Revista de Teatro SBAT n.528

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Desde 1917 em defesa do direito autoral. Reconhecida como de Utilidade Pública Federal pelo Decreto nº 4.092 de 4 de agosto de 1920.

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sumário 2

PRÓLOGO Aderbal Freire-Filho

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TEATRO E ARTES PLÁSTICAS Obra aberta ao público/visitante

CONSELHO DIRETOR

Diretores e cenógrafos trabalham em parceria, promovendo a fusão entre procedimentos do teatro e das artes plásticas em encenações que valorizam a autoria do espectador

Aderbal Freire-Filho Alcione Araújo Millôr Fernandes Ziraldo Alves Pinto

Daniel Schenker

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Paulo Rezzutti

revistadeteatro@sbat.com.br bambinacult@gmail.com Órgão Oficial da SBAT – Sociedade Brasileira de Autores, inscrito na Ulrich’s International Periodicals Directory sob o registro ISSN 0102-7336.

A marquesa de Santos e o teatro

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Arivederci, Papai Noel Alcione Araújo

CONSELHO EDITORIAL

Aderbal Freire-Filho Ana Velloso Regina Zappa Vera Novello

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Hiato entre vivência e memória A pesquisa autobiográfica do grupo é uma diretriz importante da companhia dirigida por Leonardo Moreira, responsável por três espetáculos bem-sucedidos

SUPER VISÃO

Três É Editoração e Design Ltda. DIREÇÃO EXECUTIVO FINANCEIRA

Daniel Schenker

Bia Gondomar EDIÇÃO

Regina Zappa COLABORADORES

Alcione Araújo Daniel Schenker Ernesto Soto Lula Marina Gadelha Maria Luiza Franco Paulo Rezzutti Renato de Aguiar

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Chiquinha Gonzaga: pioneirismo e versatilidade em vida e obra Acervo disponibiliza mais de 300 partituras da artista, desvelando a magnitude e a qualidade de sua obra em mais de 30 gêneros musicais, entre peças sacras, eruditas, valsas e fados portugueses Marina Gadelha

PESQUISA ICONOGRÁFICA

Maria Luiza Franco REVISÃO

Maria Helena Pereira PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

Mais Programação Visual www.maisprogramacao.com.br

42 ENSAIO Um crítico e sua coleção Macksen Luiz guardou durante anos os programas dos espetáculos a que assistiu Ernesto Soto

CAPA

Montagem com fotos de espetáculos citados na matéria Obra aberta ao público/visitante. CTP E IMPRESSÃO

50 OSSOS DO OFÍCIO Artista da resistência

WalPrint Gráfica e Editora

Nome: Patrícia Muniz. Profissão: aderecista.

TIRAGEM

Maria Luiza Franco Busse

5.000 FOTOS DE ACER VO CEDIDAS PELA

52 EPÍLOGO

Recursos obtidos através do Convênio nº 732974/2010, celebrado entre o Ministério da Cultura e a Bambina Ação Cultural Associados Esta edição traz um encarte com a peça A Arte de Escutar, de Carla Faour.

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P R Ó L O G O

Revistas e revistas e revistas. Onde colocar esta no Tratado Geral das Revistas, setor Revistas de Arte? Existem as acadêmicas, respeitáveis. As que não são propriamente acadêmicas, mas vão nessa direção. São ótimas revistas de viés acadêmico. Enviesadas, para dizer com palavra derivada, há muito tempo em uso por aqui, enquanto viés ainda estava na máquina de costura. Existem as editadas por instituições, por movimentos, grupos de teatro, etc. E entre essas distinções existem ainda várias gradações. Ou seja, entre umas e outras podem estar quase infinitos modelos de revistas de arte, do Cahiers du Cinéma ao Magazin Litteraire ou, fechando o foco no teatro nacional, da revista do Tablado ao Percervejo, da Folhetim a Sub-Texto ou a A(l)berto, recém lançada revista da SP Escola de Teatro. E a essas se somam as revistas eletrônicas, da Questão de Crítica, dedicada ao teatro, à Viso, cadernos de estética aplicada. Levanto essa questão pensando na matéria sobre Teatro e Artes Plásticas, que é o destaque deste número. O excelente trabalho de Daniel Schenker traz mais uma dificuldade para o enquadramento da Revista da Sbat. Não somos o que se chama de uma revista institucional, também não somos uma revista de variedades culturais. E embora não se possa dizer que nosso enviesado vai para o lado acadêmico, a qualidade dos redatores e a seriedade dos propósitos dão “sustança” à revista e muitas vezes a verticalização e o tratamento de uma matéria dão a ela, digamos assim, uma importância para-acadêmica. É o caso do trabalho de Daniel Schenker sobre a relação entre cenografia e artes plásticas, que envolve cenógrafos e encenadores. E atores e autores. Enfim, grandes conceitos de dramaturgia. Imagino que nossos leitores vão conversar muito com esse texto-matéria-reportagem. Muito mais do que o prologuista da revista que, para dialogar com o que está dito ali, tem que abandonar essa rima pobre – prologuista da revista – e deixar que fale o diretor de teatro. Fala o diretor de teatro. O melhor das experiências radicais é que elas explicitam as poderosas virtudes do teatro. Ou, dizendo talvez com mais propriedade, o melhor do teatro é que ele tem as virtudes poderosas que as experiências radicais explicitam. Dou um exemplo simples: o espectador como editor. Não é preciso estar em um espaço que misture atores e espectadores para que a edição de um espetáculo de teatro seja feita pelo espectador e não por uma câmera que escolhe os planos, os focos, que conduz a visão e a leitura. Mas um espaço cênico, que mistura atores e espectadores, explicita essa virtude. Flávio Graff, de cujo depoimento tiro esse exemplo, é sábio ao dizer que para que o espectador aproveite esta (e outras) virtudes do teatro é preciso estar predisposto a se atirar no abismo. Outra questão curiosa é a do processo de criação que desenvolvem diretor e cenógrafo, da parceria entre eles. Vejo, algumas vezes, diretores assinarem a cenografia ao lado de seus cenógrafos. Imagino que para muitos diretores é difícil engolir a estreiteza de críticas que supõem que um cenário determinou a encenação, quando quase sempre é a encenação que determina a cenografia. Nós, os diretores de teatro, nos acostumamos com a ausência de rosto com que nos apresentamos na festa do teatro. O mal é quando alguns ditos especialistas também não vêem o nosso rosto. Deve vir daí essa vontade de alguns encenadores 2

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de assinar junto com o cenógrafo a concepção do cenário. Não precisa, a carteira de identidade do diretor é das antigas, não tem o retrato 3x4. Nosso rosto é legião. Volta a rima pobre, volta o prologuista da revista. Portanto, muito pano pras mangas nesta matéria que dá seguimento a uma das linhas editoriais da nossa revista. Já rolou um número sobre Teatro e Pensamento, outro sobre Teatro e Cinema e agora é a vez de Teatro e Artes Plásticas. Para gravar no peito e na cabeça do leitor, como o teatro grava no peito e na cabeça do espectador, ali estão recursos semelhantes: umas imagens e uma lembrança. Umas imagens: as belas fotos, que comprovam a qualidade dos cenários citados na matéria. Uma lembrança: ao lado da atenção que é dada aqui a alguns artistas dessa excelente geração de encenadores e cenógrafos, o destaque para dois mestres, os queridos Flávio Império e Luis Carlos Ripper (saudade!), fala um pouco da rica história da cenografia no Brasil. Que revista é esta? É aquela que olha para as antigas companhias e para os novos grupos. Tomando como tema a presença da Marquesa de Santos no teatro brasileiro, Paulo Rezzutti faz uma viagem por companhias e elencos, começando com a fundamental companhia Dulcina e Odilon, de excelentes atrizes e atores que marcaram a cena brasileira, Manuel Pera, Suzana Negri... Depois é a vez do jovem grupo paulista Hiato, a história avançando. Que revista é esta? O Ensaio deste número fotografa peças preciosas da coleção de programas de teatro do crítico Macksen Luiz. Na história do livro impresso, que estaria chegando ao fim, segundo alguns, esses opúsculos (argh), esses livrinhos ainda não mereceram um estudo à altura da importância deles. Enquanto isso, colecionadores, como Macksen, vão mantendo e ampliando suas maxi-mini-bibliotecas, ou simplesmente suas bibliotecas, os “programas” merecem o nome. Que revista é esta? O mestre e o que se espelha nele continuam conversando nessas páginas especiais que a gente vê por aqui. O mestre Pedro Paulo Rangel e o jovem ator Pedro Neschling. Deixei por último a dona da casa, Chiquinha Gonzaga. Para dizer que esta é a revista dela? A SBAT guardou por cerca de 70 anos, a partir de 1935, o acervo de Chiquinha. Desde aquela data até hoje o acervo passou por esquecimentos e lembranças. Um momento luminoso foi quando Edinha Diniz o descobriu, organizou, cuidou dele, o acarinhou, daí tirou dados para escrever a decisiva biografia de Chiquinha. E ela mesma promoveu, finalmente, o encontro definitivo entre o acervo de Chiquinha Gonzaga e o Instituto Moreira Salles, onde ele pode ser restaurado, classificado, mantido com todas as atenções e cavalheirismos e, finalmente, divulgado. Só faltavam os pianistas. A história desse capítulo final – perdão, dessa overture para a grande opera – está aqui, mostrando o encontro entre esse acervo e os pianistas-pesquisadores Alexandre Dias e Wandrei Braga. Que revista é esta? Esta. Aderbal Freire-Filho

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T E A T R O

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A R T E S

P L Á S T I C A S

Obra aberta ao

público/ Diretores e cenógrafos trabalham em parceria, promovendo a fusão entre procedimentos do teatro e das artes plásticas em encenações que valorizam a autoria do espectador Encenações teatrais que propõem um diálogo com as artes plásticas parecem despontar com frequência cada vez maior. Diversas montagens vêm investindo na desestabilização do lugar do público que, afastado de sua posição tradicionalmente passiva, protegida, é convidado a interagir com o que assiste de maneira mais direta. O espectador fica livre para transitar pelo espaço, como um visitante diante de uma exposição, e realizar a sua montagem daquilo que apreende, do que escolhe diante de um panorama de ações concomitantes. Ele complementa a obra como coautor.

Daniel Schenker

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Algumas propostas cenográficas surgem como instalações que determinam de maneira contundente os rumos da criação. Incluem muitas vezes o espectador dentro do espaço cênico, gerando uma espécie de suspensão que o leva a refletir sobre o seu lugar no acontecimento teatral. Ocasionalmente, essas mesmas cenografias sobrevivem aos espetáculos, podendo ser visitadas – e, por conseguinte, interpretadas – em separado, fora dos horários de apresentação. Cabe perguntar: de onde origina a criação cenográfica? Será que o texto (caso, claro, se trate da montagem de um texto) permanece como base de trabalho, mesmo depois de perder o seu status de elemento principal do fazer teatral? O autor foi destronado, especialmente a partir do advento do encenador, ainda na segunda metade do século XIX. Não são poucos os cenógrafos que afirmam a importância do texto como ponto de partida, o que não deve ser entendido, porém,


/visitante como uma postura necessariamente subserviente em relação ao plano verbal. Na tentativa de “decifrar” a interface entre teatro e artes plásticas, essas questões (e tantas outras) serão esmiuçadas por encenadores e cenógrafos em plena atividade no panorama atual.

Os diretores e a geografia da cena Diretor considerado barroco, dada a opulência de suas criações cenográficas, repletas de elementos que remetem à cultura popular de Minas Gerais, Gabriel Villela não é partidário do excesso arbitrário, mas assume caminhar na contramão de uma estética que renuncia aos recursos cênicos imperante numa parcela da produção contemporânea. “Não me conformo com experiências que abdicam da cenografia, da iluminação, da indumentária, em favor do minimalismo, porque todos esses elementos estão ligados a uma evolução histórica. Não dá para

entrar em cena com roupa de casa. Não depois da Renascença”, disse Villela, evocando o início do século XVI, quando o mundo se libertou dos grilhões da Idade Média, passou a girar em torno do indivíduo, consciente de si mesmo, assistiu à emergência da classe média e do protestantismo. Um período efervescente, marcado pelo surgimento de autores como W illiam Shakespeare. “O período da pós-Renascença assimila novamente as dores da alma e a falta de respostas que jogam o homem contemporâneo num mundo de angústias. É o Barroco. Depois, o Classicismo abafou Shakespeare. Se não fossem os românticos alemães, não teríamos esse autor”, ressaltou Gabriel Villela, trazendo à tona movimentos dos séculos XVII e XVIII. Não por acaso, Villela passeia pela história do teatro. Já encenou Shakespeare (Romeu e Julieta, Ricardo III), Calderón de la Barca (A vida é sonho), Johan Wolfgang Von Goethe (Fausto Zero), Friedrich Schiller (Mary

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Stuart), Fernando Arrabal (Torre de Babel) e Albert Camus (Calígula). Entre os autores brasileiros, Arthur Azevedo (O mambembe), Nelson Rodrigues (Vestido de noiva, A falecida), Carlos Alberto Soffredini (Vem buscar-me que ainda sou teu) e Alcides Nogueira (Ventania, A ponte e a Água de piscina). No momento, encena Eurípedes (Hécuba). São evidências mais que suficientes da importância do texto na carreira de um diretor celebrado como esteta. “Fui aluno de Sábato Magaldi, Jacó Guinsburg, Celia Barretini, Renata Pallottini, profissionais que valorizam o texto. Estudei as vanguardas e c o n t e m p l e i - a s à l u z d o s clássicos gregos. Busquei a conciliação entre verbo clássico e texto contemporâneo, quase sempre lidando com antíteses fortes”, lembrou Villela, que, em breve, encenará mais uma peça de Shakespeare, Macbeth, e uma de Pirandello, Os gigantes da montanha, retomando a parceria com o Grupo Galpão, que completará 30 anos.

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FOTOS: JOÃO CALDAS

Crônica da casa assassinada

Nos últimos tempos, transitou entre encenações marcadas por assinaturas estéticas contidas (Salmo 91) e exuberantes (Crônica da casa assassinada). A primeira partiu do livro de Drauzio Varella, composto de relatos referentes ao massacre do Carandiru. “Tentei ser fiel ao acontecido, uma chaga não coagulada em São Paulo. Na verdade, trata de chacinas que acontecem no mundo inteiro. Foi o meu espetáculo mais sóbrio”, afirmou. A segunda também nasceu de matriz literária: o volumoso livro homônimo de Lúcio Cardoso, centrado na desagregação de um núcleo familiar mineiro. Em cena, a imponente reprodução da fachada da igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto. Ambos foram adaptados por

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Dib Carneiro Neto. Outras soluções cenográficas sobreviveram à passagem dos anos, como a mesa de sinuca de A falecida e a veraneio de Romeu e Julieta, sobre a qual a encenação foi estruturada. “O Grupo Galpão comprou um carro para mambembar. Vi veraneio escrito no carro, lembrei de Verona. Procurei, nesse trabalho, dialogar com os artistas itinerantes que frequentavam as feiras”, contou. Contudo, onde Gabriel Villela mais busca inspiração é em sua memória afetiva. “Conheci, quando garoto, o circo-teatro no seu instante de agonia no país. As companhias brasileiras compravam os restos das europeias, principalmente as francesas que passavam pelo Rio de Janeiro e enveredavam se apresentando pelo interior do Brasil. Muitos circos nasceram em São Lourenço, em Caxambu, na região do circuito das águas”, relembrou, trazendo à tona a principal influência da montagem de Vem buscar-me que ainda sou teu. O carinho por um Brasil interiorano,

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marcadamente mineiro, se impõe em suas cenografias. “As artes plásticas no Brasil tiveram origem com Aleijadinho e Mestre Ataíde. Fomos alfabetizados por esses poetas sacros. Não há uma casa que não tenha o seu oratório”, acrescentou Villela, que estudou estética e História da Arte.

Bia Lessa e sua proposta cenográfica A cenografia também é um capítulo à parte nos espetáculos de Bia Lessa, que, apesar de não se considerar uma artista plástica, sempre priorizou o pensamento em relação à espacialidade. Segundo ela, suas montagens não trazem propriamente uma proposta cenográfica, mas sim geográfica. Não procura uma ambientação para o texto escolhido. Não estabelece uma relação calcada na reiteração ou na ilustração das obras sobre as quais se debruça. Cartas portuguesas, de Mariana Alcoforado, por exemplo, foi ambientada numa floresta “instalada” em cima do palco do Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil. “Era um trabalho que falava sobre o estado bruto do amor. Onde ambientar? Na natureza, que é o espaço da liberdade. Se pusesse dentro de um convento estaria simplesmente criando fatos para a história, fornecendo uma justificativa”, explicou.


Em sua versão de Medeia, retirou parte das cadeiras do Teatro Dulcina e cobriu o chão de terra, levando o espectador a ter a sensação de caminhar por um espaço bombardeado, em ruínas. Portanto, bem mais que uma concepção de cenário, Bia Lessa lança propostas acerca do espaço. “Em Exercício nº 1, quis revelar o ar, o que está em torno das pessoas. Por isso, o papel picado que caía durante todo o tempo. Em Formas breves , trabalhei a questão do universo e do indivíduo. Abrimos um espaço gigante e usamos uma pequena parte”, lembrou. Aos poucos, as pesquisas de Bia Lessa levaram-na a migrar para outras manifestações artísticas – em especial, as artes plásticas, a ópera e o cinema. “Talvez olhar para o espaço tenha me feito começar a pensar sobre ele sem o elemento humano. Há conteúdos que você discute dentro de uma instalação”. Um exemplo é a exposição que fez a partir de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. “O belo do sertão de Rosa reside no fato de se tratar de um mundo que construímos dentro de nós. Ele, na verdade, não existe. Não tem sentido, portanto, buscar uma forma humana. Então, fiz uma exposição só com palavras. Foi difícil. Diziam que ninguém costuma ler textos em exposições”, afirmou Bia, atualmente envolvida com o projeto do Museu do Frevo, no Recife.

“As artes plásticas no Brasil tiveram origem com Aleijadinho e Mestre Ataíde. Fomos alfabetizados por esses poetas sacros. Não há uma casa que não tenha o seu oratório”

As experiências com óperas também foram marcantes. “Na primeira que dirigi, Soror Angélica (de Giaccomo Puccini), trabalhei com Paulo Mendes da Rocha, pensando num espaço que modificasse o ator, o espectador e a história. Na última, O trovador (de Giuseppe Verdi), a parte referente à nobreza tinha uma espacialidade vertical; já a dos ciganos ocupava todo o palco. Foi um trabalho que me remeteu a Orlando, cuja casa era o céu inteiro quando fugia para viver com os ciganos. Enquanto estamos interessados em acumular, os ciganos querem ampliar”, explicou a diretora, citando a adaptação de Sérgio Sant’Anna para o original de Virginia Woolf. Bia Lessa não busca imprimir interpretações fechadas. Ao contrário, chama atenção para as diversas possibilidades de relação que o espectador pode travar com a obra para além da transmissão de um determinado enredo. “Antunes Filho me levou para ver A classe morta, de Tadeusz Kantor. Não entendia nada e chorava copiosamente. Não é necessário que se compreenda, mas que se receba”, assegurou.

Gabriel Villela

Os lugares da arte O trabalho dos irmãos Adriano e Fernando Guimarães, de Brasília, não pode ser reduzido ao entendimento convencional. Destaca-se, isto

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Killing Maria

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“Acho que depois das décadas de 1960 e 70 ficou cada vez mais difícil definir os lugares da arte” Adriano Guimarães

sim, pela fusão de procedimentos de manifestações artísticas. É como se atuassem entre as artes, na distância de eventuais filiações. Ou como se articulassem as gramáticas de todas as manifestações, enveredando, nesse sentido, por uma arte do acúmulo. “Acho que depois das décadas de 1960 e 70 ficou cada vez mais difícil definir os lugares da arte”, disse Adriano, mencionando o período marcado pela expansão da vertente da performance. Seja como for, a interface entre teatro e artes

THIAGO SABINO

Respiração mais

plásticas está especialmente presente nos resultados apresentados. “Usamos alguns dispositivos das artes visuais. As coisas chegaram um pouco antes nesse setor, no que se refere à entrada da vida, do cotidiano. Depois migraram para o teatro, que é uma manifestação ainda ligada à tradição”, opinou Adriano, acerca do teatro que prioriza a fidelidade convencional ao texto como princípio e fim de tudo. Mesmo assim, ambos mantêm forte ligação com a dramaturgia, em especial com a obra de Samuel Beckett. “Nós nos debruçamos sobre as peças curtas, nas quais o texto é tão importante quanto a luz”, explicou Adriano. Ele destacou a inegável perda de hierarquia do texto verbal, que, para alguns encenadores, passou a ser considerado um entre tantos outros elementos que constituem o espetáculo, não figurando mais como a única porta de acesso do espectador aos “significados” lançados no trabalho. “Em Beckett, o som da palavra, como a luz, incide

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LENISE PINHEIRO

Ato sem palavras


sobre o personagem. Criamos a partir de espaços limitados e descobrimos que há infinitas possibilidades de atuação. Parece uma ampliação do pequeno, do detalhe. É a chance de perceber que há um mundo dentro da casca de noz”, acrescentou Adriano, que, ao lado do irmão, também realizou apropriações de obras de Shakespeare e Nelson Rodrigues.

Arte no palco e nas telas A disposição para realizar operações sobre os textos e a conexão com as artes plásticas atravessam a trajetória de Celina Sodré. Logo no início de sua companhia, Studio Stanislavski, a diretora assinou Alma de Kokoschka, encenação centrada na intrincada relação entre o pintor e escritor Oskar Kokoschka e a musa Alma Mahler. Celina escreveu um texto sobre o vínculo entre ambos: quando Alma rompe com Kokoschka, ele fica desesperado. Encomenda uma boneca em tamanho natural, com as exatas dimensões de Alma. Começa a frequentar a sociedade com a boneca até que, ao se embriagar numa festa, corta a cabeça dela e joga na rua. “Nas apresentações, Isabel Sodré ficava em cena pintando telas que aludiam aos traços de Kokoschka. Depois da temporada fizemos uma exposição com todas as telas. Miguel Lunardi (que

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Ispirituincarnado

interpretava Kokoshka) pintava o seu corpo e o de Sílvia Paselo (que fazia Alma e a boneca)”, contou Celina. Nesse momento, Celina Sodré volta a dirigir uma montagem centrada na vida de um artista: Farnese de Andrade. “O próprio artista plástico é personagem central, como Kokoshka. A estrutura cenográfica tem assumida inspiração na artista plástica Louise Bourgeois”, disse a diretora sobre o monólogo com Vandré Silveira, que chegará aos palcos em 2012. Entre Alma de Kokoschka e Farnese de Andrade, as artes plásticas estiveram presentes em diversos trabalhos. “Em Ophelia by Hamlet, trabalhei sobre quadro que está na Tate Galery, em que Ofélia aparece morta, boiando. Em São Hamlet, parti de um quadro medieval, em que um homem era dissecado vivo. O espetáculo começava com a projeção do slide do quadro. Logo após, havia a reprodução do quadro na cena. A ideia central era promover uma dissecação de Hamlet”, acrescentou Celina,

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que apresentou a montagem na Sala dos Arqueiros, no Paço Imperial. A diretora voltou a trabalhar em outro espaço destinado às artes plásticas – o Museu Hélio Oiticica – na encenação de Ilha desconhecida, baseada no conto de José Saramago. “O personagem tinha slides de mulheres nuas deitadas, que, num dado momento, eram projetados na parede e sobre ele. Em outra cena, uma personagem abria uma janela e apareciam pintadas as nuvens de René Magritte. Chegamos a Magritte a partir da natureza do texto de Saramago, próximo do realismo mágico, do conto de fadas”, afirmou Celina, que voltará a fazer referência a Magritte (e a Chagal) em Guerra e paz, seu próximo projeto, baseado na obra monumental de Liev Tolstói. Nos jardins do Museu da República, Celina fez CosmoDamião – Um só coração, em que partiu de um quadro de Fra Angelico sobre os santos gêmeos. Em Cinema Karamazov, espetáculo escorado em Os irmãos Karamazov, de F. Dostoievski,

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

Alma de Kokoschka

O estrangeiro, de Albert Camus, em que Guilherme atuava –, a influência de Hélio Oiticica. “Desde o início dos estudos preliminares para RockAntygona busquei algum movimento artístico que me inspirasse na encenação. Precisava de algo contundente na história das artes no Brasil

evocou a iconografia russa clássica. E, entre as montagens que realizou na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), buscou inspiração em Van Gogh, num trabalho em que cada aluno/ator fazia o personagem de um dos quadros do pintor; e em Waltércio Caldas, a partir de uma proposta na qual o espectador caminhava por uma sala, como que se deparando com diversas obras em movimento.

e me senti totalmente envolvido pelo neoconcretismo. Resolvi, então, homenagear Hélio Oiticica. Alguém que trouxe um sentimento e pensamento libertário, revolucionário, e uma nova ‘cara’ para o conceito das artes visuais em nosso país. Precisava disso para dialogar com o rock da montagem”, explica. Já em Laranja azul , de Joe Penhall, concebeu, no contato com o cenógrafo José Dias, uma instalação. “A minha intenção foi jogar o espectador dentro do hospital psiquiátrico, onde os personagens estão inseridos, instigando-o a tomar uma posição frente às questões

Artista plástico, com experiência acumulada nas aulas de pintura e desenho no Parque Lage, Guilherme Leme é norteado com frequência por sua formação nos espetáculos que dirige. Em RockAntygona, destacou, na parceria com a cenógrafa Aurora dos Campos – que também assinou os cenários de outras montagens de Guilherme, como A forma das coisas, de Neil Labute, e Shirley Valentine, de Willy Russel, além de

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Farnese de Andrade Movimento, fotografia e moda


FOTOS: DIVULGAÇÃO

apresentadas pela peça”, disse. Ao entrar no espaço, cada espectador recebia um jaleco branco, cor imperante em todo o cenário, que buscava reproduzir uma atmosfera asséptica, hospitalar. “Uma vez dentro do cenário, com figurino apropriado à encenação, não há como alguém ficar numa atitude passiva perante o espetáculo”, garantiu Guilherme Leme, realçando a importância da inclusão do público, que ganhava o papel de espectador de uma aula de medicina dentro do espaço cênico. E as artes plásticas continuam determinantes nos planos de Guilherme. “Estou envolvido

com Gasolina, projeto que está sendo pensado tanto para o cinema quanto para o teatro”, revelou ao comentar a adaptação do romance de Júlio Menezes. Diretor da Cia. Dragão Voador, Joelson Gusson destacou a relevância das artes plásticas no teatro. Ocasionalmente, deixa-se influenciar por uma obra plástica. “Em Manifesto Ciborgue, construí a cena a partir de uma imagem do fotógrafo de guerra francês Luc Delahaye, na qual se veem três irmãos diante da morte do pai num hospital. Eu copiei a disposição espacial da cena, os vetores de força da imagem. Medi e montei a minha cena com uma mesa/maca e três praticáveis de exposição. O resultado é algo entre uma sala de cirurgia e uma galeria de arte, ambos ambientes assépticos, mas sem um sentido fechado ou conotativo”, explicou. Joelson ressalta a importância da interface entre teatro e artes plásticas, especialmente no que diz respeito ao deslocamento do público de uma apreciação passiva. “Há algo ali a ser preenchido constantemente pelo espectador, assim como nas artes plásticas contemporâneas: jamais a obra se fecha sobre um sentido único”. Manifesto Ciborgue não foi o único trabalho em que Joelson se deixou contaminar pelas artes visuais.

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CosmoDamião – Um só coração

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Joelson Gusson

FOTOS: GUGA MELGAR

Laranja azul

O estrangeiro

“Quando trabalhava com Gerald (Thomas), sugeri partir de uma série de fotografias da dupla francesa Pierre e Gilles, e essa referência virou um conceito estético. Para o meu novo espetáculo, América, que será baseado em textos de Giorgio Agamben sobre o consumismo desenfreado, pretendo dialogar com as obras do tcheco Jan Mancuska, um artista visual altamente minimalista e econômico em termos estéticos, justapondo com os excessos da pop art americana”, acrescentou Joelson, mencionando a última parte da Trilogia da Matéria, formada por Manifesto Ciborgue e Paisagem nua (centrado nas interfaces entre teatro, fotografia e moda). Ao mesmo tempo que lida com a interseção entre as artes, Joelson Gusson traz à tona o risco de se incorrer em reducionismos quando se procura definir características específicas para cada uma delas. “Quando a proposição parte de um hibridismo entre as artes, isto já implica que cada uma delas terá que ceder. É claro que do ponto de vista do fazer artístico nenhuma arte cede nada à outra simplesmente porque não existe o a priori, ou seja, não existe uma definição prévia do que é teatro, dança ou artes plásticas. As noções que temos são constru-

DIEGO PISANTE

"...não existe uma definição prévia do que é teatro, dança ou artes plásticas"

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ções de sentido que foram sendo separadas por campos e nomenclaturas, materiais diversos e modos de construção. Pode-se dizer que o hibridismo reconstrói ambas as artes, pois cada uma delas acaba por perder esses referenciais definidores. Quando decido que os espectadores vão sentar-se no chão, dos dois lados de uma passarela de moda, e que nela não acontecerão cenas que impliquem dramatização, eu já quebrei uma série de pré-conceitos estéticos tanto do teatro como das artes visuais”, afirmou Joelson, sobre Paisagem nua. “O espectador que se pretende a um lugar de passividade, normalmente no escuro de uma plateia, terá que lidar com o fato de também fazer parte da cena”, completa. O texto verbal não é o único e nem o mais determinante elemento. Joelson defende a ideia de cena como fusão de todos os componentes. “Para mim, a dramaturgia não tem nada a ver com um texto escrito. Acontece através de ações,


FOTOS: DIVULGAÇÃO

da luz, da música e de todos os recursos de que o teatro dispõe. Quando vemos uma escultura numa exposição, não nos damos conta de que a altura do cubo onde está colocada influi enormemente na percepção do espectador, o mesmo podendo ser dito a respeito da luz, do som, do tamanho da sala. Pensar todos esses elementos ao mesmo tempo é o que pode transformar uma peça em algo maior, além das instâncias de representação”, acrescentou Joelson, destacando certa equivalência entre o conceito de texto e o de cena. Alberto Renault, de certo modo, sintetizou o texto num elemento cenográfico em Dois irmãos, de Fausto Paravidino. O elemento – uma grande mesa – sobreviveu, inclusive, para além da encenação. “A mesa ficou exposta fora das sessões do espetáculo. Os que apenas a viram desvinculada da montagem poderiam pensar como era a encenação”, arriscou Renault, que mostrou Dois irmãos na Galeria de Arte

Cândido Mendes. “Estar numa galeria faz da obra objeto de arte? Não tenho resposta”, disse. Vale lembrar que outros trabalhos também vêm estreando em galerias, caso de Ato de comunhão, de Lautaro Vilo, performance de Gilberto Gawronski. A mesa de Dois Irmãos foi utilizada em seu sentido literal e em outros tantos adquiridos no decorrer da apresentação. “No teatro, o objeto não precisa ficar circunscrito à sua função mais evidente. Aprendemos com (Marcel) Duchamp a nos libertar do sentido literal dos objetos. O legal é conseguir ver uma fonte, mesmo não deixando de enxergar ali um mictório”, ressaltou Alberto Renault, citando a obra de Duchamp, que inverteu um mictório e o chamou de Fonte. “Não tive o intuito de fazer as pessoas esquecerem que estavam diante de uma mesa dentro de uma galeria. Mas a mesa também é um labirinto, uma cozinha, um banheiro, um apartamento inteiro. Com um copo d’água podemos falar sobre o mar”, acrescentou.

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

Na solidão dos campos de algodão

Os cenógrafos e a independência da criação O elo entre teatro e artes plásticas costuma ser traçado quando ocorre uma parceria entre diretores e cenógrafos. Não por acaso, há vínculos entre profissionais de uma área e de outra, perpetuados ao longo do tempo. José Dias tem o costume de construir maquetes de todas as suas cenografias e conversar, a partir delas, com os encenadores. “A maquete é a prova dos nove”, garantiu. Como Alberto Renault,

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Dias concebeu cenografias que transcenderam os espetáculos. Um exemplo é a já citada montagem de Laranja azul, de Guilherme Leme. Outro, também recente, pode ser encontrado em Estilhaços, texto e direção de Eduardo Wotzik, apresentado no Museu do Universo. “Quando não tinha apresentação, a cenografia ficava lá, como uma grande instalação, exposta juntamente com dois textos, um meu e outro de Wotzik. Ela sobrevivia ao espetáculo”, comentou Dias sobre a montagem na qual os espectadores sentavam-se em pequenos bancos iluminados, enquanto os atores transitavam entre eles. Não havia, portanto, separação entre espaço da cena e espaço da plateia. “Cabe aproximar o público, trazê-lo para dentro da cena”. A noção de cenografia como escultura atravessa o trabalho de José Dias. “Em Lima Barreto ao terceiro dia, a cenografia era formada por cabeceiras de camas de alturas variadas. Atrás, havia oratórios de São Jorge. Nas casas de subúrbio de antigamente eles eram muito presentes”, afirmou sobre a cenografia que projetou para a montagem de Aderbal Freire-Filho do texto de Luiz Alberto de Abreu. Dias citou sua criação para Os coveiros (rebatizada de Abelardo e Berilo), peça de Bosco Brasil, encenada por Ricardo


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Estilhaços

Kosovski. “A cenografia era uma escultura com formas interligadas – urnas com tamanhos e alturas diferentes. Ficavam sob um piso, meio soltas no espaço, dando sensação de leveza”, explicou. Em Bispo Jesus do Rosário, criação de Moacyr Góes para o texto de Clara Góes, José Dias deixou-se influenciar pelas obras do artista. “Minha concepção foi toda baseada no Bispo. Coloquei uma parte da produção dele em cena. Bispo criou, pensando que cada elemento tinha uma função”, relembrou Dias acerca do vínculo com o diretor para quem assinou cenografias de destaque, como a de A trágica história do Dr. Fausto, de Christopher Marlowe, e Epifanias, a partir de O sonho, de August Strindberg. Mas, apesar do impacto de suas criações, José Dias se coloca como um defensor da funcionalidade da cenografia. “Deve servir ao autor, ao ator, ao encenador. Não viso ao belo. Respondo graficamente à proposta do diretor. Imagino todo o espaço, tiro o que é supérfluo e chego a uma síntese que define tudo. Teatro é palavra. Não adianta o grande aparato”. Outro cenógrafo experiente, Fernando Mello da Costa aposta na possibilidade de a criação cenográfica sobreviver ao espetáculo. “Nas minhas cenografias, desenhava os objetos. Ia atrás da dramaturgia de

cada um. Todo mundo ficava com vontade de pegá-los depois da encenação. Comecei a organizar um livro sobre o estatuto dos objetos que restam (intitulado O objeto dramático, o objeto do drama, o drama do objeto). O objeto já serviu à cenografia e a continuidade dele depende, claro, do interesse do espectador”, disse Fernando, que desenvolveu essa pesquisa em sua parceria com Bia Lessa. “Chegamos a pensar num espetáculo que contasse a história por meio dos objetos. Não aconteceu. Mas em Orlando, os objetos tinham uma trajetória. Não era uma questão de localizar em determinadas épocas ou de investir numa cronologia. De qualquer modo, dava para perceber a evolução deles dentro do espetáculo”, afirmou, ao comentar sua parceria com a diretora, que resultou em trabalhos como Ensaio nº 3 – Ideias e repetições – Um musical de gestos, Ensaio nº 4 – Os possessos, Exercício nº 1, Cartas portuguesas e Viagem ao centro da Terra. Fernando firmou parceria com outros encenadores, como Aderbal Freire-Filho, Jefferson Miranda e Moacir Chaves. “Aderbal usa absolutamente tudo o que está em cena. Os objetos adquirem as mais variadas possibilidades de sentido”, disse sobre Aderbal, com quem trabalhou em O homem que viu o disco

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“Quando não tinha apresentação, a cenografia ficava lá, como uma grande instalação, exposta (...) Ela sobrevivia ao espetáculo” José Dias

voador, Dilúvio em tempos de seca, As centenárias, Hamlet, O púcaro búlgaro, Moby Dick e Na selva das cidades. “Nos espetáculos que fiz com Jefferson Miranda, nenhum objeto foi comprado pronto”, comentou, trazendo à tona Mann na praia, Minha alma é imortal, 7x 2 = y e A noite de todas as ceias. “Já Moacir Chaves prioriza a interpretação de texto”, comparou Fernando Mello da Costa, sem esquecer a importância de materiais como a argila em Inutilezas, concebido a partir da obra

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de Manoel de Barros sobre o diretor com quem fez ainda Bugiaria, Sermão da Quarta-Feira de Cinzas, A resistível ascensão de Arturo Ui e Viver!. Além da preocupação com a feitura de cada objeto, Fernando gosta de trabalhar com sucata, ferro velho. “Todos os desenhos do mundo estão ali”, assegurou. As gangorras, principais elementos da instalação cenográfica de Bia Junqueira para Na solidão dos campos de algodão, montagem de Caco Ciocler, também possuem um impacto próprio, ainda que tenham sido concebidas com base em um estudo minucioso da peça de Bernard-Marie Koltès. “É um autor que desenvolveu e trabalhou um universo específico em sua dramaturgia, a exemplo das tensões entre horizontalidade e verticalidade e da importância do não lugar, de um espaço/tempo incomum. A dialética do embate verbal – que estabelece um espaço constantemente recriado e transformado pela necessidade de argumentação, de conquista – e a solidão são valorizadas pelas gangorras”, explicou Bia Junqueira, que trabalhou na França ao lado de Patrice Chéreau, diretor que encenou vários textos

de Koltès. A partir da escolha das gangorras, ela se viu diante de uma série de desafios. “Era preciso compor uma partitura que oferecesse possibilidades variadas à direção e às ações dos atores. Pensamos, então, em instalar cinco gangorras como módulos independentes ligados por um eixo com um sistema que permitisse a cada uma parar em diversas posições e não simplesmente nos extremos, como uma gangorra normal. O ponto de equilíbrio, onde as cinco se transformam num palco totalmente horizontal, é no centro”. O público era abrigado em contêineres que emolduravam o espaço destinado às gangorras. “A cenogra-

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fia se estendeu como uma instalação para receber a plateia, que entrava num outro espaço-tempo. Ao mesmo tempo, esse espaço interno dialogava com o local em que foi instalado, próximo ao viaduto da Perimetral, com a arquitetura ao redor e a iluminação do entorno”, explicou Bia, chamando atenção para o caráter de intervenção urbana de sua criação. A decisão de inserir a plateia dentro de contêineres decorreu de resoluções práticas (uma estrutura coberta, em caso de chuva), mas sem perder de vista o diálogo com Koltès. “Os contêineres sugerem o não lugar de Koltès, de forma a estabelecer esse espaço e trazer o público para dentro dele.


FOTOS: RENATO MANGOLIN

Os espectadores foram colocados na posição de voyeurs desse encontro, desse embate entre os personagens, sem o distanciamento imposto por uma caixa cênica. Eles estão dentro do espaço junto com os atores, vendo e sendo vistos por todos os que compactuam aquele momento”, acrescentou. Aurora dos Campos procura materializar em suas cenografias questões importantes dos textos encenados. O ponto de partida para as criações de O estrangeiro, de Albert Camus, e Quartos de Tennessee, de Tennessee Williams, foram, respectivamente, a necessidade de confinar o ator/personagem num espaço reduzido e a insatisfação dos personagens com o espaço. “Já em Otro, o tema central era discutir o outro. Usamos no cenário, pisos estampados. Havia uma estrutura de boxstruss para esticar uma tela onde passavam os vídeos e uma cozinha fake onde os atores podiam tomar café e beber água. Em Você precisa saber de mim, que assinei em parceria com Jefferson Miranda, havia o entrelaçamento de várias épocas simultâneas. Criamos dispositivos expositivos (formato de praticáveis e mesas) com mesmo padrão, para apresentar as cenas e expor os objetos que remetiam a cada época. O nosso pensamento e o resultado da criação se relacionam com as artes

plásticas”, disse Aurora, referindo-se, respectivamente, aos espetáculos do Coletivo Improviso, conduzido por Enrique Diaz e Cristina Moura, e de Jefferson Miranda. A escolha dos materiais é muito importante no trabalho de Aurora dos Campos. “Em Fragmentos, usei papel vegetal para as paredes. Gerou um efeito de profundidade difuso. Para o chão, um tecido bagunçado, lembrando um lençol gigante, e para o teto trainéis de tecido. Com essa estrutura, acabei formando um cubo branco”, explicou ao falar sobre o espetáculo dirigido por Fernanda Félix e João Paulo Cuenca a partir de Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes. Aurora também caminha na contramão da noção de cenário como embalagem. Certa qualidade de rascunho e de trabalho propositadamente inacabado podem ser ressaltados em suas criações. A cenografia de Ninguém falou que seria fácil, espetáculo de Felipe Rocha, foi concebida em sentido contrário ao de um padrão de bem-feito. “Gosto bastante desse cenário. É despojado e tem humor. Tem certa aparência de incompleto, sinalizando uma liberdade na concepção. Acho, inclusive, que é uma das tendências da cenografia contemporânea – o de trabalhos com característica de processo”, disse ela.

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Ninguém falou que seria fácil

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Cartas de amor – electropoprockoperamusical

“Como artista, me interessa criar tramas e espessuras que sejam capazes de contaminar os observadores de maneiras subterrâneas, inesperadas, inspiradoras, paradoxais, reveladoras” Flavio Graff 18

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O caráter conceitual norteia Flavio Graff, conduzido, em alguma medida, pela fusão entre teatro e artes plásticas. “É um lugar de camadas sem identidades que se aprofundam, emboladas. Não sei onde começam nem onde acabam. Caminham juntas rivalizando para, no atrito, forçar as fronteiras. E tão-somente no atrito, no entre, é possível surgir o novo espaço de expressão, impressão e percepção do que se vê ou não, do que se imagina e se pressente”, afirmou. Mas Flávio, que acumulou experiência artística ao lado do diretor Jefferson Miranda e do cenógrafo Ronald Teixeira, se revela partidário de algo maior: o amálgama entre arte e vida, instâncias consideradas indissociáveis. “Quando decidi também chamar o espetáculo Cartas de amor de Electropoprockoperamusical foi pelo simples motivo de que esse nome resume conceitualmente o projeto. As instâncias artísticas do processo criativo que desenvolvo não sofrem de uma dicotomia, quer seja na construção

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de um espaço de instalação, numa abordagem interpretativa, na elaboração de um roteiro ou condução de um espetáculo. Não penso apenas o teatro, as artes plásticas e a sua possível junção. Importa pensar a arte e a vida. Como artista, me interessa criar tramas e espessuras que sejam capazes de contaminar os observadores de maneiras subterrâneas, inesperadas, inspiradoras, paradoxais, reveladoras. Nesse caminho, tudo vira uma coisa só, mas, imediatamente, desfigura-se criando outra”, explicou. A busca por um espectador-autor é uma diretriz imperante em seu trabalho. Em O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, encenação de Jefferson Miranda, os espectadores, não por acaso, eram dispostos em meio à bela cenografia de Flávio. Em Deve haver algum sentido em mim que basta e Nu de mim mesmo, outros espetáculos de Jefferson (o segundo, com Flávio em cena), o público emoldurava o espaço onde os atores se apresentavam. Em E agora nada mais é uma coisa só, também de Jefferson Miranda, o público transitava livremente pela área de apresentação, escolhend o e m q u a i s c e n a s s e


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deter. “O espectador, como o editor, é o fazedor do filme. Há um movimento subterrâneo que está inscrito no lugar da escolha, no movimento de decidir o que será. E isto só se opera em cada um”. Flavio lembra ainda que as artes plásticas não necessariamente afastam o espectador de uma apreciação condicionada. “Há nas artes plásticas os lugares estabilizados do convencional e do protegido na relação com o espectador. O que permite uma desestabilização é uma predisposição a se atirar no abismo”, aposta. Raul Mourão despontou na seara teatral através do projeto Máquina de abraçar, texto de José

Sanchis Sinisterra. Juntamente com Malu Galli, diretora da montagem, Raul concebeu dois espaços – no primeiro, o público se deparava com obras dispostas; no segundo, acomodava-se em cadeiras giratórias inseridas entre dois palcos, nos quais se apresentavam as atrizes Mariana Lima e Marina Vianna. “A partir da leitura da peça, Malu imaginou que deveria acontecer dentro do espaço de um artista. Submeti a ela um universo visual – imagens surreais, oníricas, não propriamente descritas no texto. Quis impregnar o espetáculo com obras de alguns artistas – Chelpa Ferro, Eduardo Coimbra, Mimo Cais, Cae-

tano Gotardo (que fez os vídeos da peça) – e para isso criamos um prólogo numa sala com trabalhos deles”. Malu e Raul não pensaram em integrar as obras na cena. Valeram-se, justamente, da separação. “Não havia espaço no texto para que isto acontecesse. Era como se o cenário tivesse sido expulso, cuspido. Uma aproximação entre teatro e artes plásticas em que as duas instâncias, porém, permaneciam separadas por uma membrana. Numa sala, o silêncio e o trânsito livre pelas obras; na outra, a palavra e as cadeiras giratórias. Em ambas, o espectador ficava ativo”, disse Raul Mourão.

O espectador dentro da obra Bel Barcellos apostou na autonomia do espectador ao conceber a instalação cenográfica de Teatro dos ouvidos, texto de Valère Novarina, que marcou a volta de Ângela Leite Lopes aos palcos, sob a condução de Antonio Guedes. A artista plástica criou um labirinto dentro da galeria do Espaço Cultural Sérgio Porto. “O labirinto reforça o conceito da busca, do movimento em

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O perfeito cozinheiro das almas deste mundo


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Máquina de abraçar espiral, por meio de corredores, becos, passagens. Permite que a atriz, o público e a obra de arte dividam o mesmo espaço. E que cada espectador entre na obra, desvende seus cantos, crie seus trajetos, observe os elementos contidos nele, enquanto assiste à performance da atriz que percorre o mesmo espaço”, disse Bel Barcellos. O labirinto desponta como um espaço abstrato, devidamente apropriado pela artista plástica. “A partir de várias leituras do texto, sensações foram surgindo e tomando forma. Através de

Deve haver algum sentido em mim que basta

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conversas com Antonio Guedes, percebi que as imagens que o texto havia suscitado em mim eram comuns a ele e sintetizavam a busca do autor por uma experiência intimista, como uma viagem para dentro do corpo humano, na qual se divagava sobre as questões da linguagem. O texto não se situa em lugar algum, mas evoca um espaço onde poderiam ecoar sons, imagens, lembranças e sentidos”, descreveu. Nessa jornada, a escolha dos materiais foi uma etapa importante. “Na instalação, trabalhei com tecidos alvos, alguns transparentes, for-

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mando as paredes fluidas do labirinto e aludindo aos papéis em branco aos quais o autor tantas vezes se refere para falar da impossibilidade da linguagem como forma verdadeira de comunicação. De todos os materiais que compõem a instalação (linhas, barbantes, espelhos, pedras, madeira e as imagens dos vídeos), o principal é o tecido. São as lâminas de pano suspensas que transformam a arquitetura do espaço e que fornecem a dinâmica do cenário. Esses tecidos são um moto contínuo em minha pesquisa plástica, bem como o trabalho com grafite e com


Artistas que marcaram a cena

bordado. O azul dos fios que bordam as palavras e as figuras faz referência à cor da tinta da caneta, que é o instrumento desse autor em busca de palavras. Assim como o grafite do lápis, que expõe a fragilidade do rascunho e a transitoriedade de um traço que pode se apagar. Na verdade, o lápis tem, para mim, uma conotação de rascunho, de algo que está presente, mas pode desaparecer ou se transformar, tal qual a língua que Novarina busca renovar. E o que mais me atrai no bordado como meio de expressão é o estado meditativo a que ele (bem como todo trabalho manual) me induz e a dicotomia que surge entre a fragilidade da linha e a força expressiva das imagens bordadas”, assinalou.

A abordagem da cenografia remete, inevitavelmente, às contribuições de profissionais como

Flávio Impé-

rio (1935-1985) – homenageado, recentemente, com o lançamento do livro organizado por Renina Katz e Amélia Hamburger (Edusp) e com uma exposição no Itaú Cultural, e

Luiz Carlos Ripper (1943-1996). Império cur-

sou faculdade de arquitetura e urbanismo, onde foi aluno de Renina. Trabalhou no Teatro de Arena, em montagens como Gente como a gente, Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes, e no Teatro Oficina, em Um bonde chamado desejo, O melhor juiz: o rei, Andorra e Roda viva – esta última, lembrada até hoje pela conexão estética com o tropicalismo. Travou parceria com Fauzi Arap em Labirinto: Balanço da vida, Pano de boca e Um ponto de luz. Era conhecido por propostas cenográficas que caminhavam em sentido oposto ao ilusionismo. “Trabalhamos juntos até a morte dele”, lembra Renina Katz sobre Flávio Império, que morreu em 1985. Já Luiz Carlos Ripper foi discípulo do cineasta Nelson Pereira dos Santos na Universidade de Brasília, projeto luminoso de Darcy Ribeiro interrompido pelo regime militar. De volta ao Rio de Janeiro, Ripper “inaugurou” a função de diretor de arte em filmes de Nelson. E migrou para o teatro, assinando cenografias lendárias, como a

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de Hoje é dia de rock, de José Vicente, marco do Teatro Ipanema, no início da década de 1970.

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A marquesa de Santos e o teatro Paulo Rezzutti

Em 1824

, o imperador D. Pedro I decretou o fechamento do

Teatrinho Constitucional São Pedro, no Rio de Janeiro. Os mexericos da época revelavam o motivo: os proprietários teriam impedido que uma certa senhora entrasse. A história não guardou o nome de quem a barrou, mas de Domitila de Castro e Canto Melo, a futura Marquesa de Santos, todos já ouviram falar. E ela nunca deixaria o teatro brasileiro.

Paulo Rezzutti é autor de Titília e o Demonão. Cartas inéditas de D. Pedro I à marquesa de Santos (Geração Editorial, 2011) e autor da biografia inédita Domitila, a verdadeira história da marquesa de Santos.

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Domitila entrou para o imaginário popular devido ao seu relacionamento com D. Pedro. Conheceramse em São Paulo, em agosto de 1822, pouco antes de o jovem dissolver os laços políticos que nos uniam a Portugal. Ela, divorciada do primeiro marido; ele, casado há cinco anos com a arquiduquesa Leopoldina. A crônica da época nos revela que, na noite de 7 de setembro, após o evento no Ipiranga, a cidade vestiu-se de gala e foi saudar D. Pedro no Teatro da Ópera, no Pátio do Colégio. Houve a apresentação da peça O convidado de pedra, de Tirso de Molina, sobre o célebre amante Don Juan, imortalizado por

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Mozart na ópera Don Giovanni. Nela, Leporello, servo do sedutor, conta que seu mestre tinha, só na Espanha, “mille e tre” amantes. D. Pedro, que assinava suas cartas para Domitila como “Demonão”, ficaria tão famoso quanto Don Juan pela quantidade de amantes, reais e atribuídas. Segundo alguns relatos, ele não ficou até o final da peça. Teria saído mais cedo para se encontrar com sua Titília, com quem tinha iniciado um relacionamento em 29 de agosto de 1822. Quando Domitila foi morar no Rio de Janeiro, em 1823, a convite do já imperador D. Pedro I, o teatro ainda continuaria sendo, por muito tempo, palco de encontros entre ambos. O comerciante inglês John Armitage deixou registrado o incidente ocorrido em setembro de 1824, quando Domitila foi impedida de entrar no Teatrinho Constitucional sob a alegação de que, por ser uma


FOTOS: FUNARTE / ARQUIVO BRÍCIO DE ABREU

A Marquesa de Santos, 1938

sociedade particular, somente era permitido o comparecimento de estranhos com convites especiais, que ela não possuía. Ao saber do incidente, o imperador, presente ao evento, retirou-se. No dia 22 daquele mês, D. Pedro, amparado pela lei que punia sociedades secretas e usando do pretexto de que o grupo teatral não havia submetido seus estatutos ao governo, ordenou que fechassem o teatro. Os artistas foram despejados, e seus trajes e cenários alimentaram uma enorme fogueira. Curioso com a cena, Armitage descobriu que o incidente devia-se à “Nova Castro”, uma referência zombeteira ao romance entre D. Pedro I de Portugal e Inês de Castro, que foi rainha depois de morta. Nome também de uma peça então em moda. Durante os sete anos em que o relacionamento se desenvolveu, cheio de altos e baixos, ataques de

ciúmes e juras de amor, o Imperial Teatro São Pedro de Alcântara, onde hoje se ergue o teatro João Caetano, no centro do Rio de Janeiro, foi um dos cenários onde era possível encontrar socialmente Domitila e D. Pedro sob o mesmo teto. Ele no camarote imperial, e ela, em outro presenteado por ele. As cartas trocadas entre D. Pedro e Domitila mostram, por exemplo, que ambos eram fãs de peças: “Como tu tens estado sem ires (e por mui justo motivo) ao Teatro, e tendo nós muito apetite de assistirmos à Comédia Francesa, e podendo-o não ir eu hoje ao Teatro, e ir depois de amanhã parecer combinação entre nós (...)” 13/12/1827 Em outra mensagem, o imperador ilustra bem como se dava o flerte, não apenas com sua amante, mas na sociedade em geral, pela “linguagem das flores”. Por esse código, que os viajantes ingleses já

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“(...) Remeto-te como em sinal de paz esses lírios brancos (...). Eu muito estimarei que eles sejam por ti recebidos, conhecendo ao mesmo tempo que o amor por ti é que me compele a oferecer-tos. (...) Peço-te que pelo menos um dos lírios goze do teu calor no teatro.” Trecho da carta de D. Pedro para Domitila, datada de 21/6/1829

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haviam notado na Turquia e os franceses acabaram por disseminar pela Europa, era possível conversar sem palavras e à distância. Não só cada flor tinha um significado, como o modo de ofertar e receber eram carregados de simbolismo. “(...) Remeto-te como em sinal de paz esses lírios brancos (...). Eu muito estimarei que eles sejam por ti recebidos, conhecendo ao mesmo tempo que o amor por ti é que me compele a oferecer-tos. (...) Peço-te que pelo menos um dos lírios goze do teu calor no teatro.” 21/6/1829 No mesmo ano, D. Pedro baniria Domitila para São Paulo, grávida. Era necessário demonstrar publicamente sua regeneração moral. A dificuldade dos emissários brasileiros em conseguir uma nova esposa para D. Pedro, após a morte da imperatriz Leopoldina, em 1826, calou fundo no monarca. Ao se ver casado com uma jovem princesa

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alemã de 16 anos, Amélia de Leuchtenberg, o imperador tomou todas as providências cabíveis para se livrar da amante. De volta à provinciana São Paulo, a marquesa manteve os hábitos da corte. Adorava saraus e não perdia representações teatrais. Altiva, não se deixou abater quando um boato deu conta de que uma trupe de atores amadores, formada por estudantes da Faculdade de Direito, iria lhe fazer uma sátira. Compareceu ao teatro e a sátira não se realizou. Domitila faleceu em São Paulo, em 3 de novembro de 1867, perto de completar 70 anos. Deixou vasta descendência e uma fama tão grande e com tantos matizes que só poderia ter sido produzida por uma figura ímpar. Monteiro Lobato, em maio de 1923, durante os festejos do centenário da independência, confidenciava ao seu amigo Godofredo Rangel:


A Marquesa de Santos, 1938

“Estou com ideia dum romance histórico, Titília. Tenho de estudar o primeiro império para romancear historicamente a famosa marquesa do Pedro I. (…) A Titília titiliava. Prendeu aquele garanhão durante oito anos”. Desse romance projetado por Lobato não houve mais notícia até as pesquisas realizadas para a biografia Domitila, a verdadeira história da Marquesa de Santos. O jornal paulista Folha da Noite, edição de 21/11/1923, dá uma pista: “Uma peça de Monteiro Lobato – A Oduvaldo Viana, diretor da Companhia Abigail Maia, o ilustre escritor Monteiro Lobato acaba de fazer a entrega dos originais da peça de época A Marquesa de Santos, que vai ser posta em cena com rigorosa montagem, no início da temporada.” Infelizmente, essa peça nunca foi levada aos palcos. Não existe outra notícia a respeito dela, e até o

Átila, Dulcina e Conchita de Moraes, pai, filha e mãe em A Marquesa de Santos, Teatro Regina, 1938

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Odilon Azevedo, Manuel Pêra, Suzana Negri e Luís Espíndola em O Imperador galante, 1954

momento, nos acervos de Lobato e de Viana, nada surgiu sobre o assunto. Teria o criador do Sítio do picapau amarelo “plantado” a notícia para ver a reação do público? O interessante sobre essa história é que Oduvaldo Viana, mais tarde, representaria diversas vezes D. Pedro I, tanto em A Marquesa de Santos, de Viriato Corrêa, quanto em O imperador galante, de Raimundo Magalhães Jr. Em 4 de março de 1938, estreava em São Paulo a peça de Viriato Corrêa, que incluía três composições do maestro Heitor Villa Lobos: Gavota-choro, Valsinha brasileira e o famoso Lundu da Marquesa de Santos, que, sendo originariamente cantado por D. Pedro, hoje faz parte do repertório de sopranos. Domitila era representada pela atriz Dulcina de Moraes. Apresentada no Rio de Janeiro, em 30 de março do mesmo ano, a peça contou com os

Odilon Azevedo (marido de Dulcina) em A Marquesa de Santos

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atores Zilka Salaberry, como a imperatriz Leopoldina, Dercy Gonçalves, como uma aia na versão carioca, e Manoel Pêra, pai da atriz Marília Pêra, como Chalaça. Montada com subsídio governamental, encaixava-se na política do Estado Novo de exaltação dos heróis nacionais. Domitila foi usada para, literalmente, endeusar D. Pedro I, como bem ilustra uma de suas falas ao relembrar o 7 de setembro: “[O imperador] não parecia criatura igual às outras criaturas. O sol caíalhe em cima inteirinho e ele estava todo coberto de sol, todo dourado como figura sobrenatural. Como um deus!”. O público pôde, nessa peça, conhecer uma marquesa amorosa, ansiosa por atenção exclusiva, não pelo poder ou negociatas. Titília, pronta a realizar o maior dos sacrifícios, resolve abandonar o imperador para salvar a honra do Brasil no exterior. O amor dela serviu de mote


Odilon Azevedo e Eugênia Levy em O Imperador galante, Teatro Dulcina

para apresentarem o herói da independência pronto para o consumo popular, em grandioso cenário e riquíssimo guarda-roupa. Durante as comemorações do IV Centenário da Cidade de São Paulo, em 1954, entrou em cartaz a peça O imperador galante, que havia estreado um ano antes no Rio de Janeiro. Escrita na década de 1940, foi levada ao palco com Oduvaldo e Dulcina novamente nos papéis principais. O ator Carlos Zara estreou profissionalmente nessa montagem. O imperador galante não ficou atrás do “tom” da obra de Viriato Corrêa. Segundo o crítico Décio de Almeida Prado, ela conseguira cumprir a mis-

são de “encher o coração do público de ardor patriótico ou sentimental, e os seus olhos de assombro e encantamento pela riqueza e pompa do espetáculo, obrigatório em tais evocações do passado”. (17/3/1954) Sete anos depois, em 1961, desembarcavam no Rio de Janeiro os produtores norte-americanos Deed Meyer e Stuart Bishop, que pretendiam levar para a Broadway essa história de amor com o nome The petticoat prince. Bishop havia recebido de presente da cantora Barbara Ashley o livro Amazon throne, de Bertita Harding, publicado no Brasil sob o título de O trono do Amazonas: a história dos Braganças

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Domitila foi usada para, literalmente, endeusar D. Pedro I, como bem ilustra uma de suas falas ao relembrar o 7 de setembro: “(O imperador) não parecia criatura igual às outras criaturas. O sol caía-lhe em cima inteirinho e ele estava todo coberto de sol, todo dourado como figura sobrenatural. Como um deus!”

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Ajustes em vestido usado no espetáculo O Imperador galante

“Tentamos mostrar um homem comum e falível, suas relações humanas e as implicações políticas resultantes do caráter autoritário e da sede de poder deste imperador que preferia dissolver a Assembleia Constituinte a ter que admitir suas falhas e o cunho ditatorial de seu governo”. Osmar Rodrigues Cruz, diretor de Um grito de liberdade , de Sérgio Viotti, 1972

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no Brasil, uma grande colagem de fofocas e mexericos históricos. Entretanto, esse folhetim, que por pouco não virou outra peça da Broadway musicada por Ary Barroso em 1941, despertou o interesse dos produtores. Eles vieram fotografar e tirar as medidas do Palacete do Caminho Novo, antiga residência de Domitila no Rio de Janeiro, para convertê-lo em luxuoso cenário, que nunca saiu do papel. Não foram apenas os norteamericanos que projetaram uma peça sobre Domitila que não estreou. Diversas outras Marquesas de Santos tiveram a mesma sina. Luís Edmundo publicou a sua em 1924. Premiada pela Academia Brasileira de Letras, nunca foi montada. A obra de Luiz Carlos Barbosa Lessa teve o mesmo fim. Escrita para as comemorações dos 150 anos da Independência em 1972, também não foi levada à cena. Ainda temos o

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caso ocorrido este ano, quando, a um mês da estreia, Lírios brancos para a Marquesa, de Beth Araújo, foi subitamente cancelada com o fechamento do Museu do Primeiro Reinado. O prédio, antigo palacete da Marquesa de Santos, onde a peça seria encenada, será ocupado pelo Museu da Moda. Durante as comemorações do sesquicentenário da independência, um D. Pedro I mais humano, e ainda apaixonado pela sua Titília, surgiu na peça Um grito de liberdade, de Sérgio Viotti. A montagem tinha Antônio Fagundes como D. Pedro, Ana Maria Dias como a Imperatriz Leopoldina, e Nize Silva interpretando a Marquesa de Santos. Em 24 de outubro de 1972, estreou em São Paulo, contando também com os atores Ruthineia de Moraes, Elias Gleizer, Zezé Mota, Tony Ramos e Marcelo Picchi. O tom político da peça dialoga com o Brasil da


Odilon Azevedo caracterizado como D. Pedro IV, em O Imperador galante

época da ditadura. O diretor Osmar Rodrigues Cruz explica: “Tentamos mostrar um homem comum e falível, suas relações humanas e as implicações políticas resultantes do caráter autoritário e da sede de poder deste imperador que preferia dissolver a Assembleia Constituinte a ter que admitir suas falhas e o cunho ditatorial de seu governo”. Em 2000 colocaram Titília para cantar seu amor, através das cartas recebidas de D. Pedro I, na ópera de câmara Domitila, que estreou no Rio de Janeiro, com música e libreto do compositor carioca João Guilherme Ripper, uma soprano, acompanhada por clarineta, violoncelo e piano. Contemplada com o Prêmio Circuito Funarte de Música Clássica em 2010, foi reencenada em Porto Alegre, Joinville, Cuiabá, Campo Grande e Dourados. No papel de Domitila, a soprano Maíra Lautert. A direção musical ficou a cargo de

Cenas finais de O Imperador galante

Priscila Bomfim e a direção cênica de Luiz Kleber Queiroz. Uma das últimas peças a entrar em cartaz tendo Domitila como personagem foi escrita por Ênio Gonçalves. Pedro e Domitila estreou em 1984, tendo o autor como D. Pedro I e Taya Perez como a marquesa. A direção ficou a cargo de Mario Masetti. Com modificações finais no texto e o acréscimo de um casal de escravos que auxiliam na narrativa, teve sua última montagem profissional, dirigida pelo autor, em 2008. Será que, com esse currículo, alguma sociedade artística teria coragem de expulsar Titília de seu teatro nos dias de hoje?

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Arivederci, Alcione Araújo

Noite de natal. Na sala, Alma põe presentes num saco, enquanto Elmo escreve cartões.

tanto, que merece viver como quer o que lhe resta. Você pode ser o novo mais querido como Papai Noel.

ELMO: Nunca vou me vestir de Papai Noel. Faço o que você quiser, menos isso.

ELMO: Ser mais querido fazendo o que não gosto, nunca!

ALMA: Parece até que vai morrer se se vestir de Papai Noel por uma noite! ELMO: E morro. De vergonha! Não sou velho, gordo, bondoso, nem simpático. E não me vejo distribuindo presentes por aí. ALMA: Vovô dizia que quem sentiu a alegria de dar presente nunca esquece. ELMO: Sinto vergonha de dizer, pareço egoísta e insensível, mas não sei dar presente. ALMA: E como se sente quando recebe? ELMO: Aflito pra retribuir. Quitar logo. Mas bancar o Papai Noel, nunca! E não vou competir com o seu avô, o Papai Noel mais querido da família! ALMA: Como ele faz falta! Pena que não virá. Mas já nos alegrou

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ALMA: Ano passado a gente fugiu antes da ceia. As crianças ficaram sem Papai Noel. ELMO: Você meteu na cabeça de ver o sol nascer no mar! ALMA: Me arrependi. Juro que nunca mais elas vão passar natal sem Papai Noel. ELMO: Nunca me esqueci do avô. Saiu abatido e foi dormir triste como quem desistiu. ALMA: Foi a última vez que o vi. As crianças também. (Pausa) – Seja o Papai Noel hoje. Dê essa alegria a elas e à família. Que, aliás, está nos esperando pra ceia. ELMO: Escuta aqui: alguém visitou seu avô em Arivederci? ALMA: Não sei. Acho que não. Eu adoraria ver o vovô! Mas... ELMO: Como sabem que ele está em Arivederci?

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ALMA: A tia Lavínia disse que... ELMO: E alguém confia na tia Lavínia! Uma mulher que conversa com passarinho! ALMA: Ele sonhava com Arivederci; queria ser enterrado ao lado da mãe. (Pausa) – Veste a roupa de Papai Noel, amor. Só hoje. Vovô a guardava no armário do quartinho. ELMO: Esquece. Nunca gostei de fantasia. Não vai ser agora. ALMA: Lembra por que nos reconciliamos? Por que aceitei voltar a viver com você? ELMO: Pra eu provar que sou bom marido e bom pai. Porque não tinha tempo pra... ALMA: Jurou me amar e dedicar-se às crianças. Disse que me queria sua pra sempre. ELMO: É tudo que quero. Vocês são tudo o que tenho na vida. ALMA: Ser Papai Noel é ser bom pai e bom marido. A família está em suas mãos. ELMO: Quer dizer: vai tudo pro espaço se eu não vestir aquela coisa vermelha.


Papai Noel ALMA: Meu querido, crianças precisam acreditar em alguma coisa, aprender que, além do corpo, há o espírito! A ciência não explica tudo, o homem não sabe tudo, tem que conviver com o inexplicável. Temos que crer num deus, em bruxa, fada, duende, algum ser. Crer que a estrela cadente realiza sonhos, o destino está na palma da mão, há vida fora da terra, disco voador, Papai Noel! Existam ou não. O que importa é a fé, a crença na imaginação! Enquanto houver quem creia na bondade, na generosidade, em alguém que dá presentes, ainda há esperança. O medo de assombração me fez entender a morte. ELMO: (Pasmo) – Você... entendeu... a morte? ALMA: Entendi que devo morrer. A morte é instrutiva, o medo ensina. (Pausa) – Vá se vestir de Papai Noel, vá, meu querido. Ele sai hesitante. Ela embrulha presentes. O telefone toca, ela atende. Por onde Elmo saiu, o avô entra eufórico, roupa de Papai Noel na mão.

ALMA: (Ao avô, eufórica) Vovô! Você não morre tão cedo! (Ao fone) – Alô. AVÔ: (Abraçando-a) Que você seja muito feliz! ALMA (Ao avô): Acabei de falar em você! (Ao fone) – Alô. (Ao avô) – Você aqui! AVÔ: E as crianças, onde estão? Vim buscar minha roupa de Papai Noel! ALMA: (Ao fone) Sim. É ela. Pode falar. (Ao avô) – Com você, o natal vai ser lindo! AVÔ: (Afastando-se) Nos veremos na santa ceia. Feliz Natal! ALMA: (Desliga) Oh, Deus! (Vê o avô afastar-se. Elmo volta, vestido de Papai Noel). ELMO: Você tem razão: é preciso acreditar em alguma coisa. Vou ser o Papai Noel. ALMA: Obrigada, amor! Sabe, recebi uma ligação... De Arivederci... Vovô morreu...

AVÔ: Feliz Natal, minha querida!

FOTOS: BANCO DE IMAGENS © PHOTL.COM / STUDIO CL ART

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Hiato entre vivência e memória

Daniel Schenker

LÍGIA JARDIM

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A pesquisa autobiográfica do grupo é uma diretriz importante da companhia dirigida por Leonardo Moreira, responsável por três espetáculos bem-sucedidos Como muitas companhias, a Hiato, de São Paulo, começou por acaso. Leonardo Moreira trabalhava como ator, ganhou um edital para escrever um texto e dirigir um espetáculo, e chamou os amigos para participar. Daí nasceu Cachorro morto, que estreou em 2008. Nessa primeira empreitada, Leonardo se debruçou sobre o funcionamento do cérebro de um autista, que contrasta o talento para a matemática com a falta de habilidade para o relacionamento humano, personagem interpretado por todos os atores. “O desafio foi multiplicar uma única voz por cinco”, disse. A decisão de fundar uma companhia só foi formalizada na segunda montagem, Escuro, de 2009. Nela, Leonardo entrelaçou narrativas paralelas para abordar a inadequação e a perda da linguagem através da história de um menino míope com capacidade de ouvir segredos. “Escrevi o texto como um mapa a ser percorrido. Nessa

encenação, os espectadores tendem a se envolver menos sob a perspectiva emocional e mais sob a estrutural”, acrescentou. Na época de Escuro, Leonardo estreitou parceria com outra companhia, a Simples, na qual trabalhava a atriz Luciana Paes. Paula Picarelli se juntou ao novo coletivo, batizado de Hiato a partir de uma citação de Gilles Deleuze. “Todos os nossos espetáculos até agora falam do hiato entre o que crio e o que lembro, entre o que digo e o outro entende”, afirmou Leonardo, referindo-se também ao terceiro trabalho, O jardim. Apesar da curta trajetória, a Cia. Hiato vem se firmando com força. Foi contemplada com a Lei do Fomento, mas os integrantes preferiram não fixar uma sede. “Tememos que a sede nos ocupasse demais a ponto de deixarmos a criação um pouco de lado”, justificou Leonardo. Com O jardim, a Companhia Hiato aprofunda a pesquisa em torno

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da memória. Os personagens sinalizam o descompasso entre passado e presente, um tanto desestabilizador e marcado pela despedida de um mundo afetivo e pela incerteza do que está por vir. A reunião familiar faz com que questões até então subterrâneas venham à tona, gera momentos de catarse em relacionamentos desgastados. Todos demonstram ter se afastado com a rotina do cotidiano, o passar do tempo e, em alguns casos, a distância geográfica. Não é à toa que os personagens surgem separados, em duplas ou em trios, e confinados em espaços compartimentados. A presença dos demais – percebida pelo som das vozes que as paredes não barram o suficiente e de breves interferências em espaços privados – parece, de certa forma, indesejada. Leonardo Moreira, diretor da Hiato, não se “limitou” a escrever uma ficção. Comprometeu, de modo contundente, os atores na construção dessa ficção. “No início do processo de O jardim, os atores ficaram incumbidos de criar uma ficção a partir das suas histórias reais. Aquilo que cada um não lembrasse poderia ser preenchido com invenções ou apropriações das biografias alheias. A memória é uma criação própria, que nunca corresponde, de fato, ao que aconteceu. Há um hiato entre o que vivi e o que lembro”, observou Leonardo, chamando atenção para um detalhe: o de que

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LÍGIA JARDIM

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a lembrança inclui acréscimos e subtrações em relação à experiência pela qual se passou. Não há, nesse sentido, como escapar da ficção. “Por mais que um ator esteja interpretando uma personagem, trata-se sempre dele”, sintetiza. Em O jardim, os atores (Aline Filócomo, Edison Simão, Fernanda Stefanski, Luciana Paes, Maria Amélia Farah, Paula Picarelli e Thiago Amaral) emprestam seus nomes às personagens que despontam em cena.

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Durante os ensaios, o elenco procurou acessar a memória por meio de diferentes elementos (cartas, gravações etc.). “Até mesmo um cheiro nos permite evocar um lugar do passado”, acrescentou Leonardo Moreira. Como as lembranças, o autor/diretor investiu numa cena fragmentada, composta por retalhos que se complementam. Caixas, erguidas como paredes, dividem o palco em três gomos. Em cada um, pequenos grupos de atores apresentam uma das sequências que integram a dramaturgia de O jardim. “Desde o início, sabia que seriam núcleos simultâneos, um interferindo no outro. O silêncio de um é o texto dos outros”, explicou. No começo do espetáculo, o espectador tem acesso apenas a uma das partes/sequências, dependendo de onde estiver sentado. “Como o procedimento não é avisado, quando os espectadores são separados em três áreas tendem a rejeitar a primeira cena que veem. Gostariam de ter sentado em outro lugar. Pensam algo como ‘a grama do vizinho é melhor’”, complementou. À medida que a encenação avança, os atores transitam por outras partes do espaço até apresentarem a cada grupo de espectadores


OTÁVIO DANTAS

todas as cenas do texto. Mas não há como realizar a mesma cena de maneira igual simplesmente porque não existe repetição. Leonardo Moreira sabe que é possível fazer algo de modo muito parecido com o que se fez, mas não exatamente igual. Existe uma conexão com o próprio exercício do teatro, inevitavelmente diferente todas as noites, por mais preciso que o ator procure ser. A constatação de que o passado não volta gera uma frustração que assombra os personagens, confrontados com o desmoronamento de um mundo íntimo. Nesse sentido, O jardim é uma encenação sobre a perda, inevitável, em todo caso, mesmo quando o público assiste a um espetáculo que prioriza um único foco de ação. Afinal, as percepções tendem a ser

Cachorro morto

GUI MOHALLEM

Escuro

individualizadas. O que um espectador apreendeu não é exatamente igual ao que impressionou o outro. “Vejo a diferença, a singularidade, como norte dos três espetáculos do grupo”, resumiu Leonardo, referindo-se também a Cachorro morto e Escuro. Aos poucos, o público começa a ter acesso a cenas mostradas em outras partes do espaço, porque as paredes de caixas vão sendo retiradas. Há um elo assumido entre as questões abordadas em O jardim e numa das grandes peças de Anton Tchekhov, O jardim das cerejeiras, escrita no início do século XX. Como os personagens do autor russo, os de Leonardo Moreira parecem não se comunicar, como se estivessem em sintonias, frequências, tempos diversos. Como Tchekhov, Leonardo registra um momento de passagem, ainda que determinante, nas trajetórias dos personagens, que ultrapassam as bordas delimitadoras de início e fim

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do texto. O jardim das cerejeiras e o jardim (bem como os objetos impregnados de vivências que vão sendo retirados das caixas), da Cia. Hiato, simbolizam uma tensão entre valor afetivo e visão de mundo pragmática que se impõe com cada vez mais força. O próximo projeto da Cia. Hiato também partirá de um texto de Leonardo Moreira. “Na década de 1990 e no início dos anos 2000, contar uma história era ridículo. Sinto necessidade de resgate da narrativa. Quais histórias interessam agora?”, questionou. O foco inicial recairá sobre a relação entre irmãos. “Daremos continuidade à pesquisa autobiográfica em espaços de contemplação. Faremos seis intervenções em museus, que servirão de material bruto para a encenação”, disse Leonardo Moreira sobre o quarto espetáculo do grupo, que deverá estrear entre o final de 2012 e o início de 2013.

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Chiquinha Gonzaga: pioneirismo e versatilidade em vida e obra Marina Gadelha

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Acervo disponibiliza mais de 300 partituras da artista, desvelando a magnitude e a qualidade de sua obra em mais de 30 gêneros musicais, entre peças sacras, eruditas, valsas e fados portugueses Chiquinha Gonzaga em 1877

Há cerca de três anos, os pianistas e pesquisadores Alexandre Dias e Wandrei Braga iniciaram uma jornada que não imaginavam ser tão reveladora: decidiram reunir o máximo de partituras que conseguissem de Chiquinha Gonzaga, uma artista já aclamada como a maior personalidade feminina da história da música popular brasileira, a primeira maestrina e autora da primeira canção carnavalesca – Ô abre-alas –, mas com uma obra ainda pouco conhecida; apenas cerca de dez canções costumavam ser enumeradas pelos músicos. Os dois recorreram, então, a diversos colecionadores particulares e a bibliotecas, o que permitiu reunirem um conjunto significativo da vasta obra da compositora. Mas havia ainda as partituras presentes apenas no acervo pessoal de Chiquinha, que foi entregue à SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais) logo após sua morte, em 1935, por seu último companheiro, João Gonzaga, e mantido intacto até ser cedido sob custódia ao Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro. Quando foi selada a parceria com o IMS e firmado o patrocínio com a Natura Musical, há um ano, Alexandre e Wandrei conseguiram, então, reunir o que faltava para montar a primeira fase do Acervo Digital Chiquinha Gonzaga. “Trata-se de um material único e muito precioso”, comemora Alexandre. Os dois coordenadores do projeto sabiam que a obra da compositora era muito numerosa, mas não

Alexandre Dias e Wandrei Braga

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Capas de partituras de Chiquinha Gonzaga

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imaginavam o que encontrariam. Aliás, ninguém imaginava. “Perguntávamos para músicos e pesquisadores sobre as peças de Chiquinha e só citavam as canções mais famosas, como Atraente; seu primeiro sucesso, Ô abre-alas, a primeira marchinha de carnaval da história; e Lua branca, uma importante modinha brasileira”, contou Alexandre. Ao longo do projeto, a dupla viu que tinha um oceano pela frente a ser desbravado e para onde olhava percebia ineditismo em sua obra. Foram surgindo facetas de Chiquinha às quais os pianistas não estavam acostumados, como as músicas sacras, as peças eruditas e os fados portugueses. “Ela tem canções muito interessantes, em parceria com os mais importantes letristas de sua época, inclusive Osório Duque Estrada, autor da letra do Hino Nacional brasileiro. Também musicou poemas de Raimundo Correia, Guerra Junqueiro, Casimiro de Abreu. Tudo era inédito. Ninguém conhece essas músicas”, acrescentou. Chama a atenção a produtividade de Chiquinha, a quantidade de peças que ela escreveu. Talvez seja o compositor que mais criou em sua época. O que é extraordinário para uma mulher que vivia de música no final do século XIX e início do XX, lutando contra o preconceito da sociedade e da própria família, já que seu pai não a perdoou nem no leito de morte. “Era um escândalo ter na família uma mulher artista, separada do marido. Ela demonstrou uma força de vontade inigualável. Outra coisa que impressiona é a versatilidade, compôs mais de 30 gêneros diferentes”, exclamou Wandrei, para, em seguida, fazer um paralelo entre sua vida e obra: “Ela se serviu de todos os gêneros para compor. Não fez pouco caso de nada. Esse recorte que fizemos da obra dela é importante, pois revela uma Chiquinha completamente diferente da que conhecíamos, mas muito coerente com sua história de vida, pioneirismo, versatilidade, espírito aventureiro. Ela não tinha barreiras musicais”. Nessa primeira fase do projeto, mais de 300 partituras foram revisadas, digitalizadas e disponibilizadas gratuitamente ao público, através do site www. chiquinhagonzaga.com.br, permitindo acesso à obra de uma compositora que faz parte e é fundamental para a história da construção da identidade musical do Brasil. “Existem poucos estudos aprofundados sobre a obra de Chiquinha Gonzaga. Com este acervo, esperamos que mais acadêmicos e pesquisadores se debrucem sobre ela e que Chiquinha renasça também através das gravações”, almeja Dias. O próximo passo será incluir as cerca de 80 operetas ao acervo digitalizado e, assim, poder chamá-lo de ‘a obra completa de Chiquinha Gonzaga’. Serão necessários, porém, alguns anos de trabalho, porque cada obra para teatro pode ter de oito a 60 números musicais. E abram alas, que Chiquinha Gonzaga vai passar.


Sobre

Chiquinha Gonzaga em 1932

Chiquinha Gonzaga

Aos 11 anos, Francisca Edwiges Neves Gonzaga compôs sua primeira música, uma cantiga de Natal: Canção dos pastores. Casou-se aos 16 anos com um oficial da Marinha Mercante escolhido por seus pais. Abandonou-o poucos anos depois e foi viver com um engenheiro de estradas de ferro, de quem também logo se separou. Para sobreviver, dava aulas de piano. A convite do famoso flautista Joaquim Antônio da Silva Callado (1848-1880), passou a integrar o Choro Carioca como pianista. Tocava em festas e frequentava o ambiente artístico da época. A estreia como compositora foi em 1877, com a polca Atraente. Sua vontade de musicar para teatro levou-a a escrever partitura para um libreto de Artur Azevedo, Viagem ao Parnaso. A peça foi recusada. Outras tentativas também

fracassaram, até que em 1885 musicou a opereta de costumes A corte na roça, encenada no Teatro Príncipe Imperial. Em 1889, promoveu e regeu, no Teatro São Pedro de Alcântara, um concerto de violões, instrumento então estigmatizado. Foi uma ativa participante do movimento pela abolição da escravatura, vendendo suas partituras para angariar fundos para a Confederação Libertadora. Com o dinheiro arrecadado na venda de suas músicas comprou a alforria de José Flauta, um escravo músico. Chiquinha Gonzaga também participou da campanha republicana e de outras grandes causas sociais do seu tempo. Já era uma artista consagrada quando compôs, em 1899, a primeira marcha-rancho, Ô abre-alas, verdadeiro hino do carnaval. Na primeira década

deste século, esteve algumas vezes na Europa e fixou residência em Lisboa por três anos. De volta ao Brasil, deu uma contribuição decisiva ao teatro popular ao musicar, em 1912, a burleta de costumes cariocas Forrobodó, seu maior sucesso teatral. Em 1914, seu tango Corta-jaca foi executado pela primeira-dama do país, Nair de Teffé, em recepção oficial no Palácio do Catete, causando escândalo político. Em setembro de 1917, após anos de campanha, liderou a fundação da SBAT, sociedade pioneira na arrecadação e proteção dos direitos autorais. Aos 85 anos de idade escreveu a última partitura, Maria, com libreto de Viriato Corrêa. Chiquinha Gonzaga faleceu aos 87 anos de idade, no dia 28 de fevereiro de 1935, no Rio de Janeiro.

(trecho retirado de Chiquinha Gonzaga: uma história de vida, de Edinha Diniz)

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E N S A I O

Um crítico e sua

coleção Macksen Luiz guardou durante anos os programas dos espetáculos a que assistiu Ernesto Soto

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Macksen Luiz é um apaixonado pelo teatro. Paixão incondicional. Verdadeira e platônica, daquelas que vai ficando mais forte e se renovando à medida que o tempo passa. E para ele, um dos mais respeitados críticos teatrais do país, esta relação de respeito, admiração e constante descoberta começou há muito tempo, quando tinha apenas dez anos e foi levado pelos avós para assistir ao Diálogo das Carmelitas, de George Bernanos. A partir daí, a cortina da vida de Macksen se abriu para um mundo fascinante do qual não se afastou nunca mais. Desta primeira visita a um teatro, Macksen voltou para casa não apenas deslumbrado com o novo universo que havia descoberto, mas trouxe e guardou com todo cuidado o programa do espetáculo. Isto acabaria se

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transformando num hábito, aliás mais do que um hábito, num vício que se mantém inalterado até hoje. Ao longo de mais de 50 anos, assistindo, em média, a três ou quatro peças por semana, Macksen formou, a princípio sem planejamento e de forma espontânea, uma preciosa e única coleção que revela parte importante do processo de evolução do teatro brasileiro. Através desses programas, guardados em dois grandes arquivos de aço, ele acredita ser possível acompanhar a história social do teatro no Brasil. Macksen vê mais criatividade, informações e sofisticação gráfica nos programas dos anos 1950. Naquele tempo, os programas traziam valiosos textos do autor, diretor ou atores, explicando o sentido da peça, sua importância, influência


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ou contexto social. Textos que se transformaram hoje em importante material de pesquisa. Macksen aponta nos programas um detalhe que mostra como mudou a viabilidade financeira de uma peça ao longo do tempo. Uma parte dos programas mais antigos era dedicada a agradecimentos a pequenas empresas – móveis, roupas etc. – que haviam contribuído com a produção. Atualmente, os agradecimentos se destinam genericamente ao “apoio cultural” das estatais e grandes multinacionais. Dois projetos alimentam os sonhos de Macksen para os próximos dois anos: organizar uma exposição dos programas – não tem ideia de quantos são – e conseguir viabilizar a digitalização, para que este rico material fique permanentemente à disposição de estudantes, pesquisadores e profissionais do teatro. Por que mantém uma relação “platônica” com o teatro? Depois de 56 anos vivendo em função do teatro, Macksen explica que nunca quis ser autor, ator ou diretor. Participar do processo de criação – seja lá de que forma – jamais foi sua vontade ou fez parte de seus planos: “O teatro me proporcionou um sentimento de tolerância, desapego a preconceitos e uma pulsação do humano que não encontrei em lugar nenhum.”

Diálogo das Carmelitas, de George Bernanos. Companhia Os Artistas Unidos. Teatro Copacabana, 1955

Blog do Macksen: macksen.luiz.blogspot.com

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O rei da vela, de Oswald de Andrade, 1967

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Treze à mesa, de Gilbert Sauvajon. Companhia Teatro Brasileiro de Comédia, 1953 Espetáculo Casa de Boneca Gota d'água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, 1975

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Arena conta Zumbi, de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, 1965 Temporada de 1958 no Teatro Serrador da Companhia Eva e seus artistas, fundada em 1940 por Eva Todor Carmem com filtro, de Gerald Thomas, 1986

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A cerim么nia do adeus, de Mauro Rasi

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Romeu e Julieta, adaptação da peça de William Shakespeare, Grupo Galpão, 1992

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O Livro de Jó, Teatro da Vertigem, 1995 Trate-me Leão, Asdrúbal Trouxe o Trombone, 1977 Tia mame, de Jérome Lawrence e Robert E. Lee, Teatro Bela Vista, 1962

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O S S O S

D O

O F Í C I O

Artista da resistência Maria Luiza Franco Busse

Nome: Patrícia Muniz. Profissão: aderecista. Foi na mistura de ambivalências que a artista encontrou o caminho em que tradição e o novo ocupam o mesmo espaço, produzindo rica experiência. Em outras palavras, foi nas aulas de educação para o lar, no Colégio Paulo Afonso, interior da Bahia, assim como nas festas performáticas dos anos 1990, como a celebrada ValDemente, que Patrícia descobriu-se artesã e se revelou vocacionada para o adereço e o figurino. Resistir e reinterpretar são as marcas do trabalho de Patrícia. A resistência está na pesquisa permanente por materiais fora de cartaz, e a reinterpretação, nos muitos outros modos de utilizá-los. Para a peça Ensaio.Hamlet, por exemplo,

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as coroas foram feitas de garfinhos de souvenir encimados com pedras brasileiras. “Acabei de fazer uma coroa de rainha para Mariana Lima, musa do bloco Me beija que eu sou cineasta. É a pracinha do Baixo Gávea (onde sai o bloco) sobre lata de filme 35mm, com o bloco todo de super-heróis coloridos”. Carnaval é uma época de muitas possibilidades para essa jovem de 40 anos, formada em Interpretação pela escola de Teatro da UniRio. A passarela do samba já desfilou suas criações no enredo da Grande Rio sobre a luxúria. A comissão de frente vestiu roupas trançadas com crina de cavalo nas cores preta, branca e marrom. “Não queria penas nem estrutura de ferro, queria deixar os bailarinos altos, e pensava o seguinte: se chover não molha”, ressaltou com vivacidade. Mas no caso de Patrícia pode-se dizer que o carnaval é mais um momento de trabalho. E trabalho é o que, felizmente, não lhe falta.


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Adereços para a personagem Zenilda, de Renata Sorrah, da novela A indomada; bordado para os figurinos da turnê Infinito particular, de Marisa Monte; ponto cheio de tapeçaria para o colete de Diogo Vilela na peça Tio Vânia; mais bordados e adereços para o visual de Letícia Sabatella em Memorial do convento; cabeça de renda para Camila Pitanga no filme Noel, Feitiço da Vila; saia de rosas e fitas para Cynthia Howlett, porta-bandeira do bloco Suvaco do Cristo. Tudo isso é apenas uma parte de um longo fio de incontáveis serviços prestados à resignificação estética de materiais alternativos.

“Bordo, pinto, tinjo, envelheço e ensino. Faço aquilo que já não fazem mais porque está tudo industrializado, o que me deixa triste. Vai matando o artesão, o trabalho manual, o tempo da realização”, lamenta Patrícia. Tempo. Se existem ossos nesse ofício que, para Patrícia, é um suculento filé mignon, a desvalorização do tempo da criação é uma realidade dura. “As encomendas costumam ser feitas na última hora. Não se leva em conta que o trabalho do artesão é o universo das coisas demoradas: muito arremate, pouca cola, em cada adereço aprendo uma coisa nova”, afirmou. Para ela, soma-se a essa dificuldade o fato de não haver prêmio de teatro para adereço e, mais sério, o item nunca constar do orçamento das produções: “As pessoas acham que já vem no figurino. Confundem criação com execução. Não é o valor da mão de obra, é sim o da criação”, salientou.

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Desenho de Lula

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