Livro 02 Clowns

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FERNANDO YAMAMOTO


Realização Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare Coordenação do projeto Fernando Yamamoto Produção Renata Kaiser Assistência de produção Camille Carvalho Transcrições Dudu Galvão, Joel Monteiro e Paula Queiroz Capa Caio Vitoriano Projeto gráfico Caio Vitoriano Diagramação Dimetrius Ferreira Arte-Final Dimetrius Ferreira (Miolo) e Larissa Azevedo (Capa)

Yamamoto, Fernando Minicuci. Cartografia do teatro de grupo do Nordeste / Fernando Minicuci Yamamoto. - Natal(RN): Clowns de Shakespeare, 2012. 740,p.

ISBN 978-85-64380-20-2

1. Teatro. 2. Teatro de grupo. 3. Teatro nordestino I. Título.


FERNANDO YAMAMOTO

2012



Sumário Um olhar sobre o teatro de grupo e sua diversidade André Carreira.................................................................................................................... 09 Encontros e mapeamentos Fernando Yamamoto......................................................................................................... 15 01. CEARÁ Teatro de grupo no Ceará Rogério Mesquita............................................................................................................... 23 Entrevistas Bagaceira | Fortaleza ....................................................................................................... 31 Caretas | Fortaleza ........................................................................................................... 47 Expressões Humanas | Fortaleza .................................................................................. 59 Máquina | Fortaleza ......................................................................................................... 69 Ninho | Crato ................................................................................................................... 85 02. PARAÍBA Dialética da Assimilação Márcio Marciano ............................................................................................................... 99 Entrevistas Alfenim | João Pessoa ................................................................................................... 105 Graxa | João Pessoa ....................................................................................................... 115 Heureca | Campina Grande ......................................................................................... 125 Piollin | João Pessoa ...................................................................................................... 135 Quem tem boca é pra gritar | João Pessoa ................................................................ 145 Ser Tão | João Pessoa .................................................................................................... 157


03. RIO GRANDE DO NORTE Teatro de grupo no RN e os desafios da sustentabilidade José Sávio de Oliveira Araújo ....................................................................................... 167 Entrevistas Atores à Deriva | Natal ................................................................................................. 175 Clowns de Shakespeare | Natal .................................................................................... 191 Estandarte | Natal .......................................................................................................... 209 Grupo Facetas, Mutretas e Outras Histórias | Natal ............................................... 221 Máscara | Mossoró ........................................................................................................ 235 O Pessoal do Tarará | Mossoró ................................................................................... 245




Um olhar sobre o teatro de grupo e sua diversidade André Carreira (UDESC/ CNPq / Grupo Teatral Experiência Subterrânea)

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O teatro de grupo é hoje uma força fundamental que contribui para a definição do teatro brasileiro para além das fronteiras do eixo São Paulo – Rio de Janeiro. Esse conjunto de coletivos organizados sob as mais diversificadas formas de estruturação responde por uma produção espetacular que constitui a ampla maioria do teatro que se faz no Brasil nos últimos trinta anos, e tem conquistado um espaço cada vez maior nos circuitos de apresentação. Ainda que saibamos da importância crescente do teatro de grupo, seria um equívoco supor que o termo ‘teatro de grupo’ nos permita definir um formato de trabalho e organização claramente definidos. Mesmo que o uso dessa terminologia tenha tido início nos anos 80 no seio de um movimento teatral bem caracterizado, isto é o Terceiro Teatro segundo definição de Eugenio Barba, hoje em dia a expressão define mais um lugar de autonomia do que um modo de operação que possa ser bem delimitado.


Quando falamos de um ‘teatro de grupo’ podemos ter a ilusão de que este seria um teatro que nasce fruto de projetos coletivos que estão além dos procedimentos de um teatro comercial, ou daqueles projetos individuais encabeçados por diretores que reúnem elencos de ocasião. O teatro dos grupos se definiria pela permanência do coletivo, e pelos projetos artísticos e políticos. Mas ‘teatro de grupo’ seria aquele teatro que se coloca à margem de um modelo puramente empresarial? Ainda que isso seja verdade para muitos grupos que se enquadram nesse universo, não significa dizer que este teatro não conviva bem com procedimentos empresariais que hoje em dia contaminam todas as formas de produção artística. É importante ter consciência dessas hibridações para evitar um olhar purista ou inocente que tome o teatro de grupo como algo ideal e homogêneo. Teatro de grupo pode ser considerado um termo que se desdobra da expressão “grupo de teatro”, no entanto, a única semelhança é a presença da unidade coletiva do pequeno grupo de trabalho. Com a inversão dos termos se produziu uma valorização 10

do grupo como instância criativa. Este teatro seria definido pelo projeto grupal antes que pelas regras do mercado do espetáculo. Os adeptos à Antropologia Teatral, que podem ser considerados os responsáveis pela disseminação da ideia de teatro de grupo, atribuíam valor aos processos grupais como capazes de gerar não apenas novas formas de organização, como também, de produzir novas teatralidades, e até mesmo um novo teatro. Uma dos elementos que se destacou nesse processo foi a certeza, ou a esperança de que o teatro de grupo reafirmasse a comunidade teatral internacional como âmbito de criação e intercâmbio. As formas de trabalhar que podemos identificar no teatro de grupo podem até ecoar a experiência de grupos teatrais históricos do nosso teatro como o Teatro Oficina e o Arena (coletivos que marcaram os anos 60), mas, esses modelos já não representam a influência mais marcante no atual movimento dos coletivos. Ainda que seja impossível encontrar elementos nos permitam ver uma homogeneidade, ainda que relativa,


pode-se dizer que estes grupos se definem pela auto reivindicação de que pertencem ao teatro de grupo. Este sentido de pertencimento ao teatro de grupo implica no reforço de processos de identificação que não apenas funcionam no interior do movimento, como repercutem entre os meios de comunicação, a crítica e a pesquisa acadêmica. Apesar disso nosso teatro de grupo ainda é um objeto que merece muita atenção e estudo para que se possa superar algumas verdades que são insistentemente repetidas sem que finalmente sejam verificadas. Nos últimos anos estudos de pós graduação têm tratado de desvendar as tramas artísticas, ideológicas e políticas que compõe o teatro de grupo. Destaca-se entre outros estudos como a pesquisa da Professora Rosyanne Trotta, e o projeto do grupo de pesquisa ÁQIS na UDESC que realizou um mapeamento do teatro de grupo em estados da região Sul, Sudeste e Centro Oeste. Estes esforços ganham agora a valiosa companhia do trabalho de Fernando Yamamoto e do grupo Clowns de Shakespeare. O fato de que o autor desse estudo seja um diretor assentado em um projeto grupal, um dos mais dinâmicos do país, reforça o fato de que esta pesquisa esteja embebida da percepção daqueles que estão cotidianamente buscando alternativas para o trabalho teatral realizado no âmbito de um coletivo. Assim, o leitor tem em mãos um resultado de um projeto que nasceu do contato diário com a realidade dos grupos do Nordeste. Ainda assim a tarefa não está completa, pois a mesma é complexa pela diversidade de formas de trabalho dos coletivos e pela amplitude do país. São muitos grupos, muitas formas de organização, muitas cidades e muitos modelos teatrais. Realizar uma cartografia do teatro do grupo do Nordeste é uma tarefa que responde à uma necessidade de reconhecimento de uma produção ampla e diversificada que, pouco a pouco vai ganhando presença no contexto do teatro brasileiro. Mapear esses grupos e contextualizar suas produções significa uma contribuição extremamente importante para a historiografia do teatro brasileiro, e também é um material que

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pode contribuir com os grupos de todo o país por oferecer parâmetros para a reflexão sobre formas de trabalho e organização. O planejamento dessa cartografia foi elaborado considerando parâmetros exigentes que permitem que o resultado expresse aquilo que tem de mais consistente no teatro da região. Desta forma o quadro sobre o teatro de grupo que o leitor tem nestes três livros oferece uma informação que permite uma fotografia detalhada de um conjunto de coletivos e de suas produções. Este material não é importante apenas para os realizadores e estudiosos do teatro do Nordeste, ou dos estados contemplados na cartografia. Conhecer com maior detalhe esse teatro é fundamental para a construção de uma ideia de teatro brasileiro mais complexa. A ausência de uma grande parte da produção teatral nas páginas de jornais, revistas e até livros que são publicados nas imprensas de grande metrópole paulista nos faz 12

reafirmar a importância desse projeto de mapeamento dos grupos. É verdade que se pode produzir e circular sem que os grandes meios e publicações de São Paulo reconheçam a existência de outros teatros no país. No entanto, todo esforço que permita reescrever a história de nossa cena, e que especialmente, contribuía para uma efetiva descentralização dessa escritura significará uma renovação de nossa imagem do teatro do país. Nosso teatro merece ser compreendido com uma complexidade diversa que reúne os mais diversos modelos e formas expressivas. Este livro oferece ao leitor dados sobre os grupos e reflexões sobre o teatro de grupo que nascem da análise de um panorama construído a partir do contato direto com os coletivos. A vitalidade desse tipo de pesquisa repercute em um material que nos mostra o pulso dos coletivos e seus projetos. O trabalho de coleta de dados respondeu a um procedimento metodologicamente estruturado, e isso permite dizer que os dados aqui apresentados constituem um panorama amplo e detalhado que também servirá como referência para posteriores estudos.


O fato que o projeto não finalize com a publicação desses volumes, mas que tenha continuidade no Portal teatronordeste.art, significa que essa pesquisa ampla e cuidadosa poderá se incrementada permanentemente. Isso permite dizer que o estudo de Fernando Yamamoto continuará rendendo frutos e abrindo portas para o mais completo conhecimento de um teatro que tem muito a oferecer à nossa cena.

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Encontros e mapeamentos Fernando Yamamoto Diretor e fundador dos Clowns de Shakespeare

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A origem do projeto Cartografia do Teatro de Grupo do Nordeste remete ao ano de 2004, quando pela primeira vez os Clowns de Shakespeare participaram do Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga, importante e aprazível festival na serra cearense. Diante de grupos de todos os outros estados da região, tivemos a oportunidade de estabelecer trocas de forma muito mais efetiva do que havíamos feito até então com parceiros de outras regiões do país, já que nos deparamos com situações semelhantes à nossa realidade, com grupos que estavam muito mais próximos geograficamente de Natal. Por conta disso, era possível pensarmos em desdobramentos mais concretos destes encontros. Desde então, esta “integração regional” passa a ser uma bandeira dos Clowns, sempre preocupados em promover inter-relações entre os coletivos nordestinos, com o intuito de reconhecimento de uma identidade do teatro de grupo nordestino, das semelhanças às peculiaridades em relação àquelas práticas realizadas no resto do país.


Em 2007, o Galpão Cine Horto me lançou uma provocação que seria determinante para o desenvolvimento deste trabalho que agora se concretiza através desta publicação. Na edição número 04 da sua revista, a Subtexto, o Cine Horto propõe a pesquisadores e fazedores de teatro de todo o país um primeiro esboço de mapeamento do teatro de grupo do país. Com a valiosa colaboração de Rogério Mesquita (CE) e Wagner Heineck (MA), coube a mim rascunhar um panorama da produção de grupo do Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão. A incumbência de pensar sobre a realidade da cena nestes três estados, independente da inevitável incompletude do seu resultado, me instigou a aprofundar a reflexão, ampliando o seu alcance para todos os estados da região. Se na prática diária dos Clowns temos, assim como diversos outros coletivos pelo país, uma preocupação em demarcar território através da sistematização e publicização da nossa prática, por que não traçar uma cartografia das práticas realizadas na região nordeste, como forma de tentar fazer uma leitura deste panorama regional, forçando a historiografia a enten16

der que o teatro brasileiro contemporâneo ultrapassa a limitada visão das fronteiras que os centros econômicos impõem como totalidade? Acreditamos que somente com a efetivação de pesquisas e publicações desta natureza é possível inscrever o nome do teatro nordestino – assim como o nortista, sulista e “centro-oestino” – nas pesadas tábulas dos detentores da história oficial do teatro no Brasil. A partir dessas inquietações, em 2009 houve a primeira aposta na importância deste mapeamento, ao ser contemplado pela Bolsa Funarte de Estímulo a Produção Crítica em Artes. Com ela, desenvolvi a etapa inaugural dessa pesquisa, que foi enviar um formulário a quase 250 grupos de toda a região Nordeste, com questões acerca dos seus processos criativos, gestão, práticas pedagógicas, atuação política e de intercâmbios, etc. Desses 250 coletivos, 100 retornaram o formulário preenchido e, a partir da análise dos dados, a etapa seguinte consistiu em definir, em conjunto com colaborador André Carreira – um dos nomes mais importantes na pesquisa sobre teatro de grupo do país na atualidade –, critérios para selecionar os grupos que receberiam visitas para entrevistas presenciais, com um maior nível de aprofundamento


sobre suas práticas e cotidianos. Assim, optamos por destacar aqueles coletivos que tivessem cinco ou mais anos de existência, ao menos três integrantes, e um mínimo de dois fundadores ainda participantes. Apesar de não obrigatório, seria desejável também que estes grupos tivessem um espaço de trabalho. Ao longo da pesquisa, deparei-me com a realidade de que apesar de alguns grupos não cumprirem um ou outro desses critérios, deveriam ser entrevistados pela relevância do seu trabalho, seja na excelência artística, seja no peso da sua atuação no cidade ou bairro em que estão inseridos. O momento seguinte foi de circular por todos os estados da região, passando pelas nove capitais e dez cidades interioranas (ou, em alguns casos, entrevistando grupos do interior em encontros nas capitais), entrevistando um total de 45 grupos. Esses números – os 250 grupos localizados, os 100 que retornaram e os 45 entrevistados – não têm nenhuma pretensão de sequer chegar próximo a constituir a totalidade dos coletivos nordestinos, no entanto acredito que o panorama construído a partir da visão dessas 45 experiências representa uma amostragem muito significativa do teatro feito na região, contemplando praticamente todos os mais importantes grupos de teatro do Nordeste brasileiro. Na diversidade encontrada neste panorama, dois aspectos chamam atenção ao se fazer uma leitura transversal deste material: a) apesar da diversidade apresentada entre cada experiência, e da grandeza territorial da região – o Nordeste brasileiro, se fosse um país, estaria entre os vinte maiores do mundo! – existem traços recorrentes de estado para estado, de grupo para grupo, e b) essas recorrências não acontecem apenas nas dificuldades; é possível encontrar soluções na experiência de um coletivo para problemas de outros. É importante ainda, esclarecer que existe uma larga faixa temporal entre a realização das entrevistas – a partir do primeiro semestre de 2009 – e a publicação deste livro – segundo semestre de 2012. Considerando as dificuldades de sobrevivência que os coletivos da região enfrentam, e ao mesmo tempo o visível estágio de fortalecimento desta cena nordestina de grupos, é muito possível que, mesmo no instante imediato

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do lançamento deste livro, diversas informações já não digam respeito ao momento em que o grupo viva, seja em casos de grupos que avançaram na sua estrutura e/ou compreensão estética, seja o contrário. Ainda assim, acredito tratar-se de um importante documento histórico do momento em que cada um desses coletivos encontrava-se no momento das entrevistas. Por fim, gostaria de fazer alguns agradecimentos a quem possibilitou a realização deste projeto. Primeiramente, faço uma menção de muita gratidão ao Programa de Cultura Banco do Nordeste - BNDES, que acreditou neste projeto tão importante à memória do teatro nordestino. Como um banco de desenvolvimento, o BNB vem cravando a sua bandeira na história da produção artística nordestina, cumprindo um fundamental papel no que se tem feito de melhor na região. Também é preciso mencionar a Funarte e o Ministério da Cultura, que através da Bolsa Estímulo a Produção Crítica em Artes/2009 possibilitou toda a etapa de coleta de dados deste mapeamento. 18

Agradeço aos colaboradores de cada estado, que prestaram preciosos serviços tanto no contato com os grupos locais e logística das visitas, quanto na contribuição escrita dos artigos que apresentam as entrevistas de cada estado: Gordo Neto, Fábio Vidal, Geovane Mascarenhas e Romualdo Lisboa (BA); Lindolfo Amaral, Lindemberg Monteiro e, em especial, à memória do querido Ivilmar Gonçalves (SE); Abides Oliveira (AL); Fabio Pascoal, Helder Vasconcelos e Leidson Ferraz (PE); Sávio Araújo (RN); Álvaro Fernandes e Márcio Marciano (PB); Francisco Pellé (PI); e Wagner Heineck, Lauande Aires, Erivelto Viana e Marcelo Flecha (MA). Também declaro toda a minha gratidão a André Carreira, que apesar de recusar o título de “orientador” desta pesquisa, apontou os caminhos a serem trilhados com enorme generosidade e toda a sua experiência nesta área. Mesmo redundante, não posso deixar de agradecer aos meus companheiros de grupo, com quem divido este projeto de vida chamado Clowns de Shakespeare, por todo o suporte e paciência nas ausências das demais atividades do grupo para me dedicar ao Cartografia: Arlindo, Camille, César, Dudu, Joel, Marco, Rafa, Renata, Ronaldo e Titina. Aos meus pais,


pelo apoio incondicional de sempre, e pelo exemplo de sabedoria e comprometimento. E, finalmente, agradeço e dedico esta imperfeita criação à minha mais que perfeita criação, minha pequena Isabela, e à sua mãe, Paulinha, companheira de vida e de trabalho. Deixando a modéstia de lado, acredito que esta publicação, em conjunto com o portal teatronordeste, são importantes contribuições para a reflexão e à memória do teatro nordestino e brasileiro, acrescentando um tijolinho a mais nesse acervo da produção teórica do teatro de grupo do país.

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01 Cearรก



No Ceará é assim... Rogério Mesquita Integrante do Grupo Bagaceira de Teatro

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Em Fortaleza, quando um grupo de teatro surge, está apenas reforçando uma prática que vem dos primórdios do teatro cearense. Desde 1830, quando se tem notícia da primeira casa de espetáculos de Fortaleza, o Teatro Concórdia, onde os associados do Concórdia encenavam suas peças, o teatro feito em grupo no Ceará vem mostrando sua força. No entanto, apenas em 1861, já no Teatro Taliense, é encenada pela primeira vez um texto de um autor cearense: Quem com ferro fere com ferro será ferido, de Juvenal Galeno. No inicio do século passado, o teatro cearense, com o Grêmio Dramático Familiar, obteve seu primeiro grande período de sucesso, como diria muito tempo depois o teatrólogo B. De Paiva: “nunca se falou tanto em teatro no Ceará, nunca as figuras


foram tão amadas”.1 Fundado em 18 de Julho de 1918, o Grêmio funcionava em um teatrinho no Calçamento de Messejana (Boulevard Visconde do Rio Branco). O diretor do Grêmio, Carlos Câmara, foi o autor das principais montagens do grupo, e a maioria se tornou grandes sucessos de bilheteria. O Cine Majestic cancelava suas sessões de filmes nos horários das apresentações do Grêmio e os bondes tinham linhas especiais para levar o público para casa após o fim dos espetáculos. Espetáculos como A Bailarina, O Casamento de Peraldiana, Zé Fidélis, O Calú, Pecados da Mocidade, Alvorada, Os Piratas, Paraíso e Os Coriscos faziam parte da roda de conversas da cidade. Os atores do Grêmio se destacavam em cada espetáculo e se tornaram bastante conhecidos na época: Eurico Pinto, Joaquim Santos, Augusto Guabiraba, Hercílio Costa, José Domingues, Alice Temporal, Gracinha Padilha, Gasparina Germano e Inácio Ratts, eram seus principais nomes. O Grêmio teve uma longa vida, até 1939, ano da morte de seu líder, Carlos Câmara, encerrando uma época de ouro da cena cearense. 24

No final da década de quarenta, o filho do Cariri Waldemar Garcia moderniza o teatro cearense, trazendo noções modernas de direção ao seu grupo composto por universitários, dos quais se destacaram: Haroldo Serra, Flávio Phebo e Geraldo Markan. Na década de 50 os grupos que se destacaram foram o Teatro Escola do Ceará, de Nadir Sabóia, Waldemar Garcia e Eduardo Campos e o Teatro Experimental de Arte, formado por B. De Paiva, Marcus Miranda, Hugo Bianchi, Haroldo Serra, Glyce Sales e José Humberto Cavalcante. O Teatro Escola de Nadir Papi Sabóia manteve uma séria de temporadas no Theatro José de Alencar com várias montagens como: O Belo Indiferente, Os deuses Riem, Luz de gás, Via-Sacra, Nós, as testemunhas e A máscara e a face, de Eduardo Campos. O Teatro Experimental de Arte (TEA) realiza várias

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Citação obtida no artigo O teatro Cearense de Marcelo Costa, publicado original-

mente em 1972.


temporadas de textos de Pedro Bloch e viaja pelo interior do estado, indo à São Luiz e Teresina. Com o fim do TEA, Haroldo Serra, junto com sua esposa, Hiramisa, fundam a Comédia Cearense ,elevando ainda mais a produção teatral da cidade. Em 1957, com o espetáculo Lady Godiva, a Comédia Cearense estreava. Os espetáculos da Comédia Cearense batia recordes de bilheteria, ficando em cartaz de terça a domingo, fora as temporadas de espetáculos infantis. Inúmeros são os êxitos do grupo, sendo o maior deles, A valsa proibida, grandiosa remontagem desse sucesso da década de 30 que marcou época. Na década de setenta a Comédia Cearense ainda apresenta um grande vigor com remontagens e apresentações de novos espetáculos. A participação no projeto Mambembão, entrando em cartaz no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília . Surge a Cooperativa de Teatro e Artes de Marcelo Costa e José Carlos Matos. Espetáculos como O Romance do pavão Misteryoso, Orixás do Ceará e Canção de fogo representam a importância do grupo, apesar de sua curta trajetória. A década de setenta ainda foi testemunha de grupos como o GRITA - Grupo Independente de Teatro Amador, com direção de José Carlos Matos na montagem de Morte e Vida Severina e Fala Favela, Teatro experimental de Cultural , de Walden Luiz e Arlindo Araújo, cujo espetáculo Metamorfoses marcou a primeira nudez masculina nos palcos cearenses, e o Grupo Raça, de Fernando Piancó e Artur Guedes. Quase no final da década de setenta o Grupo Balaio surge com a montagem de Cesarion, o Imperador do Mundo de Geraldo Markan, em 1976. O Grupo Balaio, desde então, tornou-se um grupo de grande produtividade, rivalizando em popularidade com a Comédia Cearense. Montagens como Adopho em Prosa e Verso, Corações Guerreiros, Castro Alves Pede Passagem, O rei do Ponto, Made in Ceará e Latin Lover marcaram época, sob o comando de Marcelo Costa. A década de noventa trouxe o Theatro José de Alencar totalmente reformado. Junto com a reforma, se iniciam nas dependências do Theatro José de Alencar o Curso

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Princípios Básicos de Teatro, ministrados pelos atores Paulo Ess e Joca Andrade. A cada ano dois espetáculos são apresentados como exercício de conclusão dessa oficina. Novos atores e autores surgem nesse curso, já que os texto são escritos especialmente para cada turma. As montagens que mais se destacaram foram Simulacro - uma história sequestrada (1991),2 Do outro lado de lá (1998), O destino à Deus Pertence (1998) e País do lado da Felicidade (1999), esses três últimos contaram com apoio do recém criado Instituto Dragão do Mar, cujo marco maior na cena teatral cearense foi a implantação do Colégio de Direção Teatral, em 1996 e a construção do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. O Colégio de Direção Teatral (CDT) surgiu com uma metodologia moderna, uma pesada carga horária e com professores que vinham de toda parte do país. Os espetáculos do colégio de direção demonstraram um nível de acabamento técnico dos espetáculos que apenas os Grupos Balaio e Comédia Cearense chegavam perto. Com cursos de formação para atores, diretores, técnicos de luz, som, cenografia e dra26

maturgia, o Colégio de Direção servia aos anseios do até então recém descoberto marketing cultural do governo do estado. Como era uma política de governo e não de estado, o Colégio de Direção não durou muito tempo e acabou oficialmente em 2002. Muitos espetáculos marcaram época como A história dessa tal de Mafalda que acabou como acabou num dia de carnaval, Rosa Escarlate, Dois por dois, Parafuso, Os iks, Retalho Rebotalho, Fragmentos do poder e da morte e Retratos de Um Brasil em preto e branco. Muitos diretores, surgiram ou se firmaram no colégio de direção, como Pedro Domingues, Herê Aquino, Aldo Marcozzi, Omar Rocha, Francisco Wellington, Ueliton Rocon, Oscar Roney, entre outros. Além do colégio de direção outros grupos surgiram ou se firmaram na década de noventa como a Cia. de Teatro Lua, dirigida por Ueliton Rocon, cujas montagens mais conhecidas são: Loucos e Outros seres (1989), O Marinheiro - Uma Aventura Interior

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O texto desse espetáculo, assim como a maioria dos espetáculos do curso foi escrito pelos próprios atores.


(1991), Dominus Tecum (2000) e Não confirmo nem duvido (2001), e o Grupo Expressões Humanas, comandado por Herê Aquino, com montagens como Anárquico Velho Mundo Novo (1991), Uni-Versos (1998), Morte e Vida Severina (1999) e Larilará Macunaíma Sarava (2003). Em 1991, Ricardo Guilherme lança o seu manifesto sobre o Teatro Radical e desde então vem desenvolvendo uma linha de pesquisa na sua Associação dos Radicais Livres, cujas montagens de Sargento Getúlio (1991), Bravíssimo (1997) 68.com.br (1998), A menina dos Cabelos de capim (2000) e A divina comédia de Dante e Moacir (2000) mostram a busca por uma linguagem própria e uma preocupação com a “cearensidade” no texto. O grupo Aprendizes de Dionosyos, formado por alunos da Escola Técnica Federal do Ceará, hoje IFCE - Instituto Federal do Ceará, montou pelo menos dois espetáculos que marcaram sua presença na década de noventa: Auto da Compadecida (1994) e Eles Não Usam Black Tie (1995) todos com direção de Marcelo Costa. Em 1998 o grupo passa a ser dirigido por Paulo Ess, muda de nome para Cia. Dionisyos de Teatro, monta textos para o Festival de Esquetes de Fortaleza e espetáculos com textos de Fernando Lira: Filé Com fritas ao vinagrete (1999), O Rei que não sabia ler (1999) e Miralu e a luneta mágica (2000). Nesse novo milênio, os grupos surgidos a partir de 2000, são frutos diretos ou indiretos da prática de produção instalada pelo Colégio de Direção ou surgem dos novos cursos de graduação em teatro do IFCE, URCA e UFC. Os festivais de esquetes da cidade são a vitrine viva dessa nova produção e primeiro palco de vários grupos. No inicio da década de 2000 surgiram o Palmas Produções, Grupo Bagaceira, Teatro Máquina, Pavilhão da Magnólia, Grupo Parque de Teatro, Grupo 3x4, Cia Vão, Teatro de Caretas, Grupo Mimo, Grupo Imagens, Coletivo Cambada, Grupo Ninho, entre outros. Esses grupos todos com novos autores, diretores e atores recolocaram o Ceará no mapa do pensamento da produção teatral do Brasil, aproveitando o investimento feito na produção nordestina através de editais nacionais que serviram como modelo para editais estaduais e municipais. A idéia de ocupação de sedes para os grupos é uma prática que vem ganhando força no estado, seja para ensaios como o espaço do Palmas Produções , pequenas apre-

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sentações como na Casa da Esquina, sede do Grupo Bagaceira e do Teatro Máquina, Casa Ninho, sede do Grupo Ninho no Crato, ou para temporada de espetáculos como a Aldeia Expressões, casa do Expressões Humanas. A politização dos grupos está sendo um outro elemento transformador na cena local, quando movimentos como o Todo Teatro é Político, fortalecem o Fórum de Teatro como instancia máxima para a interlocução entre a sociedade civil e o poder público. Conquistas como o aumento da verba do edital de teatro da SECULT CE, a regularidade do Festival de Teatro de Fortaleza, a criação de um projeto de intercâmbio entre os grupos da cidade e a formatação da Escola de Teatro da Vila das Artes, espaço de formação para grupos de teatro, são frutos diretos das reivindicações da classe organizada e aprovadas em fórum aberto e democrático. A criação de uma política de estado para o teatro vem sendo fomentada graças a pressão dos grupos da cidade, que vem dialogando de uma maneira cada vez mais pragmática com o poder público. A perspectiva de viver somente da prática de teatro vem ganhando 28

força nessa geração. Os Grupos de teatro da cidade começaram a circular pelos principais festivais do Brasil, inserindo o Ceará nas discussões nacionais sobre a prática e o rumos do teatro brasileiro. A cena cearense vem mostrando sua pluralidade para a cidade, para o estado e para o Brasil. Hoje somos muitos. A cada ano somos cada vez mais. No Ceará é assim. Sempre foi. O Siri Ará agora caminha para frente.




Bagaceira Fortaleza (CE) Entrevista realizada na Casa da Esquina, sede dos grupos Bagaceira e Máquina, Fortaleza, em 04 de maio de 2009. 31

FERNANDO YAMAMOTO Como é que se deu o processo de criação do grupo? ROGÉRIO MESQUITA O grupo surgiu em 2000. Eu, Yuri e Rafael Martins fazíamos parte de outro grupo. Nós queríamos participar do Festival de Esquetes de Fortaleza com textos que o Yuri escreveu, então a gente decidiu sair desse grupo e montar um grupo onde a gente tivesse liberdade montar esses textos, de experimentar dentro desse festival que, naquela época, era um espaço de experimentação. Então nós saímos, fizemos nossa inscrição e, para nossa surpresa, os três textos foram selecionados para participar do festival. Aí surgiu o Bagaceira, porque os textos tinham uma queda pro cômico, uma coisa meio escrachada, e o nome do grupo veio


muito por conta dessa questão do humor que era muito forte no nosso começo. Nós passamos os dois primeiros anos só montando esquetes. Tínhamos uma demanda de apresentação muito grande de esquetes, e foi assim que surgiu o grupo, já com essa questão da experimentação e da autoralidade que veio carregar muito mais forte depois que o Rafael Martins resolve levar adiante essa questão da dramaturgia.

FERNANDO Como é a rotina de trabalho de vocês hoje? ROGÉRIO É, hoje com a sede a gente deu um passo a mais, né? A questão de você aprofundar o trabalho, ter uma estrutura pra se trabalhar. Mas ela trouxe outros problemas que é administrar o espaço e administrar a questão artística do grupo. A sede tá disponível pra gente todo dia, mas na maioria do tempo é muito mais questão administrativa que a gente tá resolvendo. O Tá namorando! Tá namorando!, por exemplo, foi montado durante às tardes, mas digamos que o trabalho artístico mesmo do grupo continua sendo só à noite. De 19h às 22h a gente tá aqui, então quando tá em montagem fica focado ó nisso, quando a gente tá com apresentação de algum espetá32

culo do repertório, a gente faz laboratório de desconstrução dos espetáculos. SAMYA DE LAVOR Tem a parte de formação também. A gente tá procurando ter aulas com profissionais, de manutenção mesmo de trabalho de ator, técnico, “manter o corpo de baile em forma”, digamos. RICARDO TABOSA A gente teve aula de dança, Butô, a gente tá tentando ter aula de voz, de capoeira, e é tudo na base do “vem aqui dar aula pra gente”, dos amigos. ROGÉRIO Agora tá surgindo uma coisa muito interessante no grupo: por exemplo, o Edivaldo tá querendo puxar um treinamento pela manhã, eu sou mais preocupado com essa questão do festival de esquetes, então cada um tá começando a ter uma autonomia propositiva, meio que timidamente ainda, mas já tá surgindo.

FERNANDO E como é que se dá a divisão de tarefas e de benefícios? Vocês trabalham em sistema igualitário, ou existem diferenças de funções e remuneração?


DÉMICK LOPES Antigamente a parte de atribuições administrativas era muito centralizada no Rogério. Hoje a gente já tem mais gente atuando em outras áreas, tomando conta da casa, de coisas mais burocráticas, financeiras, etc. A parte de divulgação fica com uma pessoa, secretaria com outra, já tá um corpo mais organizado. Antigamente o Rogério fazia os projetos só, hoje em dia é totalmente dividido, cada um faz uma parte: apresentação, orçamento e tal, então isso dá uma dinâmica maior, otimiza o próprio projeto. SAMYA Em relação à parte financeira, ainda não tem como todo mundo ganhar igual porque nem todo mundo trabalha igualmente. A gente ainda tem pessoas que não vivem só de teatro, têm outros trabalhos e, geralmente, a gente trabalha em cima de porcentagens, pra autor, pra ator, etc. A gente tenta privilegiar da melhor forma possível cada função, mais em cima dos espetáculos porque, infelizmente, a gente ainda não pegou um edital bom de manutenção de grupo. Teve um, mas que foi uma vergonha, uma ajuda de custo pra cada ator.

FERNANDO Do estado? SAMYA Da prefeitura. A gente ainda não se deparou com essa realidade de ter um salário fixo.

FERNANDO Existem integrantes do grupo que vivem exclusiva ou predominantemente do grupo? SAMYA Sim, hoje a maioria vive predominantemente do grupo mas, voltando à questão da precariedade, isso não quer dizer que a gente viva ensaiando. A gente faz trabalho em empresa, faz trabalhos externos, tem pessoas que trabalham com outros grupos também, não só pela questão artística, mas também por essa questão financeira, de repente você tá ali também colhendo alguma coisa por fora. ROGÉRIO No Palco Giratório foi diferente, tava todo mundo numa situação igual, dois meses e meio disponíveis para o grupo, então a divisão de dinheiro foi igual. DÉMICK A gente somava tudo e dividia por onze.

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SAMYA Foi uma experiência que proporcionou isso pra gente, igualar todo mundo, e acho que foi a única.

FERNANDO É uma condição desejada pro grupo? SAMYA Sim.

FERNANDO Quais são as principais fontes de financiamento do grupo hoje? ROGÉRIO Acho que é festival. E projeto empresa. YURI YAMAMOTO Quando o grupo, aqui e acolá, é chamado pra fazer, por exemplo, apresentação no Festival Palco Giratório. ROGÉRIO É. Apresentações fechadas. A realidade dos cachês de Fortaleza é muito ruim, o teto é muito baixo. Aí o Bagaceira, que tem uma estrutura diferenciada, paga o preço porque tem que se adequar aos cachês que não pagam as condições de tra34

balho que a gente tem. Há uma defasagem de realidade. DÉMICK Nesses trabalhos para empresas fica um percentual para o grupo, 10% fica para o grupo, pra manutenção do espaço.

FERNANDO Como é que funciona esse trabalho de empresa que vocês fazem, que tipo de trabalho é? PAULA YEMANJÁ São trabalhos por encomenda. Tem uma reunião de briefing, e a partir disso o grupo apresenta uma proposta de encenação que atenda essas necessidades. Muitos dos trabalhos são feitos em parcerias com setores de Recursos Humanos, semana de SIPAT, é mais ou menos assim que funciona.

FERNANDO Em geral, qual é o ponto de partida dos processos de criação de vocês? YURI Então, nos dois primeiros foi texto. O primeiro o Rafael apresentou o texto Lesados e, a partir da leitura, deu uma ideia de encenação, mas fugindo um pouco do que ele propunha, até da divisão de personagens. Então meio que houve um acordo,


ele duplicou os personagens e nesse processo foi engraçado porque eu quis deixar o autor fora, ele não participou do processo. Foi o primeiro texto que eu dirigi do Rafael, e eu queria fazer uma surpresa pra ele! (risos)

FERNANDO E vocês seguiram com fidelidade ou vocês interferiram o texto? YURI A gente fazia observações, ele levava e mandava de volta.

FERNANDO Ah, então teve diálogo, mas não com a cena em si, só com o texto, é isso? YURI Só com o texto, ele só viu realmente o espetáculo na estreia. Ele não viu nenhum ensaio, não viu nada. E eu acho que foi uma surpresa legal, ele ficou feliz, disse que não esperava. Mas foi um erro também. No segundo ele participou bem mais ativamente do processo, a gente teve muito trabalho de mesa com O Realejo, foi o que mais a gente sentou, discutiu e trouxe material. Só depois partimos pro corpo e começou a Samya e o Edivaldo a entrarem também. O PornoGráficos foi uma coisa mais de imposição, no sentido de trazer uma ideia e querer forçar uma barra. Acho que nem todo mundo tava afim de falar naquele momento daquele tema, parte dos atores não tinha tesão porque não era aquilo que a gente tava querendo comunicar naquele momento. Foi um divisor de águas, o momento agora é de descentralizar, propor, trazer e não esperar mais um pelo outro, não esperar mais pela direção, por um texto. DÉMICK Essa etapa nova tem um pouco haver com uma maturidade de todo mundo. Antes era uma zona de conforto: joga pro Yuri, o Yuri propõe e a gente pega o texto pronto, uma concepção pronta, e entrava naquela história. Mas, surgiu a necessidade de um pouco mais. A gente sempre tenha foi muito atuante no processo, colaborativo mesmo, mas surgiu uma demanda de atuar um pouco mais no âmbito criativo e não só pegar uma ideia pronta. A gente ainda tá descobrindo isso, é muito doido. A gente ainda não sabe como, tem hora que dá saudade daquela coisa cômoda: teu personagem é esse, teu texto é esse aqui. É muito mais fácil pra gente. Então dá uma certa inquietação, mas é estimulante estar realmente descobrindo juntos isso

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aí, veio de uma necessidade da maioria. Estamos aprendendo a trabalhar esse novo processo. YURI Tem uma coisa de grupo que é necessário, mas acaba virando um problema, que é a questão de manter repertório. É muito complicado, porque você quer fazer coisas novas, tá todo mundo pipocando de ideias, mas aparece festival, aí vamos ensaiar de novo, e cadê saco pra ensaiar de novo? ROGÉRIO Mas é uma fonte de sobrevivência do grupo, né?

FERNANDO Como é que vocês lidam com a discussão sobre o tempo de vida do espetáculo? Já passaram pela situação de matar um espetáculo: “ok, já deu, já teve sua vida, acabou”? Como é que vocês lidam com a questão: o espetáculo faz sentido? Por que continuar fazendo esse espetáculo? ROGÉRIO A gente enquanto grupo tem duas fases. Uma quando ainda não era 36

grupo até 2000, e depois. Lesados marca essa nova fase, da consciência do que é um grupo. Até aí a gente tinha feito dois espetáculos, que foram Papoula e Os brinquedos no reino da gramática, que foi um infantil. Então esses dois eles morreram naturalmente, a gente nem teve a discussão.

FERNANDO Mas não tinha perspectiva de repertório? ROGÉRIO Não, não tinha essa consciência.

FERNANDO E depois que isso surge? ROGÉRIO Isso surgiu com os esquetes do Ano 4 d.C, que até hoje a gente tem em repertório, a gente discute muito a relevância desses esquetes dentro do que a gente faz hoje. Com os espetáculos eu não sei se a gente tá nessa fase de discutir. Por exemplo, o Lesados, que é o mais antigo, eu acho que ainda fala muito do grupo hoje. O Realejo também. A gente teve uma discussão pra colocar um espetáculo no repertório que foi o Meire Love, que foi um processo que começou fora do grupo e a gente colocou pra dentro. Mais ou menos como PornoGráficos, que foi um processo


meio que à parte nesse sentido. Hoje a gente revê essa questão do tempo, de dividir o tempo entre a nova criação com a manutenção do repertório.

FERNANDO Nas falas de vocês sobre os processos, em geral, existe um traço muito forte que é a relação com a dramaturgia independente de como ela seja abordada. Como e por que se dá isso? Historicamente, como é que se dá a questão do texto? Porque ela é tão importante na história, na estética do grupo? ROGÉRIO Eu acho que desde o começo, como eu falei, a gente sempre foi autoral, sempre montamos nossos textos. O Yuri ele trouxe essa questão da autoralidade, deu uma cara para o grupo a partir de textos que ele trouxe, que eram estranhíssimos (risos), e com as imagens que ele desenhou na cena. Então eu também comecei a escrever para o grupo, e o Rafael Martins dá um ganho mesmo, porque ele levou adiante essa questão da pesquisa dramatúrgica, do autor estar no processo mesmo, ele trouxe pro grupo essa questão. Mesmo no Lesados, em que ele não estava presente na sala de ensaio, mas nós tínhamos um diálogo muito forte em relação a isso, então ele meio que moldava o texto às nossas necessidades e O Realejo também. O PornoGráficos eu considero um ganho no sentido da construção dramatúrgica, porque ele foi um texto praticamente escrito no processo. Ele veio com uma ideia concebida, mas depois foi toda destruída no processo e foi reconstruída com a Paula, que estava como assistente de direção, e pelo Yuri e o Rafael. Nas pouquíssimas vezes que nós trabalhamos com autores de fora foi difícil a gente trabalhar com uma dramaturgia cênica, como, por exemplo o texto da Suzy Élida, Meire Love, um texto que de cara a gente não se via montando, mas foi se inserindo na poética que o grupo meio que intuitivamente. Eu acho que a importância do trabalho do Rafael é essa questão do autor no processo da colaboração. YURI E por ele ser um membro do grupo já existe uma identificação com um pensamento, um autor que escreve já pensando no grupo, na gente, tipo “ah, escrevi uma coisa que é a tua cara” e já tem essa intimidade, eu fico à vontade pra interferir,

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pra conversar, pra tirar coisas, é como se fosse uma coisa minha também. Ele dá essa liberdade mas, às vezes, é também uma zona de conforto.

FERNANDO Vários de vocês escrevem, apesar de terem na figura do Rafael “o dramaturgo” do grupo. Vocês acreditam que o grupo se configura, ou pelo menos tem uma perspectiva, de se estabelecer como um espaço de formação em relação ao trabalho dramatúrgico? Existe essa preocupação com a sistematização dessa prática? YURI Por mim não. Tanto que eu gosto, tenho ideias, mas não sei me comunicar, não tenho a carpintaria da escrita, todo esse esquema. É mais intuitivo, mais solto. Eu acho que eu me comunico melhor com a imagem do que quando me meto a escrever alguma coisa.

FERNANDO Em geral, quanto tempo vocês levam de processo de mon38

tagem? ROGÉRIO O Lesados e O Realejo foram seis, sete meses, o PornoGráficos foi nove meses! O Tá namorando! Tá namorando! foi dois ou três meses. Pode se tirar uma média, mas não tem um “montamos em seis meses”. A gente pode dizer isso ainda mais hoje, que tá uma questão da autoralidade difundida.

FERNANDO Como é que é a relação de temporadas aqui em Fortaleza? Vocês conseguem manter uma temporada de quanto tempo? Conseguem fazer quantas temporadas do mesmo espetáculo? ROGÉRIO Bem, eu divido em duas fases também. Quando O Realejo e o Lesados estrearam a gente tinha aquela prática de fazer estandes em universidades, a gente conseguiu levar um bom público pro teatro, então a gente passou uns dois anos e meio sem ter que correr atrás, formou um público. Com o PornoGráficos a gente começou a trabalhar com produção externa, as duas primeiras temporadas foram ótimas no sentido de público, de divulgação porque foi uma produção de fora.


FERNANDO Foram temporadas de quanto tempo? ROGÉRIO De dois meses. Geralmente são dois meses as temporadas. Mas agora nós voltamos a fazer produção de temporada no Teatro SESC Emiliano Queiroz. Foi a primeira vez que nós fizemos uma temporada tendo uma sede. Administrar a sede, repertório que viaja, então a gente meio que se embananou na produção dessa temporada, apesar de que a gente nunca divulgou tanto, toda mídia a gente fez: rádio, televisão, jornal, mas a resposta do público foi muito lenta. O teatro do SESC ele tá meio fora da rota, teve quebras na temporada, então foi meio acidentado nesse sentido. A gente tem que dar um rodízio de temporada pros espetáculos, pra que não entre tudo de uma vez.

FERNANDO Como é a relação do Bagaceira com a questão espacial? É uma questão importante? Vocês em geral trabalham em uma perspectiva frontal ou não pensam muito a relação a isso? YURI Na verdade eu sempre quis fazer algo mais interativo e acaba que a gente sempre acaba indo pro palco mesmo, mas é uma vontade que eu tenho.

FERNANDO Porque você acha que isso acontece? YURI Por falta de espaços alternativos. Até tem, mas se já é difícil de se levar pessoas pro teatro, é ainda mais levar pra outro espaço. As pessoas aqui ainda não estão acostumadas a ir pra espaços alternativos, a não ser a rua. CHRISTIANE DE LAVOR Uma coisa que é interessante é que o atual processo, Ausência, é o primeiro que a gente vai fazer dentro da sede. Ele já foi concebido aqui dentro e eu acho que isso trouxe uma ânsia também de explorar novos espaços, porque antes a gente sofria muito pra ensaiar. Então, essa ideia de fazer em outros espaços nem vinha muito porque já era tão complicado você achar um espaço pra você ensaiar, que buscar esse espaço alternativo isso acabava meio que ficando pra segundo plano. Como o Ausência tá começando aqui dentro, a gente já explorou

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vários espaços da casa e isso é uma coisa extremamente rica pra gente porque tá permitindo a gente ver possibilidades que antes não tinha. YURI E até de aqui ser um espaço de apresentação. É uma vontade nossa também de adequar os espetáculos a esse espaço e outros que virão, a gente meio que fazer num formato que se encaixe aqui, que esse seja um local de apresentações mais pocket. ROGÉRIO O PornoGráficos a gente viu que dá pra fazer.

FERNANDO Com menos gente você consegue ter menos custo e fazer uma temporada maior. FERNANDO Em que grau a preocupação com o público interfere nos processos criativos de vocês? DÉMICKO Tá Namorando! Tá Namorando! foi o que a gente mais pensou, né, no público. 40

ROGÉRIO É, tinha um público-alvo. Mas na verdade a gente procurou não ficar ensimesmado. A preocupação maior mesmo foi de comunicar. Por exemplo, o Lesados quer comunicar aquela letargia que é aquele sentimento que vivem aqueles quatro, n’O Realejo a gente queria um espetáculo que emocionasse as pessoas, o PornoGráficos era discutir aqueles tabus, daquela maneira violenta. PAULA Mas eu acho que quando se fala no público, é muito mais em pensar em criar uma atmosfera pra lançar pro público do que necessariamente se pensar racionalmente em como eu vou chegar. O Yuri trabalha muito com a criação de atmosferas, é fato. Então, essa criação engloba muito mais do que o “ah, o que o público vai pensar disso?”. Acho que essa é uma preocupação que não existe dentro do processo de criação, mas sim como criar uma atmosfera e o que essa atmosfera vai transmitir a esse público e aí a gente vai trabalhando a ideia.

FERNANDO Mas mesmo no caso de Tá Namorando! Tá Namorando!, que vocês trabalharam pela primeira vez pra um público “específico”,


houve algum tipo de interferência maior dessa preocupação durante o processo ou aconteceu como acontece em qualquer um dos outros processos de vocês? YURI Com o Tá Namorando! Tá Namorando! a gente teve uma preocupação, porque além de ser uma coisa nova pra mim, foi uma ideia de como chegar em um público infantil com a linguagem que a gente trabalha, como é que juntando o Lesados, juntando O Realejo, juntando várias referências que a gente tem, mas para nos comunicarmos para crianças. Surgiu esse questionamento de como é que seria fazer pra esse público, como seria a comunicação, como seria o retorno e o tempo todo que a gente esteve em ensaio a gente ficava muito preocupado se isso ia comunicar, a dificuldade porque não tem fala, se ia ficar muito complicado, as próprias historinhas, a costura, como é que a criança reagiria, a faixa etária das crianças, se eram maiores ou menores. SAMYA Se era infantil mesmo, ou se a gente tava achando que era infantil e não era.

FERNANDO Em relação a oficinas, como é a prática pedagógica do grupo? Vocês tem uma frequência? Que tipo de oficina vocês ministram? ROGÉRIO Essa questão de ter uma oficina do grupo surgiu muito com o Palco Giratório, que exigiu que tivéssemos uma oficina. Então, pra essa oficina, a gente fez meio que um Frankenstein, pegando vários exercícios de laboratórios que o Yuri aplicou nos processos. Foram coisas que a gente via dentro do processo dos espetáculos, principalmente de O Realejo, então é uma oficina que é meio um trailler dos nossos processos. Hoje em dia eu sou uma pessoa que cobra de todo mundo pra colocar nossas oficinas no papel, só que essa questão da sistematização tá meio embrionária. O Edivaldo traz muito essa preocupação por conta da formação dele no CEFET, a Paula também e o Rafael Martins. O Yuri tem uma oficina pronta de figurino e eu também tenho uma oficina de iniciação teatral. Houve uma época que dávamos oficinas pra nós mesmos, cada um propunha, a gente passava o sábado tra-

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balhando, cada um propunha uma dinâmica de exercícios. A Samya e o Edivaldo têm muito essa coisa do treinamento do ator. A sede tá propondo isso também.

FERNANDO Como é que se dá o registro dos processos de vocês? Vocês têm essa prática? ROGÉRIO Eu acho que a gente tá começando agora essa coisa de ter que escrever sobre o processo. O PornoGráficos isso ficou um pouco abandonado, mas o Ausência, que tá puxando essa questão da autoralidade, acho que o registro escrito vai ser mais forte. Há um desejo de ter um livro de apontamentos, de registros. Mas, por exemplo, há fotos desde a primeira reunião de O Realejo até a estreia, foi o espetáculo mais documentado. O Tá Namorando! Tá Namorando!, como os meninos estavam dentro da cena dirigindo, ele foi muito filmado e a gente tem isso arquivado. YURI Eu tenho uns cadernos com tudo anotado. ROGÉRIO É, o Yuri tem. Essa questão de apontamentos, direcionamentos, o Yuri 42

tem desenhos desde a Papoula. Essa coisa de registro de processo a gente tá apanhando na escrita, mas imagem é só o que tem. (risos)

FERNANDO Vocês já pensaram em algum tipo de sistematização disso? Pra publicação? Enfim, pra disponibilizar isso de alguma forma. A socialização disso, já passou isso pelo grupo? ROGÉRIOO Rafael, inclusive, falou que ia começar a criar um blog pra esse processo que está iniciando. Um lugar meio que fechado, só pra gente, mas que também poderia ser aberto.

FERNANDO Falem um pouco da relação do grupo com os outros grupos. ROGÉRIO Eu notei que a gente passou por um período meio desarticulado, principalmente com os grupos aqui de Fortaleza. A demanda de trabalho da gente foi tão grande, a gente viajou tanto, que meio que perdeu essa relação que tinha. Há alguns anos que não participamos do festival de esquetes, que tinha muito esse espírito,


mas aqui em Fortaleza não tem muito essa prática de incitar as trocas entre grupos. Mesmo com o Máquina, a gente se encontra mais n’A Lapada do que aqui. A gente ainda não conseguiu efetivar esse encontro aqui, nessa sala, por exemplo. Com o surgimento desse movimento pela cooperativa, eu e a Samya estamos tendo uma proximidade com a realidade dos grupos de Fortaleza, com as condições, vemos que nós trabalhamos na precariedade, mas alguns são mais precários ainda. Sobre a questão de troca estética eu posso afirmar que a gente não tem, aqui em Fortaleza, um grupo que somos pares. Existe muito mais uma parceria de reivindicação por melhores condições de trabalho.

FERNANDO Fala um pouquinho desse processo da cooperativa. ROGÉRIO Esse processo da cooperativa surgiu no CONTE, o finado CONTE. Alguns grupos se reuniram pra reativar o CONTE, mas viram que não dava certo, que o negócio era muito além do que uma conexão de espetáculos. Tomou-se conhecimento dessa questão nacional, que é a discussão da Lei Rouanet e nós vimos que o teatro de grupo de Fortaleza é o teatro que está levando a cena adiante, e que esse teatro tem que ter um espaço garantido, melhorar as condições de trabalho, na verdade. Então começou com esse projeto de criar uma cooperativa, só que a forma que esse movimento tomou não foi nem tanto de criar a cooperativa, tanto que o nome do movimento é Movimento Todo Teatro é Político. Então, essa forma de teatro que a gente tá contemplando é o teatro de grupo, trazer essa discussão de hoje: o que é teatro de grupo e o que não é. Conseguimos fazer um barulho enorme no dia 27 de março, fizemos um seminário de dois dias no Theatro José de Alencar, trouxemos o Luiz Amorim pra falar da experiência da Cooperativa Paulista de Teatro, representantes do interior do estado pra falar das questões do interior e, no dia seguinte, chamamos todas as entidades públicas do Ceará. O movimento propôs coisas que eles deveriam propor para uma política cultural afinada com a realidade, coisas bastante concretas, tanto que no dia seguinte o Secretário de Cultura ligou pra marcar uma reunião. A gente teve uma reunião, ele ouviu e foi muito esclarecedor pra ele o que é teatro de grupo, o que é manutenção de grupo, e que nós estamos bastante

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interessados em buscar um diálogo, uma parceria com o poder público. Estamos bem coesos, objetivos, sem o grande muro das lamentações. Então é um movimento tá nesse pé: construindo um edital, mostrado pro governo do estado essa prática do teatro de grupo.

FERNANDO E em relação a relacionamentos com grupos de fora do Ceará? ROGÉRIO Nessas viagens a gente se encontra e se identifica mais com os Clowns, e até com o Alfenim, do que com grupos de Fortaleza, porque houve aqueles espaços de troca, principalmente, n’A Lapada. Há uma vontade com outros, mas essa questão da geografia nos impede de estarmos mais próximos, como o XIX, o Angu. DÉMICK Não há uma troca, mas a gente sempre acompanha o trabalho do outro. ROGÉRIO O Yuri sempre colabora com os espetáculos do Angu. Há um convite meio que formal de troca mesmo. 44

SAMYA Em relação a essa história de trocas, é engraçado que o grupo vai trocando também com outras linguagens. Ano passado tivemos uma oficina de cinema, veio um cineasta pra cá, e foi uma troca muito boa, acrescentou muito ao grupo. Com a Fabíola, que é bailarina, também. ROGÉRIO Tiveram as oficinas que o Theatro José de Alencar ofereceu com o Maurice Durozier, do Théâtre du Soleil, e o Wal Mayans, paraguaio, que a gente participou, trabalhou com coisas que a gente não esperava trabalhar ao cedo. SAMYA O Meire Love é resultado de uma parceria. Por mais que não exista essa troca efetiva, existem encontros casuais e de acompanhar trabalhos mesmo. O próprio Silvero já tem o espetáculo Uma flor de dama, que a gente nascer na casa do Rogério, e vai acompanhando. Tem pessoas que são importantes pra gente ter perto, ter um feedback, pessoas de teatro daqui que a gente confia. Acho que é isso, mas a gente com certeza, queria que isso fosse mais frequente, mas a gente não tá dando conta nem da gente mesmo...




Teatro de Caretas Fortaleza (CE) Entrevista realizada no Complexo Dragão do Mar, Fortaleza, em 07 de março de 2011. 47

FERNANDO YAMAMOTO Como surgiu o Teatro de Caretas? VANÉSSIA GOMES O Grupo Teatro de Caretas, na verdade, existiu antes até de ser Caretas. O grupo foi formado por atores que participavam do teatro da Boca Rica, que trabalhou com Oswald Barroso desde 96. No início éramos eu, Sâmia Bittencourt, Galba Nogueira e Non Sobrinho, além de outros atores participavam de pesquisas e espetáculos com Oswald. Essa formação durou muito tempo, porque era um processo mesmo de formação, a gente fazia muita viagem in loco de pesquisa para construir espetáculos, mas de palco. Só que tínhamos uma ânsia de fazermos trabalhos de rua, porque as pesquisas eram de manifestações tradicionais que são a céu aberto. A gente ia para terreiros, para espaços abertos, não pesquisava nada que era fechado. Começamos a nos interessar pela questão do teatro de rua, e em Fortaleza tinha um grupo que até hoje é referência, que é a Trupe Caba de Chegar. Em 98 surgiu um projeto no Ceará chamado Teatro de Rua Contra a AIDS, criado pelo Ranul-


fo Cardoso, que trabalhava na Secretaria de Saúde e implantou esse projeto, no qual uma média de cinquenta grupos montaram um texto do José Mapurunga, O Auto da Camisinha. Tiveram formações, encontro de grupos de teatro, tudo com financiamento direto. Aí a gente criou um grupo, que durou um período, que apresentava o Auto da Camisinha, mas ainda não era o Teatro de Caretas. Como a gente apresentava o espetáculo com diversos grupos, e houve realmente muitos encontros, deu-se um foco para essa ideia do teatro de rua, de conhecer outros grupos, outros espaços, e a gente se interessou em fazer pesquisa. A partir daí a gente já foi tendo um sinal do que seria o percurso do grupo.

FERNANDO E o vínculo com o Boca Rica e com o Oswald continuava? VANÉSSIA Continuava. A gente fazia o Auto da Camisinha e seguia trabalhando com ele. Acabou que a gente sugeriu fazer um espetáculo com o Boca Rica, aí o Oswald escreveu um texto, que chama Camisinha Cor de Rosa e a gente montou, começou a apresentar pelo Boca Rica, só que já era na rua. Então a gente consolidou um traba48

lho, e em 2001 a gente montou o grupo Teatro de Caretas. Antes a gente chamava até Grupo de Intervenção Social Teatro de Caretas, fazendo vários trabalhos relacionados inicialmente à questão da intervenção, nesse sentido social. Como eu sou da área social e o Galba também, isso era muito forte pra gente, tinha um alicerce do Paulo Freire, da ideia de trabalhar com população. , então havia uma sedução muito forte por aí. A gente nesse período de 2001 estabeleceu que era o Teatro de Caretas, mas continuava o trabalho com o Boca Rica. A gente começou a fazer produções do grupo, montou diversas esquetes, espetáculos, e chegou uma época, em 2004, que a gente acabou saindo do Boca Rica e ficou trabalhando só com o Teatro de Caretas. A gente montou um espetáculo que chama E Agora José?, que falava da questão da adaptação das áreas de risco, então trabalhava muito com essa coisa da mobilização social. Desse período para cá nós fizemos outras montagens, começamos a fazer trabalhos mais específicos, tanto de pesquisa como de troca com outros grupos, e daí se estabeleceu mesmo o grupo Teatro de Caretas.


FERNANDO E como é a rotina do grupo hoje? VANÉSSIA A gente tem encontros diários por cerca de três horas na praça do Benfica. A gente acaba ensaiando em um espaço aberto por não ter uma opção de espaço fechado, mas também por opção. Por que? Porque a gente compreende que é uma filosofia que acaba demarcando politicamente uma ação que é a ideia de a gente criar sedes públicas. A gente acaba estabelecendo aquele espaço como nosso espaço de criação, entendendo que criar um espetáculo de teatro de rua significa criar dialogando com o que você vai vivenciar. Então se você cria tudo em um espaço fechado você nem tem essa abertura. Mas a gente pensa que o ideal é criar na rua, mas ter um espaço sede para guardar o nosso material. Tem muita coisa, e fica naquele esquema de guardar na casa das pessoas. O nosso cotidiano se dá com a ideia da pesquisa, formação e treinamento, a gente fica nessa constante. Ano passado a gente fez uma montagem, que chama Cortejo de Caretas, que a gente conseguiu fazer cinco grandes viagens de pesquisa. A nossa ideia era fazer um trabalho específico sobre as máscaras presentes nessas manifestações e como se dava a performance desses brincantes, para usar como referência para um espetáculo com máscaras. O roteiro de viagens que começou em março, em Canindé, num assentamento chamado Ipueira da Vaca, e lá tem um reisado que é da família Ramos, que trabalha com máscara de careta, eles tem as estruturas preservadas. A gente foi para lá e fez entrevista, gravou, dançou com eles. A ideia da pesquisa era fazer algo muito sensitivo mesmo, então a gente ia com uma equipe que gravava, fotografava e fazia a maior parte das entrevistas, para a gente ficar mesmo vivenciando. Na hora da brincadeira a gente ficava no meio mesmo, brincando, tinha esse propósito. Em abril, a gente foi pra semana santa em uma cidade chamada Jardim, que é incrível, porque eles passam os quatro dias da semana santa todos encaretados na rua, e como a gente trabalha muito com a coisa da ocupação, então a gente foi pra lá com a ideia da ocupação de rua. Lá não tem uma manifestação específica, uma brincadeira, um jogo, diferente do reisado, que tem uma estrutura dramática que você percebe. Lá não, é como a gente está aqui, mas está todo mundo de máscara. O pessoal bebendo, jogando bilhar, tudo de máscara, de

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borracha, de pano, de camisa... É super fascinante. Passam em bandos. Aí a ideia no último dia é ter a queima do Judas, é algo meio medieval, sabe? A gente ficou super impressionado. Depois fomos para Natal, conhecer o boi da capemba, e coincidiu que o mestre tinha morrido havia pouco tempo, então eles estavam super abalados, a gente viu as máscaras, conheceu o pessoal, mas eles estavam super fragilizados. Aí de lá a gente foi pra Condado, conhecer o Cavalo Marinho pessoalmente, de Mestre Biu Alexandre, do Agnaldo. É uma coisa pra você fazer a vida toda, de ver, pesquisar, estudar, porque é uma coisa fabulosa. A gente foi pra lá ver as questões da cena e principalmente do corpo, pois é muito forte a manifestação. Das várias manifestações que eu já vi ao longo desse trabalho todo que eu faço com pesquisa e com teatro, nunca senti tanto vigor. Todo mundo fala das manifestações, você passar a noite acordado e tal, mas lá a gente ficou mesmo, de nove horas da noite até seis da manhã, e não parou, foi incrível, um impulso muito grande para o trabalho, principalmente para a questão corporal, da dança, da música, porque compreende tudo. De lá, a gente acabou indo para o Maranhão, onde vimos os Cazumbás. Conhecemos o Seu Abel 50

Texeira, que é outra figura inacreditável, porque ele é artesão, mas brinca com a máscara do careta, compreende os diálogos, compreende as coisas. E lá a gente percebeu que a dramaturgia já se perdeu muito, mas enquanto estética e ocupação é fabuloso. Depois conhecemos um mestre aqui de Guaramiranga, Vicente Chagas, que a gente já o tinha visto muito, mas nunca tinha sentado para fazer entrevista, pra conversar e pra ficar convivendo. E daí a gente criou o espetáculo, e nesse percurso todo com essa questão do treinamento, de fazer trabalho de pesquisa. Esse trabalho representou muito o que a gente pretende daqui para a frente, da questão da intensidade.

FERNANDO Como um piloto. VANÉSSIA É, como um piloto porque a gente sempre teve muito interesse na questão da manifestação e da intervenção, da investigação desse lado mais político, mas é um diálogo que às vezes parece que é fácil ou muitas vezes as pessoas transformam numa coisa mais rasteira, mas a gente sabe que precisa de algo mais aprofundado. Se trabalha com referências, com manifestação e com pesquisa, você não pode querer


fazer algo parafolclórico. O Oswald foi muito importante nesse processo. A gente saiu do Boca Rica, mas o Oswald acabou trabalhando com a gente no Caretas, nos acompanhou. Ele é o orientador das pesquisas, acompanha as montagens, aí ele olhava e dizia: “vocês vão inventar o teatro? O teatro já está inventado, não tem mais que inventar, não”.

FERNANDO Vocês têm uma preocupação de registro desses processos? Fotos? Vídeos? Como é que vocês fazem? VANÉSSIA Temos. Bem, a questão fotográfica é o que a gente mais aprofundou, porque eu sempre gostei de registrar, mas ano passado a gente teve uma parceria bacana com um fotografo aqui de Fortaleza, o Alex Hermes, que acompanhou o processo inteiro. Já dos outros processos temos algumas fotos, da Farsa a gente tem muita gravação e foto. E aí tanto da Farsa como do cortejo existe um diário, a gente foi escrevendo.

FERNANDO Individual ou um diário coletivo do grupo? VANÉSSIA Da Farsa tinha um diário individual de quem estava dirigindo, que era o Galba Nogueira. Já do Cortejo de Caretas todo mundo foi fazendo, das viagens principalmente, capturando o máximo, para transformar em cena o que era de nosso interesse. A gente viajava, e assim que chegava, ou no dia seguinte, íamos para a praça e fazíamos um resultado sensível. Fizemos cinco resultados sensíveis. A gente chegava, capturava, via, sentia o que era, pegava os elementos que identificava aquela manifestação e fazia, aqui no Dragão, na Praça do Ferreira, no José de Alencar, no Benfica. Esse resultado sensível era nosso diário sensível.

FERNANDO Isso que você chama de resultado sensível é um produto cênico? VANÉSSIA Sim. A gente fez cinco produtos cênicos, cada viagem tinha um. É claro que, ao longo das viagens, a gente já ia ficando impregnado de várias coisas, e no último, mesmo sem querer, a gente juntou tudo. Foi muito interessante, a gente

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já conseguia ver algo sistematizado, mas é um trabalho difícil esse procedimento da criação por improvisações, porque a questão dramatúrgica tem que ter uma compreensão coletiva.

FERNANDO Vocês têm uma pessoa específica que dá o tratamento final dramatúrgico? VANÉSSIA Pois é, da Farsa a gente teve, que foi o Henrique Dídimo. Ele observou, pegou coisas que a gente tinha escrito, falado e improvisado, e transformou num texto. Nesse outro processo ele já não estava participando, mas o Oswald ficou nesse trato dramatúrgico.

FERNANDO E direção? Vocês costumam trabalhar com diretor de fora ou de gente de dentro do grupo? VANÉSSIA Até agora a gente nunca trabalhou com alguém externo ao grupo, mas a gente tem interesse grande de fazer esse diálogo. Nós percebemos que é interessante, 52

para podermos ter uma experiência coletiva com um olhar de uma outra pessoa. A gente ainda não foi para esse caminho, mas já viu outras experiências semelhantes, mas não se sabe ainda qual é a ponte para chegar lá.

FERNANDO Existem algum dos integrantes do Caretas que sobrevive do grupo? VANÉSSIA Não, todos têm outras atividades. Mesmo que a gente faça muitas atividades relacionadas ao grupo, como dar aula de teatro por um projeto, mas assim, viver dos espetáculos, ainda não se consegue, o que é uma das lutas.

FERNANDO Então existe essa perspectiva, esse desejo no grupo? VANÉSSIA Sim. Porque a ideia dos projetos, da pesquisa, das criações, é tudo voltado para essa ideia de fortalecer o grupo. Estamos correndo atrás para poder criar situações que promovam cada vez mais a ideia da consolidação do grupo, dessa manutenção, que é necessária. Uma vez eu vi a Tânia Farias, do Ói Nóis, questionando sobre o que seria melhor: as pessoas passarem o dia todo trabalhando no grupo para


receber uma grana, ou o cara trabalhar de garçom durante o dia e, à noite, fazer teatro com o maior gás? A gente já passou por momentos de ter que optar. Por exemplo, uma construtora convidou o grupo para várias apresentações. A gente fez por um período e depois viu que não era a nossa. Tinha um retorno de grana bom, mas não é a nossa pesquisa, não é o que a gente quer falar, então não funciona. É até redundante, mas gente trabalha com arte, né?

FERNANDO E em termos administrativos, todo mundo se envolve com as questões de produção, de administração do grupo? Tem alguns do integrantes que não se envolve na parte artística, só na administrativa? VANÉSSIA Eu fico muito concentrada na questão dos projetos, mas na produção a gente já consegue dividir. Isso foi uma luta por muito tempo, porque as pessoas não viam muito essa coisa da produção coletiva. Não tem alguém específico de executivo, todo mundo é do grupo e acaba trabalhando.

FERNANDO Em termos de financiamento, você citou alguns dos projetos que já fizeram. Em geral quais são as principais fontes de renda do grupo, de onde vem o dinheiro? VANÉSSIA Em geral acaba a gente tendo mais recursos vindos de fora do que do próprio estado. Premiações, Ministério da Cultura, parceria com ONGs. No estado, durante algum tempo, houve uma dificuldade porque era de teatro de rua. Os festivais acabavam fazendo mostras paralelas e mostras oficiais. Aí na mostra oficial eram os espetáculos do teatro de palco, e a mostra paralela de teatro de rua, como se fosse uma arte menor. Houve um fortalecimento nacional dos grupos, então isso se fortaleceu também dentro do Ceará. Hoje já se percebe um olhar diferente, mas durante algum tempo essa questão dos projetos voltados para o teatro de rua eram mais delicados, você não conseguia muitas aprovações e era uma luta para você não ser paralelo.

FERNANDO E eu acho que esse é um traço relevante, né? Tanto para o Caretas, quanto especificamente teu, dessa articulação política. Como

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é que vocês vêem isso, trabalham com isso? Você hoje é uma figura de referência no Nordeste pro teatro de rua. VANÉSSIA Bem, no início havia essa visão da questão política no sentido de atuação dentro da comunidade, de estar participando do que acontece na cidade. Ainda não existia a Rede Brasileira de Teatro de Rua. Aí em 2006, 2007 eu capturei um e-mail do Licko Turle, do Tá na Rua, pro Kuka Matos, sobre um encontro de teatro de rua em Salvador. Aí eu mandei um e-mail pro Licko: “Ei, eu sou do Ceará, também sou de um grupo de teatro de rua, queria conversar com vocês!”. A gente então iniciou um diálogo, e aqui em Fortaleza, desde que surgiu a Rede, a gente criou mobilizações, encontros, reuniões, até porque aqui existem vários grupos de teatro de rua, por causa do Teatro de Rua Contra a AIDS. Depois a gente conseguiu criar um diálogo com os grupos aqui de Fortaleza e com os grupos de fora do estado. Em 2009 a gente fez um encontro no festival dos Inhamuns, organizado por um grupo de lá, o Arte Jucá, e esse é um momento bem marcante, porque a gente conseguiu um ônibus com a 54

Secretaria de Cultura do estado para levar os artistas daqui e outros de comunidades próximas para ir para os Inhamuns, motivados muito por esse questão nacional, pra deliberar, para conversar,. Durante um período a gente ainda segurou durante um diálogo com a secretaria do estado pras questões de manutenção das praças, da ocupação de espaços que estavam abandonados e poderiam ser sedes dos grupos. Depois deu uma derrocada, a gente está num momento “cada um na sua ilha”, os diálogos são mais distanciados. Existem muitos grupos que pesquisam e trabalham, mas é difícil você estabelecer essa questão política. Isso é uma manutenção constante, eu acho que é um processo que tem que partir de cada pessoa, de cada grupo, isso não pode ser algo que venha alguém insistindo o tempo todo. Até é natural ver um grupo mais a frente pra dar um impulso, mas não pode ser o tempo todo assim. Mas essa questão política é necessária, é um traço muito particular do nosso grupo, pela nossa formação, e também pelo nosso aprofundamento da questão do teatro do oprimido. A gente tem uma proximidade com o CTO, teve muito contato com o Augusto Boal. Você tem que estudar muito para poder quebrar as amarras, principalmente do


individualismo. A gente tem a consciência que vai lutando para não ser panfletário, porque também não é essa a ideia, e sim falar mais do humano, ter uma perspectiva maior. Eu acho que é um caminho rico, mas árduo, porque “facim, facim” você debanda para o outro lado, do panfletarismo, ou então se isola de tudo.

FERNANDO E na relação grupo com grupo? Você citou duas ONGs. Vocês costumam ter essa relação de troca mais específica? Você falou até de um desejo de um dia realmente desenvolver um projeto com outro grupo, mas e processos de trocas com outros grupos, seja com grupos de outros estados, seja com grupos daqui, acontecem? VANÉSSIA A gente tenta muito e já conseguiu fazer vários diálogos nesse sentido. Tem grupos que a gente tem uma simpatia, e já teve contatos muito legais. A gente vê o espetáculo, depois conversa muito. O Ói Nois é um que a gente já teve vários diálogos, a gente tem uma simpatia muito grande pela perspectiva, pelo olhar que eles dão. O pessoal da Brava também, e aqui no Ceará tem grupos como o Garajau, que trabalha com circo e rua, que a gente tem uma aproximação grande com eles. Tem atores deles que participam dos espetáculos com a gente e o diálogo flui muito forte, tanto politicamente quanto esteticamente. E outros grupos que são do próprio estado, como o Arte Jucá, ou de fora, como o Alegria Alegria e o Artes e Traquinagens, do Rio Grande do Norte, o pessoal do Maranhão, a Oigalê, que é um grupo irmão, e a gente tem uma afinidade e um diálogo bem sincero.

FERNANDO Qual que é a grande questão pro Caretas hoje? O que é o assunto que está na crista da onda, no centro das discussões do grupo? VANÉSSIA Eu acho passa muito pela busca por uma assinatura, uma identidade. A questão ética vem muito forte nos nossos diálogos, ela é um principio entre nós e a gente tenta levar conosco, porque acho que define muito quem somos nesse mundo. Hoje a gente fala muito nessa questão da sistematização, é algo que precisa de muito estudo, as nossas grandes referências são as manifestações, mas elas precisam ter o paralelo com o teatro, não pode ser ela por si própria. Agora a gente está muito

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atento à questão da performance, da construção da cena, da criação. A ideia dos resultados sensíveis foi algo que a gente fez para tentar capturar e deixar registrado no corpo, e daí a gente começou a estudar performance. Hoje a ideia da performance é muito forte, porque essa performance ocupa a rua, traz uma outra ideia e pode criar vários conteúdos, então estamos muito atentos a isso, mas a questão ética é bom frisar, porque demarca muito quem somos.

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Expressões Humanas Fortaleza (CE) Entrevista realizada na Aldeia Expressões Humanas, Fortaleza, em 31 de julho de 2011. 59

FERNANDO YAMAMOTO Herê, me conta como surgiu o Expressões. HERÊ AQUINO O Expressões surgiu em 1990. Era um grupo de amigos que não eram só do teatro, de vinte pessoas só duas faziam teatro. Em 90, em Fortaleza, o movimento de teatro ainda era muito acanhado, todas as pessoas que faziam teatro eram autodidatas, não tinha uma escola de teatro. Então os grupos se juntavam, mas não tinham uma permanência de trabalho, não existia um trabalho continuado. E o Expressões Humanas nasceu mais ou menos assim, de um grupo de vinte pessoas que resolveu se encontrar pra trabalhar o teatro, e começaram a descobrir as coisas. Dessas vinte pessoas ficaram dez, e permaneceu uma base que ficou até 2004. Depois de 2004 o grupo meio que se desestruturou, outras pessoas entraram, só eu permaneci. Aí toda vez que eu ia montar de um espetáculo, eu convidava algumas pessoas que participavam de todo o processo como se fossem do grupo, todos os ensaios, os treinamentos, tudo, e essas pessoas acabavam ficando. Em cima disso,


algumas pessoas foram ficando e permaneram durante um tempo. Em 2010 surge outro problema, quando a gente conseguiu finalmente ter a sede do grupo. A gente tava com um grupo de nove pessoas, e com o surgimento da sede, que foi uma coisa muito boa, outras responsabilidades surgiam, e nós tínhamos que aprender a lidar com isso, que foi a crise de administrar um espaço, a partir de um edital que tinha uma verba pequena, e as pessoas não conseguiam se manter só desse apoio. Ficaram quatro pessoas, que estão segurando a sede, tentando mantê-la como um espaço cultural. E aí abre-se pra apresentações de outros grupos que colaboram, vai entrando um pouco de verba de oficinas, palestras, a gente tá aprendendo a lidar com essa nova realidade que surgiu pro grupo, tentando equilibrar a administração do espaço e os ensaios e treinamentos do grupo.

FERNANDO Ainda tem uma outra grande transformação que foi o Palco Giratório, que me parece que foi mais ou menos no mesmo período, né? Com tudo isso, como é que vocês se dividem em termos de 60

funções, como o Expressões funciona hoje? HERÊ A partir do Encantrago, surge o Palco Giratório, parece que veio tudo de uma vez. Nós ganhamos o Myriam Muniz pra montagem, fomos escolhidos pro Palco Giratório e surgiu também o edital da Secult de manutenção de grupo. Isso ficou um pouco atropelado, nós tínhamos que alugar a casa no início de 2010, e mas só conseguimos alugar no final, porque o Palco Giratório tomou o ano quase todo. Depois do Palco Giratório, quando alugamos a casa, nós dividimos tarefas de horários, entre oficinas, treinamento, ensaio... Nós nos reunimos quase todos os dias, dificilmente a gente não se junta à noite. Agora, como administrar isso durante o dia? As outras pessoas dão aula de teatro, dirigem outros espetáculos, em escolas, então, como administrar isso? Nós quatro dividimos as tarefas, a cada dois dias uma pessoa fica, intercalando assim. Se vai ter uma oficina, tem que ter alguém aqui pra dar o apoio. Quando tem espetáculos durante o final de semana, tem que alguém estar sempre aqui. Então era uma rotina direta, e isso atrapalhou um pouco o processo da nova montagem do grupo, não conseguimos ainda para pra sentar e começar uma dinâ-


mica do novo trabalho. Tudo está resumido entre essas quatro pessoas, então nós estamos tentando administrar isso.

FERNANDO E o grupo tá conseguindo prover sustento pra esses quatro integrantes do grupo? HERÊ Não. Essa é a grande questão!

FERNANDO Algum dos quatro ao menos? HERÊ Não. A gente tem esse edital de manutenção, desse dinheiro a gente tira uma verba todo mês pra dividir pros quatro, mas isso não dá pra nos manter. Então, todo mundo tem um trabalho extra

FERNANDO Mas vocês trabalham com essa perspectiva? HERÊ Sim. Trabalhamos profundamente com essa perspectiva. Principalmente do ano passado pra cá, tentando objetivar isso.

FERNANDO Falando um pouco em relação aos processos criativos de vocês, em geral qual é o ponto de partida pra vocês entrarem no processo? HERÊ A primeira coisa, geralmente a gente conversa muito sobre qual é o tema que a gente quer abordar, e o que esse tema fala aos dias de hoje. A partir daí varia um pouco, mas geralmente é a partir de um texto. Por exemplo, no caso do Encantrago, eram dois contos do Guimarães Rosa costurados por fragmentos do Grande Sertão Veredas, nós tivemos todo um processo de desenvolver essa dramaturgia. Então, pelo menos os primeiros seis meses dos trabalhos a gente ficou “e geralmente é assim” entre o trabalho em cima do texto e o trabalho que se produz na sala de ensaio. A gente experimenta, e o texto é modificado no processo de descoberta na sala. Geralmente é assim, tem um texto, que na realidade é um ponto pra gente experimentar, e a partir dali a gente vai desenvolvendo esse trabalho.

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FERNANDO Então a partir desse primeiro levantamento de ideias, de temas, vocês partem pra uma pesquisa de texto, mesmo que não seja dramático, necessariamente? HERÊ Exatamente. E depois temos todo um arcabouço de outros textos pra ir alimentando o trabalho que se faz na sala. Vai mais ou menos dessa teoria pra prática, mas não fica só nessa mão única, entende? Volta dali também pro texto e esse texto vai se transformando durante o processo.

FERNANDO Como é que é a participação dos atores nesse processo de criação? HERÊ No Encantrago eu tinha muita vontade de fazer um trabalho mais colaborativo, sabe? Mas como eu tava lidando com atores que eram ainda muito iniciantes, o processo foi muito rico, mas essa ideia do trabalho colaborativo não, eu tive que tomar as rédeas. Mas a gente tá sempre experimentando em relação a isso. Geral62

mente eu parto dessa adaptação do texto, vou experimentando e já pensando numa concepção cênica. Eu desenho, escrevo toda essa concepção, trago pro grupo, a gente discute bastante, volto a escrever e aí, fechada uma concepção, a gente vai pra cena. A gente tem a ideia completa da coisa, que vai se transformando no decorrer, mas parte sempre de uma ideia já pré-estabelecida.

FERNANDO E em geral, como é que funciona em termos de tempo de processo? HERÊ Então, o Encantrago foi 11 meses, Macunaíma foi dois anos. Menos de seis meses não rola, dificilmente acontece.

FERNANDO Com que frequência semanal? HERÊ O Encantrago era todos os dias, a gente se encontrava todos os dias a noite, geralmente de três a quatro horas de ensaio por dia.

FERNANDO E como vocês trabalham no geral a perspectiva de tempo de vida dos espetáculos? Vocês mantém repertório?


HERÊ Sim, nós estamos com três espetáculos. Fora o Encantrago, nós estamos com um infantil e dois adultos. Os dois adultos já passaram por transformações, mas a gente tá até hoje com mesmo elenco.

FERNANDO E o que faz um espetáculo sair do repertório? É só por questões práticas de elenco, ou não necessariamente? HERÊ Eu acho que isso também, às vezes quando um tem que sair, que tem o desgaste por ter que ensaiar de novo e, às vezes, porque quando entra em um outro processo, você vai deixando um pouco aquele de lado.

FERNANDO Vocês costumam trabalhar com algum tipo de preferência de configuração espacial? HERÊ Geralmente os meus espetáculos não são de palco italiano. Eu sempre tô modificando essa coisa do espaço, tem muito a ver com essa busca do grupo com uma interatividade maior com o público, um teatro mais vivencial, que não seja um espetáculo só visto, mas que também vivenciado. Então eu tô procurando sempre trabalhar o espaço cênico nessa perspectiva.

FERNANDO E a configuração espacial em si, ela é uma coisa que surge a priori, ou ao longo do processo você vai definindo? HERÊ Tá. Geralmente surge a priori, mas nem sempre permanece o que é, ele pode ser transformado, tá sempre em aberto.

FERNANDO Que tipo de influência o público tem com as escolhas de vocês, como isso interfere nos seus processos criativos? HERÊ Os espetáculo sempre, de alguma maneira, se iniciam convidando o público, não na palavra, mas convidando na ação. Eles, de alguma, forma estão ali, participando. Por exemplo, no início de Ensaio para um Silêncio os atores, ainda não como personagens, entregam um giz para as pessoas e convidam as pessoas para, durante o espetáculo, no momento que elas quiserem, começarem a escrever nesse espaço que tá sendo criado, que é mais ou menos o que o personagem vai vivenciar, o dilema

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do ato da escrita, da folha em branco no papel. Então, o palco termina todo riscado. No Cactos, que fala sobre o período da ditadura militar, a gente tem um momento em que o personagem que é o torturador, que não diz ainda que é o torturador, convida as pessoas pra segurarem um pano preto que está no chão. Aí as pessoas levantam e criam uma parede preta, e ele pega o outro ator, joga no meio, e começa a torturá-lo ali. Quer dizer, fica a cabeça das pessoas olhando por cima, compartilhando aquilo. É uma vivência que te distancia, mas também te choca com a ação que você está fazendo.

FERNANDO Podemos considerar isso um traço da estética do grupo, esse tipo de relação com a plateia? HERÊ Sim, é o que a gente chama de teatro ritualístico, tá sempre procurando fazer com que o público esteja vivenciando o que o ator também tá vivenciando.

FERNANDO Vocês costumam dar oficinas? 64

HERÊ Eu tô sempre dando. No Palco Giratório eu viajei com a oficina sobre teatro ritualístico. Sobre direção, interpretação também. Eu venho dando oficina desde 98, e as meninas tão começando agora, dentro do grupo. Eu tô começando a inserir essa história de eles participarem durante todo o processo de viagem, fazendo as oficinas comigo, pra começar a passar pra eles essa autonomia também.

FERNANDO Vocês tem preocupação com registro das atividades, seja vídeo, foto, ou escrito? HERÊ Sim, a gente tá sempre fazendo. A gente tá com um blog, então ali a gente tá sempre registrando, publicando artigos. O que a gente faz em termos de espetáculo, de oficina a gente tá sempre registrando lá. Ficando como um local de pesquisa mesmo, pra quem quiser, tem tudo ali.

FERNANDO E como é que é a relação do Expressões Humanas com os outros grupos? Vocês costumam manter algum tipo de intercâmbio, seja de pensamento, seja prático?


HERÊ Em termos de pensamento, aqui em Fortaleza não tem muito. A gente já conversou muito com Rogério Mesquita pra justamente tentar criar esse hábito dos grupos se encontrarem. Outra questão muito nova é a aquisição das sedes, isso é uma luta do Movimento Todo Teatro é Político, aí de repente nós conseguimos, a gente pensou até num seminário sobre como os grupos adquiriram as sedes, saber quais são os problemas comuns, como a gente pode resolver isso, como pode se ajudar. Aqui em Fortaleza, os grupos são muito unidos, o Movimento do Todo teatro é Político surgiu e deu uma força nisso também, mas essa prática pra discutir a pesquisa, a gente não tem. A gente tá conversando muito sobre isso de uns tempos pra cá, sabe? Eu acho legal a gente começar a pensar nisso, começar a desenvolver um trabalho assim.

FERNANDO Qual seria hoje a grande questão do Expressões Humanas, aquela que tá na crista da onda? HERÊ Eu tenho pensado muito sobre isso. Eu tenho visto a realidade daqui de Fortaleza, e acho que as pessoas que fazem o teatro aqui ainda são pessoas muito novas, se você parar pra pensar num ator mais velho, você dificilmente encontra. Até encontra, mas são pessoas que já pararam, que tão ainda naquela ideia do teatrão, aquela coisa, e tem uma geração nitidamente do outro lado, que surgiu de 1990 pra cá, que tá fazendo o teatro acontecer, pensando na questão da própria pesquisa, coisa que antes não acontecia. Aí qual é a grande questão? A grande questão é tentar manter o próprio grupo! Por exemplo, agora a gente adquiriu uma sede: como é ficar sem sede? Não se pensa mais nisso. Como é que vai continuar com ela? Como é que nós vamos nos dividir entre o trabalho artístico e o trabalho burocrático, que ninguém gosta? Quem vai parar pra fazer projeto, estar pensando nisso o tempo inteiro? Eu acho que agora é pensar principalmente nisso, ter esse pensamento de continuar com o espaço e conseguir manter uma maneira de trabalhar que a gente acredita, que não é essa maneira “comercialzona”, no sentindo de estar produzindo, produzindo. É conseguir fazer um trabalho de pesquisa continuada, que eu acho que é o mais difícil pra quem tem um grupo, porque precisa realmente de um apoio, o poder público

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não tem essa consciência. Então, é lutar realmente em relação a essa sobrevivência enquanto grupo que acredita no trabalho de pesquisa.

FERNANDO Uma última pergunta dentro disso que você falou, de um aspecto que eu acho importante e tenho visto isso acontecer em vários grupos. O que muda a partir do momento em que vocês têm essa sede? Essa tua fala é muito simbólica, a gente nos Clowns já viveu isso na pele, que é que, a partir do momento que você tem uma sede, não dá mais pra pensar em não ter, né? Na experiência do Expressões, o que significa essa virada? HERÊ Eu acho que é a possibilidade de ter mais contato com outros grupos, a partir do momento em que o espaço se abre pra cidade. A gente tá acolhendo, tá recebendo, todo mundo que vem aqui curte o espaço, tá conseguindo abrir possibilidades que não seja só essa de ensaiar e guardar material dentro do espaço, e sim abrir possibilidade pra discussão do próprio teatro. Fechar isso aqui hoje, não é fechar mais a 66

sede só do Expressões Humanas, é fechar um espaço que a cidade está usando, que os grupos tão usando. Então isso gera uma responsabilidade maior.




Teatro Máquina Fortaleza (CE) Entrevista realizada no Theatro José de Alencar, Fortaleza, em 05 de maio de 2009. 69

FERNANDO YAMAMOTO Falem sobre o processo de criação do grupo. JOEL MONTEIRO A Fran se formou em psicologia na UFC, e a monografia dela foi sobre o teatro, sobre as tragédias gregas, e daí ela desenvolveu o interesse pela pesquisa teatral e resolveu fazer o mestrado na ECA/USP, e voltou querendo colocar em prática os conceitos que ela tinha explorado na dissertação dela, Prazer e crítica: o conceito de diversão no teatro de Bertolt Brecht. Ela voltou e começou a ensinar numa escola pública, quando foi chamada pra organizar um festival de teatro na escola. Foi quando ela viu o grupo dos meninos: Edivaldo, Cíntia, Thamyrys... EDIVALDO BATISTA A escola que eu fazia o terceiro ano participou do festival. JOEL A Fran viu o trabalho dos meninos, gostou muito e chamou os quatro, Edivaldo, Thamyrys, Cíntia e Simone. A Fran queria montar A exceção e a regra, mas eles


decidiram pelo Quanto custa o ferro?, que foi o primeiro espetáculo do grupo, que estreou em julho de 2003.

FERNANDO Com a assinatura Ba-guá? JOEL Com a assinatura Ba-guá. MARCIO MEDEIROS E que tinha uma estética bem brechtiana mesmo. JOEL É. Era brechtiano 100%, aplicando o que ela entendeu, tanto esteticamente quanto ideologicamente. Ela voltou engajada. Depois disso, ela resolveu fazer um esquete que chamava Beijos e encontros consonantais para o festival de esquetes. Eu cito a criação desse esquete porque, com o passar do tempo, a gente foi identificando que esses esquetes é que foram formando a linha que o grupo vem seguindo ultimamente. Surgiu um em 2004, outro em 2005 e outro em 2006, e todos tinham um formato parecido, porque não tinham texto falado, tinham um roteiro de ações e um apelo imagético muito forte. Depois montou-se Jim Knopf e Lucas, o maquinista, um texto do 70

Michael Ende, um infantil, trabalho de encomenda que teve um curtíssimo tempo e até hoje a gente luta pra remontar. Depois veio outro esquete, o Jânio soul. LEVY MOTA Também nessa mesma linha, sem fala, muita imagem. JOEL E aí começou o estudo, a intenção de montar o Leonce+Lena, um texto de um autor do romantismo alemão, o George Büchner, de 1836, que a Fran resolveu dar uma estética mais moderna. Ela via que no texto já tinha uma relação de jogo no que diz respeito à relação, às coisas já estarem meio que marcadas, e resolveu transpor isso pra estética em uma visão mais literal: ela usou o jogo como esporte. O espetáculo é feito de patins, a gente usa acessórios de esporte, o cenário era uma a marcação que remetia a uma quadra de esportes e aí a gente já começou a se desvencilhar um pouco da estética brechtiana pura. A gente identificou que o Leonce+Lena tinha muitos elementos brechtianos, mas não eram usados com a intenção brechtiana, eles eram usados mais enquanto aspecto formal, eles davam forma e a gente não usava o conteúdo brechtiano.


FERNANDO Em relação à formação, nesse meio tempo, como é que se deu? Dos meninos do festival escolar, a coisa já tinha chegado no CEFET? JOEL Já, sim. A Fran foi a primeira professora concursada do CEFET em 2004, ou seja, o grupo tinha só um ano e a gente já tava começando a pensar o Leonce+Lena. MARCIO E como a Fran tava no CEFET, a gente se concentrava muito lá, o local de ensaio era lá e, por isso, muita gente pensa que o grupo foi formado lá. JOEL Hoje só o Marcio que não estuda lá, mas todos nós já passamos por lá, a Fran ensina lá, mas o grupo começou antes. No final de 2004 entramos eu e Aline, a gente decidiu montar o Leonce+Lena e o espetáculo estreou mais de um ano depois, em dezembro de 2005. MARCIO Foi quando o Levy também entrou. JOEL É. No meio do ano, em setembro, o Levy viu um ensaio aberto em Guaramiranga e, não sei porque, gostou! (risos) Depois apareceu o Good-bye, que é o último esquete do grupo e está se transformando num espetáculo. Era um esquete de oito minutos em que cinco pessoas desenvolviam as mesmas ações em quatro ângulos diferentes. E aí a gente começou a se interessar muito por isso, por essa linguagem mais imagética, mas impactante, num apelo formal. Em setembro de 2006 a gente estava em cartaz com o Leonce+Lena no Centro Cultural do Banco do Nordeste, o espetáculo já estava com um ano e a gente já estava querendo montar uma coisa nova. Aí foi que a Fran, falou de um roteiro de ações que ela tinha pra teatro de bonecos, em cima de A exceção e a regra, do Brecht. Ela queria montar esse texto desde a montagem do Quanto custa o ferro?. Aí a ela pegou esse roteiro de ações que, a priori, tinha sido elaborado para bonecos, e decidiu fazer com gente. O Cantil foi um processo muito colaborativo, muito de todo mundo. É claro que tem a direção da Fran, tem o nome dela, tem a proposta dela à frente de tudo isso, mas a gente construiu tudo muito junto e isso foi muito importante pra identidade do grupo. O Cantil foi um espetáculo muito importante pra nossa auto-afirmação enquanto grupo. Por conta

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desse processo criativo colaborativo, a gente hoje sabe o que é que a gente quer dentro do grupo, sabe o que a gente não quer dentro do grupo, cada um sabe das suas individualidades, das suas particularidades e sabe também do coletivo, do que se quer e do que não se quer. LEVY Eu acho só que antes do processo de O Cantil teve a história da tua monografia que eu acho que foi importante. JOEL É verdade. No final de 2007 eu estava terminando o CEFET e resolvi fazer minha monografia. A Fran foi minha orientadora, e a pesquisa foi sobre a formação do ator dentro das peças didáticas do Brecht, pra tentar investigar como é que essas peças ajudam como mecanismo de formação. Aí eu resolvi fazer uma fase prática com os meninos, e a gente montou uma leitura-encenação de A decisão. O texto em si já é sobre a dinâmica de grupo e eu acho que isso fortaleceu essa questão da consciência, porque o texto era muito pesado e a proposta era de investigar o que a gente trazia de conhecimento, de formação. Coincidentemente as pessoas que não 72

participaram desse processo, dessa fase prática da minha pesquisa acabaram, com o tempo, se afastando do grupo e hoje ficou só o disco rígido, como diz a Fran. EDIVALDO Só os que gostam mesmo! JOEL Aqueles três esquetes que a gente tinha, a gente resolveu montar em um espetáculo porque a gente achava que eles tinham uma coisa muito parecida que era a questão da repetição. Fizemos um ano só com ele, com algumas apresentações esporádicas, e o nome era Répéter.

FERNANDO Como é que é a rotina de trabalho de vocês hoje? JOEL Agora que a gente tá montando, então tem se encontrado duas vezes por semana, terças e quintas. Como a Fran tá em Salvador no douturado na metade da semana, a gente se encontra com ela às vezes sexta ou segunda pra conversar, e às vezes acontece de ela estar aqui uma semana toda e a gente intensifica mais.


FERNANDO E como é que o grupo se divide em relação a funções artísticas e administrativas? Todo mundo faz tudo? Como é que funciona? JOEL A gente tem essa orientação da Fran na concepção, ela está a frente, e aí em relação à direção, à criação artística, a gente tem o Marcio que tá mais próximo disso por conta dessa investigação do grupo com outras linguagens. O Marcio também é bailarino e ele tem norteado mais isso. Isso tem sido muito importante, principalmente quando a Fran não está. Quanto às funções administrativas, hoje elas estão bem mais dividas, principalmente entre mim e Levy. A gente pensa produção em dois momentos: primeiro a produção do espetáculo, e aí a Fran tá mais a frente, de saber como vai ser concepção, cenário, figurino, etc. e eu fico mais como assistência de produção. Depois, quando o espetáculo já está seguindo, esse lance de produção de festival, marcar ensaio, fica mais comigo. A parte de produção pra apresentação, temporada, fica comigo e Levy, a gente vai resolvendo junto. Quando há muita tarefa os meninos também entram e vão ajudando a gente.

FERNANDO Alguém do grupo ou algumas pessoas do grupo têm no grupo o principal sustento? JOEL Não.

FERNANDO Existe essa perspectiva? ALINE SILVA Sim. É o que a gente mais quer! JOEL É o que a gente mais pensa, é o que a gente mais tem buscado e é o que a trajetória do grupo tem apontado também. A gente tá mais próximo disso. Hoje a gente conquista algumas coisas que a gente não conquistava antes e a progressão foi bastante acelerada nos dois últimos anos. Acho que isso tem apontado essa perspectiva mais evidente, mais próxima.

FERNANDO Isso é uma coisa que é discutida no grupo? LEVY A gente tenta atualmente que seja financiado nosso projeto de manutenção de grupo. A gente já tentou de diversas formas, em editais estaduais e municipais, e

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acabou ganhando o da prefeitura, mas é um valor muito pequeno, que deu pra gente adquirir algumas coisas que a gente estava precisando. Com a segunda parcela desse prêmio, estamos pensando alugar uma sede, mesmo que seja um lugar pequeno, um escritório, algo mais administrativo. MARCIO A maioria dos grupos daqui tem sobrevivido nessa linha dos editais, e a gente faz parte disso também, mas com a sede é que a gente vai ter ideia do que é tentar se manter mesmo. Eu acho que a sede é que vai dar isso.

FERNANDO Que editais, estaduais e municipais? Seriam a principal fonte de renda do grupo? JOEL São. Pra montagem de espetáculos sempre foi, com exceção de Quanto custa o ferro?, que foi uma produção muito barata. A partir de Leonce+Lena já foi por edital.

FERNANDO Que tipo de perspectiva de outros financiamentos vocês vislumbram? 74

FERNANDO Em relação aos processos de criação de espetáculo, em geral, qual é o ponto de partida? JOEL Tem variado muito por esse lance do grupo estar descobrindo essa estética. Com o Quanto custa o ferro? partiu do texto, porque a Fran queria montar um texto com a estética brechtiana. Com o Leonce+Lena também, só que aí de uma forma mais livre, mais diferente, e a partir de O Cantil a gente partiu de um roteiro adicionado ao fato de já ter passado pelos esquetes. LEVY Eu vejo mais ou menos assim: eu acho que até O Cantil o ponto de partida foi o texto mas, permeando esses espetáculos, houveram os esquetes que o ponto de partida sempre foi imagético e musical.

FERNANDO E como é em geral a vida dos espetáculos? JOEL O Quanto custa o ferro? e o Leonce+Lena a gente desativou porque tem um problema de elenco. Com o tempo o grupo foi recebendo novas pessoas e outras foram


saindo, e como a gente sempre tava pra montar alguma coisa nova, pra conseguir ir mantendo o grupo, a gente não ensaiava o repertório com o elenco novo. O Quanto custa o ferro? e o Leonce+Lena tiveram uma vida de mais ou menos uns dois anos de atividade porque a gente não considera que eles estejam extintos do repertório do grupo. O Cantil estreou em julho de 2010 e a gente acha que vai durar um tempo bom.

FERNANDO E em termos de temporada? O que é que vocês conseguem manter aqui em Fortaleza? JOEL Temporada é difícil, porque público pra temporada aqui é muito difícil. Com O Cantil a gente teve três temporadas. LEVY Foi o que a gente mais batalhou.

FERNANDO De quando tempo? JOEL De um mês cada. Só que aí não eram todos os fins de semana. Teve um mês que foram quatro apresentações, outro foram seis, o seguinte foram seis novamente e depois a gente fez oito apresentações no Dragão do Mar.

FERNANDO E em relação a espaço cênico? Vocês tem algum tipo de espaço preferencial? Como é que o grupo pensa a relação do espaço? JOEL Preferencial eu não sei, assim, se a gente for tomar pelo que a gente tem feito a gente diria que é o palco italiano, porque de quatro espetáculos, um é em uma arena, em espaços mais alternativos, que é o Leonce+Lena, e o restante é italiano. Mas a gente não pode dizer que é uma preferência, porque isso não vem de uma escolha. LEVY É difícil pensar isso aqui em Fortaleza porque a gente não tem muita opção de espaço, e isso limita muito esse tipo de pensamento no grupo. ALINE Inclusive o Leonce+Lena sofreu muito com isso. FERNANDO E a relação com a dramaturgia?

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JOEL Ela também tem sido mudada com o passar do tempo, porque a gente tem se interessado mais por esse processo no qual a dramaturgia vai surgindo a partir das nossas ações.

FERNANDO Essa questão da supressão da fala passa a ser um traço da estética do grupo? JOEL Não. A gente preza por esse apelo imagético, então a imagem já é muito forte e isso acaba suprimindo a fala. Mas como a gente tá nesse processo de descoberta, a gente não sabe se é definitivo. Pode ser, mas a gente não sabe ainda. MARCIO Mas já existe uma mudança em relação a isso. Pode ser que não, eu acho difícil a gente pegar um texto e fazer.

FERNANDO A Fran é ou foi professora de quase todos vocês, e nas respostas que vocês me deram é possível perceber o grau de importância do pensamento e do direcionamento dela no trabalho do grupo. Diante 76

disso, como é que funciona a relação de direção no Máquina? Vocês trabalham numa perspectiva colaborativa? JOEL A Fran é muito aberta com a gente, com o que ela propõe. Ela chega com uma ideia e não precisa dizer que quer a nossa colaboração, a gente já vai indo. Isso começou a aparecer mais a partir do Good-bye e d’O Cantil. A gente antes necessitava mais de uma direção mesmo, acho que por causa da forma do espetáculo mesmo. Quando a gente tem um texto dramatúrgico, tem uma base pra se seguir, e a gente precisa de uma direção pra dizer o que é que se quer que a gente faça, mas quando a gente tem um processo onde a gente tá construindo tudo, a gente tá vendo, investigando como é que pode ser, a direção é mais organizadora do que direcionadora. Não que a gente se dirija, mas a gente sabe até aonde pode ir e vai junto com a direção. MARCIO Até porque as coisas que a gente cria também vão se modificando. LEVY E vice-versa: as coisas que a Fran cria também são passíveis de modificação. ALINE O processo exige muito da colaboração de cada um.


LEVY O Cantil foi bem coletivo. A Fran amarrou tudo, mas tanto no processo dramatúrgico, quanto no processo de direção, eu vejo a Fran mais como ponto de partida e como finalização. JOEL Nesse meio ela tá junto da gente, no mesmo nível. da gente. A Fran é muito generosa em relação a isso, quer mesmo que a gente faça junto.

FERNANDO Em que grau a preocupação com o público interfere nos processos de criação do grupo? JOEL Não interfere muito. A gente sabe que a gente faz para o público, mas a gente não pode ficar se preocupando com isso de “ah, se a gente fizer dessa forma o público não vai entender”, até porque a gente sabe que a partir do momento que a gente tá descobrindo uma coisa nova, a gente tá entregando uma coisa nova também. LUIZA Em O Cantil teve um momento em que a gente se preocupou bastante com isso. LEVY Como ele tem uma dramaturgia mais aristotélica, digamos assim, com uma história pra contar, a gente pensou mais nisso, se essa história estava sendo clara. ALINE E também porque a gente entrou num campo que era muito desconhecido da gente, que era essa história da manipulação, a investigação do gesto, então como a gente nunca tinha trabalhado com isso a gente tinha preocupação com a compreensão do público. A gente sempre tem um pouco de medo, mas a gente tem mais vontade de experimentar do que medo. MARCIO Houve uma estranheza do público nos três esquetes. A gente sempre escutava coisas do tipo: “será que isso é teatro?”, “o que é que vocês estão fazendo?”. LEVY Tem um outro lado também, porque a gente começa a considerar o nosso trabalho com outras possibilidades. O Répéter, por exemplo, a gente já vê ele mais como dança. Não como mais dança que teatro, mas como dança também, e isso abre um leque de trabalho, de ir pra outros festivais, outros editais.

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MARCIO E a gente já apresentou o esquete Good-bye em uma mostra de dança, ao lado de vários grupos de jazz de academia! (risos) A gente tá investindo, até por conta do doutorado da Fran, nessa coisa da dança. Já trouxemos textos, discutimos, e tem se trazido uma discussão do alargamento do entendimento do que é o teatro, porque pode ser dança e ser teatro também. JOEL Saber que a gente pode fazer o teatro transbordar em outras linguagens e fazer outras linguagens transbordar no teatro.

FERNANDO O grupo tem uma prática de ministrar oficinas? JOEL Temos. A gente tem uma oficina que tem dois formatos, um maior e um menor, e a gente leva pra festivais, oferece como contrapartida de edital. LEVY São exercícios que têm a intenção da compreensão dos elementos brechtianos sob o aspecto da forma, e não do conteúdo. JOEL A proposta inicial dos exercícios foi da Fran, mas com o passar do tempo que 78

o grupo foi constituindo sua pesquisa própria, a oficina foi se modificando.

FERNANDO O grupo tem uma prática de treinamento fora dos processos de criação ou de manutenção de um espetáculo? JOEL O treinamento que a gente tem ele é direcionado pro processo que a gente tá vivenciando naquela determinada época do processo de montagem.

FERNANDO E quanto aos registros de processo, o Máquina tem essa preocupação? JOEL Vídeo ainda não, mas escrito e fotográfico sim, a gente mantém esse hábito.

FERNANDO E vocês tem alguma perspectiva, já chegaram a cogitar, a possibilidade de sistematizar isso para publicação? JOEL Não, ainda não.


FERNANDO Mas vocês tem algumas pesquisas acadêmicas que giram em torno do processo, né? JOEL É. As pesquisas vieram a partir da Fran que, por sua vez, veio a partir da prática que ela desenvolveu com o grupo. Então, tá tudo no mesmo balaio. A gente sabe que o grupo é solo fértil para as nossas pesquisas, para a minha, a do Edivaldo, a do Márcio, enfim, pra vermos como essa pesquisa se torna prática.

FERNANDO E como é que se dá a relação do grupo com os outros grupos? JOEL Temos uma relação amigável, mas em um relação a intercâmbios, de contribuições, aí temos sentido mais vontade. Por conta d’A Lapada temos tentado um encontro com o Bagaceira, da fazermos os nossos processos com eles e eles fazerem os deles conosco, mas não conseguimos de jeito nenhum! A gente sabe que como é difícil manter os nossos encontros, como é que a gente vai encontrar um horário pra combinar com outro coletivo? Mas a gente tem conseguido estabelecer um contato mais teórico. ALINE As grandes oportunidades se dão quando acontece um festival, um encontro como o CumpliCidades, que teve aqui no Theatro José de Alencar, que é uma oportunidade de conhecermos outros grupos. MARCIO E eu acho que esse intercâmbio que ainda não aconteceu é muito por conta de ainda a gente não estar vivendo disso aqui que a gente faz. A gente não está junto o tempo inteiro porque a gente tem que fazer outras coisas, outros trabalhos.

FERNANDO E enquanto articulação política? JOEL A gente tem entendido mais a articulação política nos últimos tempos, a partir de quando a gente se definiu como grupo de teatro, porque a gente viu quais eram as nossas necessidades, viu que os outros grupos eram idênticos a nós e tinham as mesmas necessidades. A gente entende a política nesse sentido de estar a serviço, de estar aberto para o diálogo e conseguir fazer acordos, entrar em consensos pra conseguir

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alguns objetivos. Em relação a uma política de movimento, de levantar bandeira, a maioria do grupo ainda não tem muito interesse. Algumas coisas estão surgindo, a gente sabe do papel que a gente precisa exercer, mas ainda não é bem amadurecido esse conceito político dentro do nosso grupo. ALINE Eu acho que a gente tá muito preocupado agora nesse momento com uma preocupação estética e não deu tempo de entrar em uma história dessas. JOEL Mas a gente sabe que o caminho é essa organização com outros grupos.

FERNANDO Acho muito bacana a consciência desse momento que vocês tem. Claro que precisamos nos articular enquanto a nossa parcela da sociedade civil organizada, só assim podemos fazer os gestores entenderem a natureza do nosso trabalho, que vai na contramão do mercado, e por isso precisamos de financiamento público para nossas pesquisas. Mas eu, particularmente, tenho uma crença que o nosso primeiro pas80

so, nos grupos do Nordeste, é conseguir fazer um teatro de qualidade, e isso a gente ainda tem muito pouco. Senão a gente vai pedir dinheiro pra fazer pesquisa pra que, pra fazer que tipo de trabalho, que tem que impacto na sociedade? Acredito que quando a gente começar a mostrar resultados em relação a isso, a gente pode começar de fato a ser ouvido. Então acho muito bacana o nível de percepção do momento de vocês. O que significou a temporada em São Paulo e a indicação ao Shell? Que importância ocupar esse espaço teve pra vocês? JOEL Foi muito importante. A temporada em São Paulo foi um amadurecimento muito grande pro espetáculo, mas foi um amadurecimento maior ainda pro grupo. A gente estar junto um mês e meio fora da nossa cidade, morando juntos, fez a gente se conhecer muito, foi um processo de amadurecimento. O grupo é outro depois dessa experiência, as nossas discussões são outras. ALINE A atitude profissional mudou muito, é outra coisa.


JOEL Os acontecimentos profissionais mudaram muito depois da indicação ao Shell, que é um prêmio muito importante. Eu acho que até hoje nenhum grupo daqui do Ceará tinha sido indicado, e a gente também nem esperava. MARCIO A gente não tinha noção do que era essa indicação, só percebemos depois, quando o tratamento em relação ao grupo se modificou dentro da cidade, e fora também, porque a gente foi convidado pra alguns festivais por conta dessa indicação. ALINE A indicação foi uma consequência mesmo, inesperada, mas eu, pelo menos, acredito que a temporada, o tempo que a gente passou lá, o aprendizado adquirido foi mais importante. Talvez eu esteja falando ingenuamente... JOEL Eu acho que não.. A indicação é uma coisa que todo mundo esquece, mas o que vai ficar é o quanto mudou a nossa atitude em relação ao grupo, em relação ao se pensar teatro. LEVY E em relação ao espetáculo também, foi a primeira temporada intensa na vida do grupo, sextas, sábados e domingos durante um mês e meio, e é impressionante como é importante pra um espetáculo. Nós tivemos a possibilidade de mudar o espetáculo lá, de experimentar novas pequenas coisas, de ter um público pra ver essas coisas.

FERNANDO Pra terminar, só um recorte da história de vocês que passou batido: de Ba-guá pra Máquina, por quê? Como? JOEL O nome Bá-guá foi sugerido pela Cíntia, uma ex-integrante do grupo, não sei porque. Mas a gente não gostava desse nome, de jeito nenhum. LEVY Aí quando a gente começou a criar perna e espaço pra opinar, ter liberdade pra mexer em qualquer coisa... (risos) JOEL ...a primeira coisa foi o nome!

FERNANDO Mas vocês não sabem por que ela propôs, qual o sentido?

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JOEL Ba-guá é um negócio de decoração, um mapa de harmonizar ambientes, uma coisa assim. E aí foi isso, assim que a gente teve oportunidade, a gente falou sobre isso, que o nome era horrível! (risos) Então a gente pensou em vários nomes, e a temática que a gente queria era em relação a esse, à máquina, porque a gente tenta trabalhar com o teatro quando ele se revela teatro, quando ele se revela maquinaria, quando ele é elemento anti-ilusionista, e diz que é teatro. Aí vieram vários nomes: Fábrica, Engenho, tudo... Aí a Fran chegou e disse que tinha uma ideia: Teatro Máquina. A gente ficou meio assim, achou, de certa forma, até prepotente, chegar assim, Teatro Máquina, não tem nem o “Grupo de Teatro” e mas aí a gente foi gostando, gostando, gostando, ficou, e hoje é um nome ótimo! (risos)

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Grupo Ninho Crato (CE) Entrevista realizada no Espaço Casa Ninho, Crato, em 17 de julho de 2012. 85

FERNANDO YAMAMOTO Rita e Edceu, façam um histórico do Ninho, desde a fundação. RITA CIDADE Era final de 2007 quando Jânio Tavares, que dirige os dois primeiros dos cinco espetáculos do grupo, estava voltando de Fortaleza após uma formação em Artes Cênicas pelo então CEFET/CE, com a ideia de montar alguma coisa aqui, mas sem uma proposta de longevidade, porque ele não pretendia passar muito tempo no Cariri. Ele já conhecia Joaquina, porque já tinha sido aluno dela, era amigo de Edceu, me conhecia também. Nós três vínhamos de outro grupo, que não durou muito tempo. Então nos juntamos e começamos a procurar um texto.

FERNANDO Qual era esse outro grupo? RITA O grupo se chamava Entremeios. Então começamos a buscar textos que nos satisfizessem, quando chegamos em Avental todo sujo de ovo, de Marcos Barbosa. Fi-


zemos uma leitura e gostamos muito do texto, mas estava faltando uma pessoa para o elenco. Como Jânio tinha vontade de trabalhar com Zizi Telécio, e Joaquina já a conhecia bem, fizeram o convite e ela aceitou. Começamos a montar o espetáculo no início de 2008 e inscrevemos o projeto de montagem na lei de incentivo estadual. Quando nós fomos inscrever esse projeto, nós já tínhamos um esquete, que Joaquina dirigiu comigo e Edceu no elenco, ela também estava começando um trabalho com o Jânio, e Jânio tinha um projeto de um esquete que Edceu poderia fazer. Daí veio a ideia de juntar esses três esquetes em um espetáculo, e isso tudo acontece ao mesmo tempo que o processo do Avental todo sujo de ovo. Então nós resolvemos inscrever esse espetáculo, chamado Bárbaro, que acabou sendo o primeiro espetáculo do grupo a estrear, no Festival de Teatro de Acopiara, no interior do Ceará. Até então não tínhamos pretensão nenhuma de ser grupo, éramos somente um grupo de pessoas unido pra fazer esses dois trabalhos, mas a gente achava que, se a gente não criasse pelo menos um grupo fantasia, nós não teríamos chance nesses editais. Começamos a propor nomes pra esse grupo fantasia, e o nome que veio foi Ninho, porque partiu 86

do Avental todo sujo de ovo e por ser a ideia de um lugar que agregasse pessoas que estavam vindo de lugares diferentes. Enviamos o projeto de montagem do Avental para a SECULT e a inscrição do Bárbaro no Festival de Acopiara, e os dois foram selecionados. Nós não conseguimos captar recursos pro Avental, por questões de gestão empresarial da região, e o Bárbaro foi muito bem recebido no festival superando todas as nossas expectativas. Aí a gente viu que a coisa estava ficando maior do que a gente pensava, o que começou de forma despretensiosa estava virando um grupo. Depois disso nós demos continuidade ao processo de Avental todo sujo de ovo, estreamos com recursos próprios e assumimos o nome do grupo ainda sem muitas pretensões. As coisas foram acontecendo, Bárbaro e Avental foram recebendo convites, nós não paramos mais, Jânio não foi mais embora, a gente foi se entendendo cada vez mais, se descobrindo com intimidade de estética e ideologia artística, e fomos percebendo que não dava mais pra não ser grupo quando estreamos Avental todo sujo de ovo.


EDCEU BARBOZA Quando estreou o Avental todo sujo de ovo já existia esse espírito de grupo mesmo. Nós estreamos no Teatro Patativa do Assaré, em fevereiro de 2009, já tínhamos passado por Acopiara com o Bárbaro em julho e por Guaramiranga em setembro, então, esses seis meses serviram pra irmos nos firmando.

FERNANDO Houve algum marco pontual? RITA Acho que não. EDCEU Foi acontecendo. Tanto é que nós consideramos quatro anos de existência do grupo, mas se formos contar já são cinco. Nós seguimos com o Avental todo sujo de ovo, até que a URCA (Universidade Regional do Cariri) lançou os cursos de teatro e artes visuais. Com isso vieram alguns professores pra cá, e um deles era o Duílio Cunha, de João Pessoa. Ele tinha um projeto de montagem de espetáculo de rua com um texto chamado Charivari, da Lourdes Ramalho, convidou o grupo pra fazer e nós topamos, porque seria um outro momento pro grupo, alguns atores já tinham a prática do teatro de rua e outros não. RITA O Charivari foi um processo bem mais curto, de quatro meses. EDCEU Então veio o Charivari, e já contávamos com três espetáculos no repertório. Circulávamos, nos encontrávamos sempre e foi aparecendo aquela vontade de se organizar institucionalmente. No final do primeiro semestre de 2010 nos instituímos como um grupo, tiramos CNPJ e as coisas foram mudando. A gente já tinha esse desejo, nos encontrávamos semanalmente para reuniões administrativas e para ensaios, e a partir disso começamos a ter outra necessidade, que era a de ter um espaço nosso para ensaiar, nos reunirmos, administrar. Foi quando veio o edital da SECULT, que incluia a categoria “manutenção de grupo”. Nós inscrevemos, fomos selecionados e viemos para a casa aqui no Crato. Muita gente perguntou porque o Crato, se a gente começou trabalhando no Juazeiro. É porque na época o curso de artes estava instalado em Barbalha, o Centro Cultural do BNB está instalado no centro do Juazeiro, que também tem uma unidade do SESC, mas o Crato, que foi o percussor de todo esse

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movimento de difusão cultural e artística da região, tinha dado uma esfriada. Então nós resolvemos nos estabelecer aqui, pra tentar trazer pra cá algumas coisas.

FERNANDO Então foi uma opção estratégica de movimentação da região? EDCEU Exato. Existe, inclusive, esse argumento dentro do nosso projeto. O Cariri hoje é uma região metropolitana, e dentro dessa região existe um centro conhecido por CRAJUBAR que compreende as cidades de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha. A gente visualizou isso e vimos que isso ajudaria mais na articulação do Crato, que tinha dado uma esfriada. RITA Depois teve o Sessão Dupla, que era um projeto que circulava com Charivari e Avental todo sujo de ovo pelo Cariri cearense, pernambucano e paraibano, e para inscrevê-lo na edição de 2010 no Programa BNB de Cultura era preciso CNPJ. Nesse período também chegaram ao grupo dois novos integrantes, Alana e Elizieldon, pra 88

montar o Charivari, e ficamos os sete até hoje.

FERNANDO A Casa Ninho é alugada? RITA Sim.

FERNANDO E como é a rotina de trabalho de vocês? EDCEU Só não trabalhamos no domingo. Até agora. (risos) RITA É uma rotina diária de reunião administrativa, de manutenção da casa, organização de material, faxina, resolver problema burocrático, financeiro, etc. Nós ensaiamos quase todas as noites aqui na casa, e também abrimos a casa para outros grupos. Pelo menos três ou quatro outros grupos vêm utilizando com frequência a casa como ponto de encontro para ensaio, reuniões, já aconteceram alguns eventos que não são promovidos por nós, mas que a gente agrega, acaba participando e coordenando junto de certa forma.


EDCEU No ano passado nós fomos selecionados no Programa BNB de Cultura com um projeto de manutenção e formação. Estruturamos um curso modular de formação em teatro e a primeira turma formou-se agora. Esse edital deu continuidade ao projeto que nós começamos quando ganhamos a manutenção da SECULT, permitiu que a gente estruturasse melhor a casa, porque era um valor maior, e que oferecesse esse curso, que antes existia como programa fixo do SESC Crato, mas hoje não tem mais. É isso. A gente se encontra nas segundas-feiras só pra burocracia mesmo, nós vamos lançando demandas e cada um tá se dedicando a uma área específica. Rita e Zizi resolvem a parte financeira, eu vou organizando os projetos, Alana cuida da mídia. RITA Acumulam algumas coisas, inclusive. Nós aprovamos um projeto no edital da SECULT em que o nosso objetivo é receber espetáculos na casa. Todos os nossos espetáculos já se apresentaram aqui. Tem um espetáculo que nós não citamos ainda que é O menino fotógrafo, que foi feito em parceria com a Companhia Engenharia Cênica. Ele foi o primeiro a estrear aqui na casa, foi feito em formato de corredor por conta da estrutura do espaço, já que foi todo criado aqui. Joaquina fez um trabalho que ela tem fora do grupo aqui na casa, o espetáculo de formação do curso, que é inspirado em Toda nudez será castigada, que estreou e fez temporada aqui. Ou seja, ainda está muito na gente, nos nossos parceiros, e a gente quer que esse novo projeto contemple a possibilidade de trazer espetáculos para a casa para dar essa dinâmica.

FERNANDO O grupo provê sustento pra algum, alguns ou todos os integrantes? RITA Para todos. A gente ainda precisa se articular em outras formas de remuneração, porque ainda não é suficiente.

FERNANDO Mas ninguém vive só do grupo? RITA Não, ninguém. A maioria de nós vive só de teatro, mas somente do grupo ainda não. Mas boa parte da renda vem do grupo, porque esses projetos contemplam bolsas mensais fixas pra gente, além dos cachês dos espetáculos.

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FERNANDO Mas vocês trabalham com essa perspectiva de todos viverem do grupo em algum momento? EDCEU Sim, e se a gente for olhar pra trás, recentemente, nós fomos nos desprendendo de alguns lugares. Eu já fui técnico do SESC e saí, Joaquina dava aula numa escola há doze anos e também saiu, Rita ensinava teatro em algumas escolas e também saiu. Hoje acho que 70% a 80% do nosso trabalho está ligado ao grupo. Jânio, que é professor concursado do IFPI e vai pra lá por dois dias na semana, é o único que tem um trabalho fixo fora. Os outros tem outros pequenos trabalhos, mas nada fixo. RITA A demanda na Casa vai crescendo, e a gente vai deixando outros trabalhos. EDCEU Acho que faltou falar também que vamos estrear o Jogos na hora da sesta, e aí ficamos com cinco espetáculos no repertório. É a volta de Jânio dirigindo um espetáculo do grupo.

FERNANDO Como é o ponto de partida dos processos de vocês? Pelo 90

que vocês falam me parece que vai muito pela questão da dramaturgia, né? Em geral vocês partem da escolha de texto? EDCEU Também. Em O menino fotógrafo nós tivemos um processo colaborativo. Todo mundo construía a partir de um mote inicial, mas não existia a dramaturgia propriamente dita. Existia uma ideia da direção, mas era tudo muito aberto e aí foram surgindo as conexões possíveis. Esse foi um processo bem particular. Com o Avental todo sujo de ovo foi pela dramaturgia. RITA Mas é o texto pelo tema que ele suscita, pelas discussões que ele suscita. E, geralmente, essa discussão tem relação com um comprometimento social. Não é, por exemplo, a vontade de se estudar determinado dramaturgo ou uma época. É sempre pelo contexto social, as reflexões que ele levanta.

FERNANDO O texto, então, vem num segundo momento? O tema indica o texto ou o texto indica o tema? RITA O texto indica o tema.


FERNANDO E como se dá a escolha do texto? É possível vocês pensarem no que faz vocês escolherem esse ou aquele texto? EDCEU Se for pegar o repertório do grupo você vai ver que tem esse comprometimento com a temática. No Bárbaro a gente fala da violência e suas tipologias e sempre tem um pé aqui no Cariri. O Avental vem a questão da sexualidade, da relação familiar dentro disso. No Charivari tem uma questão com a instituição religiosa, mas também fala de liberdade sexual. Existe um diferencial em O menino fotógrafo, porque essas coisas estão mais diluídas, mas ainda assim existe. E com o Jogos na hora da sesta isso se desenvolve. RITA O Jogos na hora da sesta é um projeto antigo, que já existia desde antes de montarmos O menino fotógrafo. Nós estávamos procurando alguma coisa quando apareceu Jogos na hora da sesta, mas naquele momento ele não foi acatado. Isso é muito tranquilo pra gente, ter calma se não for pra maioria, buscar outra coisa. Então primeiro veio O menino fotógrafo, e o Jogos na hora da sesta tá vindo agora, a hora é agora.

FERNANDO Vocês falaram que o Jânio tá voltando pra direção agora. Como é que é essa relação com a direção? Como é a relação do grupo com o fato de ter um diretor, mas que não necessariamente sempre dirige? EDCEU Eu acho ótimo, eu acho aberto, o próprio Jânio é muito aberto. Como diretor ele tem uma ideia, mas nos ensaios a gente treina, cria, marca, e ele, todo final de ensaio, faz uma roda de conversa pra gente analisar o que foi feito, tem sempre essa abertura. É uma troca mesmo entre ator e diretor.

FERNANDO Como é que é essa relação de definir quando ele vai dirigir e quando é um diretor convidado? RITA É uma necessidade natural. A gente começou com ele dirigindo os dois primeiros espetáculos, mas a direção de Bárbaro é dele e de Joaquina também. Depois Duílio nos convidou, ao invés do grupo convidar o diretor, foi ele quem nos convi-

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dou. Aí veio essa relação com a Cecília, que foi também uma experiência muito rica, com um estilo de direção completamente diferente de Duílio e de Jânio. A gente gostou muito dessas experiências com diretores que não são do grupo, mas sentiu que precisava voltar pra uma coisa mais íntima, sabe? Veio a proposta de Jogos na hora da sesta novamente, mas de uma forma mais sólida e aconteceu. Nada é muito projetado a longo prazo, a necessidade vai gerando a demanda e as coisas vão acontecendo.

FERNANDO Em que grau vocês vêem que o público interfere nos processos de criação de vocês? RITA Vixe Maria! Interfere muito! A gente tem o costume de fazer ensaios abertos justamente por causa disso, pra ir sentindo a troca com o público, o retorno verbal, além do retorno escrito, que vem virtualmente hoje em dia. A gente tá sempre aberto pra rever até certo ponto, né?

FERNANDO Desde a fundação vocês tem essa prática de ensaios abertos? 92

EDCEU Sim. O Avental todo sujo de ovo, por exemplo, foi muito explorado. A Rita fazia uma travesti e eu acho que foi o retorno do público que ajudou a construir a personagem. A gente ia limpando, vendo os caminhos, porque por mais que a gente tenha feito laboratório, foi o encontro com o público e a resposta que eles deram que colaborou muito. RITA É uma resposta que bibliografia nenhuma vai suprir.

FERNANDO Vocês falaram de um projeto de oficinas que acabou virando quase que um curso livre, com pessoas que vocês trouxeram. O grupo também ministra oficinas? RITA Sim. Nós damos oficinas aqui na casa, e nos nossos projetos de circulação oferecemos uma oficina ou temos feito ou intercâmbio com um grupo da cidade. Isso tem sido uma prática.


RITA De nós sete, três cursam licenciatura em teatro, um cursa artes visuais e Jânio já é graduado. Então, sempre que a gente pode, ocupa esses espaços de aprendizado, porque a gente reconhece a importância dele. EDCEU Os intercâmbios se configuram como esse momento de troca também, como aconteceu com a Brava. RITA Um projeto que a gente tem, mas até agora não conseguimos viabilizá-lo é o de circular por algumas capitais nordestinas, chegando perto de grupos e de espaços culturais que a gente possa trocar e enriquecer. Sem deixar de dar continuidade ao que a gente já vem construindo, as duas coisas que a gente vem dando uma maior atenção nesse momento é trazer grupos pra cá e ir ao encontro de grupos fora daqui. A gente já rodou muito pelo Ceará, mas apesar de termos feito algumas capitais de estados, ainda é pouco, não é do jeito que a gente gostaria que fosse.

FERNANDO E a articulação política? Os grupos do Ceará estão num momento bastante efervescente. Vocês também têm essa preocupação? EDCEU Estamos na luta. Recentemente nós fomos a uma reunião do MAR (Movimento Arte e Resistência), a Herê esteve aqui e fez um repasse de como está a situação em Fortaleza, mas é tudo muito distante, geograficamente mesmo, por mais que você possa estar conectado virtualmente. Então a gente se inteirou de como está o movimento e já houve uma articulação em lugares públicos daqui do Crato da mesma forma que está acontecendo em Fortaleza.

FERNANDO E vocês juntaram outros grupos daqui? EDCEU Exatamente. RITA A gente tem uma responsabilidade muito grande nesse sentido, porque são muitos grupos de teatro na região, além dos artistas independentes e estudantes e, de alguma forma, a gente é uma referência para eles. Aí não tem como a gente não se articular, não dá pra ficar imparcial em relação ao que está acontecendo.

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FERNANDO Em relação a registro de processo, vocês têm essa preocupação? Como é a relação do grupo com a sua memória? RITA Ela ainda não é sistemática, né? A gente tem cadernos de bordo, registros fotográficos, videográficos, mas nada sistematizado.

FERNANDO Mas vocês tem esse preocupação com esse registro? RITA Temos. A gente sabe que é preciso sistematizar melhor porque, por exemplo, quando tu vem e traz essas questões a gente acaba refletindo. Recentemente a gente recebeu a visita de alunos de uma disciplina “Processo de montagem” da graduação em teatro, nós fizemos um bate-papo que levou a gente a dar uma olhada para o todo. Aí agora vem você e a gente vai percebendo essas coisas. A gente reconhece que é importante, mas não conseguimos ainda.

FERNANDO Como é que vocês se vêem nessa relação de tocar um grupo no interior do Nordeste? Quais são as vantagens e as perdas? 94

EDCEU Tem uma resistência aí, não tem como. As coisas estão voltadas pra outro lugar, mas a gente foi vendo que ficar esperando não contribuía em nada. O intercâmbio com a Brava foi bacana porque a gente viu que as lutas são as mesmas, independente da área geográfica onde você esteja. É lógico que eles têm, pelo estarem em um espaço privilegiado, um acesso maior, mas existe uma luta também.

FERNANDO Todos vivemos à margem e na precariedade. Isso é uma condição do teatro de grupo, né? EDCEU Exato. O tempo todo. Por muito tempo teve esse discurso que aqui que a coisa não funcionava, mas a gente viu que não, que a gente pode fazer as coisas no nosso lugar de origem sem deixar de se conectar com o mundo. Vez ou outra nós ainda sentimos o baque, um olhar preconceituoso, até.

FERNANDO Pra gente terminar, qual que é a grande questão pro Ninho hoje? Qual o assunto que está no topo da pauta do grupo?


RITA Eu acho que tem um ideal de pano de fundo do teatro como educação, e tem uma questão muito objetiva que é a nossa sobrevivência como artistas, tanto a sobrevivência poética, da alma, quanto a sobrevivência física. Eu acho que essas duas questões que nos permeiam. É sobreviver com o grupo, com a casa, com cada um dos trabalhos, dos integrantes, não perder ninguém nem do ponto de vista do ideal nem do ponto de vista financeiro. E de pano de fundo, expandir pra não ficar só na gente. Não vale a pena ficar só aqui. Daí vem essa coisa da comunicação, chamar as pessoas pra um curso como esse, trazer grupos pra dentro da casa e dialogar, ficar mais perto. A gente sabe que tem pra oferecer e sabe que tem muito pra receber.

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02 ParaĂ­ba



Dialética da Assimilação Notas sobre o Teatro da Paraíba Márcio Marciano Dramaturgo, fundador da Companhia do Latão (SP) e do Coletivo de Teatro Alfenim (PB)

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Estas notas são parciais. Refletem o ponto de vista corrigível de quem acompanha o teatro da Paraíba como espectador interessado e se inclui em suas contradições enquanto um fazedor de peças preocupado em dar ao produto de seu ofício uma destinação mais consequente, diga-se útil, como ferramenta para a transformação social, apesar de não perder de vista seu curto alcance e sua evitável condição mercadológica. Por isso, ao leitor satisfeito com a grandeza do Teatro Paraibano com maiúscula, e com certa indisposição para os temas de interesse social, sugiro que pule os parágrafos seguintes e vá direto ao último. Lá, devido ao gosto inveterado pela contradição, nego o caráter assertivo destas notas sem prejuízo de seu argumento e me ponho a serviço de eventuais e necessárias refutações. Feita a ressalva, passemos adiante. O teatro paraibano de que tenho notícia parece construir sua identidade (ou desidentidade?) por um processo ambíguo que conjuga a assimilação acrítica de referências


externas, o espelhamento narcísico de si mesmo e a negação permanente de suas origens. Trata-se da devoração contínua, e nem sempre consciente, de novidades extemporâneas que, associada aos balizamentos da tradição e à aceitação de certa posição acomodatícia do Teatro no concerto das Artes, consubstancia-se numa espécie de “estética da assimilação”. Essa deglutição desavisada de “ideologias alienígenas”1 se apresenta em geral sob duas formas aparentemente antagônicas: uma vertente se ampara na “reinvenção” das matrizes populares sem no entanto distinguir ou problematizar sua origem de classe; a outra, no extremo oposto, simplesmente ignora sua influência, e se volta para a busca de uma urbanidade abstrata na qual as relações de classe se escamoteiam sob o disfarce da contemporaneidade, sobressaindo em seus espetáculos uma espécie de lírica da incomunicabilidade humana, afetada e auto-indulgente. Entretanto, esse antagonismo é só aparente, uma vez que em ambos os casos prevalece o projeto de uma arte contemplativa, auto-suficiente, de adesão aos universa100

lismos idealistas e alheia aos embates que se travam nos intestinos da luta de classes, submetida a processo cada vez mais violento de abstratização do Capital e de sua sempre renovada capacidade de se alimentar do trabalho não pago. Esse expediente de desistoricização das matrizes e de assimilação de concepções adventícias promove nos casos comercialmente mais bem sucedidos uma aparente renovação da linguagem cênica, sem contudo tangenciar as contradições de uma produção teatral marcada pela expressão fetichista de um suposto “modo de ser” nordestino. Em outros termos, emprestados de Roberto Schwarz, trata-se da velha artimanha de embalar conteúdos socialmente reacionários em atraentes inovações técnicas e/ou tecnológicas.

1

SCHWARZ, Roberto, Cuidado com as ideologias alienígenas, “O Pai de Família e Outros

Estudos”, Paz e Terra, 1978.


É preciso salientar que a estratégia cultural de transformar em substância própria a matéria que vem de fora não é um procedimento exclusivamente paraibano ou nordestino. É lícito afirmar que essa prática é constitutiva da formação do sujeito brasileiro, e não representa em si nenhum desabono. Ao contrário, devemos a essa porosidade macunaímica os traços menos nítidos e mais autênticos de nossa feição mestiça. Entretanto, quando essa manha assimilatória serve ao apagamento dos antagonismos, numa espécie de celebração rousseauniana da diversidade, o que resulta não é a renovação estética, mas certa invisibilização dos índices da dominação de classe, tornando-se os desairados produtores da cena, agenciadores simbólicos dessa mesma dominação. Nesse sentido, boa parte da produção teatral paraibana da atualidade satisfaz-se com a incorporação não problematizada de novidades formais não com o intuito de estabelecer um diálogo crítico e produtivo com a sociedade, com perspectivas à sua utilização simbólica na tarefa de uma desejável transformação social, o que necessariamente as problematizaria, mas antes, com o objetivo de exercitar sua capacidade narcísica de assimilação e espelhamento, de modo a extrair dos novos implantes uma face ambígua que tanto serve à expectativa de novidade para o consumo do público interno habitual, quanto para reforçar ante o público de outras regiões os clichês acerca do tão propalado “teatro nordestino”, tido como sempre espontâneo, ainda que sintonizado com o que há de mais desencantado, a-histórico, relativista e cínico dos procedimentos pós-modernos. Essa dialética da assimilação possibilita o surgimento de espetáculos híbridos, resultantes da mistura sugestiva do cordel com o hip-hop, das ultra-desgastadas cenas da Paixão de Cristo com os mangás, do cangaço com o sapateado, do “charuto brechtiano” com o melodrama, do suporte digital com os passos do Cavalo Marinho, dos recursos do sampler com a fineza da rabeca, enfim, de tudo com tudo. Aí reside a força da produção teatral paraibana atual, mas também sua maior fragilidade.

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A intensidade com que essas soluções formais atravessam o fazer teatral paraibano pode ser comparada ao uso de um reanimador cardíaco, espécie de desfibrilador estético, num paciente nos umbrais da morte. A descarga chacoalha o organismo sem nenhuma garantia de trazê-lo à vida. Assim debate-se parte da produção teatral paraibana: como um morto-vivo permeável às perfumarias de além-fronteiras, mas impenetrável quanto ao caráter transformador do sangue que corre nas ruas de suas cidades e nos interstícios de suas brenhas sertanejas. Daí advém a estratégia do espelhamento solidário e narcíseo tão comum entre seus produtores: como se o paciente fosse da família, todos proclamam suas virtudes com medo de que a crítica, velha carpideira lúcida e mal-humorada, possa agravar o quadro do moribundo. Dessa forma, aquilo que de fato poderia representar uma revitalização do Teatro Paraibano, sua permeabilidade aos influxos modernizantes, serve apenas de retardador de uma morte anunciada, na medida em que impede uma discussão mais consequente sobre o papel da Arte como instrumento de transforma102

ção social, para além de seu caráter de mero produto da indústria cultural. Em suas notas sobre a ópera Grandeza e decadência da cidade de Mahagonny, Brecht chama a atenção para o caráter de “iguaria” das obras de arte, e para o fato de que seus produtores, “na convicção de estarem de posse de uma engrenagem que, na realidade os possui, defendem algo que já não é um meio a seu serviço, mas se tornou um meio contra eles.” Ainda segundo o Autor, de tal modo a produção artística “desce ao nível de produto fabricado”, que seus produtores se veem determinados a defender constantemente inovações que levem à reforma das obras de arte. Porém, não se vê “ninguém exigir, nem tampouco preconizar, que sua função seja posta em debate”2. No Teatro paraibano esse mecanismo de auto-ilusão não apenas permanece, como se agrava por conta da precariedade financeira da produção local, uma vez que se

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BRECHT Bertolt, Estudos sobre Teatro, Nova Fronteira, 1978.


trata de um dos estados mais pobres da Federação, e portanto mais vulneráveis ao caráter mercantil da obra de arte, submetida tanto às leis da mercadoria como à prática não recomendável dos escambos de influência. Dessa forma, comemora-se o fato de um espetáculo entrar em cartaz não por seus atributos estéticos ou por sua capacidade de interlocução com a sociedade, mas tãosomente por alimentar a cadeia produtiva do entretenimento e prestar-se ao servilismo da circulação. Os discursos da adversidade e da imperiosidade das leis do mercado servem de pretexto para que os círculos formadores de opinião coloquem no mesmo balaio das boas intenções toda sorte de eventos cênicos independentemente de sua eficácia artística, uma vez que parecem justificados a priori pelo simples fato de existirem. Essa espécie de conluio para o bem das artes que se estabelece de maneira tácita entre os produtores e os “especialistas” aparentemente fortalece a produção das artes cênicas, gerando um círculo solidário de fruição acrítica que mantém em constante reatualização os velhos ditames de uma “Arte pela Arte”. Entretanto, essa prática divorcia o fazer teatral da dinâmica social transformadora das cidades e do campo, o que gera a sempre renovada indiferença por parte do grande público quanto ao desejo de comunicação do Teatro, restringindo-se as produções no mais das vezes ao seleto grupo composto de amigos e parentes, que, após cada sessão, enaltece as qualidades estetizantes e metafísicas do evento cênico e lamenta o desinteresse do público não habituado a freqüentar as salas e espaços de teatro. Em vista desse descompasso, podemos encerrar essas notas concluindo que o Teatro Paraibano com maiúscula, ao contrário do que afirmamos, “passa bem, obrigado” e está cada vez mais integrado ao sistema de circulação dos produtos culturais, tanto em escala regional como nacional, exercendo a honrosa função de emblema do “caráter nordestino e paraibano”, para gozo e contemplação do bom-gostismo comum a certa crítica especializada e aos consumidores do “teatro culinário”, sempre ávidos de exotismos, espontaneísmos e expressões singelas da “cor local”.

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Alfenim Coletivo de Teatro João Pessoa (PB) Entrevista realizada por e-mail, em 25 de maio de 2012. 105

FERNANDO YAMAMOTO Como se deu a criação do grupo? Me conta como foi o surgimento, e fala um pouco da história do Alfenim, passando pelos principais espetáculos e acontecimentos. MÁRCIO MARCIANO Depois de 10 anos de Companhia do Latão, mudei-me com Paula Coelho, minha companheira, para João Pessoa. Ela foi dar aulas de Teatro da UFPB, e eu me pus o desafio de criar um novo grupo para dar continuidade à pesquisa em dramaturgia desenvolvida no Latão. O pessoal do Piollin me indicou atores e atrizes que estavam disponíveis e que, segundo eles, tinham perfil de grupo. Reuni cerca de 20 pessoas, entre jovens recém-saídos da Universidade e atores já bastante experientes, como Zezita Matos, Soia Lira, Adriano Cabral, Verônica Sousa e Daniel Araújo, para uma oficina que tinha como objetivo apresentar meus procedimentos de trabalho e conhecer um pouco de cada um. Ao longo da oficina houve um processo natural de aproximação e recusa do teatro épico-dialético e do processo colaborativo


de construção da dramaturgia. Com aqueles que se identificaram criei o primeiro espetáculo do Coletivo, Quebra-Quilos. A peça aborda um fato histórico da Paraíba, uma revolta popular que incendiou o sertão nos finais do século XIX. Chegando a João Pessoa, considerei que não poderia criar um espetáculo a partir dos temas que me mobilizavam em São Paulo. Era preciso conhecer melhor o lugar que havia escolhido para morar e criar Cecília, minha filha, à época um bebê de 1 ano e pouco de idade. Fui estudar a história da Paraíba e descobri com encantamento esse fato pouco referido pela historiografia oficial. Para quem tem interesse em criar uma dramaturgia a partir de assuntos brasileiros, era um excelente ponto de partida. Assim, o Coletivo de Teatro Alfenim nasceu já com sua vocação para discutir criticamente assuntos que nos dizem respeito enquanto brasileiros. O segundo espetáculo, Milagre brasileiro já contou com a participação efetiva de Paula Coelho. A peça tem como foco o “desaparecido político”. Faz referência à Antígone e ao “teatro desagradável” de Nelson Rodrigues, pondo em cena o “instantâneos” de uma família que adere ao golpe. Após a aprendizagem em mão dupla proporcionada por Quebra-Quilos, de 106

minha parte de dos demais integrantes do Alfenim, pudemos verticalizar o processo colaborativo na realização de um espetáculo-experimento, cuja dramaturgia tensiona ao limite os modelos narrativos clássicos. Em repertório, Milagre brasileiro tem causado por onde passa reações apaixonadas de entendimento e incompreensão. Em temporada recente em João Pessoa, foi reformulado e ganha nova significação no momento em que se instala a “Comissão da Verdade”. Após essa experiência, sentimos necessidade de ampliar e diversificar nosso público. Os espetáculos anteriores foram concebidos para espaços pequenos, cuja cena exige a proximidade física do espectador, sendo que, no caso de Milagre brasileiro, num ato de aproximação extrema, o público é convidado a maquiar os atores. Em vista disso, decidimos ir para a rua, buscar o público não habitual das salas de espetáculos. Daí surgiu a ideia de outro experimento, o Histórias de sem réis, ainda em processo, embora já tenha sido levado a algumas cidades do interior da Paraíba e se apresentado no centro histórico de João Pessoa. O ponto de partida para a intervenção urbana é a compra de histórias. O público é convidado a dar depoimentos pessoais, que são registrados em vídeo. A estra-


nheza se estabelece quando essas histórias são comerciadas por valores irrisórios, que nunca ultrapassam R$ 5,00. Desmascara-se assim o aspecto mercadológico de um suposto interesse pela vida privada, de forma a “historicizar” seu caráter econômico. A radicalidade do experimento levou o grupo a uma refundação. Alguns integrantes não puderam suportar o “desencanto” de ter que encarar o trabalho teatral pelo viés do comprometimento político. Estar na rua requer clareza absoluta da potencialidade do teatro como ferramenta de transformação social. Para nós, ir para a rua não é um gesto de congraçamento, mas um ato de resistência. Em 2011, estreamos nosso mais recente espetáculo O Deus da fortuna, uma fábula chinesa sobre o atual estágio de financeirização do Capital, criada a partir de um fragmento recolhido dos diários de trabalho de Bertolt Brecht. O retorno ao palco incorpora a experiência da rua. Tratase de uma comédia em moldes clássicos que procura colocar em perspectiva crítica o processo de volatilização do capital e seu corolário de desordem e destruição.

FERNANDO Como é a rotina do grupo hoje? MÁRCIO Ainda estamos – e continuaremos permanentemente – em processo de formação, e isso implica inventar quase que diariamente uma rotina de trabalho. Após cinco anos de existência, conseguimos estabelecer nossa sede, a Casa Amarela. Nos reunimos para ensaios três vezes por semana, durante as manhãs. Parece pouco, mas considero uma das maiores conquistas do grupo o fato de poder fixar três ensaios semanais. Sabemos que o minimamente aceitável é manter ensaios diários, mas ainda vivemos o dilema de ter que dividir nosso tempo com atividades profissionais outras que garantam a sobrevivência indivudual dos integrantes. Podemos, no entanto, afirmar que o Coletivo já aparece como prioridade na rotina de trabalho da maioria. Isso se deve ao fato de podermos planejar minimamente as ações do grupo, e manter um pro labore mensal, fruto da verbas dos editais que vencemos no ano passado. Nossa perspectiva é de crescimento e profissionalização da gestão, uma vez que, do ponto de vista da qualidade e consistência estéticas, somos profissionais desde o primeiro trabalho. Nesses cinco anos de existência, produzimos cinco espetáculos, todos com dramaturgia própria, circulando por alguns dos principais festivais do país e fazendo

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temporadas em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, com reconhecimento de público e da crítica especializada.

FERNANDO Como vocês dividem o trabalho artístico do administrativo? As funções administrativas são divididas entre todos? Existe uma perspectiva/desejo do grupo sustentar seus integrantes? MÁRCIO Começando pela última questão: existe, sim, a perspectiva e o desejo de crescimento. Para tanto, num esforço conjunto de mais alguns grupos aqui de João Pessoa, contratamos a consultoria de Rômulo Avelar. Tem sido um trabalho árduo, mas já podemos vislumbrar uma nova fase na profissionalização da gestão do grupo. Passamos atualmente por um processo de descentralização das funções administrativas. Alguns integrantes têm assumido paulatinamente tarefas e funções, de modo que podemos afirmar que, brevemente, o Coletivo terá uma estrutura organizacional profissionalizada. Do ponto de vista artístico, embora eu coordene e desencadeie os processos criativos, o fato de trabalharmos de forma colaborativa necessariamente 108

constitui uma divisão igualitária de responsabilidades e de autoria.

FERNANDO Quais são as principais fontes de financiamento do grupo? MÁRCIO Trabalhamos com recursos provindos de editais públicos em nível municipal, regional e nacional.

FERNANDO Qual o ponto de partida para os processos criativos? Qual é a “chama” inicial para que o próximo espetáculo seja criado? MÁRCIO Trabalhamos sempre a partir de uma perspectiva crítica do momento histórico no qual estamos inseridos como cidadãos e trabalhadores do teatro. É a partir desse olhar que procuramos definir os assuntos que nos mobilizam enquanto artistas. Há sempre o desejo e a curiosidade de conhecer melhor as relações que definem nossa sociabilidade, de forma a nos posicionar desde uma perspectiva de classe. É a escolha do assunto que preside a pesquisa estética. Essa surge dos tensio-


namentos que o estudo provoca na sala de ensaios. A matéria histórica exige soluções formais que nos obrigam a conhecer e deglutir novas linguagens. No Coletivo, nunca é a pesquisa de linguagem que preside o trabalho, mas os temas que incitam novas formulações estéticas.

FERNANDO Qual a duração média dos processos de construção dos espetáculos? E qual a duração média das temporadas de estréia? MÁRCIO O processo varia, de acordo com a complexidade do assunto. Também levamos em conta fatores como disponibilidade para o trabalho e de verbas para o custeio das montagens. Em geral, dos primeiros estudos à estreia, precisamos de 4 meses. Esse trabalho se completa ao longo das temporadas. Nunca fazemos temporadas inferiores a 15 espetáculos, ainda que amarguemos dias com 3 ou 4 espectadores na plateia. Julgamos indispensável essa regularidade mínima de apresentações por dois motivos: Um é que, somente assim, podemos incorporar a experiência de diálogo com o público, de modo a aperfeiçoar tecnicamente o espetáculo e garantir sua comunicação. O outro é por trabalhamos no sentido de formar e ampliar nosso público. Sendo assim, promovemos regularmente debates com a plateia após as apresentações. Também mantemos a prática de oferecer sessões extras a grupos de movimentos sociais organizados.

FERNANDO É possível definir a duração média de vida dos espetáculos? O grupo busca manter um repertório de espetáculos sempre? MÁRCIO Mantemos, programaticamente, os espetáculos em repertório. Isso não significa que eles estejam cristalizados, ao contrário, a cada nova temporada, voltamos para a sala de ensaios e remontamos tudo. Para dar dois exemplos recentes: Milagre brasileiro estreou em 2010 e no início de 2012 passou por sua segunda reformulação, a ponto de serem incorporadas novas cenas e canções. Essa exigência surge na sala de ensaios, uma vez que o processo colaborativo incorpora a contribuição de cada novo participante. O mesmo se deu com O Deus da fortuna, que estreou em 2011 com 05 atores e um músico. Já na segunda temporada, no início de 2012, foram incorporados

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ao elenco mais duas atrizes e uma musicista. Trabalhamos na perspectiva de formação continuada. Sendo assim, os espetáculos são o documentos das transformações vividas no cotidiano do grupo.

FERNANDO O grupo tem alguma preferência por tipo de espaço cênico? Caso sim, qual e por quê? Se não, por quê? MÁRCIO Como disse anteriormente, o assunto exige sua forma. Sendo assim, não definimos a priori o espaço cênico. No entanto, trabalhamos de acordo com as condições precárias de um teatro na contramão realizado num dos estados mais pobres da Federação. Nesse sentido, a escolha por espaços alternativos é também um ato de resistência contra a lógica da circulação que impõe aos teatros uma política de ocupação mesquinha, ineficiente e marcada pelo caráter de evento. Nossas montagens são pautadas pela simplicidade do aparato cênico, o que não significa necessariamente o rebaixamento da forma. Tentamos aliar beleza, praticidade e economia, de modo que nossos espetáculos são facilmente adaptáveis a qualquer espaço com mínimas condi110

ções de acomodação do público. Um fator decisivo é a preocupação de pensar cenografia e iluminação sempre a partir de meios alternativos. Também nos preocupamos em levar o teatro ao público não habitual das salas de espetáculos. Histórias de sem réis é uma intervenção urbana que utiliza as praças das cidades como espaço cênico.

FERNANDO Como é a relação em geral com a dramaturgia? O Alfenim trabalha normalmente com textos prontos ou com criação da dramaturgia em sala? Existe alguém que dá o tratamento final aos textos? MÁRCIO Trabalhamos com a criação da dramaturgia em duas frentes simultâneas e complementares: os temas são estudados por meio de improvisações e workshops preparados pelos atores e demais artistas envolvidos. Esse procedimento se dá a partir de sugestões do dramaturgo, no caso, eu, ou a partir de ideias dos próprios atores. O material improvisado é anotado e serve de alimento para a escritura das cenas. Esse trabalho de composição é feito por mim para verificação posterior em nova fase de improvisações. O tratamento final do texto também é realizado por mim. Na sala


de ensaios, nos valemos de todo tipo de referência: cenas da dramaturgia clássica, ensaios, reportagens, material compilado na internet, depoimentos de personagens históricas ou anônimas, músicas, obras das artes visuais, poesias, contos, fragmentos de romances, biografias, manuais de instruções etc. O mesmo procedimento é utilizado para a criação dos demais suportes da cena.

FERNANDO Como o grupo lida com a relação público/criação artística? Existe alguma influência? MÁRCIO Sem dúvida, do contrário, estaríamos mortos. No entanto, nossa intenção não é a de harmonizar a plateia em torno de um discurso que suspenda temporariamente os antagonismos e envolva a todos numa atmosfera de compartilhamento feérico, lírico ou coisa do gênero. Temos em mente a boa lição de Brecht que diz: “numa sociedade dividida em classes, o dever do teatro é dividir a plateia”. Sendo assim, não nos espanta os sinais explícitos de desaprovação, nem as manifestações calorosas de entusiasmo – cada vez mais raras, mas ainda presentes. Acontece que nossa atitude artística de encarar o teatro como um meio possível de transformação social, gera por parte dos formadores de opinião uma reação negativa cada vez mais intensa o que nos condena ao isolamento.

FERNANDO O grupo costuma ter a prática de ministrar oficinas? Qual o tipo de relação que elas têm com a prática do grupo, e com a sua estética? MÁRCIO Sempre que possível, ministramos oficinas. Temos oficinas específicas para atores, diretores e de dramaturgia. Consideramos a oficina um espaço permanete de reflexão e aprofundamento de nossa pesquisa. Tudo aquilo que aprendemos no processo de criação de um espetáculo acaba sendo revertido como exercícios de formação. Uma vez que cada assunto exige uma forma de abordagem, estamos constantemente inventando ou reformulando exercícios que, de uma forma ou de outra, servem de ferramenta nos processos de criação. Essa experiência da sala nutre

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as oficinas. Sempre pedimos aos participantes de nossas oficinas que nos ensinem novos exercícios ou procedimentos. É uma forma de ampliar nosso repertório.

FERNANDO O grupo tem preocupação com o registro de suas atividades, seja escrito, fotográfico ou videográfico? Como? MÁRCIO Temos a preocupação, mas ainda não a profissionalização necessária. Nosso material visual, fotográfico e videográfico é de boa qualidade, mas irregular. Recentemente inauguramos nosso site (coletivoalfenim.com.br), mantemos em atividade nosso blog (teatroalfenim.bolgspot.com) e uma página no facebook. Temos conseguido publicar um Caderno de Apontamentos com artigos entrevistas e ensaios sobre o processo de criação de cada espetáculo.

FERNANDO Como se dão as relações do grupo com outros grupos? Em movimentos? Em projetos? Como são as parcerias? MÁRCIO Ainda estamos inventando uma forma produtiva de diálogo com os gru112

pos locais. As tentativas de aproximação, até agora, não têm sido muito animadoras, mas reputo esse descompasso à uma falha na cominicação entre os grupos e às agendas de cada um. Entretanto, já realizamos ações conjuntas importantes com os grupos Piollin e Ser Tão Teatro, ambos participantes do Movimento Lapada. O Alfenim está desenvolvendo um projeto de aproximação dos grupos por meio de um seminário de dramaturgia que envolve um ciclo de palestras, um laboratório de dramaturgia e uma mostra de leituras encenadas dos textos produzidos por jovens dramaturgos. A ideia é convidar os demais grupos da cidade a participarem dessas leituras. Quanto ao debate político, participamos do Fórum de Teatro de João Pessoa e da retomada do Redemoinho. As parcerias começam a ser estabelecidas com grupos da região temos um projeto de circulação pelo Nordeste que prevê o intercâmbio crítico com grupos de seis cidades. Este ano participamos com a Companhia do Latão do projeto de ocupação do Teatro de Arena Eugênio Kusnet, em São Paulo.

FERNANDO E enquanto articulação política?


MÁRCIO Tentamos acompanhar os debates sobre as políticas públicas para o teatro tanto em nível municipal, quanto regional e nacional, através do Fórum e do Redemoinho. Aqui em João Pessoa, sempre que necessário e urgente, nos mobilizamos para ações pontuais de intervenção ou resistência aos desmandos da gestão pública de recursos para a produção artística.

FERNANDO Para finalizar, qual é hoje a grande questão para o Alfenim, qual é o tema que está no topo da pauta do grupo? MÁRCIO Em poucas palavras, o tema é a Revolução: de que maneira o Alfenim pode contribuir efetivamente para a urgente e necessária transformação social?

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Grupo Graxa João Pessoa (PB) Entrevista realizada por videoconferência, em 22 de maio de 2012. 115

FERNANDO YAMAMOTO Comecemos falando como se deu o surgimento do Graxa. CELY FARIAS O grupo surgiu a partir de um elenco. Existia o convite do diretor Fernando Teixeira pra montar o espetáculo Olga Benário Prestes, de Joacil de Brito Pereira. Esse elenco, depois de cumprida a temporada obrigatória, resolveu permanecer junto, mesmo com o diretor dizendo que tinha cumprido a parte dele. Algumas pessoas saíram e outras foram convidadas para substituí-las. Remontamos o espetáculo em pouco tempo para poder apresentar na Mostra Estadual, onde obtivemos sucesso, conquistamos prêmios e isso fez com que todo mundo quisesse permanecer junto. Não só isso, claro, mas também os ideais comuns, a vontade de produzir, de ter um grupo.


FERNANDO Tentem traçar um histórico breve a partir daí, apontando alguns marcos na história do grupo. ANTONIO DEOL Fizemos uma reunião com as pessoas que se dispuseram a permanecer no grupo para estabelecer que rumo iríamos tomar a partir dali. Achamos pertinente discutir essas ideias e partir pra uma montagem mais autoral. A gente leu muita coisa, pesquisou muita coisa e culminou no primeiro espetáculo que foi Déjà vu. Achamos a ideia um tanto quanto ousada, ficamos sem saber se daríamos conta, porque éramos um grupo iniciante, mas assumimos essa ousadia, trabalhamos com vários autores como Nelson Rodrigues, Sófocles e Shakespeare. A gente fez mais de uma temporada, saímos do estado com ele e isso foi muito bom. Foi aí que o grupo começou a trabalhar uma característica que é bem particular atualmente, que é ter subdivisões no grupo. A primeira foi para a montagem do espetáculo infantil Faz de conta. Com ele a gente fez temporada, apresentações pra escolas, etc.

FERNANDO Quando você fala em subdivisões, você está falando em 116

subdivisões dos integrantes? CELY Isso. Reúnem-se três pessoas pra um espetáculo, no outro tem quatro, outras cinco tem um outro trabalho, etc.

FERNANDO E isso acaba hoje sendo um princípio de funcionamento do grupo, ou é só circunstancial? ANTONIO É um princípio sim, que acabou se firmando a partir de uma constatação, não foi algo buscado. Foi algo que aconteceu e a gente confirmou. Nós funcionamos em subgrupos, apesar de ter o grupo maior para reuniões, etc.

FERNANDO Na parte administrativa o grupo funciona como um só, é isso? ANTONIO Sim, funciona como um só. A gente está dando uma revisada, distribuímos mais as tarefas, porque para alguns estava pesando muito e pra outros nem tanto.


FERNANDO Como funciona a divisão de funções, administração, enfim, o funcionamento do grupo? CELY Normalmente a gente faz uma eleição anual, quando a gente escolhe uma diretoria administrativa, composta por um coordenador geral, um secretário e um tesoureiro, e essas pessoas desempenham essas funções administrativas, mas todos participam tanto com voz quanto com voto. Todas as decisões do grupo são tomadas a partir de votações. A gente tá revendo essas funções pra estabelecer uma nova ordem. Neste momento estamos participando de uma consultoria com o Rômulo Avelar, onde estamos trabalhando desde a visão da empresa, a missão e os princípios até a organização das funções, do organograma, do cronograma, coisas que a gente não fazia sistematicamente. Então, a gente está nesse processo de reorganização da casa.

FERNANDO E como é a rotina do grupo? Quantas sessões de trabalho por semana, como o grupo se divide em funções administrativas e artísticas? CELY A gente faz uma reunião de planejamento quinzenal e temos normalmente três encontros por semana divididos por espetáculos, pra ensaios de espetáculos ou montagens de novos espetáculos. Então, nem todo mundo está todos os dias. Por exemplo, A princesa Luzia e o urso de um olho só ensaia toda segunda-feira e Déjà vu ensaia toda terça-feira. A gente tá planejando uma nova montagem, onde a gente vai ensaiar todas as quartas e sextas à noite.

FERNANDO E esses núcleos de trabalho são fixos? Ou os integrantes se subdividem de forma diferente a cada período, a cada trabalho? CELY Não são grupos fixos. Por exemplo, a gente vai montar um espetáculo novo. Aí quem tá afim, disponível, entra e passa a formar esse novo núcleo de trabalho.

FERNANDO O grupo provê sustento de todos ou de alguns integrantes hoje? Existem integrantes que vivem exclusivamente do grupo hoje?

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CELY Não. O grupo se sustenta. Todos os nossos espetáculos, todas as nossas montagens até hoje foram financiadas pelo próprio grupo. A gente nunca recebeu patrocínio para montagem, só para circulação. Eventualmente a gente dá uma ajuda de custo para um ou outro integrante que necessita. São coisas específicas, mais pontuais, mas não existe ninguém que se sustente do grupo.

FERNANDO E existe esse desejo, essa perspectiva? Vocês trabalham nesse sentido? CELY Sim, isso está dentro dos nossos objetivos. Ultimamente nós temos conversado bastante sobre isso, porque a maioria das pessoas tem outras atividades, e isso faz com que elas não possam se dedicar integralmente ao grupo. Nós temos sentido a necessidade de nos sacrificarmos um pouco mais para o grupo, pra ele poder nos dar o retorno que a gente deseja, que é a sustentabilidade. A gente pensa, sonha, deseja e estamos nos organizando pra isso. 118

FERNANDO Vocês falaram que nunca tiveram um financiamento para montagem, só pra circulação. Quais são as principais fontes de financiamento do grupo? CELY Normalmente são editais de fomento. A gente já teve Myriam Muniz, o BNB sempre nos patrocina, e o Fundo Municipal de Cultura. São os três principais. ANTONIO Nós também temos o recolhimento de uma taxa que é de 20%, que é retirado do grupo. Tudo que entra e isso vai servindo pra novas montagens, despesas do grupo, etc.

FERNANDO Falando sobre os processos criativos, seria possível vocês traçarem mais precisamente como é que surge essa primeira faísca para um próximo processo? Surge do texto, de uma ideia, do quê? CELY Cada trabalho tem uma característica diferente. No primeiro cada um trouxe temas, e depois elegemos a pessoa que estaria à frente dirigindo. Essa pessoa recebeu a incumbência de trabalhar esses temas para trazê-los de maneira que a gente pudesse


montar. No nosso trabalho mais recente, Carol pediu para Joht que, na época, era do grupo, para que ele escrevesse um texto especialmente para ela e Antonio fazerem, porque eles tinham se afastado do grupo por conta do mestrado e estavam voltando. Mas foi um desejo individual. Joht também é autor de outro texto montado pelo grupo. Na maioria das vezes é alguém que traz a proposta de um texto e a gente embarca na ideia. No entanto, nosso próximo trabalho, diferentemente dos outros, a gente partiu de uma ideia: estarmos todos em cena. Nós estamos sentindo essa necessidade de nos reunirmos. Nosso objetivo para o próximo trabalho, por enquanto, é estar todo mundo em cena. Algumas ideias surgiram, mas a gente não está mais pensando em partir de um texto, estamos indo pra uma coisa mais de intervenção, etc.

FERNANDO E como é que é essa relação da construção da dramaturgia pra vocês? Você falou, por exemplo, nesses dois textos que o Joht construiu. Ele é feito a priori, em sala de trabalho? Mesmo do Déjà vu, que foi um texto criado a partir de outras referências, como vocês trabalham a questão da dramaturgia? CELY No Déjà vu eu, que assumi a direção, e a assistente de direção, nos debruçamos sobre os temas e textos sugeridos. A partir dos estímulos na sala de ensaio a gente ia fazendo a nossa adaptação para construir o texto.

FERNANDO E vocês também que davam o tratamento final do texto? ANTONIO O tratamento final era meu, mas com interferências do elenco também. Em Do outro lado da chuva e A princesa Luzia e o urso de um olho só foram textos que Joht escreveu para o grupo. No infantil trabalhamos com um texto já pronto, de Celly de Freitas.

FERNANDO Eu faço a mesma pergunta em relação à direção. A Cely comentou sobre a decisão de qual integrante dirige cada espetáculo. Como vocês decidem isso?

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ANTONIO Isso vem junto com o impulso da montagem, geralmente com a ideia ou o tema, ou o próprio texto. E, em geral, junto ou logo em seguida vem essa proposição de alguém que se dispõe a dirigir. Eu estive à frente da direção de dois trabalhos, tem outro em que a direção é compartilhada por Joht e Ingrid, Joht dirige um sozinho e em outro Cely dirige.

FERNANDO Todos os integrantes do grupo são atores e diretores? ANTONIO Alguns tem uma predisposição maior para a direção, mas todos estão abertos a isso. Não há restrição nesse sentido. Depende da disponibilidade da pessoa.

FERNANDO Em média quanto tempo dura os processos de construção de espetáculo do grupo? ANTONIO Isso também varia. Os dois adultos tiveram algo próximo de um ano. Os dois infantis tiveram em torno de seis ou oito meses. 120

FERNANDO Em que grau a preocupação com o público interfere nos processos criativos de vocês? CELY Que pergunta difícil! Eu acho que a preocupação com o público é muito mais presente nas montagens dos espetáculos infantis. Isso é complicado de dizer. Nos adultos também há preocupação, mas eu acho que de uma maneira diferente. Nos infantis a gente vai pelo lado até do educar mesmo e os adultos tem uma característica mais do provocar. É tão complicado! (risos) ANTONIO Essa questão com o público tem uma relação com o início do projeto em si porque, em geral, a gente tem o cuidado de pensar se é um texto, uma ideia de encenação que vai ter algum tipo de diálogo com as questões da atualidade, se dialoga com as pessoas do nosso tempo. Quando isso mexe com as pessoas dentro do grupo e a gente vê essa perspectiva de mexer com o público, aí isso tem utilidade, vira discussão e aí vamos descobrindo os passos seguintes até se chegar à montagem.

FERNANDO O grupo tem preocupação com o registro dos processos?


ANTONIO Temos, mas reconhecemos que precisamos melhorar nesse ponto. CELY Dos processos a gente tem menos do que dos resultados. A gente tem o registro dos espetáculos em vídeo e, nos processos, normalmente a gente trabalha com anotações em diário de bordo, mas fica pra cada um como material de consulta individual.

FERNANDO Como é a relação do Graxa com outros grupos, tanto de João Pessoa quanto de fora? Vocês costumam fomentar espaços de troca, de intercâmbio? ANTONIO Esse espaço, no histórico desde o início até a atualidade, nunca foi buscado sistematicamente, mas é algo que a gente já tem anotado na nossa agenda de 2012. É algo que a gente quer muito fazer. Eu acho que nunca teve algo marcante, uma troca com um grupo específico, mas a gente teve sempre aberto a trocas informais.

FERNANDO O Graxa tem algum tipo de atuação política junto com outros grupos? CELY Essa questão política aqui na cidade ainda é muito jovem, ainda tá se formando, essa organização é muito recente. O grupo participa do fórum de teatro que hoje é a representação que a gente tem, é onde a gente discute essas questões políticas. O sindicato daqui é muito inoperante e a gente não conta muito com isso. Mas as discussões ainda são muito verdes nessa área política. Existe uma vontade e ultimamente esse envolvimento tem crescido. Essa consultoria que a gente tá tendo com Rômulo, que outros grupos também estão participando, ajuda a nos articularmos, a pensarmos juntos, a debater as questões que são pauta dentro da política cultural daqui da cidade.

FERNANDO Todos ou quase todos vocês têm uma relação com a academia, fazem ou fizeram pós-graduação, né? Esses projetos são isolados da prática/pensamento do grupo, ou existe um diálogo?

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ANTONIO Tudo que é feito na academia vem pra dentro do grupo, circula dentro do próprio grupo. Uma outra questão que eu em particular tenho interesse é fazer com que esse movimento gerado dentro do grupo possa ser sistematizado e passado adiante, oferecer mais oficinas, workshops, fazer com que nosso processo de construção e de pensamento possa virar semente pra outras pessoas se inspirarem, ou para conhecerem o nosso caminho.

FERNANDO Pra finalizarmos, qual é a questão hoje, seja de âmbito estético, administrativo, que está no topo da pauta do Graxa? Qual é a principal questão do grupo hoje? ANTONIO Eu vejo como a principal questão essa definição mais concreta, mais nítida, da própria identidade do grupo. Eu tenho me colocado como alguém que tenta puxar outras pessoas para que isso se torne cada vez mais claro. Eu acho que a grande questão é saber quem somos, pra onde vamos, pra onde planejamos ir. 122

CELY Eu acho que é isso mesmo. Você nos pegou num momento de transição, onde nós estamos batalhando pra olharmos um pro outro. Eu acho que a gente está vivendo aquele momento do “ou vai ou racha”. É por isso que eu acho que a maioria das nossas respostas são “era de um jeito, mas pode ser de outro”, “vinha sendo assim, mas a gente quer que seja de uma outra maneira”, porque a gente está nesse ponto de virada.




Grupo Heureca Campina Grande (PB) Entrevista realizada na sede do grupo, no Clube do Trabalhador/SESI, Campina Grande, em 14 de maio de 2009. 125

FERNANDO YAMAMOTO Me contem sobre a criação do grupo. JOSIMAR ALVES O Heureca surge da dissidência de um outro grupo, o Trupe Trota. A gente tinha saído do Quem tem Boca é pra Gritar, formou o Trupe Trota, com uma pesquisa nos circos da Paraíba e Pernambuco, aqueles circos “tomara que não chova”, verificando como é que eles sobreviviam. Surgimos com um espetáculo chamado Ali tem um Circo, que ganhou vários prêmios, festivais no Nordeste e, em 99, cinco anos depois da formação, fomos surpreendidos! O grupo trabalhava por cotas, éramos oito sócios, e um sócio levou tudo! Foi pra São Paulo, só deixou uma carta, explicando porque ele estava levando. Disse que ia morar em São Paulo, que não poderia começar do zero, e que aqui era mais fácil a gente conseguir as coisas de novo, porque as pessoas são mais abertas, e lá as pessoas são frias. Que nos amava, mas que tava levando tudo. Isso foi no dia 22 de dezembro, foi o presente de Natal que recebemos! A gente fez uma reunião dos sete, e descobrimos que quatro outros


sabiam que ele iria fazer isso, e concordaram porque havia uma promessa de que eles iriam morar em São Paulo também.

FERNANDO Vocês já montaram isso? JOSIMAR Não.

FERNANDO Deveriam! A história é muito boa! JOSIMAR É uma boa ideia, eu nunca pensei nisso. Ficamos os três, sem nada, ele levou tudo: figurinos, perna de pau, tudo! Então dissemos: “vamos montar um grupo, não mais por cotas de sociedade, mas um que todo mundo tenha vez, tenha voz”. Primeiro pensamos no nome: Grupo Baco, Dionísio, Cacilda Becker, Grupo Fernanda Montenegro, enfim, nomes e nomes, e não se chegava a nada. Em dado momento, eu disse “vamos pensar uma coisa mais assim, tipo o Arquimedes, pensar num nome e... Heureca!” Houve um silêncio. E eu: “Que foi? O que eu falei?” E elas: “Heureca! Esse é o nome!” A gente começou a gritar, pular. E tomamos uma depois, 126

né? Aí a gente conversou com a coordenadora de lazer do SESI na época, Regimênia Braga, e explicou tudo, propondo uma parceria. Ela disse que uma das exigências do SESI para realizar parcerias é que se tenha toda documentação, ser registrado, CNPJ, etc. A gente disse que precisava de um tempo, porque tava começando, e ela deu um prazo de um ano. Ela disse: “vamos fazer um projeto assim: vocês vão dar vinte e quatro apresentações ao SESI durante o ano, e em troca eu dou o que vocês quiserem”. Aí já pedimos muito tecido, muito isso, muito aquilo, e abrimos inscrições pra quem quisesse ser ator, e preparamos uma equipe. A gente tinha um texto de um amigo de Pernambuco, Zé Miséria Deus e o Diabo, e tinha tudo a ver com aquilo que a gente tinha passado, o pão que o diabo amassou, aquela pobreza mesmo! A gente montou esse texto e, pra nossa felicidade, ganhou um prêmio da Funarte, o Encena Brasil, o único da cidade. A gente fez Campina Grande e algumas cidades do interior de Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte. Pra gente foi maravilhoso, todo mundo trabalhando, querendo.


FERNANDO Essa relação com o SESI é muito importante pro Heureca, né? JOSIMAR É fundamental, nessa entrevista, falar do apoio do SESI. A Regimênia Braga, que na época era coordenadora de lazer, foi uma das pessoas que mais nos estimulou. A Patrícia Leal também é um anjo pra gente. A Regimênia foi muito importante nesse processo da parceria de vinte e quatro apresentações, que até hoje a gente mantém! Nós fazemos as apresentações pro SESI em troca do espaço físico e de materiais, como uma maquiagem, um figurino, material de circo, trapézio, material gráfico, etc. O SESI não dá dinheiro, mas dá o que a gente pede! É muito importante pra gente isso.

FERNANDO Como é que é a rotina do grupo hoje? Como é que é o funcionamento do grupo? Como é que vocês dividem o trabalho administrativo, do trabalho artístico? Como é que são os encontros de vocês, quantas horas? Como vocês fazem isso? ALINY ARRUDA Então, falando pela parte administrativa, a gente tem o presidente, secretaria e tesoureiro, além de supervisor interno e supervisor externo. E no interno nós temos as unidades, na parte artística. Temos a unidade de sapatos, a de perucas, dos figurinos, maquiagem, circo. Tem uma pessoa responsável, porém todo o grupo também cuida. Tem aquela pessoa pra verificar tudinho, ver o que é que falta, mas todo o grupo também está a frente, sempre tá ativo.

FERNANDO O que é esse supervisor externo que vocês chamam? O interno é que coordena essas funções todas do material, né? ALINY Isso. E o externo, quando o presidente ou a secretaria já está em uma outra reunião, esse supervisor externo pode responder também pelo grupo. Tem uma ligação, aí o supervisor externo resolve.

FERNANDO E existe um rodízio nessa funções?

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JOSIMAR Existe. Todo mundo já foi alguma coisa diferente. Teve gente que era da peruca, foi pro circo, outro que era do circo foi pra Heurecoteca, que é a nossa biblioteca, e as supervisões também, pra dar oportunidade.

FERNANDO E com relação a criação, elaboração de projetos, isso fica muito pro presidente e secretário, ou é dividido? JOSIMAR Há algum tempo atrás a gente deu uma oficina interna de como fazer projetos, porque tinha gente entrando. Aquela coisa, como é que a gente pensa projeto? A gente preparou e fez essa oficina. Alguns não gostaram, acharam trabalhoso, cansativo, chato. Outros gostaram. Então, quando a gente vai fazer um projeto, todo mundo dá as ideias, a gente capta essas ideias, vai pro computador, aí eu digo: quem se interessa? Quem gostaria de vir junto? A gente vai, prepara e envia. É assim que tem funcionado.

FERNANDO Em termos de remuneração, ela tá relacionada a essas 128

funções diferentes ou não? JOSIMAR Eu já participei de grupo em que a gente ganhava 20 mil, o diretor ficava com 19 mil e repartia mil pra doze pessoas. Não acho isso justo. Então, eu cheguei onde eu cheguei por essa postura de facilitar pra todo mundo. Sempre tem pra todo mundo. A nossa grande preocupação é como a gente vai conseguir manter o grupo financeiramente.

FERNANDO Quando você diz “grupo” quer dizer o grupo mesmo ou as pessoas do grupo? JOSIMAR Eu tô falando o grupo como pessoas. Todo mundo hoje, aqui, tem uma segunda profissão. Somos atores, atrizes, fazemos espetáculos e também outras coisas nas horas vagas. Em sua maioria somos professores, de espanhol, de matemática, de língua portuguesa, de música. Quando a gente assistiu o vídeo do Galpão, no ano passado, todo mundo ficou louco. “A gente tem que largar tudo mesmo, gente!”. Mas pra isso tem que ter uma patrocinadora! E esse é um problema da gente, porque se


a gente não mantém as pessoas, a gente não pode manter o grupo. A gente sabe que não é fácil, o Heureca está completando dez anos, as pessoas já se mantém de certa forma com seus empregos, mas queremos viver de teatro. Esse é um sonho!

FERNANDO E a rotina da atividade artística, como é? JOSIMAR A gente tem uma rotina de fazer exercícios, toda semana. Físicos, interpretativos, circenses. Menos quando a gente viaja pra fazer espetáculos, aí não tem como a gente fazer. Mas estando aqui, a gente tem uma prática constante. Segunda, terça, sexta e sábado. E havendo necessidade, amplia domingo, madrugada. A gente tem aplicado muito BBB, que não é Big Brother Brasil (risos), é um método que a gente coloca Brecht, Boal e Barba, que têm sido norteadores. Claro que Stanislavski pra gente é importante, tanto é que dentro dos estudos que a gente faz, a gente retomou Stanislavski.

FERNANDO Os processos criativos de vocês em geral partem de onde? É do texto? É de uma ideia? JOSIMAR Não. Parte dos exercícios, do trabalho que a gente vai desenvolvendo. Esses textos que a gente tem fui eu que escrevi, mas além de mim, Jocilene, Roger e o Leandro também escrevem, mas eles ainda são muito tímidos em mostrar as suas produções.

MIKA É tanta essa timidez, que a gente criou um grupo de estudos dos nossos textos. JOSIMAR Eu leio o texto, copio pra todo mundo, e aí pergunto: “O que é que a gente achou do texto dele? O que é que precisa melhorar?”. Isso foi uma forma que a gente trouxe pra quebrar essa história.

FERNANDO Esses exercícios dramatúrgicos que os outros integrantes começaram também a fazer surgem a partir das improvisações? JOSIMAR Sim.

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FERNANDO E depois, depois de estudar esses textos, vocês costumam aplicar nos exercícios, experimentar na sala? JOSIMAR Sim. Porque se você lê um texto e não leva pra cena, ele tá morto.

FERNANDO Sobre a criação dos espetáculos do Heureca, qual o tempo médio de duração dos processos? JOSIMAR Varia. Por exemplo, Fausto Paraibano, foram quase dois anos. A gente começou em 2004, e em 2006 foi a estreia. A Farsa do advogado Pathelin foi um ano e meio. MIKA Entre estudo, laboratório...

FERNANDO E como é que é em geral a vida desses espetáculos? Vocês conseguem fazer temporada aqui em Campina? JOSIMAR Quando são espetáculos de rua, existe um preconceito na cidade de 130

Campina Grande, ela é meio provinciana. Assim, quando você tem espetáculo pra palco italiano, ele dura mais tempo e é mais requisitado do que de rua. Os de rua a gente acaba sendo lembrado mais pelos projetos do SESC.

FERNANDO E esses trabalhos nas empresas, com o SESI, são sempre encomendados, ou vocês também apresentam trabalhos do repertório de vocês? JOSIMAR São sempre encomendados. A gente não conseguiu quebrar ainda essa imagem de teatro que eles têm. MIKA É sempre direcionado para um evento, quando eles pedem. O único que quebrou com isso foi a Catirina, mas foi um projeto do SESI, o SESI Folclore. JOSIMAR Foi. Catirina, a mulé pidideira conseguiu. A gente colocou ele pras empresas, mas porque foi por causa do SESI Folclore, não porque a gente tentou. Essa é uma luta, porque a gente quer mostrar que há uma outra possibilidade além dos espetáculos encomendados, mas gente não conseguiu ainda.


FERNANDO Vocês falaram da dificuldade em manter espetáculos de rua em Campina. Diante dessas questões, vocês têm algum tipo de espaço cênico preferencial? Vocês partem, nos processos, pensando já em algum tipo de espaço? ALINY A gente trabalha em qualquer espaço, a gente adapta.

FERNANDO Em que grau a preocupação com o público interfere na criação dos espetáculos? JOSIMAR Muito. Interfere porque a gente faz o espetáculo para o público. Por exemplo, a gente sabe que, quando faz na rua, a gente tá fazendo pra todas as idades, todas as camadas sociais, então a gente quer o melhor. E a gente se preocupa com o que tá sendo dito, com as interferências do bêbado que entra, do louco...

FERNANDO Como é que é trabalho pedagógico de vocês? Vocês costumam ministrar oficinas? Como que ela funciona, com que frequência? ALINY A gente tem parceria com o SESI em dois projetos, o Heurequinha, que é circo e teatro para crianças, e o Jogo do Circo e do Teatro, que é mais voltado pro jovem e pro adulto. A gente tem sempre sido solicitado pra fazer oficina.

FERNANDO O grupo tem uma preocupação com registro de seus trabalhos? MIKA Tchoroco é encarregado pela parte de fotografia, mas a gente também tem essa parte de vídeo. LEANDRO BRAITH Textos, críticas, tudo isso a gente arquiva. ALINY Tudo o que sai na mídia com relação ao nosso nome, que tenha Grupo de Teatro Heureca, a gente puxa da internet. Os vídeos, a gente também grava e joga no You Tube.

FERNANDO E os processos de montagem, treinamento, também são filmados?

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ANNE A gente tem as filmagens. Na Farsa mesmo, todo o processo criativo e as oficinas foram filmadas. Fizemos a entrevista com os atores, perguntando sobre as personagens. TCHOROCO ALEARTE Nas construções dos espetáculos, de uns dois anos pra cá, desde a Farsa, a gente usou muito a questão do aprimoramento do exercício pra cena pelo vídeo. Todo o trabalho de sala gravado e, em alguns momentos, a gente ia analisar o que tava acontecendo, estudando o que poderia ser consertado.

FERNANDO E registro escrito? Diário, produção escrita sobre os processos, sistematização, vocês costumam desenvolver? TCHOROCO Todo o processo anual é registrado na agenda do grupo. A Aliny, como secretária, faz essa função, como um diário mesmo. E cada um de nós tem a agenda pessoal, além desse registro fixo do grupo. No site também tem o registro por escrito de atualizações e coisas que já foram passadas. 132

MIKA No site tem uma parte que de críticas, que Josimar tá sempre escrevendo.

FERNANDO Como é que é a relação do Heureca com os outros grupos? JOSIMAR Tanto o Festival de Inverno, quanto o SESC, têm proporcionado uma aproximação muito grande. O Ói Nóis, que é um grupo que eu conhecia desde o inicio da década de 90, o Galpão, que a gente trouxe outras vezes através do festival, o Anônimo. Se nós não tivéssemos esses momentos, eu acho que seria muito mais difícil, seríamos mais um grupo desconhecido de um todo. É um sonho nosso trazer Amir Haddad pra dirigir, a gente alimenta já há cinco anos, mas a gente sabe que pra trazer ele a gente precisa de recursos. ANNE No Palco Giratório sempre tem o intercâmbio, com os grupos de fora. A gente fez com o Anônimo, com a Cia. do Meu Tio, o Ventoforte.

FERNANDO E os grupos paraibanos? E os Campinenses?


JOSIMAR Eu posso falar com propriedade dos grupos de Campina Grande, porque eu já fui presidente três vezes da Associação de Teatro. No final dos anos 80, início dos 90, nós tínhamos em Campina Grande trinta e quatro grupos de teatro! Com o governo Collor posso te dizer que 70% desses grupos se desfizeram. Todo e qualquer recurso que se tinha foi cortado. Aí veio Fernando Henrique, que piorou mais ainda. Restaram alguns grupos, que a gente contava a dedo, uns dez. Depois veio o sindicato, que chegou com terrorismo, “quem é amador não fica! Não pode cobrar pelo espetáculo!”. A gente sofreu uma perseguição muito grande na época. Hoje, em Campina, se for contar, eu diria que grupo mesmo a gente tem dois, o Heureca e o Bodopitá, que nasceu recentemente, na pesquisa do playback theater. Os outros são pessoas convidadas a fazerem espetáculos, elencos.

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Piollin Grupo de Teatro João Pessoa (PB) Entrevista realizada por e-mail, em 17 de junho de 2012. 135

FERNANDO YAMAMOTO Buda, como se deu a criação do grupo? Conte-me como foi o surgimento, e fale um pouco da história do Piollin, passando pelos principais espetáculos e acontecimentos. BUDA LIRA O nome do grupo até 1976 era “Um Grupo”. Premiado nesse mesmo ano com espetáculo O Aborto, no Festival Regional de Teatro, realizado em Salvador, junto com o Festival Nacional de Teatro Amador, o grupo pôde concretizar a idéia de Luiz Carlos Vasconcelos de conquistar um espaço físico para manutenção dos estudos e produção de teatro, incentivado com os recursos dessa premiação. Os espaços escolhidos para abrigar as atividades do grupo foram salas desocupadas do antigo Convento Santo Antônio, anexo a Igreja São Francisco, imóveis do séc. XVIII, localizados no centro histórico da cidade de João Pessoa. Além d’O Aborto, o grupo produziu A Viagem de um Barquinho, de Silvia Ortof, e Os Piralhos, ambos com direção de Luiz Carlos. Esse último trabalho marca o encontro do Piollin e Luiz com


a meninada: Nanego, Soia, Marcélia, Eliézer Rolim, dentre outros, e realização de seis Encontros Paraibanos de Grupos de Crianças e de Adolescentes. Foram produzidos, ainda, Vau da Sarapalha, adaptação do conto Sarapalha, de Guimarães Rosa, A Gaivota (alguns rascunhos), texto de Tchekhov, com direção de Haroldo Rego, e Retábulo, adaptação e direção de Luiz também. No período de 1977 a 1980, o espaço do grupo passou a ser referência para a chamada produção alternativa da cultura que se produziu em João Pessoa e outros estados. Espetáculos de música, cineclubismo, experimentos de rua e em expaços inexplorados até então para o exercício cênico, atividades circenses, caravana de cultura pelo interior do estado marcam esse início de estruturação do grupo. Nesse universo amplo e irrestrito de atividades transitou o Piollin até 1980, quando teve que desocupar o convento por imposição do governo estadual. Um movimento para a permanência da Escola Piollin – já não mais grupo de teatro – foi deflagrado a partir de então, e ganhou a adesão de organizações e personalidades da vida cultural do estado e de outras regiões do país. Após essa luta, com a mediação do Ministério da Educação e Cultura e do IPHAN, finalmente 136

a então Escola Piollin foi trasferida para o antigo Engenho Paul, no Bairro Roger, no centro histórico de João Pessoa, onde permanece até hoje, através de comodato firmado com o governo do estado. A partir desse período, intensifica-se o trabalho de arte e educação voltado para os moradores próximos da sede da Piollin, projeto que permanece até hoje sob a responsabilidade do Centro Cultural Piollin. O grupo, após a repercussão do espetáculo Vau da Sarapalha, resolveu criar a sua personalidade jurídica, fundando em 2002 o Piollin Grupo de Teatro.

FERNANDO Como é a rotina do grupo hoje? BUDA No momento, o grupo alimenta dois projetos: a montagem de um novo espetáculo, a partir de um argumento do diretor Haroldo Rego, e a manutenção/reestudo de Retábulo. O primeiro foi aprovado no Myriam Muniz e está no comecinho, com leitura de textos de ficção científica, filmes, e atividades práticas. O Retábulo, após a temporada de três meses no Teatro Piollin, seguiu com revisão do texto e retomou os ensaios agora.


FERNANDO Como vocês dividem o trabalho artístico do administrativo? Como se dá a gestão do grupo? As funções administrativas são divididas entre todos? Existe uma perspectiva/desejo do grupo sustentar seus integrantes? BUDA Há uma crença do grupo de que a atividade de teatro na Paraíba pode, em parte, sustentar atores/atrizes, diretores e equipe administrativa e, com isso, garantir o seu projeto estético e cultural. Mas como conciliar esse projeto específico do teatro em grupo com as outras atividades que os seus integrantes estão envolvidos? Eis a questão! Ao mesmo tempo, é preciso pensar em como se estruturar para gerenciar esse trajeto entre o desejo e a vontade de se lutar pra essas conquistas. O longo percuso do grupo – 35 anos – em que a sua primeira etapa esteve mais próxima de um modo de atuação espontâneo, impulsivo, vamos chamar assim, bem próximo de um movimento multicultural, e os diferentes contextos históricos, exigiram, em cada momento, respostas diferentes. No momento a questão do gerenciamento e administração dos projetos de estudo, produção e difusão, exige planejamento coletivo, conjugação de impulsos com riscos mais calculados. A partir do Vau da Sarapalha o grupo teve que enfrentar um ambiente completamente diferente do que foi no começo, do mesmo modo que se considera o aparecimento da Gaivota na vida do grupo e o contrato posterior com a Petrobras uma oportunidade de se olhar mais cuidadosamente para os aspectos da gestão e administração. Essa última experiência levou o grupo a se apropriar um pouco mais de ferramentas de planejamento e gestão, em que as divisões de tarefas, responsabilidades, direitos e deveres, desloca esse exercício para o campo técnico, menos espontâneo, vamos dizer assim. Ou seja, menos afetivo, mais racional, de modo a oferecer oportunidades de crescimento individual e coletivo. De qualquer modo, a divisão de tarefas sempre considerou o interesse e a habilidade de cada integrante. Esse tema é um campo vasto ainda a ser percorrido, experimentado, considerando que no cenário atual, o trato com a gestão e a política, exige cada vez um domínio de conhecimento, técnicas, aptidões que possam se adequar as características do grupo e o teatro que se pretende fazer.

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FERNANDO Quais são as principais fontes de financiamento do grupo? BUDA Com o Vau da Sarapalha, a forma de sustentação das atividades do grupo se dava principalmente através do pagamento das apresentações e também das oficinas realizadas. Lembrando que a sede e o projeto de arte educação, nesse período de circulação do espetáculo eram mantidos – e continua – pela Escola Piollin, atualmente Centro Cultural, e é mantido, em grande parte, por editais públicos e parcerias institucionais, somado o trabalho de mobilização de outras fontes de recursos: aluguel de salas, brechó, shows beneficentes, vendas de espetáculos. Antes, na primeira etapa de fundação do grupo, as atividades eram feitas com algum apoio institucional, renda dos eventos e muita ousadia. A Gaivota, outro exemplo, foi montada com recursos do edital Myriam Muniz 2006. Depois, a venda do espetáculo, a participação em festivais, circuitos foram as principais fontes de renda do grupo.

FERNANDO Qual o ponto de partida para os processos criativos? Qual 138

é a “chama” inicial para que o próximo espetáculo seja criado? BUDA São diferentes os motes, e cada trabalho teve origens e percursos diferentes. A Gaivota, por exemplo, foi um acontecimento absolutamente inesperado na vida do grupo. Surgiu de um encontro casual de dois atores do grupo e um convidado, em seguida partiu-se para escolha e contatos com um diretor convidado – no caso, Haroldo Rego. O fato é que esse espetáculo trouxe um novo processo, referências inteiramente diferentes do que o grupo tinha experimentado desde a sua origem, até por conta mesmo do longo percurso de existência do grupo e as mudanças ocorridas no teatro e os novos processos consquistados. No fundo, esses processos guardam alguma semlhança, na medida em que exigem, ou dependem, da presença orgânica do ator. Vau, por exemplo, foi uma idéia acalentada por Luiz durante muito tempo, desde a época em que ele estudava Letras na UFPB, na década de 70. O contato com o teatro proposto por Eugênio Barba deu novo impulso e materialização da idéia, que pôde finalmente ser encenada em 1992.


FERNANDO Qual a duração dos processos de construção dos espetáculos? E qual a duração média das temporadas de estréia? BUDA Entre três a quatro meses até a estréia do espetáculo. Mas, o processo continua até “morte” do espetáculo. Nesse percurso, os ensaios, estudos, discussões são frequentes. Falar em temporada, no Piollin, é falar também de algo inusitado, considerando principalmente Vau da Sarapalha e o pequeno repertório do grupo. Sem falar no ineditismo do Vau, a Gaivota esteve bem além da média das produções dos grupos da região, ou seja, temporada de três meses na cidade, seguido de circuito pelo país, a partir de oportunidades como Palco Giratório, Circuito Cultural Caixa, etc. É importante lembrar que Vau, na temporada de estréia, ficou um pouco mais três meses em cartaz no galpão do Piollin, algo inusitado pro estado e pra região na época, quando algumas produções locais arriscavam um mês de temporada, no máximo. Retábulo, nesse início de apresentações, segue percurso idêntico as duas outras produções, com temporada de três meses na cidade de João Pessoa, antecedido de um circuito por três cidades do Nordeste, que são Fortaleza, Natal e Salvador.

FERNANDO Pelo tempo de vida de Vau da Sarapalha, é evidente que o grupo tem uma clara perspectiva de manutenção do seu repertório, né? Como vocês veem isso? BUDA Mais do que manter um repertório, o grupo vive uma busca para (re)encontrar, e reafirmar projetos, que acredita-se que pode comportar mais de um projeto com diferentes linhas de ação. Essa é uma questão instigante nesse momento para todos, tanto no aspecto do teatro que pode fazer, como na forma de gerenciar esses projetos.

FERNANDO O grupo tem alguma preferência por tipo de espaço cênico? BUDA Nessa longa trajetória do grupo cada nova experiência indicou diferentes opções. O certo é considerar que a opção pelo espaço é uma etapa posterior ao espetáculo, que vai acontecer no seu determinado tempo.

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FERNANDO Como é a relação em geral com a dramaturgia? A Piollin trabalha normalmente com textos prontos ou com criação da dramaturgia em sala? Existe alguém que dá o tratamento final aos textos? BUDA Também aí, surgiram experiências múltiplas: dramaturgia pronta com poucas modificações; adaptação de contos – Sarapalha e Retábulo de Santa Joana, respectivamente Guimarães Rosa e Osman Lins. Nesses dois últimos, o tratamento final coube a Luiz Carlos. Em A Gaivota (alguns rascunhos), o resumo do texto, mantendo-se na íntegra o material escolhido, foi feito por Haroldo Rego, que também fez a sugestão do autor/texto.

FERNANDO Como o grupo lida com a relação público/criação artística? Existe alguma influência? BUDA Essa ligação se dá no processo de apresentação/manutenção do trabalho. Pode-se dizer que exerce alguma influência, desde os primeiros ensaios abertos, par140

ticulamente com a Gaivota, Retábulo, mas também Vau. Não é possível dizer em que medida se dá essa relação ou exemplificar mais profundamente, vamos dizer, como isso acontece. Mas pode-se afirmar que o ponto de vista do público, após os debates, é referência importante para o processo de criação.

FERNANDO O grupo costuma ter a prática de ministrar oficinas? Qual o tipo de relação que elas têm com a prática do grupo, e com a sua estética? BUDA Com o Vau da Sarapalha, era comum a realização de oficinas do grupo nas muitas cidades visitadas. A Gaivota também foi marcada por um processo rico de troca com os grupos nos lugares em que se apresentava. Essa é uma área importante de atuação do grupo, pois reorganiza o pensamento, contribui para sistematizar materiais do processo criativo.

FERNANDO O grupo tem preocupação com o registro de suas atividades, seja escrito, fotográfico ou videográfico? Como?


BUDA Essa área ainda não é compatível com a trajetória e importância do grupo. Ainda são precárias as condições de armazenamento do acervo, embora haja um cuidado com o registro. Por iniciativa do núcleo gestor do Centro Cultural Piollin, foi realizado um projeto com Departamento de História da UFPB, no sentido de organização do acervo de todo o Piollin, inclusive com entrevistas feitas pelos pesquisadores. Concluída a primeira etapa desse projeto, com o levantamento e catalogação desse acervo, há um esforço desse núcleo para continuidade do trabalho, com as etapas seguintes: guarda do material, digitalização do acervo e, quem sabe, publicação desse material, acrescido de análises atualizadas sobre o trabalho de criação e ação sócio-cultural do Piollin.

FERNANDO Como se dão as relações do grupo com outros grupos? Em movimentos? Em projetos? Como são as parcerias? BUDA O diálogo com os grupos e outros núcleos artísticos marcaram a história do grupo e da organização como um todo, desde os primeiros anos de fundação, passando pelo a presença do Vau em todos os estados brasileiros, até desembocar nessa fase do teatro chamado contemporâneo, em que a busca por um processo de trabalho colaborativo é marcante. As trocas acontecem em formas de oficinas, vivências, mas também na vinda de grupos para apresentação e visita aos espaços do Piollin para conhecer de perto o seu trabalho. Essa área de uso dos espaços experimenta o que o Teatro Vilha Velha chama de grupos residentes. É uma experiência nova que o Centro vivencia, na crença de que deve-se apostar na colaboração entre alguns grupos da cidade, principalmente como forma de sustenção do seu projeto cultural e manutenção dos espaços físicos.

FERNANDO E enquanto articulação política? BUDA O grupo trabalha para responder as muitas demandas de manutenção do seu projeto nas áreas do estudo, da criação e gestão/administração. Mesmo com a tarefa gigantesca que tem para reorganização do seu tempo e espaço de trabalho, o grupo discute e participa, em alguns momentos, formas de articulação política no âmbito

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local e regional. É visível as participações mais individuais de integrantes na cena política local do que propriamente uma deliberação coletiva. É patente que essa participação, tanto coletiva como individual pode ser maior, na medida em que o grupo consiga atender as demandas de continuidade de seus projetos. Quanto mais forte internamente, melhor se apresenta nos espaços de articulação política. De qualquer modo, é necessário ressaltar a sua participação nos fóruns locais e na tentativa de articulação na Região Nordeste, com experiência que ficou conhecida como Lapada.

FERNANDO Como a Piollin lida com o fato de ter criado um dos espetáculos mais importantes do teatro contemporâneo brasileiro? BUDA Esse projeto teve repercussão muito forte na vida do grupo e na vida particular e profissional de cada integrante do espetáculo, e também no teatro que se fazia e que se fez na Paraíba, a partir do acontecimento Vau. O espetáculo disse com muita força para quem faz teatro na Paraíba: é possível fazer teatro e viver aqui! Não somente em João Pessoa, mas em outras localidades, são cada vez mais fortes as pre142

senças de grupos de teatro com projetos consolidados ou em vias de consolidação no Nordeste e em outras regiões do país, evidentemente que por outras razões, de mudança da hegemonia que uma ou outra região exercia – e ainda exerce, mas não tanto – na produção cultural do país. Essa realidade, de mudanças de referências, de perspectivas de descentralização na produção cultural do país, não eram tão visíveis no período em que surgiu Vau da Sarapalha no cena do teatro brasileiro.

FERNANDO Para finalizar, qual é hoje a grande questão para a Piollin, qual é o tema que está no topo da pauta do grupo? BUDA Que grupo somos nós, que grupo queremos? Mas, principalmente – ou cojuntamente? – como fortalecer a relação teatro e público, em um estado (e país também) em que um percentual mínimo da população tem acesso aos espetáculos/ produção?




Quem tem Boca é pra Gritar João Pessoa (PB) Entrevista realizada por videoconferência, em 22 de maio de 2012. 145

FERNANDO YAMAMOTO Pra gente começar, Humberto, fala um pouquinho sobre como é que o Quem tem Boca surgiu. HUMBERTO LOPES Em 2012 a gente está completando em 25 anos de estrada, e o grupo surgiu em Campina Grande em um período em que o teatro de rua ainda não era um movimento muito forte no Brasil. Tinha algumas representações como o Tá na Rua, o Ói Nóis, o Imbuaça, mas não era como hoje, o teatro de rua cresceu muito no Brasil em termos de quantidade e qualidade. Naquele período, em Campina Grande, nós tínhamos acabado de sair de um curso de iniciação no colégio onde eu estudava e não queríamos fazer teatro em palco italiano, porque estávamos influenciados pela organização política, eu já era militante da organização esquerda e foi nesse contexto histórico que a gente surge, com a intenção de fazer teatro de rua. Ou seja, a gente já surgiu constituindo um nome e o nosso objetivo era fazer teatro de rua, e esse é o trabalho que a gente está fazendo até hoje. Evidentemente que


nessa história nós fizemos vários espetáculos em palco italiano, mas a nossa pesquisa é pesquisar as possibilidades da rua.

FERNANDO Conta sobre a trajetória do grupo, incluindo essa migração de Campina Grande para João Pessoa, apontando alguns dos momentos mais importantes do grupo. HUMBERTO O primeiro espetáculo do grupo era um texto chamado Trupizupe o raio da silibrina. Um pouco antes da estreia nós estávamos participando do Festival de Inverno em Campina Grande, bem no início, e tivemos a oportunidade de ver – naquele tempo não tinha internet, a informação era muito difícil – uma apresentação do Imbuaça com um espetáculo de rua. Até então a gente queria fazer uma pesquisa de teatro de rua, muito influenciado pelas coisas do Augusto Boal, estudava aquilo, mas a gente não sabia exatamente como fazer. Tínhamos feito algumas experiências antes, mas quando viu o Imbuaça a gente teve um clareamento de como era aquele teatro de rua, de roda. Aí fizemos o primeiro espetáculo, a recepção foi bacana, e 146

fomos fazendo e aprendendo. De repente decidimos montar um Brecht na rua e fizemos A exceção e a regra. Colocamos um tablado, iluminação, mas vimos que não era aquilo que a gente queria fazer. A gente queria fazer um teatro que não estabelecesse esse tipo de relação mais convencional, embora o teatro de rua seja extremamente antigo e milenar. A gente sempre refletia na questão de como iria fazer, o que iria falar, até que a gente conseguiu um espaço físico na Universidade Federal da Paraíba, onde a gente se estabeleceu. Isso possibilitou nossa pesquisa, porque a gente teve um espaço onde poderia trabalhar, deixar as coisas lá, voltar, continuar. Começamos a criar uma certa visibilidade e passamos a participar do Movimento Nacional de Teatro de Grupo, lá no seu surgimento, no comecinho, no encontro “zerinho” em São Paulo, depois o “um” em Campinas, onde a gente conviveu com o pessoal do LUME, trouxemos eles pra Campina Grande, fizemos uma amizade grande com o Burnier e sofremos influência de todo mundo que estava participando daquele movimento, fazendo teatro, vendo os espetáculos das pessoas, as pessoas vendo os nossos. A convivência com grupos como o Tá na Rua, do Amir Haddad, foi fatal


pra gente estar sempre mudando o processo, reelaborando, discutindo. A gente conheceu muita gente que também estava fazendo teatro de rua, o Galpão, o Imbuaça. Aqui a gente praticamente só via espetáculo no Festival de Inverno e ficávamos meio ilhados, sem informação. De repente a gente começa a conviver com esses artistas e isso foi extremamente significativo desenvolver o tipo de teatro de rua que a gente queria fazer. É evidente que, nesses processos, com a convivência com o Burnier, por exemplo, eu comecei a trazer material pro grupo, coisas do Barba, do Grotowski, que pra gente era muito recente. Eu cheguei a fazer uma oficina, as próprias conversas que a gente tinha, isso tudo era um caldeirão de influência no trabalho do Quem tem Boca é pra Gritar. É claro que quando você vê um espetáculo do Galpão e um do Quem tem Boca é pra Gritar eles nem se parecem, mas havia influência no sentido de compreender a verticalidade e a horizontalidade da rua, o movimento, o ritmo, etc. Toda essa convivência foi extremamente salutar para o Quem tem Boca. Depois teve dois encontros em Ribeirão Preto, o movimento estava mais estruturado, e houve uma paralisação desse movimento, mas nós já tínhamos um reconhecimento nacional por conta do nosso trabalho. O que a gente tinha e tem muito claro até hoje é o nosso compromisso com a tentativa de desenvolver um processo de construção de espetáculo que tenha a presença das raízes nordestinas, e que isso esteja antenado, evidentemente, com o universal. Nossa preocupação sempre foi essa. No nosso aniversário de vinte e cinco anos vamos montar um Shakespeare, dentro desse universo, dessa mistura, dessa relação do quão popular, quão erudito, quão nordestino seria um Shakespeare se estivesse vivo hoje.

FERNANDO Nesses encontros de Ribeirão, começo da década de 90, vocês ainda estavam em Campina ou já tinham ido pra João Pessoa? HUMBERTO Nós ainda estávamos em Campina Grande, mas desenvolvendo uma série de trabalhos em João Pessoa. A gente passava muito tempo lá, as pessoas começaram a convidar a gente pra ir ficando mais, conseguiram um espaço do Estado pra gente ocupar e trabalhar porque a gente já tinha um em Campina Grande e precisava disso pra continuar a trabalhar. Aí a gente veio pra João Pessoa, porque as informa-

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ções são mais precisas, o movimento sempre se concentra mais nas capitais, embora Campina Grande, já naquela época, era bem agitada. Nos mudamos todos pra João Pessoa, passamos por um processo muito difícil de estruturação. A gente tinha recebido um negócio que se chamava “estímulo à criação de grupo”, algo assim. Esse projeto dava uma grana para os grupos trabalharem. Foi com esse dinheiro que nós compramos uma ruína no centro histórico que hoje é o galpão do Quem tem Boca é pra Gritar. Ele foi reconstruído durante cinco anos, porque a gente conseguia uma grana e fazia um pedaço, conseguia outra grana e fazia outro pedaço. Durante essa dedicação à construção do galpão nós praticamente paramos de montar espetáculo. Na realidade a gente tinha decidido um pouco antes da aquisição do galpão – ele foi só um gancho – que íamos passar um tempo sem aceitar convites pra participar de festivais, pra gente poder reorganizar o nosso trabalho, pois estávamos viajando muito com os espetáculos e tínhamos perdido o foco do que a gente queria, que era a pesquisa, buscar nossa forma de representar. A gente montou expressionismo alemão, commedia dell’arte, e nosso objetivo com as montagens de espetáculos era dar 148

outros voos, buscar novas possibilidades para nossa pesquisa. Quando a gente entrou nessa de viajar muito, começou a não ter tempo para fazer isso, e aí a gente resolveu parar pra isso e aproveitar para trabalhar na reconstrução do galpão, que hoje é a nossa sede e é extremamente importante, porque ela está situada no centro histórico de João Pessoa, e a gente tem o privilégio de não pagar aluguel, coisa que ficaria muito difícil de manter. Hoje tem cursos oferecidos para a população do bairro que é muito carente. A gente pretende ampliar esse projeto com cinema e outras coisas, mas a sede não está totalmente terminada, ainda faltam umas coisinhas pra poder ter uma estrutura melhor.

FERNANDO Esses cursos que vocês oferecem são permanentes? HUMBERTO Esse é o terceiro ano do curso. Os dois primeiros foram feitos com um apoio que a gente conseguiu, já esse terceiro a gente vai oferecer gratuitamente e vamos assumir isso, para não perder a continuidade, porque a gente pretende mantêlo. No primeiro ano tinha vinte pessoas, no segundo trinta e nesse tem quase oitenta.


Agora a gente vai dar um curso mais voltado pro teatro de rua e pra ideologia do teatro de grupo. A gente tá montando um espetáculo pra comemorar os 25 anos, que é o Shakespeare com suco de laranja, que nem é uma adaptação do Shakespeare, nem é um Shakespeare original. Nós pegamos Sonho de uma noite de verão e A tempestade e vamos fazer o espetáculo desses dois textos. A gente não sabe ainda como vai ser, temos uma parceria com a universidade para uma acessória teórica e estamos em laboratório com a construção desse espetáculo. Estamos apresentando o Cancão, Malazarte e Trupizupe, que vem sendo retrabalhado a cada momento. Na época da construção do galpão nós tivemos uma cisão no grupo em que cinco dos nove que éramos resolveram sair, e resolvemos dar prioridade ao galpão. Isso fez com que as pessoas fossem desenvolvendo outros trabalhos, e quando a gente achou que tinha concluído o galpão, não tinha mais grupo nenhum. Foi aí que algumas pessoas começaram a ver a história do grupo, o curso de teatro da UFPB tinha acabado de surgir, alguns me procuraram pra reestruturar o grupo, e fomos retomando devagar. Montamos o Cancão, Malazarte e Trupizupe, recebemos alguns apoios financeiros da lei estadual e do Myriam Muniz, que foram fundamentais pra gente conseguir fazer esse trabalho naquele momento, hoje somos oito pessoas extremamente envolvidas, que tiveram paciência.

FERNANDO Como é que é essa rotina do grupo hoje em dia? HUMBERTO Nós trabalhamos todos os dias, mas alguns têm a universidade, e outros tem outras atividades. Então, a gente trabalha segunda e quarta pela manhã, terça, quinta e sexta nós trabalhamos à noite. Nós queríamos trabalhar sempre nos mesmos horários, mas por causa de outras atividades dos integrantes tem que ser assim. Nós estamos com um projeto de estruturação do galpão, algumas pessoas vão desenvolver cursos a partir de projetos pessoais para serem desenvolvidos no galpão. Por exemplo, nós temos dois brincantes de cavalo marinho no grupo que vão dar oficina. Neste momento nós estamos fazendo os primeiros trabalhos de improvisação para o Shakespeare com suco de laranja, nas sextas ensaiamos o Cancão, Malazarte e Trupizupe que está sempre em atividade, vamos estar em São Paulo com ele agora em

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outubro, e durante a semana desenvolvemos outros trabalhos, como a terça-feira em que é específico para os seminários internos sobre temas que a gente ache importante para a montagem do espetáculo.

FERNANDO O grupo provê sustento pra os integrantes? HUMBERTO A gente consegue alguns recursos, que não são os ideais, através dos cursos. Esse é o primeiro que não tem financiamento, mas todos os outros tiveram, os professores foram remunerados. Algumas atividades pessoais, como esse curso do cavalo marinho, são feitas no galpão, com a estrutura que o galpão oferece, e essa é a nossa contrapartida para o ator, para ele conseguir recursos. Algumas parcerias que a gente faz, como a que a gente fez com a universidade, em que a gente vai conseguir duas bolsas para dois atores que são alunos da universidade e a intenção é sempre desenvolver nossos projetos. Nós estamos desenvolvendo um projeto com o SEBRAE, para uma campanha que eles querem fazer nas empresas, e a gente está montando um pequeno espetáculo que vai permitir pagar os atores o ano inteiro. 150

FERNANDO Existem alguns integrantes que vivem exclusivamente do grupo? HUMBERTO Sim. Temos dois atores que vivem somente dessas atividades.

FERNANDO E o grupo tem essa perspectiva de prover o sustento de todos os integrantes? HUMBERTO Esse é o nosso projeto. Nós estamos agora concluindo o planejamento 2013, e estamos negociando algumas coisas com algumas empresas, organizando um projeto pra mandar pra Lei Rouanet. O curso de teatro do galpão vai ser bancado sem perspectiva de interrupção pela Alpargatas, e nós estamos fechando outras parcerias que vão possibilitar atividades como a Sessão Pôr-do-sol, que vai exibir filmes pra garotada do bairro, e outras parcerias pra fazer com que os atores que ainda não estão se dedicando completamente ao grupo possam se integrar também. Estamos buscando outros meios que não só os editais.


FERNANDO Falando um pouco dos processos criativos de vocês: em geral, qual o ponto de partida para os processos? HUMBERTO Às vezes um ator chega com um texto que achou interessante ou cita algum ator que acha que seria bacana trabalharmos com ele. Aí, quando todo mundo toma conhecimento e acha bacana, a gente tem um primeiro contato com a obra, vê se é aquilo que a gente vai montar e faz uma leitura fria. Depois a gente guarda o texto, vai pro galpão e improvisa em cima da memória, daquilo que a gente se lembra da leitura que fez, do que ficou marcante. O processo começa dessa forma. Aí a gente vai vendo onde nós sentimos a necessidade do texto entrar, onde ele precisa ser mais claro, e as improvisações vão sempre puxando o texto e estabelecendo-o. Nesse processo, as improvisações também vão exigindo que tipo de treinamento específico a gente precisa fazer para aquele trabalho, se a gente vai trabalhar com o cavalo marinho, o teatro oriental ou o circo, por exemplo. Aí vamos mesclando o treinamento, as improvisações, o próprio texto, a linha de trabalho, se vai ser uma linha da commedia dell’arte ou algo mais experimental, e vamos levantando, as coisas vão se juntando e se estabelecendo dentro da necessidade. A centelha do trabalho, desde há alguns anos, vem sendo assim. Agora a gente decidiu que iríamos montar um Shakespeare; lemos alguns, pegamos os dois que eu citei e fomos fazer as improvisações. Estamos neste momento num processo de estabelecimento de texto, de estudo da música que vai compor o espetáculo, estamos estudando música barroca, renascentista, Tom Zé, etc. É um pouco assim.

FERNANDO Como é que é a relação de tempo de processo? HUMBERTO A gente normalmente nunca estabelece isso porque os nossos processos vão sendo estabelecidos pela sua necessidade. O Cancão, Malazarte e Trupizupe precisou de dois anos para ser montado, para o Shakespeare com suco de laranja a gente acredita que ano que vem está pronto. Nenhum espetáculo é montado em menos de um ano. Esse é mais ou menos o processo que a gente desenvolve até que as coisas estejam estabelecidas.

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FERNANDO Você falou um pouco sobre o histórico dos espetáculos, e é claro que vocês têm uma perspectiva de continuidade de repertório. Como é isso pro grupo? Quando um espetáculo indica que deu seu tempo, o que determina que um espetáculo deva sair do repertório, como vocês veem isso? HUMBERTO Antes dessa cisão que houve no grupo, nós estávamos juntos há dezessete anos, e estávamos com oito espetáculos em repertório. Com esse racha, a gente começou praticamente do zero. Hoje nós temos um espetáculo e o Shakespeare com suco de laranja vai ser o segundo espetáculo de carreira, porque nós temos outros trabalhos que não fazem parte do repertório. Até a cisão nós não tínhamos matado nenhum espetáculo. Quando a gente tinha alguma discordância a gente ia lá, mudava alguma coisa e continuava com ele no repertório.

FERNANDO Em que ponto a preocupação com o público, seja como você entenda o que é preocupação com o público, interfere nos processos 152

de criação de vocês? HUMBERTO Pra você ter uma ideia, agora mesmo a gente tá fazendo um Shakespeare trabalhando com cavalo marinho, coco de roda, teatro nô e kabuki. O que a gente faz é estudar esse emaranhado de coisas e depois ver como isso vai se situar na rua. Por exemplo, até que ponto o enraizamento que o LUME trabalha é o enraizamento do brincante, do guerreiro, do lanceiro de maracatu? Pra gente essas duas coisas são a mesma coisa. A diferença é que lá tem um estudo, uma elaboração teórica e prática, e o do lanceiro tem só a intuição. O que a gente faz no laboratório de pesquisa é tentar aproximar essas duas coisas. É muito importante que a gente estude e compreenda o que estamos fazendo, mas no espetáculo, na prática, esse processo vai estar muito mais próximo da pisada do lanceiro maracatu, porque aí é que eu vou conseguir reproduzir o enraizamento do brincante e poder estabelecer qual o jogo vai pra rua.


FERNANDO O grupo está prestes a completar vinte e cinco anos de uma história riquíssima. Vocês têm uma preocupação com registro dos processos, com o registro dessa história? HUMBERTO Isso é uma coisa que nós viemos nos preocupar muito depois. Infelizmente essa preocupação é muito recente, porque quando a gente começou a fazer teatro a gente queria fazer e ir em frente, e fomos perdendo muita coisa. Hoje, como algumas pessoas do grupo passaram pela universidade e trouxeram essa preocupação, eu começo a achar que isso é também muito importante. No Shakespeare com suco de laranja a gente tá tentando fazer um resumo desses anos todos da nossa pesquisa. Vai ter um pouco de circo, um pouco de tudo que a gente pesquisou. Por enquanto são muitos escritos. Perdemos muita coisa, mas eu acho que a gente vai conseguir trazer um pouco a vivência desses anos todos e tentar sistematizar em alguma publicação da pesquisa do grupo nesses vinte e cinco anos.

FERNANDO Como é que é a relação do Quem tem Boca com outros grupos? Vocês costumam promover espaços de troca prática, estética, política? HUMBERTO A gente sempre teve muita preocupação com essas trocas e essas vivências. Tanto é que a gente organizou o primeiro encontro do movimento de teatro de rua do Nordeste com o intuito de reagrupar esses grupos pra que a gente pudesse voltar a conversar. Nós passamos um período fora e estamos tentando retomar isso. Agora nós estamos começando a estabelecer essas trocas. Normalmente nós recebemos grupos no nosso galpão, e às vezes nós vamos também, como quando nós estivemos no Ceará em uma troca com o Teatro de Caretas, ou pessoal do Artimanha, que tá vindo pra uma troca com a gente aqui, em outubro nós vamos para São Paulo, pra fazer trocas e vivências com outros grupos e assim nós estamos, aos poucos, retomando.

FERNANDO Pra finalizar, Humberto: qual que é a grande questão pro Quem tem boca hoje?

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HUMBERTO A nossa grande preocupação, e conversamos sobre isso com muita insistência, é que começamos a fazer um tipo de teatro há vinte e cinco anos, passamos por todo um processo de final de ditadura, surgimento de editais, etc., e a nossa discussão hoje é que a gente não pode perder o trem da história, nem a evolução das coisas. A nossa preocupação é de como evoluir sem cair num modismo, numa forma, no sucesso. É lógico que queremos sucesso, mas não o da espetacularização. Eu sempre achei que meu trabalho com o grupo, como criador, como homem de teatro, é trazer uma contribuição, se possível, para a história. A grande discussão do Quem tem Boca hoje é: nós estamos há vinte e cinco anos na estrada, nós conseguimos acompanhar as coisas? Nós fazemos um teatro que está dentro dessa compreensão? Nós continuamos modernos ou estamos viciados em nós mesmos? O nosso maior patrimônio são as possibilidades que temos de desenvolver um trabalho coerente sem sermos panfletários, sem tomarmos partido, porque nosso partido é o teatro e nós vamos continuar sempre nessa pesquisa da possibilidade de desenvolver um teatro de rua que esteja antenado com a realidade e que, ao mesmo tempo, esteja 154

antenado com as classes menos favorecidas, sem ser demagógico nem panfletário.

FERNANDO Perfeito. Agradeço muito, pois é bastante importante pra mim ter vocês na minha pesquisa, o Quem tem Boca é um grupo que inscreveu o seu nome na história do teatro nordestino e brasileiro.




Ser Tão Teatro João Pessoa (PB) Entrevista realizada por e-mail com Isadora Feitosa Christina Streva, em 27 de setembro de 2012. 157

FERNANDO YAMAMOTO Contem-me a história do Ser Tão, desde o seu surgimento, passando pelos principais espetáculos e acontecimentos. SER TÃO TEATRO O Ser Tão Teatro é um grupo de pesquisa formado em 2007, a partir da reunião de alunos e profissionais das artes cênicas do Departamento de Teatro da UFPB. O grupo surgiu durante a montagem do clássico da dramaturgia brasileira Vereda da Salvação, de Jorge Andrade, que conquistou grande espaço na imprensa local por sua encenação vigorosa, abordando questões pertinentes ao contexto histórico, político e social, dialogando com a realidade atual. No ano seguinte, motivado pelos encontros do movimento Lapada, surge a I Mostra de Teatro de Grupo, como uma ação de militância do Ser Tão Teatro no sentido de contribuir para o intercâmbio artístico, a circulação e a articulação política entre os coletivos de


João Pessoa e outros coletivos do Nordeste. Entre os grupos que fizeram parte da história das mostras estão Clowns de Shakespeare (RN), TEA (PE), Bagaceira (CE), OCO Teatro (BA), Alfenim (PB), Bigorna (PB), Piollin (PB), Carroça de Mamulengos (CE), Brava Companhia (SP), Magiluth (PE) e Garajal (CE). Em 2009, propusemos um encontro estético com os Clowns de Shakespeare, por meio da montagem e circulação do espetáculo Farsa da Boa Preguiça, de Ariano Suassuna. A Farsa se tornou um espetáculo mambembe, com música ao vivo que, já em sua primeira temporada, circulou em praças públicas de sete estados nordestinos: Paraíba, Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas, Sergipe e Bahia. Após a circulação da Farsa pelo nordeste, foi dado o pontapé do processo de investigação do folguedo do Bumba-meu-boi e outras manifestações populares brasileiras, através de encontros com grandes artistas. Da experimentação na cena, do jogo dos atores e das entrelinhas da peça, fomos descobrindo uma dramaturgia viva e criamos uma fábula brasileira, que bebe na fantasia popular misturando música, comicidade e a teatralidade dos atores em cena manipulando bonecos, utilizando máscaras e pernas de pau. 158

FERNANDO Como é a rotina do grupo hoje? SER TÃO No momento o Ser Tão está com dois espetáculos em repertório, que são apresentados em festivais, mostras e eventos. Temos procurado conciliar as apresentações dessas peças, a organização anual da Mostra de Teatro de Grupo, o trabalho artístico necessário para a manutenção dos espetáculos, e a rotina administrativa do grupo.

FERNANDO Como vocês dividem o trabalho artístico do administrativo? Existe uma perspectiva/desejo do grupo sustentar seus integrantes? SER TÃO Atualmente, temos dedicado dias da semana exclusivos para o treintamento artístico, direcionado tanto à manutenção do espétáculo Flor de macambira, quanto à remontagem do espetáculo Farsa da boa preguiça. Em 2012, tentamos manter uma média de três dias da semana exclusivos para ensaios. Nem sempre isso deu certo. Muitas vezes as constantes viagens e a grande carga de demandas administrativas


acabaram prejudicando o tempo em sala de ensaio do grupo. Temos procurado também distribuir cada vez melhor as funções administativas entre todos os integrantes do grupo. No entanto, essa divisão ainda não é igualitária. Existe sempre aqueles integrantes que assumem mais funções e atribuições do que outros. A consultoria que realizamos com o Rômulo Avelar e o Marcio Nobre ao longo de 2012 foi um passo importante no sentido de mapear, compreender e distribuir as necessidades administrativas do grupo entre todos os seus integrantes. Atualmente, temos com uma de nossas principais metas conseguir sustentar todos os integrantes do grupo, para que eles possam se dedicar exclusivamente ao trabalho do Ser Tão,ao tanto artística quanto administrativamente.

FERNANDO Quais são as principais fontes de financiamento do grupo? SER TÃO Nossas fontes de financiamento são os editais para projetos específicos e a venda de espetáculos para festivais, mostras e eventos.

FERNANDO Qual o ponto de partida para os processos criativos, aquela primeira faísca para a definição do próximo trabalho? SER TÃO O Ser Tão tem como um de seus principais focos de investigação os clássicos da dramaturgia nacional, especialmente textos e autores que marcaram a história do teatro brasileiro nas décadas de 60 e 70, que são relidos e adaptados para a atualidade pelo grupo. Sendo assim, estamos constantemente investigando autores importantes desse período e obras que acreditamos que ainda tenham força e sejam relevantes nos tempos atuais. A partir dessa investigação literária, vamos tentando encontrar pontos em comum entre os autores, as peças e o grupo. Outro ponto de partida que vem se apresentando para o grupo são as manifestações populares brasileiras que vamos (re)conhecendo e nos apropriando ao longo dos processos, dos ensaios e dos encontros com parceiros que vamos encontrando ao longo da caminhada.

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FERNANDO Qual a duração média dos processos de construção dos espetáculos? E qual a duração média das temporadas de estréia? SER TÃO A duração média das três montagens do grupo foram de 4 a 8 meses entre pesquisa e ensaios. As temporadas de estreia geralmente duram dois meses, muito embora esse período possa se estender.

FERNANDO É possível definir a duração média de vida dos espetáculos? O grupo busca manter um repertório de espetáculos sempre? SER TÃO Ainda não temos parâmetros concretos para medir a duração média e vida dos espetáculos. Acreditamos que isso varia muito de espetáculo para espetáculo, embora tenhamos constantemente trabalhando no sentido de procurar manter sempre pelo menos dois espetáculos em repertório.

FERNANDO Depois de começar com o espetáculo de palco, Vereda da salvação, vocês partiram pra dois espetáculos seguidos na rua, Farsa da 160

boa preguiça e Flor de macambira. Isso aponta para uma preferência espacial que o grupo estabeleceu para si, decidindo especializar-se como grupo de teatro de rua, ou não? Como é a questão espacial pra vocês? SER TÃO A rua surgiu no caminho do Ser Tão, logo em nossa primeira turnê pelo interior do estado da Paraíba, ainda com o espetáculo Vereda da salvação, quando nos deparamos com a escassez de edificios teatrais nas cidades visitadas. Fomos para a rua para facilitar a circulação do nosso trabalho pelo interior do nordeste. A experiência de apresentar no espaço público, gratuitamente, e para todos os públicos, foi tão impactante para o grupo que resolvemos abraçar esse desafio e mergulhar na investigação do teatro popular. Isso não significa que nos consideramos um grupo de teatro de rua, nem que faremos todos os nossos espetáculos sempre para a rua. Ao contrário, temos o desejo de alternar montagens para espaços abertos, com montagens pensadas para espaços alternativos e espaços tradicionais.


FERNANDO Como é a relação em geral com a dramaturgia? O Ser Tão trabalhou até aqui com textos já existentes, mas sempre realizando uma intervenção dramatúrgica. Existe alguém que dá o tratamento final aos textos? SER TÃO Até agora o Ser Tão tem trabalhado com textos prontos, especialmente textos brasileiros das décadas de 60 e 70, que são adaptados durante o processo de ensaios. Existe sempre um profissional que fica responsável por essa adaptação. Em Vereda da salvação, primeiro espetáculo foi a própria diretora, Christina Streva, que adaptou a obra. Na Farsa da Boa Preguiça, segundo espetáculo do grupo em parceria com os Clowns de Shakespeare, você realizou a adaptação dramatúrgica da peça do Ariano Suassuna. Já no terceiro espetáculo, Flor de macambira, o grupo deu um passo à frente no que se refere à proposição dramatúrgica, em parceria com Rosyane Trotta, utilizando o texto da peça O Coronel de macambira como uma das referências para dar voz aos personagens, nem sempre utilizando literalmente as palavras do autor.

FERNANDO Como o grupo lida com a relação público/criação artística? Existe alguma influência? SER TÃO Não diretamente. A influência vem muito mais do tipo de projeto que decidimos colocar nos editais. Se vamos propor circulações por várias cidades, apresentando nas ruas e praças, pensamos textos que possam ser adaptados para o espaço aberto e para todos os públicos.

FERNANDO O grupo costuma ter a prática de ministrar oficinas? Qual o tipo de relação que elas têm com a prática do grupo, e com a sua estética? SER TÃO Sim. O Ser Tão tem constantemente ministrado oficinas nas cidades que visita em seus projetos, em festivais e mostras quando convidado, e mais recentemente na própria sede do grupo. As oficinas são elaboradas conjuntamente pelos integrantes e seguem o processo de investigação artística do grupo com a aplicação

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de exercícios e de práticas que foram sendo descobertas ao longo dos processos de montagem e de pesquisa dos espetáculos.

FERNANDO O grupo tem preocupação com o registro de suas atividades, seja escrito, fotográfico ou videográfico? Como? SER TÃO Sim. O grupo tem o hábito constante de registrar suas atividades. Formas de registro são: blog com textos dos integrantes sobre os processos criativos, textos de registro durante as turnês de circulação, filmagem e fotografia de ensaios e apresentações, clippagem de material na mídia, críticas e reportagens sobre o grupo. Em 2011, o Ser Tão publicou seu primeiro livro EM3ATOS - SER TÃO TEATRO, com um apanhado de textos, críticas e outras reportagens sobre os quatro primeiros anos de trajetória do grupo.

FERNANDO Como se dão as relações do grupo com outros grupos? Em movimentos? Em projetos? Como são as parcerias? 162

SER TÃO O Ser Tão tem um projeto específico focado justamente em promover anualmente o intercâmbio com outros coletivos teatrais, que é a Mostra de Teatro de Grupo, que já teve quatro edições. Durante o evento, os integrantes do Ser Tão passam uma semana com os grupos convidados, conhecendo seus repertórios, realizando trocas artísticas, debates e mesas redondas. Esse projeto tem sido fundamental e marcante para o grupo e o intercâmbio tem, muitas vezes, se estendido para muito além do evento. Além disso o grupo participa dos intercâmbios promovidos pelo Palco Giratório na cidade de João Pessoa, e procura utilizar todas as oportunidades que surgem nas turnês e nos festivais para realizar trocas artisticas com outros grupos teatrais.

FERNANDO E enquanto articulação política? SER TÃO Ainda não conseguimos estabelecer uma prática organizada de articulação política.


FERNANDO Para finalizar, qual テゥ hoje a grande questテ」o para o Ser Tテ」o? SER Tテグ A sustentabilidade e o gerenciamento coletivo.

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03

Rio Grande do Norte



Teatro de Grupo no RN e os desafios da sustentabilidade Dr. José Sávio Oliveira de Araújo Professor e pesquisador do CENOTEC/DEART/UFRN

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Pretendo apresentar aqui uma breve contextualização, no Rio Grande do Norte, acerca de um formato de organização de coletivo teatral, que se convencionou chamar de “Teatro de Grupo”, tecendo algumas considerações acerca desta modalidade recorrente no Brasil e no mundo, e traçando alguns contrapontos entre este formato de organização teatral e alguns aspectos que incidem na sua sustentabilidade e dimensão política. Grupo, cia ou bando? Tenho o hábito de comentar, em oficinas e palestras, que para tentar entender a ideia de Teatro de Grupo, podemos comparar essa concepção à noção de bando. No bando há um líder e os seguidores. Uma vez que o líder aponte uma direção, cabe aos seguidores cumpri-la, do contrário, se instalará uma disputa pelo poder associado a essa liderança, cabendo ao vencedor o bônus e o ônus de continuar indicando o percurso do seu coletivo. Desse modo, chamo a atenção dos meus interlocutores para


a dimensão política que caracteriza o formato organizacional de Teatro de Grupo, dimensão esta que me parece ser o traço mais definidor desse formato de organização teatral. Essa dimensão política, aliás, origina-se em outro traço marcante deste formato de coletivo teatral: a independência em relação aos modelos de organização teatral de caráter comercial e gestão centralizada, simbolizado pela “Cia Teatral”, cujo gerenciamento caberá ao proprietário ou sociedade instituída com fins específicos, em geral exercida por um ator, atriz, diretor ou dramaturgo associados a um produtor e/ou financiador, com um elenco formado por pessoas contratadas para uma determinada empreitada e pautando as escolhas de seu repertório mais pela possibilidade de retorno comercial que pela ousadia na investigação de novas linguagens e tendências. Já o debate em torno do modelo brasileiro de teatro de grupo teve seu primeiro grande conclave durante o 1º Encontro Brasileiro de Teatro de Grupo, que aconteceu na cidade de Ribeirão Preto, SP, em 1991. Organizado e sediado pelo Grupo Fora do 168

Sério (SP), o evento contou com a presença alguns dos grupos mais importantes da recente história do teatro brasileiro, como o Ventoforte, do mítico Ilo Krugli (SP), Parlapatões (SP), Galpão (MG), Ponto de Partida (Barbacena, MG), LUME (Campinas, SP), Imbuaça (SE), Sobrevento (SP), Oi Nóis Aqui Traveiz (RS), Oikoveva (RJ) e Teatro de Anônimo (RJ). O RN foi representado pelo Grupo Estandarte de Teatro, além das presenças de Marcos Bulhões e Danilo Guanais, que, na época, participavam da Stabanada Cia de Repertório. Como palestrantes, o encontro contou ainda com as colaborações de Fernando Peixoto e Gianfrancesco Guarnieri. Naquela ocasião, na condição de integrante do Grupo Estandarte, tive o prazer de conferir o teor e a temperatura dos debates, que esquentavam sempre que alguém ousava defender conceitualmente o que deveria ser “Teatro de Grupo”. Porém, em meio ao calor dos debates, alguns consensos podiam ser assinalados em torno do conceito de “Teatro de Grupo”:


• independência em relação aos padrões praticados pelo chamado “teatro comercial”; • necessidade dos grupos de articularem os meios necessários para promover a formação teatral de seus componentes; • desenvolvimento de novas investigações teatrais no seio destes coletivos; • democratização do acesso ao teatro, como um bem cultural importante para o pleno exercício da cidadania. Retomando as impressões que aqueles debates produziram sobre minha visão de teatro e reformulando algumas ideias ali semeadas, penso que, até hoje, não saberia enunciar uma definição precisa de “Teatro de Grupo”, embora essa modalidade seja amplamente reivindicada por um imenso contingente de coletivos teatrais espalhados por esse país. O que posso afirmar é que um coletivo teatral é um território complexo, tanto pelo aspecto multidisciplinar dessa linguagem artística, que acarreta, também, diversidade de especialidades na tessitura das atribuições de cada um, bem como no que concerne ao aspecto da diversidade cultural e psicológica que caracteriza o espectro dos perfis de seus componentes, produzindo tensões e debates que, se não resolvidos pela via do Deus ex machina de suas lideranças, ou de suas urgências, exigem muita dedicação na construção de acordos e combinados, necessários à manutenção dos elementos identitários que caracterizam o grupo e reforçam os laços de pertencimento a ele associados. Aspectos da sustentabilidade do teatro de grupo no RN A relação abaixo contém uma amostragem de coletivos teatrais, em atividade no RN, em 2012, ilustrando a diversidade no formato desses coletivos e suas denominações: A Companhia Burlesca de Espetáculo - Grupo Artes e Traquinagens - Natal APOTB – Associação Potiguar de Teatro de Bonecos do RN - Natal

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Arkhetypos Grupo de Teatro - Natal ArTEA – Artimanha Trupe de Experiências Artísticas - Currais Novos Associação Avoante de Cultura - Currais Novos Associação Grupo de Teatro Facetas, Mutretas e outras histórias - Natal Bololô Cia Cênica - Natal Cia A Máscara de Teatro - Mossoró Cia Bagana de Teatro - Mossoró Cia Cênica Ventura - Parnamirim Cia de Teatro Detentos da Arte - Mossoró Cia Empório Dell’Arte - Currais Novos Cia FOCARTE de Teatro - Mossoró Cia Manacá de Teatro - Natal Cia Pão Doce de Teatro - Mossoró Cia Teatral Monicreques - Natal Cia. Tropa Trupe de Arte - Natal 170

Coletivo Artístico Atores à Deriva - Natal Companhia Cultural Ciranduís - Janduís Companhia de Teatro Amigos da Arte - Marcelino Vieira Companhia Escarcéu de Teatro - Mossoró Companhia Teatral Alegria, Alegria - Natal Companhia Teatral Arte Viva - Santa Cruz Elas & Cia Teatral - Natal Grupo Arruaça de Teatro Amador - Mossoró Grupo Arte e Vida - Major Sales Grupo Brincarte de Teatro - Natal Grupo Clowns de Shakespeare - Natal Grupo de Teatro de Tenente Ananias - Tenente Ananias Grupo de Teatro Faz e Fica - São Tomé Grupo de Teatro O Pessoal do Tarará - Mossoró Grupo Estação de Teatro Natal


Grupo Estandarte de Teatro - Natal Trotamundos Cia de Artes - Natal Dos 34 coletivos tetrais citados nessa amostragem, abrangendo um total de 11 municípios do RN, apenas 12 trazem o termo Grupo em sua denominação, no entanto, muitos dos coletivos teatrais que se autodenominam “grupos teatrais” não estão necessariamente pautados nas dimensões políticas que caracterizam o “Teatro de Grupo”, haja vista que o termo “grupo de teatro” muitas vezes é apenas utilizado como uma espécie de sinônimo de coletivo teatral. O mesmo ocorre com o termo “Cia”, ou “Companhia”, que, ao pé da letra, poderia indicar uma organização empresarial por trás da atividade teatral, mas que, na maioria dos casos, apenas busca assinalar o caráter empreendedor dos coletivos assim denominados, sem necessariamente significar uma ruptura, ou afinidade, em relação aos aspectos com os quais se possam sublinhar as peculiaridades do Teatro de Grupo. No tocante à diversidade que caracteriza esses coletivos teatrais, as diferenças mais acentuadas não residem apenas nas escolhas estéticas ou no aspecto cultural que permeia esses coletivos, mas sim, pelo acesso ao conhecimento teatral de qualidade, que alguns podem desfrutar mais do que outros e no modo como esse acesso pode resultar em um maior aprimoramento da formação de seus componentes e de suas práticas. Outro aspecto que se diferencia pela questão do acesso, reside nos instrumentos, tecnologias e meios de produção empregados por cada coletivo, de modo que, enquanto alguns conseguem articular tecnologias, serviços e suprimentos de elevado custo operacional, mas de grande eficiência na construção de seus espetáculos teatrais, outros coletivos lutam contra uma escassez quase medieval de meios e informações para a realização, circulação e manutenção de suas criações cênicas. Assim sendo, o principal traço comum que podemos assinalar nesses coletivos é a constante luta pela sobrevivência e regularidade de suas atividades. O sentido de sobreviver, que para a maioria pode significar apenas conseguir manter certa periodicidade na realização e circulação de seus espetáculos, para uma reduzidíssima minoria

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de coletivos teatrais implica, também, sustento e provimento econômico dos que deles participam. Portanto, essas considerações suscitam questões que precisam ser equacionadas para o desenvolvimento do teatro no Rio Grande do Norte, independente de se tratar de Teatro de Grupo ou qualquer outra modalidade de organização teatral: - como uma atividade que não consegue prover o sustento de seus agentes, e que, portanto, recai na dimensão do amadorismo, no stricto senso desse termo, pode sobreviver e participar da construção de uma sociedade melhor, não apenas pela via da dimensão simbólica da arte, mas também pelo seu papel no desenvolvimento da chamada Economia da Cultura? - quais as ações de fomento e sustentabilidade, a exemplo da criação dos pontos de cultura e dos editais específicos para o fomento da produção teatral, podem ser fortalecidas e/ou criadas, enfrentando os problemas de acesso que aprofundam os 172

abismos da desigualdade de oportunidades entre os coletivos teatrais do RN? - Como as dimensões políticas que caracterizam o formato organizacional do Teatro de Grupo podem ser potencializadas no enfrentamento das necessidades de sobrevivência, formação e circulação de nossos coletivos teatrais? As considerações aqui tecidas tomaram como ponto de partida as particularidades do Teatro de Grupo e sua sustentabilidade enquanto modelo de organização teatral, no entanto, os problemas e questões aqui apontados ultrapassam os limites da discussão específica do formato “Teatro de Grupo” para se instalarem no cerne da questão da sobrevivência da atividade teatral, enquanto possibilidade de realização profissional para aqueles que amam o teatro, mas que, nem por isso, desejam permanecer restritos à dimensão amadora desta atividade. Portanto, a superação do amadorismo, me parece, ainda, o maior desafio que se coloca diante do desenvolvimento do teatro no Rio Grande do Norte, para que possamos projetar um futuro no qual os jovens artistas de teatro possam envelhecer junto com a sua arte, ao invés de abandoná-la


para poder buscar o sustento econ么mico e a qualidade de vida que todo cidad茫o merece e tem direito.

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Atores à Deriva Coletivo Artístico Natal (RN) Entrevista realizada na sede do grupo, Natal, em 25 de abril de 2012. FERNANDO YAMAMOTO Queria que vocês contassem como se deu o surgimento do grupo? HENRIQUE FONTES O grupo surgiu não como grupo, a gente incialmente se juntou em torno de espetáculo A Mar Aberto. O processo de montagem tinha o objetivo fundamental de formação. O grupo era formado por pessoas de vários outros grupos, que queriam ter uma experiência conjunta de aprofundamento de algumas técnicas e linguagens do teatro, entender um pouquinho mais o que seria o teatro épico, o que seria o teatro dramático, lírico, enfim, pelo menos no nível de dramaturgia, como elas podiam se misturar. E aí as experimentações e os estudos em torno do A Mar Aberto foram dando forma ao espetáculo, com um processo muito rico, e fomos vendo que havia um interesse em continuarmos juntos vontade de querer continuar pesquisando. E quando surgiu não tinha nome, mas quando a gente definiu o nome, a gente entendia coletivo muito como esse espaço aberto da troca, onde não necessa-

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riamente tivesse uma formação fixa. Existiria é claro um núcleo, mas que as pessoas pudessem transitar, e não só da área de teatro, a ideia era misturar. Foi o caso, logo no começo, do Danúbio Gomes, da área de música, que foi fundamental na construção de A Mar Aberto. Então, tinha esse desejo mesmo da troca e formação. E também uma vontade que foi se consolidando depois da primeira montagem de construir uma dramaturgia que fosse nossa, que partisse da construção coletiva, entender essa forma de dramaturgia mais ampla, seja dramaturgia do espaço, do som, da luz. Acho que essa era uma outra premissa no coletivo, desde o começo, de ter a dramaturgia como uma pesquisa focal, além da busca de um trabalho técnico de ator, uma vez que a cidade não oferece espaços de formação. A gente se reuniu no finalzinho de 2007, e o espetáculo estreou em abril de 2008, fizemos algumas temporadas na Casa da Ribeira e alguns festivais pelo Nordeste. Em seguida, como eu tinha dirigido esse primeiro trabalho, houve a ideia de a gente revezar um pouco a direção e buscar outra pessoa do grupo que pudesse estar experimentando nessa área. Como Doc tava terminando a universidade e tinha que fazer um trabalho de fim de curso, aliamos o 176

útil ao agradável.

FERNANDO Antes de entrar nesse momento seguinte, neste ponto vocês já tinham resolvido se assumir como grupo, ou ainda tava nessa transição? DOC CÂMARA Ainda não tinha uma certeza. A gente tinha uma grande vontade de trabalhar juntos, mas nos perguntávamos: “como que é ser um grupo? Como que é ser um coletivo? Como que é fundar um grupo e entender todo esse mecanismo?” A gente não tinha nenhuma certeza se depois da primeira temporada a gente continuaria existindo. Mas veio uma sequência de acontecimentos, e deu vontade mesmo de continuar, de persistir, de errar, de acertar. No primeiro festival que a gente foi, em Garanhuns, é que a gente falou: “nossa, parece que nós somos um grupo, né, gente?”. (risos). Foi quando realmente deu esse estalo. Daí pra frente foi só persistir, continuar.


BRUNO CORINGA Aí chega a parte difícil, que é você se deparar com as dificuldades de grupo. É quando você vê que o buraco é mais embaixo. A convivência constante, as demandas que iam aparecendo, e a gente às vezes ficava meio perdido, não conseguia dar conta. A partir do momento em que a gente se assumiu, apareceram as dificuldades, as demandas, e a gente começou a ter a necessidade de produzir. A nossa válvula de escape era essa, produzir. Veio Corte sem Casca, uma proposta de Doc, que foi um período de grande aprendizado, uma virada do grupo, a primeira experimentação de dramaturgia compartilhada mesmo. Eu considero um ponto de virada, pois foi caótico, mas serviu como alicerce pra gente entender. Até então a gente tinha a ideia de Henrique estar centralizando, a gente ia pela referência dele. A partir desse processo com Doc, a gente veio criar consciência que cada um tem que ter o seu ponto de partida. A gente ainda vem passando por isso, aprendendo muito. DOC Quando passou a primeira temporada de A Mar Aberto, que surgiu a oportunidade de a gente realmente efetivar um trabalho, continuar, e eu trouxe essa proposta do Corte sem Casca foi, como Bruno falou, um momento bem caótico. A gente não sabia como era, se viu sem a referência anterior, que era Henrique, o mais experiente na área, então, a gente acabava jogando essa carga de responsabilidade nas costas dede. Aí, nesse segundo momento, como seria administrar um grupo sem a referência forte, como no trabalho anterior? Eu acredito que o Corte sem Casca serviu muito mais como exercício de grupo, como exercício de formação, exercício de descoberta, do que propriamente um resultado estético. A gente tem até vontade de retomar, pra mexer, porque não chegou no ponto que a gente queria. Mas a gente chegou nesse ponto que é de formar o grupo, o “ou vai, ou racha”. Tinha esse questão: “quem é a referência agora?”. Eu estava como coordenador do processo, mas eu não tinha a força e as rédeas suficientes pra controlar esses atores, que também queriam ter as rédeas. Embora a gente acredite nesse trabalho compartilhado, naquele momento a gente não tinha maturidade pra compartilhar totalmente, passou por cima de várias questões. Eu acho que nesse momento, o Corte sem Casca foi uma formação de grupo pra gente.

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HENRIQUE É uma palavra bem forte pra todos nós, mas a gente avaliou como sendo um primeiro fracasso, no sentido estético da palavra. Afinal de contas, o que o público vê é aquele resultado ali, e não o que é de fato o processo. E a gente viu que esse fracasso foi fundamental voltarmos para as bases, ver o que precisávamos evoluir tecnicamente, estudar mais e também buscar uma coisa de princípio, do que cada um queria trazer, uma proposta mais desafiadora pro trabalho de ator. A gente se lançou a esse desafio de ser contadores de histórias. Durante seis meses cada um trazia uma proposta de um poema, de um conto, trecho de um romance, de uma peça, e ficávamos experimentando isso. Lembro que foi um processo bem denso, sem aquela perspectiva da montagem, foi um espaço a gente precisava realmente acreditar na força do coletivo pra poder ver que iria chegar em algum lugar. Mas nada garantia, não tinha um diretor, dramaturgo, um bom texto, nada. Tinha só as nossas vontades, os desejos. E nesse meio tempo a gente mantinha A Mar Aberto, circulando com ele. Nesse processo, no fim do primeiro semestre de 2010, surgiu Recomendações a Todos, de Alex Nascimento. Eu fui trazendo os capítulos e todo mundo começou 178

a ficar doido pelo livro. Começamos a abandonar as outras propostas e a investigar mais o romance. Porém, nesse meio tempo a gente tava muito mal de grana, não tava pintando nada de trabalho. DOC O único projeto que a gente emplacou em 2010 foi o BNB, que a gente circulou pelo interior. HENRIQUE A gente se salvou em 2010 com essa circulação do BNB com o A Mar Aberto, aqui pelo estado mesmo, e isso nos deu uma sobrevidazinha, financeiramente falando, pra correr atrás das outras coisas. Foi quando a gente recebeu o convite do IDEMA pra fazer uma peça que tivesse um cunho ecológico, para ser apresentada no interior. Na verdade, eles estavam buscando uma peça já pronta, e tinha um mês e meio pra acontecer. A gente não tinha essa peça, mas disse: “a gente tem!” E foi fazer “na louca”. Luiz Gadelha, que é um grande parceiro, topou também o desafio e fez as músicas, montamos a primeira versão do Flúvio e o Mar, estreamos, e levamos pro interior nessa caravana.


DOC Esse processo é interessante, porque é outra faceta do coletivo, como todo grupo, de ter um espaço de formação. Cada um vai puxando pra sua área de interesse, Henrique na dramaturgia, eu gosto de cenografia e figurino, então a montagem de Flúvio serviu pra eu exercitar esse lado de como que é fazer um figurino, mesmo sem ter tido uma formação anterior. Fui estudar, buscar referências, entender como é que é esse negócio, e surgiu esse primeiro esboço de figurino do Flúvio. Serviu como exercício mesmo, de entender essa função que é do grupo e que é também do teatro. HENRIQUE As apresentações no interior tiveram uma plateia muito bacana. E era muito próximo, o espaço era bem pequenininho, um estande daqueles de evento, e foi muito bom, porque muita coisa foi sendo entendida, foi sendo vista. A gente “na doida” inscreveu no Festival do Agosto de Teatro, e foi selecionado! Mais doidos eles ainda, porque era um trabalho que tava cru, verde. A gente fez no Teatro de Cultura Popular, o TCP, e foi ótimo, porque fez pros debatedores Amir Haddad, Kil Abreu e Sávio Araújo. Então nossa ansiedade era ouvi-los no outro dia, né? E eles não nos pouparam! (risos) Foi excelente, porque a gente ouviu e anotou tudo, em relação a várias coisas. Essa coisa que era nova pra gente, do teatro pra criança e pra adolescente, porque a peça se propõe a uma coisa entre a criança e o adolescente, meio no limite, o próprio tom moralista que tinha. DOC Como não idiotizar a criança, entender que é um ser pensante. HENRIQUE Ainda bem que deu certo alguns de nós irmos para aquela fala dos críticos naquela manhã, porque daí voltamos pra sala de ensaio. Como Natal não tem muitos diretores experientes que a gente possa chegar, propor um trabalho pro cara, esse debate foi um puta retorno. A gente voltou a trabalhar, eu refiz o texto, repensamos coisas e começamos a trabalhar outros procedimentos. Bem depois fomos pra outro festival, que foi Guaramiranga. Lá tivemos outro retorno, já mais sutis, naquela avaliação maravilhosa que tem lá. A gente voltou pra sala de ensaio mais uma vez, quer dizer, tá em eterno processo, aquela coisa que não vai tá pronto nunca, mas a gente já sente hoje o espetáculo mais consistente. E o fato de termos agora um espe-

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táculo adulto e um infantil abriu mais portas, possibilidades de estar circulando mais. Fizemos várias apresentações pro BNB e alguns festivais. DOC E nisso tudo a gente estreou o Recomendações. HENRIQUE Pois é. Porque é sempre dilema de um grupo que não tem patrocínio fixo. Esse ano a gente tem pela primeira vez o Myriam Muniz, que nos coloca num outro lugar muito legal, porque com essa grana da circulação a gente tem conseguido fazer milagre. Se a Funarte soubesse – e eu acredito que ela sabe –, o quanto esses cem mil reais são multiplicados, eles dariam trezentos mil! Com esse dinheiro a gente acaba fazendo muito mais apresentações, oficinas e muito mais possibilidades pro grupo. Nesse meio tempo o processo de Recomendações continuava, a gente tava lendo e gostando cada vez mais. Aí eu fui convidado pra ser avaliador num festival em Maceió, o Aldeia Sesc Guerreiros do Alagoas, junto com outras duas pessoa. Uma delas era a Coco Maldonado, atriz e diretora equatoriana que tava morando em Salvador, fazendo mestrado. Nós ficamos muito amigos. A Coco tava desenvolvendo 180

um trabalho que ela fazia na casa das pessoas, e lá em Maceió era a primeira vez que ela fazia esse espetáculo, que ela tava transpondo do palco pra casa das pessoas. Eu fui nessa primeira apresentação, na cozinha da uma casa, e funcionou tão bem que depois a gente avaliou: “pô, esse trabalho é pra cozinha!”, e isso deu uma guinada no trabalho dela. E a gente continuou trocando muitas ideias, e ficou a vontade dela vir pra cá. Ela veio e passou um mês fazendo o espetáculo na casa das pessoas, em novembro de 2010. Ela também deu uma oficina pra gente e todo mundo se encantou pelo trabalho dela. DOC E precisávamos de um diretor! HENRIQUE Tinha tudo a ver com o que a gente fazia, um diálogo muito bom. Ela tem uma formação com o pessoal do Malayerba, que a gente admira, e tem um trabalho de dramaturgia criado com um coletivo equatoriano. A gente ficou nessa paquera, convidou ela para vir dirigir a gente, ficou essa conversa, até que ela manda um e-mail dizendo: “Tô voltando pro Equador em julho, então tem que ser agora”,


porque depois ia ficar mais caro, mais difícil. E a gente fez uma loucura, produzimos isso em 45 dias. Vieram ela e o marido, Anatol, que é um diretor técnico. Eles tavam viajando juntos, e toparam vir pela hospedagem, alimentação e passagens. E Bruno se enveredou pela produção. BRUNO Era a necessidade. Faz ou não faz. E fui atrás de apoio. A gente conhece Rafael, parceiro nosso que é designer, que elaborou uma arte com a ideia de um esboço do projeto, criamos umas contrapartidas, e eu fui em alguns lugares tentar apoio. A gente tinha um ponto forte que era uma diretora equatoriana, em parceria com um grupo daqui, e aí as coisas foram acontecendo. Conseguimos passagen, translado de ônibus pela Natal Card, pros atores também, e no Sesc a gente conseguiu hospedagem e alimentação durante esses trinta dias. Eu não tinha nenhuma experiência com produção, mas funcionou e foi maravilhoso. A gente aprendeu muita coisa, esse processo é outro ponto de virada do coletivo, quando chega de verdade a coletividade, o compartilhamento do que a gente pensa na cena, na dramaturgia, na luz. Ela trouxe essa autonomia pra gente, por isso foi muito enriquecedora a vinda de Coco, não só pro espetáculo, mas pra consolidar mais ainda o grupo. HENRIQUE Ela criou uns procedimentos que ficaram pra além do espetáculo, porque aguçou os pontos que a gente tinha latentes. A experiência com Coco e Anatol foi rica em muitos sentidos, mostrou várias das nossas fragilidades, os nossos potenciais, e nos colocou diante de uma diretora que tinha procedimentos claros, apostas claras, diferente de mim, que tenho uma aposta que é construída no processo, eu não sei exatamente onde vai dar. Ela também não sabia, claro, mas dava pra ver que já tinha uma linha de procedimentos que eu acho que é mais consistente. Foi muito inspirador ver isso. Ao mesmo tempo que nos colocou com essa coisa da autonomia, é uma tremenda batata quente na mão. Ela começou a coisa, e quando ela foi embora a gente tinha um experimento de trinta minutos e não chegava nem na metade do livro. A gente tinha quase uma hora de espetáculo pra dar conta. O espetáculo acabou ficando com uma hora e quinze, e foi massa, porque depois que foi embora, ela ficou

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um tempo meio incomunicável, porque ela foi de kombi pro Equador. O grupo dela chama Teatro pra Viagem, então ela levou isso às últimas consequências.

FERNANDO E como é que a direção foi trabalhada nesse resto de processo? HENRIQUE Compartilhada. Mesmo. O que auxiliou muito a gente foi a câmera. A gente filmava, se assistia e conversava, cada um opinava pro outro. Fomos aprendendo a lidar com isso, e também a experimentar as propostas que vinham. DOC Tinha a rodinha de conversa no final, que inclusive acabou se transformando em cena. Ela está no espetáculo. BRUNO Na verdade, o que ela propôs não foi uma construção de personagem, ela deixou funções, e a partir dessas funções a gente foi trabalhando, vendo os primeiros trinta minutos que ela montou, e ia tirando dali, discutindo o que tinha anotado no papel, subdividindo as funções, e cada um foi construindo a sua trajetória dentro da 182

unidade do texto. A única unidade que tinha no momento até então, era o texto. HENRIQUE É um texto construído em cima da digressão, então ele fala de uma coisa, ele abre pra falar de outra, que abre pra falar de outra, que abre pra falar de outra. Às vezes ele volta, às vezes não. Então, tudo cabe. E ele tá falando o ponto de vista de um louco da sociedade. É um rio de imagens muito largas pra se navegar. Com o passar do tempo, isso que Bruno falou das funções, os procedimentos, a gente automaticamente sabe o que cabe e o que não cabe no espetáculo, a gente consegue perceber o que tá dentro ou não tá, tanto que a gente mudou o começo umas três vezes. DOC Agora que chegou no começo que a gente acha que é definitivo, que é fruto do que a gente vem pesquisando acerca da estética relacional, que tem no livro do Bourriaud. A gente tenta entender como é isso no teatro, como é estar mais próximo desse cara que vem ver a gente.


BRUNO Ela coloca outro ponto também, que é o risco. A gente não tinha noção de como ia ser o espetáculo. Aí a gente começou a ler, pesquisar, trazer imagens, ações, dando ideias, equilibrando. Ela coloca justamente isso de se trabalhar com a ideia do teatro relacional, da estética relacional, que você tem que se colocar no risco. Ela colocou as fragilidades do grupo em evidência pra gente poder ter consciência do que ia pra cena. Outra coisa importante também foram as referências. Por causa dos festivais que gente foi selecionado a gente teve o privilégio de ver espetáculos. Isso deu um boom assim, os espetáculos alimentaram a gente, pra poder discutir, porque a gente tava muito aqui, fechadinho. Quando a gente foi selecionado pra Garanhuns, Guaramiranga, Presidente Prudente, as coisas começaram a acontecer de fato, porque começava a ver outros tipos de corpo, de vozes.

FERNANDO Vocês falam da estética relacional e vocês citaram a importância desse trabalho inicial com o IDEMA, com a relação direta com as crianças. O quanto que isso amadureceu e transformou o trabalho? Em que grau a preocupação com público interfere nos processos criativos de vocês? HENRIQUE Definir o grau pra mim, hoje eu não sei. Mas eu acho que de cara tem o entendimento de que a gente faz teatro pra alguém ver. Acho que nosso teatro não é aquele teatro “ah, que se foda o público”, não. Claro que, ao mesmo tempo, a gente quer contribuir com esse público de alguma maneira. Também a gente não tem aquela preocupação de dizer: “a gente não faz isso, porque isso o público não vai gostar”. Ou “isso o nosso público não vai querer ver”. Tem a preocupação de se tá comunicando o que a gente quer comunicar, de onde a gente quer chegar. Talvez a arte hoje esteja mais propensa a promover o convívio e a participação, entendendo isso de uma forma bem ampla, não aquela coisa de pegar a plateia e jogar no palco, mas sim trazer a plateia mais pra perto e mais pra o diálogo próximo com a obra. Então, acho que em nenhum momento a gente pensa em fazer uma obra que seja muito hermética, fechada em referências muito nossas, a gente tá pensando em fazer uma obra que ela consiga ter um maior número de leituras, mas que chegue nas pessoas.

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FERNANDO Passando um pouco pra o funcionamento do grupo, como é que é a rotina de trabalho hoje do Atores à Deriva? DOC A gente ensaia de segunda a sexta das 14h às 18h, e acaba levando trabalho pra casa sempre. Tem as atividades virtuais também, via e-mail, demandas pra resolver. BRUNO Dentro desses horários a gente tem várias atividades, não só ensaios, mas outras atividades, como dança contemporânea com Claudia, trabalho físico com Tházio.

FERNANDO Como é que vocês dividem o trabalho artístico e administrativo? Vocês trabalham com funções? DOC É um processo de formação. Tházio assumiu a contabilidade, até pela formação acadêmica dele. A parte mais burocrática, de documentação, fica comigo e com Paulinho. João Vítor que se propôs a organizar o espaço, e Bruno que tá mais na parte de agenciamento, de produção, e pesquisando novas possibilidades de editais. 184

HENRIQUE Eu não tô em nada disso, graças a Deus, tô só na parte artística! (risos) Mas colaboro também na parte de assessoria de comunicação, e esse ano a gente começou a ter uma pessoa pra fazer a parte de redes sociais, que é uma coisa que a gente não dava conta. Mas a gente tem um problema de produção, a gente precisaria de um produtor, mas não tem essa figura, ainda. A gente até teve uma experiência, mas não foi bem sucedida. DOC Tudo é feito de maneira muito intuitiva, porque não é a área específica da gente. Nós somos atores, arte-educadores. Tem sido difícil, mas a gente tem conseguido dar conta.

FERNANDO E artisticamente, vocês têm divisão de tarefas? DOC No momento, acho que tem Henrique, que é o diretor dos dois primeiros espetáculos. Aí o Recomendações é essa coisa mais compartilhada. HENRIQUE Eu tenho vontade de estar mais na dramaturgia e atuando.


FERNANDO Pode-se dizer que, apesar de ter outras especialidades no grupo, o Atores à Deriva é um grupo de atores? DOC Essencialmente, sim. Aliás, preferencialmente! (risos) Eu tenho vontade de dirigir, é uma coisa que instiga, e a parte de figurino também, mas eu preciso estudar mais, ser mais dirigido, ter mais referências. Eu ainda me sinto despreparado pra assumir realmente essas funções.

FERNANDO Todos vocês têm atividades fora do grupo? O grupo provê sustento pra algum de vocês? HENRIQUE Minha atividade fora do grupo é o ArteAção, projeto da Casa da Ribeira. É a única coisa que tem grana pra eu me manter, o resto é daqui. DOC Eu também estive no ArteAção, mas por causa do grupo, tive que abrir mão.

FERNANDO Então vocês trabalham com essa perspectiva de se manter daqui? 185

HENRIQUE Sim, da auto sustentabilidade. Eu acho que esse ano isso começa a acontecer mesmo.

FERNANDO É muito claro que o grupo tem uma preocupação de formação interna, vocês falaram isso diversas vezes. Em relação a oficinas, formação, transmitir esse conhecimento que vocês estão produzindo, a pesquisa que vocês fazem, pra outras pessoas, vocês têm essa prática também? O grupo costuma ministrar oficinas? HENRIQUE Sim. Acho que de dramaturgia, que foi a coisa que originou, a gente fez mais. Mas a gente tá começando a sistematizar outras oficinas, sistematizar um pouco dos nossos procedimentos. BRUNO No BNB que a gente passou com o A Mar Aberto, a gente levou uma oficina e no Myriam Muniz também, a gente tá com duas oficinas.


FERNANDO E essas oficinas estão diretamente ligadas a forma de trabalhar do grupo? BRUNO Exatamente. Aí agora no início do ano a gente abriu inscrição pra um curso de iniciação, baseado com algumas funções que Coco tinha deixado também, que eu tinha vontade de experimentar, ver de fora como que é. Foi bem produtiva, e no final a gente avaliou, gerou uma ideia de fazer módulos de oficina aqui, só que a gente viu que ainda teria que se organizar pedagogicamente, afinar o que a gente quer ensinar. Isso está em stand by, mas a gente vai retomar.

FERNANDO Vocês têm preocupação com registro dos processos? HENRIQUE É um ponto falho. DOC A gente ainda não conseguiu fazer nenhum registro. HENRIQUE Sistematicamente, né? Cada um tem seus registros pessoais, mas não tentamos sistematizar, tentar reunir. Eu tenho uns doze cadernos sobre todos os 186

ensaios. Mas tenho que sentar e tirar dali o material que eu acho que importante. A gente tá chegando no quinto ano de grupo, precisa começar a pensar em sistematizar esses registros, porque é uma história. BRUNO A gente não tem domínio do acervo que a gente tem.

FERNANDO Vocês têm a prática de criação de espaços de troca com outros grupos, com outros artistas? HENRIQUE Sempre que a gente viaja quer conhecer os grupos e os trabalhos, é uma das premissas, a gente nunca vai pros lugares só apresentar. A gente já fez alguns projetos decorrentes desses encontros, com o grupo Experimentos, de Itajaí, que já fizemos dois projetos; mais recentemente, em Fortaleza, a gente fez um ensaio aberto de processo do Recomendações na sede do Bagaceira. Depois eu acompanhei um pouco do ensaio deles. Tem também um namoro com o Grupo 3x4, de Fortaleza, o teatro do Concreto veio fazer um trabalho na Casa da Ribeira e a gente acabou se aproximando, a Companhia Brasileira, o Magiluth...


FERNANDO E quanto a articulação política, como é que o grupo se coloca? HENRIQUE Ui! É uma coisa muito doida aqui dentro! (risos) Eu sou representante do setor de teatro no colegiado, quer dizer, era pra esse coletivo discutir política de um jeito intensivo, já que eu tô lá, indo pra Brasília, no meio daquele caos. Mas eu acho que é uma falha, a gente não cria esse espaço pra discutir. Muito recentemente vem despertando no coletivo esse entendimento pra importância que é isso. DOC Existe até uma certa negação desse lado político. Eu acredito que seja pelo medo de não estarmos preparados pra aprofundar em certas discussões, pela própria falta de conhecimento mesmo. Desinteresse, talvez. Não sei se é desinteresse, acho que é medo, mesmo. Medo de participar, colocar a cara a tapa. HENRIQUE Uma das coisas que eu tenho entendido, sobretudo nesse tempo do colegiado, é que não tem outra forma. O nosso trabalho vai eternamente chegar num limite, se não há uma política pública favorável, chega uma hora que esbarra. A gente tá eternamente a mercê dos editais, de uma política que pode existir ou não. Essa experiência do colegiado me mostrou que, às vezes, uma pessoa, um grupo, um posicionamento, pode mudar radicalmente muitas questões.

FERNANDO Pra gente finalizar, qual é a grande questão pro Atores à Deriva hoje? DOC Não existe um consenso. Existem algumas questões, não sei se existe “a” questão. Existem uma questão de ordem de ordem prática, que é: “esse é o caminho que eu escolhi pra sobreviver e eu vou fazer de tudo pra que ele aconteça, a despeito de todo o contexto”. Essa é a minha questão pessoal. JOÃO VÍTOR Existe uma preocupação muito grande do coletivo de como viver de teatro, conseguir manter essa profissão, esse coletivo. Infelizmente a gente vive numa cidade que não oferece muitas condições de trabalho, de formação pro artista, tanto é que o grupo surgiu pra buscar essa formação. São cinco anos de grupo e a

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gente só consegue ser visto, se manter financeiramente, quando sai do estado. E essa nossa busca de organização burocrática, eu acho que é uma parte muito importante no grupo. A gente está tentando ser artista e, ao mesmo tempo, entender que grupo de teatro é uma empresa também. BRUNO Eu acho que a questão é a precariedade que a gente vive. Como é que a gente pode torná-la potente, construir algo dessa precariedade que eu queria comunicar? HENRIQUE A grande questão talvez seja que talvez não haja essa grande questão. Se a gente fosse parar e pensar assim: teatro pra que? Pra quem? E por que? Cada uma das respostas dessas aí, eu acho que elas não nos levam a um denominador prático e objetivo. Eu acho, que no final das contas, tem realmente essa utopia mesmo, esse desejo impossível de mudar o mundo. Então a grande questão é: essa sociedade que vivemos enaltece tanto valores completamente corrompidos e despreza coisas que são muito valiosas, está cada vez mais degradada. E a gente não se conforma 188

com isso. Acho que a grande questão talvez, seja esse sonho utópico de querer mudar a sociedade, de não querer ser simplesmente ser mais uma peça do sistema. DOC Inspirado em Alex Nascimento, diante da inutilidade da humanidade, é uma maneira da gente se sentir útil. (risos)

FERNANDO Ótimo desfecho.




Clowns de Shakespeare Natal (RN) Entrevista realizada no Complexo Cultural Funarte, São Paulo, em 07 de maio de 2012. 191

FERNANDO YAMAMOTO Essa entrevista vai ser a mais difícil de fazer por um lado e mais fácil pelo outro, porque eu vou me colocar na situação de não responder, mas também eu não vou ignorar que eu sou do grupo. Então eventualmente eu posso fazer alguma intervenção, ou direcionar alguma pergunta, ok? Comecemos então falando como o grupo surgiu. CÉSAR FERRARIO O grupo surge em 1992, numa escola de segundo grau, instigados por um professor de literatura, Marco Aurélio Barbosa. O grupo, quando surge, é órfão de uma ideologia política, de uma pedagogia teatral, de uma pesquisa estética, surge de uma maneira completamente improvável, sem nenhuma relação anterior com o teatro, sem um mentor, um mestre que já tivesse um contato anterior com o teatro e pudesse nos orientar. Era ainda uma brincadeira, começou com uma


peça muito simples, que contava a história das escolas literárias brasileiras, ainda sem o nome Clowns de Shakespeare. MARCO FRANÇA A compensação dessa orfandade foi a possibilidade de contato com a essência mais pura do fazer teatral. É o momento do amadorismo, no sentido mais poético da palavra, que é o simples brincar de estar fazendo aquilo, de brincar de fazer teatro. Apesar de eu não ter vivido esse momento do grupo, pra mim é muito claro isso tenha sido uma das coisas mais importantes pra continuidade do grupo, por esse contato com a essência mais pura desse fazer, acho muito importante a origem do grupo ter se dado nessa condição.

FERNANDO Quando a gente teve acesso à informação, ela veio como resposta às perguntas que a gente já tinha, vivenciadas pelos próprios erros, né? CÉSAR No ano seguinte o professor resolve repetir a dose, e chama alguns alunos do 192

ano anterior, dentre eles eu e Fernando, e chama outras pessoas da turma concluinte daquele ano, quando junta-se a nós a Renata. Então somos nós três os fundadores que ainda permanecem até hoje. Montamos O Sonho de uma noite de verão e passamos a nos intitular Clowns de Shakespeare. Depois o grupo começou a caminhar com as suas próprias pernas, já desligado da escola, e sem mais contato com o professor de literatura. A gente montou um espetáculo, Noite de Reis, ainda nesse “limbo teatral”, completamente desamparados, apenas movidos pelo desejo de realizar e pela intuição. Até que nos deparamos com Sávio Araújo, que hoje é professor da UFRN, que passa dois anos com a gente montando o espetáculo A Megera DoNada, uma livre adaptação da obra Megera Domada, de Shakespeare. Nesses dois anos, mais do que montar um espetáculo, Sávio monta um grupo. Não que ele tenha nos ensinado a fazer teatro, que o grupo estivesse pronto, mas ele dá um norte. RENATA KAISER Ainda sobre o nome do grupo, quando montamos O Sonho de uma noite de verão, faltando praticamente um semana pra estrear, nos deparamos com a questão: qual o nome dar a esse monte de gente que vai estrear um espetáculo? O


Marco Aurélio, motivado Poética, de Manuel Bandeira, cita: “Quero antes o lirismo dos loucos, O lirismo dos bêbedos, O lirismo difícil e pungente dos bêbedos, O lirismo dos clowns de Shakespeare, Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”, e sugere esse nome, pelo simples motivo que estávamos montando um Shakespeare. Só mais tarde é que a gente vai se dar conta da arapuca que criamos para nós mesmos: “clowns” e “Shakespeare”. Até então não sabíamos nada de clown, muito menos de Shakespeare. Anos depois, durante a montagem da Megera, a gente se depara com Adelvane Néia. Ela vai nos assistir motivada pelo nome do grupo, achando que tínhamos um trabalho de palhaço, e vê que não era nada disso. Ela foi dar uma oficina em Natal pra alguns grupos, e é quando a gente tem o primeiro contato com a técnica do clown, e desde então a técnica passa a estar sempre presente no nosso trabalho. MARCO Mesmo não usando o nariz, a lógica do palhaço tá sempre presente. RENATA Ainda nesse período de montagem da Megera, o grupo se depara com a questão de local de apresentação. Na época Natal tinha o Teatro Alberto Maranhão, do Estado, que é difícil conseguir pauta, e o Sandoval Wanderley, que é municipal, que além do espaço ter problemas estruturais, fica numa região que o público não frequenta. Mas a gente queria experimentar a temporada, exercitar o ato de fazer teatro, fazer crescer o trabalho com a resposta do público, até porque foram quase dois anos de processo, não tinha sentido fazermos duas, quatro apresentações! Então conseguimos um galpão no centro histórico de Natal, a Ribeira, chamado B-52, pra fazer a temporada de estreia. E era um espaço muito inóspito, onde a gente improvisava o palco, improvisava a arquibancada, o camarim. Conseguimos fazer uma temporada sempre lotada, de dezesseis apresentações. Foi quando a gente percebeu que era possível fazer temporada na cidade, principalmente se a gente tivesse um espaço adequado, tanto pro artista, quanto pro público. Veio então a ideia da construção do Espaço Cultural Casa da Ribeira, que era um espaço pequeno, mas adequado para receber confortavelmente o artista e o público. É quando, aos poucos, a gente vai deixando de lado o trabalho artístico pra focar na produção, pra tornar viável esse so-

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nho de ter um espaço. Em 2001 a Casa da Ribeira foi inaugurada, e nós começamos a virar cada vez mais administradores e menos artistas. Essa angústia foi ficando cada vez maior, até que Fernando e Henrique Fontes puxaram as rédeas: “Vamos retomar o nosso trabalho”. O grupo estava prestes a fazer dez anos, então resolvemos retomar a trajetória artística do grupo, pra montagem do Muito Barulho por Quase Nada, com a direção do Fernando e do Eduardo Moreira, do Galpão. CÉSAR Hoje o grupo não tem mais nenhum vínculo com a Casa da Ribeira, a não ser o histórico, já que o grupo não soube atuar de forma plena nas duas vertentes. A separação foi ocorrendo diluída, cada integrante foi optando gradualmente, no seu tempo, ou pela Casa da Ribeira e pela administração do espaço ou pela continuidade de um trabalho artístico teatral dentro do Clowns. Renata foi o último elo em comum, vindo para o grupo, e decretando o desligamento total. Depois de algum tempo o grupo começou a reorganizar o seu espaço, e hoje tem o Barracão Clowns que, além de servir como escritório, condicionamento do nosso acervo e ensaios, também 194

permite que a gente faça apresentações, inclusive de outros grupos. É importante falar que o Barracão tem uma lógica de organização completamente diferente da Casa, na medida em que o Barracão é prioritariamente a sede de um grupo, que se organiza dentro da demanda de suas atividades, essa é a prioridade. A gente até recebe esporadicamente peças de fora, mas a gente tem esse cuidado pra que não se transforme num espaço “oficial”, e sim continue sempre a ser um espaço que esteja sempre a serviço das nossas demandas, recebendo eventualmente os parceiros do grupo quando houver disponibilidade. MARCO O Barracão jamais se transformará na Casa da Ribeira, embora o desejo que moveu a construção da Casa tenha sido parecido com o do Barracão. Foi preciso ter existido a Casa da Ribeira, ter “errado” – com aspas bem grandes – pra que a gente possa hoje ter um espaço como a gente tem. CÉSAR É importante a gente frisar que esse comparativo com a Casa, é da época em que a gente fazia parte dela, aquela Casa com o Barracão hoje. A Casa hoje funciona diferentemente, de acordo com os seus preceitos e ideais. Eu acho que a síntese é:


quem está a serviço de quem. Se o espaço está a nosso serviço ou se a gente está a serviço do espaço.

FERNANDO É importante falar também que a Casa proporcionou pra gente um know how de produção, foi a nossa primeira escola de produção. Lógico que isso foi sofisticado, o pensamento foi transformado ao longo da nossa história. Além disso, pela Casa a gente passou a ser conhecido nacionalmente dentro do meio, trazendo grupos pra Natal, possibilitou acessos muito mais fáceis como, por exemplo, o Eduardo Moreira. MARCO O Eduardo foi uma ousadia, uma cara de pau muito grande nossa. A ideia surge do desejo de montar um Shakespeare na comemoração dos dez anos do grupo, utilizando música ao vivo, e aí sonhamos com o nome do Eduardo, do Galpão, referência pro grupo desde a fundação. Fernando o convidou, explicando que a gente estava inscrevendo o projeto em um edital, mas acabamos não sendo selecionados. O Eduardo então disse que ainda assim topava, e que a gente poderia pagar quanto pudesse, quando pudesse. Foi algo completamente surreal! No final das contas, ele aproveitou um momento de férias com o filho e foi pra Natal trabalhar com a gente. Apesar de parecer pouco tempo, esse trabalho gerou uma guinada no grupo, foi fundamental pra ter transformado o Muito Barulho por Quase Nada no que ele se transformou. RENATA O Eduardo percebeu o grande potencial musical que o grupo tinha, e encorajou Marco a encabeçar o trabalho musical. Essa montagem é o primeiro momento em que a gente usa a música como linguagem, que Marco começa a ser o diretor musical do grupo, e que nós, atores, passamos a nos dedicar a instrumentos. Desde então a música está sempre presente, seja cantada ou tocada.

FERNANDO Eu queria sugerir que a gente desse uma passada mais transversal a partir do momento pós Muito Barulho, até a chegada do Capitão. Sem menosprezar a história desse período, que é quando o

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grupo entra num fluxo de produção mais consistente, mais profissional, mas eu acredito que o próximo salto veio com o Capitão, concordam? CÉSAR Eu acho que o Muito Barulho é um divisor de águas dentro do grupo, marca a profissionalização, a gente começou a circular bastante, entrou no mapa teatral brasileiro, como disse o Milaré. A partir de então a gente pôde começar a se dedicar exclusivamente para o grupo, garantir a nossa subsistência, e isso teve um resultado direto no trabalho artístico. Dentro dessa perspectiva, depois do Muito Barulho a gente montou o Roda Chico, Fábulas e O Casamento do Pequeno Burguês. São seis anos, de 2003 com Muito Barulho, a 2009, quando a gente monta O Capitão e a Sereia, através de um edital do SESI São Paulo. O Capitão inaugura um novo momento do grupo. Nunca em nossa história, até então, a gente teve a oportunidade de viver um processo de montagem nos modelos do Capitão, com tanta propriedade e poder de escolha de tudo o que vai pra cena, desde o domínio e propriedade do símbolo, do ícone, da linguagem, até as questões sociais, políticas, ideológicas, filosóficas. O processo foi 196

coordenado por Fernando, enquanto diretor, mas foi bastante horizontalizado, todos os participantes se sentiam donos do trabalho na mesma medida, responsáveis pelo que a gente queria expressar. PAULA QUEIROZ Eu acho que uma coisa que é legal falar sobre o Capitão é que tivemos a maior verba pra montar um espetáculo até então. Isso deu um ânimo ao grupo, depois de ter passado por uma fase difícil e que abalou o grupo, que foi a saída de três integrantes. MARCO Ele se deparou, pela primeira vez, com a possibilidade de viabilizar o seu trabalho, a produção do seu trabalho de uma forma mais adequada. Pela primeira vez conseguiu trabalhar, desde o início, com o Rafael Telles, na produção, pudemos montar um atelier no Barracão pra Wanda Sgarbi e sua equipe de três pessoas trabalharem, nesse sentido a questão financeira foi tão importante.


PAULA Foi um projeto audacioso, com pessoas de nove estados! Foi um processo de síntese, e muito bem sucedido, bem construído em todos os aspectos que foram propostos: a dramaturgia colaborativa, a contação/narração, etc. CAMILLE CARVALHO Uma coisa que eu acho importante dizer do Capitão é que o texto foi criado ao longo da construção do espetáculo, a partir de um texto literário, de André Neves. Ficou muito com a cara do grupo, acho que conseguimos mostrar o estado do grupo naquele momento. RENATA Em todos os sábados dessa montagem fazíamos um ensaio aberto, mostrando ao público o que foi produzido durante a semana. Foi muito importante esse momento pra gente, porque muita coisa foi sendo alterada, modificada a partir desses bate-papos do final das apresentações. Fortaleceu o Barracão Clowns, fortaleceu o espetáculo, nos deixou mais tranquilos diante da obra que estávamos ali encenando. CAMILLE Depois veio a Farsa da Boa Preguiça, um espetáculo que a gente montou junto com o Ser Tão Teatro, que é um grupo da Paraíba. Foi dirigida por Fernando e Christina Streva, com os atores e produtores dos dois grupos misturados. MARCO Pela primeira vez a gente conseguiu efetivar a troca de uma forma concreta, dividir um processo. A Lapada foi um movimento que o grupo encabeçou em 2006, que reuniu alguns grupos do Nordeste, e o Sertão Teatro foi um deles. Através dessa aproximação surgiu esse projeto, proposto pelo Ser Tão, consolidando uma troca de forma mais próxima e efetiva, com todas as vantagens e desvantagens de estarmos abrindo as nossas casas uns para os outros. CÉSAR Antes da Farsa e do Capitão, surge o projeto do Ricardo III, que só é realizado depois desses dois, né? MARCO O projeto do Ricardo surge numa residência no TUSP, em São Paulo. Dentre as diversas atividades, tivemos contato com alguns encenadores, para montar exercícios cênicos. Nessa ocasião, conhecemos o Marcio Aurelio, que trabalhou o Hamlet com a gente em cinco encontros, e foram fundamentais para reacender o

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desejo de trabalhar com Shakespeare, mas de uma outra forma, de experimentar uma obra não cômica. Ele nos apresentou um livro que foi importantíssimo, Shakespeare Nosso Contemporâneo, de Jan Kott, que nos fez ter o contato com um estudo diferenciado da obra do bardo, inclusive do Ricardo III. Nessa mesma temporada tivemos o contato com o Gabriel Villela, apresentado pelo Ernani Maleta, que também é uma figura importantíssima na nossa trajetória. Por ser muito próximo ao grupo e ao Gabriel, o Ernani acabou intuindo o quanto seria potente o encontro entre os dois. Desse triângulo formado pelo trabalho com Marcio Aurelio, a reaproximação ao Shakespeare e o encontro com Gabriel Villela, nos motivou a convidar o Gabriel para dirigir o Ricardo III. Isso aconteceu no final de 2007, e só em 2010 que a gente conseguiu concretizar. É muito importante a forma como o grupo tem conseguido projetar suas futuras produções, como o Ricardo III, planejado com três anos de antecedência; o Hamlet a partir desse encontro com o Márcio Aurélio, viabilizado pelo edital de manutenção da Petrobras quase cinco anos depois; ou o nosso próximo projeto, de pesquisa sobre a América Latina, que o grupo começou a sonhar desde 198

2011, mas será montado depois do Hamlet, em 2013 ou 14. Ou seja, o grupo começa a lidar com essa produção de uma forma diferenciada.

FERNANDO Tem o aspecto da produção, do montante financeiro, mas também da possibilidade de amadurecer o pensamento do próximo passo, mergulhar no universo do que se desejar falar com propriedade. MARCO O processo de investigação de Sua Incelença, Ricardo III iniciou em 2009, através do BNB, com um projeto muito bacana por algumas cidades do interior, pesquisando o texto do Shakespeare com atores dessas cidades. Em julho de 2010 a gente começa de fato o processo, e foi incrível! Trabalhar com Gabriel, que desde antes da sua chegada já tinha mandado um acervo de tecidos e figurinos que ele imaginava que poderia usar com a gente e, quando ele chega pro primeiro dia de trabalho, o Barracão já estava transformado para receber o processo! Era um nome que de certa forma era um mito, todo o histórico do Gabriel, o vulto do próprio Romeu e Julieta! Estar trabalhando com o cara que construiu isso e se transformou em um ícone no


nosso imaginário, tinha um sabor muito especial pro grupo naquele momento, a gente acreditava que colocaria o grupo num outro lugar, como de fato aconteceu.

FERNANDO Além do salto artístico, acontece uma revolução no vulto da estrutura de produção, as portas se abrem, o nome do grupo se projeto, como fruto do peso do nome do Gabriel, aliado ao momento do grupo, às vésperas dos vinte anos, né? O Ricardo colocou o grupo num outro patamar na cena nacional, apontou possibilidade de internacionalização que tanto desejávamos. Como isso reflete no grupo? CÉSAR A gente pode ilustrar com o fato de que, em 2011, o grupo fez a abertura de quase todos os principais festivais do Brasil, ou ao menos esteve presente em posição de destaque. Participamos do Santiago a Mil, no Chile, que é um dos principais festivais da América Latina, vamos para o FIT de Cádiz, na Espanha, essa projeção tá só começando. Acho que o Ricardo coloca os Clowns num grupo muito especial de fazedores de teatro no Brasil. É difícil estabelecer parâmetros comparativos, ainda mais estando de dentro, mas eu acho que hoje a gente pode afirmar que tem uma participação na escrita do teatro brasileiro contemporâneo.

FERNANDO Até mesmo pela nossa atuação no Nordeste, a forma como levantamos a bandeira do teatro nordestino, né? Diante deste momento que o grupo vive, como é a rotina do grupo hoje? MARCO A rotina do grupo é dividida basicamente entre viagens, projetos desenvolvidos em Natal e o trabalho administrativo, seja na elaboração de projetos ou na própria manutenção do trabalho artístico, ensaiando alguns desses espetáculos. Quando a gente tá em Natal, trabalha pelo menos das duas da tarde às oito da noite, de segunda a sexta, quando não tá montando espetáculo. Quando estamos em montagem, geralmente amplia-se o horário e os dias, incluindo os sábados. O fato é que passamos mais tempo fora do que em Natal.

FERNANDO E como é a divisão de trabalho dentro do grupo, tanto em termos administrativos, quanto artísticos?

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MARCO A gente tem cada vez mais conseguido equalizar as afinidades, as aptidões, os desejos e muitas vezes as diferenças entre a gente. Eu, por exemplo, acabo normalmente me dedicando mais a parte artística e pedagógica, além da parte de áudio e de vídeo. Renata fica muito na produção, elaboração dos projetos e na parte do financeiro, com as planilhas dos projetos e contato com a nossa contadora. O César fica responsável também pela elaboração dos projetos, dos textos, e o contato com a assessoria de imprensa, com o nosso designer gráfico e a empresa que mantém nosso site. César também, junto com Fernando, assume muito o direcionamento do pensamento de grupo, por mais que a gente também faça isso coletivamente. Fernando cuida muito da parte dos contatos externos do grupo, sobretudo desde a produção do Ricardo III, que ele coordenou essa produção, e acaba sendo hoje o contato das pessoas que procuram o grupo. Camille é a mais nova, de idade e de tempo no grupo, está cada vez mais tá se encontrando. Esse é o núcleo administrativo do grupo hoje. PAULA QUEIROZ Eu acho que Fernando tem um papel de grande articulador 200

com outros grupos do país, outros profissionais. Hoje talvez o grupo não necessite tanto disso, mas eu acho que no princípio foi muito importante esse papel de “relações públicas”.

FERNANDO Além de nós, o grupo hoje tem uma formação bem maior, com outros integrantes, colaboradores, e muita gente que circula na órbita dos Clowns. MARCO É, tem o Arlindo, que foi uma aquisição importantíssima. Ele é o secretário do grupo, um funcionário pago, que está diariamente no Barracão e que concentra uma série de coisas do escritório que antes eram pulverizadas. Mesmo as coisas mais simples, como levar um projeto pro correio, manter um clipping atualizado, manter o currículo do grupo atualizado, pagar as contas, ir para o banco, mandar um foto pra um festival, nos tomava um tempo e acabavam nos desgastando muito para o trabalho artístico. Foi o melhor investimento que o grupo fez. O Rafa também tem estado praticamente como uma figura exclusiva em relação a produção, tem se espe-


cializado na produção de teatro, da forma como o grupo trabalha, se aperfeiçoado cada vez mais nisso. RAFAEL TELLES O grupo se tornou, pra mim, um projeto de vida. Eu comecei a trabalhar com o grupo em projetos isolados, desde 2004, e em 2009, no processo do Capitão, teve a primeira oportunidade de uma aproximação com mais afinco. A demanda do grupo foi aumentando e meu trabalho no grupo foi aumentando também.

FERNANDO Teu próprio espaço de formação, né? RAFAEL TELLES Com certeza. Até 2004, antes do teatro, eu trabalhava com música, não tinha muito contato com teatro. Foi uma coisa que eu aprendi a gostar demais, que faz parte da minha vida. E hoje, apesar de às vezes receber convites de trabalhos fora do grupo, eu procuro não aceitar, procuro não sair muito do foco. MARCO Além desses, o grupo é formado também pelo Ronaldo, que assume a parte de cenotécnica e de iluminação, o Anderson, que é diretor de palco dos espetáculos e gerente técnico do Barracão, e os outros quatro atores, a Titina, o Joel, o Dudu e a Paulinha, que se aproximaram mais efetivamente a partir do Ricardo III, e cada vez mais têm se dedicado ao projeto artístico do grupo.

FERNANDO Quais são as principais formas de financiamento do grupo hoje? CÉSAR O grupo tem a sua receita completamente pulverizada, a forma de sustento ela vem de diversas fontes. A principal delas é, sem dúvida, o financiamento público através de editais, tanto do governo federal – a maior parte deles –, quanto de algumas empresas privadas. Outra fonte importante é a venda dos espetáculos, em festivais e temporadas. Em uma proporção muito menor, quase irrisória, tem as ações através das leis de isenção fiscal, Rouanet ou Câmara Cascudo, que é estadual. Por fim, tem uma série de outros financiamentos menores, como venda de CDs,

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bilheteria, taxa de inscrição em oficinas, chapéu que a gente passa no final de alguns espetáculos, mas é insignificante em relação ao montante final.

FERNANDO Um desses editais federais, que acho que seria importante falar, é a manutenção da Petrobras, um patrocínio de continuidade. Em que medida esse patrocínio de manutenção interferiu na realidade do grupo? CÉSAR O que é mais importante no patrocínio da Petrobras não é nem o montante total que ela investe, pois não contempla todas as nossas necessidades, mas eu acho que é o princípio do edital, a forma como ele é pensado. Ele entende muito a forma como os grupos se organizam e funcionam, cobrindo despesas que não estão vinculadas a eventos. Esse edital enxerga o grupo enquanto pesquisador, entende que enquanto o grupo tá trancado em sala de trabalho também está trabalhando, essa realmente é a grande história. 202

RENATA E que justiça seja feita, por mais que possa parecer uma puxação de saco, porque essa pesquisa está sendo financiada por eles, mas o edital do Banco do Nordeste tem sido de uma importância enorme não só para nós, mas também pro desenvolvimento do teatro de todo o Nordeste, né?

FERNANDO Já se falou um pouco disso, mas alguém poderia aprofundar um pouco sobre qual é esse ponto de partida dos processos criativos dos Clowns? CÉSAR Eu acho que o teatro que a gente faz é sempre insuficiente. Acho que cada trabalho é uma fotografia de um determinado momento do grupo, da sua pesquisa. Entendendo que, na hora em que o espetáculo estreia, o grupo continua a envelhecer, a amadurecer, a desenvolver o seu pensamento, então, quase que imediatamente a gente já começa a organizar material, a clamar por uma outra foto um pouco mais adiante. No nosso caso isso tem acontecido, na verdade, antes de estrear. Então ele surge do dia a dia, dos desejos que vão sendo amadurecidos na trajetória do grupo.


FERNANDO Em relação ao espetáculos, podemos delimitar qual é a duração média dos processos, das temporadas de estreia e da vida útil dos espetáculos? MARCO Varia um pouco, a situação é quem vai dizer quanto tempo. No Muito Barulho a gente precisou de nove meses, porque era uma retomada de um grupo que tava parado, que não trabalhava da forma como a gente hoje trabalha. CAMILLE Além disso, não tinha a obrigação de respeitar um cronograma, um compromisso com algum patrocinador.

FERNANDO Pensando na realidade do grupo hoje, em que temos uma rotina durante os processos de montagem de seis, oito, até dez horas de trabalho por dia, já que todo mundo trabalha só com o grupo, temos condições de levantar praticamente qualquer tipo de trabalho em três, quatro meses. Isso significa, 60, 70 horas de trabalho por semana! Além disso, os últimos processos vêm sendo alimentados por anos antes da etapa dos ensaios em si. Acaba ficando muito mais por uma opção de quanto tempo a gente vai dedicar pra esse trabalho. MARCO Mas eu acho que se fosse falar numa média, hoje são quatro meses, né? Muito Barulho foram nove, Fábulas foram dois, o Roda Chico, com todas as suas questões, foi um mês e quinze dias, O Casamento foram quase seis meses, o Capitão foram quatro, o Ricardo foram quatro e, provavelmente, o Hamlet será entre três a quatro meses também. O fato de trabalharmos continuamente com um núcleo de pessoas que praticamente não tem se alterado nos permite queimar algumas etapas, né? MARCO Sobre as temporadas, a gente pode planejar as de estreia, mas tem as temporadas que vão surgindo em seguida, em editais ou convites, fora de Natal. CAMILLE Acho que em Natal uma temporada tem em média dois meses. CÉSAR A maior temporada que a gente já fez foi com o Capitão, em São Paulo, de dois meses e pouco, com quarenta apresentações.

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MARCO E a vida útil do espetáculo, a gente sempre deseja que dure muito tempo, mas tem também fatores externos, né? A gente tá vivendo uma realidade com o Capitão, que estreou em 2009 e está fazendo três anos agora, com mais de cento e cinquenta apresentações. Já circulamos muito, fizemos algumas temporadas em Natal, duas em São Paulo, em princípio não existe muita perspectiva do que a gente vai fazer depois. CÉSAR Já começa a perder um pouco o seu fôlego. MARCO O que não impede dele continuar em repertório e eventualmente pintar alguma oportunidade. RENATA E uma coisa interessante é que hoje em dia a gente apresenta mais fora do que em Natal. Sua Incelença Ricardo III, só foi apresentado em Natal na temporada de estreia, sete apresentações. Pela grande demanda de festivais, de convites pra circular com os espetáculos, a gente fica muito pouco tempo em Natal. Então a realidade é 204

que somos de lá, mas quase não apresentamos na nossa cidade, embora tenhamos muito desejo. É só ver que só conseguimos tempo pra fazer essa entrevista aqui em São Paulo! CAMILLE Vamos fechar 2012 sem fazer sequer uma apresentação em Natal!

FERNANDO Em que grau vocês acreditam que a preocupação com o público interfere nos processos criativos do grupo? CÉSAR Eu acho que o público interfere muito, sim. A questão é: que tipo de interferência? Eu acho que é importante a gente delimitar certas coisas, principalmente num período em que você tem algo chamado indústria cultural. O nosso objeto artístico é feito para o público, então, claro que ele é incorporado, que ele é antevisto nesse processo, mas isso é diferente de dizer que os espetáculos são feitos no intuito de agradar, de vender e circular. O processo do Capitão é um ótimo exemplo, já que a gente abria todo sábado as portas do nosso espaço pro público vir aferir o apurado da semana. Mas não se tratava apenas do público ver o trabalho, servia também pra


nós passarmos pela experiência de fazer para o público, o que resignifica muito o trabalho do ator em relação ao que ele construiu na sala de ensaio. E no final de cada ensaio aberto o público tinha direito a voz e a gente escutava, absorvia, ponderava, claro, mas eu acho que a relação entre a gente e o público precisa ser dialética, provocativa. Resumindo, existe esse conjunto de circunstâncias, mas eu acho que o público tem sim muita interferência. MARCO Além disso, na hora em que a gente opta em fazer o Capitão num espaço alternativo, pra um público de, no máximo, 120 pessoas, e por outro lado o Ricardo III a gente faz na rua e já foi apresentado até para um público de sete mil pessoas, eu acho que a própria opção do grupo em eleger os espaços interfere. CÉSAR Desde a hora que você define a área cênica e pensa na disposição do público, você já está trabalhando em função dele. Eu acho que a gente não trabalha pra gente, a gente trabalha pra um conjunto social que está inserido, e estabelece uma relação com ele.

FERNANDO O grupo se entende como tendo um projeto pedagógico? CÉSAR O grupo tem um projeto pedagógico, mas não nos moldes acadêmicos, arquitetado, pré-definido, até engessado. O grupo tem um conhecimento construído que ele articula dentro do seu fazer e, através das oficinas, tem formas já pensadas e organizadas, uma sistematização de compartilhamento desse conteúdo. É um projeto pedagógico vivo que está em constante readequação e movimento. Se o grupo está constantemente readequando e rearticulando seus valores, seus pensamentos, sua metodologia, o espaço pedagógico precisa sofrer as mesmas transformações, é uma eterna corda bamba. MARCO Existe um desejo muito grande no grupo de concretizar esse projeto pedagógico na criação de uma escola livre. A gente tem conversado muito sobre isso, nos moldes da escola livre de Santo André.

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FERNANDO Como é que o grupo vê a questão do registro da memória? CÉSAR É algo que temos a consciência da necessidade, e aí buscamos meios de realizar, a trancos e barrancos. Existe um registro escrito de cada trabalho individual e um registro coletivo, mas eu acho a gente ainda peca. Na medida do possível a gente contrata alguém, ou cada um vai dando conta de um pedaço, ou chama um fotógrafo, o Rafa tá com a câmera na mão, mas poderia ser bem melhor.

FERNANDO Eu acho a visão do César um pouco severa demais. Obviamente que a questão do registro acontece de forma muito aquém do ideal, do que poderíamos fazer, mas acho que temos uma premissa de que não é possível mais trabalhar sem isso no grupo que é fundamental. Bem ou mal, tudo que fazemos é registrado. O problema é que as formas ainda são muito pouco sistematizadas, então variam muito de um projeto pra outro. A nossa revista sai com uma periodicidade e um 206

nível de aprofundamento muito mais irregular do que a gente gostaria, mas sai. A experiência de registro do Capitão foi a única absolutamente rígida, porque tinha uma pessoa só pra isso. No campo da fotografia a gente tem um parceiro, que é o Pablo Pinheiro/Estúdio P, que faz isso muito bem. Na parte de vídeo ainda tá bem desestruturado, mas tem perspectivas com a aproximação da Jatobá Filmes. O que quero dizer é que, apesar das falhas, que não são poucas, pra gente não faz sentido fazer teatro se a gente não estiver preocupado com a memória que tá diretamente ligado a ele. MARCO Bem ou mal, acho que fazemos. Pra mim a questão é de como publicizar esses registros. O grande problema que eu vejo e me questiono é: pra quem registramos isso? Pra quem interessa isso?


FERNANDO Como vocês veem a relação do grupo com as trocas, seja com outros grupos, seja com outros profissionais, e a importância que isso pro grupo? MARCO Isso sempre foi um desejo e uma necessidade, pra sermos o que somos hoje. Eu não consigo conceber uma outra forma de fazer teatro que não essa. Acho que é uma forma de resignificar o seu fazer. Independente se você já tem dramaturgos no grupo, ou diretor, diretor musical, trazer outros profissionais oxigena, revitaliza, resignifica a forma de fazer pras próprias pessoas que conduzem esses trabalhos dentro do grupo. Eu acho que isso é o combustível de funcionamento no grupo hoje.

FERNANDO Pra concluir, eu queria saber qual é a questão hoje que tá no topo da pauta do grupo. CÉSAR Eu poderia citar algumas como provocação. A questão da sede própria e da escola, que são questões diferentes, mas que namoram, são duas delas. A relação política do grupo em Natal, é uma questão também que tem buzinado muito na gente nos últimos três meses. Os vinte anos do grupo, sem dúvida. Se a gente for ver, os vinte anos é Hamlet, é América Latina, é circulação, uma sede, um projeto, enfim. Que eu acho que acaba sendo mais ou menos essas coisas. RENATA A manutenção segura do grupo, atrelando não só esse núcleo central, mas dos doze, treze integrantes. Hoje temos sete pessoas que têm um salário, os demais vivem dos cachês de apresentação e projetos.

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Grupo Estandarte Natal (RN) Entrevista realizada no Barracão Clowns, Natal, em 24 de abril de 2012. 209

FERNANDO YAMAMOTO Pra começar, fala um pouco sobre a criação do Estandarte. LENILTON TEIXEIRA O grupo surge no final dos anos 80, num contexto da redemocratização se organizando, do uso da arte a serviço do esclarecimento do povo, como meio de transformação. O Estandarte começa como um grupo de estudo sobre cultura popular, e se utiliza da sede do partido comunista pra fazer as reuniões, puxadas por Ivonete, com pessoas de várias áreas. Depois de estudar um tempo, decidiu-se fazer um grupo de teatro, já que Ivonete fazia teatro. Algumas pessoas desistiram, porque eram de outra praia, e começa o trabalho do primeiro texto, de César Vieira, que era A Greve, um dos quadros do texto Bumba meu queixado. Nereu, que era geólogo, tinha feito teologia e começou a fazer artes logo depois, é quem dirigiu esse espetáculo. Logo na semana da estreia uma pessoa saiu do grupo, e entramos eu e Pedrão pra substituí-lo. A ideia era levar teatro de qualidade – Ivo-


nete dizia muito isso – aonde o teatro não ia, circular pelos bairros de Natal. A gente circulou pela zona norte, zona sul, zona oeste e tal, e a relação era com o conselho comunitário do bairro, chegava lá e dizia: “a gente tem um espetáculo pra mostrar pra vocês e se vocês tiverem um lanche pra dar depois do espetáculo, a gente apresenta”. A gente não tinha relação financeira com nada, só esse lanche que, quando o conselho comunitário era mais articulado, conseguia dar um bolo com Fanta! (risos) E olhe que nem sempre isso acontecia! Fazíamos apresentações pra duas, três pessoas, e sempre tentava fazer uma discussão no final. O grupo tinha uma estrutura que os membros pagavam uma mensalidade pro grupo sobreviver, porque não tinha de onde tirar dinheiro. Inspirada no grupo do César Vieira, Ivonete falava da técnica do Robin Hood, na qual a gente fazia um trabalho num canto que dava grana, pro grupo continuar o que tava fazendo nos bairros. A gente fazia numa greve, numa assembleia de professores, e eles davam um trocado, que era revertido pro grupo, pra comprar alguma coisa, pagar a gasolina pra ir pra apresentação, mas nunca em salário, nunca em cachê pra nenhum de nós. Aí vem o segundo espetáculo, que obe210

dece esse mesmo ritual dos bairros, mas não mais com Nereu, que já tinha saído de Natal. Entra Vera Rocha pra dirigir um espetáculo chamado Não se paga! Não se paga!, que tinha a temática da greve, o acirramento da luta de classes, já que Dario Fo, o autor, é um anarquista, questionava a igreja, os partidos, tudo. Esse espetáculo era um pouco diferente, a gente construiu uma espécie de caixa cênica que transportava pros bairros, os conselhos, pra tudo que é lugar, e começamos a tentar uma relação um pouco maior com os bairros. Era como se fosse um circo que chegava naquele lugar e apresentava o drama Não se paga! Não se paga!. Havia um sorteio antes de entrar a parte do drama, de alguma coisa que conseguia no bairro, que a gente pedia numa bodega, qualquer coisa. O que mais se conseguia nesses lugares era corte de cabelo, então a gente sorteou corte de cabelo adoidado. Com esse espetáculo que a gente conseguiu sair pela primeira vez do estado, pra participar do encontro de teatro de grupo em Ribeirão Preto, em 91. Foi uma guinada. A gente foi pagando passagem do nosso bolso, dividindo em seis meses no cartão, e quando voltou ninguém podia sair do grupo enquanto não acabasse de pagar tudo isso! Mas lá a gente teve contato


com grupos que já trabalhavam há certo tempo, e que hoje ainda estão aí, como o Galpão, Ói Nóis, Sobrevento, Fora do Sério, e sedimentou mais na gente essa ideia de viver de grupo, do fazer no teatro de grupo. Então a gente volta pra Natal com a ideia dessa importância em continuar fazendo, mas passa a ter um outro olhar pra essa sobrevivência.

FERNANDO É um momento muito importante pra compreensão do pensamento do Teatro de Grupo no país, é um marco, né? LENILTON Isso. Lá se discutiu uma série de coisas desse fazer em grupo. Todos os grupos que estavam ali tentavam sobreviver do que faziam, mas ainda não sobreviviam de fato. O que tinha, na época, uma vida mais folgada era o Fora do Sério, que morava num edifício que era sede e casa deles. Era um grupo que tinha a estrutura mais invejável, e o encontro foi lá. O Ói Nóis tinha a Terreira da Tribo, que estava tentando organizar, o Ilo Krugli tinha um espaço ainda se construindo, o Galpão não tinha sede ainda, enfim, todo mundo tentava sobreviver do que fazia. A diferença é que alguns grupos tinham uma relação já um pouco mais construída no aspecto financeiro, de conseguir vender espetáculo e fazer com mais frequência. A gente vem pra Natal e percebe que a gente tinha que começar a mudar essa relação com os espetáculos e o dinheiro. Então montamos, com João Marcelino, um texto de Oscar Von Pfuhl, o Dom Chicote Mula Manca. Pra esse espetáculo a gente precisava de uma grana maior, tinha uma estrutura pra rua, então precisava de um pouco de dinheiro. E a gente saiu à caça dos patrocinadores. Na realidade, era muito uma relação de amizade, como a sorveteria Chapinha, que Ivonete tinha uma relação de amizade e a gente conseguiu um patrocínio. Também tinha algumas pequenas empresas de amigos que davam umas cotas pra gente poder montar esse trabalho. Montamos e fizemos Dom Chicote até Alagoas, por um projeto da Funarte. Depois a gente começa a pensar num próximo espetáculo, e surge um outro espetáculo de rua, que é o Oropa, França e Bahia e A Ilha Desconhecida, faz três espetáculos seguidos de rua. Só teve uma cisão nessa sequência da rua, que foi o espetáculo da Casa da Ribeira, Bocas de Lobo, que trazia uma estética diferente, em um espaço fechado, e um texto diferenciado, mais visceral,

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diferente do que a gente fazia até então. Depois a gente volta pra rua, com uma obra de Saramago, O Conto da Ilha Desconhecida. Logo em seguida, começamos a fazer um trabalho para espaços alternativos, que foi o Ensaio Sobre a Cegueira, que virou Uma coisa que não tem nome. Eu acho que essa trajetória é marcada pela experimentação de espaços diferenciados, esses espaços vão surgindo, sejam alternativos, rua ou palco italiano, tudo isso veio surgindo durante o processo.

FERNANDO Como que é a rotina do grupo hoje? LENILTON Nós temos três dias de encontro com todo mundo por semana, mas eu particularmente tenho uma carga muito maior, às vezes de articulação de um texto que precisa estar pronto aquele dia e tem que escrever, tirar xerox, arrumar. Hoje a gente tem um espaço alugado, tem um site, um blog, essas coisas que todo mundo já tem há muito tempo, mas a gente, pela indisciplina e pela forma de organização, não levava da mesma maneira, não tinha essas ferramentas. Agora temos três projetos de uma vez só. Um é Desaparecidos, que é o caso dos cinco meninos do bairro Planalto, 212

aqui em Natal, que desapareceram entre 98 e 2002, e até hoje ninguém sabe, ninguém viu. O fato curioso é que elas desapareceram dentro de casa, não estavam na rua, estavam dormindo e sumiram, e a gente tá tentando fazer um trabalho a partir dessa história. Outro processo é uma tragédia, Medeia, que a gente começou a estudar, e quer fazer todo o processo na rua, tornar visível, na rua, tudo que é invisível na montagem e preparação, desde a leitura de texto, preparação de cartaz, tudo. Todo processo é também espetáculo, porque quando você faz isso aberto, tá numa praça escrevendo, planejando um croqui, você já tá chamando atenção das pessoas e vai deixar de ser um ato natural, passa a ser também espetacular. Queremos tornar espetáculo todo o processo. Esse projeto precisa de muita grana; com grana a gente terá uma forma de trabalho, sem grana vai ter outra. A terceira história são dois pequenos monólogos, Themis tá com um, que é o Um Uísque ao Rei Saul, de César Vieira, e David com outro. São atores que estavam com um pouco mais de disponibilidade e queriam fazer esses experimentos.


FERNANDO Antes de Bocas de Lobo vocês tinham uma matriz popular muito forte, quase que exclusiva, e depois disso começam a entrar numa linguagem experimental, em vários aspectos, como na questão espacial que você citou. Isso foi uma coisa planejada? Como é que você vê essa transição do Estandarte, quais são os motivadores? LENILTON Eu acho que a primeira coisa é uma reflexão sobre o que é popular. A gente trilhou um tempo na dita linguagem popular, ou na linguagem que todo mundo nomeia de popular, usando canções, elementos do folclore. Ninguém jurou que ia abandonar, mas começou a rever algumas posturas, algumas formas. Eu posso ter um trabalho que é dito popular, que trabalha as relações de um povo, de um espaço, sem necessariamente trazer algumas coisas fossilizadas. Eu posso trazer isso de uma forma diferente, trazer de maneiras diferentes. A gente foi revendo algumas coisas, mas não planejou que ia abandonar. O primeiro choque de Bocas de Lobo foi que o texto trouxe uma linguagem que a gente não havia discutido daquela forma, falar dos excluídos numa visão mais “punk”. Não se paga! Não se paga! falava das pessoas que não podem comprar a sua refeição, que passam fome; A Greve, fala da opressão do trabalhador, mas falar desses excluídos da rua, do meio urbano, daquela forma de Bocas de Lobo, não havia sido feito ainda. Esse foi o primeiro choque. Quando saltamos pra Uma coisa que não te nome, isso também vai pro espaço. A gente não ensaiou pra montar cena em espaço diferente, a gente começou a ensaiar e a coisa foi acontecendo à medida que a gente ia pensando.

FERNANDO Mas vocês enxergam que existe não necessariamente uma ruptura, mas uma ampliação daquela estética que existia antes, numa relação maior com a cultura de raiz? LENILTON Isso, não é uma ruptura, porque ruptura seria uma cisão, e não é. É simplesmente o que a gente faz agora. Por exemplo, nessa proposta de Medeia, a gente tava discutindo as cenas lembrando das novenas do interior, em cada casa a Santa passa, e reza e tal. A gente ficou pensando em levar Medeias em várias casas. Como

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seria chegar com a “Santa”, quer dizer, a Medeia, naquela casa, e vamos falar sobre o que? Sobre aborto? Fetos sem cérebro? O que vai rolar nessa discussão?

FERNANDO É bacana porque faz uma ponte com o surgimento do grupo, quando vocês faziam A Greve, que tinha essa relação mais presencial, em troca do lanche. LENILTON É verdade, a diferença é que na Medeia a relação é no próprio processo de construção do trabalho, as pessoas vão construir junto com a gente, pra ver o que vai acontecer.

FERNANDO Qual o ponto de partida dos processos de vocês? O que determina qual é o próximo passo? LENILTON Alguma coisa chama a atenção de alguém do grupo, às vezes coincide de chamar a atenção de mais de um ao mesmo tempo. No Ensaio sobre a Cegueira, havia a provocação de um amigo, que funcionaria no teatro. Eu li o livro, fiquei fasci214

nado, e fui procurar Jefferson. Ele leu e disse:”você é doido! Como é que a gente vai fazer isso?”. Aí comecei a falar da ideia que eu tinha, todo mundo leu, e começamos a montar. No Desaparecidos, eu tinha lido essa reportagem no jornal, e uma das crianças que me chamou a atenção estava dormindo numa rede, a mãe foi passar a mão debaixo pra ver se ela tinha feito xixi, aí quando passou ela não estava mais. Eu contei a história pro pessoal, e todo mundo começou a estudar, entrar em sites. A montagem é um Frankenstein, tá recebendo informações de vários lugares.

FERNANDO E como é a relação do grupo em relação aos tempos de processo e de permanência do espetáculo em repertório? LENILTON Uma coisa que não tem nome a gente fez em três meses. O Desaparecidos já tá há quase seis e a gente não conseguiu terminar, não tem um prazo. A gente às vezes tenta se dar esse prazo, mas nem sempre consegue cumprir. A dedicação pro trabalho é um pouco diferenciada porque todo mundo tem outros trabalhos. Mas o teatro não entra como hobby, não é por isso que a gente se dedica menos, ou sem força, às vezes


até há um desdobramento maior. Sobre a vida dos espetáculos, Uma coisa que não tem nome tá sofrendo alterações a cada momento, porque as coisas mudam, os espaços, as significações, é parte do processo. A gente não projetou que iria ser assim, mas ele foi indo até chegar onde tá. Já o Matrioska fizemos uma avaliação que não tinha mais como continuar, tinha uns problemas que não conseguimos resolver, então era melhor parar um pouco com esse processo. Não tem assim uma regra.

FERNANDO Como é que o grupo lida com a relação com o público? É possível dizer que algum tipo de preocupação com o público interfere na criação dos espetáculos? LENILTON Quando tá se pensando em alguma coisa, se pensa muito quem é que vai assistir esse espetáculo, de que forma a gente quer fazer com que essas pessoas recebam ou percebam o que a gente tá querendo dizer. Em primeiro lugar, não queremos colocar o público de maneira alguma numa posição incômoda, de constrangimento. A relação é de saber comunicar alguma coisa para aquela plateia.

FERNANDO Como é que o grupo divide o seu trabalho artístico, administrativo? Como é que se estrutura em relação a essa gestão? LENILTON A gente tem uma estrutura, desde a época da fundação, de coordenador, vice-coordenador e tesoureiro. Fora dessa organização, tem secretário de estudo, de pesquisa, algumas secretarias pra que haja também funções que agreguem todo mundo. É claro que às vezes fica pra alguém o trabalho maior, às vezes a tarefa fica pra quem tá com mais disponibilidade de tempo, mas se tenta dividir da melhor forma possível.

FERNANDO Essas secretarias são definidas a partir que critérios? LENILTON Do desejo. Na realidade, isso é mais pra determinar tarefas, e é muito flexível, tem momentos em que tá funcionando, em outros vem mais da coordenação, de quem tá cuidando de tudo.

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FERNANDO Você falou dessa relação que, para os integrantes, o grupo não é hobby, é uma opção de vida. Ao mesmo tempo, todos ou boa parte têm outras atividades. O Estandarte tem uma perspectiva de prover sustento pros seus integrantes, ou tem como “bandeira”, digamos assim, manter essa relação de se ter outras atividades fora? LENILTON Na realidade, acho que 60%, dos integrantes do Estandarte já trabalha na área artística. São professores de artes e trabalham com teatro, e não há interesse de deixarem seus empregos, pelo menos por enquanto. Por outro lado, há uma necessidade de se organizar melhor pra que aquele que tá sem nenhum tipo de remuneração possa, de alguma forma, estar agregado ao grupo e receber por isso, principalmente os mais novos, que estão estudando ainda. Mas não tem um projeto de viver só de teatro, nem de abandonar essa história. É uma coisa de ir tentando, o dinheiro vai entrando pro grupo e a gente vai resolvendo da forma que é possível. 216

Dá pra dividir, divide, não dá pra dividir, não divide.

FERNANDO O teatro de grupo é o herdeiro natural do movimento de teatro amador, da década de 70 até o início dos 90, a raiz é a mesma. Como você vê essa transição, a partir da experiência do Estandarte, que é um dos poucos grupos do Nordeste que conseguiu sobreviver a isso? LENILTON Qual era a grande oposição do termo amador? Era o teatro profissional, de gabinete, que não falava da luta de classes, não se posicionava politicamente. As pessoas não concordavam com esse tipo de postura e passavam a dizer: “Se profissional é fazer isso, eu tenho orgulho em dizer que faço teatro amador, que não depende da bilheteria, que faço porque quero, porque gosto, por opção”.

FERNANDO Tem a ver com essa relação de vocês irem nos bairros, nos centros comunitários, lá no começo. LENILTON Isso. Fazer o espetáculo, independente de ter ou não cachê. Era muito mais uma militância do que uma outra coisa. Quando o tempo passa, essa história de


termo amador passa a ter uma conotação mais próxima ao hobby, a um teatro sem peso. Pra mim, a busca do fazer teatral, se é remunerada ou não, é um detalhe. O que vai qualificar como teatro profissional, ou teatro bom, não é se eu recebo ou não dinheiro, mas é minha posição política. Então, a nossa posição é de fazer um teatro que a gente queira fazer, um teatro que deseje falar alguma coisa pra alguém. Se for possível receber dinheiro por essa ideia, se recebe, senão, vai da forma que for possível, mas isso não vai tirar nem a qualidade, nem a forma, nem a estética, nada.

FERNANDO E nesse aspecto o conceito segue o mesmo do que era? LENILTON Claro.

FERNANDO Quais são as principais fontes de financiamento do Estandarte? LENILTON A principal são os projetos, de fonte pública: a Funarte, o BNB. Por exemplo, a gente vai pra João Pessoa muito mais pra ter uma relação com o Márcio Marciano e o Alfenim do que por cachê. A gente tá podendo ir por causa do dinheiro da Funarte. A gente não usou tudo como cachê, transformou em outras coisas.

FERNANDO O Estandarte tem uma preocupação em ministrar oficinas? LENILTON Eu sempre trabalhei com oficinas, mas no meu trabalho profissional. No Estandarte houve um período em que assumimos algumas oficinas, mas era muito mais atitudes de alguns membros do que do próprio grupo. A gente tem tido mais uma relação de troca de experiências com outros grupos, às vezes práticas, às vezes numa discussão ou conversa por e-mail, por telefone.

FERNANDO Em termos de articulação política, como é que o Estandarte se vê hoje? LENILTON A gente participa da Rede Potiguar de Teatro, que é a instância local que, mesmo tropegamente, tá agregando as insatisfações, os desejos de mudança pra essas coisas. Tem também a Rede de Teatro de Rua, apesar da gente não fazer teatro só de rua, mas a gente tem uma ligação com a rede, via e-mail.

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FERNANDO O grupo tem uma preocupação com registro dos seus processos? LENILTON No início ninguém tinha máquina fotográfica. Os registros se davam por pessoas que assistiam e fotografavam, aqui e acolá saía alguma coisa no jornal, e a gente foi arquivando esse material. De um tempo pra cá a gente começou a se preocupar com isso de uma forma mais sistemática, comprar câmera, pensar em registro, separar esse material. Eu particularmente tenho muita coisa de anotar, tenho protocolos, mas é uma visão muito mais minha desse processo do que sentar com o grupo e fazer um registro.

FERNANDO Essa é uma prática que se replica pelos outros integrantes? LENILTON Todo mundo tem diário, tem protocolo. Alguns são mais disciplinados em escrever todos os dias, outros são mais esporádicos. Eu tenho protocolo de todos os espetáculos que eu participei, seja na direção, seja como ator. 218

FERNANDO Por outro lado dentro do grupo tem muitos integrantes desenvolvendo pesquisas acadêmicas sobre o grupo, né? LENILTON É. Marinalva fez um trabalho sobre o corpo do ator em um espetáculo do grupo; a monografia de Themis foi sobre o Estandarte, e Ronaldo faz um trabalho de luz que usa o Estandarte como espaço de pesquisa. Eu acho que esses trabalhos contribuíram até no levantamento de dados, de coisas sobre o grupo.

FERNANDO Pra gente concluir, qual que é a grande questão do Estandarte hoje? Qual é o tema que tá na crista da onda das discussões? LENILTON Um ponto é o espaço de moradia e convivência. Nós estamos em um espaço novo, que dividimos com outros grupos, e isso nos fez perceber que precisamos de um espaço maior, em que a nossa sobrevivência esteja ligada ao espaço físico. Um espaço que dê uma espécie de norteamento, marque seu território, que sirva como ponto de encontro. Essa é uma das coisas que está passando pela cabeça de todo mundo. A outra é uma questão estética, que caminhos a gente vai seguir


com esses trabalhos, tanto com Medeia como Desaparecidos. A gente tá meio que no olho do furacão, não percebendo ainda o que é isso, que mobilização é preciso pra essas coisas que a gente tá tentando fazer. Eu acho que o fortalecimento do que a gente pensa de teatro vai precisar reacomodar, acontecer outra vez.

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Facetas, Mutretas e Outras Histórias Natal (RN) Entrevista realizada no Tecesol, sede do grupo, Natal, em 23 de abril de 2012.

FERNANDO YAMAMOTO Me falem um pouco sobre como se deu a criação do grupo. MONIQUE OLIVEIRA A criação do grupo se deu na escola, através de um projeto da universidade, de acompanhamento de estágio. Quando acabou o estágio eu, que era professora de artes da escola, juntamente com os alunos, decidimos que não parar e fomos buscar formas continuar, e aí começou esse trabalho, em 1999. Em 2005 a gente tomou a decisão de formar o grupo profissionalmente. Até 2006 a gente passou por um período elaboração de projetos para formar o grupo, nos mudamos da escola e viemos para esse espaço. Em 2006 a gente conseguiu finalizar o processo de estatuto e de eleição da diretoria. Oficialmente a fundação foi em 2006, mas surgiu na escola em 1999.

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RODRIGO BICO O grupo sempre teve essa característica das oficinas, porque Monique, enquanto professora da escola, dava essas oficinas todo ano. Enio e Monique estão desde a fundação, eu entrei depois, inclusive nesse processo de oficinas, então o Facetas está sempre aberto para os alunos da escola participarem, a gente traz essa característica no grupo até hoje. Giovanna é um caso a parte, pelo envolvimento que ela tem com o grupo, mas sempre se deu assim, não existe aquele convite feito a alguém pra participar do grupo. As oficinas acontecem, a pessoa se envolve com a oficina, e a partir desse desenvolvimento na oficina a gente vê como é a participação dela no grupo. Quando a gente aprovou o projeto do Ponto de Cultura, a gente tentou manter a mesma estrutura do grupo: o que era uma oficina a gente ampliou para três, uma de teatro, uma de dança e uma de violão, pra aumentar esse fluxo.

FERNANDO Falem um pouquinho da trajetória do grupo, dos espetáculos desde a fundação na escola e até hoje. MONIQUE Na escola, desde o início, a gente procurou fazer trabalhos que fossem 222

desvinculados de eventos para escola. Sempre foram trabalhos buscando exercícios, consciência, cidadania. Quando a gente montava alguma coisa, a gente apresentava na escola e buscava outros lugares. O primeiro espetáculo foi feito junto com a universidade, através de uma aluna, a Sandra, que escolheu a gente pra fazer o trabalho dela, que se chamava Torturas de um coração. Depois, nós montamos O Casamento suspeitoso, já comigo como aluna do departamento. Com esse espetáculo a gente ganhou o primeiro edital de auxílio montagem do Teatro Alberto Maranhão. BICO Na categoria escola ainda. Quanto era? MONIQUE Era R$ 2.800,00, mas a gente recebeu R$ 2.300,00. Outro espetáculo que a gente fez em parceria com a universidade foi O Santo inquérito. Foi um pedido do professor Ricardo Canella, porque era uma indicação do vestibular daquele ano e nós montamos o espetáculo para ser mostrado para os alunos. BICO O Casamento suspeitoso e Torturas de um coração foram dois espetáculos do Ariano elogiados pela professora Clotilde Tavares. Ela dizia que era muito bom para um


grupo começar pela literatura, pela obra de um dramaturgo brasileiro. Muita gente, quando vai montar um trabalho na escola, fala de drogas, violência, mas você pode ir por um caminho inverso. Você não precisa achar que o estudante, para não usar drogas, precisa falar de drogas. Você pode dar a possibilidade do estudante conhecer também a literatura. Essa passagem d’O Casamento suspeitoso, de Ariano, para O Santo inquérito, de Dias Gomes, foi pelo convite do cursinho do DCE em parceria com Ricardo Canella. Foi legal, porque o grupo vinha achando que era necessário montar um drama, porque a gente já tinha montado comédia demais. Depois d’O Santo inquérito houve essa fase de sair da escola, para esse prédio da então escola cooperativa. Estávamos eu, Enio e Alex. Monique estava dando aula. ENIO CAVALCANTE Aí foi uma fase de afunilamento do grupo, de profissionalização. Isso, inevitavelmente, tirou muita gente, e deixou quem queria fazer teatro. A gente aumentou o horário de trabalho, quisemos montar outros espetáculos, outras perspectivas, circular.

FERNANDO Isso coincide com a saída da Escola Berilo Wanderley? ENIO Exatamente. A gente percebeu que lá já estava ruim pra nós, porque queríamos um horário maior de ensaio, e também precisávamos nos desvincular da escola pra poder também criar esse caráter profissional. BICO Aí a gente teve três vieses diferentes. Um foi trabalhar com poesia, pegar poemas e fazer performances pela cidade. Concomitantemente, veio A Ida ao teatro, porque queríamos montar uma coisa rápida, pra poder ter um produto pra estar apresentando, ir pros lugares. Além disso, já estávamos tendo contato com a raiz dramatúrgica de O Bizarro sonho de Steven. A gente sempre investiu nessa busca pela direção coletiva dos espetáculos, e foi em O Bizarro sonho de Steven a gente teve maior amadurecimento. Foi um processo que demorou, a gente passou uns dois anos e meio trabalhando nele. Parava, passava um tempo, a gente foi fazer oficina com vocês, eu montei outras coisas, Alex também, e todo início de semestre a gente se encontrava pra trabalhar o processo, até vir a aprovação no Myriam Muniz. Aí nós

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nos sentimos obrigados a cumprir datas, horários, já que tínhamos uma verba pra poder construir nossos devaneios.

FERNANDO Como é a rotina do grupo hoje? Como vocês estão trabalhando, como o grupo funciona? Acho que vale a pena falar um pouco do Ponto de Cultura, que é uma interferência importante na história, né? BICO Com certeza. ENIO A gente vem tentando trabalhar diariamente pelo menos um turno e, com essa nova perspectiva que a gente criou junto ao Ponto de Cultura, estamos desenvolvendo um trabalho maior dentro da comunidade, tentando trazer mais gente de dentro das oficinas para as outras atividades do grupo. O Bizarro sonho de Steven tá sendo trabalhado duas vezes por semana, a gente tá querendo reestruturar cenário, fazendo pesquisa, o Cineclube tá prestes a reestrear. Dentro dessa perspectiva, eu, Bico e Giovanna estamos quase todos os dias desenvolvendo alguma atividade. Mo224

nique está aqui três dias por semana, ou seja, a gente tem uma rotina diária, mas ela funciona dentro dessa demanda de trabalho. BICO A gente sempre teve uma certa dificuldade com o processo organizacional.

FERNANDO Como é que se dá essa divisão, tanto artística quanto administrativa? BICO Quem sempre teve um pouco mais dessa experiência, por ser professora, e ter mais facilidade de sistematizar as coisas, foi Monique. No entanto, pelo volume de atividades que a gente tem, quando a gente divide isso a gente sente dificuldade na parte administrativa. A gente é muito do fazer e não tem essa facilidade de colocar o projeto debaixo do braço e vender em escola, empresa, seja lá o que for. As grandes dificuldades são essas mesmo: lidar com o processo artístico e com o processo administrativo. Nós somos artistas que estamos aprendendo a lidar com esse processo administrativo. Tá meio difícil ter o grupo como exclusividade, mas a gente tem o grupo como prioridade.


FERNANDO Vocês têm essa característica da direção coletivizada, investem nessa filosofia de trabalho. Para a parte administrativa vocês também trabalham assim, ou vocês costumam diferenciar funções de forma mais específica? BICO Estatutariamente a gente tem todas as funções definidas. A gente entende que Monique é muito mais uma coordenadora pedagógica, Enio traz muito essa característica do fazer, eu venho tentando buscar essa parte da comunicação e do financeiro e Giovanna tá chegando e se achando nessa parte mais administrativa. ENIO As coisas acontecem de forma colaborativa. Aquele que tem determinada característica resolve determinadas coisas e vai assumindo essas funções. Muitas das funções que Bico assume é porque ele tem essa característica, ele é o cara da comunicação, o contador. Eu acho que, no que diz respeito à administração, ainda falta a disciplina pra acontecer. Tem muito projeto que a gente cria no papel, mas não desenvolve, não busca captar pra ele acontecer. Isso é um problema nessa parte administrativa. Eu acho que a gente tem que amadurecer bastante nesse sentido.

FERNANDO Quais são as principais fontes de financiamento do grupo hoje? BICO Teoricamente do Ponto de Cultura, que está há um ano e meio atrasado, e sempre tem uma novidade. Para o Ponto de cultura a gente pensou nesse formato das oficinas, porque a gente continua fazendo o que gosta e vai ter uma verba pra isso, pra não procurar fazer trabalhos fora. Por exemplo, eu estou dando aula lá no Guarapes. Se eu tivesse dando aula para duas turmas aqui no Ponto de Cultura, não precisaria ir dar aula lá.

FERNANDO Até porque o Ponto de Cultura, no caso de vocês, é uma experiência muito próxima ao princípio do projeto Cultura Viva, né? Ele viabiliza o que vocês já faziam, mas Ponto de Cultura criou condições de vocês fazerem dignamente, de uma forma mais estruturada do que antes.

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BICO Exato. O Ponto de Cultura tem essa relação de uma oficina que se multiplicou por oito. São seis oficinas de teatro, uma de dança contemporânea e uma de violão. Tinha também uma mostra de cinema, com uma ideia de circular pelas escolas daqui do Pirangi uma vez por mês. Logo depois que a gente foi aprovado veio o Cine Mais Cultura, onde a gente aprovou o Cineclube Boi de Prata, que a gente passou, com muita dificuldade, dois anos garantindo pelo menos uma sessão de cinema por semana. Uma coisa que a gente identifica é que não dá mais pro Cineclube ser uma atividade só de exibição de filmes, ele tem que ser uma atividade para o grupo, exibir filmes que a gente possa discutir, debater e que os alunos possam participar desse fluxo também. ENIO A gente escreveu o projeto nessa fase da vinda pra esse espaço, esse período de profissionalização. O projeto foi imaturo nesse sentido, porque a gente multiplicou demais, até por uma questão de querer ser aprovado, querer esses equipamentos. Quando a verba entrou e tudo aconteceu direitinho foi muito bom. No dia da apre226

sentação do Ponto de Cultura tinha umas 300, 400 pessoas do bairro assistindo. O Ponto de Cultura tem sido muito bom por isso. O problema foi essa coisa de que o projeto deveria acontecer em três anos e vai acontecer, provavelmente, em oito ou dez. Ele foi um divisor de águas, pra gente entender que realmente quando a gente vê esses jovens se apresentando é extremamente compensador, parece que a gente tá ganhando um prêmio, é tão bom quanto estar em cena.

FERNANDO De onde surgem os processos criativos de vocês? Qual que é o ponto de partida dos processos? MONIQUE Bem, falando das oficinas, já que eu trabalho muito com iniciação nas oficinas, parte do desejo que eu vejo nas pessoas envolvidas. A gente levanta um tema com as pessoas que estão trabalhando e, a partir daí, eu vou trazendo material para pesquisa de como fazer, de como construir a linha de dramaturgia. ENIO Essa experiência que Monique fala foi exatamente o que eu pensei. Eu acho que é o desejo. Isso que ela faz, desde o início do grupo, fez a gente sempre optar


por zonas de trabalho coletivo, colaborativo. Todo mundo sempre falou muito dentro do grupo, tem muita liberdade pra falar o que quer, como quer. A gente procura comungar de um desejo e criar dentro dele. BICO A gente pode ir pra mesa, ou pra sala de trabalho, e ver o que é que surge ou eu posso ter um desejo e começar a seduzir o grupo. Quando chegou na mão da gente O Bizarro sonho de Steven, a gente viu que era aquilo que a gente queria, mas não daquele jeito, a gente tinha que trabalhar a partir daquele material. O que chega na mão da gente tem que ser um desejo em comum.

FERNANDO Essa relação do desejo do que falar implica necessariamente trabalhar uma dramaturgia própria? Ou ele pode levar vocês a chegarem a um texto já pronto? BICO A gente acha que é muito difícil encontrar um texto pronto, que supra todos os nossos anseios. Por mais que a gente goste de um texto, a gente sempre tem que colocar a nossa linha, dialogar com aquele texto. ENIO Eu acho que é totalmente livre nesse sentido. O desejo está muito mais atrelado à gente envolver aquilo que a gente acredita socialmente, politicamente, das relações humanas, das relações em comunidade. A gente tá sempre lembrando que 99% dessa comunidade daqui nunca foi ao teatro. Então, a gente tem medo de pegar o “textocentrismo” e levar para aquele lugar do elitizado, da “instituição teatro”. Em O Bizarro sonho de Steven tem gente que viu quatro ou cinco vezes numa temporada, gente que nunca tinha ido ao teatro, que se identificou com a gíria, com a estética, com a interação, a experiência. Gente jovem, de 14 ou 15 anos. Se a gente tivesse feito o que Eduardo escreveu, provavelmente teria feito algo muito cabeção.

FERNANDO Essa relação que vocês têm com a comunidade desde a origem do grupo é um traço inegável. Como isso influencia a construção artística do Facetas, em que grau isso acontece? ENIO Isso é um ponto de muita discussão.

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BICO É. Eu acho que a gente tem uma coisa que é essa visceralidade “meio porra louca”, tanto em A Ida ao teatro quanto em O Bizarro sonho de Steven. A gente chuta o pau da barraca, tem uma certa acidez no humor nos dois trabalhos. A gente ainda se questiona como pode fazer um teatro que é contemporâneo, pós-dramático, que tem um foco na dramaturgia do espectador, mas que o público se envolva, que o público não seja colocado no patamar de mero espectador, sem entender, sem dialogar. A gente tem essa preocupação de fazer as coisas para que, se a pessoa não entender, ela possa sentir algo, tirar dali alguma sensação. De certa forma isso mexe na maneira que a gente pensa essa relação entre o público e o espetáculo. ENIO A gente quer buscar uma estética mais voltada pro popular. Todo domingo tem uma feirinha aqui no bairro, e a gente pensa em sempre levar algum trabalho em construção, alguma esquete de palhaço, um cortejo, alguma coisa nesse evento importante do bairro e que vai muita gente. Então, isso, com certeza, tem o espectador como ponto de dramaturgia. 228

FERNANDO O Bizarro sonho de Steven tem uma proposta espacial muito contemporânea. Como é que vocês pensam o espaço? É uma relação discutida a priori? Que importância a reflexão sobre a questão espacial tem dentro do processo? BICO Desde o começo a gente explorou espaços alternativos, porque eram os espaços que a gente tinha na escola. Tinha um pátio, que já foi teatro arena, já foi palco italiano; já usamos a areia da escola como cemitério pra fazer uma adaptação de Hamlet. Quando veio pra cá, a gente começou a explorar o espaço, e percebeu que os equipamentos públicos da cidade que não favorecem: não existe um bom teatro de arena, não existe um bom teatro italiano, a referência que a gente tem na cidade é a Casa da Ribeira, que tem suas limitações, e está no extremo da cidade pra gente, então a gente começou a pensar formas de que o teatro não precisasse ir ao teatro. É aí que a gente monta A Ida ao teatro, que vai pra qualquer lugar, até pra rua, e O Bizarro sonho de Steven, que vai pra espaços fechados, alternativos.


ENIO No caso de O Bizarro sonho de Steven foi uma faca de dois gumes, porque a gente queria fazer um espetáculo que fosse pra qualquer lugar e, na verdade, a gente acabou criando um espetáculo pra um espaço que precisa de uma condição “x”, talvez seja até difícil levar pra outros lugares se não tiver um espaço específico.

FERNANDO Acho que tem dois traços muito interessantes no que vocês falam. Um é que vocês já acessam o teatro pela via não-convencional desde o início, o que é um traço pedagógico muito bacana, de não formar no espaço alternativo gerando um sonho de em dia chegar no espaço convencional. A outra questão é que, apesar de todas as dificuldades, toda a precariedade que vocês têm em, por exemplo, transformar uma ex-escola em um centro cultural, vocês já se estabelecem como uma referência na cidade. E em relação à opção pela direção coletiva, Parece-me que é uma bandeira muito sólida da prática de vocês, né? Me contem um pouco de onde isso surge, como vocês veem essa questão da direção. BICO Monique sempre propôs essa relação horizontalizada. Por mais que ela fosse a professora e nós fôssemos os estudantes, ela sempre colocou a gente no patamar de sujeitos criativos, propositivos. ENIO Além disso, Monique era amiga de muita gente de teatro, mas não era da área. Só depois que ela passou no vestibular pra artes cênicas sem avisar ninguém, nem que ia fazer inscrição ela avisou! MONIQUE Eu sentia uma responsabilidade sobre mim. ENIO Claro que ela tinha muito mais acesso ao conhecimento e de cara ela já colocou as teorias, já conduziu as oficinas, mas, realmente, ela sempre permitiu que a gente desenvolvesse as coisas. Tanto é que eu acho que um ponto crítico foi quando a gente quis que ela se posicionasse mais. MONIQUE Eles queriam aquele diretor carrasco! (risos)

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BICO Quando a gente chegou aqui na escola cooperativa, a gente tinha a necessidade de montar alguma coisa. Nós estávamos com uma boa relação com outros diretores da cidade, mas não tinha dinheiro, então resolvemos viver aquilo ali e começamos. Além disso, já havia essa experiência da direção coletiva, tinha a afinidade estética. ENIO Mas não havia esse discurso, esse entendimento da direção coletiva, era tudo muito tranquilo. Essas palavras nem eram citadas, coletivo, processo colaborativo, isso veio muito mais com a entrada de Bico e Alex na universidade. BICO Em O Bizarro sonho de Steven que veio a história da gente tomar consciência disso, de que os três são diretores. Foi aí que a gente teve consciência que a direção era coletiva, que a dramaturgia era colaborativa, que a gente ia partir disso, e entramos em sala. MONIQUE Mas isso já se fazia antes do conceito. ENIO Exatamente. Até hoje é difícil pra nós estabelecermos o conceito, até porque 230

eu acredito que é coletivo, mas que a gente precisa combinar o que vai acontecer em cena, não dá pra fazer essa proposta coletiva do “faça o que você quiser, eu erro quando eu quero”, que também rolou dentro do grupo. Eu acredito que tem que sentar e discutir qual direcionamento que se tomou pra essa cena, pra essa fala, pra esse estado, pra esse personagem. “São três passos pra trás, dois pra frente e um tchau. Tá combinado?” Então pronto, vamos cumprir o que está combinado. Tem esse problema em relação a esse discurso do coletivo. BICO O que fundamentou muito o nosso conceito foi o texto do André Carreira, em que ele falava sobre processo colaborativo e direção coletiva, e algumas reuniões que a gente fez com você durante o processo de O Bizarro sonho de Steven.

FERNANDO Como é a relação do grupo com registro dos processos? Vocês têm essa preocupação? Como fazem isso? BICO Ter, a gente tem, mas é meio desorganizado. Enio cuida dos vídeos, eu das fotos e tem os registros individuais que a gente não compartilha tanto. A gente ainda


trouxe aquela ideia do diário coletivo, a gente cobrava mais, mas ultimamente não estamos mais cobrando essa história de poder expor um diário. O registro de vídeo sempre é feito por Enio e o de fotos por mim. ENIO A gente registra tudo, mas está tudo desorganizado. Alguns alunos escrevem experiências e a gente posta no blog, mas não tem sido contínuo. Eu acredito que todos nós, até pela nossa história com Monique, com a universidade, registramos quase tudo que acontece. Já pintaram alguns desejos de fazer algum projeto em relação a isso, mas também tem o tempo da gente. Eu acho que o grupo tem duas idades: Treze anos e seis anos. Quando a gente veio pra cá há seis anos é que a gente começou a criar essas perspectivas.

FERNANDO Em relação a esses diários que vocês falam, apesar de não ter nenhum tipo de sistemática de compartilhamento, é tranquilo pra vocês essa disciplina do registro individual, é uma coisa que vocês conseguem manter? ENIO É. Eu faço muito em casa, mas sempre ao final do trabalho a gente dá esse tempo, porque a pessoa pode levar pra casa e não conseguir escrever depois. Quando os alunos vêm, já recebem um diário, e já é cobrado que eles criem esse exercício. A gente sabe que demora anos pra você entender a necessidade disso, mas muitas vezes o aluno não sabe nem escrever!

FERNANDO Como é que é a relação do Facetas com outros grupos? Seja daqui de Natal, de outras cidades ou de outros estados. BICO Com grupos de outros estados a gente sempre teve mais dificuldade, porque as conversas virtuais são muito complicadas para o grupo. Às vezes a nossa comunicação interna é capenga, imagine com grupos de fora. Com os grupos daqui a gente sempre procura ter uma boa relação. Por exemplo, dois extremos como o Alegria Alegria e os Clowns. São dois grupos muito diferentes em sua história, em sua atuação, mas a gente consegue ter uma boa relação com os dois.

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FERNANDO E o que é isso que você está chamando de ter uma boa relação? Existe um fomento dentro do grupo para criar espaços de troca? BICO Nessa relação com os grupos, pelo menos no campo do intercâmbio, da troca artística, o grupo que a gente mais troca é com vocês, dos Clowns. Pelos convites que a gente tem aceito, pelas oficinas que nós já fizemos, pelas apresentações que a gente fez por lá, acho que é um grupo que a gente ainda troca artisticamente. Mas a gente percebe que o Tecesol, apesar da dificuldade de manter, é um espaço muito importante de intercâmbio com outros grupos, como o S3, que é um coletivo de diretores da cidade, o Estandarte, que agora tá aqui do lado, o Gira Dança, que já dialogou muito com a gente e já passou aqui pelo prédio numa fase da história deles, e outros grupos que já se apresentaram aqui também. Então, o espaço possibilita pelo menos a apresentação desses grupos.

FERNANDO E em termos de articulação política, como é que o Facetas se coloca? 232

BICO A gente sempre esteve preocupado em participar dos processos políticos da cidade, do estado, do país. Foi uma coisa que veio da formação de Monique, do lado cientista social dela, sempre influenciou muito o grupo. Pelo meu histórico de movimento estudantil, eu sempre estive participando muito dessas coisas, o grupo sempre deu autonomia pra que eu participasse dos movimentos do Ponto de Cultura, da Comissão Nacional dos Pontos, do Redemoinho, etc. Eu sempre vou como indivíduo e como representante do coletivo.

FERNANDO Pra finalizar: qual que é a grande questão do Facetas hoje? BICO “Ser ou não ser, eis a questão” (risos). É o que a gente vem discutindo desde a saída de Alex. A gente discutiu muito qual era a nossa questão agora. A questão é entender que a gente é um grupo de arte, mas que também tem um viés sócio-educativo no nosso trabalho. Nossa questão hoje é, antes do trabalho, lidar com isso. Eu acho que a gente vem aprendendo com muitas dificuldades, fazendo reuniões pedagógicas,


reuniões administrativas, propondo coisas, cumprindo 10% delas, mas nossa questão hoje é conseguir trabalhar com esses dois vieses, o educativo e o artístico, entendendo que o viés educativo é artístico e que o viés artístico é educativo. Não são coisas dissociadas. Nós temos aprendido muitas coisas, já cobramos exclusividade e hoje cobramos prioridade. Essas questões de estar, de manter, é difícil. ENIO Eu acho que é a prática. Precisa de uma prática maior, voltar ao que acontecia no Berilo que era uma efervescência muito grande. A gente precisa trazer isso de novo, principalmente aqui dentro, para que os empresários olhem, para que a comunidade olhe, para que as escolas olhem, saibam que existe. Acho que esse desejo de fazer alguma coisa pra rua é também por essa questão prática. Eu acho que a gente tem que se afirmar aqui dentro da comunidade. Isso vem sendo muito difícil, a comunidade está muito violenta, e a gente tem os preconceitos da pequena burguesia. Pra mim, eu acho que o Facetas tem que ir atrás de definir seu RG pra poder levar isso pra outro canto. Eu acho que se a gente tiver uma base forte a nossa obra enfrenta qualquer obstáculo. O Facetas precisa estar dentro dessa comunidade de uma forma muito direta, distribuir cartão pras pessoas, apresentar os espetáculos para as crianças, estar dentro das creches, coisas que a gente sempre fez.

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Cia. A Máscara de Teatro Mossoró (RN) Entrevista realizada no Hotel Monza, Natal, em 14 de agosto de 2009.

FERNANDO YAMAMOTO Me contem sobre a história do grupo, desde a sua criação. TONY SILVA Eu estava meio desencantada com os grupos dos quais eu tinha participado, e queria muito fazer um outro grupo que chamava “Eu comigo mesma”. (risos) Um belo dia, em 1997, a Petrobras me convida pra fazer um trabalho, e eu não queria encarar só. Convidei Damásio e Luciano Luz, que é um artista plástico, e fizemos esse trabalho. Fomos nos juntando, e em 1999 formamos de verdade o grupo, A Máscara. Ficamos trabalhando até conseguirmos uma grana para sermos registrados, em 2004. Daí pra cá a gente vem fazendo, brincando. Foi a velharia do teatro que tava querendo se juntar, e a gente se juntou! (risos) Marcos Leonardo dirigiu um espetáculo chamado A viagem de um barquinho. Até então estávamos eu, Marcos Leonardo, Kleber, Damásio, Renilson e Jeyzon. Depois passamos a pensar num texto clássico. Eu sempre fui apaixonada por Medeia, levei o texto pro grupo, ninguém contestou e começamos a fazer o trabalho. Eu tinha conhecido Marcelo Flecha e foi uma peregrinação até conseguir que ele viesse trabalhar com a gente, porque ele

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não é normal, né? (risos) Nós acabamos aproveitando que ele vinha fazer o Auto da Liberdade e, nesse período, nós trabalhávamos. Foi quando chegou Luciana, Joriana e fomos montando a trupe de oito pessoas. Nós trabalhávamos à noite, depois que ele terminava os ensaios do Auto da Liberdade.

FERNANDO Acabava uma jornada, começava outra. TONY Foi duro. Foram quarenta e cinco dias virando bicho. A gente realmente virou bicho pra poder sair, tudo foi feito a toque de caixa e a gente estreou com Medeia com um elenco de oito pessoas, um cenário enorme, e a gente viu que era impossível. Nós passamos seis meses pagando Marcelo, porque o cachê dele foi assim: por seis meses nós teríamos que manter o espetáculo em temporada, uma vez por semana. Esse foi o pagamento dele no espetáculo, parecia que ele não estava acreditando que a gente queria trabalhar com ele. De repente a gente fez esses seis meses, a gente apresentou pra quinze pessoas, pra uma, pra ninguém. 236

LUCIANA DUARTE E era um exercício. TONY Era. Era um exercício que a gente cumpria. Tínhamos uma obrigação de todas as vezes que terminávamos, ligar pra ele. Depois vimos a inviabilidade de manter o grupo, cada um com seus compromissos, muitas coisas. Então a gente viu a possibilidade de montar um espetáculo com duas pessoas. Fomos ao Maranhão conversar com Marcelo, passamos uma semana lá conversando, levamos um texto de Racine, Chico Cobra e Lazarino, que eu tinha na manga. Ele não prestou muita atenção no texto, passamos uma semana e Marcelo nem lia o texto, gostou do nome, mas não lia. Quando nós voltamos, perguntamos a ele o que ele achava, e ele disse que precisaria falar com Racine, porque estava faltando algumas coisas no texto. Eu liguei pra Racine e ele disse que não tinha terminado o texto ainda e que ele estava sendo montado na Paraíba. Aí ficamos nos perguntando que texto montaríamos, quando eu lembrei de um texto chamado Deus Danado, que eu já havia lido com Damásio e Marcos Leonardo. Mandamos pra Flecha e, em frações de segundo, ele devorou o texto e já tinha uma ideia. Quando ele ligava a gente passava mal no telefone! (risos) Era e-mail, telefone, e a gente vendo que ele tava gostando do texto. Criamos uma


estrutura para que ele viesse pra Mossoró, e ele veio. Os dois meninos, Luciana e Jeyzon, foram chegando, e a gente começou a leitura. Marcelo é muito duro nas coisas dele, disse que não tinha nada pros dois, mas eles disseram que não tinha problema e perguntaram se poderiam ficar ali. É claro que Marcelo deixou e, na oficina, os dois deram na cara da gente. LUCIANA Ele chegou pra gente e disse: “Eu quero que vocês me digam qual a função dos meninos aqui. Eu sei qual é, mas eu quero que vocês me digam, quero saber se vocês vão permitir que eles façam ou não”. Aí Tony e Damásio permitiram que a gente também fizesse os personagens. Ele disse que era isso que queria ouvir, mas que não poderia tomar a atitude sozinho. TONY E ficou bacana porque nós conseguimos, com quatro pessoas, quatro opções de trabalho, e cada uma é diferente.

FERNANDO Essas duplas não são fixas? TONY Não. Tinha as duplas fixas, que eram Luciana e Jeyzon, e eu e Damásio, que é a velharia (risos). Depois a gente expandiu. Eu já fiz o jogo com ela, Damásio já fez com Jeyzon, e a gente vai experimentando um ao outro. Quando ele veio, já trouxe tudo. Marcelo é metódico, conservador, tem tudo aquilo arrumado, pra cada dia de trabalho ele escrevia várias páginas e a gente pode pensar na publicação desse trabalho. Pode não ser uma obra-prima, mas é no que a gente acredita hoje. E assim a gente tá caminhando.

FERNANDO Hoje vocês tem em repertório só o Deus Danado? TONY Sim.

FERNANDO E vocês têm essa perspectiva de manter repertório? TONY Sim, queremos muito. É muito dispendioso manter, o figurino se acaba rápido, as coisas se acumulam sem a gente ter como dar conta, você produz, mas não tem onde colocar. Não queremos criar uma linha Marcelo Flecha, e sim ter várias vertentes dentro da companhia, ver quais as possibilidades de jogo com outros diretores.

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FERNANDO Como é o dia-a-dia de vocês? Como vocês se dividem em termos de funções, tanto artísticas quanto administrativas? TONY Nós somos tão relaxados. Hoje a gente consegue se concentrar mais e dividir as coisas. Eu, por exemplo, não sei administrar. Eu estou numa coordenação que não sei coordenar. Jeyzon e Damásio cuidam do financeiro e Luciana faz produção, mas é muito difícil. A gente se encontra quase todos os dias. Não são todos porque a gente não tem local. Nós temos uma casa que queremos transformar numa sede, mas precisamos de grana. A gente acha que o grupo só consegue trabalhar se tiver aonde ir. Ele fica perdendo tempo nas discussões de calçada.

FERNANDO Nesses encontros que vocês têm quase todos os dias, que tipo de atividade vocês fazem? TONY Pra resolver o que é preciso, o que está de imediato. Por exemplo, se tem um trabalho pra fazer, aí a gente conversa na reunião que tem toda terça-feira. 238

LUCIANA Pra treinamento, a gente se encontra toda quinta e sexta-feira no teatro, e fica uma hora e meia lá. E toda terça-feira tem reunião da companhia.

FERNANDO Esses horários são fixos? TONY Fixos. Mas todos os dias a gente se encontra porque é preciso tomar algumas decisões e eu acho que tem que ser coletivo, não pode ser individual.

FERNANDO Os integrantes sobrevivem do grupo ou têm atividade paralela? TONY Nós três temos atividades paralelas e Jeyzon tenta sobreviver de teatro, mas nós não conseguimos isso não.

FERNANDO Em relação à divisão de dinheiro? Vocês dividem por funções ou é igual entre todo mundo? TONY Quando temos um esquete, por exemplo, tiramos um percentual para o grupo, em média 5%, e o restante a gente divide. Quando é uma coisa só minha aí


nós não dividimos. Mas geralmente, quando me convidam, eu chamo as pessoas do grupo.

FERNANDO Como é o ponto de partida dos processos? Esse primeira faísca. Aparentemente, quando você fala, tem uma questão de pesquisa de texto, né? TONY A gente não tem uma busca do texto. Geralmente é o texto que está na mão. Eu, particularmente, estou muito preguiçosa pra ler texto sozinha. Eu preciso ter um bocado de gente falando pra eu entender.

FERNANDO Falem um pouco da relação dos trabalhos de vocês com essa pesquisa de espaço cênico. Nesses dois trabalhos a questão do espaço é fundamental, né? TONY Essa é uma das prioridades quando a gente tá em processo. É uma coisa certa na cabeça da gente. O que nós queremos, quando se propõe qualquer texto, é que o diretor tenha facilidade de transformar isso pra o espetáculo poder ser adaptado às diversas situações.

FERNANDO Os dois espetáculos que eu assisti de vocês densos, têm uma linguagem corporal muito visceral. Por outro lado, vocês já tiveram um infantil. A partir disso eu pergunto: em que grau a preocupação com o público interfere no processo de criação de vocês? TONY Não interfere. Com o Marcelo nós aprendemos que podemos fazer teatro a partir do gosto da gente. Se o público quiser vir, será bem-vindo.

FERNANDO Como é que se dá, por exemplo, esse projeto que vocês fizeram pelo interior? Como foi a experiência de levar um trabalho tão pesado pra esses públicos menos acostumados? TONY Eu comparo assim: as igrejas mandam nas pessoas, mas nós também mandamos. Quando a gente chega numa cidade as pessoas vão ver, acham lindo, se emocionam, entram no texto, esteja chovendo ou fazendo sol. É uma coisa incrível!

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FERNANDO Vocês têm o hábito de oferecer oficinas? TONY Às vezes. Geralmente é para iniciantes. LUCIANA A gente veio amadurecendo nesses quase quatro anos que trabalhamos com o Marcelo, e as oficinas de corpo, voz e aquecimento foram aprimorando. São coisas muito conhecidas já, mas que o amadurecimento dá uma outra qualidade ao trabalho, fica diferente.

FERNANDO E aí vocês trazem esses elementos dos processos pra trabalhar nas oficinas? LUCIANA Exatamente. Até porque é um exercício pra gente, ver como é que o outro percebe, como ele vê.

FERNANDO E vocês costumam oferecer oficina com frequência? LUCIANA Nós oferecemos no Myriam Muniz, onde nós trabalhamos as oficinas 240

dentro do processo, e fomos convidados pela Cia. Pão Doce pra dar uma contribuição ao grupo, e nós fizemos esse trabalho com ele. TONY Nós fomos convidados pra Portalegre (RN) pra dar uma oficina de iniciação também. A gente tá se propondo a fazer as oficinas por módulos. Primeiro com as coisas mais básicas, depois aprimorando, trabalhando figurino, cenografia, adereços até chegarmos numa coisa chamada interpretação. A gente pensa em fazer isso em quatro módulos e o SESC também está querendo fazer um trabalho com a gente.

FERNANDO Você citou o registro que o Flecha fez do processo. Vocês têm essa preocupação de registrar os processos de vocês através de foto, vídeo ou escrita? TONY Sim, temos essa preocupação porque, caso contrário, passa e morre. Em teatro é assim, ou se registra ou nunca mais você vai ter a ideia do que foi aquilo. Com o Marcelo essa nossa preocupação aumentou, porque ele ensinou muita coisa pra gente.


FERNANDO E como é a relação d’A Máscara com outros grupos, tanto de Mossoró como de fora? Vocês costumam ter algum tipo de espaço de troca seja ele de conversa ou de troca prática? TONY Não, nós tão temos. Agora é que nós estamos tentando. Não sei se foi porque a gente foi muito egoísta em não chegar perto dos outros, mas agora é que a gente tá conseguindo se aproximar do Tarará, da Pão Doce, da Xaréu, que tá chegando. Esse ano a gente quer estar mais perto, para repassar e aprender com os outros. A gente tá aberto, porque é muito difícil manter essa questão dos trabalhos. A gente primeiro tem que conhecer a nossa possibilidade pra poder meter o dedo nas coisas dos outros.

FERNANDO E enquanto articulação política? A articulação dos grupos enquanto classe em Mossoró? Existe algum tipo de movimentação nesse sentido? TONY Nós tínhamos um movimento que era muito forte aqui em Mossoró, mas nos separamos. Geralmente essas coisas são puxadas pelo povo do teatro que carrega o piano e o povo se senta pra tocar. A gente sentiu um baque muito grande quando acabaram com o prêmio de fomento, que fazia com que a gente conseguisse montar os espetáculos, então a gente começou a se articular. Os dois anos em que o prêmio esteve suspenso foram dois anos sem montagem de espetáculos. O Tarará tá fazendo, porque vive exclusivamente da arte e vai atrás, são antenados, a gente tá muito atrás disso. Mas a gente tá tentando.

FERNANDO Bem, pra gente finalizar, qual é a grande questão pr’A Máscara hoje? TONY Como a gente vai fazer pra ter um novo espetáculo, o que nós queremos. Eu queria muito uma comédia, quebrar um pouco tudo isso que eu venho trazendo, voar mais leve, poder dizer que vou do inferno ao céu em fração de segundos. E tem os projetos. Hoje nós mesmos fazemos os projetos, estamos abrindo mais, dividindo mais, já sabemos como fazer, fizemos alguns e estamos esperando que no próximo

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ano seja aprovado pelo menos um. Se um for aprovado é sinal que acertamos! São as coisas que a gente tá priorizando: o espetáculo, os projetos e festivais. A gente precisa estar mais junto das pessoas que estão fazendo, pra entender como eles estão pensando.

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O Pessoal do Tarará Mossoró (RN) Entrevista realizada no Hotel Monza, Natal, em 13 de agosto de 2009. 245

FERNANDO YAMAMOTO Falem um pouco de como é que se deu o processo de criação do grupo. DIONÍSIO DO APODI Eu e Rose fazíamos parte do grupo da universidade, o GRUTUN, além de Dayse, que era do GRUDUN, o grupo de dança. Nós passávamos pelos mesmos problemas, que eram os entraves burocráticos pra se fazer arte dentro da universidade, a ponto de você precisar mandar um ofício pra poder lavar seu figurino. A partir daí nós fomos vendo a possibilidade de estudar somente, não queríamos fazer um grupo. Ludmila chegou desde o início, mas não era envolvida ainda, ficava observando. Era um grupo de estudos mesmo, fazíamos exercícios, estudávamos textos, poesias e nos reuníamos de madrugada lá em Mossoró. Chegou um ponto que vimos que não tinha mais como ficar só estudando informalmente, e decidimos nos organizar enquanto grupo. Foi aí que nasceu o nome também. Lançamos a proposta de cada um trazer uma sugestão de nome, para que o grupo ficasse


“Grupo de teatro tarará”. Os dias foram passando e o nome foi ficando. O nome surgiu daí, de não ter nome. Então o grupo surgiu dessa necessidade e, desde o início, o nosso sonho era viver de teatro, viver do grupo, não era um projeto que a gente queria fazer pra fazer teatro quando sobrasse tempo do seu trabalho. Na época todos trabalhavam fora, mas já vinha essa necessidade.

FERNANDO Surgiu com essa perspectiva? DIONÍSIO Sim. A gente já queria isso. Sempre quisemos enfrentar esse desafio e, hoje, todos vivem do grupo. Sobrevivem, né? Porque é muito complicado. Mas todos estão exclusivamente para o grupo.

FERNANDO A partir do surgimento, traça um pouquinho a história do grupo a partir daí. DIONÍSIO Esse início foi em 2002. Pra você ver que era um grupo de estudo mesmo, a gente só veio montar espetáculo no final de 2003. Como eu era ligado à rádio e 246

jornal, nós conseguimos um programa de rádio, onde a gente fez o Programa do Pessoal do Tarará. Era um programa semanal onde a gente foi levando textos pras ondas do rádio, dramatizando como se fossem as antigas radionovelas. Nessa história, nós fomos estudando muita coisa, conhecendo o teatro grego, Aristófanes, Dias Gomes, Ariano Suassuna. Alguns iam pro rádio, outros não, e isso foi virando uma febre em Mossoró, todo mundo queria ouvir as novelinhas, e isso foi muito interessante pra gente. Nós só passamos a querer fazer o primeiro espetáculo mais adiante, e isso foi bom, porque até hoje a gente ainda carrega umas características dessa coisa do rádio: a gente estudava o texto, dividia os personagens, pensávamos na questão das vozes e nisso o grupo começou a brincar demais, investigar diversas maneiras de falar. LUDMILA ALBUQUERQUE Até porque como eram poucas pessoas, e os textos tinham uma enorme quantidade de personagens, cada um fazia três ou quatro personagens, e precisava diferenciar com a voz. Isso foi fundamental pro nosso primeiro trabalho, que veio da rua. Eu acho que a gente não poderia ter deixado de passar por isso antes do primeiro espetáculo. Em cada radionovela você ter que fazer três ou


quatro coisas, e aquilo exigir uma desenvoltura maior de voz, você já começa a usar sua voz de maneira diferente, você já usa fazendo um negócio mais engraçadinho, mais ridículo. DIONÍSIO Todos os espetáculos apareceram naturalmente na nossa vida. As coisas vão nos envolvendo e a gente acaba percebendo que aquele é o momento. Por exemplo, o Sanduíche de gente surgiu porque o rádio tem uma audiência muito popular em Mossoró, e a gente começou a pensar em fazer teatro para esse público que assistia à gente, esse público mais comum, mais carente disso, o público da rua. Foi daí que veio a opção de fazer nosso primeiro espetáculo na rua. Nós tínhamos Grimário, do Alegria Alegria, como uma referência, apesar de nenhum dos integrantes nunca terem visto algo do Alegria. Convidamos Grimário e chamamos Crispiniano para escrever o texto, porque era a pessoa lá de Mossoró que a gente sabia que poderia fazer isso, e também era um nome que poderia abrir portas pra gente, e daí surgiu o espetáculo. Esse trabalho projetou o grupo na cidade. Depois desse trabalho não tinha alguém na cidade que não soubesse o que era O Pessoal do Tarará, porque a gente pegava uma carrocinha que era puxada por uma bicicleta e ia para todo canto. Teve uma época em que o Alegria Alegria passou um bom tempo indo num dia da semana para o calçadão da Rua João Pessoa, e a gente decidiu fazer a mesma coisa aqui em Mossoró. Passamos mais de um ano indo toda sexta-feira para a principal praça da cidade. Isso ficou tão tradicional que até hoje as pessoas perguntam quando a gente volta. Isso tudo foi dando um fogo muito grande. Em seguida veio O Inspetor Geraldo, de 2005, que foi o aperfeiçoamento do primeiro espetáculo da rua. Com o Sanduíche de gente nós chegamos numa época que tínhamos alguns entraves pra poder circular, pois a carroça era muito pesada e a bicicleta era só estética, não tinha condições de puxar por uma distância muito longa. Daí veio a necessidade de fazer um espetáculo mais simples, onde cada ator tinha uma bicicleta, e a gente pudesse percorrer todos os bairros pedalando, sem precisar de carro pra levar. Antes desse espetáculo a gente teve uma experiência com um filme sobre a realidade das ruas de Mossoró, que a gente intitulou Um chão de esperança, e isso já serviu de apoio pra eu

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começar a dirigir, foi o meu treino pra começar a direção. Ele também porque serviu pra eu entrar nesse espetáculo com uma ideia maior de organizar as coisas, adaptar, traçar o roteiro, etc. O Inspetor Geraldo foi um momento em que a gente tinha três integrantes no grupo, precisava de mais gente, e veio uma meninada danada. É aí que eu digo que O Inspetor Geraldo é o Sanduíche de gente mais aperfeiçoado. A peleja do amor eu acho que é o complemento da pesquisa que a gente iniciou em O Inspetor Geraldo de misturar o erudito com o popular. Em 2005, nós estávamos estudando alguns textos, e nos apaixonamos por Cyrano de Bergerac. Começamos a montar com Lenilton, mas vimos que não dava ainda, que não era o momento, que a gente precisava preparar essa meninada primeiro, e fizemos isso com O Inspetor Geraldo. Hoje a turma está mais forte em A peleja do amor graças ao O Inspetor Geraldo. Os meninos que chegaram com 16, 17 anos, hoje estão com 20, 21, mais maduros, e fazem o nosso Cyrano – que é o Severino –, de uma forma que, se tivéssemos feito naquele momento, não teríamos conseguido. 248

FERNANDO Então, o grupo é um espaço de formação? DIONÍSIO É, e gente sempre deixa muito aberto pra que as coisas possam surgir. Por exemplo, a gente tem dificuldades em relação às questões mais técnicas, e hoje um ou outro começa a despertar pra questão da iluminação, maquiagem, figurino, etc. Como essa formação acontece de forma muito devagar no teatro, eu acredito que os frutos ainda vão surgir e que a gente ainda não se descobriu por inteiro.

FERNANDO Mas vocês estão investindo nessas formações diferentes? DIONÍSIO Sim. A gente tem uma dificuldade enorme, porque mesmo que você traga profissionais de fora, é interessante ter no grupo integrantes que também passem a ter essa preocupação. Por exemplo, Ronaldo fez nossa luz, e por dois anos Alana e Luciana ficaram mexendo nisso. A gente investiu nisso por dois anos as duas saíram, agora precisa começar tudo de novo, investir tudo de novo. Hoje Alex está envolvido com isso e a gente está investindo nele. Ludmila já está investindo em maquiagem também.


FERNANDO Como é que se dá a rotina do grupo hoje? LUDMILA Hoje a gente trabalha diariamente, de segunda à sexta, de 07h às 11h e de 14h às 18h. É um trabalho intensivo. Nós trabalhamos toda a parte física do ator, corpo, voz, manutenção de espetáculo e nos preocupamos também com o desenvolvimento do intelecto do indivíduo. A carga horária do grupo é muito puxada, há muitas atividades a se fazer. Não tem ninguém que esteja fazendo uma faculdade, e como há essa cobrança da sociedade, a gente tenta suprir com a formação que a gente procura ter no grupo, estudando sobre tudo: pintores, clássicos, a bíblia, autores, etc. Estudamos individualmente e depois repassamos pros outros o que estamos estudando, discutimos, trazemos nossas impressões sobre as coisas que fazem parte do nosso fazer teatral. Muita gente tem essa ideia de que o teatro só se trabalha quando precisa ensaiar um espetáculo, mas a gente passa oito horas por dia trabalhando e nunca dá, nunca é suficiente, termina a manhã e você já tem um acúmulo de coisas pra fazer à tarde, termina a tarde e não sobra.

FERNANDO Como é que vocês se dividem em relação às funções, tanto artísticas quanto administrativas? LUDMILA Eu, Dionísio e Rose, por estarmos desde o início e por termos passado por outras coisas, estamos um pouco sobrecarregado nesse sentido. Hoje nós estamos ensaiando durante o dia, mas acontece de precisar que eu ou Rose, que tratamos da produção, paremos o ensaio pra resolver alguma coisa, um telefonema, um problema de uma viagem e isso interfere diretamente no que a gente tá fazendo. O interessante seria que a gente tivesse pessoas de dentro do grupo ou que se aproximassem do grupo com essa visão, com esse objetivo. DIONÍSIO A exemplo de tudo no grupo, isso foi amadurecendo aos poucos. No início do grupo eu fazia o projeto, mandava, aprovava e depois prestava contas. Aos poucos essa coisa foi se transformando. Hoje quem escreve os projetos ainda sou eu, mas depois que aprova eu não tenho mais nada a ver com ele, porque Ludmila e Rose tomam conta da execução, de cumprir os gastos, da prestação de contas. Ou seja, me

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aliviou. No pensamento artístico eu também não estou mais sozinho, porque Alex é um cara que me dá muitas possibilidades, ele não dirige espetáculos ainda, mas se tem um espetáculo em que eu não estou, eu sei que posso resolver outras coisas porque Alex vai tomar conta daquela parte, seguir coordenando. Hoje eu tenho ficado mais na parte de pensar o planejamento, o lado artístico, me aborreço bem menos devido à Rose, Ludmila e Alex, uma parte no plano artístico e outra da produção.

FERNANDO E os demais integrantes? DIONÍSIO Os outros também. Por exemplo, essa parte de produção, que Ludmila e Rose resolvem, a gente não cobra delas um reparo nos figurinos, porque pra isso já tem outras pessoas, a turma mais jovem já toma conta disso.

FERNANDO Você falou que todo mundo hoje vive do grupo, o que é uma condição extremamente rara, não só no Nordeste, mas no país. Quais são as principais fontes de financiamento do grupo? Como é que 250

vocês estão conseguindo fazer isso? DIONÍSIO Eu acho que em vários momentos do grupo aconteceu assim: apareceu uma necessidade. Por exemplo, teve um momento em que a sede do grupo era onde eu morava. Chegou um momento em que a gente precisava ter uma sede só do grupo, e tivemos. Depois a gente precisava de uma sede que tivesse um local pra gente ensaiar tranquilamente, e partimos pra isso. Desde o início, eu saí do emprego pra viver desse negócio. Ludmila ainda aguentou mais essa situação. Outras pessoas foram chegando e vivendo exclusivamente disso. Hoje a gente consegue sobreviver através de editais, por exemplo. Eu vou dar um exemplo. No final do ano passado nós tínhamos noção de que, este ano, nós teríamos que ter todo mês um dinheiro para cada integrante. A gente foi fazendo um planejamento ao aprovar os projetos. O projeto Apodi, Rota das Artes previa cachê durante três meses, pros meses seguintes havia outro projeto, e assim as coisas foram programadas. Agora estamos em agosto, mas desde maio já estamos pensando no ano que vem, todos os projetos já visam isso. É claro que com os editais não há segurança, porque você não sabe se vai ser


aprovado. Aí também vem a venda de espetáculos. Os integrantes precisam ser mantidos para que eles, mesmo nessa dificuldade, possam ter seu dinheiro, “comprar os tomates”, como diz João Marcelino. Além disso tem a questão também das despesas com a sede. A gente não canta isso vitoriosamente porque a gente sabe que mais pra frente é complicado.

FERNANDO Não é uma condição permanentemente conquistada, né? DIONÍSIO É. A gente tomou os Clowns como referência. O Alegria Alegria foi uma referência para o nosso início, para fazermos nosso teatro, irmos pra rua, fazer aquele negócio toda semana e os Clowns são um referencial que nos atingiu também. Não só por uma passagem que eu próprio tive nos Clowns rapidamente, mas também por ver, ler, perceber, estar perto das pessoas. Eu lembro do momento em que, após o Palco Giratório, vocês tinham uma coisa que cada um, todo mês, estava recebendo. César Ferrario me falava era de uma dignidade tão grande chegar lá e ter o dinheiro todo mês. E é isso, é um referencial dos Clowns, do Galpão. Neste festival eu distribui os integrantes do grupo pelas cinco oficinas, pra quando voltar pra Mossoró, fazer um intensivo pra disseminar isso. Eu fiquei na do Romulo Avelar, aí você vê o Galpão como um exemplo, talvez o grupo de teatro mais bem estruturado do país, mas as dificuldades não são muito diferentes da nossa. São numa escala maior, claro, mas são os mesmos problemas. A gente, por mais que tenha esses projetos aprovados e esse planejamento, às vezes a burocracia atrapalha e a gente passa um mês, dois, três pensando em como fazer, toma dinheiro emprestado aqui de um e de outro até o dinheiro entrar pra gente cobrir, e o Galpão também faz isso! Romulo falava de um empréstimo ao banco que eles fizeram esse ano por causa da burocracia. A gente não pede ao banco, mas pede à família! (risos) Ou seja, os problemas são os mesmos. Em escalas maiores e menores, mas os mesmos.

FERNANDO E como é que é feita a divisão de dinheiro? É igual, por funções ou vocês têm outros critérios?

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DIONÍSIO Independente de atuar em um ou outro espetáculo, cada um recebe um valor fixo. Tem uma coisa nova que surgiu esse ano por conta dos riscos. A gente trabalha com uma espécie de bônus, gratificação. Tem o piso que pra todo mundo é igual e, dependendo das outras funções que você acumule, tem uma espécie de gratificação, que também não é muita coisa não. Tem essa coisa até pra incentivar, pra estimular as pessoas a se darem mais, porque apesar das oito horas, ainda é um tempo muito pequeno. Eu, por exemplo, respiro o grupo praticamente vinte e quatro horas por dia. Não tem como eu falar que trabalho aqui só oito horas. A gente só dividiu o tempo dessa forma porque era uma maneira da gente tentar se parecer com pessoas mais normais, pra poder assistir à novela, estar com a família.

FERNANDO Falando um pouco sobre os processos criativos de vocês, como se dá, em geral, esse ponto de partida? Você situa, de alguma forma nesse relato histórico, mas como é que é a busca, o ponto zero, a primeira faísca para a próxima montagem que vocês vão fazer? 252

DIONÍSIO Eu acho que ela surge naturalmente, ninguém força nada. Quando a gente tentou montar alguma coisa a gente não montou. Por exemplo, a gente estudou as peças de Shakespeare, fazíamos questionários, as pessoas levavam, estudavam, nós adquirimos os livros, líamos Harold Bloom, parecia uma sala de aula. Pra cada obra nós tínhamos um bom período de estudo, e a gente pensava que iria montar Shakespeare. Passamos uma semana discutindo que obra montar, selecionamos algumas, e não lembro nem se a gente chegou a escolher alguma. Não montamos. É óbvio que todo esse estudo que tivemos na obra de Shakespeare reflete no que a gente faz hoje, chegou nos espetáculos da gente LUDMILA Aconteceu a mesma coisa com A Peleja do amor no coração de Severino de Mossoró. Na época só éramos quatro, não tinha gente suficiente pra montar, nem amadurecimento pra isso também. A gente deixou ele engavetado e, a partir do momento que surgiram pessoas com O Inspetor Geraldo, a gente retomou, tentou ver se dava certo.


DIONÍSIO Também tem a coisa do repertório. O Sanduíche de gente serviu para apresentar o grupo à cidade de Mossoró, pra mexer um pouco com a cidade, era a meninada que tava chegando, cheia de energia. O Inspetor Geraldo chega pra treinar aquela meninada toda que chegava pro grupo. A Peleja do amor no coração de Severino de Mossoró é um espetáculo que põe a gente num nível que faz com que a gente veja que era preciso ser mais profissional. Foi quando a gente começou a estudar mesmo, música, instrumentos, toda essa ideia do profissional foi se concretizando, a disciplina de ter horários, a rotina de ensaios. O que a gente tá fazendo agora eu acho que vai servir pra mostrar que o grupo sabe também fazer outras coisas. É uma outra linguagem. Nós fizemos dois espetáculos de rua e chamaram a gente de grupo de teatro de rua. Aí a gente deixou um, ficou com o segundo e veio A Peleja do amor no coração de Severino de Mossoró. Duas adaptações. Viramos o grupo das adaptações. Esse espetáculo agora vai provocar outra coisa. Nós não usamos o verbo, a palavra vem através do próprio corpo, é muito diferente pra gente.

FERNANDO Vocês falaram sobre essa alternância de espaços, havendo inclusive tentativas de estigmatiza-los, como um grupo de rua, e então vocês seguem pro palco, etc. A relação com o espaço parte geralmente como uma premissa do processo, ou seja, entra-se no processo pensando montar com uma determinada configuração espacial, ou durante o processo é que a relação com o espaço vai se desenhando? DIONÍSIO É durante. No caso de A Peleja do amor no coração de Severino de Mossoró nós começamos já para a rua, porque estávamos curtindo muito a rua com O Sanduíche de gente, queríamos continuar lá. Depois foi que a gente foi percebendo que estávamos indo pra outro local, que nós estávamos querendo falar de uma forma mais calma, diferente do que a rua iria permitir, as circunstâncias nos levaram para aquilo. O atual projeto, Os cachorros, até pouco tempo atrás não sabíamos se ia ser numa sala, e as próprias coisas foram se estabelecendo. Geralmente quando a gente define: “É isso”, não vai ser. As coisas vão se transformando.

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LUDMILA O fato de o nosso local de ensaio ser uma sala, e todos os nossos exercícios serem tão próximos, nos levou a pensar em um espaço pequeno, mais alternativo, em que as pessoas possam estar mais próximas. São as circunstâncias que vão pedindo.

FERNANDO Nessas incursões por diferentes espaços, a relação com o público também varia, certo? Em que nível a preocupação como público interfere nos processos de criação do Tarará? DIONÍSIO Eu acho que interfere no fato de se fazer uma linguagem mais acessível. Por exemplo, em Sanduíche de gente, nós conquistamos um público muito carente, e eu acho que a gente jamais abriu mão desse público. Tanto é que, até hoje, nos espetáculos no Teatro Dix-Huit Rosado, a gente tem um trabalho junto a comunidade onde a nossa sede está, que é uma comunidade carente, com um alto índice de consumo de drogas. A gente sempre tem a preocupação de levar esse povo. Eu ouso até dizer que a gente que começou a botar o povo de havaianas no Dix-Huit. Há um tempo 254

atrás, era até proibido. Mas não tinha como cobrar uma coisa do nosso público que ele não era. Você pergunta se interfere nos processos. Eu acho que sim e a gente interfere neles também. Não é uma coisa que a gente faça pra poder ter público, mas a gente passa a ser influenciado por isso, é até inconsciente: “Será que seu Manoel vai entender isso que a gente tá fazendo? Será que seu Chico lá da esquina vai entender esse negócio?” LUDMILA Isso vem desde o início, mesmo. Talvez seja inconsciente, porque todos do grupo vêm de famílias humildes, que não tinham condições de pegar um dinheiro e ir ao teatro. Então a gente sempre teve essa preocupação de fazer algo que fosse acessível pra qualquer pessoa. A gente quer trazer aquela pessoa lá da favela aqui pro Dix-Huit, e fazer com que ela participe e entenda.

FERNANDO O grupo tem uma preocupação muito grande com o registro dos seus processos. Vocês estão na terceira edição de uma revista, um jornalzinho sobre o grupo, tem o DVD da caravana que vocês fizeram,


etc. Falem um pouco sobre como se dá essa preocupação com o registro dos processos do grupo. DIONÍSIO Eu tenho o diário de bordo de todo o processo de Sanduíche de gente, d’O Inspetor Geraldo e também d’A Peleja do amor no coração de Severino de Mossoró. Nesses três primeiros espetáculos eu tinha mais essa função de escrever tudo, era o meu próprio diário. A partir de então os outros começam a escrever também. A gente começou a estudar o livro As Aventuras do Capitão Fracasso junto com os estudos de Stanislavski. A gente pegava os capítulos e fazia improvisações. Isso não virou um espetáculo, mas eu acho que lá na frente a gente pega ele de volta. A gente tem tudo isso documentado em foto, vídeos também, os exercícios, os processos. Foi nesse momento que a gente passou a utilizar um blog interno para o grupo, onde cada semana um escrevia, relatava o que foi feito e abríamos para os comentários.

FERNANDO Como é que tem sido essa coisa da publicação de vocês? O que é que isso trouxe de ganhos? Das três primeiras edições, o que é que vocês conseguem avaliar que foi trazido pro grupo por conta disso? LUDMILA A primeira edição foi mais um espaço que a gente pudesse falar de teatro. DIONÍSIO É, um espaço pra circular, há uma carência disso. Em Mossoró não há um espaço para discussão, pra gente falar sobre as nossas coisas, sobre o fazer teatral. Esse jornal é experimental, vai se transformar numa revista. Tem muita gente que passa por Mossoró e que a gente pode fazer uma entrevista pra marcar, pra deixar o registro. A ideia é essa. Não é, nem tanto, o objetivo de registrar nosso dia-a-dia. É mais pra construir um espaço de convergência e de divergência, colocado de uma forma muito respeitosa e democrática.

FERNANDO Legal. Registra o pensamento do grupo, né? DIONÍSIO O nosso registro mesmo vem nos diários de bordo. Acho que ao longo da nossa trajetória a gente vai lançando.

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FERNANDO E como é que se dá a relação do Tarará com outros grupos? Vocês têm uma prática de criar espaços de troca, de conversa, algum tipo de compartilhamento? DIONÍSIO Até um tempo atrás a gente assume que não tinha mesmo, mas depois a gente foi vendo a necessidade de estarmos mais próximos, mais juntos. Agora a gente vive um momento muito bom em Mossoró, porque todo mundo tá percebendo que a gente precisa conhecer o que o outro tá fazendo. Não sei se é muita pretensão, mas essa publicação da gente pode estar ajudando nisso. LUDMILA Eu acho, particularmente, que quando nosso grupo surgiu houve aquele medo do novo, a gente sentia olhos estranhados pra gente. E eu, particularmente, tinha um receio muito grande da aproximação porque eu achava que existia esse olhar diferente, esse medo de se tomar o espaço “deles”. São tão poucas pessoas querendo colaborar, a maioria querendo derrubar e você fica com o pé atrás mesmo que você nunca tenha passado por aquilo. Eu acho que essa publicação, realmente, 256

tem ajudado muito. A partir do momento que a gente solicita a um grupo que ele fale dele, dos processos dele começa a existir uma troca, como houve com a Cia. Máscara, que foi a mais recente. DIONÍSIO Se alguém chegasse em Mossoró a gente, sempre que podia, chegava junto. Teve uma vez que o Muito barulho por quase nada foi pra Mossoró, e Marco e César foram lá nos ver. Enfim, não é uma coisa contínua, mas isso ajuda também. Muita gente passa por Mossoró e a gente chama pra conhecer nosso trabalho, e isso é um espaço de compartilhar. Mas não é o ideal ainda, não acontece com tanta frequência.

FERNANDO Como é a atuação política do grupo? O Tarará tem um episódio muito simbólico que foi o confronto com a prefeitura, quando foi proibido de utilizar a praça, né? DIONÍSIO Eu acho que a prefeitura fez um grande favor pro grupo quando mandou nos prender lá na praça, em 2003. (risos) Vendo hoje de fora, aquele momento


foi muito desagradável, não poder apresentar na praça, mas foi um momento que, até hoje, eu me arrepio todinho só de lembrar. A gente convocava as pessoas, as pessoas não deixaram, o público não deixou a polícia interromper, a gente continuou o espetáculo e desafiou, foi pros jornais, e disse que estaria na semana que vem lá novamente no mesmo horário, e isso ecoou muito forte. A gente percebia aqui e em outros locais do país que a coisa foi longe, a quantidade de artigos nos jornais, etc. A gente não estava gostando daquilo, era muito desagradável, mas hoje a gente vê que foi importante. Teve um dia que a prefeitura comprou a capa dos três jornais da cidade pra dar uma nota esclarecendo o fato.

FERNANDO Pra gente que faz uma atividade tão marginal que ninguém dá atenção nenhuma, conseguir mobilizar o poder público a esse ponto é um marco, é uma coisa muito importante. DIONÍSIO E sem contar que no dia que a gente foi, ninguém mais mexeu com a gente e, após o espetáculo, a roda imensa na rua, as pessoas se abriram, todas elas deram as mãos naquela praça lá da catedral que é muito ampla e ficou aquela roda bonita com todo mundo de mão dada cantando o hino nacional. Eu me arrepio só de lembrar. Foi um momento marcante. Eles acabaram fazendo um favor porque aquilo fortaleceu demais o grupo, até hoje as pessoas falam. E a gente não tem problema nenhum de, por exemplo, ir atrás de um patrocínio com a prefeitura. Foi uma coisa que aconteceu e que a gente superou.

FERNANDO E em relação aos autos, os mega espetáculos de rua, que Mossoró é tão famosa? O Tarará sempre teve uma postura de não ser dependente dessa política de eventos que as gestões municipais mossoroenses fazem. Já houve diversas ocasiões em que vocês recusaram participar desses autos, né? DIONÍSIO Os autos nunca influenciaram na nossa produção. A gente nunca deixou de fazer algo pra fazer um auto, eu acho que a diferença foi essa. A gente até participou e muitas vezes recebemos convites de amigos, mas se não pudéssemos ir,

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não íamos. Nunca priorizamos um auto em detrimento do grupo. O grupo sempre foi a prioridade e o próprio grupo sempre pensou desse jeito, porque quando vem convite, sabe-se que, se for um, irão todos. LUDMILA Primeiro é o grupo. Se a gente não tiver com nada programado, se não interferir em nada que a gente esteja fazendo no grupo a gente participa, sem problema nenhum, mas caso contrário a gente abre mão.

FERNANDO Pra gente finalizar, qual a grande questão do Tarará hoje, que está no topo da pauta? DIONÍSIO Eu acho que é como aliar esse planejamento, essa profissionalização, esse viver de teatro, esse corre-corre do dia-a-dia, da profissão ao lado artístico e nenhum dos dois perder. LUDMILA Um não interferir no outro. DIONÍSIO É como você continuar fazendo um trabalho diário, ensaiando direiti258

nho, com qualidade e, ao mesmo tempo, a gente produzir isso porque a gente tem essas responsabilidades. É a sobrevivência mesmo. Como manter o artístico com a produção. A gente ainda não teve a oportunidade de formar uma pessoa especificamente para isso, que eu acho que é o ideal. LUDMILA Se a gente tivesse essa pessoa, as coisas fluiriam bem mais, certamente.



Este livro foi composto em tipologia Garamond e Didot, em papel Polen Bold Natu 90 g/m2 e impresso na grĂĄfica ImpressĂŁo, Natal/RN. Tiragem: 600 exemplares.


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