Revista de Teatro SBAT n.529

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Desde 1917 em defesa do direito autoral. Reconhecida como de Utilidade Pública Federal pelo Decreto nº 4.092 de 4 de agosto de 1920.

Av. Almirante Barroso, 97 / 3º andar – Castelo Cep: 20031-005 – Rio de Janeiro/RJ – Brasil Tels: +(21) 2240.7231 / 2544.6966 Fax: +(21) 2240.7431 www.sbat.com.br CONSELHO DIRETOR

sumário 2

PRÓLOGO Aderbal Freire-Filho

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Aderbal Freire-Filho Alcione Araújo Millôr Fernandes Ziraldo Alves Pinto

O teatro como necessidade vital Ator, diretor, professor e programador, Sergio Britto, que morreu no final de 2011, aos 88 anos, dedicou sua existência ao palco Daniel Schenker

revistadeteatro@sbat.com.br bambinacult@gmail.com

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CONSELHO EDITORIAL

Porto Verão Alegre Rodrigo Monteiro

Órgão Oficial da SBAT – Sociedade Brasileira de Autores, inscrito na Ulrich’s International Periodicals Directory sob o registro ISSN 0102-7336.

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Aderbal Freire-Filho Ana Velloso Regina Zappa Vera Novello

Um autêntico artesão Intuitivo e bem-sucedido ator de teatro, Manoel Pêra trabalhou com Mesquitinha, Dulcina de Moraes e Henriette Morineau, e marcou presença no início da televisão e do cinema no Brasil

SUPER VISÃO

Três É Editoração e Design Ltda.

Daniel Schenker

DIREÇÃO EXECUTIVO FINANCEIRA

Bia Gondomar EDIÇÃO

Regina Zappa COLABORADORES

Cacá Diegues Daniel Schenker José Sérgio Rocha Lula Renato de Aguiar Rodrigo Monteiro PESQUISA ICONOGRÁFICA

Maria Luiza Franco REVISÃO

Maria Helena Pereira

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Um lugar para o acervo do criador do Arena José Renato deixou, ao morrer, preciosos projetos, bilhetinhos, recortes, fotos, textos clássicos, livros e revistas José Sérgio Rocha

44 ENSAIO Esse mundo é um pandeiro Cacá Diegues

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

Mais Programação Visual www.maisprogramacao.com.br

52 EPÍLOGO

CAPA

Montagem com foto do espetáculo Ai, ai, Brasil do Acervo Sergio Britto. CTP E IMPRESSÃO

WalPrint Gráfica e Editora TIRAGEM

5.000 FOTOS DE ACER VO CEDIDAS PELA

Recursos obtidos através do Convênio nº 732974/2010, celebrado entre o Ministério da Cultura e a Bambina Ação Cultural Associados Esta edição traz um encarte com a peça Os Estonianos, de Julia Spadaccini.

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P R Ó L O G O

“Terminei o livro, vou ensaiar Recordar é viver, de Hélio Sussekind, vou estrear a peça no CCBB. A vida continua. O que mais? A vida.” São as últimas palavras de O teatro e eu, livro de memórias que Sérgio Britto escreveu, aos 86 anos, e que ganhou o Premio Jabuti de biografia. Sérgio escreveu essas palavras, fechou seu caderno e sentiu a felicidade dos guerreiros ao final de mais uma batalha. Sérgio escrevia à mão, o computador chegou tarde demais para mudar seus hábitos de caneta e lápis. Erra quem o imagina, por esse sintoma, um homem preso ao passado. Ninguém foi mais antenado no presente do que Sérgio Britto. Tanto que posso dizer dele que foi um ator perfeito, uma vez que a palavra-chave do ator, se existe uma, é: presente. O ator traz Hamlet, Vania, Orestes, Amado Ribeiro, Willy Loman à nossa presença, isto é, faz com que eles convivam no presente conosco. Pois na sua encarnação principal, a de homem de teatro, Sérgio Britto foi sempre um homem do seu tempo, o que quer dizer, um homem de hoje, do presente. Para exemplificar, basta falar de uma de suas últimas aventuras como ator. Sérgio entregou sua alma ao diabo Beckett, a matriz do teatro-hoje, e a uma jovem diretora, Isabel Cavalcanti, e criou um extraordinário, novo, verdadeiro Krapp. É ele ainda quem escreve, no seu livro, falando de um instante no processo de criação desse personagem: “eu não tenho mais a minha boca de ator, nem meus olhos, nem as sobrancelhas, nem o queixo”. Entregou-se inteiro ao autor mais novo do teatro universal e a uma diretora jovem e, como resumiu o crítico Macksen Luiz, reinventou-se. Para quem torceu o nariz para minha maneira de tratar Beckett – o autor mais novo – é bom dizer que Sérgio representou autores mais recentes. Fez Outono inverno, de Lars Norén, lançando no Rio, com Eduardo Tolentino, esse instigante e potente autor sueco. E tudo isso depois dos 80 anos. Do que ele fez antes, dos 8 aos 80, você vai encontrar um desenho em uma reportagem de Daniel Schenker neste número da Revista de Teatro, uma vida que não cabe inteira em uma reportagem, em um livro, um filme. A vida do eternamente jovem Sérgio Britto, vivida intensamente dentro de teatros até o fim. Depois de uma peça, outra, depois outra, a vida que continua, e o que mais? A vida. Outro ator, outra época. E o mesmo destino de ter, segundo Camus, a glória mais efêmera e ao mesmo tempo a menos enganadora: a que se vive. De que tudo deve morrer um dia, dizia Camus, é o ator quem tira a melhor conclusão. Outro ator: Manoel Pera. Outra época: a primeira metade do século XX, no Brasil das grandes companhias, dos repertórios, do teatro-todo-dia, das turnês, da grande aventura teatral. Manoel Pera é símbolo dessa época, um grande ator da era romântica e aventureira do teatro brasileiro. Em geral, são lembrados os atores que foram donos de companhias, Procópio, Jaime Costa, Alda Garrido, Dulcina de Moraes, Madame Morineau. Embora Manoel Pera também tenha tido em um momento sua própria companhia, com Iracema de Alencar, ele foi um primeiro ator requisitado por quase todos esses artistas e contracenou com todos eles. Para avaliar o talento, a grandeza de Manoel Pera, temos uma referência especial: o talento herdado por sua filha, a extraordinária atriz Marilia Pera. A velha tradição do circo, dos teatros itinerantes, cuja arte passava de geração a geração, reviveu com os Pera (Manoel e Abel) e Marzullo (Antonia, Dinorah), e prossegue, luminosa, em Marilia

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e Sandra (um ser especial, que também respira o ar que vem dos palcos, quando canta, dança, atua) e com os seus. Também quero ficar de joelhos para José Renato. Acrescento minha devoção à daqueles que Antonio Abujamra relaciona em sua declaração que fecha a reportagem Um lugar para o acervo de José Renato. Em um fim de tarde de abril do ano passado, cheguei para um ensaio no Poeirinha – um teatro que, de alguma maneira, deve sua forma a José Renato; o Arena, 60 anos atrás, abre essa porta para a arquitetura teatral brasileira – e um jovem contrarregra me diz: esteve aqui um senhor te procurando, ficou um bom tempo, depois disse que precisava tomar o ônibus para São Paulo e que voltava outro dia. Disse o nome? José Renato. Poucos dias depois, primeiro de maio, um enfarte o matou a caminho do terminal rodoviário de São Paulo. Nunca vou saber se nos dias que passaria no Rio dessa vez, entre um fim de semana e outro do espetáculo que fazia como ator em São Paulo, ele voltaria a me procurar no Poeirinha. Nem vou saber sobre o que ele queria falar. Se esse encontro tivesse acontecido, lembraria hoje das coisas que teria me dito nesse dia, que não saberíamos que era o da nossa última conversa. Como não aconteceu, posso imaginar tudo, posso imaginar que na sua sabedoria de diretor que fez todos os teatros e que agora subia ao palco como ator, me procurou para falar da alegria que isso representava e me revelar segredos que o ator precisa conhecer, agora que eu, como ele um diretor, também ensaiava para voltar ao palco como ator. Obrigado, Zé, por tudo. Abençoado por esses três deuses do teatro, Sérgio Britto, Manoel Pera e José Renato, este número da revista traz um panorama do teatro gaúcho visto da ponte do verão. A riqueza cultural do Rio Grande do Sul também se manifesta através do seu teatro. Posso lembrar dramaturgos gaúchos tão inspirados quanto os narradores daquelas plagas e eu cito Carlos Carvalho e Ivo Bender, para dar apenas dois exemplos. Gerações de autores, diretoras e diretores (explicito aqui o feminino em louvor das ótimas diretoras gaúchas que conheço, como Irene Brietzke), atrizes e atores maravilhosos construíram e constroem um teatro vivo e que tem – é uma impressão, não disponho de dados estatísticos – um dos índices nacionais mais altos de integração com a sociedade. A sessão Ensaio, que, número a número da Revista, está criando um acervo de imagens do teatro brasileiro, desde vários ângulos, abre aqui uma exposição que é mais um gol de placa da editora Regina Zappa. Inspirada por um texto primoroso de Cacá Diegues, que reproduzimos, aqui está uma mostra de alguns mestres da fotografia brasileira, recriando artisticamente o grande teatro do carnaval. Ao contrário do teatro, do cinema e mesmo da literatura brasileiros que se servem tão pouco do carnaval, como aponta Cacá Diegues, os fotógrafos brasileiros estão sempre dialogando com essa “representação do mundo cada vez mais sofisticada”. E se nós do teatro...? Desfrutem de mais este número da Revista de Teatro da SBAT. Sempre me diverte o anúncio repetido no final dos voos de uma companhia nacional de aviação: “Sabemos que a escolha da companhia é uma decisão do cliente...” Sabemos que a escolha da revista... Se você acha que a Revista de Teatro expressa seu mundo, a SBAT é a sua casa. Associe-se, precisamos de você. E se você já é sócio, aproxime-se, precisamos estar perto.

Aderbal Freire-Filho

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O teatro como

necessidade

vital

Ator, diretor, professor e programador, Sergio Britto, que morreu no final de 2011, aos 88 anos, dedicou sua existência ao palco

A história de Sergio Britto atravessa o teatro brasileiro da segunda metade do século XX. Desde o início de sua carreira – no Teatro Universitário, em 1945 –, o ator e diretor marcou presença nas principais companhias brasileiras, firmou sociedades e conduziu programações de teatros. Participou de espetáculos no Teatro Popular de Arte, no Teatro Brasileiro de Comédia e no Teatro de Arena, foi um dos fundadores do Teatro dos Sete e do Teatro dos Quatro, esteve à frente dos teatros Senac e Delfim, implantou a programação teatral no Centro Cultural Banco do Brasil, teve especial relevância no início da Casa das Artes de Laranjeiras (CAL). A importância de Sergio, que morreu em 17 de dezembro de 2011, transcende, portanto, os feitos que contabilizou como ator e diretor. Marília e Paulo César Correia de Brito, sobrinhos de Sergio, estão viabilizando projetos para homenageá-lo: um livro (Memória a dois) centrado no esforço de recuperação da memória, preparado por Paulo César, depois que Sergio sofreu um acidente em casa que provocou uma hemorragia cerebral; uma exposição sobre a trajetória do ator, intitulada Sergio Britto – Memórias; e a criação de um centro cultural na zona portuária, batizado com o nome dele, projeto sugerido por Aspásia Camargo.

Daniel Schenker

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FOTOS: ACERVO SERGIO BRITTO

A última gravação de Krapp

Vínculos inquebrantáveis com as atrizes Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg foram grandes parceiras de cena de Sergio Britto. Mais do que isto, formaram uma família teatral, da qual também fizeram parte Fernando Torres e Ítalo Rossi. Mas Sergio travou outros vínculos determinantes. Um deles foi com a atriz Jacqueline Laurence. Tornaram-se muito próximos, apesar de terem contracenado pouco. “Nós nos conhecemos desde sempre. Fui da primeira turma da Fundação Brasileira de Teatro, da Dulcina de Moraes. Como alunos, íamos a todas as estreias. Encontrávamos os atores nos bares. Acho que foi assim que conheci Fernanda, Fernando, Sergio e Ítalo. Ficamos amigos. Criamos uma relação forte. Eu me senti aceita de imediato. Foram os faróis da minha vida”,

contou Jacqueline, que desembarcou no Brasil aos 16 anos. Integrante do grupo A Comunidade, conduzido por Amir Haddad, Jacqueline Laurence integrou o elenco de um espetáculo assinado pelo diretor no Teatro Senac: O marido vai à caça, de Georges Feydeau. “Fizemos bastante sucesso com esse trabalho. O meu papel era muito bom e foi reinventado pelo Amir. Lembro até hoje do cenário de Joel de Carvalho”, disse a atriz, ao comentar o espetáculo em que interpretava a dona de um prostíbulo, realizado no início dos anos 1970, com Sergio, Fernanda e Ítalo. Na segunda metade da década seguinte, Sergio lançou uma proposta de encenação: Isso é tudo, reunião de dez esquetes e uma peça curta, todas de Harold Pinter. “Os esquetes tinham sido publicados nos Cadernos de

Teatro do Tablado. Eu fiz uma nova tradução, chamei Ítalo para dirigir e produzi com o dinheiro do Banco do Brasil”, contou. Irene Ravache também conheceu Sergio Britto no início da carreira, na época em que participava de montagens do Teatro Jovem. “Sergio foi ver um dos espetáculos, gostou de mim e me chamou para participar do Grande Teatro da TV Tupi. Tornou-se a minha grande referência”, disse Irene, que se distanciou fisicamente de Sergio ao se mudar para São Paulo. “Ele me convidava para participar dos espetáculos, mas não podia vir ao Rio”. Participou, porém, da montagem paulista de Os filhos de Kennedy, de Robert Patrick, substituindo Susana Vieira, sob a direção de Sergio. “Foi um dos processos mais bonitos que já tivemos. Era um tempo em que havia a chance de experimentar um personagem investigando todas as gamas possíveis”, relembrou. Poucos anos depois, Sergio voltou a conduzir Irene ao levar a montagem de Afinal, uma mulher de negócios, apresentada no Teatro dos Quatro, para São Paulo. Eva, a personagem de R. W. Fassbinder, interpretada por Renata Sorrah durante a temporada carioca, eliminava com doses de café envenenado todos os que se atrevessem a se colocar no seu caminho. “Ele me convidou para ser sócia na produção.

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“Ele não só gostava de teatro, como assistia a tudo. Sentia um amor desesperado por teatro” Suely Franco

Foi com Sergio que aprendi a produzir”, complementou. O processo foi intenso. “Lembro que eu entrava em cena e levava o jornal e o café para Adilson Barros, que interpretava os personagens masculinos que passaram pela vida de Eva. Ele nem me olhava. Em seguida, eu dizia: ‘quero fazer amor com você’. Ele colocava a xícara na mesa, enrolava o jornal, vinha até mim, parecia que iria me beijar e me dava uma porrada. Era muito difícil para Adilson fazer a cena. Eu ia ao chão quase cumprindo a marca, porque ele me batia com delicadeza. E não era por acaso. Sergio disse para Adilson: ‘você é responsável pela integridade física da Irene. Se ela se machucar, terá que saber que foi algo que não poderia ser evitado’. Eu passei a ter um cão de guarda”, revelou. Já durante a temporada, Irene foi levada a dar uma guinada na personagem. “Numa noite, entre a primeira e a segunda sessão, Sergio

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me disse: ‘a personagem tem uma enorme carga emocional. Experimente o descontrole até terminar a narrativa às gargalhadas’. Ele achou que só seria possível tentar na noite seguinte, mas eu resolvi testar imediatamente. O resultado foi escandaloso. Fiz isso poucas vezes na minha carreira. Eu tinha uma confiança fora do comum em Sergio”, afirmou. O entusiasmo de Sergio saltou aos olhos até o final. “Não o vi envelhecer. Havia uma diferença inegável entre o vigor dele em cena em A última gravação de Krapp e Ato sem palavras 1 e as dificuldades físicas que já enfrentava”, destacou Irene, sem esconder a saudade, trazendo à tona as montagens dos textos de Samuel Beckett, um dos últimos trabalhos de Sergio. “Ele nunca deixou de passar a mão no meu rosto e exclamar ‘bela Irene’.” Renata Sorrah trabalhou seguidamente com Sergio. A parceria entre ambos começou em Tango, montagem de Amir Haddad para o texto de Slawomir Mrozek. Seguiu em Festa de aniversário, outra encenação de Amir, agora para a peça de Harold Pinter. Logo após, estiveram em A gaivota, de Anton Tchekhov, sob a condução de Jorge Lavelle. “Fiz teste e ganhei o papel da Nina. Mas disse que não poderia fazer porque iria para a Bahia. Lavelle declarou: ‘sem Renata, não montarei’. Sergio foi me buscar em Teresópolis e disse que eu teria que fazer de qualquer jeito”, recordou Renata.


Um pouco depois, Renata integrou o elenco do espetáculo de estreia do Teatro dos Quatro – Os veranistas, de Maximo Gorki. “Estávamos inaugurando um teatro. Nós nos sentíamos formando uma companhia. É algo de que sempre senti falta, porque depois do Tuca não pertenci a nenhum grupo. Eu e Sergio adorávamos fazer uma cena em Os veranistas em que ficávamos de costas para o público, sentados em cadeiras de vime, comentando algo”, disse Renata, que interpretava Warwara no espetáculo. Ainda no Teatro dos Quatro, a atriz interpretou Eva em Afinal, uma mulher de negócios e a modelo arrivista Karin em As lágrimas amargas de Petra Von Kant, ambos textos de Fassbinder. “Nós fomos amigos até o final. Eu ia sempre ver os espetáculos dele”, afirmou. Sergio Britto também marcou o início da carreira de Suely Franco. A atriz participou da efervescência do Grande Teatro da TV Tupi e das montagens de O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues, e Com a pulga atrás da orelha (substituindo Yolanda Cardoso), de Georges Feydeau, no Teatro dos Sete. “A peça de Nelson causava comoção. Metade do público aplaudia, metade vaiava. Tínhamos que parar e esperar que os espectadores acalmassem”, relatou Suely, que interpretava Dália. Muitos anos depois, a atriz participou de espetáculos capitaneados por Sergio no Teatro Delfim, onde imprimiu repertório brasileiro, como Cafona, sim, e daí?. No palco do Teatro Carlos Gomes esteve em Ai, ai, Brasil. E foi uma parceira marcante nos últimos trabalhos de Sergio – Outono e inverno, de Lars Norén, e Recordar é viver, de Helio Sussekind, ambos dirigidos por Eduardo Tolentino de Araújo. “Outono e inverno foi particularmente difícil para mim, porque os personagens mudavam de assunto abruptamente”, disse. A intensidade de Sergio se impõe como lembrança mais intensa. “Ele não só gostava de teatro, como assistia a tudo. Sentia um amor desesperado por teatro”, acrescentou. Ada Chaseliov conheceu Sergio Britto quando fazia Tablado e ensai-

ava seus primeiros passos na profissão. Foi indicada por Sergio para a montagem de Flávio Rangel para Abelardo e Heloísa, de Ronald Millar. Dividiu o palco com Sergio em Missa leiga, de Chico de Assis, sob a direção de Ademar Guerra. “Era uma peça política. Tinha um elenco numeroso. Sergio sugeriu nomes de vários atores e colocou estrelinhas ao lado dos que realmente queria que entrassem. Acho que Ademar acabou exigindo muito mais dessas pessoas”, disse Ada. No Teatro dos Quatro, Ada substituiu Márcia Rodrigues na gloriosa encenação de José Wilker para Sábado, domingo e segunda, de Eduardo De Filippo, e participou de O jardim das cerejeiras, de Anton Tchekhov. Em Casamento branco, de Tadeusz Rozewicz, ousada montagem dirigida por Sergio no Centro Cultural Banco do Brasil, entrou no lugar de Tamara Taxman. “Eu frequentava a casa do Sergio. Participei de uma das reuniões de vídeos. Víamos filmes, conversávamos o dia inteiro até a madrugada. Uma vez precisei ir até a casa dele bem cedo buscar algo. Cheguei lá por volta de 8h e ele já tinha assistido a um filme”, contou Ada. O elo de Regina Gutman com Sergio Britto começou como paixão de adolescente. “Ele fazia o Grande Teatro. Eu não tinha nem televisão. Mas me apaixonei por ele e fui até a TV Tupi para conhecê-lo. Queria casar com Sergio”, disse. Depois, Regina reencontrou Sergio em cursos que

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O jardim das cerejeiras

Missa leiga

“Sergio era muito aberto. Falava sobre tudo. Ele gostava de si mesmo, algo fundamental para que se consiga gostar dos outros. A autoestima é um dom” Domingos Oliveira

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ministrou no Teatro Senac e na União das Operárias de Jesus. Sergio descortinou um mundo novo diante de seus olhos. “A primeira vez que ouvi falar em butoh foi num filme, Dance of darkness, que ele trouxe. E nós nos aproximamos no gosto pela música clássica”, lembrou. Sergio convidou Regina para participar de seu programa na TVE – de início, chamado Diário de Teatro e depois rebatizado de Arte com Sergio Britto. “Eu era atriz e pesquisadora do programa”, acrescentou. Logo se tornaram amigos inseparáveis. “Tínhamos liberdade de dar broncas. Ele me dava mais bronca do que eu nele. Sergio me considerava uma romântica incurável. Eu explicava para ele por que nasci socialista”, relembrou Regina Gutman. Viraram também parceiros de tranca. “E generosamente ele participava de alguns projetos malucos nos quais eu me envolvia, como O tao do mundo, que fiz com Lygia Veiga.” Alguns espetáculos de Sergio a emocionaram, como A gaivota (“assistia toda semana”), Os veranistas e Quatro vezes Beckett. “Já tinha sugerido a ele montar A última gravação de Krapp”. Mas, não por acaso, os trabalhos que mais a impactaram foram os mais pessoais: os monólogos Sergio 80 e Jung e eu, ambos dirigidos por Domingos Oliveira. “Houve uma declaração do Sergio que me impressionou.

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Ele disse: ‘nunca deixei que as dores e os acontecimentos infelizes me paralisassem’. Foi uma lição para mim”, acrescentou.

Diretores: elo com jovens e veteranos A declaração, segundo Domingos Oliveira, foi dada a uma jornalista às vésperas da estreia de Sergio 80. “Ele não havia me dito isso. Era a síntese da sua personalidade – a percepção de que o homem tem que ser maior do que o próprio sofrimento”, afirmou Domingos. Espetáculo intimista, Sergio 80 traçava um panorama da jornada pessoal e profissional do ator e diretor, que já tinha relatado sua história no livro Fábrica de ilusão – 50 anos de teatro (Funarte). Anos depois, escreveria outro livro sobre seu percurso – O teatro & eu (Tinta Negra). “Sergio era muito aberto. Falava sobre tudo. Ele gostava de si mesmo, algo fundamental para que se consiga gostar dos outros. A autoestima é um dom”, disse. Sergio Britto reeditou a parceria com Domingos em Jung e eu. “Ele me ligou, dizendo que não havia mais papel para fazer na sua idade. Pediu para eu escrever um texto. Poucos minutos depois, tive uma ideia. Liguei para Sergio e falei: ‘aos 80 anos, você deveria fazer Jung’. Afinal, Jung escreveu Memórias, sonhos,


reflexões aos 83", comentou. Sergio e Domingos tinham se conhecido muitos anos antes. Em 1963, ambos trabalharam juntos em um texto de Domingos, A história de muitos amores. “Mas Sergio se acidentou. Tivemos de interromper a temporada e perdi todo o meu dinheiro. Mesmo assim, foi ótimo”, assegurou. Naquela época, Domingos já acompanhava Sergio no Grande Teatro da TV Tupi. “Fez não só a minha cabeça, como a da minha geração. Não saíamos de casa para assistir ao programa. Era um trabalho cultural de importância ímpar. Lembro dele sempre entusiasmado, dizendo que a próxima peça que fariam seria a melhor de todas”. O entusiasmo não diminuiu com o passar do tempo. “Ele morreu porque não tinha jeito. A morte sempre acaba vencendo”, disse Domingos. Como Domingos, Amir Haddad “conhece” Sergio desde sempre. Foi espectador do Teatro Brasileiro de Comédia. “Sergio faz parte de uma geração formada pelos diretores estrangeiros”, diz Amir, acerca dos encenadores (principalmente italianos) que desembarcaram no Brasil na época da Segunda Guerra Mundial. “O TBC era o teatro da burguesia paulistana, muito efervescente”, disse, ao comentar a época em que os espetáculos eram apresentados de terça a domingo, com sessões duplas em determinados dias.

Amir despontou no Rio de Janeiro como diretor de vanguarda. Antenado, Sergio se aproximou dele durante a sua gestão no Teatro Senac. Sob a condução de Amir, Sergio fez Fim de jogo, de Samuel Beckett. “Eu nunca tinha montado Beckett e passei por uma crise na véspera da estreia. Percebi que, em vez de contar a história, fui atrás da filosofia do texto. Falei, então, para Sergio: ‘está errado. Beckett conta uma história circense. Vamos aliviar um pouco o tom’”, relembrou. Depois veio O marido vai à caça, de Feydeau. “Fui beber num teatro que não fazia, mas admirava. Tivemos muito sucesso. Vivíamos de bilheteria”, contou. Continuaram juntos em Tango, de Mrozek, espetáculo produzido por Tereza Rachel, que também integrava o elenco. “Foi outro sucesso. Nesse momento, Sergio rompeu definitivamente com a imagem de galã”, disse Amir, que o dirigiu ainda em Festa de aniversário, de Harold Pinter. Quando Sergio, Mimina Roveda e Paulo Mamede inauguraram o Teatro dos Quatro, Amir Haddad ministrou um curso – juntamente com o próprio Sergio, Hamilton Vaz Pereira, Eric Nielsen e Glorinha Beutenmuller – que teve bastante repercussão, patrocinado pelo Ponto Frio Bonzão. “Desse curso saíram pessoas que, juntamente com outras pertencentes a um grupo que eu tinha em Niterói, fundaram o Tá na Rua”. Amir não escondeu certo tom melancólico com

a partida de Sergio. “A morte de Sergio me faz pensar no desaparecimento de uma geração que escolheu o teatro como ofício”, apontou. Paulo Mamede, que manteve durante 15 anos, ao lado de Sergio Britto e Mimina Roveda, a sociedade que deu origem ao Teatro dos Quatro, externou a mesma visão que Amir Haddad. “A ligação dos atores da geração de Sergio é com o teatro. Ele se manteve vivo porque fazia questão de subir ao palco todo ano”, confirmou Mamede. Sergio, Paulo e Mimina inauguraram o Teatro dos Quatro em 1978, com a montagem de Os veranistas, de Gorki, e com outra produção apresentada no Teatro Ginástico – A ópera do malandro, de Chico Buarque. De início eram quatro integrantes (José Ribeiro Neto logo se desligou da sociedade, tendo sido substituído por Dema Marques, que também se afastou). Até 1993 montaram autores emblemáticos (Shakespeare, Tchekhov,

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“A ligação dos atores da geração de Sergio é com o teatro. Ele se manteve vivo porque fazia questão de subir ao palco todo ano” Paulo Mamede

Pirandello, Beckett), resgataram outros (Eduardo De Filippo), investiram em nomes pouco conhecidos no Brasil (Fassbinder, Franco Scaglia) e apostaram na dramaturgia do país (Oduvaldo Vianna Filho, Millôr Fernandes, Mauro Rasi). “Sergio foi um sócio maravilhoso”, elogiou Paulo. Paulo e Mimina participaram de uma maratona de carnaval, que acabou servindo de matéria-prima para Mauro Rasi escrever O baile de máscaras, peça encenada no Teatro dos Quatro. “Sergio recebeu Berlim Alexanderplatz e resolvemos aproveitar o carnaval para assistir”, contou Paulo Mamede, mencionando a obra monumental de Fassbinder, concebida no formato de minissérie para a televisão, que soma mais de 15 horas de duração. “Nós íamos à casa do Sergio para assistir a óperas, a filmes das mais variadas nacionalidades. Na época, não tínhamos acesso àquelas preciosidades”, lembrou. Foi no Teatro dos Quatro – mais exatamente, no famoso curso inau-

Memórias do interior

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gural – que Eduardo Tolentino de Araújo, diretor do Grupo Tapa, conheceu Sergio Britto. “O Tapa já existia como grupo amador. Mas foi naquele momento que pensamos em nos profissionalizar. Tanto que logo depois produzimos nossa primeira montagem – Apenas um conto de fadas”, afirmou, referindo-se ao texto infanto-juvenil de sua autoria. No entanto, do mesmo modo que os outros encenadores, Tolentino já era influenciado por Sergio. “O Grande Teatro da TV Tupi foi muito importante para mim. Eu era novo, tínhamos uma televisão pequena. Meus pais saíam e eu ficava vendo o Grande Teatro sentado no parapeito. De 15 em 15 minutos passava uma toalha fria para esfriar a TV. Assim, meus pais não saberiam que tinha ficado acordado até tarde assistindo ao programa”, relembrou. Na maioria das vezes, Tolentino não conseguia identificar as peças. No teatro, não são poucas as montagens que Tolentino destaca: A noite dos campeões, de Jason Miller, Entre quatro paredes, de JeanPaul Sartre, e, principalmente, Tango, de Mrozek, e A gaivota, de Tchekhov. Viajaram juntos para o Festival de Caracas, em 1983. “Assistimos à versão de Peter Stein para Orestia. Durava nove horas e a partir da quarta começou a chover muito. Lembro da imagem do Sergio com jornal na cabeça sem desistir do espetáculo. Foi uma das maiores experiências teatrais da minha vida e acho que do Sergio também”, aposta Tolentino, evocando a encenação da trilogia de Ésquilo. Talvez não tenham trabalhado juntos com frequência por causa da amizade. “Eu temia que a nossa relação se desgastasse. Além disso, morávamos em cidades diferentes”, disse Tolentino, radicado em São Paulo desde a mudança do Tapa, fundado no Rio, para a capital paulista, em 1985, durante a temporada de O tempo e os Conways, de J.B. Priestley. Nos últimos anos, Eduardo Tolentino dirigiu Sergio Britto nas montagens de Outono e inverno e Recordar é viver. “Em Outono e inverno, ele dava opiniões tomando o


O homem do princípio ao fim

devido cuidado para eu não achar que estava passando por cima de mim. Em Recordar é viver, já não contamos com o Sergio com o mesmo vigor. Mas ele se mostrou interessado, disciplinado. Costumávamos passar o texto antes da apresentação, o que dava segurança a Sergio. Na estreia, em São Paulo, ele não lembrava de nada. Acho que estava nervoso, emocionado. E também por se ver de novo numa cidade onde passou uma fase importante de sua vida. Ficou no camarim e, pouco antes de começar o espetáculo, foi para o palco, sentou numa cadeira e viu o público entrar. Aos poucos, se acalmou. E fez uma apresentação maravilhosa”, afirmou. Isabel Cavalcanti, que dirigiu Sergio Britto no aclamado espetáculo resultado da junção de A última gravação de Krapp e Ato sem

palavras 1, conheceu-o em 2007. Sergio foi assistir à montagem de Fim de partida, dirigida por Pedro Brício, que contava com Isabel no elenco interpretando Clov. “Sergio foi no último dia. Ele estava com 85 anos. Chegou de bengala (na época, usava bengala; quando começamos a ensaiar Krapp, abandonou-a), assistiu à peça e depois do espetáculo sentou com o elenco nas arquibancadas. Ficou lá com a gente, conversando longamente sobre o texto que ele havia interpretado na década de 1970, sob a direção de Amir Haddad. Ele me disse coisas bonitas a respeito do meu trabalho. Falamos sobre Beckett e ele me pediu que lhe enviasse o livro que eu havia escrito sobre a dramaturgia do autor irlandês (Eu que não estou aí onde estou: o teatro de Samuel Beckett)”, lembrou.

Dias depois, Sergio convidou Isabel a participar de uma edição do programa Arte com Sergio Britto dedicado a Beckett. No meio da gravação, chamou-a para dirigi-lo num novo espetáculo. “Topei na hora, sem pestanejar, mesmo achando que pudesse ser brincadeira. Dirigir um dos maiores atores do país na peça de um autor que é uma das minhas paixões. Não tinha como recusar. No dia seguinte, o telefone tocou e a voz do outro lado me disse: ‘Isabel! É Sergio Britto! O convite que te fiz ontem é sério, viu?’ Passamos a nos encontrar na casa dele e começamos a trabalhar”, contou. Antes da primeira leitura, Sergio avisou a Isabel que era um ator de composição. “Sergio lia buscando uma voz diferente da dele, uma composição, uma construção de fora para dentro e nada disso era necessário. Eu o olhava, aquele senhor, com aquela bagagem de vida, de memória. Olhava aqueles DVDs e VHSs espalhados pelas estantes da sala, todo aquele acervo da memória e pensava: ‘é o Krapp. Está tudo nele. Não é para compor nada’. Meu coração batia acelerado porque sabia que, quando terminasse de ler, eu teria que dizer para ele que não era nada daquilo, que o caminho era outro. Ou eu falaria isso, ou o trabalho começaria mal. Quando ele terminou de ler, me olhou e perguntou: ‘e aí?’ Eu respondi: ‘Sergio, não

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“Ele não tinha o menor pudor em relação ao seu corpo, à decadência física. Era de um despojamento absoluto” Isabel Cavalcanti

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é isso. Não quero que você procure nada fora de você. Não precisa fazer nada, apenas ser você. Você é o Krapp’. No mesmo instante, ele se desarmou completamente. ‘Então como é que você quer?’”. Naquele momento, Isabel teve provas concretas da disponibilidade de Sergio. “Ele se entregou inteiramente aos desafios e ao desconhecido que o trabalho propunha, sem uma ponta de desconfiança. Um homem daquela importância se abrir para algo tão difícil, numa altura da vida em que não precisava provar mais nada para ninguém... Eu estava sugerindo que ele repensasse um estilo de representação ao qual havia se acostumado. Repensar o processo de criação de personagem, buscar um aprofundamento nas questões, e, portanto, encarar a vida e a morte, a angústia, o embate da criação. A sua entrega foi comovente. Ele se jogou sem redes de proteção, sem reclamar, disposto a tudo. Era nítido que a alegria da sua vida era o teatro, ensaiar, levantar um espetáculo. Todo ensaio eu ficava em cima dele, perturbando-o. E depois também, durante a temporada. Ele me aguentou quase todos os dias. Mas estava claro para mim que, ao optar por A última gravação de Krapp, Sergio buscava riscos, desafios. Ele escolhera representar um homem que passa em revista sua vida. Foi bonito

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vê-lo tão despojado, sem sombra de vaidades nos ensaios e depois durante a temporada. Seu maior compromisso era realizar com grande competência o trabalho”, disse Isabel, entusiasmada com o trabalho do ator. A decisão de incorporar à montagem Ato sem palavras 1 foi outra prova de coragem. “A peça reúne ações físicas arriscadíssimas. Ele não tinha o menor pudor em relação ao seu corpo, à decadência física. Era de um despojamento absoluto”, acrescentou. Depois de A última gravação de Krapp e Ato sem palavras 1, Sergio e Isabel tinham outro projeto em vista: O canto do cisne, de Tchekhov. “Em 2011, o espetáculo ganhou patrocínio e teatro. A estreia seria em setembro. No início do ano, fizemos algumas leituras do texto. Mas Sergio teve um problema seríssimo de saúde em meados do primeiro semestre, que afetou a sua memória. Foi impressionante vê-lo, mesmo com a memória afetada, desejando ler o texto, buscando compreendê-lo. Mais uma vez, a paixão pelo ofício era o que o guiava na vida. Após a primeira internação hospitalar, fizemos ainda muitas leituras, mas havia limitações de memória inevitáveis. Foi um período difícil. Sergio sempre foi bastante ativo e a sua vida era o palco. Agora ele precisava de paciência para enfrentar os desvãos da memória, para


que ela, lentamente, voltasse a funcionar perfeitamente. Mas a sua maior angústia era não poder estar no palco. Ele queria voltar. Entendendo que O canto do cisne, naquele momento, não era possível e percebendo sua angústia, conversei com ele sobre o fato de o teatro ser grande e generoso, e que haveria outras formas dele voltar a atuar. Criei, então, um projeto de espetáculo voltado para as possibilidades dele, que leria os textos em cena e gravaria parte em estúdio. Ele ficou entusiasmado com essa possibilidade. No entanto, depois disso, seu estado de saúde agravou-se e a única preocupação possível passou a ser criar possibilidades de menos sofrimento para ele”, afirmou.

Importância contextualizada pela crítica A crítica de teatro Barbara Heliodora acompanhou a carreira de Sergio Britto praticamente desde o início. “Conheci-o quando ensaiava Hamlet, com Sergio Cardoso, no final dos anos 40”, disse Barbara, referindo-se à célebre encenação do Teatro dos Doze, companhia que durou apenas o ano de 1949. “Sergio foi para São Paulo trabalhar na companhia da Maria Della Costa”, relembrou, aproveitando para elogiar especialmente a montagem de O canto da cotovia, de Jean Anouilh, dirigida por Gianni Ratto.

“Gostei muito dele em Um panorama visto da ponte”, comentou Barbara Heliodora sobre a encenação de Alberto D’Aversa para o texto de Arthur Miller, apresentada no Teatro Brasileiro de Comédia com elenco estelar: além de Sergio, Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Nathalia Timberg e Leonardo Vilar. “A mulher de todos nós também foi um espetáculo delicioso”, destacou Barbara, chamando atenção para a montagem com Fernanda Montenegro e Ítalo Rossi conduzida por Fernando Torres. Não por acaso, Barbara trouxe à tona espetáculos dos anos 1950 e 1960. “O auge do teatro brasileiro ocorreu nessas décadas. Hoje em dia há bons trabalhos, mas o teatro não sobrevive de bilheteria.” No que diz respeito a Sergio Britto, porém, Barbara considera algumas de suas últimas atuações as mais marcantes. “Ele foi crescendo como ator ao longo do tempo. A prova é o re-

sultado que alcançou em A última gravação de Krapp e Ato sem palavras 1”, acrescentou. De qualquer modo, a relevância de Sergio não se restringe à presença como ator. “Sergio foi um ótimo diretor. Gostava de dar cursos. Cuidou da programação de alguns teatros, como do Centro Cultural Banco do Brasil. Sob todos os pontos de vista, era apaixonado por teatro. E tinha uma memória fantástica”, salientou. Os anos de convivência acabaram semeando uma amizade. “Ele era apaixonado por futebol. Torcia pelo Fluminense, como eu”, afirmou. Sergio Britto foi um interlocutor importante para a crítica de teatro Tania Brandão durante o processo de escrita de seu livro sobre o Teatro dos Sete – A máquina de repetir e a fábrica de estrelas – Teatro dos Sete (7 Letras). “Tivemos um encontro emocionante e generoso. Muitos temas foram revelados em off, para o

Ana Karenina

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“O ator moderno não deve ter extrema autoconfiança, não deve confiar em si de olhos fechados. Ao mesmo tempo, como não existe uma situação estável de mercado, os atores modernos estão sempre dispostos a reduzir a própria dimensão a zero, a liquidar os próprios saberes, sob o medo de envelhecer” Tania Brandão

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esclarecimento de pontos obscuros das trajetórias da época. Não houve recusa ou fuga de qualquer tema. Uma nota de destaque foi o reconhecimento, pelo ator, do valor de Maria Della Costa, atriz em cuja empresa os promotores do Teatro dos Sete estiveram reunidos antes, uma liderança, ao lado de Sandro Polônio. As suas palavras foram um grande estímulo para que eu enveredasse a seguir na extensa pesquisa sobre a atriz. Sergio Britto observou – como Fernanda Montenegro também frisou, aliás – que a temporada de trabalho na Companhia Maria Della Costa foi de extremo impacto para a formação de sua personalidade teatral, em particular graças à convivência com Gianni Ratto”, disse Tania, que assinou o livro Uma empresa e seus segredos: Companhia Maria Della Costa (Perspectiva). Ainda que os livros não sejam centrados em Sergio, fica claro, através deles, a importância do ator e diretor como empreendedor teatral, que encabeçou núcleos de companhias e sociedades na segunda metade do século XX. “Sergio Britto foi um dos responsáveis pela transformação moderna da cena carioca, no sentido de implantação e absorção pelo mercado – quer dizer, pela rotina de produção – dos procedimentos fundamentais do moderno. Tal se fez a partir da adoção de certos dispositivos: uma aceitação da comédia, sob roupagens modernas e de efeitos de linguagem (não apenas a espiral de riso do teatro convencional); a valorização do papel do diretor; a investida em repertório híbrido em que não faltavam o senso comercial e o modismo; a vinculação à televisão (rádio-teatro e contratação de nomes de TV, na era das novelas) como forma de ampliação do público de teatro”, acrescentou Tania Brandão. Ator de formação “tradicional”, com passagens pelo Teatro Popular de Arte e pelo Teatro Brasileiro de Comédia, iniciativas anteriores à do Teatro dos Sete, Sergio, contudo, revelou apreciável disposição ao risco através de parcerias com encenadores como Gerald Thomas (em Quatro

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Meu querido mentiroso

vezes Beckett e Quartett), Nehle Franke (em O poder do hábito, de Thomas Bernhard) e Isabel Cavalcanti (A última gravação de Krapp/ Ato sem palavras 1). “O ator moderno não deve ter extrema autoconfiança, não deve confiar em si de olhos fechados. Ao mesmo tempo, como não existe uma situação estável de mercado, os atores modernos estão sempre dispostos a reduzir a própria dimensão a zero, a liquidar os próprios saberes, sob o medo de envelhecer”, opinou. Em todo caso, Sergio Britto se afirmou como ator de composição, acostumado a criar vozes e posturas físicas para seus personagens – por mais que esse caminho tenha sido negado por Isabel Cavalcanti em A última gravação de Krapp/Ato sem palavras 1. “Sergio não foi um intérprete-comediante, no sentido


Sergio Britto. “Ele fazia audições no teatro. Sempre esteve à frente das tendências, mas nunca quis faturar em cima. Era um artista preocupado com o coletivo”, destacou.

A idealização de uma escola

de se transformar profundamente, a partir de dentro de sua alma, a cada peça, como se supõe que o ator moderno deva ser. Ele era um ator de composição, inclinado à função de galã, justamente o tipo de perfil que a sua geração decidiu combater. Para se distanciar de sua temperatura e afinar com o seu tempo, ele conseguiu uma alquimia saborosa. Fazia papéis em que a presença da razão era forte, em que os traços da racionalidade eram evidentes, afastando-se do transbordamento afetivo e sentimental intenso que foi a nota do maior ator de sua geração: Sergio Cardoso”, disse Tania. O trabalho também gerou uma amizade no contato entre Sergio Britto e Eva Doris Rosental. “Nós nos conhecemos quando fui trabalhar na Secretaria de Cultura do

município, em 1994. No momento em que presidi a RioArte, a partir de 1995, o contato passou a ser cotidiano. A RioArte fica ao lado da CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), onde ele estava sempre. Ele ia me visitar pelo menos três vezes por semana. Conversávamos muito sobre teatro. O carinho era mútuo”, disse Eva Doris. Como espectadora, o vínculo de Eva Doris com Sergio começou nas produções do Teatro dos Quatro. A admiração aumentou na época em que Sergio se tornou gestor do Teatro Delfim. “Ele foi o único diretor da rede que convidava e organizava a ida dos professores do município e realizava debates ao final das apresentações. E isto não era uma exigência”, ressaltou. Muitos novos atores despontaram no Delfim graças às oportunidades lançadas por

Sergio Britto foi determinante na fundação da CAL, escola de teatro que surgiu em 1982, como observou Gustavo Ariani, diretor da instituição. “No ano anterior, fizemos vários encontros com ele e com Yan (Michalski) para pensar no projeto da CAL. Ele acreditava totalmente. Desde o início se colocou à disposição para colaborar como professor e pensador. Disponibilizou as instalações do Teatro dos Quatro para as inscrições”, contou Gustavo, que conheceu Sergio no final da década de 1970. Nos primeiros momentos, o carro-chefe da CAL era o curso que Sergio ministrava com a fonoaudióloga Glorinha Beutenmuller – intitulado A arte de representar sentimentos e sensações. “Eles dirigiram o primeiro espetáculo com os alunos – Exercitando”, relembrou. Ao longo dos anos, Sergio Britto assumiu diversas funções dentro da CAL. “Ele fazia palestras, conduzia um curso de cultura com Victor Giudice, dava aula de interpretação”, acrescentou. Gustavo firmou parceria com Sergio fora da CAL. Foi codiretor em duas óperas – O elixir do amor, de Gaetano Donizetti, e Macbeth, de Giuseppe Verdi – que ganharam versões assinadas por Sergio. “Ele mantinha uma inquietação até a estreia e mesmo depois. Nós sentávamos à noite no bar Manoel & Juaquim, na Rua Gomes Freire, para comer salgado. E precisávamos estar de volta no teatro de manhã. Ele comia de tudo. Sempre acompanhado de guaraná”, contou. Juntos fizeram Uma pitada de sorte, minissérie infanto-juvenil exibida na TVE. Sergio atuava ao lado de Rubens Corrêa, Ítalo Rossi e alunos da escola. Eric Nielsen, também fundador da CAL, dirigia. Gustavo ficava encarregado da direção musical. E Alice Reis, do texto.

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“Acho que Sergio era portador de uma solidão curiosíssima. Ele conseguia ser feliz na solidão. Por isso, buscou o teatro” Eric Nielsen

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Eric Nielsen conheceu Sergio Britto na época em que era aluno de direção no Conservatório Nacional de Teatro. “Eu, Yan e Glorinha nos unimos em torno do projeto da CAL. Sergio não era tão próximo da UniRio por se afinar menos com o rigor universitário”, disse. Em 1976, Eric fez o primeiro trabalho com Sergio – Águas claras, adaptação da peça Nossa cidade, de Thornton Wilder, exibida na TVE. Sergio atuava e Eric era assistente de direção e coadaptador (com Sergio). Depois veio o já citado Uma pitada de sorte. Eric participou do curso inaugural do Teatro dos Quatro, ao lado de Sergio, Amir Haddad, Hamilton Vaz Pereira e Glorinha Beutenmuller. “Já era um ensaio para a CAL, que, num primeiro momento, iria se chamar Escola Sergio Britto. Ele não quis”, revelou Eric, que anunciou o lançamento do Teatro Sergio Britto na Faculdade CAL, que abrirá as portas em março, na Glória. “Acho que Sergio era portador de uma solidão curiosíssima. Ele conseguia ser feliz na solidão. Por isso, buscou o teatro.” Hermes Frederico, coordenador da CAL, travou contato pessoal com Sergio Britto por intermédio de Glorinha Beutenmuller, em 1980. “Ele foi o padrinho, o grande incentivador da escola. Foi professor, idealizador, diretor. Quando voltou à escola nos anos 1990, deu um

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curso com Glorinha, Na arena com os leões”, disse. Como espectador, Hermes conheceu Sergio bem antes. “Quando criança, sempre ouvia falar dessa turma – Sergio, Fernanda, Nathalia. Ele foi muito importante no Grande Teatro da TV Tupi, no sentido da formação de plateia. A primeira vez que assisti a Sergio foi no cinema, no filme Society em baby-doll”, disse Hermes, citando a produção de Luiz Carlos Maciel e Waldemar Lima, realizada em 1965. “Depois o vi em A legião dos esquecidos, na TV Excelsior. No teatro assisti a Sergio na montagem de O marido vai à caça. Em seguida, conferi sua direção para Os filhos de Kennedy e seu trabalho em A noite dos campeões. Daí em diante, não perdi nenhum espetáculo”, garantiu. Como produtor, Hermes convidou Sergio para participar de três espetáculos – Longa jornada de um dia noite adentro, de Eugene O’Neill, As pequenas raposas, de Lilliam Hellman, e Outono e inverno, de Lars Norén. Glorinha Beutenmuller conheceu Sergio na montagem de O marido vai à caça, quando o ator teve um problema vocal. “Ele recuperou a voz e ficou encantado. Nós nos tornamos amigos. Passei a desenvolver um constante trabalho vocal com ele, que incluiu exercícios de voz dentro de um espetáculo – Tango. Ele me chamava sempre. Estive ao seu lado


nas montagens de Os veranistas, Papa Highirte, Rei Lear”, disse. Os veranistas foi um capítulo especial. “Sergio não acertava a voz. Eu perguntei: ‘Sergio, você tem 50 anos ou meio século?’ Ele respondeu: ‘50 anos’. Aí ele encontrou a postura certa. Até então, estava fazendo um homem de 50 anos como se fosse gagá”, contou. O que faz um ator perder a voz? “Normalmente, o fato de não assumir na forma e na essência as palavras que diz. Quando o ator não assume a palavra, ela emudece. O trabalho de voz é uma coreografia sonora do texto. É preciso saber ouvir, enxergar, sentir o gosto das palavras”, explicou. Nos últimos anos, Sergio ficou rouco. Foi no monólogo Jung e eu, e novamente a ajuda de Glorinha se revelou determinante. “Ítalo (Rossi) disse que eu sou o seguro vocal do Sergio Britto”, disse Glorinha, que também trabalhava com elencos inteiros (abordando separadamente cada ator), a exemplo de sua direção vocal interpretativa em A ópera do malandro.

Amigos em todas as épocas Como Glorinha, Iara Porto é uma amizade antiga de Sergio Britto. “Conheci Sergio na época em que era cantora do Theatro Municipal. Ele foi dirigir La traviata. Sergio dividiu o coro em grupos pequenos. Os melômanos protestaram”, relembrou Iara, em relação à ópera de Giuseppe Verdi. Iara participou das famosas reuniões de óperas e vídeos na casa de Sergio. “Assistíamos a filmes do cinema mudo, de Frank Capra, grandes montagens de musicais. Eram reuniões semanais, às vezes organizadas aos sábados ou domingos. Sergio preparava o programa, mas nós opinávamos. Sempre havia alguém que entendia mais de um assunto. No meu caso, era ópera”, afirmou. Mas Iara não fez parte do grupo que acabou dando origem ao texto O baile de máscaras, de Mauro Rasi. “Mauro se inspirou numa reunião de carnaval, na qual eu não estava porque viajara na

ocasião”, esclarece Iara, destacando o perfil festeiro de Sergio. “Depois das estreias dele havia jantares, reuniões”, contou. Ambos mantiveram contato até o final. “Como Sergio tinha uma família pequena e eu fiquei mais disponível depois que me aposentei, ajudei no que podia. Ele leu para mim o texto do livro O teatro & eu. Escrevia tudo a caneta. E era dotado de uma memória arrasadora”, lembrou Iara Porto, que, ao acompanhar o resgate da jornada pessoal e profissional de Sergio, destacou a disponibilidade para trabalhar com diretores jovens. “Sergio era jovem”, sublinhou. Se Iara Porto era amiga de longa data, André Marinho firmou um vínculo sólido com Sergio nos últimos cinco anos. “Nós tínhamos uma amiga em comum, Anny-Claude Basset. Ela me apresentou a Sergio e a Fernanda Montenegro”, disse. Durante a escrita de O teatro & eu, André ajudou Sergio na pesquisa das informações e na digitalização. Trabalhou como assistente de Sergio e ajudou Fernanda na adaptação do texto para a montagem que ambos fariam juntos – mas acabou se transformando num monólogo da atriz, Viver sem tempos mortos. E acompanhou ensaios de A última gravação de Krapp e Ato sem palavras 1. “Tudo era feito na base da amizade, ainda que ele fizesse questão

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de me pagar. Era muito generoso. Se eu tinha alguma cena na CAL, ele mostrava uma enorme paciência para ensaiar comigo. Ficou interessado no meu processo de trabalho quando ensaiei Senhora dos afogados”, disse André, mencionando a montagem de Ana Kfouri para o texto de Nelson Rodrigues. Sergio Britto gostava de assistir aos espetáculos em cartaz no Rio de Janeiro e André frequentemente o acompanhava, ao lado da amiga e empregada Chica. “Ele tinha que fazer algo à noite. Só não saía quando tinha jogo do Fluminense. Ele me introduziu no mundo da ópera. Íamos muito ao Theatro Municipal. Às vezes, eu assistia às aulas de corpo dele ministradas pelo sobrinho, Paulo César Brito, e ficava espantado de ver a disponibilidade daquele homem de 85 anos”, disse.

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Cumplicidade em família Sergio Pedro Correia de Britto, assim batizado por ter nascido no dia de São Pedro (29 de junho), tinha uma família pequena, mas unida. Uma família formada por seus sobrinhos, Marília e Paulo César Correia de Brito – filhos de seu irmão, Hélio – e por Chica, apelido de Francisca Gomes Silva Filha, amiga e empregada que o acompanhou durante 36 anos. Marília é engenheira química. Mesmo distante da profissão artística, esteve próxima do tio. Enfrentou a turbulência do último ano, quando passou a gerir a vida de Sergio. “Sergio levou um tombo em

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casa e houve certa inércia no socorro. Constataram hemorragia cerebral, mas a operação não foi necessária. A hemorragia acabou sendo absorvida”, disse Marília. O acidente foi a ponta do iceberg de um triste imbróglio, revelado em reportagem da revista Isto É em outubro de 2011. De acordo com a reportagem, Sergio estava sendo roubado por seu administrador, Antônio Bento, que teria se aproveitado da fragilidade física do ator para fazê-lo doar a casa onde morava, em Santa Teresa. Além disso, o patrimônio de Sergio vinha diminuindo gradativamente desde 2007, ano que marca o início da administração de Bento. Ainda de acordo com a revista, Antônio Bento não teria prestado socorro imediato quando Sergio sofreu o acidente doméstico. Depois da morte do tio, Marília, ciente da importância do acervo que guardava, tentou levar o material para casa com o intuito de preservá-lo, mas não conseguiu tirar tudo. “Tirei o principal, mas ficaram 31 caixas grandes com livros, VHSs e DVDs. No momento, não posso entrar na casa, que está fechada”, revelou.

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Mesmo que Sergio Britto tenha movido um processo contra Antônio Bento ao descobrir a série de desvios, a casa permanece como direito do ex-administrador. Paulo César, que também está enfrentando a luta para restabelecer os bens de Sergio, teve uma parceria artística com o ator e tio. “A nossa história profissional começou em Autos sacramentales”, disse, referindo-se ao polêmico espetáculo de Victor García para o texto de Calderón de la Barca, apresentado no Festival de Shiraz, no Irã. “Eu era muito jovem. Tinha pouco mais de 20 anos. Victor concebeu o espetáculo com máquinas que nunca funcionaram. Todos os atores deveriam ficar nus, mas chegou uma ordem da organização do xá Mohamed Reza Pahlevi determinando que teríamos que usar tapa sexo. Victor não aceitou e vestimos macacões. Depois, o grupo se desfez. Mas Luca Ronconi procurou Ruth Escobar, que produzia o espetáculo, e disse que acreditava no trabalho. Ruth colocou a Interpol atrás dos atores, nesse momento já espalhados pelo mundo. Nós nos reencontramos em Paris e nos apresentamos em Veneza, Lisboa e Londres”, relembrou. O contato de Paulo César com teatro vem desde criança. “Morávamos eu, meu pai, minha irmã e


Mesmo distante da profissão artística, Marília Brito esteve próxima do tio. Enfrentou a turbulência do último ano, quando passou a gerir a vida de Sergio “Trabalhar com ele era um prazer. Acho que Sergio foi meu melhor aluno” Paulo César

“De início, não saíamos juntos. Ele insistia, dizia que eu era da família. Ele não se comportava como meu patrão” Chica

meu avô e minhas avós. Sergio passava por lá juntamente com outros atores, como Ítalo Rossi, Lélia Abramo, Nathalia Timberg, Aldo de Mayo, Haydée Bittencourt. Dormiam lá porque ficavam entre Rio de Janeiro e São Paulo. Era a época do Grande Teatro da TV Tupi”, rememorou. Outro que aparecia na casa de Vila Isabel era Nelson Rodrigues. “Ele ia ver o jogo do Fluminense”, lembrou. Em determinando momento, Sergio e Nelson brigaram. “Um dia, Sergio entrou na sala do Orlando Miranda e lá estava o Nelson. Orlando saiu e os dois ficaram em lados opostos da sala. Até que Sergio disse: ‘vamos acabar com isso’. E se abraçaram.” No decorrer do tempo, Paulo César respondeu pela preparação corporal de Sergio. “Lembro que quando ele fez Rei Lear, entrou em crise com o personagem. Trabalhamos a bioenergética. Nós nos aproximamos bastante naquele momento”, acrescentou Paulo César, evocando a montagem de 1983. “Ele também me chamou para fazer a preparação corporal dos cantores e do coro em Carmen”, lembrou, trazendo à tona a ópera de Georges Bizet. Paulo César auxiliou Sergio em dois monólogos – Jung e eu e A última gravação de Krapp/Ato sem palavras 1. “Para os textos de

Beckett, eu propunha um gestual mais vazio, com a menor intenção possível”, explicou Paulo, ressaltando a importância do vínculo entre ambos. “Dançávamos muito e fortalecíamos as articulações dele. Trabalhávamos com Chet Baker, Cartola, Dorival e Nana Caymmi, Billie Holliday, Cesária Évora. Criávamos um espaço sonoro. Trabalhar com ele era um prazer. Acho que Sergio foi meu melhor aluno”, afirmou Paulo, diretamente influenciado por Angel Vianna. Chica chegou à casa de Sergio Britto em 1975, época em que o ator morava em Copacabana. Seguiu com ele para os apartamentos da Gávea e do Leblon e, finalmente, para a casa de Santa Teresa. “Eu estava indo para a casa da minha mãe. Apareceu uma pessoa e perguntou se eu não queria trabalhar na casa do Sergio. Meu filho mais velho tinha acabado de nascer e eu precisava de emprego. Fui até a casa dele. Sergio estava em São Paulo. Herson, o secretário, atendeu. Eu era nova, não tinha experiência. Ele me mostrou a casa. Quando virei, avistei um pôster de Sergio, que tinha acabado de fazer a novela Anjo mau. Fiquei paralisada. Até então não sabia que estava na casa de um ator. Aí me deram duas sacolas de roupa para lavar e passar. Nem

pediram documentação. Quando voltei para entregar, já fiquei no emprego”, disse. No emprego, Chica aprendeu a cozinhar. “Tinha força de vontade. Pegava livros de receita. A mãe de Sergio, Alzira, ligava e me aconselhava”, disse. No apartamento do Leblon, os almoços e jantares para os amigos eram constantes. Nas ceias de Natal, Chica levava os filhos e o namorado. “Sergio nunca fez objeção”, garantiu. Aos poucos, viraram grandes amigos. “De início, não saíamos juntos. Ele insistia, dizia que eu era da família. Ele não se comportava como meu patrão. Venho de uma família muito humilde e conheci um mundo ao qual não tinha acesso. Viajei com ele para São Paulo, Fortaleza, Buenos Aires”, acrescentou.

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Fernanda Montenegro

“Sergio sempre foi um irmão para mim” Fernanda Montenegro e Sergio Britto tinham reencontro marcado no teatro e na televisão. Mas o ator acabou não participando nem do projeto centrado em Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir (que acabou rendendo a montagem de Viver sem tempos mortos), nem da novela Passione, de Sílvio de Abreu. Reencontro, porém, não é a palavra certa. Afinal, eles nunca se afastaram. “Sergio sempre foi um irmão para mim, como Ítalo (Rossi). Não tínhamos nenhum segredo, nenhuma retaguarda”, afirma Fernanda. Os dois se conheceram em 1948, mas firmaram um sólido vínculo a partir de 1954, no Teatro Popular de Arte, companhia de Maria Della Costa e Sandro Polônio. Participaram das montagens de Com a pulga atrás da orelha, de Georges Feydeau, Mirandolina, de Carlo Goldoni, A Moratória, de Jorge Andrade (primeira grande

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oportunidade da atriz dentro do grupo), e A ilha dos papagaios, de Sérgio Tofano. Migraram para o Teatro Brasileiro de Comédia, onde estiveram em espetáculos como Nossa vida com papai, de Howard Lindsay, Vestir os nus, de Luigi Pirandello, e Pedreira das almas, de Jorge Andrade. Em paralelo, mergulharam na aventura do Grande Teatro da TV Tupi. Fernanda trabalhou com Sergio na encenação de vários textos (muitos adaptados por Manoel Carlos): John Gabriel Borkman, de Henrik Ibsen; O torniquete e Assim é se lhe parece, de Pirandello; Santa Marta Fabril S.A., de Abílio Pereira de Almeida; O primo Basílio, de Eça de Queirós; Esses fantasmas, de Eduardo De Filippo; O leque de Lady Windermere, de Oscar Wilde; O dilema de um médico, de George Bernard Shaw; Tio Vânia, de Anton Tchekhov; O genro de muitas sogras, de Artur Azevedo; e Humilhados e ofendidos, de F. Dostoievski. Na TV Rio, representaram peças de Pirandello (Seis personagens à procura de um autor) e Tchekhov (A dama do cachorrinho). Já na Excelsior, Sergio dirigiu Fernanda em novelas como A muralha, de Ivani Ribeiro, e Sangue do meu sangue, de Vicente Sesso. Outra aventura incomensurável foi a fundação do Teatro dos


Sete, companhia que marcou a volta de Fernanda, Sergio, Fernando Torres e Ítalo Rossi, juntamente com Gianni Ratto, para o Rio de Janeiro. “Nós não tínhamos dinheiro e queríamos fazer O mambembe”, lembrou Fernanda, acerca da montagem do texto de Artur Azevedo, que pede um elenco bastante numeroso. Os atores aproveitaram, então, a popularidade adquirida com o Grande Teatro. “Organizamos um sistema de assinaturas, por meio do qual os espectadores poderiam ver os nossos primeiros espetáculos. Além de O mambembe, oferecemos A profissão da senhora Warren, Cristo proclamado e O beijo no asfalto”, disse. Para encenar O mambembe, o grupo foi ao Theatro Municipal pedir figurinos. Foram surpreendidos pelo desejo do Municipal de prestar homenagem a Artur Azevedo – que muito lutou pelo projeto, sem tê-lo visto de pé, pois morreu um ano antes, em 1908, da inauguração – e de marcar os 50 anos do Theatro Municipal. Estrearam no palco do Municipal em 1959. “Foi um espetáculo histórico. Uma confraternização de gerações em cena”, contou, emocionada. Fernanda e Sergio passaram períodos turbulentos. 1959, ano de O mambembe, representou o fim de um período. “O Rio de Janeiro

deixaria de ser capital. Viria a renúncia de Jânio Quadros e depois o Golpe Militar”, relembrou Fernanda. Enfrentaram o fracasso de Cristo proclamado, de Francisco Pereira da Silva. “Era um espetáculo muito bonito no teatro errado”, disse Fernanda, referindo-se ao Copacabana Palace. “Estávamos numa época em que as pessoas acreditavam que o Brasil ia dar certo. Ninguém queria saber do Norte ou da fome”, explicou. A renúncia de Jânio afetou o Teatro dos Sete durante a temporada de O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues, obrigando o grupo a migrar do Teatro Ginástico para o Maison de France. E a companhia seguiu priorizando comédias de qualidade, de autores como Molière, Miguel de Cervantes, Martins Pena (reunidos em Festival de comédia), Feydeau (Com a pulga atrás da orelha) e Goldoni (Mirandolina). Com o término das atividades do Teatro dos Sete, Fernanda e Sergio perpetuaram a parceria na Torres e Britto Diversões Ltda. e encenaram A mulher de todos nós, de Henri Becque, e Volta ao lar, de Harold Pinter. Depois, quando Sergio assumiu a programação do Teatro Senac, fizeram O marido vai à caça, de Feydeau, encerrando um longo período de casamento profissional. Já no início da década de 1980, Fernanda protagonizou um

imenso sucesso do Teatro dos Quatro, sociedade firmada por Sergio Britto, Mimina Roveda e Paulo Mamede: As lágrimas amargas de Petra Von Kant, de R. W. Fassbinder. Fernanda destacou o caráter empreendedor de Sergio. “Eu e Ítalo sempre fomos pessoas de palco. As duas cabeças pensantes eram Sergio e Fernando – e Sergio foi ainda mais obstinado”, disse a atriz sobre o amigo que capitaneou a programação dos teatros Senac, dos Quatro, Delfim e do Centro Cultural Banco do Brasil. “Sergio tinha uma realidade na vida que era o teatro. Não podia viver sem isso. Saía da cama, da cirurgia, da pneumonia e ia para o palco”, concluiu. Daniel Schenker

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Nathalia Timberg

“Sergio teve a avidez de um jovem até o fim” Sergio Britto e Nathalia Timberg foram amigos, parceiros profissionais da vida toda e realizaram um feito inédito: encenaram três vezes (em 1964, 1989 e 1998) o mesmo texto: Meu querido mentiroso, de Jeromy Kilty, no qual ele interpretava George Bernard Shaw e ela, Beatriz Patrick Campbell. As duas primeiras montagens renderam à atriz o Prêmio Molière. “A cada vez, significou uma viagem nova. Fomos amadurecendo e atingindo a idade dos personagens. A leitura de um mesmo texto

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se torna diferente, porque nós vamos mudando. Talvez seja a única vantagem em relação à passagem do tempo”, observou Nathalia Timberg. No final da década de 80, quando decidiram realizar um novo espetáculo da peça encenada mais de 20 anos antes, adiaram para que ela pudesse substituir, em tempo recorde, Yara Amaral, morta precocemente na tragédia do Bateau Mouche, em Filumena Marturano, de Eduardo De Filippo. Ao lembrar da última vez em que revisitaram o texto, Nathalia externou a admiração por Sergio: “Tinha que tomar cuidado para não me distrair observando Sergio em cena.” Sergio e Nathalia contracenaram no início das suas carreiras, no Teatro Universitário, na montagem de Quebranto, de Coelho Neto, em 1950, sob a direção de Esther Leão. Reencontraram-se no Teatro Brasileiro de Comédia na encenação de Maurice Vaneau para A casa de chá do luar de agosto, de John Patrick. E viveram juntos a aventura do Grande Teatro da TV Tupi, onde apresentaram textos como Profundo mar azul, de Terence Rattigan; Disque M para matar, de Frederick Knott; Ralé, de Maximo Gorki; e O sedutor, de Diego Fabbri, entre muitos outros. “Minha primeira experiência na TV foi com Sergio. Ninguém nunca


mais terá a chance de viver algo tão intenso quanto nós no Grande Teatro. Éramos jovens demais para todas as responsabilidades que assumimos no começo de nossos percursos profissionais”, disse a atriz. Além de ter sido dirigida por Sergio na Tupi, Nathalia foi conduzida por ele em novelas como A muralha, de Ivani Ribeiro, Sangue do meu sangue, de Vicente Sesso, ambas na TV Excelsior, e na versão de As pequenas raposas, de Lillian Hellman, na TV Globo. Ambos deixaram momentaneamente de trabalhar juntos em teatro quando Sergio, Gianni Ratto, Fernanda Montenegro, Fernando Torres e Ítalo Rossi trocaram São Paulo pelo Rio de Janeiro e fundaram o Teatro dos Sete. “Trilhamos caminhos paralelos, mas nunca nos distanciamos. Eu vinha ao Rio sempre que possível para assistilos”, acrescentou a atriz. Anos mais tarde, Nathalia Timberg se tornou uma das presenças mais frequentes do Teatro dos Quatro, sociedade firmada juntamente com Mimina Roveda e Paulo Mamede, que movimentou a cena carioca durante a década de 1980. Interpretou a Senhora Frola na montagem de Assim é... se lhe parece, de Luigi Pirandello; a Simone de Beauvoir da cabeça do protagonista de A cerimônia do adeus, de

Mauro Rasi; a aristocrática matriarca Liuba em O jardim das cerejeiras, de Anton Tchekhov; e a já citada Filumena Marturano. Como ator, Sergio Britto se dispôs a trabalhar com diretores munidos de propostas arrojadas. “Ele teve a avidez de um jovem até o fim. A paixão pelo teatro era o que o movia. Foi um grande homem de teatro, talvez o maior que tivemos nos últimos tempos”, afirmou Nathalia. Daniel Schenker

“A paixão pelo teatro era o que o movia. Foi um grande homem de teatro, talvez o maior que tivemos nos últimos tempos”

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PORTO VERÃO

ALEGRE Com 79 espetáculos de teatro profissional, a preços promocionais, a 13ª edição do evento Porto Verão Alegre, realizado entre 9 de ja-

Rodrigo Monteiro

neiro e 16 de fevereiro de 2012, teve teatros lotados e ingressos esgotados para uma programação intensa e uma agenda de acontecimentos de dar inveja ao tradicional eixo Rio-São Paulo. Coordenado pelos atores Zé Victor Castiel e Rogério Beretta, o hoje efervescente festival – que nasceu quando as então escassas plateias de teatro local minguavam mais ainda nessa época do ano em função do público veranista que transferia sua residência para o litoral ou para a serra – é a prova de que algo mudou no teatro feito no sul do país.

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“Começou por acaso”, conta Castiel. “Era outubro de 1998 e eu li no jornal que naquele feriado de finados cerca de 200 mil pessoas sairiam de Porto Alegre em direção às praias. Este número representa 25% da população da cidade! Pensei: o que vai ser isso no verão?! E me assustei.” Zé Victor Castiel estava no elenco da peça Marido do dr. Pompeu e o espetáculo entraria em cartaz em janeiro. “O (Rogério) Beretta ia fazer temporada com A vida muda. Então, propus a ele fazer uma divulgação compartilhada para economizar os custos, diminuir os prejuízos e alcançar um público maior. Decidimos ir atrás de outros atores que tinham se programado para se apresentar em janeiro e fevereiro.


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GERSON DE OLIVEIRA

Boneca Teresa

ANDRESSA VENTURINI

Pois é, vizinha! BETÂNIA DUTRA

Pimenta do reino em pó

A gente não sabia, mas o primeiro Porto Verão Alegre estava sendo criado.” Marido do dr. Pompeu (direção de Dilmar Messias), A vida muda (direção de Néstor Monasterio), Escola de sereias (Zé Adão Barbosa), Comédia dos amantes (Oscar Simch), Pois é, vizinha! (Débora Finocchiaro) e Eu sei que vocês dublaram no verão passado (direção de Eduardo Kraemer) foram os seis espetáculos que, unidos, organizaram um plano comum de divulgação, oferecendo bilheteria aberta sete dias por semana em horário comercial, pontos de venda e programas com o título Porto Verão Alegre. “O Julinho Andrade tinha feito uma imagem com as máscaras

de teatro e conseguimos apoio do Shopping Praia de Belas e da Lancheria do Parque. Os ingressos eram xerocados e a gente ficava na Lancheria assinando e carimbando os canhotos para evitar falsificação. Cada entrada custava R$ 5,00 e conseguimos lotação esgotada em todas as sessões dos seis espetáculos. Nós vimos que, se de fato muita gente ia para a praia, com certeza havia quem ficasse no calor de 42º de Porto Alegre. E era uma parte desse grupo de pessoas que tínhamos conquistado”, relembra Zé Victor Castiel. Os últimos anos da década de 1990 representaram o fim de um tempo penoso para o teatro gaúcho. Até então era comum ir ao teatro e ter que voltar para casa sem assistir à peça, porque a apresentação havia sido cancelada por falta de um número mínimo de ingressos vendidos. O jornal Zero Hora divulgava a temporada das produções cariocas e paulistas que “desciam” para o Theatro São Pedro na capa do Segundo Caderno, grafando a palavra “estreia”, ainda que, em letras miúdas, informasse que as produções ficariam


Frida Kahlo, à Revolução 28

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BETÂNIA DUTRA

Parasitas

Sul do país para se desenvolver, trabalhar e se estabilizar como profissional de teatro, porque lá não havia campo. Nesse contexto, surgiu o Porto Verão Alegre como uma forma de reunir os profissionais da capital, chamando a atenção do público para a produção feita ali. As edições seguintes do Porto Verão Alegre consolidaram a identidade criada no primeiro ano. Participam da programação apenas produções locais. Passados mais de dez anos, o evento funciona como uma cooperativa de atores e de técnicos, que se reúnem para dividir o público que cresce a cada novo ano. Com o aumento de ingressos vendidos, o número de espetáculos participantes também aumentou.

CARLOS SILLERO

A bilha quebrada

JÚLIO APPEL

em cartaz apenas um único final de semana, continuando as apresentações em várias c i d a d e s antes e depois da exibição dos espetáculos em Porto Alegre. Foi um período em que havia poucos grupos ativos na cidade, não tantas salas de espetáculos (o que ainda hoje poderia ser melhor!), embora tivesse sempre em cartaz um bom espetáculo. A partir de meados dos anos 90, recomeçou-se a estabelecer fortes laços de amizade com núcleos nacionais e internacionais de artes cênicas através do Festival Porto Alegre em Cena, que ainda era um bebê, mas, sem dúvida, já bastante forte sob a organização de Luciano Alabarse. Chegava ao fim a época em que os grandes artistas precisavam abandonar o


ESTUDIO 30

Kahlo, à Revolução; espetáculos mais densos, como Dois de paus e Parasitas; os espetáculos infantis Saltimbancos e Pimenta do reino em pó; peças com temática espírita, Entrevista com espíritos; jogos dramáticos, Essa noite se improvisa Nelson Rodrigues;

Zé Victor Castiel

Boa-noite, Cinderela

LUCIANE PIRES

KIRAN

Isaías in tese “Em um determinado momento, soubemos que havia peças produzidas apenas para o Porto Verão Alegre. Algumas delas eram muito ruins e percebemos que corríamos o risco de o público associar a falta de qualidade dessas produções a toda a programação do evento. Chegamos à conclusão de que a grade estava “inchada” e algo precisava mudar. Começamos a estabelecer uma criteriosa, mas não preconceituosa, análise das produções, para que só participassem espetáculos profissionais”, disse Castiel. Na grade de peças do Porto Verão Alegre, participaram neste ano comédias, como A bilha quebrada e Boa-noite, Cinderela; monólogos, Isaías in tese e Frida

"Começamos a estabelecer uma criteriosa, mas não preconceituosa, análise das produções, para que só participassem espetáculos profissionais”

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Essa noite se improvisa Nelson Rodrigues

PATRÍCIA MORAES

Dois de paus Bailei na curva

DU R. MACIEL VILMAR CARVALHO

clássicos da dramaturgia gaúcha, como Bailei na curva, Se meu ponto G falasse e Boneca Teresa. Foram também promovidos bate-papos com escritores, visitas teatralizadas à Fundação Iberê Camargo, exibição de curtas-metragens e espetáculos de música e de dança. Todas

essas atividades extras tiveram entrada gratuita. “Os diretores Patsy Cecato e Néstor Monasterio estão com cinco espetáculos cada um na programação. Junto com eles há vários outros diretores e grupos com mais de uma produção, o que nos leva a acreditar que o evento é apoiado tanto pelos artistas participantes como pelo público,” ressalta Castiel, acrescentando que, neste ano, cem mil ingressos foram vendidos em um mês de programação, o que é, talvez, mais do que o total de todos os ingressos vendidos por todas as produções locais durante um ano inteiro na capital. “Sabemos que os preços promocionais (R$10 a R$25) ajudam, mas não temos dúvida de que a divulgação e o fácil acesso às informações são os principais diferenciais. As pessoas têm na internet e no programa impresso as melhores opções para o seu lazer. Elas sabem a hora em que começa e termina a peça, o endereço do teatro, a sinopse do espetáculo e o telefone para contato com a produção. Temos um posto de vendas dentro do Shopping Praia de


LUIS CARLOS PRETTO

Entrevista com espíritos

MYRA GONÇALVES

Se meu ponto G falasse Belas e outro na nossa sede, que fica no Casarão Verde do Shopping DC Navegantes, este último com telefone e e-mail funcionando o ano inteiro. Todos ganham com o Porto Verão Alegre”, orgulha-se Zé Victor Castiel, também participante do evento como ator em Homens de perto 2. Há muito tempo o Rio Grande do Sul exporta atores para o eixo Rio-São Paulo, em cujos teatros eles fazem sucesso, conquistam independência financeira e têm a oportunidade de se estabilizar profissionalmente como artistas de renome nacional. Glória Menezes, Paulo José, Paulo César Pereio, Lílian Lemmertz, Walmor Chagas, José Lewgoy são nomes conhecidos da velha guarda. Além de frutos de “safras” mais atuais:

Vanise Carneiro, Evelyn Ligocki, Larissa Maciel, Giovana de Figueiredo, Cléo de Paris, Gustavo Wabner, Rafael Pimenta, Tiago Leal, Tiago Real, Maíra Castilhos, Luís Emílio Strassburguer, Fernanda Mandagará, Sharon Menezes, Rochele Sá, Natália Romano, Kailton Vergara, Yheuriet Kalil, Júlio Andrade, Marcos Breda, Ilana Kaplan, Biño Sauitzvy, Cris Garcia, Marcelo Aquino, Zé Alessandro, Rafaela Cassol, Guto Szuster, Fabiano Xavier, Rodrigo Najjar, Roberto Camargo, Sissi Venturin, Pedro Tergolina, Nando Messias, Grace Gianoukas. “Esses atores e atrizes são alguns entre vários outros que poderíamos citar como exemplos que hoje atuam fora do estado onde nasceram e cresceram.

Mas se engana quem pensa que é apenas a época da partida que separa um grupo do outro. Diferente de antigamente, talvez o Porto Verão Alegre seja o mais forte símbolo dessa feliz realidade: quem sai hoje do pampa não abandona uma cidade sem mercado artístico, sem possibilidades, sem público, como antigamente. Quem parte hoje não alça voos, mas novos voos, pois já voava perto da casa de seus pais. Quem parte hoje do Rio Grande do Sul, e eu sou um exemplo disso, deixa a porta aberta para voltar e continuar trabalhando como antes, assim como aqueles que veem a partida apenas como mais uma possibilidade. Uma Alegre, entre tantas”, conclui Zé Victor Castiel.

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FOTOS: ACERVO DE FAMÍLIA

Um autêntico

artesão Manoel Pêra e Mesquitinha em A tal

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Manoel Pêra em foto da Companhia de Comédias que teve com Iracema de Alencar

Intuitivo e bem-sucedido ator de teatro, Manoel Pêra trabalhou com Mesquitinha, Dulcina de Moraes e Henriette Morineau, e marcou presença no início da televisão e do cinema no Brasil Daniel Schenker

Manoel Pêra (1894-1967) faz parte de uma geração de grandes atores, assim como Procópio Ferreira e Jaime Costa, que foram muito valorizados durante décadas e depois relegados a postos de menos destaque em meio ao processo de transformação do teatro brasileiro, marcadamente a partir dos anos 1940. Português de Carregosa, Manoel desembarcou com a família no Brasil em 1899. Trabalhou como alfaiate e carpinteiro, funções que revertia para o ofício teatral. “Papai e tio Abel foram carpinteiros, serralheiros, artesãos, excelentes alfaiates. Construíram móveis para casa. Papai costurava para as filhas e confeccionava tudo para ele e os colegas. Era também professor de maquiagem, tinha malas de maquiagem. Quando morreu, Paulo Gracindo pediu essas malas. Até então consagrado no rádio, Gracindo começou a ascender naquele momento, através da composição de tipos”, contou Marília Pêra, filha de Manoel, que, juntamente com a irmã, Sandra, vem se dedicando a gravações com o intuito de preservar a história da família, diante da desvalorização da memória artística no Brasil. Ao longo de sua carreira, Manoel passou por algumas

companhias. Uma delas foi a Mesquitinha-Alma Flora, onde conheceu a atriz Dinorah Marzullo, com quem se casou, em 1939, no palco de um teatro em Porto Alegre. “Papai fez dupla famosa com Mesquitinha no Cassino da Urca”, acrescentou Sandra. Também firmou parceria com Iracema de Alencar e atuou com artistas representativas do início do moderno teatro brasileiro, como Dulcina de Moraes e Henriette Morineau. “Com Morineau e Dulcina, participou da montagem de textos clássicos e dramas psicológicos, como As árvores morrem de pé, de Alejandro Casona, e Chuva, de Somerset Maugham. Entravam no teatro às 9h e ensaiavam até as 13h. Normalmente, Dulcina e Morineau dirigiam. Saíam para almoçar, voltavam e faziam duas sessões”, relembrou Marília, ao comentar a efervescência teatral de décadas anteriores. Foi justamente na companhia de Morineau, Os Artistas Unidos, que Marília deu seus primeiros passos profissionais, aos quatro anos, ao participar da encenação de Medeia, tragédia de Eurípedes, junto com os pais. “Mamãe integrava o coro com Margarida Rey e Sonia Morineau. Papai era Jazão. Fizemos ainda com Morineau O casaco encantado, de

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“Ele me tornou consciente da pausa, da importância de ouvir o colega, de sentir a respiração do público.” Marília Pêra

Manoel Pêra e Procópio Ferreira em Que santo homem

Lúcia Benedetti. E a vi em Uma rua chamada pecado”, disse Marília, destacando a montagem em que Manoel Pêra interpretava o rude Stanley Kowalski, que tinha uma relação passional com Blanche Dubois, personagens de Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams. Marília Pêra considera o pai seu “primeiro mestre”. “Ele me tornou consciente da pausa, da importância de ouvir o colega, de sentir a respiração do público.” Em depoimento à Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo, incluído no livro Sobre o trabalho do ator, de Mauro Meiches e Sílvia Fernandes, Marília Pêra declarou, a respeito da relevância de Manoel Pêra: “Eu acho que meu primeiro diretor foi meu pai. Certa ocasião, em uma peça que eu fazia, ele me disse: ‘se você terminar com essa frase e essa inflexão para baixo, em vez de terminar com a inflexão lá para cima, vão te aplaudir’. Eu perguntei: ‘por quê?’ Ele respondeu: ‘não sei. Tenta’. E aplaudiam. Em Como vencer na vida sem fazer força, ele foi assistir a um ensaio e falou: ‘Você está cheia de mãos. A gente fica desesperado olhando para suas mãos. Você não sabe onde põe as mãos’. Eu tinha esse problema. Ficava o tempo

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Dinorah Marzullo, Antonia Marzullo, Iracema de Alencar, Abel Pêra e Manoel Pêra na peça A pensão da Dona Estela

todo contando a historinha do meu personagem, preocupada com as mãos. Via-se demais isso em cena. Era meu primeiro trabalho profissional. ‘Papai, como é que se faz?’ Então, ele me mandou passar dois ensaios, enrolar dois textos, um em cada mão, e colocá-las para trás. E ensaiar o tempo todo sem tirar as mãos dali em nenhum momento. Depois, passar dois ensaios só com a mão direita para baixo, depois só com a mão esquerda para baixo, depois liberar o texto da mão esquerda durante mais dois ensaios e por fim liberar o texto da mão direita. E, sem perceber, o gesto vem naturalmente. Ele foi meu

primeiro diretor nessas coisas primárias. Quando eu vinha correndo contar uma história, ele interrompia: ‘eu não estou entendendo o que você está falando. Você está engolindo as últimas sílabas. Começa de novo. Não entendi a sua história’”, lembrou Marília, que também abordou a influência do pai em sua carreira no livro Vissi d’arte, que escreveu juntamente com Flávio de Souza. A partir de determinado momento, Marília também passou a ensiná-lo. “Ele era um intuitivo. Tocava piano, acordeom, gaita. Quando c o m e c e i a a p re n d e r, passava a parte teórica para ele. Tinha muito interesse”, contou.

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Grande Otelo, Manoel Pêra, Celso Guimarães e Heloisa Helena na peça Luz dos meus olhos

Sandra Pêra teve menos oportunidade de convívio com Manoel. “Eu o vi pouco em cena. Lembro de espetáculos como O imperador galante, Tia Mame, O noviço, Se correr o bicho pega... se ficar o bicho come. Ele nem conseguiu me assistir em cena. Morreu quando eu tinha 13 anos. Um ano antes, participei de uma encenação de A mensagem do salmo, uma peça sacra que minha mãe fazia, apresentada nas ruínas da Igreja Nossa Senhora do Carmo. Eu implorei para entrar em cena. Mas sei que era uma pessoa bastante crítica. Quando sentava para assistir alguma coisa, comentava com quem

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estivesse ao lado: ‘repara isso’, ‘vai acontecer aquilo’. O que ficou para mim é a imagem do ator econômico, que expressava tudo através de poucos gestos. Ouvi várias histórias e elogios de atores como Brandão Filho e Jofre Soares”, relembrou Sandra. No cinema, Manoel Pêra se destacou em alguns filmes. De um, as filhas se lembram especialmente: O crime dos banhados (1914), de Francisco Santos. Trata-se da reconstituição do assassinato ocorrido em abril de 1912, quando uma família inteira foi morta na Fazenda do Passo da Estiva, no 5º distrito do município


“O que ficou para mim é a imagem do ator econômico, que expressava tudo através de poucos gestos.” Sandra Pêra

de Rio Grande. “Filmaram no cenário do crime”, esclareceu Marília. Manoel fez O bobo do rei (1936), de Mesquitinha, com Conchita de Moraes, Elvira Pagã e o próprio Mesquitinha, e Luz dos meus olhos (1947), de Luiz Carlos Burle, com Cacilda Becker. Outra produção foi Mãos sangrentas (1954), de Carlos Hugo Christensen, que contava no elenco com as presenças de Tônia Carrero, Arturo de Córdova, Sadi Cabral, Heloísa Helena, Gilberto Martinho, Oswaldo Louzada e a sogra de Manoel, Antonia Marzullo. Sandra contou que um homem mandou-lhe um e-mail dizendo que tinha cópia de Mãos Sangrentas, mas não conseguiu encontrá-lo. “Nunca tive acesso a nenhum dos filmes que meu pai fez”, lamentou. Na televisão, Manoel Pêra ingressou na Tupi, onde participou de programas como TV de vanguarda e Teatro das segundasfeiras. Ao longo dos anos 1960 principalmente, os convites diminuíram de intensidade, ainda que tenha trabalhado até o final da vida. “Chamavam para participações pequenas. Ele entristeceu, foi deprimindo, ficando sem dinheiro”, disse Marília. A melancolia dos últimos tempos não nublou, porém, a força de sua presença.

Casamento no palco que deu certo na vida Daniel Schenker

O casamento de Manoel Pêra e Dinorah Marzullo, em 1939, foi singular. Aconteceu no palco de um teatro em Porto Alegre, pouco antes de uma apresentação. “Casamos antes do espetáculo. Eu não sabia que seria no palco, embora fosse a noiva”, contou Dinorah, que, na época, tinha 19 anos e também casou na Igreja. “De início, Manoel não queria. Era maçom. E maçom não tem crença. É um estado de espírito”, acrescentou. O namoro havia gerado certa polêmica. “Ele tinha a idade de minha mãe”, explicou Dinorah, referindo-se à atriz Antonia Marzullo. “Ela me dizia: ‘ele poderia ser seu pai’. Eu respondia: ‘não importa. Quero casar com ele’”, lembrou. Dinorah realmente não teve dúvidas diante da proposta de Manoel. “Um dia, ele perguntou: ‘Dinorah, quer casar comigo?’ Eu disse: ‘quero’. Manoel era simpático, tinha um riso aberto, não se metia na vida de ninguém.” Antonia, Dinorah e Manoel trabalhavam na mesma companhia: Mesquitinha-Alma Flora. Abel Pêra, irmão de Manoel, era

da companhia de Procópio Ferreira. “Quando terminava o espetáculo, Manoel nos levava para lanchar. Passou a nos acompanhar até quando íamos a restaurantes, para que eu e mamãe não voltássemos sozinhas para o hotel”, relembrou. Mais tarde trabalharam com Henriette Morineau e Dulcina de Moraes. “Morineau era ótima. Bastava saber lidar com ela. Era durona, talvez porque fosse sozinha. Mas sempre se revelou honesta. E nos adorava. O temperamento de Dulcina era diferente, mais leve. Tinha Odilon (Azevedo) ao lado dela”, comparou. Dinorah também contracenou, ainda que circunstancialmente, com Manoel Pêra no famoso quadro da Agripina, parte do programa Gira mundo gira, da TV Tupi. “O quadro mostrava um homem milionário (interpretado por Abel Pêra, cunhado da atriz), que tentava sem sucesso casar a filha, Agripina (Dinorah), muito feia. Em um dos programas, Manoel fez um dos pretendentes”, contou Dinorah, que aparecia com uma maquiagem carregada.

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UM LUGAR PARA O ACERVO DO CRIADOR DO ARENA José Renato deixou, ao morrer, preciosos projetos, bilhetinhos, recortes, fotos, textos clássicos, livros e revistas José Sérgio Rocha

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José Renato (nome artístico de Renato José Pécora), reconhecido por sua competência como diretor e responsável pela criação do Teatro de Arena, deixou, ao morrer, um acervo valioso, guardado em dois apartamentos. Em São Paulo, no bairro da Casa Verde, e no Rio, em um velho edifício de Copacabana. Em São Paulo, os amigos João Ribeiro, ator e diretor, e Ernevaz Fregni, teatróloga e jornalista, dois de seus principais colaboradores nos últimos anos, se dividem no trabalho de separar pilhas de projetos, bilhetinhos, recortes, fotos, textos clássicos, livros e revistas que tomam boa parte dos dois imóveis. No Rio, parte de uma sala e um quarto-escritório estão cheios de pastas de papelão contendo seus escritos. Muita coisa mesmo, inclusive sobre o último grande projeto dele, o Teatro dos Arcos, criado em 2002. No meio da papelada, os garimpeiros Ernê e João Ribeiro estão encontrando muitos textos enviados por novos autores que gostariam

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de ser lidos por José Renato, que dava retorno a todos. No livro que conta sua vida, ele diz: “Àqueles que têm preguiça de ler, conto um fato acontecido comigo, no fim de 1955. Recebi de um amigo de Recife uma peça que ele dizia ser muito boa. Eu andava ocupado e achei o título desinteressante. Não li, guardei numa gaveta e acabei esquecendo. O texto ficou engavetado seis meses. Esse amigo ligou de novo, me perguntando se eu havia lido e, como eu ainda não tinha encontrado tempo, me pediu de volta, porque a peça seria encenada lá mesmo em Pernambuco. Era o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Daí em diante, passei a ler tudo o que me mandam.” José Renato se casou três vezes. Casamentos longos: com a primeira mulher, a professora Iracema Bacoccina, de quem se separou para viver com Maria do Rocio, sua colega na televisão. Viúvo após 35 anos, se casou novamente e passou os últimos 21 anos de vida com


a atriz Ângela Valério, a quem dirigiu em Um edifício chamado 200. Ângela guarda parte do acervo. Para onde vai esse material todo, ainda não se sabe. O filho, José Guilherme Pécora, entrou em contato com a Funarte, em São Paulo, para fazer a doação. No Rio de Janeiro, Ângela espera a decisão. É mais provável que esse tesouro fique em São Paulo, num espaço que a Funarte estaria planejando criar para reunir todos os acervos ligados a teatro que administra. Curiosamente, este lugar pode ser o velho casarão na Rua Major Diogo, no coração do Bexiga, o mesmo onde José Renato teve grandes professores naquele primeiro endereço da Escola de Arte Dramática (EAD) e conheceu os diretores italianos trazidos por Franco Zampari para impulsionarem o TBC e a Vera Cruz. Quem sabe?

FLÁVIO TOLEZANI

Um lugar na história do teatro brasileiro “Temos poucos diretores e muitos atores. Você é baixinho, o que limita seus papéis, e sua voz é horrível. Por que não dirige?” A franqueza contundente de Cacilda Becker nunca foi esquecida por José Renato, aluno da grande atriz na EAD de tanta história, criada em 1948 pelo empresário e mecenas Alfredo Mesquita e depois absorvida pela USP (Universidade de São Paulo). O conselho foi seguido pelo estudante. Ator por pouco tempo, logo abraçou a direção. Cacilda não estava totalmente errada: foi como diretor que José Renato conquistou um lugar na história do teatro brasileiro. Nem totalmente certa: mais de meio século após a frase terrível, o criador do Teatro de Arena e diretor de mais de cem peças parecia possuído de um entusiasmo juvenil com o sucesso que fazia na reestreia como ator, no papel do jurado nº 9 de Doze homens e uma sentença. O espetáculo dirigido por Eduardo Tolentino precisava de apoio financeiro. Aí entrava o Zé que todos conheciam. Em março

de 2011, temendo que a falta de patrocínio abreviasse a temporada, ele foi ao programa do amigo Jô Soares, para contar o que estava acontecendo. Semanas depois, na noite de domingo, 1º de maio de 2011, ele viu mais uma vez o Teatro Imprensa, na Bela Vista, se encher de gente, apesar do tempo chuvoso em São Paulo, para mais uma apresentação da peça americana que se tornou um clássico do cinema. O papel do jurado mais velho tornou-se a segunda pele de José Renato. Quando o pano desceu, saiu para jantar com o elenco, antes de embarcar no ônibus para o Rio de Janeiro. A teatróloga e antiga colaboradora Ernevaz Fregni, a Ernê, ofereceu-lhe carona até o terminal rodoviário do Tietê, mas ele recusou. Chovia muito. Não quis dar trabalho à amiga. Além disso, teria que pegar umas coisas no apartamento. Ernê, já em casa, ligou a TV e soube da morte de Osama Bin Laden. Quis comentar com José Renato, mas o celular dele não atendeu. Um enfarte o matara a caminho do terminal, aos 85 anos.

O Arena e seu criador Renato José Pécora (que adotaria o nome artístico de José Renato) nasceu em 1º de fevereiro de 1926, em São Paulo, filho de imigrantes italianos, um napolitano e uma florentina. Como era costume nas famílias pobres da época, começou a trabalhar ainda criança. Aos 14 anos, empregado numa fábrica do papel, perdeu o pai. Aos 20, encontrou a grande paixão de sua vida. Apesar da baixa estatura, José Renato jogava basquete no Clube Pinheiros. A vida melhorara quando conseguiu emprego num laboratório de prótese dentária. Planejava, com apoio da família, cursar a faculdade de odontologia. Mas no clube surgira um grupo de teatro amador e foi a ele que coube escrever a peça de estreia, um dramalhão intitulado Os parentes da Julinha.

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“Eu estava sempre na plateia, assistindo aos ensaios. A função, a ação e o trabalho de direção foram me fascinando, estendendo os meus espaços de estudo, ampliando a minha percepção” 40

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São Paulo, na época com pouco mais de dois milhões de habitantes, tinha poucos teatros e quase todos serviam também de salas de cinema. O cinema era o grande concorrente. A televisão ainda estava nascendo. Recém-formado, José Renato aceitava pequenos papéis, mas levou a sério o conselho de Cacilda e passou a acompanhar de perto o trabalho dos diretores italianos que chegavam ao Brasil, trazidos pelo empresário Franco Zampari, para trabalhar no TBC e na empresa cinematográfica Vera Cruz. Como falava italiano muito bem, entendeu-se perfeitamente com Adolfo Celi, Luciano Salce, Ruggero Jacobbi e outros profissionais talentosos que deram ao Brasil grandes contribuições artísticas. “Eu estava sempre na plateia, assistindo aos ensaios. A função, a ação e o trabalho de direção foram me fascinando, estendendo os meus espaços de estudo, ampliando a minha percepção. E durante toda a minha carreira debati uma questão que um dia me fizeram: pode o diretor, através de seu espetáculo, realmente recriar um texto, sugerir ideias diferentes do próprio autor, ou é muita pretensão? Qual a sua margem de liberdade? No início, eu não tinha muita segurança, mas hoje respondo, com toda firmeza, que pode sim. O diretor tem a capacidade de recriar, se for sensível o suficiente”, contou ele, no livro biográfico Energia eterna, escrito por Hersch Basbaum. No tempo de atores como Procópio Ferreira e Leopoldo Fróes, não havia diretor, mas ensaiadores para cuidar, principalmente, das marcações. Eram como guardas de trânsito nos ensaios (“Vá para a esquerda! Vá para a direita!”). O TBC, com seus diretores italianos, e o polonês Zbigniew Ziembinsky transformaram a cena brasileira. O diretor passou a existir de verdade, interferindo em tudo: interpretações, cenário, vestuário, iluminação. O Teatro de Arena surgiu logo. José Renato viu que era possível produzir uma peça com apenas

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10% da verba que gastaria se encenasse no palco italiano. Mas percebeu que não era só isso. Décio de Almeida Prado escreveu e Hersch Basbaum reproduziu no livro Energia eterna: “Em seus primeiros passos, o Teatro de Arena, fundado por José Renato em 1953, não ambicionava mais do que abrir caminho para os iniciantes na carreira, propondolhes uma disposição cênica diferente – atores no centro, e espectadores ao redor – já experimentada com êxito nos Estados Unidos e que facilita enormemente a formação

JOÃO CALDAS

Não quis fazer mais outra coisa na vida a não ser teatro. Em 1948, matriculou-se na EAD, primeira escola de teatro de São Paulo, tendo como colegas da primeira turma Leonardo Villar, Monah Delacy, Geraldo Matheus Torloni, Xandó Batista e Jorge Andrade; e como professores, Clóvis Graciano, Décio de Almeida Prado e Cacilda Becker, além do próprio Alfredo Mesquita. O melhor de tudo: a EAD ficava no mesmo prédio do Teatro Brasileiro de Comédia, e os alunos eram sempre chamados para figurar nas peças. Quase no final do curso, Décio de Almeida Prado emprestou-lhe um livro de autor americano sobre a grande novidade teatral dos Estados Unidos, o theater in the round. José Renato gostou da ideia de substituir o palco italiano tradicional por aquele formato despojado de arena, com os atores e a plateia lado a lado. E encenou em sala de aula Demorado adeus (The long goodbye), de Tennessee Williams. Foi o germe do Teatro de Arena.


de novas companhias (...) Uma sala de proporções comuns, uma centena de cadeiras, alguns focos de luz, passavam a ser o mínimo necessário à representação. Era colocar ao alcance de todas as bolsas, ou quase, a possibilidade de organizar um pequeno grupo profissional. (...) A grande originalidade, em relação ao TBC e tudo o que representava, era não privilegiar o estético, não o ignorando, mas também não o dissociando do panorama social em que o teatro deve se integrar”. Com a montagem de Tennessee Williams na escola, José Renato e os colegas viram que, além de reduzir custos, o teatro de arena comunicava. A presença física do ator ao lado do espectador contagiava o público e transmitia melhor a ideia do autor da peça. Quando se formaram, decidiram juntar a turma numa companhia profissional. Receberam uma verba do Sesc e, com o apoio do industrial e mecenas Francisco Matarazzo Sobrinho, o Ciccillo Matarazzo, ganharam espaço em uma sala de exposições do Museu de Arte Moderna, então instalado na Rua Sete de Abril. Lá foi reencenado o Demorado adeus. Como era uma peça curta, o grupo apresentou também Judas em sábado de Aleluia, de Martins Pena. Depois de uma temporada de três semanas no MAM, o espetáculo foi levado a escolas e fábricas. O jornal O Estado de S. Paulo noticiou, na edição de 11 de abril de 1953: “A estreia no Museu de Arte Moderna reveste-se de especial importância, porque introduz no nosso teatro profissional uma nova técnica de apresentação, em que os atores são colocados no centro da sala de exibição como nos circos, ficando circundados pelos espectadores. Referimo-nos naturalmente ao chamado teatro de arena, ideia que nasceu nos Estados Unidos por motivos de ordem econômica, mantendo-se e desenvolvendo-se, contudo, por motivos também artísticos, isto é, pela intimidade, pela

comunicação que estabelece entre públicos e atores.” A segunda peça foi a comédia Esta noite é nossa, do inglês Stafford Dickens. No elenco, dirigido por José Renato, estavam Sergio Britto (que se incorporou à trupe), John Herbert (seu colega de esportes no Pinheiros), Monah Delacy e Geraldo Mateus Torloni (que se casariam), Renata Blaustein e Henrique Becker. Em seguida, foi a vez de Uma mulher e três palhaços, do francês Marcel Achard, com tradução de Álvaro Moreyra e, novamente, direção de José Renato, que procurou uma atriz que também fosse bailarina para o papel principal e, com isso, descobriu Eva Wilma. Foi esta a peça que chamou definitivamente a atenção para o novo espaço cênico. Os jornais falaram tanto, que o então presidente Café Filho convidou o elenco para uma apresentação no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Um avião da FAB foi buscar os atores e o diretor em São Paulo. À noite, o ministério estava reunido para assisti-los. O Teatro de Arena ocupava, finalmente, as páginas dos grandes jornais da capital e, principalmente, da revista mais lida do país, O Cruzeiro, que estampou a foto sensualíssima da bailarina e atriz Eva Wilma sendo observada pelos senhores ministros. De volta a São Paulo, a companhia foi procurada por muitas pessoas que queriam ajudar a encontrar um local definitivo. Formou-se, então, uma sociedade com cerca de cem pessoas, que passaram a pagar uma quantia mensal para cobrir as despesas, inclusive de aluguel, de um imóvel na Rua Theodoro Bayma, em frente à Igreja da Consolação, com capacidade para 170 espectadores. Era um antigo armazém que precisou ser remodelado. No dia 1º de fevereiro de 1955, saiu a nota no Estadão: “O conjunto do Arena é o mais jovem da cidade; pouquíssimos de seus componentes, incluindo não só os atores, mas também os encenadores e empresários, terão atingido os 30 anos. Três peças

“Uma sala de proporções comuns, uma centena de cadeiras, alguns focos de luz, passavam a ser o mínimo necessário à representação” Décio de Almeida Prado

serão representadas simultaneamente, cada uma por dois dias na semana. A estreia dar-se-á hoje, às 21 horas, com A rosa dos ventos, alternando-se com Uma mulher e três palhaços e Esta noite é nossa. Não haverá salário, mas repartição dos lucros. Cada ator receberá uma cota, correspondente a uma determinada parte do total da bilheteria. Assim, a estabilidade econômica da empresa parece garantida. Com isso, a cidade passa a ter quatro companhias estáveis, agora que foi inaugurado também o Teatro Bela Vista: TBC, TMDC, Arena e Bela Vista”. Estabilidade até certo ponto. José Renato se mantinha porque também trabalhava na televisão. Os atores e técnicos tinham outras atividades. E o aluguel era sempre pago com atraso. Mas as coisas iam bem. Se o TBC arrebanhava mais público, o Arena era indiscutivelmente o preferido dos jovens. A crítica e pesquisadora teatral Mariângela Alves de Lima registrou, num texto de 1985:

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“Era um tipo de interpretação muito diferente daquela criada pelo TBC em seu auge. No teatro de José Renato, sem nenhuma preocupação de estilo na composição das cenas – sempre adaptadas ao exíguo espaço de que dispunha –, os atores buscavam a verdade da personagem, com uma expressão facial intensa, com os movimentos do corpo não tão exuberantes. Havia uma nítida preocupação com o realismo psicológico, alternandose, mais tarde, para uma encenação brechtiana, quando as expressões faciais se abrandam adquirindo certa impassibilidade, uma vez que há um traço na personagem que deve permanecer imutável em todas as ações: a sua caracterização de classe. Em seu último período, o Arena, já sob total comando de Boal, deixa perceber que a função do ator é destacar-se visivelmente da personagem para identificar-se com a tese do texto, conceito que permite a utilização do método do curinga”. A fórmula ameaçou esgotar-se antes do tempo. Em 1958, estava praticamente tomada a decisão de fechar as portas do teatro que, desde 1956, havia incorporado os integrantes do Teatro Paulista do Estudante, muitos jovens militantes do Partido Comunista. A salvação veio de um deles, Gianfrancesco Guarnieri, autor da peça que, segundo se dizia, seria a última tentativa de manter o Arena. O resultado foi fantástico. Eles não usam black tie ficou um ano em cartaz e tornou-se um divisor de águas do teatro brasileiro, dando origem aos famosos seminários de dramaturgia do Arena, que lançaram novos autores, como Oduvaldo Vianna Filho. Do grupo, também, passaram a fazer parte, nos anos seguintes, atores como Lélia Abramo, Flávio Migliaccio, Riva Nimitz, Milton Gonçalves, Chico de Assis, Nelson Xavier, Paulo José, Joana Fomm, Juca de Oliveira, Lima Duarte, Renato Consorte, Dina Sfat, Myriam Muniz e Raul Cortez, entre outros, além de uma nova geração de técnicos

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e artistas das coxias, como o cenógrafo Flávio Império. Chegou, também, vindo diretamente de uma escola de teatro nos Estados Unidos, Augusto Boal. O Teatro de Arena estava salvo. Mas José Renato logo começaria a se afastar dele. Com bolsa de estudos oferecida pelo governo francês, passou um ano na Europa, entre Paris e Milão, especializandose em direção com um monstro sagrado, o ator e diretor Jean Vilar. De volta ao Brasil, passou a dirigir o Teatro Nacional de Comédia, no Rio, a convite de Edmundo Muniz. O TNC tinha elenco enorme. Todos queriam trabalhar lá porque dava emprego fixo e oferecia todas as vantagens sociais e sindicais de outras categorias de trabalhadores. Sua primeira montagem foi Boca de ouro, de Nelson Rodrigues. Depois vieram O pagador de promessas, de Dias Gomes; A Joia, de Arthur Azevedo; e Pedro Mico, de Antônio Callado, esta com a curiosidade de ter sido originalmente encenada por Paulo Francis. A companhia tinha cerca de 50 pessoas, sendo 30 atores, e percorria as grandes cidades brasileiras. No governo de João Goulart, e mesmo no curto período de Jânio Quadros na presidência da República, o TNC trazia para o palco grandes temas em debate na sociedade. Um exemplo foi a encenação do Círculo de giz caucasiano, de Bertolt Brecht, que discutia a posse da terra num tempo em que a bandeira da reforma agrária estava sendo levantada. Seguindo o mesmo filão, As aventuras de Ripió Lacraia, de Chico de Assis, era encenada dentro e fora do teatro. O espetáculo começava em plena Avenida Rio Branco, às sete da noite, com palhaços e malabaristas convidando o povo a entrar no teatro e assistir à peça de graça. Depois foi levado à Favela da Rocinha e à Refinaria Duque de Caxias. O objetivo era popularizar o teatro. Em 1962, o Arena vivia nova crise. A essa altura, José Renato, como ele mesmo dizia, havia se tornado uma espécie de “rainha da


“No teatro de José Renato(...), os atores buscavam a verdade da personagem, com uma expressão facial intensa, com os movimentos do corpo não tão exuberantes” Mariângela Alves de Lima, crítica e pesquisadora teatral

Inglaterra”. Não mandava mais nada. O elenco inteiro estava no Rio. Vianinha não queria voltar para São Paulo, pois entendia que era preciso conquistar os estudantes cariocas. José Renato afastou-se, então, em definitivo. O teatro passou a ser administrado por um grupo formado por Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Paulo José, Flávio Império, Juca de Oliveira e o empresário Paulo Cotrim. A última peça dirigida por José Renato no Arena foi em 1962: Os fuzis da senhora Carrar, de Bertolt Brecht. José Renato frequentou algumas reuniões, mas nunca foi militante comunista. Certa vez foi até descrito como “uma ilha cercada de esquerda por todos os lados”. Mas nem ele escapou do obscurantismo que reinou no país a partir de 1964 e nos 20 anos seguintes de ditadura. Em 1964, a convite do ministro da Educação, Darcy Ribeiro, foi ao Uruguai dirigir A invasão, peça de Dias Gomes encenada pelo grupo El Galpón, que discutia a ascensão do socialismo. O Itamaraty

pagava a hospedagem e parecia tudo bem, até que em abril aconteceu o golpe militar no Brasil. O embaixador em Montevidéu, que o recebia tão bem, fechou-lhe as portas da embaixada. O Itamaraty cortou o soldo. Recém-casado e com um filho, eram três bocas para alimentar no exterior. A solidariedade dos colegas do teatro uruguaio garantiu-lhe a permanência no país, a comida e o teto para sua família. Na estreia, lá estavam Darcy Ribeiro e Leonel Brizola, ambos exilados no Uruguai, acompanhando João Goulart. Passados alguns meses, voltou ao Brasil dirigindo seu fusca e não foi incomodado pelos militares. No restante do ano, José Renato dividiu-se entre trabalhos em São Paulo, onde Ruth Escobar inaugurara seu teatro, com A ópera dos três vinténs, de Brecht, e no Paraná. Em Curitiba, dirigiu Paulo Goulart, Nicete Bruno e Cláudio Corrêa e Castro em Escola de mulheres, de Molière, no Teatro Guaíra, e inaugurou o Teatro de Bolso com O noviço, de Martins Pena. Preparava-se para montar A urna, de Walter Jorge Durst, quando foi chamado no quartelgeneral do Exército, na capital paranaense, e ouviu do general de plantão que saísse do estado, se não quisesse ter problemas. Ficou claro que o nome da peça não agradou os novos detentores do poder. Voltou a São Paulo, depois mudou-se para o Rio, em 1966, onde tinha novo desafio pela frente: inaugurar a Sala Cecília Meirelles, o que foi feito, no início de 1967, com outra montagem de A ópera dos três vinténs. Foram tempos difíceis, conforme ele lembrou no livro Energia eterna, em razão dos blecautes constantes no Rio de Janeiro e das enchentes, que o obrigaram, certa ocasião, a sair do teatro com o elenco em botes para atravessar a praça inundada na entrada do bairro da Lapa. Quando indagado em entrevistas ou em conversas com amigos sobre seus trabalhos mais importantes, Eles não usam black tie, Rasga coração e as peças de

Brecht não eram os únicos lembrados. Na virada dos anos 1970, José Renato, autor de poucas peças, escreveu aquela que seria seu maior sucesso. Em tempos de ditadura, sem poder falar muito de assuntos mais importantes, o jeito era transformar o limão em limonada e fazer humor. De um apelo de Milton Morais, que estava desempregado, precisando atuar, nasceu Um edifício chamado 200, que ficou muito tempo em cartaz e virou também filme de grande bilheteria. O texto não foi só dele. Milton Morais colaborou e José Renato queria também Oduvaldo Vianna Filho como parceiro. Vianinha gostou muito da ideia, mas estava assoberbado de trabalho e indicou Paulo Pontes. Em 1970, José Renato tornouse professor da Uni-Rio, onde permaneceu até 1996, quando foi aposentado compulsoriamente por ter atingido a idade limite de 70 anos. Em 1996, foi eleito presidente da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), cargo que ocupou até 1999. Como autor, além da comédia sobre o prédio de má fama – que até mudou a numeração para preservar a intimidade de seus moradores – José Renato escreveu Plantas rasteiras (que lhe deu o prêmio de melhor autor concedido pela Associação Paulista de Críticos de Artes – APCA), Escrever sobre mulheres, Ternura, Visita de pêsames, O aniversário, Ano bom em família e Alguém dormiu com Maria. Em 2009, recebeu o Grande Prêmio de Crítica da APCA por sua carreira teatral, pelo conjunto de uma obra que proporcionou o lançamento de grandes atores e atrizes. Como definiu Antônio Abujamra, numa entrevista logo após a notícia do falecimento de José Renato: “Ele foi uma das pessoas mais importantes do teatro brasileiro. Ele criou o Teatro de Arena, revelou Guarnieri e influenciou toda uma geração: eu, Augusto Boal, Amir Haddad, José Celso Martinez Corrêa. Nossa geração deve ficar de joelhos para ele”.

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E N S A I O

Esse mundo é um

pandeiro Cacá Diegues

O título desse texto é tomado de um filme brasileiro de 1946, chanchada dirigida por Watson Macedo, um dos inventores e mestre do gênero. Esse mundo é um pandeiro, com Oscarito e Grande Otelo, era uma narrativa cômica em torno da verdade e da mentira (a história de um falso marido e suas relações com sua falsa família), num ambiente de carnaval ilustrado por sambas e marchinhas de sucesso naquele ano. Mais tarde, em 1989, o jornalista, crítico e ensaísta Sérgio Augusto, outro mestre de seu gênero, usou o mesmo título em seu livro sobre cinema brasileiro, cujo subtítulo era A chanchada de Getúlio a JK, explícito anúncio ao leitor da pólis de onde vinham esse e outros filmes semelhantes. Cada vez gosto mais do carnaval, cada vez admiro mais o carnaval carioca. Entre outras coisas, por confirmar essa eterna alegoria do pandeiro como narrativa de um jogo ou de uma brincadeira que torna impreciso o limite entre a verdade e a mentira. Ou proporciona a inversão de papéis na sociedade, como nos foi ensinado por Roberto da Matta em seus livros sobre a casa e a rua. Não entendo o discurso saudosista em defesa de um suposto carnaval inocente do passado, em que se dançava sem outras intenções e se cantavam marchinhas ingênuas e belas (podiam ser belas, mas ingênuas nunca foram!). Este é o carnaval idealizado de um Brasil pastoril, cujas elites envergonhadas escondiam do mundo nossa produção cultural. Um Brasil para o qual Carmen Miranda, produzida por Hollywood, era uma humilhação internacional.

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Um Brasil que precisou que um filme francês, Orfeu Negro, “descobrisse” para o mundo, mesmo que equivocadamente, a grandeza de nossa maior manifestação popular. Meu pai, o antropólogo Manoel Diegues Jr, me dizia (e escreveu em seus livros) que o caráter de um povo se expressa melhor através de suas festas populares, quando fantasmas e mitos liberados coletivamente podem ser interpretados como projetos comuns. O que me causa pânico quando penso, por exemplo, em Halloween, uma celebração sadomasoquista do horror. Nesse sentido, o carnaval não deve ser visto como uma experiência de felicidade, mas sim como uma representação dela. Nas ruas e nos bailes, não estamos experimentando necessariamente a alegria que ali encenamos, mas expondo aquilo que ela podia representar em nossas vidas. Essa encenação revela nosso desejo mais profundo por ela, revela um projeto de alegria, a prova dos nove oswaldiana. Quando vi Sheron Menezes lindíssima se esbaldando no desfile de sua escola e depois aos prantos, quando o desfile acabou, era como se ela estivesse me dizendo que havia mordido o fruto da felicidade e lamentava sua perda na volta ao mundo real. Nossa bela estrela chorava pelo que o mundo poderia ser. Como não tenho mais idade para isso, há tempos abandonei o desfile do Clube do Samba, de meus saudosos João Nogueira e Marco Aurélio, rebolando Avenida Rio Branco abaixo. Mas este


ano, vendo a cobertura da televisão, não pude deixar de me surpreender com a mudança brusca de estado de espírito, cada vez que o folião se sente flagrado pela câmera. É como se subitamente lembrasse estar no palco de um teatro, onde tem um papel a representar e não pode nos decepcionar. E então sai da sombra de um certo laconismo para a luz de uma imensa alegria. Não consigo entender por que o teatro, o cinema e mesmo a literatura brasileiros se servem tão pouco do carnaval. Herdeiras da Commedia dell’Arte num cruzamento com as manifestações religiosas do mundo ibérico, as escolas de samba são o mais nobre, mais complexo e mais bem sucedido teatro popular de rua da cultura ocidental. Não consigo entender nosso desprezo por sua teia dramatúrgica tão original, essa estrutura de representação do mundo cada vez mais sofisticada, com uma dinâmica própria que muda sua história pelo menos a cada década. Este ano, por exemplo, a Porto da Pedra introduziu no Sambódromo o primeiro enredo baseado em consumo industrial contemporâneo, um enredo revolucionário que, não fosse o acanhamento de seu desfile, podia ter mudado o rumo das coisas, como no passado a Chica da Silva, de Fernando Pamplona, ou os mendigos e urubus, de Joãozinho Trinta. Neste carnaval, a Porto da Pedra cantou o iogurte, com uma comissão de frente de lactobacilos e tudo! Como em qualquer outro conjunto de produção cultural, as escolas de samba são o mainstream

(a corrente principal) do carnaval carioca, enquanto os blocos de rua (cada vez mais numerosos e populosos) são sua reflexão espontânea e desorganizada, sem regras nem rigor. Digamos ainda que alguns pequenos grupos, espalhados em diferentes bairros da cidade, fazem o papel de vanguarda, propondo todo ano alternativas ao desenvolvimento do conjunto do carnaval. Em todas essas manifestações, mesmo no mainstream, verifica-se a vitória absoluta do híbrido, o desejo de misturar elementos estranhos que não tenham necessariamente nada em comum, uma reprodução do mundo fragmentário, compartilhado e mestiço em que vivemos. Aqui, “o puro não tem futuro”, como cantava um cantor catalão que ouvi em Barcelona. Nossos projetos pertencem ao mundo dos sonhos e os sonhos pertencem somente à pessoa que sonha. Você não precisa pedir licença a ninguém para sonhá-los. Publicado no jornal O Globo em 24 de fevereiro de 2012

A seguir, fotos que fotógrafos renomados fizeram em diferentes épocas do Carnaval carioca e que bem ilustram as palavras de Cacá Diegues, quando diz que o caráter de um povo se expressa melhor através de suas festas populares. Na sua “teia dramatúrgica”, o carnaval/teatro torna “impreciso o limite entre a verdade e a mentira”.

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RENATO DE AGUIAR

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BETO FELICIO

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BRUNO VEIGA

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WALTER CARVALHO

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ROGร RIO REIS / TYBA

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EVANDRO TEIXEIRA

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E P ร L O G O

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Desenho de Lula

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