginar uma transmutação total de si no outro. Isso leva o fundador do Lume, Luís Otávio Burnier, a nomear sua metodologia com a palavra grega mimese, remontando a Aristóteles e ao sentido de imitação: construção de uma visão de um aspecto da realidade. Nesse sentido, incluem-se a apropriação de determinadas características do objeto imitado e, a partir daí, a produção da sua representação. Para compreender isso mais fundamente, basta lembrar que facilmente é possível imitar os aspectos físicos do corpo de uma pessoa (tensionamentos musculares, peso etc.), mas não tão fácil é a percepção dos impulsos geradores dessa fisicalidade, como nomeia Burnier. Ou seja, essas relações corporais são também resultado de experiências in-corporadas, inacessíveis ao ator/imitador. Porém, se um ator não pode imitar essas experiências, pode, ao tentar se aproximar de outro corpo, entrar em contato com as vivências que
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ele mesmo porta em si: Desta maneira, a Mímese Corpórea torna-se um bom pretexto para que o ator investigue a si próprio (...). Neste confronto [entre a vivência do ator e aquela da pessoa que imita] são comuns os relatos de atores a respeito da ativação de memórias (longínquas ou recentes), sensações e emoções. (OKAMOTO, 2004: 48-49)
Assim, a imitação é também um estímulo ao pasmo desestabilizante, como o treinamento. Ou seja, não interessa que o ator se mimetize completamente no “outro” (o que, repito, seria impossível), mas que, ao tentar fazê-lo, descubra também relações corpóreas ainda não reveladas. A imitação como reação psicofísica a um estímulo externo. Montagem Em meus trabalhos, a organização poética de materiais físicos e vocais codificados tem sido referenciada pelos trabalhos do cineasta Serguei M. Eisenstein e sua teoria de montagem. Segundo o cineasta: “[...] dois pedaços de película (já imprimida) de qualquer classe, colocados juntos, se combinam inevitavelmente em um novo conceito, em uma nova qualidade que surge da justaposição.” (1990: 13). Ele vê nos mecanismos de montagem a estrutura do pensamento dialético em três fases (tese, antítese e síntese). Da mesma maneira que o filme tem no fotograma sua célula fundamental, os materiais físico-vocais codificados pelo ator podem ser considerados como células mater do trabalho do ator. Se o cinema baseia-se na colagem de fotogramas, a atuação sustenta-se em partitura de ações físicas. O estudo desta teoria de montagem tem sido produtivo – ainda que eu a relativize em muitos aspectos. Sobretudo porque esta maneira de criar inclui a presença do espectador como criador: é ele quem interpreta a criação a partir de unidades montadas/justapostas. O espectador reage às provocações da obra: confere sentido às coisas, completando espaços vazios. A partir da percepção física da
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obra (a apreensão pelos sentidos) o espectador atribui valor a ela (o sentido). É no corpo do espectador, e não no corpo do atuante, que a dramaturgia de ator se completa. Assim, mais que criar, aqui, o ator abre espaço para que a criação seja possível. O ator não tem ideias, não inventa cenas. Ao contrário, ele procura tão-somente revelar as potencialidades que habitam os materiais justapostos. Trata-se mais de “revelar” teatro do que “inventar”. No exercício de revelação de si, dos materiais e da criação que co-habitam o corpo do ator, há o desejo de que também no espectador possa acontecer algo análogo: estar permeável às experiências, pasmar-se diante delas. Trata-se, portanto, de conscientizar as narrativas que cotidianamente nos atravessam, senti-las e, enfim, preenchê-las de significados.
Referências bibliográficas EISENSTEIN, Sergei M. O sentido do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. OKAMOTO, Eduardo. O Ator-montador. Campinas: Universidade Estadual de Campinas: 2004. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2001. SANCHEZ, José Antônio. Dramaturgía de la imagen. Cuenca: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Catilla – La mancha, 1994.
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O ator como propositor de discursos por Evill Rebouças24
Hoje muito se comenta sobre a contribuição do intérprete em relação à criação dramatúrgica, além de ele propor inflexões, pausas, ações, e tantos outros artifícios que abarcam a atuação. Nomenclaturas como criação coletiva, work in progress, processo colaborativo são alcunhadas para tentar delinear esse modo particular de produção do texto, seja ele construído por diálogos ou por textos cênicos25. No entanto, vários estudos dão conta de que essas interferências, principalmente dos intérpretes, aconteciam em outros tempos: nos textos de William Shakespeare, de Molière, de Bertolt Brecht e, patentemente, na commedia dell’arte, uma vez que seus atores utilizavam apenas um roteiro (canovaccio) para executar suas performances. Contribuir, ainda que exista um roteiro ou texto esboçado, não seria interferir nas dramaturgias do espetáculo? Até que ponto inserir determinados expedientes formais e estruturais, escolhidos pelos atuantes do processo, constituem discursos além daqueles organizados pelo autor? No intento de dialogar com essas questões, recorro aos processos da Cia. Artehúmus de Teatro, coletivo fundado no ABCD Paulista no final dos anos 1980 e que hoje tem como ponto de partida, para suas investigações, o pressuposto ideológico de abrir lacunas para que o intérprete estabeleça discursos plurais sobre os temas tratados, procedimento esse que nomeamos de dramaturgias em processo.
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Ator, dramaturgo, encenador e pesquisador teatral. Licenciado em artes cênicas pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e, pela mesma instituição, recebeu o título de mestre com a pesquisa A dramaturgia e a encenação no espaço não convencional, publicada pela Editora da Unesp, em 2009.
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A partir de uma concepção classicista, o texto dramático pode ser definido como a escrita que propicia uma realização cênica por meio de diálogos ou de rubricas de um texto. Já para o termo texto cênico, a teoria teatral contemporânea identifica-o como elemento que compreende as ações cênicas de um espetáculo como parte integrante do texto teatral.
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Desestruturação do tempo e do espaço Em todos os trabalhos da companhia, os integrantes partem de um esboço de texto que funciona apenas como estimulador para que os intérpretes e demais criadores proponham experimentações poéticas, tendo como balizadores a dilatação ou contenção do tempo e do espaço – duas unidades que, desestruturadas, podem gerar discursos infindos à cena. Esgarçar ou comprimir o tempo de uma ação ou fala perpassa por uma elaboração estrutural e, dependendo de como o intérprete a organiza, pode gerar outras possibilidades de leituras ao espetáculo. No espetáculo Amada, mais conhecida como mulher e também chamada de Maria, a relação opressora entre colonizador e colonizado se traduz no extenso tempo que a personagem Amada leva para tentar dizer o que pensa. Parada, sem mexer um músculo, ela se esforça para responder às provocações feitas pelo Navegador Português, mas o que diz se resume no tartamudeio “O... ó...” – expediente lançado pelo ator para expressar a alienação da personagem. Hans-Thies Lehmann, ao localizar a potencialidade da desestruturação da unidade de tempo em experiências contemporâneas, comenta: “Transformaram o tempo numa coisa extremamente lenta. E com isso o tempo começou a ser um tema. Ou eles aceleram muito o tempo, e dessa maneira o tempo também se tornou tema”. (LEHMANN, 2009: 9)
Da esquerda para a direita: Edu Silva (Amada), Leonardo Mussi (Navegador Português). Teatro Oficina. Foto de Alícia Peres
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Sobre o espaço, consideramos, além da dilatação ou contenção, os valores a ele agregados. Nesse sentido, alguns trabalhos da companhia foram elaborados, tendo como ponto de investigação a carga semântica do prédio público e seu entorno, bem como suas especificidades arquitetônicas26. Evangelho para lei-gos – espetáculo apresentado em 2004 no banheiro público da Galeria do Viaduto do Chá, em São Paulo (SP) – discutia a morte social e a eleição de um banheiro público no centro de São Paulo, rodeado por seres à margem da sociedade, dialogavam com o tema proposto no esboço de texto. Os atores, depois de coletados os anúncios de prostituição afixados em telefones públicos, criaram a Cena das etiquetas, na qual uma mãe expunha a filha em uma vitrine, tendo como texto apenas os conteúdos dos anúncios. Elementos olfativos também permeiam essas experimentações. Numa tentativa de expor a rejeição social perante os excluídos, cheiros de desinfetante invadiam o banheiro quando as personagens pronunciavam “merda de vida”, e a água das descargas chegavam aos pés dos espectadores. Já o forte odor de temperos da lanchonete do SESC Anchieta ambientava a fome sexual de Tamanduá e Tatu, personagens de Qorpo Santo, na montagem de As relações Qorpo – espetáculo que reunia três peças do autor e que também ocupava o elevador e a cobertura da já referida unidade do SESC. As características arquitetônicas do lugar também foram aproveitadas como fonte de discursos para a cena. O pequeno ou imenso espaço entre o chão e o teto dos edifícios onde apresentamos Amada representou interferências diretas nas proposições dos atores. A densidade dos conflitos foi mais contundente quando o espetáculo foi apresentado sobre o achatado pé direito do prédio abandonado, nomeado popularmente CadoPo – Casa do Politécnico,
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Os valores impregnados nos espaços públicos são estudados por meio da topofilia, conceito que compreende a percepção e a interpretação ambiental em diferentes níveis de cognição e afetividade. A imensidão do mar, uma pracinha, uma favela ou avenida ladeada por monumentais edifícios são paisagens impregnadas de valores sociais, culturais, políticos e econômicos. No entanto, a percepção e a interpretação ambiental não são ou estão relacionadas somente ao conhecimento do visível, do informacional, mas envolvem dimensões mais íntimas e subjetivas decorrentes das experiências humanas durante toda a sua história individual ou coletiva. 26
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no bairro do Bom Retiro (SP). No entanto, quando as mesmas situações ocupavam os diversos níveis de altura do Teatro Oficina, ou mesmo as características arquitetônicas externas da Vila Maria Zélia, ambos espaços localizados em São Paulo (SP), a encenação ganhava um ar mais leve, gerando risos nunca ouvidos.
Solange Moreno (Amada). CadoPo – Casa do Politécnico. Foto de Alícia Peres
Porém, tais características dimensionais, seja num lugar fechado ou aberto, não garantem mais ou menos densidade ao espetáculo. Quando apresentamos Campo de trigo dentro da monumental Capela de Nossa Senhora de Lourdes, na cidade do Porto, em Portugal, a qualidade de sagrado do lugar revelou um comportamento absolutamente refreado do espectador. Determinar as relações proxêmicas, isto é, o espaço entre apreciador e cena, sua locomoção ou não é também tarefa do intérprete ao elaborar seus experimentos. Ter o espectador perto, longe, fora ou dentro do espaço da representação, iluminado ou não por uma luz que o mostre como parte reagente, estabelece interferências formais que se somam ao discurso do ator enquanto esteta e cidadão. No caso de Amada, não bastava para os criadores mostrar fatos de uma Pátria colonizada, mas, essencialmente, colocar os espectadores como sujeitos que reagem à vista dos demais espectadores e com isso provocar questionamentos quanto à nossa participação ou não diante dos fatos nacionais.
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O ator como depoente da cena Uma das prerrogativas poéticas e ideológicas dos integrantes da Cia. Artehúmus de Teatro é trazer para a cena o depoimento do intérprete, sujeito que mostra a situação fictícia, mas que precisa expor sua visão de mundo por meio de elaborações poéticas. Uma fogueira cercando a Pátria Mãe Gentil é a forma encontrada pela intérprete para materializar os efeitos de um sistema que nos aniquilou e ainda nos aniquila. Mais do que materializar a cena, a intenção é abrir espaço para que ele crie, além das indicações textuais, estruturas discursivas. Para tanto, trabalhamos não mais com o conceito de persona, mas com o de figura ou criatura – nomenclaturas que vislumbram o não psicológico e, consequentemente, uma abertura para amostragens de depoimentos poéticos e políticos por meio de estruturas formais. Tal destituição de psicologismo está muito próxima do efeito de estranhamento, porém o que difere é uma busca pela não ruptura entre figura e ator. Por outras palavras: as atuações procuram gerar dúvidas: é uma figura ou o ator que fala ou age? A indefinição dessa forma coloca então o apreciador em suspensão, para que ele veja os acontecimentos e possa construir, distanciadamente, sua própria dramaturgia diante do que vê.
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Daniel Ortega (Pai) e Roberta Ninin (Amada). Espaço Grupo XIX – Vila Maria Zélia (SP). Foto de Alícia Peres
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Escritura e reescritura do texto Nas experiências citadas, uma questão se torna patente: não temos mais o texto como ponto preponderante da cena; o material literário é apenas um ponto de partida para que o ator elabore discursos diante do assunto tratado. Elementos como as relações proxêmicas, a historicidade do prédio, da população que o circunda, bem como questões olfativas ou mesmo as características arquitetônicas dos lugares são subsídios a ser investigados para a elaboração do discurso do intérprete. Por ser um processo de criação aberto, existe também a possibilidade de inserção de materiais literários não dramáticos, teorias, exclusão de cenas inteiras esboçadas no material inicial, alteração da ordem, redistribuição de falas para outras personagens, rubricas ou textos cênicos que são transformados em falas etc. Temos então a possibilidade de reestruturar o texto, o que, de certa forma, altera e amplia o discurso sobre o tema, pois o ator passa a interferir diretamente na elaboração das dramaturgias do espetáculo.
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Referências bibliográficas CAMARGO, Roberto Gill. Palco e plateia: um estudo sobre proxêmica teatral. Sorocaba: TCM, 2003. ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminações nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2005. FERNANDES, Sílvia. Apontamentos sobre o texto teatral contemporâneo. Sala Preta – Revista do Departamento de Artes Cênicas. São Paulo: ECA-USP, no 1, p. 69-80, 2001. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2009. __________. Teatro pós-dramático e teatro político. Sala Preta – Revista do Departamento de Artes Cênicas. São Paulo: ECA-USP, no 3, p. 9-19, 2009. REBOUÇAS, Evill. A dramaturgia e a encenação no espaço não convencional. São Paulo: Edunesp, 2009.
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SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama: escritas dramáticas contemporâneas. Porto: Campo das Letras, 2002. TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980.
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Um relato sobre a dramaturgia do ator contemporâneo por Carlos Henrique Guimarães27
A primeira vez que ouvi o termo ”dramaturgia do ator” foi em 2001, ao ler um cartaz de um curso oferecido pelo dramaturgo e diretor Chico de Assis, no Teatro de Arena Eugenio Kusnet, no centro de São Paulo. Achei bem estranho, esquisito... Não conseguia entender ao que ele estaria se referindo com aquele conceito. Estava, então, no meio de minha graduação no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e aproximando-me com o que havia de novo e contemporâneo no teatro desenvolvido na cidade de São Paulo. Esforcei-me para entender, fiz analogias, busquei relações com o que eu já havia trabalhado, mas nada... Confesso minha ignorância sob dois aspectos: primeiro, por não ter entendido o que era essa tal dramaturgia do ator; e, segundo, por não ter feito o curso e, porventura, ter podido entender o que o mestre Chico de Assis queria propor com aquilo. Um saldo muito positivo desse episódio foi que aquele termo curioso, de certa forma, nunca mais me deixou em paz. Acompanhou-me desde então, e diante de cada situação que me aproximava daquela questão, lembrava o instante de leitura daquele cartaz no Teatro de Arena. Na vida e no teatro, aprendemos o quanto o instante vale ouro! Como uma foto, esse momento me revisita e me instiga a querer entender, assimilar aquele estranho conceito. Ator e conselheiro municipal da juventude de São Paulo. O texto, segundo o autor, foi escrito no Rio de Janeiro e finalizado em 16 de Janeiro de 2010.
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Sou um ator que escreve. Minhas investidas nas letras já formaram parcerias para a escrita de peças de teatro, textos acadêmicos, poesias e aquilo que mais modernamente se designa “depoimentos cênicos”. Trata-se de um termo bem contemporâneo e provocador. Acredito que o conceito dramaturgia do ator esteja intimamente ligado ao conceito de depoimento cênico, de acordo, por exemplo, com o que se pratica no grupo paulistano Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, que adota esse nome justamente pelo que foi apresentado nesse evento pelo Ator MC, figura criada dentro da linguagem do teatro hip-hop desenvolvida por aquele coletivo. Durante minha graduação na Unesp, em meados de 2003, discutia-se determinada questão sobre teatro contemporâneo em sala de aula. Em dado momento, apresentei a expressão “dramaturgia cênica”. A professora corrigiu imediatamente: tratava-se de uma redundância. Afinal, segundo o que ela apontou, a dramaturgia abarcava toda a cena. Outro instante que passou a me inquietar... Volta e meia, nas idas e vindas dessa trajetória artística, me deparei com essa questão: a dramaturgia abarca toda a cena? Mas não é a dramaturgia a proposição textual para a cena, tendo que ser completada com a criação dos atores, da direção, da luz, da música... para que o teatro e a cena aconteçam? Nossa boa confusão começa por aí... e é por aqui que começo meu relato. Em 2002, quando estava concluindo o terceiro ano do curso de Licenciatura em Educação Artística, habilitação em Artes Cênicas do Instituto de Artes da Unesp, o professor de Estética, Francisco Alambert nos solicitou uma dissertação a partir do texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin, tomando como base para análise alguma obra de arte exposta na cidade. Escolhi o espetáculo Bartolomeu, que será que nele deu, de Claudia Schapira, dirigido por Georgette Fadel (espetáculo que fundou o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos), recomendado pelo meu então professor Alexandre Mate. Pela forma como o grupo utilizou os elementos da cena, os microfones, o DJ como personagem-sonoplasta em cena, a comunicação direta com a plateia, a dramaturgia feita pela própria atriz do espetáculo (Claudia Schapira), os recursos
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narrativos e dramáticos... explicitando o caráter absolutamente épico da encenação. A junção desses expedientes todos plantou em mim uma semente que viria a orientar meus próximos anos como artista. Depois de algum tempo, passei a integrar o grupo de dramaturgia do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos a convite de Claudia Schapira. Ora, até então minha única experiência de escritura cênica efetiva havia sido desenvolvida no Grupo Atrás do Grito de Teatro, do Instituto de Artes da Unesp, dirigido por Newton de Souza, no espetáculo de rua Pra saudar a povaria. Durante o processo de construção da obra, e na condição de ator, colaborei escrevendo textos e participando das decisões sobre o roteiro da peça. Foi durante essa experiência no Atrás do Grito que me veio o primeiro sinal da tal indicação do cartaz do curso do Chico de Assis. Será que estava, no Atrás do Grito, realizando a tal dramaturgia do ator? A pergunta ecoou novamente durante os trabalhos com o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, pois eu, um ator e não fundamentalmente um dramaturgo, estava participando do Projeto Urgência nas Ruas como ator e dramaturgo, ou melhor, como ator que atuava e também escrevia. Bem, a confusão estava generalizada. Seria eu um ator dramaturgo? Lá estava eu novamente diante do cartaz no Teatro de Arena, paralisado em meus pensamentos, cobrando por que não havia feito o tal curso do mestre Chico de Assis, em 2001. “Dramaturgia cênica” é um termo muito utilizado dentro do Núcleo Bartolomeu, principalmente por Claudia Schapira. Ela defende que o texto é uma dramaturgia (como literatura dramática) e todos os outros elementos da cena constituem a dramaturgia cênica. O trabalho do ator, do diretor, do cenógrafo, da música, do figurino, da luz, enfim, constituem mais discursos cênicos que estabelecem os níveis de aprofundamento da leitura artística de uma obra como um todo, que ultrapassam o discurso textual do chamado dramaturgo. A cena contemporânea permite que isso seja realizado. Experimentos teatrais realizados nas duas últimas décadas na cidade de São Paulo, e em algumas cidades brasileiras, vêm descentralizando as figuras do escritor e do diretor. Nessa perspectiva, a obra passa a ser composta pelo coletivo, inserida na denominada proposição
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do chamado processo colaborativo, conceito elaborado por vários artistas de teatro, dentre os quais, o mestre Luís Alberto de Abreu, que também participa da edição de nossa revista. Isso fez e faz com que o ator deixe de ser o “peão do xadrez” nesse jogo de cena, permitindo que exploremos a amplitude da propalada “dramaturgia do ator”. No Projeto Urgência nas Ruas fazíamos intervenções cênicas no centro de São Paulo, misturando as linguagens do teatro e do hip-hop, instaurando a chamada “Zona Autônoma Temporária – TAZ”, de Hakim Bey. Os textos eram escritos por uma equipe de dramaturgos (da qual eu fazia parte) na forma daquilo que designávamos depoimentos (pequenos monólogos) e oferecidos aos atores MCs (atores mestres de cerimônias, como os cantores de RAP), que criavam as cenas elaborando quase sempre um rap daquilo que havia sido escrito. Nesse caso, o texto era resultado de conceitos discutidos pelo grupo previamente à criação, em que os dramaturgos propunham cenas que abarcavam os pontos de vista do coletivo. Quando os atores recebiam o texto, não havia muita interferência no que estava escrito. A participação deles na criação dramatúrgica se dava no momento da elaboração do discurso intelectual anterior ao desenvolvimento do texto, dentro dos estudos realizados pelo coletivo durante a realização do Projeto. A base teórica para a realização desse projeto foi constituída por textos de Bertolt Brecht, Walter Benjamin e Hakim Bey. Dramaturgia do ator seria apenas sua partitura cênica individual, como um guia para seu desempenho dentro do espetáculo? Ou seria também o ator propondo uma cena, um depoimento cênico, que servisse de norte para um coletivo? Quando sou provocado a desenvolver um workshop dentro de um processo colaborativo, como foi, por exemplo, o do espetáculo Vem vai – o caminho dos mortos, da Cia. Livre, dirigido por Cibele Forjaz, com dramaturgia de Newton Moreno. Naquele momento, fui desafiado a transpor para a cena minha compreensão acerca do ponto de partida que me foi lançado (seja um mito, uma tese, uma imagem etc.), e essa transposição cênica ultrapassa os limites do discurso lógico/racional/
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textual, que também sou impelido a tecer um fio que me leve a viver emocionalmente tal provocação inicial, com toda a potência de expressão do corpo, da voz e do coração entregue em cena, cavando aos poucos os tais níveis do discurso cênico que será composto pelos outros elementos. Tive minha primeira experiência com a criação de roteiros para workshops dentro do Teatro Oficina (SP), no processo de Os sertões – a terra, dirigido por Zé Celso Martinez Corrêa, em 2000. Os atores participavam da elaboração dos gigantescos roteiros, nos quais eram estabelecidos os momentos, as passagens, as atmosferas. A forma como cada cena deveria ser realizada era definida pelo ator ou por um grupo menor, como também os diálogos, as movimentações, as ações. Mas por onde começar? Corpo? Voz? Situação? Ações? No momento da solidão, essencialmente o jogo. Nos workshops de Vem vai..., na Cia. Livre, em 2006, criávamos roteiros de improvisação e jogávamos. Esses workshops eram individuais, em dupla ou com todo o grupo e, por meio deles, os atores criavam cenas e estabeleciam a dramaturgia. Os jogos cênicos eram elaborados de acordo com os conteúdos dos mitos ameríndios estudados; as situações inusitadas das histórias indígenas, muitas vezes, nos obrigavam a criar cenicamente um jogo que abarcasse, por exemplo, a questão dos duplos (multiplicação de nós mesmos), ou do perspectivismo (um objeto aqui nesse mundo material era uma coisa, mas no mundo dos mortos era outra). Por intermédio desse processo, todo o conjunto envolvido na montagem do espetáculo criou uma linguagem específica da peça, estabelecendo os códigos teatrais. Os objetos de cena adquiriam significados múltiplos; por esse motivo nos habituamos a chamá-los de “objetos grávidos”: eram intensos, repletos, cheios, potentes, carregados de conteúdos. Em nossos roteiros, uma partitura-base para a improvisação, tínhamos um norte, mas os “arranjos mágicos” eram elaborados no instante sagrado da cena, nascidos do jogo entre os atores, da verdade com que nos entregávamos para viver a situação proposta, da presença de cada um e da disponibilidade para a relação com o outro. Esse procedimento dava brilhantismo e encantamento a cada
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cena, inspirando o dramaturgo (ou dramaturgista?) a cocriar conosco o espetáculo que estava no “forno do teatro”. Essa comunicação íntima entre os atores era resultado de uma elaboração bastante concreta, que se construiu dentro dos treinamentos físicos, vocais, musicais e cênicos, como alicerce para o espetáculo. Nossos treinamentos nos aproximavam, nos tornavam mais íntimos, permitiam criar um grande repertório a ser explorado durante as improvisações dos workshops. A linguagem do espetáculo também foi descoberta durante esses treinamentos. A personagem, no primeiro momento desse processo, de acordo com o ponto de vista pessoal, misturara-se muito com o ator. Nesse caso, em que o ator é solicitado dessa maneira, sua entrega para a cena revela seus conteúdos, muitas vezes não deixando brechas para o menor entendimento do limite entre ator/personagem, nem para o ator que faz, nem para o público que vê, porque é ele, o ATOR, quem vive tal situação; ele vive o “drama” real e expressa aquilo que sente no instante. Depois é que se vai elaborando a cena a partir do que se é vivido no instante. A compreensão da lógica racional e emocional da personagem pelo ator é necessária para que o jogo aconteça, mas é principalmente o “ator em situação” que vale para a composição dessa dramaturgia. A maneira como as cenas de Vem vai... foram sendo definidas e se transformando em texto pelo dramaturgo Newton Moreno, foi um vem e vai danado! Chegamos a nove versões do texto. Desde os primeiros workshops até a constituição final da cena, algumas foram recuperadas; outras, deixadas... Houve extrema generosidade e desapego: várias cenas lindas, criadas pelos atores, tiveram de ser abandonadas. Espero ter contribuído com esse mosaico sobre o tema. Essas experiências me serviram para entender que nosso papel como ATOR na sociedade ultrapassa os limites de qualquer espaço cênico. O ator é porta-voz dos deuses, como Hermes-Mercúrio-Exu: um demiurgo. Nossa responsabilidade com a comunicação e com a criação começa desde as primeiras escolhas.
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Algumas questões da pedagogia do teatro por Francisco Medeiros28
Na vida, pelo menos para mim, há coisas irresistíveis. Seguramente, uma delas é a oportunidade de participar de acontecimentos que propiciam trocas: não consigo resistir. Porque são raras as oportunidades de nos sentirmos VIVOS, e a troca nos coloca sempre em movimento, em cheque, sobretudo pelo contato com o outro. O texto aqui presente decorre, portanto, de um processo de troca ocorrido em 13 de novembro de 2009, em um evento de dramaturgia promovido pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Gostaria de dizer, para começar, que não me considero um professor. Por ofício, sou diretor de coisas ao vivo, quer dizer, minha atividade principal é participar de coletivos destinados a criar coisas ao vivo – seja teatro, dança, performance, ópera, enfim, não importa... O exercício regular dessa atividade despertou em mim o interesse pela formação porque, na grande maioria dos casos, a experiência de criação, para um diretor, envolve sempre um aspecto pedagógico. Daí minha atração pela formação na área das artes cênicas. Desse Diretor teatral diplomado em direção, crítica e dramaturgia pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Com mais de 120 trabalhos como diretor de teatro, dança, ópera e performance é, também, professor do curso Comunicação das Artes do Corpo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
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modo, posso afirmar que acabei por me envolver com instituições de ensino basicamente por interesse. Assim, apesar de este, em meu caso, ter sido um espaço conflituado, sem nenhuma nostalgia, sinto que havia um espaço maior de diálogo entre a universidade e os artistas em atividade. Lembro-me que trabalhei durante um tempo na Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado do Rio de Janeiro (atual Universidade do Rio de Janeiro – UniRio), e lá havia uma rubrica: “professor residente”. Em outra época, fui convidado a dirigir um trabalho de conclusão de curso na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e fui contratado como “professor convidado”. Digamos que minha carreira pela universidade esbarra, principalmente, no fato de, até hoje, não ter conseguido criar condições objetivas para fazer o mestrado e, consequentemente, o doutorado. Já tentei, por duas vezes, mas compromissos profissionais me levaram a ficar longas temporadas fora de São Paulo. Ao voltar, as necessidades de cumprimentos de créditos tornavam impossível a conclusão do curso, o que me impediu de continuar. Do modo como tenho trabalhado, o cotidiano de um diretor de teatro inclui uma jornada mínima de seis horas diárias, seis dias por semana em sala de ensaio. Esse tempo é despendido com o coletivo, sem contar as horas de trabalho solitário e os contatos com os integrantes da equipe de criação. Por conta de tudo isso, tem sido muito difícil conseguir tempo para a realização de uma pós-graduação. Por isso o diálogo com a universidade torna-se cada dia mais limitado. Pelos aspectos apresentados, vividos e apreendidos, para além de meu próprio caso, parece mesmo que as universidades têm, a cada dia, menos interesse em trocar experiências com artistas que não têm títulos. Independentemente disso, considero-me um apaixonado pela formação do artista. Quando aceitei participar do evento, motivou-me o desejo de ir além da apresentação de relatos de processos ou da transmissão de informações. Senti-me desafiado a propor questões para estimular a conversa que se daria quando da apresentação da fala que iria
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apresentar. Mesmo porque, a partir da inquietação inicial, motivadora de minha tentativa de diálogo, uma primeira e determinante questão se apresentava: é possível ensinar Arte? Ouvi certa vez um mestre afirmar: “Arte não se ensina, se aprende.” Apesar de a formulação ser aparentemente simples, aquilo calou fundo em mim. Posso mesmo, sem exageros, afirmar que aquela formulação mudou minha maneira de encarar meu ofício. O que significa formar um artista? Qual é o sentido de um curso regular de artes? Em outra ocasião, ainda tomado por aquelas primeiras inquietações, ouvi outro mestre afirmar o seguinte: “No processo de formação de um artista de teatro, o mais importante é a manutenção do espaço do risco.” Tal afirmação tomou-me de modo absoluto. Passei, a partir daí, a partilhar com todos não apenas a inquietação, mas a criação de espaços por meio dos quais esse estado fundamental à criação pudesse ser construído. De certa forma, pelo menos em tese, tal tipo de pensamento se opõe a uma tendência dominante na atualidade: para muitos, o “bom profissional” é aquele que sabe exatamente o que quer e que tem a capacidade de solucionar rapidamente os problemas decorrentes de um processo de criação. Devo confessar que tenho dificuldades para dialogar com esse tipo de pensamento. Para mim, criação artística está intimamente ligada à aventura que inclui o desconhecido, o instável, tudo aquilo que está ainda para ser descoberto. Nessa perspectiva, o ato de criação configura-se, antes de tudo, em viver o caos, o caminhar na escuridão, o estar à deriva. Sem tais essencialidades, fica difícil escolher um caminho, decidir-se por um rumo, descobrir um olhar sobre a obra, sobre o mundo e o relacionamento entre ambos. Tais considerações levam-me a outra questão igualmente fundamental: qual é a função, o sentido e o lugar, o espaço do caos, no cotidiano criativo do artista? Estamos todos, de certo modo, orientados para o cálculo do custo-benefício, das causas e consequências de tudo o que pensamos, somos e fazemos. Então, se durante nosso longo
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processo de formação, tivermos oportunidade de visitar lugares menos consagrados, talvez possamos, dependendo de como nos envolvamos como isso, de ter condições de, por meio de nosso trabalho, nos transformar em artistas mais ricos, mais flexíveis, mais abertos. Este parece ser o sentido do espaço do risco. Mais uma questão pode ser formulada: qual é a diferença entre estudo e pesquisa? Talvez, e na quase totalidade dos projetos que se escreva, em nossas conversas, a palavra pesquisa tem frequência considerável e admirável. Não raras vezes, é comum usar a palavra para designar o impulso de informação a respeito de determinado tema ou assunto. Nessa perspectiva, será que não nos referimos a estudo? Neste contexto, não significa, ou lhe é intrínseca, a necessidade de buscar subsídios, informações importantes para alimentar um processo? De outro modo, a palavra pesquisa parece estar mais ligada a uma atitude laboratorial. Ou seja, pesquisar é utilizar um cabedal de conhecimentos prévios para se lançar em um processo de busca cujo resultado é sempre imprevisível. Estudo e pesquisa são igualmente importantes para o artista; entretanto, guardam diferenças entre si. Para dar continuidade ao processo de indagação permanente, que deve constituir a criação, uma questão mais é oportuna: qual é a importância do não saber na formação artística? E como isto influencia ou delineia a relação entre professor e aluno, ou entre mestre e discípulo? A transmissão de informações não me parece ser um aspecto fundamental à figura de um professor. As informações estão à disposição de todos, sobretudo na contemporaneidade. O professor pode, sim, indicar caminhos que levem o estudante ao encontro das informações. Mas o processo educacional é, antes de mais nada, um momento de construção, de descobertas e de questionamentos, tanto para o professor quanto para o estudante. É interessante também pensar que, inúmeras vezes, os resultados do aprendizado parecem ocultos, inatingíveis, abstratos, o que pode provocar grande aflição se estivermos dedicados a localizar objetivamente os efeitos de um curso, de um ano ou de
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um semestre de estudos. Na verdade, e atendo-se à expressão em voga: nunca sabemos quando “a ficha vai cair”. Às vezes nos damos conta disso quase instantaneamente; às vezes descobrimos o sentido do aprendizado muitos anos depois... Meu sonho, como educador, não é o de ensinar o estudante a ser um soldado destemido e exímio para enfrentar a guerra do mundo profissional. Não consigo ter nenhum interesse em formar um “soldado para a guerra”. Porque na guerra, além de ser necessário usar uma armadura, não apenas protetora, o extermínio do inimigo é um dado importante, vital. No mundo da arte, num país de tantos contrastes como o nosso e, mais ainda, pensando especificamente no universo do teatro, vivemos uma situação de indigência quase absoluta: não há mercado, no sentido rigoroso do termo. Portanto, em não havendo mercado, não há o menor sentido em se aprimorar para enfrentar a “concorrência ferrenha”. Considero que os períodos de formação devem ser momentos em que o estudante, o aprendiz, deva ter a oportunidade de entrar em contato consigo mesmo, com seu eixo, com seus anseios e com as ferramentas essenciais de seu ofício, com vistas a intentar um caminho por meio do qual seus olhos e sentidos possam se abrir para o mundo. Desta fricção entre sujeito e meio, entre o privado e o público, poderá nascer um artista VIVO e CONECTADO com seu tempo: um potente candidato a ser um criador valente, destemido, cidadão participante do mundo, com os pés no presente e o olhar direcionado para o futuro. O artista, para mim, antes de mais nada, é o construtor de um mundo sempre renovado, não um astuto descobridor do seu lugar em um mundo já existente. Desse modo, poderá nascer um ser humano capaz de fazer escolhas próprias; consequentemente, poderá nascer nele um artista VIVO, INSTIGANTE, EM CARNE VIVA, capaz de se deixar atravessar pelos instantes de vida. Por decorrência disso, poderão ser ampliadas as chances de que suas criações também coloquem o espectador em movimento, revelando e questionando tantas outras facetas da vida, como ESTABILIDADE, CERTEZA, PERMANÊNCIA.
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Processos cênicos coevolutivos por Roberto Gill Camargo29
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Para o Teatro Universitário Katharsis, grupo criado e mantido pela Universidade de Sorocaba (SP) há 20 anos, fazer teatro não consiste apenas em pegar um texto pronto e encená-lo. Isso deixou de ser feito há cinco anos, quando o grupo começou a entender que texto e cena eram processos que podiam ser desenvolvidos juntos e concomitantemente, e não de modo separado. Por muito tempo, o grupo fez teatro partindo de um texto escrito previamente. A encenação era como uma ilustração do texto. Foi assim com A casa de Bernarda Alba, Um bonde chamado desejo, Júlio César, e outras peças montadas pelo grupo. Em 2005, surgiu a ideia de se fazer um espetáculo-conferência, intitulado Endoscopia. O nome já dizia que a intenção era apresentar um processo de algo, de alguma coisa por dentro. Essa coisa era a própria dramaturgia, enquanto núcleo estruturante da cena. Dramaturgo, diretor e pesquisador, com doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em 2006.
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Essa experiência “endoscópica” revelou nitidamente haver um espaço separando texto e cena. O texto parecia algo coagulado, como um cristal cheio de energia eletromagnética armazenada, sem possibilidade de estabelecer trocas com o ambiente. Primeiro o texto, depois a cena, cinco dias, dez anos, vinte e cinco séculos depois, ou coisa assim. Concluída a experiência com Endoscopia, o grupo deu início ao processo de buscar formas que pudessem diminuir a distância entre o texto e a cena. Depois de várias tentativas, chegou-se à conclusão de que nenhum texto deveria ser escrito separadamente da cena. A escrita e a performance deveriam surgir ao mesmo tempo, como instâncias vivas, uma impulsionando a outra. A partir desse momento, o grupo passou a entender que a cena e todos os seus constituintes (ator, cenário, figurino, luz, som) não deveriam existir para ilustrar ou interpretar um texto predeterminado, mas para participar, juntos, da escrita de um único texto, numa espécie de soma entre o que se costuma chamar escrita textual e escrita cênica. Nada deveria ilustrar nada; tudo deveria dizer, trazer informação nova, compondo uma só dramaturgia. Inspirado no conceito de coevolução biológica, proposto pela primeira vez por Paul Ehrlich e Peter Raven30, o Katharsis iniciou, então, uma pesquisa voltada para a dramaturgia a partir da comunhão de várias linguagens. As ideias, as personagens, os diálogos e a estruturação da narrativa deveriam surgir no palco, com os atores a postos, com os músicos de prontidão para as intervenções sonoras, com os figurinos e objetos à mão e com o iluminador atento à operação de luz. Tudo deveria participar do mesmo exercício de criação dramatúrgica, utilizando, para isso, os procedimentos habituais de qualquer processo de criação, tais como escolhas, associações, comparações, supressões, combinações, oposições, elipses, substituições etc. As ideias não seriam tiradas do papel, mas da mente viva e em processo dos atores, no momento em que eles estivessem no P. R. EHRLICH &P. H. RAVEN. Butterflies and plants: a study in coevolution. 1964 - Evolution, 18: 586-608.
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palco. Um movimento do ator poderia engendrar uma ideia, que seria continuada por um som, por uma fala, por um gesto ou por uma mudança de luz, ou por todos ao mesmo tempo. O texto, tal como o conhecíamos, transcrito em palavras no papel, não existiria senão no último momento, quando todo o processo coevolutivo se encerrasse. Por sua vez, seria um texto no papel, aquém do resultado final. Apenas um registro linguístico, hábil em documentar diálogos, mas absolutamente incapaz de traduzir ritmos, volumes, perspectivas, tons, texturas, dimensões, impulso, peso, altura, timbre, enfim, incapaz de dar conta de tudo aquilo que participara do processo dramatúrgico. Uma experiência assim, sem a velha dicotomia entre texto e encenação, punha o elenco diante de um novo desafio: como se preparar sem um texto debaixo do braço, sem um princípio estruturante, sem um plano diretor? Era isso mesmo. Enfrentar ou desistir. Nos primeiros ensaios, havia outra preocupação herdada da dramaturgia tradicional: o enredo, a história, o princípio da causalidade. Que história estaríamos contando? Ninguém sabia dizer. Não havia história. Provavelmente estaríamos compondo uma narrativa, mas não necessariamente uma história com começo, meio e fim. A dramaturgia que sempre tivera como matéria-prima a palavra, adquiria, então, uma variedade de matérias-primas, oriundas sobretudo do corpo, do som e da luz. Do corpo saíam a voz, a fala, os movimentos, os gestos, as expressões, as emoções, os sentimentos e os estados corporais. Tudo isso ligado aos batimentos cardíacos, à circulação sanguínea, ao sistema imunológico, às terminações nervosas, às sinapses, aos hormônios, às energias eletroquímicas. Do som, saíam os timbres, as intensidades, os agudos, os graves, as durações, o ritmo, a melodia, o silêncio, os sons vocais, as cordas, os sopros e as percussões, tudo em forma de ondas sonoras propagando-se no ar. Da luz, vinham as radiações eletromagnéticas, os comprimentos de onda, a temperatura da cor, as reflectâncias e absortâncias, as sombras, os brilhos, os fótons.
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Todos esses sistemas complexos intervinham na produção do sentido, na criação de espacialidades e temporalidades, instaurando um trânsito complexo, com informações, energia e matéria, criando condições de trocas, de negociações, de apontamentos. Um glissando no acordeon podia evocar um gesto, que evocava uma mutação de luz, que iluminava um objeto, que gerava uma exclamação, que provocava uma réplica, que gerava um novo som, que remetia ao passado, e assim, sem parar, por encadeamento. No modelo convencional de teatro, texto vem primeiro e encenação vem depois, como uma representação, uma ilustração, uma adaptação, uma releitura etc. A encenação, no modelo convencional, é a presença de uma segunda escrita (a escrita cênica), a partir de uma escrita já existente (a escrita dramática). A experiência convencional comunica um embate de duas instâncias que relutam contra o anacronismo. No projeto dramatúrgico do Katharsis, que vem sendo posto em prática desde 2005, não há antes nem depois. O teatro se dá a ver como uma experiência única e simultânea, em que texto e encenação ocorrem concomitantemente. O teatro não é visto como leitura ou releitura de algo pré-existente, mas como algo que se processa por meio de uma relação imediata, interconectada e coevolutiva, entre texto e cena, que se deve dar a ver como leitura de si mesma e não de uma outra coisa. Não há tempo para leitura, para tradução. O tempo é destinado apenas ao ato de perceber. A criação texto-cena passa a ser uma tarefa única e indissociável. A ideia do referente do autor, ao qual se sobrepõe o referente da encenação, deixa de existir. O processo de referência passa a ser um só, na medida em que o pensamento se completa na ação, e vice-versa. A iluminação não deve ser um design que resulte numa leitura interpretativa da cena, inserida momentos antes da estreia. Ao contrário, ela deve nascer com o texto e a cena, deve estar presente desde o primeiro instante em que o ator sobe ao palco, participando ativamente do processo de criação. O figurino e o cenário deixam de ser os últimos a chegar para
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serem construídos, eles fazem parte dos ensaios como o texto e a cena. Da mesma forma, os adereços, a música, os efeitos sonoros. Nada deve ficar para depois. Tudo é cena e deve participar do mesmo processo coevolutivo. A proposta que se coloca segue na contramão do que prega o senso comum. Não recusa a representação em si, mas propõe um processo único de construtibilidade no tempo e no espaço – contrariando a perspectiva cartesiana de encenação, na qual os processos são criados separadamente e, no final, se juntam (ou se colam) uns aos outros. Para a execução dessa prática coevolutiva, algumas providências são obviamente necessárias: 1. Palco equipado com luz desde o primeiro dia de ensaio. 2. Criação do cenário simultaneamente à criação da cena. 3. Figurinos construídos à medida que as cenas evoluem. 4. Criação sonora ao vivo, acompanhando pari passu as transformações. 5. Adereços e objetos de cena testados e modificados conforme o desenrolar dos ensaios. Entendendo o teatro como um fenômeno autopoético, de componentes que formam um sistema complexo em que todas as partes se relacionam entre si e geram o seu próprio objeto estético, este capaz de produzir novos procedimentos e gerar novos objetos, o Grupo Katharsis optou por investigar como se dá a complexidade desse sistema. A principal contribuição a essa pesquisa tem sido os constantes seminários de estudo promovidos pelo grupo, enveredando pelas ciências cognitivas, teoria dos sistemas, teoria da complexidade e teoria do caos – já que teatro lida com informação e o assunto perpassa todas essas áreas. Informações complementares acerca desses encontros podem ser encontradas em: www.grupokatharsis.com.br.
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Dramaturgia em jogo por Carminda Mendes André31 No Pão de Açúcar De cada dia Dai-nos Senhor A poesia De cada dia Escapulário. Oswald de ANDRADE.
Escapulário quer dizer manto santo. Pode significar devoção, fé, presença de espírito, mistério. Em minha imaginação de mulher ouço, em tom de troça, nosso satírico “Oswaldo” colocar seu manto e se pôr a rezar. Professar sua fé de poeta parafraseando a oração de Santo Expedito, o popular Pai Nosso, com o poema acima. Esse poema me faz pensar que, ao ir ao teatro “de cada dia”, a dramaturgia em cena que aprecio é poesia cozida por palavras, gestos e movimentos escolhidos do cotidiano. É constituída por efemeridades, portanto. O gosto do poema e do teatro me move para a seguinte questão: estou à mesa com a história ou com aquela que já foi, sem ser mais, chamada de estória? Com a realidade ou com a ficção? Ambos, talvez? Professora doutora do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Instituto de Artes e do curso de pós-graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp).
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O que posso dizer é que aquilo que aprecio como arte pode ser história quando isso que se apresenta encarna um sabor, um sentido para mim; mas teatro pode ser também ficção quando me transporta para o ritual festivo, para os saraus dos poetas. Essa ambivalência do acontecimento poético, esse banquete não me parece apenas metáfora; essa dramaturgia me induz a nela pensar como signo aberto. Ou seja, a imagem da comilança é figura de linguagem que se faz sentido unicamente para quem participa do banquete. Isso é o que posso entender por dramaturgia hoje. Signo e sujeito em luta: é o que posso chamar de experiência. Em aula, penso que se pode oferecer e inventar signos artísticos que transbordem o espaço e o tempo da aula. Gosto de pensar em um teatro que já não pode ser somente imaginação ou expressão emotiva de sujeitos; um teatro que não se origina dessa invenção moderna chamada indivíduo. No entanto, sonho com teatros que se tecem com fragmentos de histórias oferecidos por sujeitos que, em sala de aula, se dispõem à transformação em poetas. A dramaturgia, que se mostra como possível em sala de aula, talvez seja constituída por uma batalha entre imaginação e vida que, em seu clímax, pode gerar uma alta tensão entre os termos e produzir, como efeito, fagulhas, queimando as máscaras sociais de quem participa, enlouquecendo os termos da problemática. Nesse ritual, perde-se a ordem sintática da linguagem instituída no cotidiano, e o movimento sugerido caracteriza-se, sobretudo, em um mergulhar-se no mistério para se tecer a linguagem novamente. O texto que daí resulta seria um traço, um sinal de presença dessa fogueira enlouquecedora. Penso que essa luta pode nos retirar das significações instituídas e mergulhar as palavras, as coisas e os sujeitos no caótico e nos colocar diante do mundo como multiplicidade, do mundo como complicação, nos apresentar o mundo em desordem, corpos indisciplinados; colocar-nos no instante antes das formações identitárias. Sempre peço aos estudantes com os quais trabalho que tragam hai-kais. O jogo proposto é sempre o mesmo: divididos em grupos, eles escolhem um poema e realizam uma ação em que o “texto
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falado” deve corresponder ao hai-kai escolhido. Evito a palavra “cena” na medida em que, atualmente, ela pode direcionar a criação para um certo modo de fazer teatro, por isso troco-a por “ação” ou por “signo”.
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Pintou estrelas no muro E teve o céu ao Alcance das mãos.32
Este hai-kai foi trazido, em 2009, por um dos estudantes cujo nome não me lembro agora. A dramaturgia daquele dia constituiu-se de micropeças, cada uma acontecendo em lugares diferentes da faculdade, cada uma exigindo atitudes diversas dos espectadores. Dessa poesia emergiu um jogo cênico interativo em que éramos colocados enfileirados como em uma sala de aula convencional; recebíamos papel e lápis, mas éramos amarrados pelas mãos com fita-crepe. O professor-personagem ficava em uma mesa em frente a nós, à esquerda, como que vigiando para que não nos comunicássemos uns com os outros. Estávamos fazendo uma prova? De repente, jogadores travestidos de personagens-alunos começavam a murmurar algo, em princípio inteligível e que, ao final, revela-se o poema. Alguém se liberta das amarras e desenha, com a mesma fita que nos amarrava, uma estrela no quadro negro à nossa frente. E assim, por arbítrio, completávamos o quadro. Naquele dia, “pintamos a via Láctea atravessada por um cometa”. Procuro levar estímulos geradores para cada aula, signos que possam priorizar os estudantes em sua posição de sujeitos do conhecimento, e gerar acontecimentos e sinais dessa experiência. Quando consigo tocá-los, a aula toma, assim, o caráter de evento. A aula começa e termina, mas, de certa forma, não tem origem nem finalidade; a aula poderia ter continuado, é processo, mas não é, necessariamente, a continuidade da aula anterior nem a causa da seguinte. Quem faltou àquela aula não “perdeu matéria dada”, apenas deixou de vivenciar algo.
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Helena Kolody. Poesia mínima. Disponível em: www.kakinet.com/caqui/kolody.php.
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Cada vez mais, tendo a pensar que o drama que podemos montar em sala de aula pode não representar a realidade; mas, com elementos da vida, inventar a própria realidade da aula. O drama que daí emerge é regido pelo signo do acontecimento; portanto, não pode ser repetido ou transmitido. Podemos documentá-lo por meio de traços e sinais que a experiência vivida imprimiu no coletivo naquele dia. A isso se pode dar o nome de texto. Mas não se trata da representação da realidade ou de parte dela. Nesse tipo de abordagem a realidade não existe como dado, não é pré-existente aos sujeitos; a realidade é resultante da experiência. Há pouco tempo, como impulso gerador de dramaturgias, pedi aos estudantes que se dividissem em grupos e inventassem signos artísticos que envolvessem o espectador, signos que pudessem gerar trocas entre jogadores e transeuntes. O objetivo era inventar signos e trazer para a sala de aula a experiência da troca. Vou contar apenas parte da dramaturgia daquele dia para que se consiga ter uma imagem do que tento mostrar. 85 Na rua, um grupo abordava o transeunte de modo a pedir-lhe um abraço. Em sala de aula, foram relatados os momentos que o abraço se deu e os momentos que não houve a aceitação do abraço como troca. Outro grupo construiu uma “banca tipo camelô”, colocou alguns bombons em cima e escreveu embaixo algo do gênero: conte-nos uma história e ganhe um bombom. As pessoas deveriam contar algo relevante que lhes havia acontecido ou inventar uma narrativa interessante; em troca, receberiam um chocolate. Em sala foram narradas as histórias daqueles que se arriscaram a participar da brincadeira. Onde está o teatro? Na rua? Na sala? Em um segundo momento do curso, acrescentou-se outra barraquinha ao lado da primeira. Neste caso, com os dizeres: escute uma história e ganhe um bombom.
Sem negar o teatro dramático que objetiva certo parâmetro do bem falar, da boa postura corporal, da narrativa pensada minuciosamente; sem negar a construção da chamada “leitura de mundo”, entendendo-o como totalidade, que pressupõe um princípio de realidade comum a todos, e de um real existente independente dos sujeitos; sem negar esse pensamento herdado, sonho haver outros referenciais para se fazer arte em sala de aula.
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Gosto de pensar em uma “aula de teatro” para além ou para aquém da cena dramática, tudo para explodir as fronteiras das especialidades das ditas linguagens artísticas. Tudo para embaralhar essa categorização instituída. Não para negá-la, mas para retomar a problemática que gerou tais categorias; que gerou, por exemplo, a concepção de dramaturgia moderna, de teatro dramático, de arte moderna, de fenômeno teatral. Tudo para reapresentar o princípio da festa. Hoje me inclino a trazer signos que turvem as ideias totalizantes de mundo, que transformem o mundo em um lugar sem ordem, em fundo misterioso da vida. Mergulhados no infinito e no informe, as intenções são as de movimentar o coletivo em sala, do qual faço parte também, a reescrever o valor das coisas que nossa condição histórica nos permite ver e a reinventar subjetividades que os limites da experiência nos possibilitou viver. Nessa perspectiva – que pensa a cultura como proposição para o enfrentamento diante do nascimento e da morte, enfrentamento diante do caos – tendo a pensar que a categorização das artes é resultante histórica de certo modo de abordar o problema do misterioso. A categorização, tal como a utilizamos atualmente, tornou-se um modo de explicar o mistério da criação, um modo, portanto, de sublimar o dionisíaco dos seres e das coisas; tornou-se um modo específico de fixar os resultados em identidades, e essa ação camufla o misterioso da vida. O que procuro com os estudantes é propiciar a reencarnação da problemática gestora de tais categorias e usos. Embriagada pelos enunciados de que a arte pode ser acontecimento e a realidade, invenção histórica, deliro com a ideia segundo a qual a dramaturgia que podemos colocar em jogo, em sala de aula, é história; de que a dramaturgia pode ser reflexão sobre ética, e que o drama daí emanado pode ser ocupação do espaço com o espaço da vida, presença no tempo com o tempo da aula. E a dramaturgia que daí resulta? Torna-se memória, no sentido apresentado na fala de Luiz Carlos Moreira, na palestra do primeiro dia de evento. Segundo Moreira, o que temos como dramaturgia são vestígios de experiências; é linguagem inacabada. Não posso ensinar como construir um signo artístico, pois
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penso que isso seja fruto do embate entre o si mesmo e a diferença: é devir. Pelo mesmo motivo, não posso ensinar um estilo, não posso ensinar uma estética. Entendo também que os estudantes já carregam conceitos de arte aprendidos socialmente. Desse modo, desincumbo-me de ensinar “O que é teatro?” para os estudantes. O máximo que tenho às mãos são signos – artísticos ou não – capazes de movimentá-los (ou não) para revelar suas concepções de arte, de cotidiano, de ética, de política, de sexualidade e tudo o mais que daí possa vir à tona. Quando algo acontece e voltamos ao tempo ordinário, ou seja, quando terminamos a aula, o que resta são apenas cinzas de pedaços de nós mesmos. Não há conteúdo acumulado. O que vivenciamos pode não servir para apurar a técnica do ator, pode não ajudar na composição da personagem de um texto já escrito, como pode não chegar a um signo que apreenda a experiência vivida. No entanto, às vezes, terminamos o evento com a sensação de ter ocupado o espaço e de ter estado presente no tempo e de termos nos apropriado dessa história, que é a aula, e que pode ser nossa própria história. É esse o saber que tento compreender atualmente, é essa a dramaturgia que venho tentando realizar em sala de aula atualmente...
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A dramaturgia da imagem no teatro de Tadeusz Kantor por Wagner Cintra33
Uma das características da imagem no teatro de Tadeusz Kantor é o fato de cada imagem, individualmente, trazer em si uma significação concentrada daquilo que trata o espetáculo como um todo. Essa significação destina-se à produção de estados emocionais no observador. Essas imagens, fascinantes e perturbadoras, são produtos do repositório da memória de Kantor e funcionam como que afixadas em uma fotografia. Dessa forma, os jogos observados em cena são percebidos como uma sucessão de imagens. Isso ocorre inevitavelmente porque a construção dos jogos está totalmente fundamentada na construção da imagem. O teatro de Kantor é, antes de tudo, um teatro de imagens fortes e avassaladoras, e tais imagens podem ter sua origem na imaginação de Kantor ou como produto da sua memória poderosa. A memória pode se manifestar por meios diretos ou indiretos, ou seja, a imagem, a situação, vivida e experimentada, dá seguimento à cena que se materializa no palco. O referencial mnemônico pode aparecer também por meios indiretos, como é o caso do espetáculo Wielopole Wielopole34, no qual uma parte essencial da obra foi baseada em imagens apresentadas em fotografias antigas. A foto dos soldados, recrutas, provavelmente Professor doutor do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Instituto de Artes e do curso de pós-graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). É também diretor teatral.
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Realizado na Itália em 1980.
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prestes a partir para o front, mobilizou a memória pessoal de Kantor, referente à criança de seis anos que via o movimento das tropas do Marechal Pilsuldsk35 em ação pelas ruas da sua pequena vila natal, Wielopole, na Polônia. A transferência da imagem estática fixada pela fotografia, desbotada pela ação do tempo, acionada à sua memória pessoal, concebeu para o palco figuras dolorosas de homens em cinza, empoeirados – revestimento da morte antecipada.
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Wielopole Wielopole. Na cena, a fotógrafa-viúva e os soldados da Primeira Guerra Mundial. Foto de Arquivos do Centre for the Documentation of the Art of Tadeusz Kantor (Cricoteka).
Na aparência da imagem inerte, Kantor viu o desenvolvimento de uma história, a tragédia de homens reais, a manifestação de algo que havia aconteceu e que estava destinado a acontecer novamente no palco. Uma nova criação, original, única, como se vista pela primeira vez. Soldados em uniformes da Primeira Guerra Mundial, posando para uma fotografia, podem ser encontrados em Que morram os artistas!36, uma escultura feita com os objetos degradados de vários formatos e funções. No alto desse monumento, o Anjo da Morte, a Herói polonês, que após a Primeira Guerra Mundial, tornou-se um dos responsáveis pela criação da Polônia como Estado independente.
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36 Espetáculo de 1985 que, junto de A classe morta (1975) e Wielopole Wielopole (1980), faz parte do chamado Ciclo do Teatro da Morte.
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puta do cabaré, à semelhança de A liberdade guiando o povo, do pintor francês Eugène Delacroix, e também como a clássica fotografia que marca a tomada do Reichstag37 pelo Exército Vermelho em 1945, a personagem movimenta a sua bandeira negra. Essas, dentre inúmeras outras, são criações memoráveis do teatro de Tadeusz Kantor: repletas de imagens poderosas, que trazem em si uma vasta gama de significados relativos ao repertório gramatical kantoriano.
A liberdade guiando o povo – Eugène Delacroix (obra de 1830). Foto de Wagner Cintra. A tomada do Reichstag pelo exército vermelho em 1945. Foto disponível em <www.anovademocracia.com.br>. A puta do cabaré empunha a bandeira da resistência em Que morram os artistas!.Foto de Maurizio Buscarino.
A imagem no teatro de Kantor é uma estrutura imobilizada em um momento que não poderá jamais evoluir, vivendo eternamente em um único instante de emoções condensadas. A imagem, afastada da vida, como uma fotografia, transforma-se em ícone, em emblema, em metáfora e alegoria. É isso que a Kantor interessa. O poder da imagem como vocabulário que age diretamente na estrutura psíquica do observador desestabilizando-o de todos os seus instrumentos de reconhecimento da realidade como constructo da sua consciência. A relação entre imagem e significado dramático são os nós essenciais dos trabalhos teatrais de Tadeusz Kantor. O componente visual, que é uma espécie de escritura, de dramaturgia da imagem, é extremamente forte e está repleto de sinais, que ao serem observados, derivam a dúvida entre teatro e pintura. Kantor, por sua vez, insiste em afirmar que seu teatro não é um teatro de pintor, mas que a pintura é uma espécie de escrita para o teatro. Em resumo, essa escrita cênica, de uma forma autônoma e específica, é um meio de expressão. Mas esse componente visual não se resolve somente Edifício em Berlim (Alemanha) que abrigava o Parlamento alemão durante a Segunda Guerra Mundial.
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por meio da pura ilustração, nem se sustenta como um plano dramatúrgico preexistente. Essa estrutura visual, no plano cênico, emergirá como uma realidade dramatúrgica própria e verdadeira. Essa estrutura dramática, evidentemente muito particular, é mais icônica do que narrativa, e traduz, por meio da imagem apresentada, níveis desconhecidos da realidade. Kantor é capaz de ver dentro da imagem, de uma imagem que ainda é estática, imóvel, e, por intermédio da sua ação criativa, liberar aquilo que está escondido dos olhos e fazer teatro com isso. Um exemplo claro dessa situação são os soldados de Wielopole Wielopole. Ao olhar uma fotografia velha e desbotada, Kantor teria sido capaz de observar os vícios, as vicissitudes, expressões de surpresas, de felicidade, de desespero e de terror de cada um deles. A imagem traz em si o seu destino, a sua lógica, ícone exato da sua própria história. Esse é um processo de criação no qual a imagem, como recurso dramatúrgico, se constrói em cena e com a cena, constituindo assim o movimento narrativo e simbólico do espetáculo. Lorenzo Mango38 atribui a esse processo de construção da imagem uma manifestação dividida em três níveis diferentes: personagem-ícone (a caracterização da personagem); o espaço opaco (organização da cena) e a construção dramática (construção da narrativa). As personagens-ícones seriam, usando como exemplo os soldados de Wielopole Wielopole, aquelas marcadas pela morte, que estariam “infectados por esse bacilo”39 e que estariam mortas antes mesmo de terem morrido. A sua aparência caracterizaria o próprio emblema da morte. Para conseguir tal aparência, Kantor utiliza-se de diversos recursos: a maquiagem esbranquiçada e a deformação expressiva da face, que transforma os rostos em máscaras, as roupas velhas e empoeiradas, os movimentos desconexos, mecânicos, segmentados como em uma marionete etc. De maneira geral, Kantor intervém na matéria visível com os recursos de outro material visível.
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Lorenzo MANGO. Appunti per uma lettura iconica del teatro di Tadeusz. In Marines, Romano. Tadeusz Kantor – Cricot 2. Salerno/Milano: Oédipus, 2001, p.32.
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Tadeusz. KANTOR. Wielopole Wielopole. Apud Denis BABLET e Brunella ERULI. Études réunis et présentés. In: Denis BABLET. Les voies de la création théâtrale. Paris: C.N.R.S. Vol. XI, 1983. p. 149.
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Esse recurso de adicionar uma imagem à outra faz com que exista uma separação, um distanciamento da realidade real da imagem, fazendo dela, por um processo de recomposição, não somente um indicador expressivo emocional da cena, mas principalmente um estado dramático localizado no interior da cena. É na imagem dramática que reside o conteúdo das personagens do teatro de Kantor. A imagem funciona como síntese, como elemento condensador icônico que transcende sua própria realidade como imagem, indo muito além da sua história original, cotidiana, para revelar elementos e situações que variam do imprevisível ao misterioso, de histórias e aventuras que nunca foram contadas. Essas histórias contêm um segredo, sombra e reflexo daquilo que percebemos condensado na imagem que se realiza no espaço. Essas imagens, que são pertencentes à imaginação, aos delírios, às alucinações e fantasmagorias de Kantor, são constituídas por um tecido de gestos, de ações pequenas e grandes, por jogos repletos de humor e terror, especificidades que conferem ao teatro de Kantor – e a esse modo peculiar de construção dramatúrgica – o recorrente uso de um signo negativo associado à estrutura dramática das imagens criadas. Isso quer dizer que, para cada cena, para cada imagem, existe posteriormente o seu contraponto, a sua negação como expressão dramática simbólica. Dessa forma, diante de um tema duro e traumático como o holocausto e a morte dos judeus nos campos de extermínio, na sequência da cena, Kantor insere uma paródia jocosa, quase burlesca. Assim, nessa situação específica, Kantor dessacraliza a história introduzindo um elemento de humor em uma estrutura aceita e sacralizada como absoluta e imponderável de ser observada de outra forma: A arte de Kantor é antes de tudo um desafio ao real. O real, em Kantor, quando é evocado, está sempre afetado de um signo negativo. Isto porque o humor em sua arte, representado pela relação ao real, quer dizer ao horror, à agonia, ao triunfo inelutável e generalizado da morte, uma espécie de desafio positivo, e ao desafiar o real dessa maneira; isso supõe evidentemente um ponto de apoio fora do mundo. É esse o ponto secreto, ardente, decisivo na posição subjetiva de um criador da dimensão de Kantor.40 40
Guy SCARPETTA. Kantor au Présent. Arles: Actes Sud, 2000, p. 131.
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A “iconização” da imagem flui como subtração do transcurso do tempo e imersão no universo do simbólico por meio de um intenso diálogo com a morte que encontra nas imagens e nas personagens que constituem esse universo imagético um caminho e um meio para se manifestar. A morte como abstração encontra materialidade na imagem como forma concreta. Esse tempo que teve o seu percurso alterado, condensado em uma imagem, para a eternidade, caracteriza-se em uma espécie de tempo mítico: um tempo que vive eternamente o instante da ação. Outro aspecto do componente icônico da imagem no teatro de Tadeusz Kantor é a utilização dos manequins como recurso expressivo. A presença do manequim nos espetáculos é, segundo Lorenzo Mango (2001), o exemplo mais tangível da manifestação da morte e, consequentemente, da transformação dela em ícone, ou seja: o manequim nada mais é do que a expressão absoluta da morte, do vazio e da vacuidade. Em A classe morta, os Velhos carregam anexados ao corpo os manequins das crianças que foram um dia, como excrescência, um tumor supurado do passado morto. Em Wielopole Wielopole, a imagem do Padre duplicada no manequim de látex desperta o interesse na descoberta da condição da sua humanidade. Assim, a partir do temor da morte, surge a clareza última da vida, traduzida em imagem pura, emblematicamente fechada como ícone. No processo de organização da cena, nesse espaço opaco, conforme a definição de Lorenzo Mango (2001: 34), a cena é o local no qual o ícone da personagem se materializa. Isso se iniciou nos anos 1970 quando Kantor, a partir do chamado Teatro da Morte, passou a desenvolver a tendência de concentrar a ação teatral em um único lugar cênico – isso após, durante anos de frequência assídua de lugares inusitados e situados nas dimensões do happening. O seu teatro, a partir de A classe morta, chegará então a um lugar, do ponto de vista da utilização do espaço físico, a algo parecido com a “cena italiana”; estrutura que irá se fortalecer e ganhar estabilidade em Wielopole Wielopole e que prosseguirá assim nas demais produções. Acerca de Wielopole Wielopole, afirma Luigi Allegri:
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[...] enquanto os olhos observam a transparência da cena que age feito janela que se abre como visão para um mundo ilusório, somos conduzidos a ver além da matéria afetiva que temos diante de nós, assim, o espaço de Kantor se torna opaco.41
No interior dessa construção opaca da cena, os objetos assumem uma proeminência particular, sendo que a relação que Kantor tem com eles é levada a ser reconhecida como uma experiência próxima aos ready-mades de Marcel Duchamp. Não tanto porque o objeto esteja totalmente pronto, mas porque ele é análogo ao processo mental, que é a base da sua criação. Em Duchamp, o ready-made, o objeto privado de sua função original, de certa forma, como em Kantor, é exposto em um contexto no qual ele é visto como se fora pela primeira vez. O objeto, nesse processo, a “coisa em si”, irá ocupar o lugar da imagem, que anteriormente, antes do Cubismo e da colagem, eram entendidas como desdobramento da ideia em imagem composta na tela. Com o Dadaísmo, propriamente com o ready-made, o objeto se tornou imagem sem ser ele mesmo imagem, o que, no contexto do teatro de Kantor, é percebido exatamente como imagem. Disso decorre a averiguação do teatro feito por Kantor como um teatro fortemente amparado pelas bases da arte pictórica. Em Kantor, a “construção dramática” é um procedimento por meio do qual aquilo que chamamos de dramaturgia tem sua lógica baseada, mais uma vez, na produção de imagens icônicas que se fundamenta na relação intrínseca de jogo entre o elemento humano e o inanimado, sobretudo o objeto; imagens essas nas quais a lógica das combinações e das sequências, lembrando que essa é uma lógica da imagem, é um procedimento fundamentado na construção e na desconstrução. A construção se dá exatamente por meio da agregação lógica dos fragmentos que são incongruentes entre si em uma imagem homogênea. A desconstrução, ao contrário, destrói a coerência da imagem dentro de um plano narrativo alheio à imagem. É por isso que a memória, pessoal e abrangente, no palco, a partir
Luigi ALLEGRI. Lo Spazio medievale di Wielopole Wielopole. Apud Lido GEDDA. Kantor. Protagonismo registico e spazio memoriale. Firenze: Liberoscambio, 1984.
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do seu “quarto da imaginação”42, é desconstruída e reconstruída em ícones dramáticos individuais. Nesse contexto, as imagens como ícones são apresentadas como sínteses de um passado vivo na memória. As imagens de Kantor são túrgidas de emoções. É por isso que em Que morram os artistas! o monumento construído no final, ao mesmo tempo que se refere ao retábulo43 do altar da Igreja de Santa Maria, também se refere aos artistas marginais que buscam a liberdade; daí a referência a Delacroix, em cuja pintura, a Liberdade, representada por uma mulher de seios de fora, evidentemente uma ousada reação aos violadores dos ideais da revolução de 1789, e também ao Anjo da Morte, cujos ideais iluministas se esfacelaram diante da barbárie nazista e do terror stalinista. Ao observarmos a imagem construída no espetáculo, estamos ao mesmo tempo nos reportando ao século XV, ao século XIX e ao século XX. Vemos, através da imagem construída, a obra de Veit Stoss, ao mesmo tempo que percebemos a defesa e o esfacelamento do Iluminismo. Todas as imagens em uma única imagem. Esse processo de criação, de certa forma, está ligado a algumas considerações de Sigmund Freud sobre o sonho. O sonho como linguagem que, por meio da estratégia da condensação e movimento, renomeia as coisas e as redefine, ou seja, a realidade e sua compreensão. A linguagem dos sonhos, segundo Freud, é uma linguagem icônica que atua no inconsciente como imagem-chave, absoluta, estranha, ilógica. Contudo, são excepcionalmente capazes de se expressar como símbolos, de se exprimir amplamente em um universo simbólico. A imagem, no teatro de Kantor, por sua vez, age não somente a fim de definir uma dramaturgia icônica, em que o ícone representa sozinho a imagem central, mas ainda, e com isso, a sua capacidade de antagonizar a linguagem lógica, racional, cotidiana. Por outro lado, a imagem icônica em Kantor também está repleta de teor lírico.
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Local criado por Kantor onde as imagens surgem e articulam-se umas às outras. Difere do inconsciente freudiano, pois, nesse local, Kantor defende a tese segundo a qual teria o controle absoluto do ato criativo. É um dos conceitos mais obscuros da arte kantoriana.
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Construído na Cracóvia, Polônia, no final do século XV, pelo escultor Veit Stoss.
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O lirismo das imagens criadas por Kantor que, com a música, operam um retorno a si mesmas, promovem um constante multiplicar dos significados, de forma que a ação expressa no presente imediato configura-se, como comenta Anatol Rosenfeld a respeito do imediatismo do lírico:
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A isso se liga a preponderância na voz do presente, que indica a ausência da distância, geralmente associada ao pretérito. Esse caráter do imediato que se manifesta na voz do presente não é, porém, o de uma atualidade que se processa e se distenda através do tempo (como na dramática), mas de um momento eterno. (ROSENFELD, 1965: 12)
O lirismo desse momento eterno na obra de Tadeusz Kantor, que também pode ser observado nas produções de um importante artista polonês da atualidade, Leszek Madzik44, realiza-se de maneira muito específica ao associar a imagem à poesia. As imagens e as figuras constituem o espaço que só é possível representar por meio dos objetos e formas. Por sua vez, a poesia articula-se por meio dos signos que se sucedem no tempo, conforme especifica Benedito Nunes, ao citar Lessing: [...] só podem representar objetos sucessivos que se chamam ações, eis o domínio próprio da poesia.”45 O teatro de Kantor, ao mesmo tempo que está repleto de terror e de humor macabro, também está repleto de poesia, na qual a realidade afetiva despertada pelo espetáculo é a medida do sentimento interno de oposição entre os contrastes, entre o permanente e o provisório, a exemplo da relação entre o humano e o inanimado. Assim, o momento de eterna poesia presente em Tadeusz Kantor realiza-se na efemeridade temporal do espectador, suscitando sentimentos diversos, que na impossibilidade de configuração Diretor do Scena Plastyczna (Cena Plástica) - Katolickiego Uniwesytetu Lubelskiego (KUL) – Grupo mantido pela Universidade Católica de Lublin. Leszek Madzik (1945) é formado em história da arte nessa mesma universidade, e ainda como jovem pintor, também passou a se dedicar ao teatro por entender, entre outras coisas, que uma tela é insuficiente para obter do observador a mesma intensidade de reações, sentimentos e emoções produzidos por um espetáculo realizado ao vivo diante de um espectador. Madzik abandona a palavra, apega-se à imagem, que é fortemente amparada pela exploração da luz no espaço. Utilizase, ainda, de objetos, bonecos e da presença silenciosa do ator, que é usado como mais um elemento na criação das imagens. Em seu teatro existe certa relação com o sagrado que leva o espectador a refletir acerca da sua existência e sua relação emocional com a realidade.
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Benedito NUNES. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 2003, p.10.
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concreta do tempo e do espaço dentro de uma estrutura narrativa linear, os espetáculos vão muito além da realização artística. Muito mais do que somente suscitar no observador percepções estéticas, a arte de Kantor configura-se como uma profunda experiência afetiva que coloca o humano em relação ao jogo com as imagens e objetos à procura de significados. Significados esses que, se não estão ligados ao conhecimento de questões relativas à existência humana, seguramente se constituem nas dúvidas de realização humana acerca da nossa própria individualidade.
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Referências bibiográficas
BABLET, Denis. Les voies de la création théâtrale. Paris: C.N.R.S. Vol. XI, 1983. KANTOR, Tadeusz. El teatro de la muerte. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 2004. _________. Entretiens, arts e esthétique. France: Carré, 1996.
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_________. Leçons de Milan. Paris: Actes Sud – Papiers, 1990. _________. Le Théâtre de la mort – Textes réunis et rassemblés par Denis Bablet. Lausanne: L’Age D’Home – 1977 _________. Les voies de la création théâtrale, textes réunis par Denis Bablet. Paris: C.N.R.S. Vol. 18, 1993. _________. Ma création, mon voyage. Commentaires intimes. Paris: Editions Plume, 1991. _________. Ô douce nuit – Les classes d’Avignon. Paris: Actes – Sud Papiers,1991. KOBIALKA, Michal. A journey through other spaces. Essays and manifestos, 1944-1990 – Tadeusz Kantor. Los Angeles: University of California Press, Ltd. 1993. _________. The Milano Lessons by Tadeusz Kantor. The drama review 35, 1986. MARTINIS, Romano. Tadeusz Kantor – Cricot 2. Milano: Oedipus Edizioni, 2001. NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 2003. ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: DESA, 1965. SCARPETTA, Guy. Kantor au present. Arles: Actes – Sud, 2000.
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Dialética dramatúrgica dos objetos cênicos por Anderson Zanetti46
Ao se pensar em dramaturgia, a primeira ideia que aparece é a de que um autor, pelo uso técnico da palavra, constrói uma história na medida em que tece poeticamente seu texto escrito. Tal noção não é nova, ela já aparece entre os filósofos gregos, tais como Platão e Aristóteles. O primeiro dá um tratamento mais político à arte do poeta trágico (denominação que corresponde ao que seria o dramaturgo moderno). Na visão platônica, os heróis trágicos, por intermédio do caráter, são imitações imperfeitas de valores morais perfeitos, tais como o bom e o belo. O espectador também é um imitador, pois a contemplação estética aparece como imitação das sagas dos heróis.47 Aristóteles não se interessa tanto em discutir o caráter das personagens, mas a construção do mito trágico. Na visão dramatúrgica aristotélica, o mito não é a imitação de uma história ocorrida no passado, mas a própria criação da ação presente das
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Formado em filosofia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp Marília). É mestre em Artes Cênicas pela mesma instituição. Atualmente é professor universitário e pesquisa o teatro de Augusto Boal.
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PLATÃO. A República. São Paulo: Martins fontes, 2006. Platão discute essas questões mais precisamente nos livros III e X de sua obra.
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personagens. Mimesis, em Aristóteles, é a capacidade que o poeta trágico tem de criar, imitada da natureza, que é a criadora perfeita. A principal ferramenta do poeta trágico é a palavra. Com ela, o poeta constrói um bom mito, a partir de uma trama bem amarrada, obedecendo à lei de causa e efeito. Uma obra será mais ou menos elevada se for constituída de um bom mito e se empregar bem o uso da palavra e suas variações estilísticas, tais como ritmo, linguagem (canto) e harmonia (metro).48 Na modernidade, os maiores herdeiros da visão aristotélica são os franceses. O ápice da importância dada ao texto e, consequentemente, ao autor, ocorre nos séculos XVII e XVIII. Aqui o dramaturgo aparece como o demiurgo do teatro; tudo está subordinado ao seu texto. O cenógrafo fica encarregado de materializar, no espaço cênico, aquilo que o texto exige; e o trabalho de ator se limita ao uso das técnicas de interpretação das personagens, cujo texto também dá todas as diretrizes. À semelhança do que ocorre com a visão aristotélica acerca da tragédia grega, o drama moderno se transforma no reduto de poder dos autores. O espetáculo teatral pouco importa, o que de fato é importante é o texto, que, se bem confeccionado, pode sobreviver sem o diretor, sem o ator, sem o cenógrafo, sem os técnicos.49 Por outro lado, se o drama moderno se aproxima da visão aristotélica pelo papel de destaque dado ao autor e a seu texto, ele se distancia da tragédia clássica pelo seu tempo e contexto sóciohistóricos. O autor clássico constrói um herói apartado das coisas, suas ações independem de mediações do mundo material, toda sua força está em sua capacidade de mover o mundo. Como Anatol Rosenfeld (1996) destaca, tal herói só pode existir em época de heróis, aquilo que Friedrich Hegel denomina como heroenzeit.50 O drama moderno já nasce em tempos difíceis de se apartar o herói das coisas materiais. Com a decadência da aristocracia e a ascensão da burguesia, o mundo 48
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Abril Cultural, Col. Os pensadores, 1973.
Sobre isso ver: Jean-Jacques ROUBINE. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. No capítulo II, intitulado A questão do texto, o autor trata mais detalhadamente o assunto.
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Anatol ROSENFELD. O Mito e o herói no moderno teatro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1996, p.29.
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material ganha cada vez mais autonomia, e aqueles heróis, cujas ações representavam nações, perdem força para o aparecimento do Estado. No Estado moderno, portanto, o drama passa a representar forças individuais que se chocam. No plano da história das ideias, isso significa um movimento oposto ao platonismo. Na medida em que o drama moderno é a representação das transformações da sociedade, a construção dramatúrgica é forçada a colocar em cena os novos protagonistas sociais, numa escala decrescente, que passa pela aristocracia, burguesia e proletariado. Se, por um lado, esse movimento indica o enfraquecimento do dramaturgo e seu texto, por outro, indica o fortalecimento do teatro como forma autônoma de arte, que passa a desenvolver sua própria linguagem estética. O autor dá lugar ao encenador, a importância do texto escrito dá lugar à materialização exigida não por ele, mas pelo espetáculo teatral, que passa a ser a prioridade do encenador. O encenador passa a ser a figura de destaque no processo da construção teatral, e uma “nova classe dominante” surge como superação da hegemonia do dramaturgo. Contudo, isso não indica a morte da dramaturgia, mas uma nova configuração na construção dos signos teatrais. Sem o monopólio da palavra, a poética teatral ganha a participação mais efetiva dos objetos cênicos na construção do espetáculo teatral. O encenador é aquele que decifra os códigos linguísticos contidos na materialidade do palco, para recriá-los como novos significados. Aqui a relação dialética entre sujeito e objeto fica mais clara. Com a ascensão do encenador no teatro, todo idealismo dramatúrgico cai por terra. Antes de se estabelecer como classe dominante do teatro, o encenador é um mediador do diálogo entre aquilo que a materialidade dos objetos cênicos exige e o que a humanidade dos atores pode realizar como representação artística do mundo. O diálogo é a própria construção imediata da linguagem teatral, não a interpretação de interesses intersubjetivos das dramatis personae.51 Nas personagens dramáticas o que predomina é a interação da linguagem verbal e seus significados sociais, aquilo que
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Sobre isso ver: Peter SZONDI. Teoria do drama moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2001.
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cada personagem representa enquanto classe social. Portanto, no drama moderno, a linguagem verbal representa a luta de classes e a ocultação da realidade material como forma ideológica dos grupos dominantes.52 Com a chamada crise do drama e a ascendência do épico, principalmente com Bertolt Brecht, a linguagem verbal ganha materialidade para se tornar linguagem teatral concreta, cujo elemento contraditório da sociedade capitalista é revelado na relação dialética entre o ator e os objetos cênicos. Em Brecht, o que revela a reificação social e, consequentemente, a transformação do homem em coisa, é o movimento do ator em se distanciar da personagem para mostrar que ela já é coisa manipulada pelas forças socioeconômicas. Como coisa, a personagem integra o espetáculo teatral como mais um objeto cênico, tais como a luz, o som, os cartazes e os artefatos usados na composição do palco. Essa concretude do teatro brechtiano é mais um fator que abre espaço para o encenador que trata não só a personagem como objeto cênico, mas o próprio ator. Como mediador entre matéria e homem, sujeito e objeto, o encenador vê o corpo do ator e tudo o que lhe pertence como outros tantos objetos cênicos para a construção da linguagem teatral. O que marca o desgaste do papel do encenador como ser hegemônico no teatro é o surgimento de coletivos teatrais. Se o encenador é encenador-dramaturgo, por construir novas linguagens teatrais, os coletivos de teatro dão um passo além no momento em que abolem a figura do mediador e assumem os papéis de encenador e dramaturgo ao mesmo tempo que são sujeitos e objetos da construção da linguagem teatral. Nos coletivos, cada ator tende a se transformar de objeto em sujeito da nova composição, que não é apenas dramatúrgica. Como sujeito, o ator interage com os demais atores também por meio da linguagem verbal. Desse modo, ao interpretar-se como objeto cênico, por meio da linguagem material, transforma-se, também, e de modo concreto, no próprio objeto. Essa relação dialética é mais direta e produz um elemento novo para Sobre a construção da ideologia das classes dominantes e a dialética do signo ver: Mikhail BAKHTIN. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995.
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o palco. Agora não é só o homem enquanto sujeito que é um ser mimético, mas o próprio mundo dos objetos ganha poder de mímesis ao ser o que é homem. Os objetos cênicos tornam-se sujeitos na medida em que são contidos de códigos que se transformam em signos da transmissão da linguagem teatral. Corpo, luz, som, artefatos, no teatro, não são mais simplesmente coisas que refletem a reificação social no mundo de consumo, mas agentes dramatúrgicos que constroem um teatro cada vez mais autônomo e contestador frente às mazelas da sociedade capitalista.
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