Livro 03 Clowns

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FERNANDO YAMAMOTO


Realização Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare Coordenação do projeto Fernando Yamamoto Produção Renata Kaiser Assistência de produção Camille Carvalho Transcrições Dudu Galvão, Joel Monteiro e Paula Queiroz Capa Caio Vitoriano Projeto gráfico Caio Vitoriano Diagramação Dimetrius Ferreira Arte-Final Dimetrius Ferreira (Miolo) e Larissa Azevedo (Capa)


FERNANDO YAMAMOTO

2012



Sumário Um olhar sobre o teatro de grupo e sua diversidade André Carreira.................................................................................................................... 09 Encontros e mapeamentos Fernando Yamamoto......................................................................................................... 15 01.MARANHÃO Novos desejos, velhos problemas Marcelo Flecha .................................................................................................................. 23 Entrevistas Cena Aberta | São Luís ................................................................................................... 29 Pequena Cia. | São Luís ................................................................................................... 39 Santa Ignorância | São Luís ............................................................................................ 49 Tapete | São Luís .............................................................................................................. 59 Xama Teatro | São Luís ....................................................................................................73 02.PERNAMBUCO A permanência de grupos de teatro em Pernambuco: um breve percurso histórico Leidson Ferraz ................................................................................................................... 85 Entrevistas Arte-em-Cena | Caruaru ................................................................................................. 91 Coletivo Angu | Recife .................................................................................................... 99 Fiandeiros | Recife ......................................................................................................... 111 Galpão das Artes | Limoeiro ....................................................................................... 125 Magiluth | Recife .............................................................................................................135 Marco Zero | Recife ...................................................................................................... 147


Quadro-de-Cena | Recife .............................................................................................. 157 TEA | Caruaru ............................................................................................................... 167 Totem | Recife ................................................................................................................ 179 03. PIAUÍ Cartografia da cena local Maneco Nascimento e Francisco Pellé ........................................................................ 191 Entrevistas Harém | Teresina ........................................................................................................... 199 Raízes | Teresina.............................................................................................................. 211




Um olhar sobre o teatro de grupo e sua diversidade André Carreira UDESC/ CNPq / Grupo Teatral Experiência Subterrânea

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O teatro de grupo é hoje uma força fundamental que contribui para a definição do teatro brasileiro para além das fronteiras do eixo São Paulo – Rio de Janeiro. Esse conjunto de coletivos organizados sob as mais diversificadas formas de estruturação responde por uma produção espetacular que constitui a ampla maioria do teatro que se faz no Brasil nos últimos trinta anos, e tem conquistado um espaço cada vez maior nos circuitos de apresentação. Ainda que saibamos da importância crescente do teatro de grupo, seria um equívoco supor que o termo ‘teatro de grupo’ nos permita definir um formato de trabalho e organização claramente definidos. Mesmo que o uso dessa terminologia tenha tido início nos anos 80 no seio de um movimento teatral bem caracterizado, isto é o Terceiro Teatro segundo definição de Eugenio Barba, hoje em dia a expressão define mais um lugar de autonomia do que um modo de operação que possa ser bem delimitado.


Quando falamos de um ‘teatro de grupo’ podemos ter a ilusão de que este seria um teatro que nasce fruto de projetos coletivos que estão além dos procedimentos de um teatro comercial, ou daqueles projetos individuais encabeçados por diretores que reúnem elencos de ocasião. O teatro dos grupos se definiria pela permanência do coletivo, e pelos projetos artísticos e políticos. Mas ‘teatro de grupo’ seria aquele teatro que se coloca à margem de um modelo puramente empresarial? Ainda que isso seja verdade para muitos grupos que se enquadram nesse universo, não significa dizer que este teatro não conviva bem com procedimentos empresariais que hoje em dia contaminam todas as formas de produção artística. É importante ter consciência dessas hibridações para evitar um olhar purista ou inocente que tome o teatro de grupo como algo ideal e homogêneo. Teatro de grupo pode ser considerado um termo que se desdobra da expressão “grupo de teatro”, no entanto, a única semelhança é a presença da unidade coletiva do pequeno grupo de trabalho. Com a inversão dos termos se produziu uma valorização 10

do grupo como instância criativa. Este teatro seria definido pelo projeto grupal antes que pelas regras do mercado do espetáculo. Os adeptos à Antropologia Teatral, que podem ser considerados os responsáveis pela disseminação da ideia de teatro de grupo, atribuíam valor aos processos grupais como capazes de gerar não apenas novas formas de organização, como também, de produzir novas teatralidades, e até mesmo um novo teatro. Uma dos elementos que se destacou nesse processo foi a certeza, ou a esperança de que o teatro de grupo reafirmasse a comunidade teatral internacional como âmbito de criação e intercâmbio. As formas de trabalhar que podemos identificar no teatro de grupo podem até ecoar a experiência de grupos teatrais históricos do nosso teatro como o Teatro Oficina e o Arena (coletivos que marcaram os anos 60), mas, esses modelos já não representam a influência mais marcante no atual movimento dos coletivos. Ainda que seja impossível encontrar elementos nos permitam ver uma homogeneidade, ainda que relativa,


pode-se dizer que estes grupos se definem pela auto reivindicação de que pertencem ao teatro de grupo. Este sentido de pertencimento ao teatro de grupo implica no reforço de processos de identificação que não apenas funcionam no interior do movimento, como repercutem entre os meios de comunicação, a crítica e a pesquisa acadêmica. Apesar disso nosso teatro de grupo ainda é um objeto que merece muita atenção e estudo para que se possa superar algumas verdades que são insistentemente repetidas sem que finalmente sejam verificadas. Nos últimos anos estudos de pós graduação têm tratado de desvendar as tramas artísticas, ideológicas e políticas que compõe o teatro de grupo. Destaca-se entre outros estudos como a pesquisa da Professora Rosyanne Trotta, e o projeto do grupo de pesquisa ÁQIS na UDESC que realizou um mapeamento do teatro de grupo em estados da região Sul, Sudeste e Centro Oeste. Estes esforços ganham agora a valiosa companhia do trabalho de Fernando Yamamoto e do grupo Clowns de Shakespeare. O fato de que o autor desse estudo seja um diretor assentado em um projeto grupal, um dos mais dinâmicos do país, reforça o fato de que esta pesquisa esteja embebida da percepção daqueles que estão cotidianamente buscando alternativas para o trabalho teatral realizado no âmbito de um coletivo. Assim, o leitor tem em mãos um resultado de um projeto que nasceu do contato diário com a realidade dos grupos do Nordeste. Ainda assim a tarefa não está completa, pois a mesma é complexa pela diversidade de formas de trabalho dos coletivos e pela amplitude do país. São muitos grupos, muitas formas de organização, muitas cidades e muitos modelos teatrais. Realizar uma cartografia do teatro do grupo do Nordeste é uma tarefa que responde à uma necessidade de reconhecimento de uma produção ampla e diversificada que, pouco a pouco vai ganhando presença no contexto do teatro brasileiro. Mapear esses grupos e contextualizar suas produções significa uma contribuição extremamente importante para a historiografia do teatro brasileiro, e também é um material que

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pode contribuir com os grupos de todo o país por oferecer parâmetros para a reflexão sobre formas de trabalho e organização. O planejamento dessa cartografia foi elaborado considerando parâmetros exigentes que permitem que o resultado expresse aquilo que tem de mais consistente no teatro da região. Desta forma o quadro sobre o teatro de grupo que o leitor tem nestes três livros oferece uma informação que permite uma fotografia detalhada de um conjunto de coletivos e de suas produções. Este material não é importante apenas para os realizadores e estudiosos do teatro do Nordeste, ou dos estados contemplados na cartografia. Conhecer com maior detalhe esse teatro é fundamental para a construção de uma ideia de teatro brasileiro mais complexa. A ausência de uma grande parte da produção teatral nas páginas de jornais, revistas e até livros que são publicados nas imprensas de grande metrópole paulista nos faz 12

reafirmar a importância desse projeto de mapeamento dos grupos. É verdade que se pode produzir e circular sem que os grandes meios e publicações de São Paulo reconheçam a existência de outros teatros no país. No entanto, todo esforço que permita reescrever a história de nossa cena, e que especialmente, contribuía para uma efetiva descentralização dessa escritura significará uma renovação de nossa imagem do teatro do país. Nosso teatro merece ser compreendido com uma complexidade diversa que reúne os mais diversos modelos e formas expressivas. Este livro oferece ao leitor dados sobre os grupos e reflexões sobre o teatro de grupo que nascem da análise de um panorama construído a partir do contato direto com os coletivos. A vitalidade desse tipo de pesquisa repercute em um material que nos mostra o pulso dos coletivos e seus projetos. O trabalho de coleta de dados respondeu a um procedimento metodologicamente estruturado, e isso permite dizer que os dados aqui apresentados constituem um panorama amplo e detalhado que também servirá como referência para posteriores estudos.


O fato que o projeto não finalize com a publicação desses volumes, mas que tenha continuidade no Portal teatronordeste, significa que essa pesquisa ampla e cuidadosa poderá se incrementada permanentemente. Isso permite dizer que o estudo de Fernando Yamamoto continuará rendendo frutos e abrindo portas para o mais completo conhecimento de um teatro que tem muito a oferecer à nossa cena.

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Encontros e mapeamentos Fernando Yamamoto Diretor e fundador dos Clowns de Shakespeare

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A origem do projeto Cartografia do Teatro de Grupo do Nordeste remete ao ano de 2004, quando pela primeira vez os Clowns de Shakespeare participaram do Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga, importante e aprazível festival na serra cearense. Diante de grupos de todos os outros estados da região, tivemos a oportunidade de estabelecer trocas de forma muito mais efetiva do que havíamos feito até então com parceiros de outras regiões do país, já que nos deparamos com situações semelhantes à nossa realidade, com grupos que estavam muito mais próximos geograficamente de Natal. Por conta disso, era possível pensarmos em desdobramentos mais concretos destes encontros. Desde então, esta “integração regional” passa a ser uma bandeira dos Clowns, sempre preocupados em promover inter-relações entre os coletivos nordestinos, com o intuito de reconhecimento de uma identidade do teatro de grupo nordestino, das semelhanças às peculiaridades em relação àquelas práticas realizadas no resto do país.


Em 2007, o Galpão Cine Horto me lançou uma provocação que seria determinante para o desenvolvimento deste trabalho que agora se concretiza através desta publicação. Na edição número 04 da sua revista, a Subtexto, o Cine Horto propõe a pesquisadores e fazedores de teatro de todo o país um primeiro esboço de mapeamento do teatro de grupo do país. Com a valiosa colaboração de Rogério Mesquita (CE) e Wagner Heineck (MA), coube a mim rascunhar um panorama da produção de grupo do Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão. A incumbência de pensar sobre a realidade da cena nestes três estados, independente da inevitável incompletude do seu resultado, me instigou a aprofundar a reflexão, ampliando o seu alcance para todos os estados da região. Se na prática diária dos Clowns temos, assim como diversos outros coletivos pelo país, uma preocupação em demarcar território através da sistematização e publicização da nossa prática, por que não traçar uma cartografia das práticas realizadas na região nordeste, como forma de tentar fazer uma leitura deste panorama regional, forçando a historiografia a enten16

der que o teatro brasileiro contemporâneo ultrapassa a limitada visão das fronteiras que os centros econômicos impõem como totalidade? Acreditamos que somente com a efetivação de pesquisas e publicações desta natureza é possível inscrever o nome do teatro nordestino – assim como o nortista, sulista e “centro-oestino” – nas pesadas tábulas dos detentores da história oficial do teatro no Brasil. A partir dessas inquietações, em 2009 houve a primeira aposta na importância deste mapeamento, ao ser contemplado pela Bolsa Funarte de Estímulo a Produção Crítica em Artes. Com ela, desenvolvi a etapa inaugural dessa pesquisa, que foi enviar um formulário a quase 250 grupos de toda a região Nordeste, com questões acerca dos seus processos criativos, gestão, práticas pedagógicas, atuação política e de intercâmbios, etc. Desses 250 coletivos, 100 retornaram o formulário preenchido e, a partir da análise dos dados, a etapa seguinte consistiu em definir, em conjunto com colaborador André Carreira – um dos nomes mais importantes na pesquisa sobre teatro de grupo do país na atualidade –, critérios para selecionar os grupos que receberiam visitas para entrevistas presenciais, com um maior nível de aprofundamento


sobre suas práticas e cotidianos. Assim, optamos por destacar aqueles coletivos que tivessem cinco ou mais anos de existência, ao menos três integrantes, e um mínimo de dois fundadores ainda participantes. Apesar de não obrigatório, seria desejável também que estes grupos tivessem um espaço de trabalho. Ao longo da pesquisa, deparei-me com a realidade de que apesar de alguns grupos não cumprirem um ou outro desses critérios, deveriam ser entrevistados pela relevância do seu trabalho, seja na excelência artística, seja no peso da sua atuação no cidade ou bairro em que estão inseridos. O momento seguinte foi de circular por todos os estados da região, passando pelas nove capitais e dez cidades interioranas (ou, em alguns casos, entrevistando grupos do interior em encontros nas capitais), entrevistando um total de 45 grupos. Esses números – os 250 grupos localizados, os 100 que retornaram e os 45 entrevistados – não têm nenhuma pretensão de sequer chegar próximo a constituir a totalidade dos coletivos nordestinos, no entanto acredito que o panorama construído a partir da visão dessas 45 experiências representa uma amostragem muito significativa do teatro feito na região, contemplando praticamente todos os mais importantes grupos de teatro do Nordeste brasileiro. Na diversidade encontrada neste panorama, dois aspectos chamam atenção ao se fazer uma leitura transversal deste material: a) apesar da diversidade apresentada entre cada experiência, e da grandeza territorial da região – o Nordeste brasileiro, se fosse um país, estaria entre os vinte maiores do mundo! – existem traços recorrentes de estado para estado, de grupo para grupo, e b) essas recorrências não acontecem apenas nas dificuldades; é possível encontrar soluções na experiência de um coletivo para problemas de outros. É importante ainda, esclarecer que existe uma larga faixa temporal entre a realização das entrevistas – a partir do primeiro semestre de 2009 – e a publicação deste livro – segundo semestre de 2012. Considerando as dificuldades de sobrevivência que os coletivos da região enfrentam, e ao mesmo tempo o visível estágio de fortalecimento desta cena nordestina de grupos, é muito possível que, mesmo no instante imediato

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do lançamento deste livro, diversas informações já não digam respeito ao momento em que o grupo viva, seja em casos de grupos que avançaram na sua estrutura e/ou compreensão estética, seja o contrário. Ainda assim, acredito tratar-se de um importante documento histórico do momento em que cada um desses coletivos encontrava-se no momento das entrevistas. Por fim, gostaria de fazer alguns agradecimentos a quem possibilitou a realização deste projeto. Primeiramente, faço uma menção de muita gratidão ao Programa de Cultura Banco do Nordeste - BNDES, que acreditou neste projeto tão importante à memória do teatro nordestino. Como um banco de desenvolvimento, o BNB vem cravando a sua bandeira na história da produção artística nordestina, cumprindo um fundamental papel no que se tem feito de melhor na região. Também é preciso mencionar a Funarte e o Ministério da Cultura, que através da Bolsa Estímulo a Produção Crítica em Artes/2009 possibilitou toda a etapa de coleta de dados deste mapeamento. 18

Agradeço aos colaboradores de cada estado, que prestaram preciosos serviços tanto no contato com os grupos locais e logística das visitas, quanto na contribuição escrita dos artigos que apresentam as entrevistas de cada estado: Gordo Neto, Fábio Vidal, Geovane Mascarenhas e Romualdo Lisboa (BA); Lindolfo Amaral, Lindemberg Monteiro e, em especial, à memória do querido Ivilmar Gonçalves (SE); Abides Oliveira (AL); Fabio Pascoal, Helder Vasconcelos e Leidson Ferraz (PE); Sávio Araújo (RN); Álvaro Fernandes e Márcio Marciano (PB); Francisco Pellé (PI); e Wagner Heineck, Lauande Aires, Erivelto Viana e Marcelo Flecha (MA). Também declaro toda a minha gratidão a André Carreira, que apesar de recusar o título de “orientador” desta pesquisa, apontou os caminhos a serem trilhados com enorme generosidade e toda a sua experiência nesta área. Mesmo redundante, não posso deixar de agradecer aos meus companheiros de grupo, com quem divido este projeto de vida chamado Clowns de Shakespeare, por todo o suporte e paciência nas ausências das demais atividades do grupo para me dedicar ao Cartografia: Arlindo, Camille, César, Dudu, Joel, Marco, Rafa, Renata, Ronaldo e Titina. Aos meus pais,


pelo apoio incondicional de sempre, e pelo exemplo de sabedoria e comprometimento. E, finalmente, agradeço e dedico esta imperfeita criação à minha mais que perfeita criação, minha pequena Isabela, e à sua mãe, Paulinha, companheira de vida e de trabalho. Deixando a modéstia de lado, acredito que esta publicação, em conjunto com o portal teatronordeste, são importantes contribuições para a reflexão e à memória do teatro nordestino e brasileiro, acrescentando um tijolinho a mais nesse acervo da produção teórica do teatro de grupo do país.

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Maranh達o



Novos desejos, velhos problemas Marcelo Flecha Integrante da Pequena Cia. de Teatro

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O grupo sempre foi o alicerce, o sustentáculo, a base do teatro maranhense. Sua robustez, adquirida em diversos momentos da história teatral brasileira dos anos 70 e 80, forjou-se através da consciência coletiva de diferentes artistas que vislumbraram, na reunião de seus potenciais, uma alternativa para o questionamento, a transgressão, a negação, a reformulação dos valores socioculturais estabelecidos em cada época. Essa organização célula artístico-social primária se caracterizou por agrupar, de forma desordenada, mas organicamente eficiente, os representantes de cada estilo, estética, gênero ou vontade, em grupos de indivíduos que, entre si, comungavam de um mesmo ideal – ainda que sem orientação sistematizada, para não cair no romantismo de imaginar que um ideário transformador sociopolítico-cultural fosse meta de todo coletivo teatral maranhense da época. Outra característica assaz importante era seu caráter amador, no melhor sentido do termo, que caracterizava muito mais do que a ausência de remuneração para a prática


teatral. Dizia do amor por um querer fazer, dizia daquele que ama o que faz, e faz porque quer, mesmo que às vezes tivesse que pagar para poder fazer. Embora desorganizados, seus mecanismos de viabilidade funcional não destoavam dos processos organizacionais experimentados no restante do país, nem se apresentavam descolados das reinvindicações políticas que caracterizaram os movimentos teatrais nas décadas de 1970 e 1980. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que o grupo era a chave de sustentação do teatro maranhense. Contudo, a lógica neoliberal solidificada na década de 1990 estabeleceu uma ruptura ideológica com as práticas teatrais anteriores, e colocou o amadorismo em xeque, forjando um profissionalismo obrigatório para que o movimento teatral estivesse alinhado com a nova ordem mundial. A estupidez dessa lógica não avaliava a necessidade de um mercado e, durante anos, atores e diretores pairaram pelo estado como profissionais sem palco, dada a impossibilidade de qualquer projeto teatral pagar os valores cobrados pelos ditos. Isso provocou a desintegração dos coletivos teatrais 24

maranhenses, e apenas uma minoria conseguiu sobreviver ao massacre provocado pela nova ordem. O fato também trazia consigo uma desarticulação política, oportuna para o poder estabelecido, alienando a classe, diluindo as discussões, pasteurizando o pensamento e solidificando o poder do indivíduo em detrimento da coletividade; gerou-se uma crise no teatro de grupo maranhense. Essa crise colocava os grupos de teatro resistentes em rota de colisão com a nova onda de individualização da arte, fazendo-os duvidar das suas opções de manutenção, discutir as poucas perspectivas de continuidade e, sobre o laivo de serem parte do passado, sentirem-se representantes de um formato envelhecido, em desacordo com as novas palavras de ordem como “mercado”, “produto” e “contrato” – substituindo as clássicas “resistência” “engajamento” e “compromisso”. Em contraponto, aqueles que não resistiram, passaram a engordar o coro da individualização e, sem perceber, perderam uma década à espera de contratos milionários e


produções profissionais que nunca vieram. Como acéfalos, circulavam atônitos buscando espaço em um mercado inexistente, e qualquer figuração, nas pouquíssimas produções profissionais de teatro ou mais raras produções de filmes, comerciais ou novelas, era disputada a tapa. Esses indivíduos, comprometidos com as normas do mercado, passaram a viver o dilema da subsistência e sobrevivência, desviaram seus caminhos da prática teatral e passaram a ocupar gabinetes e balcões, enquadrados pelo próprio mercado que exigia o pagamento das contas ao final dos meses. Naturalmente, essa trajetória tem consequências diretas na estrutura do teatro de grupo nos tempos atuais. Há mais de uma década, o movimento teatral tenta entender os anos setenta, oitenta e noventa, para poder desvendar as agruras que nos reserva este início de milênio. A primeira constatação é simples: os grupos resistentes do passado são os profissionais de hoje e os indivíduos que caíram na armadilha do mercado são parte da plateia que “especta”. Entretanto, a atualidade nos guarda um quadro muito mais complexo do que a simples máxima supracitada. A ressaca provocada pela década de noventa fez com que se reavaliasse a estrutura teatral maranhense e a ideia de grupo começou a germinar novamente, ancorando-se no coletivo como único caminho para a sobrevivência artística, mas também a subsistência financeira. Claro que os efeitos da deterioração gerada pelo esfacelamento dos grupos não se remediam de uma década para outra e, hoje, um número insignificante de artistas ligados à atividade teatral sobrevivem do seu ofício. Contudo, a consciência dos prejuízos sofridos pelo abandono do formato, fez com que as novas gerações de fazedores percebessem a importância da estrutura de grupo no universo teatral e passassem a dedicar seu tempo à vida em coletivo. Novos grupos surgiram, com propostas estéticas variadas, dispostos a arriscar-se em coletividade, mas sem condições financeiras para dedicar um maior tempo à pesquisa de linguagem, à produção de repertório e à circulação de seus projetos, revelando o principal problema da atualidade: o teatro como hobby.

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O fator econômico, que foi determinante para a mudança de rumo de diversos artistas de teatro no passado, volta a atormentar o presente. Decididos a encarar o teatro com desejo amador e seriedade profissional, os membros desses novos coletivos não conseguem a estrutura econômica necessária para a sobrevivência e passam a dedicar a maior parte do tempo a outras atividades profissionais – gabinetes, salas de aula, balcões – deixando o teatro em segundo plano, e, sendo a atividade teatral mais prazerosa do que o ofício que paga as faturas mensais, assume um claro papel de hobby. Apesar de não assumida formalmente, essa condição compromete o tempo dedicado à prática teatral e o grupo sofre as implicações das prioridades assumidas por cada membro desses coletivos, voltando a se aproximar às práticas do teatro amador do passado, sem o mesmo engajamento político: ensaios esporádicos, falta de continuidade nas temporadas de seus espetáculos, falta de tempo para a dedicação a uma pesquisa mais aprofundada, inviabilidade de circulação por incompatibilidade de agenda e a inconstância e volatilidade do corpus de cada coletivo. 26

Essas características revelam, inevitavelmente, uma falta de comprometimento com o fazer e um medo de arriscar uma presumível estabilidade econômica oferecida por outras opções do mercado de trabalho. Com o pretexto da subsistência, os grupos exigem pouco de seus membros e as atividades vão se desenvolvendo de maneira descontinuada e inconsistente. São muito poucos os grupos de teatro maranhenses que, na atualidade, vivem exclusivamente de teatro e atrevem-se a abrir mão de uma vida estável em detrimento da frequente instabilidade que prova qualquer artista que tente sobreviver de seu ofício. Porém, todo caminho só se abre caminhando. Somente uma reflexão permanente e sistemática entre os próprios grupos poderá saciar os anseios da nova organização coletiva do teatro maranhense. Sem a formação de uma rede orgânica comprometida, disposta ao enfrentamento, e focada na reinvindicação de políticas culturais públicas eficientes, no fortalecimento dos sindicatos, na busca de representação política nas esferas municipal, estadual e federal, na formação de grupos de discussão


organizados, não será possível reverter um quadro que apresenta novos desejos e velhos problemas. Na corda bamba imposta pelo mercado, os grupos de teatro maranhense caem mais do que se equilibram, contudo, formam a rede de sustentação de uma arte que não existe sem coletividade.

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Cena Aberta São Luís (MA) Entrevista realizada no Teatro Arthur Azevedo, São Luís, em 27 de abril de 2009. 29

FERNANDO YAMAMOTO Falem um pouquinho sobre o processo de formação do grupo. LUIZ PAZZINI O grupo surge em 2001, com alunos das disciplinas do curso de habilitação em artes cênicas da UFMA. Há muito tempo se vinha querendo formar grupos dentro da universidade, mas sempre houve muita dificuldade. De uma montagem, Victor e os Anjos, a gente se formou, já com o nome Cena Aberta. A gente fez várias vezes o espetáculo lá dentro e depois fora, em vários locais completamente inusitados aqui do Maranhão: em corredores, estacionamentos abandonados, shoppings, praças, etc. Dali o grupo explodiu e ficou só eu. Foi quando surgiu uma outra montagem, O despertar da primavera, do Frank Wedekind, e daquele pessoal ficaram quatro meninas, que se fixaram no grupo: Enilde, Rosana, Ticiana e Rejane. Com esse núcleo começamos a pensar no processo do grupo, a trabalhar algumas coisas que tinha a ver com a commedia dell’arte, e textos do Dario Fo. Em 2005 vem o curso de licenciatura em teatro, e surge o Núcleo Atmosfera de Dança-Teatro, com um


trabalho muito interessante. Eu queria trabalhar uma linha que tivesse um pouco da dança dentro dos rituais do texto e convidei o Atmosfera que, por sua vez, puxou um monte de aluno da licenciatura em teatro pra fazer o Imperador Jones. No final de 2005 nós conseguimos um projeto do MEC, no Programa Jovens Artistas, e a partir dali a gente começou, então, a planejar realmente o espetáculo. Como sempre, tudo era muito flutuante. Na universidade, os grupos sempre foram muito flutuantes, as pessoas não ficam mais do que seis meses, fazem a apresentação e saem, não se fixam em uma pesquisa de linguagem. Em 2005 a gente apresentou os dois primeiros fragmentos de Imperador Jones na universidade, em 2006 passou a fazer parte de diversos simpósios internacionais e nacionais dentro da UFMA, em 2007 fizemos várias apresentações, mas das pessoas que circularam no grupo nesse período só ficaram três. O grupo está com oito pessoas atualmente.

FERNANDO O Cena Aberta mantém esse vínculo com a universidade? PAZZINI A gente tá querendo registrar o grupo, porque percebeu que, na universi30

dade, quando você pega uma verba, pra essa verba sair das mãos da universidade, ela tira metade e não deixa você tocar em um guarda-chuva que ela comprou. Se quebrar, então, é um problema. Isso gera muitos problemas. É uma faca de dois gumes. Ela abre, mas também ela fecha, burocratiza muito.

FERNANDO Como é a rotina de trabalho de vocês? PAZZINI Eu tenho discutido e analisado muito uma situação bastante incomum que acontece dentro do grupo. Duas pessoas já defenderam monografia sobre o Imperador Jones, uma falando sobre o texto e outra sobre o processo. Tem um que está mexendo com a questão do fragmento na dramaturgia, a intertextualidade, e uma outra menina tá mexendo com a questão da metodologia do processo. Então nós temos quatro monografias e a minha proposta é fazer o doutorado ligado a isso.

FERNANDO Isso vai dando uma consistência, cria uma reflexão sistematizada, o que é bacana, né?


PAZZINI É, mas acontece um problema com essa questão dos encontros. Por exemplo, quando eu estou com uma pessoa fazendo monografia, ela tem que se dedicar muito mais ao trabalho, ficar em casa durante seis meses praticamente, pra poder defender a monografia. Então, ela fica muito envolvida e ela vai fazer a monografia. Então, complica a rotina. Eu realmente ainda não sei como trabalhar isso. Eu tento colocar isso pro grupo, mas nenhum processo se fixa se você não tiver essa rotina de trabalho. Tem dias marcados, mas as pessoas furam.

FERNANDO Quais são as principais fontes de financiamento do grupo? PAZZINI A primeira foi o edital do MEC, que foi o projeto que realmente firmou o grupo. Outra forma que eu poderia destacar são as participações nos eventos aqui da cidade de São Luís, juntamente com oficinas.

FERNANDO Você conseguiria definir qual é o ponto de partida dos processos criativos? Como aconteceu até agora? PAZZINI Faz dez anos que eu trabalho com a ideia da memória. A minha dissertação de mestrado foi sobre a questão da memória, dos processos revolucionários como a Revolução Francesa, o Haiti, a temática negra e a temática dos processos revolucionários. A partir dali, eu percebi que existia um foco de pesquisa muito forte, praticamente no Brasil inteiro, que começava a mexer com essa questão de recuperar os processos de memória do Brasil. Começou a haver dentro das universidades esse movimento. É um foco que inicialmente era d aminha pesquisa, mas é algo muito forte que abre pra tudo, veio com Imperador Jones, um texto americano, e a intertextualidade com os processos revolucionários do Maranhão com o negro Cosme da Balaiada.

FERNANDO E o grupo abraça essa tua pesquisa? PAZZINI Essa história da memória sim, porque o grupo quer trabalhar essa ideia mesmo. Tem uma função estético-pedagógica e política que o grupo abraça.

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FERNANDO E os dois processos anteriores, Victor e os anjos e O Despertar da primavera? PAZZINI Victor e os anjos tinha um foco na memória, vinha com os anjos da história, do Walter Benjamin, e o anjo do desespero, mas meio que morreu naquele processo. Em O Despertar da primavera, não. Ali eu queria trabalhar em sala de aula com a questão do adolescente, e não tem haver com a memória, tem outros temas.

FERNANDO Quanto tempo, em média, vocês levam em um processo de montagem? PAZZINI O Imperador Jones começou em 2005 e terminou em 2007. Eu trabalho com a ideia de socializar os processos de criação, mostrar ao público. Por exemplo, você tem um seminário e apresenta ao público um fragmento que não está acabado. A gente vai apresentando, socializando, e trabalhando a ideia em debates, seminários, em work in process. Tem uma interdisciplinaridade dentro da própria universidade que 32

puxa o que a gente está fazendo pra poder entrar no seminário deles, e vai enriquecendo o processo.

FERNANDO Mas vocês tem uma perspectiva de acabamento? PAZZINI Sim. Aí esse processo foi acontecendo durante três anos, porque o tempo de curso dos alunos vai passando junto com o processo, o processo vai ficando cada vez mais rico, mas também fica mais difícil de se encontrar, ensaiar porque, porque eles não tem tempo, tem atividades e compromissos com a universidade.

FERNANDO Como que é a relação com o espaço? PAZZINI Durante a minha formação em licenciatura em Educação Artística, em São Paulo, já acontecia na cidade essa ideia de ruptura com o espaço italiano, havia uma influência muito grande dos grupos internacionais que se apresentavam lá. Dentro da universidade eu comecei a fazer os trabalhos em espaços inusitados, depois dando aula nas escolas continuei usando os espaços como a quadra de esportes, e quando em vim pra UFMA eu acentuei esse processo. Eu percebi que a universida-


de não tinha condições nenhuma de espaço, o que ela me dava era só a sala de aula com cadeiras, um espaço frio com cimento no chão. Aí a gente começou a olhar pro espaço de fora e a perceber que ele tinha uma potencialidade cênica extraordinária, e comecei a explorar todos os espaços do Centro de Ciências Humanas, e acontecia espetáculos em tudo que é espaço que você possa imaginar nas montagens das disciplinas.

FERNANDO Como é a abordagem dramatúrgica no Cena Aberta? Qual o nível de interferência nos textos já prontos, como o Imperador Jones? Há alguém no grupo responsável pela dramaturgia, ou é coletivo? PAZZINI Victor e os Anjos é, na verdade, uma colagem dos materiais que faziam parte de A Missão, um trabalho anterior meu, e outros que eu acrescentei. Quando chegou no Imperador Jones, já estava bem firmada a ideia da polifonia, cabia muito bem na questão da memória, porque puxava outros textos. Então, a base foi o Imperador Jones com o texto como era mesmo e depois ele foi sendo trabalhado à medida que a gente foi percebendo as relações, que começou a aparecer os textos que a gente queria mexer, ligados à Balaiada e ao negro Cosme. O Imperador Jones é um traidor da causa do negro, e a gente queria colocar um contraponto aqui no Maranhão, com o negro Cosme, que foi um revolucionário. Nós colocamos dois negros: um que traía a causa do negro e outro que levantava a causa do negro. Isso casou e começaram a aparecer documentos históricos, como a sentença do negro Cosme, o mandato do Duque de Caxias, e outros também, como Camus, Brecht com O julgamento de Luculus, coisas do Walter Benjamin, tudo foi entrando no texto.

FERNANDO E como é que se dá essa intervenção da dramaturgia? PAZZINI Ela vem mesmo como uma colagem. A gente colocou esse desafio: como um texto histórico pode se tornar dramático? Ele pode se tornar épico? Nesse processo eu apresento os materiais, eu tenho feito muito essa colagem, não porque só eu queira, mas é porque existe uma urgência, e o grupo ainda não tem uma organização

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para que possa sentar, meter a cara e fazer pesquisa de textos junto. Eu sou mais ousado, eu vou mexendo, fuçando, buscando. Mas o processo precisa sair disso, para que o grupo possa interferir dramaturgicamente no espetáculo de uma forma efetiva, o grupo tem que gestar esse texto.

FERNANDO O Cena Aberta é um grupo que tem vínculo com uma universidade federal, uma instituição de ensino, de pesquisa. Partindo disso, como vocês veem a questão da formação? ENILDE DINIZ No projeto que foi aprovado pelo MEC, a Secretaria Municipal abraçou e ministramos oficinas em quatorze escolas da rede municipal de São Luís. A temática principal não era o teatro, e sim trabalhar a questão da raça, da etnia, do gênero. PAZZINI Mas com a linguagem teatral. ENILDE Sim, trabalhando com o teatro. No projeto do Imperador Jones tinha uma 34

atividade que era uma mesa redonda pós-espetáculo. O professor Sávio Araújo participou e contribuiu muito falando das experiências estéticas dele sobre iluminação. Também oferecemos oficinas de iluminação para professores, e isso tudo foi ampliando o leque do público. O professor Marcos Bulhões também veio falar sobre encenação e jogo, fez uma palestra sobre o pós-dramático e isso foi só ampliando. Então, o público do espetáculo foi também o público das oficinas, das palestras, e eu creio que isso foi um trabalho de formação.

FERNANDO E isso gerou material pra construção do espetáculo? ENILDE Sim, porque há o texto do Imperador Jones, mas o Pazzini trabalhou muito nessa função de dramaturg e foi inserindo os intertextos nacionais e internacionais, mas a partir daí nós tivemos que avançar na questão sócio-histórica desses fragmentos que nós trouxemos do negro Cosme, da Ana Jansen, da Balaiada, pensar como isso ia sendo inserido dentro do texto e da encenação. Então, nós fizemos mesas


redondas elas são interdisciplinares, com um professor de história, um de filosofia, um de sociologia e um de teatro.

FERNANDO E como é que se dá o processo de registro dos processos? O Pazzini já falou que vários de vocês estão fazendo monografia sobre algum aspecto do processo, como que entra essa questão do registro nisso? ENILDE A gente tem desejo de compilar os arquivos que nós temos de foto, alguns vídeos e transformar também o texto num texto científico.

FERNANDO Vocês têm o hábito de fazer protocolos, diários? PAZZINI Temos. Mas é necessário tempo. Como eu já te coloquei desde o começo, o tempo é muito escasso para as pessoas do grupo poderem se dedicar a fazer um registro mais detalhado. Então, as publicações a gente acaba não levando adiante, os editais acabam não entrando. A gente tem tudo isso, mas precisa, colocar no papel e as pessoas se dedicarem, porque um relatório pode se transformar num documento, que depois pode ser publicado e as pessoas conhecerem o trabalho da gente. As monografias deveriam ser retrabalhadas, enxugadas e publicadas, mas o grupo se ressente desse tempo e acaba não fazendo esse trabalho. ENILDE Por enquanto, a única forma de divulgar esse nosso trabalho é em forma de comunicações orais durante os eventos, Encontro Humanístico dentro da universidade, mas fica muito restrito.

FERNANDO E como é que se dá a relação de vocês com outros grupos, seja de São Luís ou de outra cidade? Vocês propões algum tipo de intercâmbio? PAZZINI Olha, eu acredito que a relação do Cena Aberta com os grupos de São Luís é amigável, uma relação de troca, eu acredito que os grupos vêem o Cena Aberta como um grupo interessado em crescer, em trabalhar uma linguagem.

FERNANDO E vocês têm algum tipo de troca, seja artístico ou político? Há algum tipo de articulação com outros grupos?

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ENILDE No Imperador Jones a gente trabalhou com colaboradores. Tem esses espaços de troca que são os debates, os diálogos pós apresentação. Então, na medida do possível, a gente faz essa troca.

FERNANDO Como é que vocês se vêem hoje no teatro do Maranhão? Quais são as perspectivas? Onde o grupo tá e onde o grupo quer chegar? PAZZINI Estamos nesse processo de reestruturação do grupo, nessa crise, e acredito que vai sair alguma coisa, mas não sei o que é ainda. Eu não sei o que é, mas com certeza o grupo vai se reestruturar de uma outra forma, com entradas e saídas de pessoas do grupo. É muito complicado, porque tem todo esse processo de flutuação. Se nós conseguirmos fazer com que fique um núcleo, já é um ganho.

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Pequena Cia. de Teatro São Luís (MA) Entrevista realizada na casa de Marcelo Flecha/sede do grupo, São Luís, em 27 de abril de 2009. 39

FERNANDO YAMAMOTO Como surgiu a Pequena Companhia de Teatro? MARCELO FLECHA Jorge, eu e Kátia trabalhamos juntos há muito tempo, desde 98, mais ou menos. Todo projeto em que eu estou, convido eles, além de César Boaes, ator que é da Santa Ignorância, que protagonizou todos os espetáculos que eu dirigi. Em 2005, ainda sem ser a companhia, surgiu um espetáculo a partir da leitura de O Acompanhamento. No decorrer da montagem eu já vinha com esse dilema da necessidade de formalizar um núcleo, fundar um grupo com nós três. E a partir daí a gente se engajou em tentar dar um corpo à companhia. JORGE CHOAIRY Quando resolveu fazer a companhia foi um processo também desgastante, e eu criticava, acho que eu emperrava muito na questão burocrática. Tinha essa história de imposto, paga isso e tira licença daquilo, e eu ficava perguntando: “meu Deus do céu, e o teatro?” Queria partir para algo informal, ser clandestino.


FLECHA Tem um detalhe, que é que O Acompanhamento surge com essa proposta de ser um espetáculo clandestino! Não pagamos direitos autorais, não pagamos corpo de bombeiros, nada autorizado! (risos) Quando fizemos a temporada regular, que passamos seis meses em cartaz toda terça-feira, começamos a mandar material para festivais, tivemos que entrar na burocracia. A gente montou a companhia toda formal, legalizada, e conseguimos autorização do espetáculo. Paguei 500 dólares na época. Gastamos essa fortuna para poder, oficialmente, receber os mesmos “nãos” de antes. Nos formalizamos para continuar com essa luta diária. JORGE Pra gente descobrir que essa salinha, onde a gente está, poderia virar um espaço de trabalho, a ficha ainda demorou a cair. Eu vinha pra cá toda noite, e um dia falei com Marcelo: “por que não aqui?”. Ele se predispôs a desarrumar toda a sala, três vezes por semana. A gente não podia se apoiar sempre nisso: “Ah, a gente não está fazendo porque não tem onde ensaiar, não tem sede!” FLECHA A gente chegou a visitar uma sede linda, maravilhosa, uma casinha com 40

porta e janela, 25 mil reais, dada! Mas a gente ficou naquela: “vamos comprar, vamos comprar!” Só que o tempo vai passando, e não compramos, até que Jorge deu essa chacoalhada. Acabava ficando muito no discurso, estava mais burocrático do que outra coisa, e efetivamente a ação foi a partir dessa chacoalhada de Jorge.

FERNANDO Eu achei de muita bravura e coragem ver vocês trabalhando aqui. São poucos os grupos que se dispõem a trabalhar de fato, a maioria fica se segurando nessas desculpas que não têm uma sede, etc. No final das contas, quando você vê quem consegue desenvolver um trabalho sério, se destacar, circular, é quem de fato se debruça no suor do trabalho cotidiano, “não há segredos”, como diz o Brook. Acho que esse exemplo de vocês deveria servir de referência para muitos grupos do Nordeste e do Brasil. FLECHA O treinamento para o ator independente de encenação ou não, ele é fundamental. Nisso a gente pensou: “vamos pensar como foco um solo, mas antes esta-


belecer uma rotina de treinamento. A partir daí, daqui a um ano, a gente vai pensando no que fazer, mas de qualquer forma já é lucro para o ator, para o diretor, independente do que a gente for formalizando”.

FERNANDO Como é a divisão do trabalho da Pequena Companhia, tanto administrativo quanto artístico? FLECHA Como somos poucos, é pau pra toda obra. Como a gente tem uma produtora na Companhia, tudo aquilo que é relacionado à burocracia fica a cargo dela: lidar com contador, com imposto de renda, essas coisas todas

FERNANDO Vocês trabalham todos os dias? FLECHA Trabalhamos segunda, terça e quarta no treinamento, e a parte administrativa vai sendo jogada de acordo com a necessidade. Quando surge um projeto, como a feira do livro, aí é full time. O que a gente está tentando imprimir agora é uma rotina semanal.

FERNANDO Mas tem uma perspectiva real de chegar a um estágio que vocês sobrevivam do grupo? FLECHA A vontade é essa. A gente encara como etapas. Uma coisa que foi fundamental foi que, na Pequena Companhia, jamais tiramos um centavo particular nosso para botar na companhia. A companhia minimamente sustenta os seus impostos, a sua conta bancária, o seu contador, etc. Sempre que o projeto possibilita, somos bem remunerados, todos que vieram a trabalhar para a companhia foram remunerados profissionalmente. JORGE Como ator convidado, em outras companhias, era sempre uma experiência que ainda existe muito aqui: você estreia e pronto. Aí o espetáculo não evolui. Com O Acompanhamento a gente experimentou fazer temporada, o que a gente não vê aqui em São Luís. FLECHA A gente ficou seis meses em cartaz toda terça-feira, e cancelamos duas vezes. Quem quisesse, sabia que existia um espetáculo de teatro em São Luís sendo

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apresentado às terças-feiras. Chegamos a essa questão de: por que terça e não sábado ou domingo, não vai ter público! Bom, os nossos espetáculos partem desse princípio: são quarenta lugares, sessenta no máximo. E foram casas de cinco, de sete, de trinta por apresentação. JORGE Um pouco desse contexto que a gente acaba de ler, é muito inquietação dessas discussões que a gente teve de montar o Acompanhamento e tal... FLECHA É uma coisa que a gente estabelece e eu falo, como diretor artístico: eu não estreio mais espetáculo e nem trabalho mais se não for com essa perspectiva. Assim foi o Acompanhamento, assim foram os dois espetáculos que eu fiz com os meninos, é mister, ou seja, a possibilidade de estar fazendo, porque se não impede o exercício do ator. Você pode ensaiar e tal, mas só vai trabalhar depois que estreia, o exercício, o contato, o experienciar, para a plateia.

FERNANDO Quanto tempo leva idealmente um processo de monta42

gem para vocês? FLECHA Acompanhamento trabalhamos três meses. Uma das nossas frustrações é que, pela pressão de data de estreia, a gente não conseguiu o resultado técnico que a gente esperava, por uma questão de tempo mesmo. Eu acho que, hoje, precisamos de três meses full time, com quatro horas de ensaio diário. Menos do que isso não vejo possibilidade.

FERNANDO Você falou que sempre trabalham para poucas pessoas, em geral em espaços alternativos. Porque que surge isso como uma característica do trabalho de vocês? É uma questão estética, ideológica, de contexto, de grana? FLECHA É um problema da linguagem. Como diretor artístico, eu não tenho como abrir concessões. Por exemplo, eu não consigo me imaginar dirigindo um infantil, nem uma comédia, nem um musical. Adoro, vejo, mas não me imagino. Em relação ao espaço, o distanciamento da plateia é diretamente relacionada a percepção daquele


dizer. Eu não consigo mais acreditar que seja possível num espetáculo a 25, 30 metros de distância, que a plateia consiga a comunicação do trabalho que a gente está desenvolvendo. Ou seja, não há a possibilidade de gerar esse distanciamento absurdo. A gente teve essa experiência com o Acompanhamento no interior, liberou mais espaço e as pessoas ficaram três, quatro fileiras nas quatro laterais, mas o nível de cumplicidade com a plateia é uma coisa tão delicada, tão fácil de se quebrar, que se tu gerar um distanciamento um pouquinho além do necessário, se quebra.

FERNANDO Vocês têm prática de promover oficina? FLECHA Não. Na verdade eu já tive essa experiência várias vezes, mas não é uma prática da companhia oferecer oficinas, por essa questão do espaço que a gente está falando. A gente está sempre nessa discussão, por exemplo, no projeto do Acompanhamento, a gente tinha como projeto paralelo encaminhar uma oficina de cenografia. Toda encenação é trabalhada em cima de objetos do cotidiano, ou seja, tubos de PVC, lâmpadas, iluminação alternativa. Então existe o projeto de por onde O Acompanhamento for, vai oficina junto. Mas efetivamente, são esporádicas, não conseguimos estabelecer uma rotina de oferecer essas oficinas.

FERNANDO Vocês têm a prática de registrar o trabalho do grupo, desde o treinamento, ensaios, processos? JORGE Marcelo bem mais, com as anotações, e eu estou tentando, experimentando, como eu falei pra ele aqui, de pegar umas sensações e tentar colocar no papel. FLECHA Todas as atividades têm registro em vídeo, tem registro fotográfico. Eu faço um registro escrito, como Jorge disse, mais sistemático mesmo, de todas as ações do processo. Com o ator eu deixo a critério da sua percepção, da necessidade de desenvolver esse hábito de acordo com o que sentir.

FERNANDO Como é a relação da Pequena Companhia com os outros grupos, tanto daqui quanto de fora? Vocês tem um relação estreita com

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A Máscara, de Mossoró, por causa das suas direções, né, Marcelo? Mas como é que com os outros grupos daqui, e de outros estados? FLECHA Nós somos praticamente co-criadores e parceiros permanentes da Companhia A Máscara de Teatro. É intimidade mesmo, dos meninos irem, deles virem, eles ficam aqui em casa, do estar dialogando e tudo mais. Essa é uma relação que eu considero efetiva. No resto, a gente vai tocar num ponto que é extremamente delicado, porque a gente não consegue estabelecer vínculos mais diretos, a gente acaba se isolando muito no nosso mundo. JORGE É, a gente puxa muito pra gente essa culpa, de estar se fechando. Ao mesmo tempo, a gente passou por essa experiência de estar em cartaz por seis meses e ficar esperando um retorno, e tem companhias, pessoas ligadas ao teatro, independente de estar em grupo ou não, que nunca se predispuseram a nos assistir.

FERNANDO Essas leituras dramáticas, como essa que vocês me con44

vidaram a fazer logo antes da entrevista, é uma prática que vocês têm feito com artistas daqui, né? FLECHA Exato, é uma tentativa de forçar um pouco a barra, de tentar abrir. JORGE Antes, quando a gente convida, todo mundo acha uma maravilha, mas na hora do “pega pra capar”, de fazer a leitura, sempre tem uma desculpa tal, aí na outra semana é outra desculpa. Aí isso vai acumulando, isso aí vai se somando, a pessoa nunca vem. FLECHA Tem um amigo nosso, é um dos mais íntimos, que todo dia ele tem uma desculpa. Eu não consigo fazer ele ir. Mas estamos tentando efetivamente quebrar um pouco essas barreiras. JORGE Hoje em dia a gente se cobra: estreou uma peça, a gente dá um jeito de ir. Tem que ver, quando não dá pra irmos juntos, um vai num, dia o outro vai em outro.


FLECHA Isso a gente determinou como prioridade, de um ano pra cá, de ver tudo. JORGE Ver mesmo se for pra dizer que não gostou, pra pelo menos dizer assim: “eu vi!”. FLECHA O caso d’O Acompanhamento foi um pouco frustrante por isso. Não pelo processo da plateia, mas por colegas de extrema intimidade. Seis meses em cartaz, não é um dia! JORGE A gente chegou a uma conclusão, que é que as pessoas não estão dispostas a ver, elas não querem ver. A Semana de Teatro é uma lotação, a gente fica tentando analisar o que é que acontece. É gratuita, são peças de fora, então gera um burburinho. E por que a gente não consegue pegar o embalo da Semana e tentar fazer com que a plateia venha ver uma peça que seja daqui? FLECHA Existe um hiato aí que são, por exemplo, como um espetáculo daqui chamado Uma linda quase mulher, que pra mim é um show de humor, mas enfim, é como se fosse espetáculo. JORGE Uma linda quase mulher é de entrar mesmo para os anais. Ninguém, nenhum grupo de teatro, conseguiu se manter e ganhar muito dinheiro.

FERNANDO Ah, toda cidade tem um desse. Mas nesse caso, é uma outra ética de trabalho, não dá pra associar, não é a mesma coisa. Não é de estranhar que é uma outra relação com o público. FLECHA Exatamente. Acho que vai muito uma questão de linguagem. Infelizmente a plateia brasileira tem a cultura da televisão. Tudo aquilo que você apresentar no palco que ofereça leitura pro espectador de televisão, ele vai se identificar. O que cabe a nós é tentar imprimir novas linguagens. Esse espectador no decorrer das décadas e décadas, vai amadurecendo esse olhar e, daqui a cem anos, nós teremos com certeza um público para teatro. E não estou falando só de São Luís não, tô falando de São Paulo. São Paulo tem público de teatro, lógico, são vinte milhões de pessoas. Mas

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A Máscara foi com Deus Danado, lotou cem lugares, mas proporcionalmente são os mesmos três que a gente tem aqui, não muda muita coisa. JORGE E não serve como tentação pra gente, pensar na solução fácil, tipo vou montar uma comedia porque o povo está querendo é rir. E que rindo, gostou, vai repetir. FLECHA Acho que é um grande dilema da arte. Aí o importante é você encontrar pares que dialoguem, e por enquanto somos três. Porque a outra alternativa a gente conhece, ou seja, é fazer a feira-do-livro, o Auto da Liberdade, a gente sabe esteticamente como fazer coisas, agora na hora do dizer o que a companhia em si tem como proposta, aí não tem como, não podemos abrir concessões.

FERNANDO Eu acho que isso faz parte da essência do teatro de grupo, de não trabalhar com os valores que já estão estabelecidos, de nadar na contramão dos princípios neoliberais. 46

FLECHA No processo que estamos de busca por um novo integrante, nós percebemos basicamente isso. Estamos vendo a experiência de um grupo colega que, no decorrer do processo, quando um deixa de se identificar com aquilo, há uma seleção natural, automaticamente ele vai acabar saindo. Não há a possibilidade de se estabelecer um grupo se não se coadunar no discurso, na proposta. E aí fatalmente o grupo que tem oito, daqui a pouco ficam cinco, porque no decorrer do processo dois passaram a pensar diferente, normal, e vai se desmanchando. Agora estamos nesse momento de tentar somar, no processo, aquele que venha a dialogar, estamos com essa ideia. KÁTIA LOPES Na verdade a gente até tem esse integrante, ele é que não “nos tem”, porque vive em outro município. FLECHA Claudio Marconcine é um irmão nosso que mora em Imperatriz e desenvolve uma produção maluca de uma companhia de um homem só! Ele é um par diretamente identificado, só que tem uma distância geográfica. Outros pares estão




Santa Ignorância Cia. de Arte São Luís (MA) Entrevista realizada na Pousada Portas da Amazônia, São Luís, em 28 de abril de 2009. 49

FERNANDO YAMAMOTO Pra começar, falem um pouco como se deu o processo de criação do grupo, de onde que surgiu. ERIVELTO VIANA O nome Santa Ignorância Companhia de Arte já existia há muito tempo, desde 97. A gente fazia performances, brincava, fazia oficinas com Urias de Oliveira. Em 2003 eu saí da Tapete, e como queria continuar a fazer teatro, chamei a Rosa, que também estava sem companhia, para reativar a Santa Ignorância, já que a gente fazia parte. Conversamos com o Urias. E continuamos a partir daí. Chamamos o César Boaes e o Adeílson, e o Lauande foi o último que entrou. A gente fundou oficialmente a companhia em 9 de janeiro de 2004. Eu tinha acabado de chegar de Campinas, dos trabalhos com o Lume, e vi um trabalho intenso de grupo.

FERNANDO E como é que hoje a rotina de trabalho de vocês? Vocês têm uma rotina de trabalho semanal?


ERIVELTO A nossa rotina de trabalho varia muito de acordo com agenda. A gente faz uma tabela a cada mês, de acordo com quem pode, a gente vai fechando os horários. Por exemplo, pra montar um espetáculo, a gente faz essa tabela de tantos meses pra ensaiar, estudar, e vai adaptando de acordo com a disponibilidade de todo mundo.

FERNANDO E quando vocês não estão em montagem? ERIVELTO A gente tem outras atividades. Por exemplo, a gente tem três pessoas na organização da Semana de Teatro do Maranhão, e isso requer cinco meses fechando desde o projeto até a realização. Se a Companhia é selecionada para estar na semana, nos prejudica muito, por estarmos organizando e apresentando, então a gente decidiu que não iria mais apresentar. E tem outras atividades artísticas fora da Companhia: o Lauande tem um trabalho muito forte com música, com performance musical, eu já sou muito ligado à dança, então eu tenho os meus estudos na área. O que falta a gente mesmo é a gente unificar isso, trazer pra dentro do grupo. É uma 50

vontade de todos, mas a gente ainda não priorizou isso.

FERNANDO E como é que funciona a administração do grupo, a gestão do grupo, o trabalho administrativo, projeto, financeiro? ERIVELTO A gente tem uma sede onde a gente guarda figurino. Administrativamente o nosso endereço é na casa da Rosa, que é o escritório. O que acontece com a nossa Companhia, é que a gente não tem um empenho em relação a projetos, sabe? Ultimamente a gente até fez alguns, mas projetos grandes assim, como o Palco Giratório, falta a gente saber como se faz, precisa uma pessoa da Companhia se empenhar mais em saber disso. A gente se reúne na casa da Rosa, e ela que faz a parte de secretaria, documentação, papelada, etc. E tem um contador também, que é fundamental.

FERNANDO Como surgem os processos criativos da Santa Ignorância, como vocês decidem o que vão montar?


LAUANDE AIRES A Santa Ignorância surge desse desejo de continuar fazendo teatro, de aproveitar essas pessoas que já vinham fazendo, que foram dissidentes de outros grupos. Só que, se por um lado, o grupo conseguiu isso, tá fazendo, mas por outro passa por uma crise de identidade, não tá conseguindo definir a proposta política do grupo. Por que nós vamos fazer esse ou aquele espetáculo? Por que que nós vamos optar por esse ou aquele? Como nós queremos ser vistos, lembrados? Uma questão muito complicada em São Luís é Estado financia toda a manifestação cultural popular, e nós acabamos ficando com as sobras disso e nos viciando em só fazer apresentação paga. E isso traz um problema muito sério, uma que é o tempo. Em função de um contrato, você tem dois meses, um mês, três meses pra montar um espetáculo, pra estar dentro de uma determinada programação. A outra é que esse espetáculo já tá pago. Então, tanto faz que dê gente ou não, e você acaba não se relacionando com esse espectador. Teve um espetáculo ano passado que nós fomos convidados pela Secretaria de Juventude pra apresentar. O cachê já pago, nós chegamos ao evento e não tinha ninguém! Aí saímos pela Praia Grande, convidando as pessoas, tocando o Boi Desmiolado, pra atrair algumas pessoas. Mas você não tem como medir se o espetáculo tá crescendo, porque não tem proposta de continuidade, de crescimento, de evolução. Por isso que não se investe em material gráfico, em filmagem, e consequentemente não temos material pra enviar pros festivais, fica num circuito muito fechado. Então essa questão da proposta política do grupo, do processo de criação, de forma geral, é a nossa grande questão no momento.

FERNANDO Qual é a duração média dos processos de montagem de vocês? Em geral vocês levam quanto tempo pra montar espetáculo, e com qual frequência de trabalho? LAUANDE Acho que dois, três meses estourando, quando atrasa alguma coisa, com uma frequência diária, geralmente. ERIVELTO Às vezes a gente pega duas vezes por dia, com aquela história da tabela.

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FERNANDO E vocês têm essa perspectiva sempre de montar espetáculos pra mantê-los em repertório? LAUANDE Sim. Mas aí tem a dificuldade do encontro depois. Como o foco é aquele contrato, não é um espetáculo que vai amadurecer, ficar em cartaz, aí nunca programamos o pós. Então, por exemplo, o Boi Desmiolado nós só vamos reensaiar agora, ano passado ele nem foi feito no período junino. Nós só reensaiamos depois de um ano, pra apresentar agora na Semana do Teatro. ERIVELTO Porque já estava pronto. Porque é comum alguns grupos fazerem coisas só pra Semana do Teatro, mas a gente fez porque já estava pronto.

FERNANDO Mas a Semana tem incentivado montagens? ERIVELTO Incentivou muito. Tem companhia que a gente nem sabia que existia. É muita gente.

FERNANDO Vocês em geral buscam algum tipo de espaço cênico espe52

cífico, ou vocês trabalham em diversas perspectivas? ERIVELTO Tem espetáculo que só dá pra fazer em palco italiano, por causa da técnica. O Boi Desmiolado dá pra fazer no palco ou na rua, então depende do espetáculo.

FERNANDO E como é que surge isso? É tipo “vamos montar espetáculo pra rua?”, ou o processo que indica pra onde vai? ERIVELTO O processo que indica. LAUANDE Eu comecei a escrever um trabalho chamado Cena à Venda, Quarta Parede e o Teatro de Encomenda, que é um relato da experiência que eu participava, e se acabou por falência, um projeto que nunca recebemos o dinheiro. Tem uma parte que eu cito, que tem a ver com essa questão de espaço que, de uma forma geral, os espetáculos em São Luís, a grande maioria é infantil ou juvenil, e as pessoas têm em


mente o seguinte: “esse espetáculo é pra qualquer espaço, pra qualquer público”. Consequentemente, por qualquer cachê. Fica uma coisa muito nesse sentido. ERIVELTO Não tem uma preocupação técnica.

FERNANDO Pra Santa Ignorância como acontece essa relação com o público? Existe algum tipo de interferência no processo criativo sobre o público pra qual vai se apresentar? ERIVELTO A gente tem uma preocupação de como vai chegar, de comunicação, mas não se preocupa em definir para que público é, tanto é que mesmo espetáculo infantil, como o Cavalo Transparente, é pra qualquer pessoa assistir. Já o Boi Desmiolado era pra ser totalmente adulto, porque ele tem umas coisas bem picantes da Catirina, mas as crianças gostam.

FERNANDO E a relação com a dramaturgia, como é? Lauande que sempre escreve? LAUANDE Não. Na verdade, pra Companhia eu só escrevi o do carnaval. ERIVELTO O Boi Desmiolado foi o grupo que mexeu, em tudo. Desde a escolha do texto até figurino, cenário. Foi o único espetáculo que o grupo todo interferiu, não tem direção, é todo mundo.

FERNANDO Vocês têm uma prática de dar oficina? ERIVELTO A gente dá as oficinas, mas não pela Companhia. LAUANDE Por outro lado, a Santa Ignorância é um dos grupos do Maranhão que mais promoveu ações de intercâmbio. Trouxemos Adelvane Néia, Luiz Carlos Vasconcelos, Maurício Abud, Jorge Alencar, do Dimenti, e o Kleber Lourenço, de Recife. E aí esse é um ponto muito positivo pra Companhia. Trazer gente pra fazer um processo com a gente e dividir uma pouco com os demais, pensando na comunidade, isso é legal.

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FERNANDO Como é que vocês conseguem viabilizar essa vinda dessas pessoas? ERIVELTO A Adelvane e Luiz Carlos Vasconcelos, a gente conseguiu pelo Festival Guarnicê de Cine-Vídeo, porque tem uma área de oficinas, e eu indiquei. O Maurício Abud foi um projeto aprovado pelo Estado. Ele é amigo do César, e a gente bancou pela Companhia, na última vez que ele veio.

FERNANDO E com os outros grupos daqui, existe também esse intercâmbio? Como é a relação com eles? ERIVELTO Eu tenho a impressão que a gente é uma companhia respeitada pelos outros nesse sentido da promoção de intercâmbios com pessoas de fora, e pelo trabalho individual, a gente tem pessoas muito fortes do movimento aqui: César que é diretor do Circo, que é um puta ator, dá aula de teatro e dá aula na faculdade, Lauande, que também é diretor daqui, tem um trabalho de música muito forte, a Rosa, que 54

já é bem antigona (risos), tem mais de dez anos de teatro. LAUANDE Sobre o diálogo com os grupos, há dois anos nós fizemos duas experiências de troca, uma delas foi o espetáculo Balacobaco, que eu escrevi pro carnaval. Nós fizemos de forma cooperativada com a Tapete. ERIVELTO E mais um monte de gente, como o Jorge Choairy da Pequena Companhia, a Raquel Franco, do Pé de Fulô, eram umas cinco companhias juntas. LAUANDE Antes disso, nós já tínhamos feito o Natal dos Pequeninos, que é um texto meu. Nós fizemos com a Tapete, a Quarta Parede e mais outra companhia. Então, às vezes rolam essas trocas, mas de forma geral não temos o hábito de nos encontrarmos, muito menos de ver espetáculos dos outros. Isso é muito ruim. ERIVELTO Hoje tem mudado. Eu já vejo! (risos) A gente tem que ver. LAUANDE As produções são poucas, então dá pra gente saber quem vai e quem não vai, né? Parece que há uma certa resistência, os grupos ficam ensimesmados demais nos seus processos e vendas. É como se não se tivesse vontade de se encontrar.


Tem muitas pessoas de teatro, mas pulverizadas. Enquanto proposta de movimento, não se apresentou nada até agora. Mudou governo, realizamos quatro Semanas de Teatro e não conseguimos preparar uma proposta de política pública para o teatro. A Secretaria de Estado da Cultura, especialmente através do Secretário cassado, cobrou muito isso da gente, e nós não conseguimos pautar isso dentro da Semana. ERIVELTO O Lauande fala que a Santa Ignorância não tem uma proposta política, mas o que falta é esses grupos terem coesão como proposta teatral, entende? Acaba que se perde mesmo, porque não tem uma proposta de treinamento, de firmeza da Companhia. É como eu vejo. LAUANDE Marcelo Flecha me perguntou como estava o Santa Ignorância. Eu disse: “Marcelo, nós estamos bem. Mas funcionamos como a Seleção Brasileira, tem jogador, mas não time. Esse é o problema do momento. Nós temos os jogadores, mas não tem time”.

FERNANDO Só treina pro jogo, né? ERIVELTO Isso. A história da saída do Fernando Bicudo do Arthur Azevedo tem um ponto muito positivo, porque quando ele chegou, as companhias se acabaram, enfraqueceram. O público só ia ver grandes espetáculos, e depois ninguém ia mais ver espetáculo de teatro! As produções dele eram de encher os olhos, todo mundo queria ver aquilo ali. LAUANDE E não se tinha pauta pra pegar o teatro, eram todas pra eles e pras produções nacionais e internacionais. ERIVELTO Era foi o início artístico de muita gente, eu mesmo aprendi muita coisa ali. Mas só depois que a gente veio tomar consciência das coisas. As companhias se perderam nessa época. Depois que ele saiu, as pessoas estavam começando a engatinhar de novo, e se perdeu público. Aí o que é que a Semana do Teatro conseguiu? No primeiro ainda foi pago, porque se queria que as pessoas pagassem pra ver teatro, mas depois foi de graça. Esse ano a gente teve um acontecimento inédito, de filas e

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filas, de ter que se pagar os grupos para fazerem outra sessão! O problema é que a gente não sabe, caso fosse pago, se teria público. Então isso é uma coisa pra gente observar como é que vai ser daqui pra frente. Até os espetáculos locais são lotados na Semana.

FERNANDO Pra fechar, o que que vocês têm de perspectiva pro grupo? Qual que é o próximo passo do grupo? LAUANDE Eu não sei por quanto tempo nós vamos esticar essa situação atual do grupo. Nós estamos por conta do processo do Cavalo Transparente, que houve um desgaste muito grande, e em seguida, teve a Feira do Livro com o Boi Desmiolado, fechou o desgaste do grupo. O grupo tá desde esse período sem conseguir se encontrar. Eu acredito que esse é um bom momento pra Santa ignorância, por conta da participação na Semana, dos espetáculos que conseguiu realizar, os contatos extra Maranhão que conseguiu manter., e esse momento de ter mais duas pessoas que durante esses dois anos, estavam ocupadas, tinham mais tempo ocupados pra questão 56

de gestão. Que era eu e a Rosa. Esse é um bom momento pra Companhia poder ver seus processos e se planejar. O que nós temos, o que nós queremos fazer com isso, e o que nós queremos produzir como novo marco, político e estético, dentro de uma proposta de construção coletiva.




Cia. Tapete São Luís (MA) Entrevista realizada na sede do grupo, São Luís, em 29 de abril de 2009. 59

FERNANDO YAMAMOTO Pra começar eu queria pedir pra vocês falarem sobre a formação do grupo, como se deu? URIAS DE OLIVEIRA Em 2000 eu fui para a Espanha fazer um trabalho com um grupo de Brasília. Era a criação de A dança do encoberto, sobre D. Sebastião. Na minha volta, eu encontrei aqui em São Luís com Claudiana e a Maria Ethel, que tinham chegado do Rio, porque passaram dois anos estudando lá. Elas me propuseram fazer uma oficina e montar um roteiro que elas haviam construído com o Luiz Pazzini, o Galateia Club. Eu era da Santa Ignorância, na época, e fizemos uma grande oficina, onde a gente convidou amigos de outros grupos e juntou as minhas experiências e as delas, durante um mês. Criamos um espetáculo interativo, que acontecia num bar, um cabaré, e ficamos sete meses fazendo temporada às segundas e terças. Tinha banda, ao todo eram 25 pessoas. Quando terminou a temporada, a Gisele Vasconcelos, a Ethel e a Claudiana resolveram fundar a Tapete e me convidaram. Eu saí da Santa


Ignorância, trazendo comigo A Escrita do Deus, um espetáculo que já tinha estreado, e a partir disso a gente começou a desenvolver os trabalhos, as ideias que tinha, a busca de um método, de uma técnica, o trabalho com os contadores de história, e nós tivemos a sorte de encontrar essa sala do casarão, que estava desocupada.

FERNANDO Vocês compraram esse espaço? URIAS Não, nós pagamos pela concessão do uso, porque era ocupado por um cantor que tinha um estúdio aqui e havia feito melhorias no espaço. Esse espaço pertence ao Estado e até hoje Nós temos esse imbróglio se vai ou não vai, se paga taxa ou não. A última taxa que eles quiseram cobrar da gente não dava pra nós pagarmos e a gente ainda tá resolvendo isso até hoje, há sete anos.

FERNANDO Como é que funciona o grupo hoje? Como é a rotina do grupo, como vocês dividem horário de trabalho, como vocês dividem as questões administrativas e artísticas? 60

ROBSON DINIZ A gente tem três dias fixos de trabalho: segunda, quarta e sexta. Nesses dias todo mundo tá em sala, em treino, ensaiando, criando, produzindo, fazendo coleta de material, etc.. Nos demais dias, cada um cuida de determinadas áreas, em termos administrativos, e os horários disponíveis de cada um vão sendo destinados para esse trabalho. Algumas pessoas estão na universidade, concluindo o curso, e não podem estar aqui em determinados horários, mas estamos na casa quase que o dia inteiro. Sempre tem alguém fazendo alguma coisa, até porque essas tarefas são divididas entre o grupo. Tem uma pessoa que cuida de produção e administração e ela vai distribuindo tarefas para o grupo.

FERNANDO Todo mundo trabalha na administração do grupo? ROBSON Sim.

FERNANDO O grupo consegue prover sustento para seus integrantes, ou parte deles?


ROBSON Todo trabalho é gerado aqui dentro. Falo isso em relação a direção, oficina, apresentações, etc. Com exceção do André, que já é graduado e tem os trabalhos dele fora da companhia, ninguém tem nenhum outro vínculo empregatício com nenhuma outra instituição, com nenhum outro trabalho. Então, todo mundo gera trabalho dentro da companhia e, a partir desses trabalhos, vamos gerando nosso sustento.

FERNANDO Não tem nada fixo, mas as pessoas trazem as atividades pra cá? ROBSON Isso. A gente vem buscando através de editais, bolsas e afins conseguir estar mais focado para a pesquisa e pra ter um pouco de comodidade pra realizar nossos trabalhos. A gente fica numa dependência muito grande, embora isso faça com que estejamos mais na casa, sempre nos mobilizando, buscando criar estratégias de trabalho. URIAS Até ano passado, antes dessa crise mundial, nós tínhamos um rendimento até bastante interessante com relação à performances, se vendia muito. Era isso o que trazia dinheiro pra gente, e onde a gente experimentava o que era feito na sala pra poder jogar diretamente com as pessoas, que é um trabalho que a gente tem buscado cada vez mais, um teatro mais interativo. Isso gerava um rendimento bom pra gente.

FERNANDO Geralmente qual é o ponto de partida para as montagens dos espetáculos de vocês? URIAS Nós realmente não temos algo assim que nos chame atenção, desejo. O Iaô foi um espetáculo que a gente montou mais pelo tema mesmo. É o tema que faz entremear a busca como, por exemplo, comigo agora no A solidão de D. Quixote, que é um tema que eu gostaria de abranger. Robson está com Onde estão as crianças? ROBSON É um trabalho que veio por conta de alguns estudos dentro da academia, e aí uni uma coisa à outra. Mas acho que é bem isso sobre o tema. Às vezes esse tema

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vem de uma forma muito natural ,como é o caso de um trabalho que a gente tá pesquisando a partir de poemas de um livro de um maranhense, O evangelho dos peixes para a era de aquário, que os textos pareciam estar muito associados ao que pesquisávamos e à muitos materiais que havíamos encontrado em sala. Naturalmente, por conta das descobertas, vimos que desejávamos trabalhar esse tema que permeia a compaixão, a seca, as questões dos cuidados com a água. Naturalmente a gente encontrou esse tema e o interesse para a montagem desse trabalho.

FERNANDO Partindo disso, dos desejos que surgem da pesquisa temática, como se dá a questão de dramaturgia e de direção? Em geral a dramaturgia é feita por vocês ou vocês já trabalham com um texto pronto? URIAS A direção tem ficado comigo e a dramaturgia varia conforme o espetáculo. Às vezes tem um espetáculo, como A Vaca Lelé, que foi a partir do texto, mas na maioria das vezes nós criamos a dramaturgia, justamente por causa desse trabalho 62

com a performance. No trabalho de performance eu procuro criar uma linha dramatúrgica, para que ela não seja muito solta, e isso vai me dando, vai dando pras pessoas dentro do trabalho de sala a perspectiva de criar essa dramaturgia a partir do ator.

FERNANDO E algum de vocês trabalha a compilação disso em mesa ou é tudo criado na sala? URIAS Na sala. Organizando esse material é que a gente vai tentando ver como é que fica. ROBSON Mas nós temos o caso da Nilce, que foi pra mesa e escreveu um texto infantil a partir de historinhas e a gente montou o Viva a floresta, que fala sobre os cuidados com a natureza. URIAS Em A solidão de D. Quixote a dramaturgia foi surgindo na medida que ia pra rua. O trabalho foi começando na Espanha pelo meu contato com as pessoas. Então,


foi a partir daí, do que as pessoas iam dizendo eu ia construindo a dramaturgia do espetáculo. E continua sendo construído.

FERNANDO Pela performance? URIAS É. ROBSON O Iaô também foi assim.

FERNANDO E em geral qual é o tempo médio de processo de montagem de espetáculo? URIAS O processo do Iaô durou quatro anos. ROBSON Também porque a gente não tinha dinheiro pra pagar cenário, figurino, era muito grande. E pela dedicação das pessoas.

FERNANDO Foram quatro anos ensaiando ou foram quatro anos em que isso já foi sendo experimentado, já foi sendo levado ao público? URIAS Ensaiando e experimentando algumas cenas, levando algumas cenas como performance. ROBSON Essa foi uma proposta para A solidão de D. Quixote e é agora nossa proposta também com Aqua pro Nobis. A gente já tem levado, apresentado alguns trechos.

FERNANDO Vocês conseguem ter alguma perspectiva de temporada? URIAS Sim. Depende do espetáculo, mas tem vários que estão em repertório.

FERNANDO Temporada é uma coisa que existe e é possível ser feito aqui em São Luís? ROBSON É difícil, né? Pra gente tem sido bem difícil. A própria captação de recursos, apoios pra temporadas, mas a gente vem buscando. A gente vem tentando criar estratégias para que a temporada de determinados espetáculos aconteçam, inclusive usando nossa sede, tanto pra movimentar quanto para ter outros usos do nosso espaço. Os espetáculos em São Luís têm uma tendência de não entrarem em tempo-

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rada, ou quando entra faz uma temporada e depois tende a morrer. Com exceção de alguns trabalhos, como o trabalho do Urias, A Escrita do Deus, que sempre tá sendo apresentado e sempre com uma resposta muito boa, mas é muito difícil fazer temporada em São Luís. E ainda sobre o que você tinha perguntado antes sobre o tempo de processo, também é muito relativo, de acordo com os trabalhos, porque em Aqua pro Nobis, por exemplo, como tem uma relação muito grande com a linha do grupo, então a gente tá deixando com que ele venha como resultado da nossa pesquisa, de todo nosso trabalho, mas outros espetáculos surgiram porque se queria montar, e montamos em dois meses, como foi o caso de A Vaca Lelé. É relativo. HEIDY ATAIDES Eu acho que tem muito a ver com a nossa manutenção, porque tem coisas que a gente precisa fazer muito rápido, pra gente poder ganhar dinheiro e se manter treinando, manter a casa, principalmente nessa área infantil, que nesses últimos meses foi o que sustentou o nosso trabalho. NILCE BRAGA Tem muito a ver com o próprio processo do ator. O processo 64

que a gente tem em sala de buscar a dramaturgia através do próprio corpo, aí a gente pensa num texto e depois é só resgatar o que a gente tem de corpo pra colocar em cena, e isso é uma coisa que facilita. ROBSON Acho que esse é o ponto chave da coisa. A possibilidade de fazer um trabalho com tempo de processo muito curto só se dá mediante essa rotina de treinamento, de experimentação. Eu acho que nós só estamos respaldados por conta disso mesmo. E aí fica mais simples, obviamente com o olhar do diretor de juntar as peças e ter um resultado.

FERNANDO Existe algum tipo de preferência por espaço cênico? HEIDY Eu acho que a gente sempre tenta se desprender dos espaços convencionais. URIAS Justamente por causa dessa dificuldade de abranger, de trazer o público. Então, cada vez mais a gente está se distanciando do palco. Pra mim, o desafio é tentar ocupar o espaço da melhor forma possível, seja qual for o espaço que me foi dado.


ROBSON Qualquer que seja. É o que vem acontecendo praticamente com todos os trabalhos do repertório. A solidão de D. Quixote é um solo que é pra ser feito em uma sala, em um galpão, qualquer lugar aberto, mas já foi apresentado no palco também, com todo mundo em cima. De acordo com o espaço se adequa, sem abrir mão da concepção, da encenação e possibilitando fazer o uso do espaço. Eu acho que é bem isso, porque todos os trabalhos foram experimentados em vários lugares, e é bem interessante essa possibilidade.

FERNANDO Em que grau a preocupação com o público interfere no processo criativo de vocês? URIAS Eu acho que no primeiro, no maior grau, porque foi justamente essa questão do público que levou a gente pra outros espaços, pra tentar abrir ao máximo o nosso trabalho, pra trazer esse público. A gente sabe que, se for reduzir ao palco, aqui em São Luís é dificílimo pra nós que somos daqui. Isso fez com que nos preocupássemos com o público como nossa questão e nos adaptarmos a qualquer espaço que nos derem pra que a gente esteja com o público.

FERNANDO O grupo tem prática de ministrar oficina? É uma coisa constante? URIAS Sim, é uma constante. Desde a fundação da Companhia.

FERNANDO E como são essas oficinas, qual o tempo médio, qual tipo de público? URIAS Olha, são oficinas que vão de consciência corporal até treinamento físico para atores, para público em geral. Essa de consciência corporal, por exemplo, investiga a integração homem-corpo-universo, vai pra todo mundo, médicos, terapeutas, atores, músicos...

FERNANDO E qual o tempo de duração em geral? URIAS No mínimo de 12 a 15 horas e no máximo de 24 a 25 horas.

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FERNANDO O grupo tem uma prática de registro dos trabalhos? Seja fotográfico, videográfico ou escrito? Vocês têm essa preocupação com o registro de trabalho do treinamento, dos espetáculos, dos projetos que vocês fazem? HEIDY Tem registro fotográfico, né? ROBSON É o mais comum. HEIDY E agora eu tô encabeçando um trabalho científico na universidade que é exatamente isso, um registro científico do processo de treinamento do grupo, pegando relatos pessoais, anexando registros fotográficos e, de repente, mais tarde isso pode ser publicado. Esse é o objetivo.

FERNANDO Vocês são um grupo que tem uma prática muito grande de intercâmbio, né? Com outros grupos, grupos de fora principalmente, esse projeto que vocês fizeram na Inglaterra. Falem um pouco dessas 66

práticas. HEIDY Eu acho que o interessante é a troca mesmo, você trocar com outro grupo o que você tem porque o Hotel Medea, por exemplo, é uma junção de vários atores de vários lugares do Brasil e atores da Inglaterra também. São três companhias e atores independentes. Eu acho que essa junção de todas essas pessoas, de todos esses pensamentos, de todas essas técnicas, é o mais interessante, as próprias diferenças das culturas, de comportamento em relação ao trabalho, à disciplina.

FERNANDO Como foi o projeto? Quanto tempo levou, que tipo de resultados teve, de onde surgiu esse desejo? URIAS O Hotel Medea pratiu de um desejo de Jorge e Jade. Jorge é carioca, mora há nove anos em Londres e a Jade é atriz, performer, formada pelo Centro de Grotowski, e era um desejo dela trabalhar com esse tema, com Medeia. Nós não nos conhecíamos. Nós nos conhecemos há dois ou três anos e havia um interesse do Jorge e da Jade em fazer esse intercâmbio Reino Unido-Brasil. O Jorge e a família têm um


centro de arte no interior do Rio, o Centro de Conspiração Cultural Gargarullo, em Miguel Pereira, e ele tava começando esse processo de procurar pessoas. Ele esteve no Rio em contado com o Moitará e o Venício, do Moitará, nos indicou. Vieram ele e Jade pra conhecer São Luís, acabamos nos conhecendo e eles propuseram que nós fizéssemos uma aula, onde cada um de nós ministraria uma parte, para irmos nos conhecendo, saber como era o trabalho do outro, e eles conheceram A Escrita do Deus.

FERNANDO Voltado mais pro treinamento? URIAS Mais pro treinamento, porque eles já queriam ver a possibilidade de atores brasileiros, e pra eles interessava muito os atores do Nordeste. Quando a gente se conheceu e eles viram esse trabalho, me convidaram pra fazer uma temporada com A Escrita do Deus em Miguel Pereira e ministrar uma oficina para atores que já haviam feito oficina com eles, e já estavam interessados nesses atores, gente de São Paulo, de Santa Catarina, de Campinas, etc. Fizemos essa oficina e foi aí que surgiu o convite pra eu entrar como terceiro diretor do trabalho, pra ajudar na criação. Foi um processo de criação de dois anos para o Hotel Medea, a companhia veio pro Brasil, eu ia pra lá, ficava no interior do Rio treinando com eles, a gente criou uma parte, depois viajamos pela Europa ministrando a minha oficina e a de Jade e Jorge, apresentando os primeiros resultados de Hotel Medea, e já no Reino Unido entraram outras pessoas, atrizes da Grécia e os outros atores de São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina, que foram chamados também, e aí foi se gerando. A gente voltou a trabalhar no Brasil, e foi aí que o Robson e a Irlane passaram a integrar a equipe. Nesse ano estreamos o espetáculo, com temporada. O espetáculo tem seis horas de duração, foi um processo terrível de criação, muito sofrido, começa meia noite e termina às 06h da manhã.

FERNANDO Como isso é financiado? URIAS Esse ano nós tivemos um apoio do Ministério da Cultura para as passagens e um apoio do Arts Council de Londres. Como é muito caro ficar trabalhando em Londres, a gente foi ministrar oficinas e ficar em museus na Espanha criando o tra-

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balho lá dentro também. Fazíamos residência, fomos pro interior da Itália com as mesmas coisas, pra ficar mais fácil.

FERNANDO Bacana. Como é que se dá a relação de troca com grupos e artistas daqui de São Luís? ROBSON Nós somos uma das poucas companhias que têm sede própria, mesmo com todos os percalços. Essa coisa da sede tem sido uma forma de manter relações com outros grupos, porque alguns grupos ou artistas independentes procuram pelo espaço, a sala já foi usada para apresentações, movimentações na cidade quando é necessário levantar a bandeira e dizer que existimos. HEIDY Nós tivemos também montagens coletivas com outros grupos e foi bem interessante.

FERNANDO Com quem vocês fizeram isso? HEIDY Com o Santa Ignorância e com o Quarta Parede. 68

URIAS Tirando o Laborarte e o Grita, nós fomos uma referência bastante forte para os outros grupos, no sentido de eles verem que poderiam se manter, que era preciso procurar um espaço, que é preciso treinar todo dia e que isso vai dar um resultado. Obviamente que, se você vai treinando, de alguma forma vai gerar um produto. Aí as pessoas acreditaram muito, acreditam muito na gente e nós nos tornamos um espelho. NILCE Eu acho que a Tapete, e eu falo da minha experiência de antes de entrar na Tapete, é exatamente isso. Existem muitos grupos que se juntam e eu sempre ouvia falar na Tapete, no espaço, numa companhia que existia e que estava ali funcionando todo dia, com um trabalho contínuo. Eu acho que é uma das poucas. Algumas pessoas estão tentando, aqui é muito difícil manter um trabalho, manter um espaço, se manter treinando, às vezes sem ganhar por isso. ROBSON É uma escolha difícil. Nós dependemos desse trabalho, desse nosso espaço, da nossa arte pra viver, e tem sido muito difícil não estar amparado financeira-


mente. É difícil mantermos a casa, chegar aqui pra treinar e tudo depende de grana, mas nós temos sido bem persistentes e confiantes. Parece que as coisas estão começando a acontecer, eu me refiro a editais, à contemplação como o Myriam Muniz, que foi um sinal positivo, por exemplo, e a gente tá esperando outros que, se Deus quiser, virão.

FERNANDO Você falou que o espaço é usado em alguns momentos pra articulação política. Como é que se dá essa articulação política entre os grupos e artistas de São Luís? URIAS Aqui é uma dureza, Fernando. Os grupos não se juntam muito. É muito difícil, as pessoas trabalham muito por si só. A gente insiste, há alguns anos tentamos criar uma associação, convidamos algumas pessoas, mas as pessoas não vão, os grupos não vão, não aparecem em reuniões. Quando vai haver um movimento, como a Semana do Teatro, aí agrega, mas integrar realmente são poucos. ROBSON Eu vejo que, na sua maioria, ou outros grupos não vivem do teatro, se vive ligado a alguma instituição. Então, é diferente, porque no horário em que as pessoas estão trabalhando, nós estamos aqui, fazendo isso. Estamos trabalhando, mas não ligado a alguma empresa ou instituição. As pessoas estão dando aula, indo pra universidade, fazendo um monte de outras coisas, só se reúnem à noite com o grupo, isso quando dá, quando conseguem algum lugar, e isso tudo favorece para que essa integração não aconteça. Além do mais, ainda tem as coisas internas do grupo, ensaio, treinamento, ações que façam o grupo estar articulado, trabalhando. Então, eu acho que não é só o não querer estar integrado, vai muito além, porque as nossas políticas públicas também não favorecem isso, as instituições que poderiam amparar os grupos não o fazem. É muito difícil fazer as pessoas se reunirem pra votar, escolher seus representantes. URIAS Tem também a coisa de conscientizar os outros grupos de que existe uma ética dentro do mercado, de que você não pode ir lá e apresentar um projeto a 50% menos do meu. Alguns grupos não compreendem isso.

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ROBSON Essa questão é realmente indignante. A gente está estudando, buscando ser graduados na área, ter uma profissão, um reconhecimento. A gente tá aqui todo dia treinando, articulado, trabalhando, criando. Por conta da história da Tapete ao longo desses quase oito anos, a gente vem construindo e se tornando uma referência pra empresas e instituições. Daí cria um valor que seria justo para o nosso trabalho, no sentido de ser acessível a eles e favorável pra gente. A gente tá ralando, construindo relações de trabalho, não só pra gente, para a nossa profissão, e no final das contas, vai ter sempre alguém que vai lá e diz “se tu me der tanto eu vou lá e faço”. URIAS E aqui isso é predominante. ROBSON A gente tá tentando construir aqui o que é uma sistematização de pesquisa, de treino, de trabalho contínuo. Aí os desvios que artistas ou determinados grupos vão optando em fazer, acabam desfavorecendo um trabalho que a gente vem construindo, e não só a Tapete, mas outras companhias que também vem construindo um trabalho mais sério, uma relação profissional. Estamos estudando, experimen70

tando e queremos ser reconhecidos como profissionais da área. URIAS E também existe uma questão que é o outro lado, quem contrata que, às vezes, não quer saber o nível do trabalho.

FERNANDO Mas aos poucos acho que você vai imprimindo, né? Porque os resultados de quem contrata também são diferentes. É lógico que não é fácil você mostrar isso. URIAS Muita gente não tem ideia que a gente vai pra sala todo dia, que cada um emprega seu dinheiro em coisas, a gente viaja e compra coisas, material, todos nós viajamos, vemos material que um dia possa ser utilizado e trazemos. Todo mundo gasta e emprega toda sua vida pra poder ter um retorno.

FERNANDO Não é por acaso que saiu um Myriam Muniz, que vocês vêm crescendo.


ROBSON Não é um investimento à toa que nós estamos fazendo. O que nós fazemos é porque acreditamos, e é lógico que, aos poucos, mesmo um pouco longe, eu acho que é uma situação que vem mudando e que a gente vem construindo possibilidades de se manter pessoalmente, manter a casa, manter a companhia.

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Xama Teatro São Luís (MA) Entrevista realizada na Pousada Portas da Amazônia, São Luís, em 28 de abril de 2009. 73

FERNANDO YAMAMOTO Meninas, me contem sobre o processo de criação do Xama Teatro, dessa relação de ser uma dissidência de outro grupo, o Tapete. GISELE VASCONCELOS A gente fundou a Tapete em 2001, junto com a Claudiana, e ao longo do tempo alguns interesses de pessoas foram se diferenciando, outras pessoas foram morar fora, e a gente já não se identificava muito com o perfil do grupo, principalmente de trabalhos com performances. Então, acabamos nos afastando, mas a afinidade que eu, Renata e a Ethel tínhamos era muito grande, nos identificamos no processo de investigação de contação de histórias, e começamos a fazer o programa Era uma vez só nós três, ainda dentro da Tapete. A gente foi percebendo que acabava tendo subgrupos dentro da Tapete, de acordo com essas linhas de atuação, e achou que seria muito melhor montar um outro grupo, com esse objetivo do contador de histórias. A gente não limitou ao infantil porque, quando


tava saindo da Tapete, a gente ganhou o prêmio Myriam Muniz para a montagem de A Besta fera, que é uma biografia cênica de Maria Aragão. Então ficamos com esse espetáculo, como Xama, e acaba sendo um espetáculo também com o contador de histórias, porque trabalhamos o narrador e o personagem numa dramaturgia épica, com recursos épicos. A gente levou também o programa Era uma vez, que a gente tem desde 2003 na rádio Universidade FM, que continua a mesma coisa, só que ao invés da produção ser Tapete Criações Cênicas, é Xama Teatro. A gente tem um repertório de mais de mil histórias gravadas na rádio. Então, a gente começou o grupo com o repertório que a gente já vinha construindo há sete anos. RENATA FIGUEIREDO Eu acho que o Grupo Xama já estava formado desde 2006, quando a gente fez Dorotéia, e formalizou em 2008.

FERNANDO E como é que tem sido a rotina do grupo desde então? Como vocês lidam tanto com o trabalho administrativo, quanto com o trabalho artístico? 74

GISELE A gente não tem uma rotina hoje. A gente tinha quando foi montar A Besta fera. Todos os dias pela manhã a gente se encontrava, das 08h às 13h, numa sede que a gente tem, numa academia que chama Shotokai. Esse foi um período de constância que a gente teve. Após a estreia de A Besta fera a gente perdeu isso, por diversos fatores, principalmente porque a gente administrou até pouco tempo atrás centros culturais de muita importância aqui em São Luís, que nos consumiam muito. Eu também entrei como professora da universidade, e a gente ficou sem essa exclusividade pro encontro, mas a gente sabia que era um momento da gente. Agora a gente sabe que o momento é de encontro diário, do retorno ao grupo.

FERNANDO Tá, nesse período depois da montagem os encontros de vocês ficaram atrelados mais à demanda de trabalho externo? GISELE É, administrativo. O que afastou muito foi a própria gestão administrativa e os nossos interesses em comum. Lá, a gente se encontrava diariamente, das 14h às


22h. Agora a gente vai criar uma rotina pra esse grupo que, provavelmente, será a mesma coisa.

FERNANDO Existe uma perspectiva de vocês fazerem o grupo gerar a subsistência dos seus integrantes ou não? RENATA Eu acho que talvez a Gisele não, porque ela é professora da UFMA, né? Eu tenho esse interesse de trabalhar só com a companhia, sempre envolvendo arte educação, não só espetáculos, mas oficinas, que é a nossa área também. GISELE Agora a gente vai se dedicar a isso apenas, como a gente já fazia anteriormente. Eu tenho um grupo de pesquisa na UFMA na linha do contador de histórias, que trabalha o contador de história em performance. A gente até já organizou um encontro de contadores de história, no Teatro Arthur Azevedo, que era uma coisa do grupo da universidade e do Xama. Foi o encontro muito bonito, de quatro companhias que trabalham com contador de história, mas foi só um dia. Então, a gente vai trabalhar pra se manter e, no meu caso, pra trabalhar meu lado de pesquisa, atuação, direção e de professora também. A gente trabalha na linha de espetáculo, contador de histórias e oficinas. Com essas três atividades.

FERNANDO Quais são as principais fontes de financiamento que vocês usaram? GISELE Myriam Muniz e o governo estadual. Ganhamos um edital pra circulação de espetáculo, que a Ethel entrou como pessoa física, porque a gente ainda não tinha se constituído oficialmente. Foram doze cidades que ela circulou. RENATA Tem o SESC também, que nos contratou pra feira do livro.

FERNANDO Falando um pouco dos processos criativos, geralmente de onde partem os processos criativos? GISELE É. A gente parte da ação. O nosso ponto de partida é muito a ação, porque a gente já tem um texto. O texto de A Besta fera, por exemplo, é uma biografia, ele existia realmente nas palavras de Maria Aragão, mas não era dramatúrgico. Então a

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gente pegou textos, depoimentos, etc. A gente trabalha isso durante um tempo, e depois coloca som, palavra, canção, mas tudo dentro do laboratório e trabalha experimentação, formalização, organização e repetição.

FERNANDO E antes de chegar a isso? Por que se montar A Besta fera? RENATA Sempre foi um sonho da Ethel, ela conheceu a Maria Aragão. GISELE Ela sempre teve essa vontade. Existe um livro que chama Maria: uma história de paixão que foi nosso guia, formado só por depoimentos da Maria Aragão. A Ethel sempre quis organizar isso, ela é socióloga, acredita nas causas sociais, acredita no que Maria Aragão fez na vida. Besta fera foi apresentada nos interiores, assembleias, semana da mulher, e foi um momento muito político, de dizer que a gente acreditava, com todo esse momento político que o Maranhão passa.

FERNANDO Quanto tempo foi de processo? 76

GISELE Três meses. A Ethel já vem há mais de quatro anos trabalhando nessa pesquisa.

FERNANDO E os processos de contação? Quanto tempo leva do ponto zero até a contação estar pronta pra começar a ser apresentada? RENATA No meu caso, um mês. Quando eu apresento vou mudando, mudando, mas um mês é um tempo legal.

FERNANDO E elas ficam em repertório? RENATA Algumas vão embora, mas a maioria a gente repete.

FERNANDO Vão embora por falta de demanda ou por falta de desejo? RENATA De desejo. GISELE E outras ficam mesmo. Tem umas que eu conto hoje do meu repertório que foram as primeiras histórias que eu contei, e que eu ainda conto. Tem outras que


eu não conto mais, mas tem coisas que a gente tem que adequar ao repertório do momento.

FERNANDO E como é que se dá a direção, tanto nos espetáculos, quanto nas contações? RENATA Ah, é o nosso maior desafio! GISELE Em A Besta fera eu fui a diretora. Eu fazia as propostas dos laboratórios, de experimentação de espaço e sensação, recolhia material, e fui construindo a dramaturgia assim. Organizava o texto e chegava com a proposta da cena, mas a partir de tudo que ela me dava. Então, é um espetáculo em que é muito mais forte o trabalho do ator. Enquanto diretora totalmente inexperiente – porque era meu primeiro trabalho de direção fora da faculdade –, eu sentia que acabava ficando muito no próprio ator, meu trabalho é muito no ator, tentar com que o ator consiga falar, porque aqui em São Luís a gente tem uma tendência que não se sabe falar. Quando coloca o ator pra falar, dá logo vontade de sair do teatro. Não tem sensação, não tem verdade, não tem nada.

FERNANDO E essa confecção da dramaturgia? Ela se deu coletivamente ou, nesse caso, foi você mesma? GISELE Eu e a atriz o tempo inteiro. Esse é o trabalho de construção do espetáculo. O do contador de história tem um processo bem diferente. É muito individual. Quando se encontra a gente brinca, porque o processo do contador é a brincadeira. A gente brinca com tudo, com o objeto, com a palavra, com uma canção, e daí a gente vai criando uma dinâmica, ritmo, pique, emoção, corpo e voz.

FERNANDO E como é a relação de espaço cênico em geral? Nas contações é lógico que é uma coisa absolutamente flexível, né? GISELE Em A Besta fera é italiano. A gente fez só uma vez só em arena, já que o cenário é super adaptável, e a gente pode colocá-lo em vários formatos.

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FERNANDO E vocês têm uma perspectiva de investir nessa linguagem da relação frontal? GISELE É, no contador a gente investe no italiano, na relação frontal, pouco o arena.

FERNANDO Como é que vocês lidam com essa relação do público em relação ao processo criativo? Que tipo de influência tem o público em relação ao processo criativo? RENATA Uma coisa que me incomodava muito no trabalho com a Tapete é que a gente não se preocupava com o público, se o público ia entender, se a gente ia se comunicar. No nosso caso, nosso interesse é estabelecer uma comunicação. GISELE O público ajuda muito na construção do repertório. A gente pensa muito no público pro repertório que a gente vai usar, porque é muito delicado, dependendo da faixa etária, do local. Às vezes eu vou preparada pra contar cinco histórias, mas 78

eu conto três porque eu acho que a quarta já não vão receber muito, então o público ajuda a gente definir nosso repertório no momento exato, durante, e também ajuda a gente a definir a quantidade. RENATA Eu recebo muitas sugestões de histórias, CDs... GISELE Pro contador de histórias o público é fundamental, a relação é contadorouvinte.

FERNANDO Como é que é o trabalho de oficina de vocês? Vocês têm conseguido dar oficina com frequência? Pra quem? Pra crianças ou pra profissionais? É sempre em cima da contação? RENATA Eu trabalho muito no interior do estado, e mais pra professores, mas já fiz um trabalho de seis meses com adolescentes, e sempre com contação de história. GISELE Eu já trabalhei com oficina de contador de história pra muita gente. Pra criança, adolescente, babá, mãe, pai, professor, ator. Eu dou muita oficina de conta-


ção de história e, pela primeira vez, a gente deu uma oficina juntas, eu e a Renata. A linha da Renata é bem diferente da minha, então foi bom estar juntas. A Renata trabalha com o foco na memória e eu trabalho com o foco nos elementos do contador, corpo, voz, pique, ritmo, emoção.

FERNANDO Como é que se dá o registro das atividades do grupo? Vocês têm essa preocupação em registrar o trabalho, os processos, as oficinas? GISELE Temos. A gente filma, fotografa, a gente faz um relatório em DVD. As apresentações de A Besta fera no interior teve um relatório bem completo, multimídia. A gente trabalha com isso e escreve também. Como a gente vem da academia, a gente escreve. Renata vai fazer a monografia dela, eu tenho a minha pesquisa, escrevo artigos.

FERNANDO E vocês têm uma prática de registro diário de escrita? GISELE Quando a gente tá em processo de criação de espetáculo, tem um protocolo diário.

FERNANDO Como é a relação de vocês com os outros grupos? Vocês criam espaços de troca? RENATA Eu acho maravilhosa a nossa relação. No encontro de contador de histórias foram vários grupos que a gente convidou, o Alma jarra foi um espetáculo também com vários grupos, a própria Semana do Teatro, o fato de a gente participar da organização abre muito pra isso. A gente tem essa abertura, inclusive pra convidar pessoas de outros grupos a participar de montagens com a gente. GISELE A gente tem muito interesse em intercâmbio. Eu fui a primeira pessoa daqui do Maranhão que chegou no LUME pra fazer curso, e depois desse intercâmbio foram várias pessoas daqui. Nós estamos tentando colocar o Maranhão num circuito, mas ainda precisamos de produção.

FERNANDO E o que vocês acham que falta pra isso?

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GISELE Bem, a gente chegou a participar de eventos e festivais, mas os grupos não viajam, não formam seus espetáculos pra festivais, não se inscrevem ou não são aprovados, e a gente agora pretende entrar em um circuito de festivais. RENATA Mas você perguntou o que falta aqui, né? É uma pergunta boa. Acho que produção, organização principalmente. A Semana do Teatro evidenciou esse despreparo do teatro maranhense. GISELE Eu acho que aqui faltam duas coisas muito importantes. Uma é formação. Faltam oficinas pra vir pra cá. E falta produção também, porque montar um espetáculo não é como um contador de história onde está eu e eu. Um espetáculo, mesmo um espetáculo de contador de história, requer mais recursos, e a gente precisa de uma produção e de meios pra captação, porque aqui é muito complicado.

FERNANDO Pra gente terminar, que perspectivas vocês veem pro Xama, o que vocês o que vocês vislumbram pro grupo? 80

RENATA Uma nova sede. GISELE A gente tem um espaço, que é onde a gente pode ensaiar, no Renascença, mas a gente tem nossos adereços, cenários que ficam em lugares distintos, tudo nas nossas casas. A gente pretende concentrar novamente e organizar nossa sede oficialmente,. A gente tem o propósito de montar um espetáculo de contador de história, o Macaco, macaquice, macacada, continuar com A Besta fera pelos interiores, o programa da rádio e as oficinas. A gente só quer dar maior qualidade ao que a gente já tá fazendo.




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Pernambuco



A permanência de grupos de teatro em Pernambuco: um breve percurso histórico Leidson Ferraz Jornalista, ator e pesquisador teatral, organizador da coleção Memórias da Cena Pernambucana

A arte teatral em Pernambuco tem um capítulo especial na categoria grupo, ainda mais quando se fala em longevidade de trabalho. Exatamente no dia 02 de agosto de 1931, no Teatro de Santa Isabel, no Recife, entrava em cena o Grupo Gente Nossa, que inaugurou o moderno teatro pernambucano e não por acaso reforçou esta ideia de grupo de teatro, ainda que timidamente. Até então, quase todos os conjuntos teatrais eram amadores, de vida bastante efêmera e intitulavam-se grêmios, sociedades dramáticas, núcleos ou companhias que tateavam um profissionalismo ainda bem incipiente. Mas a iniciativa dos teatrólogos Samuel Campelo e Elpídio Câmara, dois idealistas com diversas e fugazes experiências anteriores no teatro, vinha modificar um pouco esta história.

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A ideia era reunir profissionais em um trabalho continuado, sem estrelismos – um dos grandes males para a vida tão curta das equipes teatrais daquela época – e valorizar como repertório a quase esquecida dramaturgia local. Apostando principalmente em comédias, burletas e operetas, e mesmo enfrentando períodos de crise tanto na frequência de público quanto na dos mantenedores (aqueles que pagavam mensalmente para ter direito às primeiras sessões dos espetáculos), o Grupo Gente Nossa foi conquistando cada vez mais credibilidade, especialmente pela constância de atividades, seja no Teatro de Santa Isabel – quando companhias itinerantes não o ocupavam – ou na circulação assídua pelos subúrbios, cidades do interior e até de outros estados. O fato é que, nos quase dez anos de sua existência, se o Grupo Gente Nossa não conseguiu realizar todos os seus intentos, principalmente o de manter um elenco permanente e de sobreviver da arte teatral – algo até hoje tão sonhado por todos, foi a primeiro em Pernambuco a abrir essa possibilidade de convivência mais duradoura 86

entre artistas num verdadeiro grupo teatral, aquele que, inclusive, delineia estratégias de sobrevivência e de repertório a seguir. Com a morte de Samuel Campelo em 1939, é o médico, músico e dramaturgo Valdemar de Oliveira, seu grande parceiro artístico desde o primeiro ano de existência do Grupo Gente Nossa, quem assume a equipe, criando novas possibilidades – muito graças ao apoio financeiro do poder público – e fazendo nascer dois departamentos autônomos ainda neste perfil. O primeiro surgiu em 1939, batizado no ano seguinte de Teatro Infantil de Pernambuco, e em atividade até 1941, com dezenas de crianças atuando em três grandiosas operetas escritas, musicadas e dirigidas pelo próprio Valdemar de Oliveira, A Princesa Rosalinda, Terra Adorada e Em Marcha, Brasil!. O segundo, e mais duradouro, iniciou, a partir de 1941, a trajetória mais longeva de um grupo teatral ainda em atividade na América Latina e, talvez, no mundo, a do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP). Com a estreia de Dr. Knock ou o Triunfo da Medicina, de Jules Romains, o Teatro de Santa Isabel não só recebeu um novo e significativo grupo teatral no Recife, com viés filantrópico e que ganhou personalidade própria depois, mas fez cair por terra


preconceitos, já que apenas médicos e suas esposas, ou seja, pessoas da “melhor sociedade”, estavam no elenco. O teatro, então, foi visto como arte nobre. Com a boa resposta de público e da imprensa a esta primeira montagem, concebida para celebrar o centenário da Sociedade de Medicina de Pernambuco da qual Valdemar fazia parte, a ideia de dar continuidade a um novo conjunto teatral que pudesse investir na melhor dramaturgia universal foi tomando forma, e um núcleo quase familiar, de amigos, inclusive, foi sendo constituído. Apostando numa diversidade incrível de autores, que vão de García Lorca a Nelson Rodrigues e Molière; de Shakespeare a Priestley e Dias Gomes, o TAP representou ousadia e acomodação com seus próprios avanços, e conseguiu produzir montagens memoráveis que o transformaram no mais incensado e criticado grupo teatral de Pernambuco, principalmente pela posição “apolítica” de seu mentor durante a ditadura militar. Da fase mais áurea, ainda sob o comando de Valdemar de Oliveira, falecido em 1977 e substituído na coordenação pelo filho, Reinaldo de Oliveira, o convite a grandes encenadores como Ziembinski, Adacto Filho, Zygmunt Turkow, Flaminio Bollini Cerri e Bibi Ferreira, entre outros que vieram contribuir com o aperfeiçoamento artístico dos pernambucanos, elogiados exatamente por transitarem em qualquer estilo de interpretação. Infelizmente, desde 2008 o grupo não volta à cena, mas mantém na ativa o Teatro Valdemar de Oliveira, construído em 1971 originalmente sob o título Nosso Teatro, em referência ao Grupo Gente Nossa; e pretende retornar em breve ainda para comemorar os seus 70 anos, completos em 2011, com a mesma peça que o consagrou no gosto popular, Um Sábado em 30, de Luiz Marinho, encenada em 1963 pelo próprio Valdemar de Oliveira e apresentada por 45 anos ininterruptamente. Curioso é observar que, a partir do surgimento do Teatro de Amadores de Pernambuco, diversos outros grupos foram pontuando a história do teatro pernambucano, quase sempre em ligação direta com o TAP, seja para confrontá-lo ou para referendar seu ideal de amadorismo. Nascendo nesta filosofia e atualmente sendo o segundo grupo de teatro mais antigo de Pernambuco ainda ativo, o Teatro Experimental de Arte (TEA), da cidade de Caruaru, desde 1962 mantém programação intensa, seja na

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montagem de espetáculos – seu repertório privilegiou a dramaturgia nordestina e fez lançar no mercado seu produtor e principal diretor, Argemiro Pascoal, com 17 peças escritas e quase todas já levadas à cena pelo próprio TEA; na produção de oficinas e cursos ou ainda na realização do Festival de Teatro do Agreste (Feteag), com foco no público estudantil e prestes a completar sua 30ª edição, mesmo que ainda sofra com a falta de recursos. Ou seja, com estes três exemplos iniciais, o Grupo Gente Nossa, o TAP e o TEA, Pernambuco deu a largada para uma profusão de outros grupos teatrais na capital ou no interior do estado, das mais diversas tendências estéticas, organizações coletivas de trabalho e períodos de permanência. Em memória, vale citar o Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP), Teatro Universitário de Pernambuco (TUP), Teatro dos Estudantes Israelitas de Pernambuco (TEIP), Teatro de Amadores de Caruaru (TAC), Teatro Adolescente do Recife, Teatro Popular do Nordeste (TPN), Teatro de Cultura Popular (TCP), Teatro de Amadores do Cabo (TAC), Teatro Novo, Grupo 88

de Teatro Vivencial, Teatro Hermilo Borba Filho (THBF), Teatro Experimental de Olinda (TEO), Teatro Ambiente do MAC, Teatro Piolim, Teatro da Criança do Recife, Grupo Ponta de Rua, Grupo Teimosinho, Teatro Popular dos Coelhos, Teatro Universitário Boca Aberta (Tuba) e Grupo de Teatro Panacéia, entre variados exemplos de conjunturas, que vão da arte engajada às experimentações cênicas, mas todos buscaram autogestão e liberdade no ato de criar. Destas experiências tão diversas, e reconhecendo Pernambuco como uma terra propícia às tentativas do teatro de grupo, é que vários ainda arvoram-se nesta possibilidade de manter em continuidade um núcleo de pessoas juntas para fomentar espetáculos e pensamento. Pelo menos é que vêm fazendo equipes tão distintas como os grupos Totem, Mamulengo Só-Riso, Grupo de Teatro Popular Vem Cá, Vem Vê, Grupo Feira de Teatro Popular, Grupo da Gente (Grudage), Teatro Popular de Arte (TPA) e Mão Molenga Teatro de Bonecos, para citar só alguns que, há décadas, tentam adaptar-se a uma atualidade cênica tão híbrida (até mesmo na conceituação


de um verdadeiro grupo de teatro). Assim é que Pernambuco pode orgulhar-se de possuir dezenas deles ainda atuantes. Afinal, grupo de teatro também pode ser sinônimo de uma necessária teimosia, por anos e anos...

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Arte-em-Cena Caruaru (PE) Entrevista realizada na residência de Severino Florêncio, integrante do grupo, Caruaru, em 16 de maio de 2009. 91

FERNANDO YAMAMOTO Severino, como foi o processo de criação do Arte-em-Cena? SEVERINO FLORÊNCIO Eu comecei a fazer teatro no TEA, em 1978, e passei dois anos lá. Em 1980, o SESC me convidou para desenvolver um trabalho com teatro, mas eu não tinha formação nenhuma. Aí veio o apoio do SESC nesse sentido. José Manoel, em Recife, era e ainda é o coordenador do setor de cultura, pegou o apoio do SESC regional e nacional e começou a investir nessa parte do aprendizado, da pesquisa, da capacitação. Durante quinze anos eu trabalhei com o pessoal do grupo do SESC, aqui em Caruaru, que foi um grupo que rodou metade do país, dentro das ou fora das unidades do SESC, em festivais, etc. Mas depois que acabou esse incentivo, porque teve uma intervenção do SESC, eu disse: “E agora? Eu não vou ficar assim não! Agora que eu estou tomando gosto pelo negócio!”, e ficou a agonia, né? Então eu chamei José Manoel, “no 0800”, pra fazer a direção de Quinze anos


depois, de Bráulio Tavares. Foi quando fundamos o Arte-em-Cena, em 1986. Depois veio Avatar, com a direção de José Manoel de novo, em seguida Dorotéia vai à guerra, de Carlos Alberto Ratton e direção de Gilberto Brito, e foi sucesso absoluto, várias temporadas grandes aqui em Caruaru. MARIA ALVES Dorotéia vai à guerra foi um marco no teatro pernambucano. O espetáculo participou de dez festivais nacionais, trouxe pra Pernambuco trinta e um prêmios, recebeu os prêmios em todas as categorias, desde sonoplastia, iluminação, direção, espetáculo, ator, atriz, em nove categorias o espetáculo foi premiado. SEVERINO Em seguida eu fui montar Diário de um louco, com Nildo Garbo, que é um artista plástico e diretor de teatro. Ele sai juntando todas as funções, incluindo os cenários, que são enormes, constrói, destrói e constrói de novo a cena todo dia, toda hora, num processo longo de montagem, mas que os resultados, no mínimo, são impactantes. E o trabalho que a gente está fazendo agora, Deus Danado, que está tendo um resultado até surpreendente, circulando muito, conseguimos aprovar no 92

Funcultura, no Myriam Muniz, fomos pro festival do Palco Giratório, pro Janeiro de Grandes Espetáculos, pra Mostra Paulista de Dramaturgia Nordestina, e agora pro Ribalta Pernambucana.

FERNANDO E aí como é que é o cotidiano do grupo hoje? Como é que é a formação do grupo, como é a dinâmica semanal de trabalho, como funciona o Arte-em-Cena hoje? SEVERINO Eu tenho um zelo muito grande pelas coisas todas em relação ao grupo, mas eu não tenho uma equipe para trabalhar essa parte de escritório, eu trabalho sozinho na produção. O que a gente tem é ator, atriz, diretor, que não é o mesmo diretor sempre, mas esse agora, Nildo, já está há três espetáculos, ele não quer me deixar mais não! (risos) A nossa prática hoje está sendo a seguinte: eu penso, reúno quantas vezes precisar a equipe, não só pra atualizar a desgraçada da ata, do estatuto (risos), mas também pra atualizar a conversa, a pesquisa, o papo, a ideia, a discussão sobre o processo de trabalho. Então eu reúno as pessoas, discuto que estou com uma


ideia e vou escutar a opinião deles. A minha equipe não é grande, hoje estou somente com sete pessoas.

FERNANDO Então as atividades do grupo hoje estão ligadas à montagem? SEVERINO Isso. Não só à montagem, simplesmente, mas à pesquisa, ao projeto de montagem. A gente se reúne sempre que necessário, não é uma vez por semana, nem duas, pode ser duas, dez, quantas vezes for necessário. Não tem sistematicamente um dia de reunião, mas eu sinto uma falta grande disso. Nesse espetáculo agora foram oito meses de ensaio, e teve uma coisa muito positiva, que foi que a gente conseguiu ensaiar todas as manhãs e, no auge do processo, oito horas de trabalho por dia.

FERNANDO Quais são as principais vias de financiamento? SEVERINO Com Dorotéia vai à guerra, por exemplo, que foi o nosso terceiro espetáculo, foi uma produção cooperativada, digamos. A gente dividia as dificuldades, arranjava um comerciante, alguém que dava um incentivo, seja qual fosse, corria atrás dos parceiros, né? No campo das políticas públicas estadual e federal, só apareceram os editais, que se tornou muito difícil, quase inacessível pra gente aqui. A partir do Diário de um louco eu comecei a ver os exemplos de outros grupos rodando pelo país, em festivais, no Palco Giratório, foi aí que veio uma preocupação na pesquisa, no estudo, no desenvolvimento de outro visual. Aprender a fazer os projetos, a formatação, as qualidades do projeto. Aí a gente começou a entrar mais nos festivais, a viajar mais, começou a melhorar tudo. E veio a melhorar muito mais no Diário de um louco, que foi o primeiro projeto do interior do estado que um grupo conseguiu aprovar no Funcultura, mas era para captação de recursos. Eu não captei uma prata de dez centavos, e voltei a fazer do jeito que eu podia, pedindo uma camiseta a um, um cartaz a outro, um programa a outro, um CD pra gravar, pedindo a um homem do estúdio pra fazer um preço mais barato. Era esse tipo de patrocínio que a gente tinha. Aí veio um Funcultura que não tem mais a captação de recursos, e com Deus Danado entrei novamente.

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FERNANDO Dessa vez já era com financiamento direto? SEVERINO Sim. Está começando agora a modificar a história do fazer teatral do interior do estado, através dos editais, de circulação, de manutenção, de temporada, de montagem, entende?

FERNANDO Existe algum mecanismo municipal? SEVERINO Faz muito tempo que a batalha é grande aqui, a classe artística já se reuniu, a lei foi aprovada, mas está engavetada pelo município. É uma vergonha uma cidade do porte de Caruaru ainda não ter um Teatro Municipal. O teatrinho que tem está sendo reformado, que estava caindo aos pedaços, administrado por uma associação artística que não tem um centavo pra nada e não tem experiência pra administrar também. Nós estamos à duras penas aprendendo a fazer alguma coisa, contando com as leis de incentivo, editais, etc. Mas quero ressaltar o seguinte: estou com trinta anos nessa luta, participando do processo educativo com o teatro, com debate, com seminário, e você sabe muito bem que editais, muitas vezes são temporários, porque são atrelados a gestões, políticas de governo. Então, os grupos e as pessoas não podem ficar esperando ser aprovado. Se você espera, talvez não faça nunca, ou faça uma vez ou outra.

FERNANDO Os processos criativos do grupo, em geral, eles partem de onde? Da escolha do texto? SEVERINO Eu não sei se é felizmente ou infelizmente, mas são os textos mesmo. Sempre foram as propostas de montagem de textos. Eu queria discutir a questão da loucura num trabalho solo, queria discutir o anonimato, as relações humanas, o desprezo das pessoas nas ruas, nas calçadas, nas sarjetas, nas estradas, e esse texto veio como uma luva, O Diário de um Louco. O processo sempre tem essa base o texto, a proposta do texto. Não é nem o texto, mas do que o texto trata.

FERNANDO E como é que é essa relação com a direção? É sempre com convidados externos?


SEVERINO Sempre. Isso é muito bom pra nós. O teatro em Caruaru só montava regional, comédia de costumes, teatro-escola. Vital Santos tinha feito alguns espetáculos, mas já não estava mais aqui, tinha ido pra Recife. MARIA Quando o Arte-em-Cena foi fundado, Vital não estava mais, o grupo tinha parado, Caruaru estava um marasmo em termos de teatro, não tinha nada. O Arteem-Cena deu uma retomada no movimento com uma nova cara, que foi com o Zé Manoel, que veio com uma nova linguagem. Além disso, ele é um grande estudioso de teatro, então ele instigou muito o estudo dos teóricos de teatro até então um pouco adormecido pra gente aqui. SEVERINO Zé Manoel veio e fez essa revolução, inclusive na cabeça da gente, a revolução na maneira de ver, de pesquisar, de estudar, de discutir, de conversar, de ampliar o horizonte do conhecimento na equipe. Depois Dorotéia do mesmo jeito, com Gilberto Brito, já outra proposta. Foi um trabalho de investigação total sobre o trabalho do ator e sobre as condições físicas do ator, então foi outro aprofundamento, deu outra visão. E aí veio Nildo Garbo, que a gente já conhecia de trabalhos escolares, ele já tinha trabalhado com Vital Santos, já tinha viajado muito. Ele é um construtor de cena. Havia quem dissesse que ele era o “cinema ao vivo”.

FERNANDO Vocês têm como premissa o espetáculo ter vida longa, certo? Como é que é essa relação com o repertório? SEVERINO Não concebo os grupos montarem um espetáculo pra acabar logo. É uma trabalheira danada, muita coisa pra fazer! Teatro é uma coisa que o povo não vê muito, é um público ainda limitado, daqui que você chegue a mostrar seu espetáculo a um número bom de gente, demora!

FERNANDO Como é que é a realidade aqui em Caruaru? Dá pra fazer uma temporada, existe a possibilidade? SEVERINO Tudo aqui é relativo, feito a Feira da Sulanca. Você pode fazer uma temporada de um mês, de quarenta dias, pode fazer de dez, pode fazer só um final de


semana. Não tem público feito, esse negócio de formação de plateia, que se fala há duzentos anos, não existe. Mas se você tem um trabalho vinculado à escola, com uma equipe de professores, diretores que dão apoio, que vão discutir a questão, passando atividades para os alunos, aí você consegue unir as coisas e dá certo uma temporada, longa até. Não é o paraíso, mas dá pra fazer.

FERNANDO Em relação a espaço cênico, vocês tem uma preferência? Em geral, trabalham com italiano, relação frontal? SEVERINO O Diário de Um Louco eu fiz num presídio, numa calçada de igreja, calçada de estação ferroviária, bar, restaurante, em todo canto. Ele é concebido pra ser feito num palco italiano, mas eu tenho uma vontade muito grande de trabalhar na rua. MARIA Claro que os nossos espetáculos são feitos para um teatro bem equipado, uma boa iluminação, uma boa estrutura, mas a gente não pode pensar só nisso. A gente pensa também em adaptá-los a vários locais, porque é uma realidade da nossa região, não tem teatro, a não ser nas capitais, então você tem que chegar num lugar e improvisar, às vezes à duras penas, porque é difícil. Perde na qualidade técnica, mas é impressionante quando o ator entra e começa, o espetáculo se impõe, a plateia silencia e no final aplaude.

FERNANDO O grupo tem prática de ministrar oficinas? SEVERINO A minha vida toda foi aprendendo e ensinando, ou seja, aprendendo e tentando repassar. Essa prática veio pelo SESC e continua. Só que hoje, meu amigo, eu não tenho quase tempo de fazer isso. MARIA O grupo não tem realizado oficinas, mas quando circula, nesses projetos, a gente faz um intercâmbio com quem está recebendo a gente, com os grupos locais, através de oficinas ou de palestras.


FERNANDO Como o Arte-em-Cena vê a questão da memória, do registro? Eu vejo aqui no seu escritório que existe muito material catalogado do grupo, e tudo extremamente bem organizado! SEVERINO Temos registro em vídeo e temos registro em fotografia, só, por enquanto. Eu tenho um material que, se alguém pegasse, transformava em livro, em documentário. Pra cada espetáculo eu tenho uma pasta. Tudo que saiu de jornalismo tem aqui, desde a estreia. Eu precisava ter uma pessoa ou duas trabalhando permanentemente aqui, digitalizando. O que eu faço é guardar.

FERNANDO Deixa eu te fazer a última pergunta. Como é que é a relação do Arte-em-Cena com os outros grupos? Vocês têm algum tipo de troca? MARIA O Arte-em-Cena consegue dialogar com todo mundo numa boa. Por exemplo, qualquer produção que há, ou evento cultural na área de teatro, o Arte-em-Cena é sempre convidado pra participar. E a gente sempre contribuiu de alguma maneira, nós estivemos sempre abertos pra isso, pra participar e fazer esse intercâmbio com os grupos locais. Agora, às vezes, é isso também, alguns grupos locais se distanciam, achando que estão em outro patamar. Aí eles até nos chamam de os monstros, os dinossauros, mas a gente odeia esse termo. Mas a gente sempre está a disposição, existe uma coisa boa na cidade em relação aos outros grupos, ao movimento local, que é que o Grupo Arte-em-Cena tem crédito e respeito. Existe um respeito muito grande.



Coletivo Angu Recife (PE) Entrevista realizada no Teatro Santa Isabel, Recife, em 21 de maio de 2009. 99

FERNANDO YAMAMOTO Me falem sobre como surgiu o Angu. ANDRÉ BRASILEIRO Eu tinha saído do curso da Fundação Joaquim Nabuco, e tinha interesse de convidar Marcondes pra dirigir um trabalho, juntamente com João Lima, que estudou comigo. A gente não sabia que seria Angu de Sangue, só sabia que queria fazer um trabalho juntos. Quando a gente começou a trabalhar, Marcondes disse que queria que Fábio viesse fazer esse trabalho com a gente. Ele gostou do livro e veio, e a gente fez esse processo inicial em 2001. MARCONDES LIMA Nesse período eu fui fazer mestrado, e em 2003 eu fiquei livre. ANDRÉ Aí veio Geusa, que já tinha feito outros espetáculos comigo, Hermila, que já trabalhou comigo na Paixão de Cristo, João foi morar em Lisboa, e Ivo chegou pra esse processo de Angu. Inicialmente era uma montagem do espetáculo. Pessoas que queriam montar aquela estória.


FERNANDO Então você que foi o eixo dessa história, o elemento aglutinador. ANDRÉ Eu estava nessa produção, porque eu queria fazer e eram pessoas amigas que tinham afinidades. MARCONDES É nesse momento que André e Geusa tomaram pé da produção, e Tadeu fez uma assistência. ANDRÉ Um tempo depois que Angu estreou, a gente já tinha conversado que queria partir para um segundo trabalho, com aquelas mesmas pessoas juntas.

FERNANDO Ainda com a ideia de se fazer uma segunda produção juntos, ou já havia o desejo de formar um grupo? ANDRÉ Já havia o desejo de formar um grupo. Em 2004, pegamos o Caravana Funarte, fomos pra Natal e Guaramiranga, e já tínhamos na cabeça que queríamos continuar a pesquisa desenvolvida no Angu, continuar com a mesma linha de trabalho. 100

IVO BARRETO A harmonia que nós conseguimos durante a temporada, e que temos até hoje, foi um dos fatores que nos levou a começar a tentar continuar. ANDRÉ A gente inclusive ia continuar com o mesmo autor, Marcelino Freire. A gente ia montar Contos Negreiros, que tem o conto Negro de Estimação e outras coisas, mas a gente também estava com um material de Newton Moreno, e a gente optou por montar Ópera. MARCONDES Foi uma coisa decidida pelo coletivo de se trabalhar com textos não escritos pra teatro e de autores pernambucanos, então se desenhou o que seria a filosofia que nortearia o trabalho da gente até agora. Isso foi clareando uma série de procedimentos internos do grupo, como sistemática de criação. Certas coisas que nós experimentamos, mesmo antes do grupo, já eram um ensaio de criação no coletivo, onde o ator era autor, compunha com o diretor. Pra cada texto, cada livro, cada coisa que a gente escolheu, a gente foi experimentando faces diferentes dessa forma de trabalhar. Em Angu de Sangue a gente começou a experimentar uma roda-


da de improvisos para criar um desenho da cena, pra chegar ao personagem. Essa rodada fazia com que cada ator passasse por todos os personagens. Mas tinha uma coisa muito clara que era: o ator narrador, essa busca pela valorização do texto, da oralidade. Já em Ópera, pela natureza da construção do próprio texto, a gente teve que ir pra outro terreno, o da adaptação. No entanto, a gente partilhou do mesmo modo a sistemática anterior: passou um tempo enorme de trabalho de mesa, dividindo as unidades do texto, até chegar a improvisar, gravar, transcrever, trazer de volta, fazer a leitura dessa construção, ver o que funciona e o que não funciona, retrabalhar aquilo, gravar novamente, passar pro autor, pro autor dar o seu crivo. Um processo que não era uni cerebral. ANDRÉ Esse processo também se deu na parte de figurino, da cenografia, de música, de ideias, de climas, de perguntar, de trocar. MARCONDES Sempre eu chegava com uma ideia de cenário, com uma ideia prévia de figurino, todo mundo já sabia que iria mudar, ser desconstruída com o processo, como a cena de Muribeca, que no início era um cenário como um céu de lixo pairando e descia em cima dele e o ator subia, ia crescendo ao longo da cena. Depois virou só uma geladeira! Que ainda é, em alguns casos, um volume muito grande!

FERNANDO Como é que é a rotina do grupo hoje? Como o Angu tem funcionado? ANDRÉ O grupo precisa de uma casa. A gente está nessa função, à procura de um espaço. IVO A angústia do grupo hoje é encontrar um espaço que a gente possa ter disponível, realizar as coisas que a gente quer realizar, sem depender de tantas coisas burocráticas. Talvez a gente não tenha hoje definida uma rotina de trabalho em função disso. TADEU GONDIM Parece-me que isso é um problema da cidade, de outros coletivos. Por várias vezes nós fizemos reuniões administrativas na praça de alimentação do Shopping Paço Alfândega, partilhando o espaço com outros grupos.

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IVO Na última reunião que fizemos lá tinha o Coletivo Angu, o Fiandeiros, o Magiluth e o Engenho de Teatro! O Totem também usa. ANDRÉ Um shopping de grupos! (risos)

FERNANDO Parece-me que vocês todos têm outras atividades, certo? Como é que o grupo lida com isso? Existe uma perspectiva do Angu ser a principal fonte de sustento? ANDRÉ Por enquanto o grupo ainda não está dando nem pra sustentar o grupo.

FERNANDO Mas existe perspectiva? ANDRÉ Existe. Mas pra ter uma perspectiva de auto sustentabilidade, você tem que ter espaço, atividade de aula, tem que ter projeto. Hoje em dia tem o projeto social, que está na moda. O negócio agora é ter responsabilidade social. Você tem que estar, no mínimo, com um projeto social atrelado ao projeto de pesquisa. Fora isso, cursos, atividades, workshops, festivais, etc. 102

TADEU Nesse sentido, a administração da ocupação das pessoas fora do grupo tem sido uma equação bem complexa, é quase impossível administrar o tempo, as agendas, as coisas pra que o trabalho aqui aconteça.

FERNANDO E como é que o grupo se divide em relação às funções artísticas e administrativas? FÁBIO Coletivamente. ANDRÉ Médio!!!! (risos) VAVÁ Por exemplo, Tadeu é o produtor da gente, mas quando percebo que tem algumas coisas da área de produção e eu estou com tempo livre, eu já vou e faço. Fabinho a mesma coisa. Eu cuido da parte da preparação física, mas numa necessidade de ausência Ivo, que já tem uma experiência anterior, desenrola. Então a gente termina funcionando assim, todo mundo vai se ajudando.


ANDRÉ Ivo faz a coordenação técnica. Sávio cuida da parte da iluminação, mas Ivo e Fernando dão toda assistência, os três se ajudam em todos os setores.

FERNANDO Isso é uma espécie de acordo invisível que foi se moldando, ou em algum momento vocês pararam pra organizar? ANDRÉ É meio que um acordo invisível. MARCONDES Mas agora, com o Palco Giratório, foi preciso sentar e sistematizar pra otimizar o tempo, pra que haja de fato uma divisão de responsabilidade e não haver uma sobrecarga.

FERNANDO Pra o grupo em geral ou pra esse projeto em si? VAVÁ Foi para as viagens do Palco Giratório, mas eu acredito que vai terminar virando pra o grupo em geral. MARCONDES É um exercício que, com a constância, se instaura. Quando nós fizemos o repertório de quinta a domingo, já fizemos meio que um ensaio da correria que seria no Palco. Então a gente já incorporou algumas coisas, e eu creio que vai continuar. ANDRÉ Na parte artística, Marcondes dirigiu Angu e Ópera, e está no palco em Rasif. E talvez agora ele não dirija o quarto, aí vai atuar. IVO A gente está tentando abrir o leque, e esse Palco Giratório que vai servir como um exercício.

FERNANDO Quais são hoje as principais fontes de financiamento do grupo? IVO Bolso de calça jeans! (risos) ANDRÉ Não, vou dizer assim: nós montamos Angu com uma parte de sistema de incentivo e outra parte, depois, já foi a Caravana Funarte. Ópera nós montamos, inicialmente com Myriam Muniz, e uma parte do Funcultura. Rasif, só Myriam Muniz.

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TADEU E calça jeans.

FERNANDO Em relação aos processos de criação, de onde surge a primeira faísca, a primeira ideia, nesses três processos? VAVÁ Essa coisa da ideia, tanto de montar Angu, quanto de Rasif, é André fuçando. ANDRÉ Sim, mas aí acho que vai mais além da coisa de eu fuçar, acho que é do processo criativo. Acho que Marcondes traz as centelhas e a gente vai botando elas no lugar certinho. MARCONDES Acontece assim: André me traz o livro Angu, eu leio. Num primeiro momento, eu escolhi os contos, não discuti com ninguém. Eu escolhi a ordem, dentro desse primeiro momento. Já Ópera foi: “vamos trabalhar com Newton Moreno?”. André traz o livro, e nós continuamos a fazer como em Angu: eu vi os textos, pensei, imaginei, escolhi, e por aí vai. No Rasif já foi diferente. O Marcelino disse: “estou fazendo um livro”, e já houve um interesse de mais gente. Houve um movimento 104

do coletivo dizer: “agora a gente vai escolher também o que é, que contos”. Deu um trabalho enorme, um tempo enorme de discussão para, escolhermos os contos.

FERNANDO Como é que foi o tempo desses processos? Quanto tempo vocês levaram para montar os espetáculos? ANDRÉ Todos são longos. Em Angu, fizemos nossa primeira reunião em setembro de 2003 e estreamos em abril de 2004. Ópera, nós começamos no primeiro semestre de 2006, em abril, e estreamos em janeiro de 2007. MARCONDES Em Rasif o tempo de discussão sobre o texto levou uns cinco meses, onde a gente se encontrava duas vezes por semana. ANDRÉ Mas o processo mais contínuo foi a partir de outubro. De outubro à agosto.

FERNANDO Vocês conseguiram fazer temporadas em Recife de quanto tempo? ANDRÉ Um mês. A gente fez de quinta a domingo.


MARCONDES As temporadas todas foram quase todas de um mês! ANDRÉ A primeira temporada de Angu no Recife, foi de abril ao final de junho, foi a mais longa. Ópera a gente conseguiu fazer quase dois meses. A gente consegue geralmente fazer temporada de um mês ou um mês e meio. E não é por falta de público não, é realmente por falta de espaço. A gente tem mantido os três espetáculos vivos.

FERNANDO E a perspectiva de vocês é manter os três em repertório por muito tempo? ANDRÉ Angu a gente gosta muito de fazer. Vamos ficar bem velhinhos fazendo Angu. IVO A gente achava que muita gente já tinha visto Angu. Várias vezes a gente voltou em cartaz aqui achando que Angu não ia ter um público tão bom quanto Rasif e Ópera, mas acabou que nos surpreendeu. TADEU O bom de ter um repertório, esse trabalho de continuidade, é que algumas pessoas que viram o último querem ver o primeiro.

FERNANDO E como vocês encaram a questão do espaço cênico? Vocês têm como preferência algum tipo de espaço a priori ou não? Vocês têm dois espetáculos com uma relação mais frontal, e no Rasif vocês já quebram com isso, né? Como foi esse processo? ANDRÉ O Angu estreou no Teatro Hermilo Borba Filho, mas numa relação frontal. MARCONDES Não foi uma coisa pré-determinada. Em Rasif veio a vontade de brincar com uma relação público/representação diferente. IVO Acho que não existe essa vontade do grupo de estabelecer só um tipo de espaço definido.

FERNANDO Fazendo um apanhado do que vocês relataram até agora em relação à dramaturgia, é óbvio que trata-se de um elemento muito

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importante na construção cênica do Angu. No Angu de Sangue vocês utilizaram o texto em prosa do Marcelino sem mexer nenhuma palavra, já no Ópera o Marcondes fala que vocês já trabalharam outra abordagem, adaptando. Como é que é a relação da pesquisa de vocês em relação à dramaturgia? ANDRÉ Eu acho que em Angu não existiu a necessidade de trabalhar uma adaptação, e sim trabalhar a palavra. A proposta era essa: não mexer no texto. Com o Newton, apesar de ser dramaturgo, a gente optou por trabalhar contos inéditos dele. Alguns contos a gente precisou improvisar, outros o conto está inteiro, e outros ainda a gente precisou retrabalhar. Isso não quer dizer que, no futuro, a gente não vá fazer a própria dramaturgia, ou trazer uma pessoa pra fazer esse trabalho com a gente, pode ser uma experiência também.

FERNANDO O tratamento final do Ópera foi feito por alguma pessoa, ou foi tudo feito coletivamente? 106

ANDRÉ Funcionava assim: Vavá, Arilson, Ivo faziam as transcrições, mandávamos pra Newton, pra que ele complementasse. MARCONDES E eu fazia uma limpeza, um tratamento final.

FERNANDO O grupo tem o costume de ministrar oficina? ANDRÉ Não. Fizemos algumas, em Guaramiranga, Florianópolis, vamos fazer agora no Palco Giratório, mas não é um costume. IVO Eu considero ainda um embrião do que possa vir a ser, uma coisa mais sistematizada.

FERNANDO Mas existe essa busca de sistematizar? VAVÁ Existe. Eu acredito muito que, independente das questões estéticas e/ou ideológicas, todo e qualquer teatro é pedagógico, não tem como se desvencilhar disso. Ele também é engajado. Não dá pra pensar o fazer sem se preocupar com as questões basilares da história e do processo de formação e aprendizagem.


MARCONDES Mas também não está na pauta do grupo a preocupação do grupo em desenvolver um método, um sistema que a gente tenha necessidade de repassar, ainda não estamos nesse ponto. A gente tem experimentado, partilhado com algumas pessoas, mas não tem o espírito de: “vamos trabalhar com esse sistema, torna-lo método do grupo”.

FERNANDO O grupo tem uma preocupação com registro, seja escrito, fotográfico ou videográfico, dos processos de vocês? ANDRÉ Fotográfico sim, Tadeu tem essa preocupação. Escrito, Marcondes cobra isso todo dia, cada processo que inicia ele dá uma cadernetinha à gente. A gente tenta, mas é difícil, né? IVO Cada membro do grupo tem que fazer seu próprio registro, mas ainda não há uma característica de se fazer um registro do coletivo. ANDRÉ A gente tem que ter a consciência disso. Eu cuido um pouco da memória em matéria, em jornal, de registro em festival, de participação, isso eu cuido bem.

FERNANDO Como é a relação com os outros grupos, seja daqui, ou de outros estados? Vocês costumam fomentar espaços de troca, de encontros, de articulação política? ANDRÉ O Magiluth é o grupo que a gente tem mais afinidade e proximidade. Eu acho importante que os grupos procurem uma articulação política, mas o meu medo sempre é que as coisas se personifiquem, não se busque uma articulação pelo grupo, mas para si. Tem um movimento que a gente procura participar, que é o GRITE, com a Fiandeiros, o Magiluth. MARCONDES Mas que a gente sente também que é algo que a gente precisa se engajar.

FERNANDO Qual é a bola da vez pro Angu hoje? Qual é a grande urgência, o que está no topo da pauta do grupo?

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IVO A sede! Sem sombra de dúvida, a sede. MARCONDES Como fazer pra que sejamos bem pagos. Não é regiamente pagos, mas tentarmos! IVO Pra que a gente possa trazer os membros que hoje necessitam da sobrevivência cotidiana para o grupo. Sobreviver sim, mas como grupo. Essa talvez seja a nossa maior prioridade.

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Companhia Fiandeiros Recife (PE) Entrevista realizada na sede do grupo, Recife, em 20 de maio de 2009. 111

FERNANDO YAMAMOTO Contem-me como se deu o processo de surgimento do grupo. ANDRÉ FILHO Eu, Manuel Carlos e Daniela já tínhamos um processo anterior de trabalho de grupo. Nós trabalhamos por 12 anos com a Cia. Serafim, e Daniela, quatro. Quando saímos da Serafim, resolvemos seguir um caminho próprio de pesquisa, de estudo e resolvemos montar, em 2004, o que seria o nosso grupo próprio, a nossa identidade. O grupo começou com vinte e duas pessoas! DANIELA TRAVASSOS A gente tinha feito uma leitura dramatizada num projeto do SESC que André foi convidado para dirigir, e desse grupão ele pegou as pessoas. ANDRÉ O pessoal se gostou muito durante processo de leitura, e decidimos continuar essa história. Não tinha a ideia de formar um grupo ainda, a gente começou a pesquisa sobre teatro para a infância e a juventude, e aí desse processo eu escrevi


Outra Vez Era Uma Vez pra ser a nossa primeira montagem. Não conseguimos montar porque faltou grana, aí resolvemos montar um espetáculo de poesias, pra ganhar dinheiro, e poder montar o Outra Vez. DANIELA A gente achava que ia ganhar dinheiro. (risos) MANOEL CARLOS A proposta não era fazer esse espetáculo que se tornou, era uma coisa passageira, pra uma escola, pra um evento, pra ver se entrava alguma grana pra a gente montar o espetáculo que a gente queria. ANDRÉ A gente começou a estudar sobre a cidade do Recife sob a ótica de cinco poetas, o Ascenso Ferreira, Joaquim Cardozo, Manuel Bandeira, Carlos Pena Filho e João Cabral de Melo Neto. Durante esse processo a gente foi puxando um fio de muita coisa bacana sobre a cidade, de como esses caras viram a transformação do Recife, não só física, mas humana. E isso foi se desencadeando um processo mais aprofundado, até que esse processo desaguou num espetáculo, que é o Vozes do Recife, 112

que até hoje faz parte do nosso repertório. Então o Vozes não conseguiu a grana pra montar o Outra Vez, mas ele conseguiu trilhar uma carreira própria. Mesmo sendo um espetáculo com essa temática do Recife, é um espetáculo que fala muito sobre a solidão do homem em Recife, como essa solidão conseguiu transpassar ao longo do tempo. DANIELA O Manuel foi criando umas máscaras. MANOEL Por ser um espetáculo simples, como se pensava de início, então não se pensou em cenário, mas aí pensamos nessas máscaras que iriam pontuar o espetáculo, exatamente com essa expressão cultural do Mateus, dessas figuras do Nordeste. Aas máscaras preenchiam, substituíam o cenário, que não havíamos pensando, não era a nossa intenção em criar. Não tínhamos grana. ANDRÉ O Vozes a gente montou, ainda lembro disso, com R$ 890,00 o espetáculo todo foi montado, cada um botou do seu bolso.


ANDRÉ Dessa forma a Fiandeiros surgiu. Na primeira pesquisa sobre o teatro para a infância e a juventude, começou a haver uma seleção natural, e esse grupo que era, inicialmente, de vinte e tantas pessoas, começou a ser reduzido, e ficamos com um núcleo de cinco, que é praticamente o que está até hoje. Vozes do Recife, pra nossa surpresa, foi muito bem aceito pela opinião pública. A gente conseguiu ser o espetáculo que mais público colocou na história Teatro Joaquim Cardozo, nos vinte e cinco anos de existência. DANIELA A gente botava vinte, trinta cadeiras extras e fazia duas sessões por dia. Quinze dias antes o povo já estava ligando pra comprar ingresso. ANDRÉ Isso foi nos alimentando cada vez mais, mas nunca esquecemos do Outra Vez, era um espetáculo que a gente tinha sempre guardado. Nesse meio tempo eu botei o texto no Prêmio Funarte de Dramaturgia, o texto foi premiado em segundo lugar, a gente foi premiado também pelo prêmio de fomento da prefeitura, e foi quando a gente conseguiu montar o Outra Vez. Mas antes, o segundo trabalho nosso foi O Capataz de Salema. Durante essa estada no Joaquim Cardozo, eu fui convidado pela universidade pra fazer a criação de uma leitura dramatizada pra homenagear os 25 anos do espaço, e eu associei a Cia. Fiandeiros no processo. MANOEL Ou seja, o que devia ser o primeiro espetáculo da companhia, veio a ser o terceiro. E nós estamos falando do texto que foi premiado. Se fez um pra ter a subvenção pra montar, depois veio o Capataz e, na terceira tentativa, realmente nasceu o Outra Coisa. ANDRÉ Já era momento em que a gente estava pensando na nossa segunda pesquisa, procurar o que fazer, e no processo de leitura dramática do Capataz de Salema, a gente mergulhou de cabeça no texto, que caiu como uma luva, porque a temática também é solidão. O resultado foi tão bacana na leitura que continuamos estudando, aprofundando por mais dez meses, já que era uma continuação do fio que nos começamos a tecer no Vozes do Recife e, de certa forma, também uma referencia ao Outra Vez.

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MANOEL A leitura já tinha um perfil bem próximo de uma montagem. Nós tínhamos iluminação, cenografia, figurino, a única coisa que não ficou na montagem foi o texto na mão do ator. ANDRÉ Em 2006, a gente viajou com a Caravana FUNARTE. Temos um traço bem característico que é a preocupação com a formação de público, então nos três espetáculos temos sempre procurado atingir essa categoria de público, de adolescentes e pré-adolescentes. DANIELA Como resultado, a gente acabou traçando um perfil semelhante nos três espetáculos: autores pernambucanos, temática da solidão, e o trabalho musical. ANDRÉ Em todas as apresentações que a gente fez do Capataz, viajando pelo Brasil, sempre havia debates. É uma característica também nossa, não estamos preocupados em estrear e o espetáculo morrer porque não está bacana. Se você ver o espetáculo hoje, vai ver um outro espetáculo, porque é um processo contínuo de aprendizado, 114

de aprimoramento, a pesquisa do espetáculo é constante. DANIELA Foi bom porque muita gente não conhece Joaquim Cardozo, e a gente viajou muito, foi o espetáculo que a gente mais viajou. ANDRÉ No meio do processo tivemos uma surpresa. Estávamos no espaço Joaquim Cardozo e ficamos sabendo que ele ia ser tema do vestibular, então muitos adolescentes foram ver o espetáculo, porque os professores indicavam.

FERNANDO Como é que é a rotina de grupo hoje, como é que vocês se dividem, funções artísticas, administrativas, ainda mais agora, que vocês acabaram de entrar nesse novo espaço, de ter uma sede? ANDRÉ A gente tá passando por um momento de transição. Essa sede, eu acho que ela tá exigindo algumas modificações na postura de grupo. A minha casa funciona como escritório, a parte administrativa, o computador, onde os projetos são gerados. Mas a gente tem uma nova perspectiva maior apontando. Esse espaço vai exigir da gente mais compromisso.


DANIELA Manoel Carlos é da parte de cenografia, figurino, material de cena, maquiagem, direção de arte. André é o encenador, diretor, também é o produtor junto comigo, elaboramos os projetos, enfim, fazermos toda a produção da Companhia, e Marinho auxilia a gente também na execução dessa produção. Jeferson fica mais concentrado no trabalho corporal, e é ator também.

FERNANDO Todos atuam? ANDRÉ Todos são atores, mas eu não atuei ainda. Desde que a gente fundou a Companhia eu sou louco pra atuar, mas não consigo. DANIELA Charles, que tá desde a fundação também, entrou como músico, mas aí começou a também confeccionar instrumentos, e passou a ser ator. ANDRÉ E tem outras pessoas também, porque a gente gosta de trabalhar com atores convidados, sempre tá chamando alguém, mas o núcleo de trabalho somos nós.

FERNANDO E o grupo, é a principal fonte de renda de alguns integrantes? MANOEL Quem dera que “sêsse”. (risos)

FERNANDO Existe essa perspectiva? ANDRÉ Existe essa vontade. Eu, por exemplo, sou funcionário público, e ganho relativamente bem no meu trabalho. Mas eu daria tudo pra ganhar a metade pra estar trabalhando só no grupo, na sede, viajando, mas é uma dificuldade, a gente sabe como são as coisas. Já foi mais difícil, eu acho que há três, quatro anos o grupo passou por momentos bem difíceis, de pessoas não terem como vir ensaiar e a gente dar um jeito, tirar do bolso. Nos últimos anos, que a gente deu uma crescida bastante nessa parte orçamentária. DANIELA A gente se transformou num associação sem fins lucrativos, já é constituído juridicamente, e temos uma conta bancária.

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ANDRÉ Essa sede vai proporcionar que possamos dar oficinas, tentão, já é uma forma de caminhar.

FERNANDO E quais são hoje as principais fontes de financiamento do grupo? ANDRÉ Projetos. DANIELA O Outra Vez foi o único espetáculo subsidiado por alguma lei, e ainda sim foi muito pouquinho. Foram 20 mil que, sem os impostos, ficam 15. O Capataz ganhou prêmio na Caravana Funarte, o Vozes ganhou prêmio no Funcultura pra circular pelo interior, e agora a gente ganhou o Myriam Muniz, que é o Fiandeiros Repertório, que vai possibilitar o grupo ter oficinas e uma temporada pequena, mas com os três espetáculos de repertório, vai refazer alguns elementos de cena, etc. ANDRÉ O que não dá, a gente coloca do bolso mesmo. Nós gastamos – essa contabilidade tá toda anotada – R$ 17.800,00 reais pra fazer o Outra Vez. A gente teve 116

que investir quase R$ 3.000,00. DANIELA A gente poderia estar participando de mais festivais, mas a gente esbarra na questão dos empregos da galera, então a gente tá sempre freando, mas era uma coisa que podia dar um pouco de renda pra gente também. E é isso que a gente acha que um dia vai ter que optar, pra ir pra frente. A gente vai precisar ir pra festivais, porque é uma coisa importante pra Companhia, ter intercâmbios com os grupos de outras cidades, e eu acho que isso a gente ainda está andando um pouco devagar em festivais por conta disso.

FERNANDO Em relação à remuneração de vocês, quando existe essa possibilidade, vocês trabalham de uma forma igualitária ou vocês trabalham por funções? ANDRÉ Igual. DANIELA O cachê do Festival do Teatro Brasileiro, que acabamos de participar, foi o primeiro desse que André ganhou um percentual de 10%, porque ele é diretor,


diretor musical e compositor das músicas, o que é irrisório para as milhões de funções dele. Mas esse foi o único que ele ganhou percentual, o resto ele e todo mundo ganha igual. ANDRÉ Durante as temporadas, o sistema de trabalho da gente é: o que dá na bilheteria a gente tira as despesas, metade fica pra o caixa da Companhia, pra manter o espetáculo, comprar o material de cena, e a outra metade a gente divide igualitariamente por todo mundo, e eu também entro no bolo, não temos privilégios.

FERNANDO Falando um pouco mais sobre os processos criativos, como é que se dá o ponto de partida assim, o ponto zero, a primeira ideia para uma montagem? ANDRÉ São só três processos que a gente tem, acho pouco tempo ainda pra identificar uma característica. O primeiro, Outra Vez, surgiu de uma necessidade de falar para a infância e para a juventude, era uma necessidade de quase todos nós. DANIELA Esse talvez tenha sido a faísca, a única. Porque a gente diz que o Capataz que escolheu a gente, e o Vozes foi acontecendo. Quando se juntou, a gente viu que a produção de teatro pra infância e juventude na época era precária aqui em Recife, ninguém estudava, era totalmente comercial, sabe? Não tinha um aprofundamento, estudo, pesquisa, e a gente queria preencher essa lacuna. ANDRÉ Era aquele merchandising, aquelas coisas A Pequena Sereia, né? Mas em cima disso que Daniela falou, ainda teve outra faísca no processo de Outra Vez. A gente começou a ler vários textos, só que eu não gostava de nenhum, mas não era o que eu queria fazer, mas eu nunca disse isso pra o grupo. Um dia eu sentei no computador e comecei a imaginar a gente nesse processo de busca. Comecei a escrever um texto de um escritor que não sabia escrever o final da história. Que era, de certa forma, um pouco do reflexo da gente. E aí eu comecei a escrever e, a cada dia que chegava no ensaio, eu ficava observando cada um. Foi um processo muito solitário, eles não sabiam que estavam sendo observados, né?

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FERNANDO E você nem contou, nem ia trazendo esse material? Só trouxe quando finalizou? ANDRÉ Nem quando eu finalizei! Fizemos uma reunião lá em casa, e eu disse: “gente, eu queria mostrar esse texto pra vocês”, mas não disse que tinha escrito. Lemos e todo mundo ficou impressionado. Pegaram o texto e foram lendo, e foi uma comoção, porque a gente foi se envolvendo emocionalmente, porque aquilo tinha, de certa forma, um pouco de cada um. No final todo mundo se olhou e disse: “É isso, o texto é esse!”. Foi quando eu disse que tinha escrito a partir das observações que fiz deles. DANIELA Ele também não disse que colocou no Prêmio Dramaturgia, a gente só soube quando ganhou.

FERNANDO Quanto tempo em média duraram essas três montagens? MANOEL O Capataz foram uns dez meses. O Vozes foi mais rápido, porque era 118

uma situação emergencial, era pra resolver o Outra Vez. DANIELA O Vozes acho que foram oito meses.

FERNANDO Com relação à questão dramatúrgica, vocês tem no primeiro processo, do Vozes, que ele é uma costura. Ele foi executado coletivamente ou não? ANDRÉ Sim, foi eu, Carlos Mendes, mas de certa forma teve uma colaboração de todos. DANIELA Pra costurar entre um poeta e outro o André criou poemas. ANDRÉ São cinco blocos, e entre cada bloco eu criei poemas que apresentavam os poetas que iam ser trabalhados.

FERNANDO Vocês falaram que conseguiram fazer uma temporada legal no Joaquim Cardozo. Como é que é o histórico de apresentação de vocês? Vocês conseguem fazer temporadas de quanto tempo?


DANIELA A gente fez três temporadas, uma no Capiba e duas no Joaquim Cardozo. No Joaquim Cardozo foi excelente. O Capataz fez duas curtas temporadas, que foram legais, também.

FERNANDO Essas temporadas do Vozes foram de quanto tempo? DANIELA Dois meses a primeira, e acho que três a segunda, dois dias na semana. O Capataz foi mais curta, de seis semanas. ANDRÉ Tem uma dificuldade muito grande em Recife, que é a questão do espaço pra se apresentar. O Santa Isabel não abre pra espetáculo infantil, e nem pra produção adulta da terra a gente consegue pauta. O Apolo-Hermilo é um espaço fechado, que se propõe a pesquisas de teatro mas não abre, e não produz também, quer dizer, produz muito pouco. Recentemente foi reinaugurado o Barreto Junior e o Apolo, que a gente tem que dividir a pauta com o cinema. Então, é uma loucura. Se você considerar o grande Recife, são quase vinte teatros, mas em condições de abrigar uma produção, acho que não chega a seis. DANIELA E a gente ainda disputa com festivais da cidade, que tomam as pautas de todos os teatros. ANDRÉ O planejamento na sede é, futuramente, fazer nossas apresentações aqui no espaço.

FERNANDO Em relação aos espaços cênicos, vocês buscam a priori algum tipo de configuração espacial para os espetáculos? ANDRÉ Não, não tem essa preocupação. São pensados na relação de palco italiano. Mas, por exemplo, o Outra Vez foi pensado nessa perspectiva, mas é um espetáculo que cabe perfeitamente numa semi-arena, o Vozes do Recife também.

FERNANDO Em que grau a preocupação com o público interfere nos processos de criação de vocês? Isso é uma questão que é discutida durante os processos ou a formação do público tá ligada simplesmente às ações que são feitas?

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ANDRÉ Ela não é discutida, assim, como ponto primordial, mas participa do processo de discussão. MANOEL Não há essa preocupação de fazer isso porque o público gosta. Nós temos um público que se identifica com os trabalhos, talvez seja mais isso. DANIELA A gente nunca pensou nesse espetáculo da Fiandeiros como uma coisa comercial. A gente nunca se deixou intimidar pelos comentários, porque as pessoas falavam: “Esse espetáculo é lindo, mas ninguém vai ver, quem é que vai ver poesia?”, ou Vocês são muito corajosos, ninguém consegue montar Joaquim Cardozo”, e no Outra Vez: “Vocês vão falar de poesia pra criança? Vocês vão falar de morte pra criança?”. Nessa relação de perspectiva de público, a gente nunca esperou multidão. A gente quer formar aquele pouquinho, que vai ver e já pensar diferente, conversar com a gente depois do espetáculo, acho que é esse o objetivo. ANDRÉ Engraçado que a gente teve uma surpresa na temporada do Vozes do Recife 120

no Joaquim Cardozo. A nossa plateia era de seis pessoas, oito pessoas, e na terceira semana a gente estava no camarim e a Marta, que é o nosso anjo de bilheteria, chega na porta: “Tem 70 pessoas aí fora!”. Só tinha cinquenta lugares, e a gente começou a colocar o povo pra dentro, e encher o teatro! E a gente percebeu que nesse público eram 80% jovens. MANUEL Nós não tínhamos mídia, a nossa propaganda era o boca-a-boca. As pessoas que assistiam que voltavam, espalhavam, e às vezes voltava levando mais gente.

FERNANDO Vocês falam que vários de vocês dão oficinas. O grupo tem prática de ministrar oficinas? ANDRÉ Não, mas a gente tem vontade, muita vontade. DANIELA Cada um tem sua experiência fora do grupo dando aula, mas ninguém nunca ainda ofereceu oficina pelo grupo.


ANDRÉ Isso eu acho que é uma coisa que o espaço vai puxar a gente pra reflexão. A gente tem muita vontade de desenvolver essa capacidade. Acho que a necessidade também vai falar, vai nos tanger pra esse lado.

FERNANDO Como é que é o registro dos processos? Vocês tem essa prática de registro dos processos, registro escrito, vídeo, foto? ANDRÉ A gente tem, muito, mas a qualidade é que é duvidosa. A gente conseguiu digitalizar 95% das matérias de jornal que saíram da gente. DANIELA O processo do Outra Vez tem muito pouca coisa registrada, a não ser o próprio texto. O registro da pesquisa do Capataz também não tem quase nada. Isso é uma coisa que a gente tem que correr atrás. ANDRÉ E esse projeto do Myriam Muniz vem, justamente, contemplar isso. DANIELA Por várias vezes a gente já pegou uma programadora visual, se reuniu, quis fazer um registro, um livro do repertório, contando sobre cada espetáculo, porque é importante, pra levar em festival, entregar pras pessoas. ANDRÉ E até pra história do próprio grupo.

FERNANDO Como é que se dá a relação do grupo com outros grupos, sejam daqui, sejam do interior ou de outros estados? Vocês costumam fomentar trocas? ANDRÉ Eu acho o grupo muito introspectivo, a gente tem uma dificuldade de relacionamento com outros grupos. O GRITE é fruto de uma reflexão que surgiu na Fiandeiros. Há dois anos que a gente pensou em fazer uma reunião de grupos que tivessem esse mesmo perfil que o nosso. DANIELA A gente já identificava essa fraqueza, essa necessidade de trocar experiências. ANDRÉ Essa necessidade de organização crítica. A gente tá passando por um momento de reflexão em cima disso. Isso nos motivou a nos aproximarmos do pessoal

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do Magiluth, que é um pessoal cujo trabalho a gente admira há um certo tempo, o de Samuel, no Quadro de Cena, o grupo Totem que há mais de 20 anos tem uma perspectiva de trabalho bem própria, a Ana Elizabeth Xavier também com o Marco Zero, e aí esse ano sentamos e vimos que tínhamos algo em comum.

FERNANDO Pra a gente fechar. Qual que é a bola da vez do Fiandeiros hoje? O que tá no topo das discussões do grupo? ANDRÉ Pra mim, a divisão de funções. DANIELA Eu acho que é a sede. A gente tem muito o que fazer aqui, estruturar politicamente a administração disso, estruturar fisicamente.

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Cia. Lionarte/Galpão das Artes Limoeiro (PE) Entrevista realizada no Galpão das Artes, Limoeiro, em 18 de março de 2010. 125

FERNANDO yamamoto Pra começar, eu queria que vocês me contassem a história do Galpão das Artes. FÁBIO ANDRÉ A cidade de Limoeiro não tinha uma atividade cultural que contemplasse jovens, e sentíamos, ao mesmo tempo, que a educação favorecia isso. Nas aulas de arte, os professores oportunizavam esses momentos de teatro. Então é quando surge a Companhia de Eventos Lionarte e, depois de um intervalo, o Galpão das Artes, com sede própria.

FERNANDO Quando isso aconteceu? FÁBIO A Lionarte em 1987, e o Galpão das Artes, que é a nossa instituição, em 2000. Ou seja, estamos fazendo dez anos. E a gente já surge com o propósito de ter um espaço próprio, e não queria que a única linguagem que prevalecesse fosse o teatro, mas também o cinema, até porque um dos primeiros trabalhos da instituição foi justamente um filme, que trata da questão da fundação e origem de Limoeiro.


Fizemos uma parceria com a TV Viva, criamos um roteiro, e a partir desse roteiro, gravamos o filme, lançamos, as escolas receberam o filme, e aí começa uma discussão sobre a história da cidade. E em seguida a montagem do Basta!, que é o espetáculo que marca o início, propriamente dito, do Galpão das Artes, com um texto do Fernando Limoeiro, um limoeirense que está em Minas Gerais. Isso favoreceu não somente uma discussão sobre lixo, mas também uma oportunidade de ter um espaço e experimentar, entrar no teatro e não ter hora pra sair, e depois unir, buscar outras linguagens, o pessoal de artesanato, o pessoal das artes plásticas, e oportunizar. Eu acho que o mais forte seria isso, de buscar outros caminhos. E hoje a gente sente que com o teatro, com o artesanato, com o processo de contação de histórias, com o intercâmbio, nós crescemos muito. CHARLON CABRAL Nos últimos seis anos eu passo a ter um trabalho de direção maior dentro do Galpão. Tem nove anos que sou ator e, graças a Deus, eu entrei numa fase muito próspera da arte cênica em Limoeiro. Eu não conheci este outro 126

momento que Fábio citou, do surgimento da Lionarte, eu conheço um Galpão próspero, com esse espaço, que é próprio, e não tem hora pra entrar, não tem hora pra sair. FÁBIO Charlon fala da questão do espaço, e ter um tempo maior de exercitar teatro. Eu acho que outra função nossa foi de formação de plateia. Isso foi tão grande que, quando recebe um grupo de fora, a gente percebe que os grupos vêm com muita sede. E outra coisa é o fato de sermos de teatro e estarmos em escolas, então atraímos outros professores, e o público estudantil.

FERNANDO Como é que é a rotina hoje de trabalho de vocês? FÁBIO Nós temos ensaios diariamente. Montagens, reuniões, discussões. principalmente do que queremos para o amanhã. Nós conseguimos viver do teatro, associado com a educação. A gente não vê a educação como um braço distante, porque a partir do momento que nós temos o cineclubismo, e os alunos discutem, eu acho que é um grande fomento.


JADENILSON GOMES A gente tem também um acervo de uma faixa de mil e duzentas obras, títulos específicos de teatro e cinema. É raro no interior de Pernambuco existir títulos de teatro. Geninha da Rosa Borges, a dama do teatro Pernambucano, doou ao Galpão parte do acervo particular dela, pra gente tomar conta desses títulos de teatro! Então tem obras raras, a gente tem o maior cuidado, o maior carinho, porque é história palpável! A gente ainda não teve a oportunidade de abrir as portas do Galpão pra grupos ou curiosos de teatro fazerem pesquisa no acervo, porque a gente ainda não tem estrutura de biblioteca.

FERNANDO O Galpão hoje sustenta todos ou partes dos integrantes? CHARLON Parte dos integrantes, até porque Fábio, eu e Jadenilson somos professores e trabalhamos em escolas particulares.

FERNANDO Quando vocês me mostraram o Galpão hoje, eu vi uma espécie de um piloto de um projeto de uma escola. Além disso, vocês estavam falando que são um Pontinho de Cultura. Quais são as fontes de financiamento do Galpão, como ele se gere financeiramente? FÁBIO Temos um convênio com a Prefeitura. Essa celebração desse convênio gera um recurso que banca o pagamento do aluguel.

FERNANDO Esse espaço é alugado? FÁBIO É. Faz dez anos que nós somos inquilinos. Tem também a bilheteria dos espetáculos, né? Por exemplo, veio um espetáculo de Recife, sempre fica 50% com a casa, e outros 50% com quem veio. E criamos a estrutura de receber o grupo, divulgar. CHARLON As despesas de hospedagem, alimentação e a própria produção do espetáculo, ficam por nossa conta. Até porque a gente é uma cidade privilegiada, que possui duas rádios, jornais, todas têm espaço aberto pra gente. FÁBIO E tem uma coisa também muito boa que são os jornais da região. Como na região não existe uma produção teatral, é de uma timidez total, então o público

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dessas cidades também vêm assistir. E se elas vêm assistir, nós buscamos os meios de comunicação dessas cidades. Carpina, que economicamente é maior que a gente, tem um jornal de circulação grande. Então a gente penetra nesse espaço.

FERNANDO E como é que se dá a divisão de função entre vocês, tanto administrativas com artísticas? FÁBIO Eu tenho ficado com a parte administrativa. A direção eu estou retomando agora, por uma necessidade do grupo. Mas isso não quer dizer que está centrado em mim, até por que durante quatro anos, Charlon e Jadenilson se revezaram nessa função. Eu acho que essa experiência foi muito salutar. Tarcísio cumpre uma função no cineclubismo, tem uma funcionária da prefeitura cedida pra trabalhar oficina com criança. Então isso, de certo modo, dá um conforto, mas eu vejo que essa parte ainda precisa, vamos dizer, usar a linguagem administrativa, criar um fluxograma pra melhor distribuir. 128

JADENILSON Essa descentralização acaba trazendo uma independência. Porque se centraliza numa única pessoa a questão administrativa ou a questão artística, se essa pessoa, mais tarde, vier a se desligar, o grupo acaba sendo penalizado, e correndo o risco de sumir. Então esse processo que se cria dentro do Galpão, de Charlon, eu, dirigirmos espetáculos, de bebermos em fontes diferentes, faz com que nós criemos uma pluralidade cultural muito grande em termos de direções, de experimentos, de estéticas que são testadas. Essa necessidade que nós tivemos de uma volta de Fábio à direção foi pela retomada de um espetáculo que nós tivemos cinco anos em cartaz, fizemos Nordeste e Sudeste do país, fizemos Portugal, que é o A Inconveniência de ter coragem voltar. A gente viu que era hora de voltar porque A Inconveniência se mostrou um cartão postal do Galpão das Artes, que conseguiu dar uma dimensão desse teatro que é feito em Limoeiro, tirando esse rótulo de que o teatro que é feito no interior e o que é feito na capital são coisas opostas.

FERNANDO Partindo um pouco pra os processos de criação. Em geral, qual é o ponto de partida dos processos? Existe algum padrão?


CHARLON Parte de uma inquietação. FÁBIO Historicamente era um texto indicado por mim. Depois a gente começou a ver que era preciso diversificar isso. É quando surgem as novas lideranças. Eu estou muito próximo às questões das tradições, da dramaturgia regional. Eu tive a oportunidade de montar quase cinco espetáculos de Ariano, o último no universo do boneco. Acho que o fio da meada é realmente o boneco. CHARLON Fábio defende esse universo do boneco, que a gente acha muito bonito. É uma pesquisa rica, onde a gente pôde viajar, como por exemplo pra Olinda, passar o dia dentro de um museu de bonecos, pra dali tirar subsídios pra maquiagem, figurino, os tipos de personagem, tudo isso. Mas depois surgiu uma inquietação do elenco para pesquisar outras linguagens, de ator. Aí a gente não abandonou a pesquisa de boneco, mas decide enriquecer o repertório da produtora. É quando a gente propõe em 2007 beber na fonte de João Denys, potiguar, com o espetáculo Deus Danado. A gente passa dois anos em cartaz com ele, vai até Curitiba, dentro do Fringe, e depois vem com uma pesquisa de uma linguagem nova, um texto partido em quadros, No humor como na guerra, de Vitor Ribeiro de Lima, ambos com a minha direção. Depois veio a oportunidade montar um espetáculo de rua e uma tragédia ao mesmo tempo. Nós fomos agraciados com dois projetos do Funcultura, então, ao mesmo tempo em que estávamos montando a tragédia de Santiago Serrano, A revolta, tínhamos que iniciar também a pesquisa do espetáculo de rua, O Bumba. Isso, no meu ponto de vista, foi o maior exercício desde o surgimento.

FERNANDO Em geral, quanto tempo vocês levam pra montar os espetáculos? FÁBIO Em cerca de três, quatro meses, a gente tem o processo desde a descoberta do texto até a montagem final. Temos uma casa, o que facilita, então às vezes entramos dàs oito horas da manhã no domingo e saímos dez horas da noite. Então mesmo que nós tenhamos outras atividades paralelas, mas essa disponibilidade que é dada nesses horários facilita.

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FERNANDO E como tem sido a vida dos espetáculos? Quanto tempo eles tem sobrevivido? Vocês tem uma perspectiva de repertório? FÁBIO A inconveniência foram cinco anos ininterruptos, onde nós fizemos muita coisa. No humor como na guerra já está desde 2008 em cartaz. Deus Danado passou dois anos em cartaz. A revolta, que estreou em 2009 com O Bumba, que é um espetáculo de rua, também continua em cartaz. Então nós temos quatro produtos vivos, mais A Inconveniência que está voltando, então vamos ter cinco produtos num repertório, pra que a gente possa levar da comédia regional a uma tragédia, oferecer ao público uma diversidade. EA gente procura não matar os espetáculos, até porque a gente sabe que a durabilidade vai muito de acordo com aquilo que o nosso público quer e o que a gente pode oferecer às pessoas.

FERNANDO Como é que se dá a relação com o espaço cênico dentro da criação dos espetáculos? O Galpão, apesar de poder ter uma flexibilidade, é um espaço no qual vocês montaram uma estrutura de relação 130

frontal, né? Isso acaba inclinando os espetáculos de vocês pra ter essa frontalidade sempre? FÁBIO Infelizmente é, mesmo que nós sintamos necessidade de fazer diferente. Um exemplo, quando nós fizemos o de rua, nós ensaiamos nos diversos espaços do galpão, na área do estacionamento ao lado, fizemos ensaios abertos nas ruas, na Praça da Bandeira, trabalhando essa lateralidade. Com certeza ele não vai se adequar dentro do galpão. Se tiver que fazer isso, então é um novo espetáculo que vai surgir, não mais o mesmo. A Revolta, outro exemplo, nós iríamos fazer na área externa do galpão, mas por questões climáticas tivemos que passá-lo para dentro. Inicialmente a proposta era que o espetáculo fosse feito no meio da plateia, mas nós vimos que, por ser uma linguagem nova para o nosso público, tivemos ter certos cuidados. FERNANDO Em diversos momentos na nossa conversa vocês citaram a relação com o público de vocês. Em que medida o público interfere nas opções estéticas dos espetáculos?


CHARLON Eu não vejo que o público acaba interferindo. A gente quando fala da necessidade do público é que, felizmente, nós conseguimos formar uma plateia, e essa plateia veio a ter uma educação mais qualificada quando a gente surge como uma proposta mais inovadora do teatro em Limoeiro. Então, quando a gente leva o espetáculo para o público, a nossa preocupação maior está na qualidade dele, independente do gênero que seja trabalho, da estética que seja criada, mas a preocupação com a qualidade e o respeito ao público, até porque nós temos uma plateia crítica, que sabe avaliar um espetáculo, e que sabe quando se brinca de fazer teatro e quando se faz o teatro sério. E a nossa preocupação está em fazer esse teatro sério, a gente tem buscado isso em referenciais, como os Clowns de Shakespeare, o Grupo Galpão e com outros grupos que tenham essa responsabilidade cultural, social e política. FÁBIO Eu percebo que a influência do público está na sede e na fome de ver cultura. De a gente poder oportunizar o acesso à cultura, mas também qualificar essa plateia pra ser apreciadora de arte, como o público poder ver uma exposição antes de entrar no espetáculo. Quer dizer, é uma oportunidade enorme.

FERNANDO O grupo tem prática de ministrar oficinas? CHARLON A gente está às portas de abrir um curso de quatro meses, com uma montagem como conclusão. Atualmente o Galpão tem uma oficina que se chama Um olhar lúdico sobre o quintal, que eu ministro para crianças, mas ultimamente eu venho abrindo espaço pra professores de arte. Eu enveredei mais por esse caminho da criança e Jadenilson tem mais uma questão com o adolescente, e o Galpão já fomentou outros cursos.

FERNANDO Vocês têm uma preocupação em registrar os processos criativos? FÁBIO Não muito. Eu gosto de escrever em diário, acho que tenho essa prática por conta do lado professor, e me ajuda muito a criar o ensaio seguinte.

FERNANDO Como é que é a relação de vocês com os outros grupos da cidade, do estado, da região, do país? Vocês tem a prática de trocas, de encontros?

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FÁBIO Sim, da capital.

FERNANDO Vocês recebem muita gente, né? FÁBIO A capital tem braços abertos pra gente, percebo isso. Como também o interior, como Caruaru. CHARLON Os grupos todos que vem pra Limoeiro querem vir para o Galpão, primeiro porque sabem que nós temos compromisso de fazer com que a casa esteja sempre cheia, depois a própria forma que nós temos de lidar com os grupos, essa relação de respeito, de trabalho que acaba sendo solidificada através dessas experiências que a gente tem vivido. FÁBIO Quando esses espetáculos vêm pra cá, não é somente a troca de 50%, mas o exercício do debate. Nós queremos saber como é que o Magiluth cria, e como é que o Magiluth continua na estrada, quais são os mecanismos, então essa troca facilita muito pra gente. Então um dia antes a gente senta, cria um momento específico, 132

convida pessoas do mundo cultural pra se apropriarem.

FERNANDO Enquanto articulação política, vocês têm algum tipo de envolvimento, estão ligados em discutir questões de financiamento público? FÁBIO A discussão estadual vai mais pela associação que a gente faz parte, a ARTEPE. Em nível de município a relação é boa, até porque nós tivemos duas gestões da secretaria geridas por pessoas de teatro, a atual e a anterior. Nós somos uma linguagem recente, de apenas vinte e três anos de trabalho formatado, mas já somos modelo para outras linguagens mais antigas na cidade.

FERNANDO Pra gente finalizar, qual é a grande questão para o Galpão das Artes hoje? FÁBIO Acho que é a compra do prédio, porque é a independência. Eu acho que depois da compra, dá pra pensar em comprar uma van, não só pra viajar, mas pra conhecer o que os outros estão fazendo.


CHARLON O outro foco, no meu ponto de vista, é a arte-educação, dar oportunidade a outras pessoas, a outros jovens que não conhecem teatro.

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Grupo Magiluth Recife (PE) Entrevista realizada nas imediações do Teatro do Parque, Recife, em 20 de maio de 2009. 135

FERNANDO YAMAMOTO Vilela, me conta sobre o processo de criação do grupo. PEDRO VILELA O Magiluth começou na Universidade Federal de Pernambuco, a partir de uma disciplina de Fundamentação e Comunicação, em 2004. Thiago Liberdade tinha deixado de fazer um trabalho, e o professor, Paulo Michelotto, pediu pra ele montar alguma coisa, e como ele é tradutor de Beckett no Brasil, exigiu que fosse em cima de Beckett. Thiago tinha acabado de fazer uma oficina de clown com Joice Aglae na Bahia, e propôs fazer uma montagem do Ato sem Palavras. Ele chamou Marcelo, Bruno e Lucas pra fazer essa montagem, e começaram a apresentar dentro da universidade, e começaram a desenvolver essa atividade, até que houve um Festival no SESC, chamado Aplauso, e convidaram o Ato pra fazer parte. Foi quando a cidade começou a conhecer o trabalho dos meninos. Em principio não tinha ideia de ser um grupo, tanto que o festival convidou, e rolou a história do nome.


FERNANDO Conta essa história sobre o nome, que eu acho ótima! Eu nem ia perguntar, mas já que você citou... (risos) VILELA Então, eles ligaram e perguntaram: “o grupo tem um nome?”, mas nunca tinha passado pela cabeça qual seria o nome do grupo. E aí eles pediram uns trinta minutos pra poder dizer o nome, desligaram o telefone, e ficaram tentando combinações das primeiras sílabas do nome de cada integrante. E aí deu “Magiluth”, de Marcelo, Giordano, Lucas e Thiago. Depois como o grupo começou uma certa rotatividade de apresentações, eles ficaram preocupados em não mudar mais esse nome, porque o grupo estava começando a ser conhecido dessa forma. Depois desse Ato sem Palavras, os meninos resolveram montar um espetáculo mais bem elaborado. Agora já formado enquanto grupo, começou o processo pra montar o que, em principio, se chamava Retalhos. Começou com os quatro, mas Bruno e Thiago conseguiram intercâmbios em universidades, Thiago pra Lisboa e Bruno pra Coimbra. Marcelo, que era quem estava escrevendo Retalhos, resolveu continuar o processo, e 136

aí veio a entrada de Júlia e Olga, mudaram o nome de Retalhos para Corra, e criaram o esquete. Até que teve o Curta Cena, festival de Ana Elizabete, e Corra foi muito bem recebido, a galera ovacionou. Depois desse festival, Marcelo resolveu ampliar, criou mais duas cenas e fechou o espetáculo. No processo de Corra eu estava morando em Curitiba, Marcelo me convidou pra criar a luz, e resolvi voltar pra Recife. Foi assim que eu entrei no grupo. A partir daí participamos de alguns festivais, no Rio, em Recife, conseguimos juntar um fundo de caixa, e resolvemos não mais fazer aquele Ato antigo, mas sim remodelar o Ato.

FERNANDO E como é que o grupo funciona hoje? Como é que é a rotina, a divisão de funções, tanto administrativas quanto artísticas, como é o dia a dia do Magiluth? VILELA Nós tivemos muita briga. Na época do Corra e do Ato tinha um menino que era o produtor, mas nós tivemos muita briga pela maneira de gerir o grupo. A produção não acontecia, alguns projetos eram nem mandados pra festivais porque se


perdia a data, e a partir de um determinado momento nós começamos a nos organizar em funções. À principio se definiu um núcleo de produção, e existia um núcleo criativo, que eram as pessoas que estavam mais em cena. Existe o diretor de produção, que sou eu, que direciono pra onde o grupo vai, o que é que o grupo vai buscar e tento fazer as articulações políticas, com festivais, e tudo mais, representando o grupo em movimentos e nas ações. E tem outras funções: coordenação de logística, de Thiago e Bruno, assessoria de imprensa, também com Bruno, mas é que tudo passa por mim antes de sair. Júlia é responsável pela direção de arte dos dois trabalhos, então ela tem essa preocupação com o material de cena, manutenção, acabamento, criação, tudo fica na mão dela. E eu acho que quem não tem função fixa é Marcelo. Dinheiro é comigo.

FERNANDO Todos têm funções artísticas e administrativas? VILELA Sim, e a gente reveza. Uma coisa que é importante no trabalho da gente é que tudo é gerido e gerado pelos integrantes. A única coisa que a gente não fez nos dois trabalhos foi costurar, mas desenhar figurino, ir à rua comprar, confeccionar, manutenção toda estrutura de produção, de marketing, venda de produtos nos festivais, tudo é criado pelo grupo. Até porque isso surgiu por questões financeiras. No Ato a gente tinha um orçamento muito baixo pra desenvolver o que a gente queria, então a gente comprou a lona, recolheu o jornal, fez alguns experimentos, com Júlia à frente, e os outros integrantes ficavam com a mão de obra. Acho que de gestão é mais ou menos isso.

FERNANDO E aí como é que é a rotina de trabalho do grupo hoje? VILELA Nos encontramos quase todos os dias, menos nas segundas, quartas e domingos. Depende muito do foco do mês, do que temos para ensaiar. A gente iniciou um processo de treinamento pra o ator, um dia por semana.

FERNANDO O grupo hoje sustenta todos ou alguns dos seus integrantes?

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VILELA Não, mas nós recebemos pelo trabalho. Há um tempo atrás, nós nos regramos a receber dinheiro. Era muita briga, porque alguns queriam, outros não, então hoje a gente tem certo de que, qualquer coisa que o grupo faça, as pessoas recebem um cachê por isso. As pessoas não vivem disso, mas alguns meses daria para sobreviver.

FERNANDO Esse dinheiro é divido igualmente entre todos? VILELA Antigamente tinha essa história de dividir igualmente, mas a gente viu que isso não funciona, porque os trabalhos são diferentes, as dedicações são diferentes. O grupo ainda tenta guardar dinheiro pra o próprio grupo. Do cachê, a gente tira os impostos, e divide por vinte. Dez partes são do grupo, as outras dez são divididas. Como os dois trabalhos são com seis pessoas, aí vão seis partes; duas vão pra quem trabalhou na produção, uma pra taxas e custos administrativos e outra para fundo de reserva. 138

FERNANDO Mas o grupo tem essa perspectiva de sustentar todos os integrantes? VILELA Sim, temos. O grupo vive basicamente da participação em festivais, porque a gente não consegue fazer temporadas em Recife. Mesmo assim existe um foco muito grande em juntar o dinheiro para o grupo, para um dia ter um espaço... Todos são arte-educadores formados pela universidade, então podemos tentar outros projetos na área social e viver disso. Algumas pessoas têm mais ansiedade, com mais vigor por esse sonho, outras vão mais lentamente, dizendo que querem respeitar o tempo, e que um dia vai acontecer.

FERNANDO Qual que é, em geral, o ponto de partida dos processos criativos? É texto, uma ideia, uma improvisação? VILELA A gente está passando por um processo de discussão muito grande em torno disso, agora que a gente está iniciando um novo processo. A primeira conclusão que a gente chegou é que o grupo nunca teve um processo de grupo. Corra foi


um processo que o grupo não estava todo formado, que vinha de Marcelo. O Ato é uma remontagem que nem todos participaram. Então agora é que o grupo vai ser colocado à prova. Mas o processo desses dois primeiros trabalhos surgiu muito de ideias de Marcelo. Marcelo chega com muitas propostas.

FERNANDO A partir de uma proposta dramatúrgica? VILELA Sim. O espetáculo é muito dele, e as pessoas acabaram comprando a ideia. Ele escrevia em casa e chegava pra dirigir, com as cenas já desenhadas. Esse texto ia se alterando durante o processo, ele sempre foi muito aberto também pra perceber indicações dos meninos, tanto marcação quanto adaptação textual, mas era muito na mão dele.

FERNANDO E hoje, que vocês estão entrando num processo, como é que vocês vislumbram essa questão? A partir do quê que vocês vão começar a idealizar? Ou já começaram? VILELA Esse novo processo eu devo dirigir. Eu comecei a discutir com eles o que é que eles tinham em comum com os dois outros trabalhos, se aqueles dois trabalhos representam realmente o que grupo acredita de teatro. A gente percebeu que o que queremos é meio diferente dos outros dois trabalhos. Nós estamos nos encaminhando pra um texto do Fernando Bonassi, chamado Diário de uma guerra.

FERNANDO E vocês chegaram a esse texto a partir de uma pesquisa de textos? VILELA Uma pesquisa minha. Eu sempre gostei muito do trabalho do Bonassi, dos espetáculos que eu vi que tinham a dramaturgia dele, e há um tempo atrás eu resolvi começar pesquisar a obra dele. Entrei em contato com ele, que me mandou os textos de teatro, nisso eu chamei Bruno pra acompanhar e ele também gostou pra caramba. Aí comecei a cair sobre as crônicas, os contos, os romances que ele escreveu também, mas isso foi muito individual. Eu dei o livro pra Bruno no aniversário dele, ele leu, depois eu li e falei: “eu quero esse aqui!”. Bruno leu: “também quero esse!”. Começa-

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mos a contagiar a galera, e vamos sentar esses dias pra bater o martelo. Mas a ideia é trabalhar com um texto não dramatúrgico, e ser construído a partir de improvisação. Bruno anda pesquisando muita dramaturgia, então ele tá fazendo parte do núcleo de dramaturgia, de escrever e construir alguma coisa a partir disso.

FERNANDO Então, provavelmente, ele vai fazer essa amarração? VILELA Ele e eu, provavelmente. Acho que o grupo vai sugerir e ele vai amarrar.

FERNANDO Qual o tempo de duração média dos processos criativos? VILELA Quatro, cinco meses. O Ato a gente teve que montar sob pressão, porque tinha estreia marcada, então foi montado em dois meses e meio. Esse novo a gente quer se dar tempo, fazer em seis ou sete meses. É o tempo também de serem lançados alguns editais pra tentar captar, mas mesmo sem edital existe a certeza de que vai ser feito. Também acho que não vai durar mais do que sete meses. Mas sem pressa, porque vamos tomar como base todas as dificuldades que tivemos com os outros 140

dois, de interpretação, de corpo, de voz. A gente pretende trabalhar nesse processo com mais calma, chamar pessoas para trabalhar.

FERNANDO O que vocês idealizam como tempo útil de vida dos espetáculos? VILELA A gente está se questionando isso agora, porque Corra já vai fazer dois anos e as coisas não estão mais surgindo pra o espetáculo. Eu acho que as pessoas definem a morte do espetáculo, e os grupos, às vezes, demoram um pouco pra perceber isso, talvez a gente esteja nesse processo. A gente gostaria de circular mais com os dois espetáculos, mas Corra já está num processo de finalizar. Mas isso é muito relativo. No início do ano nós iríamos matar o Ato, aí surgiu um monte de coisa pra ele, e continua surgindo.

FERNANDO Como é a realidade de temporadas aqui em Recife? É possível? De quanto tempo?


VILELA É uma das incógnitas pra mim, enquanto produtor do meu grupo. Eu não sei o que é o Magiluth em temporada. Eu tenho medo de me iludir, porque nos festivais é uma luta muito grande pras pessoas assistirem o espetáculo da gente, sempre esgota muito fácil, então eu acho que é possível, sim.

FERNANDO Em relação a outros grupos da cidade? VILELA O Angu consegue fazer temporada com um público cativo, eu acho que é resultado muito do trabalho que é desenvolvido. Luís Reis, no debate sobre Corra, disse que, independente da qualidade do trabalho, o Magiluth era responsável pela formação de uma nova plateia em Recife, que era um público da Zona Sul, um público de jovens. Eu posso estar iludido, mas acho que o Magiluth tem um público pra fazer temporada. Quanto aos outros grupos de Pernambuco, acho que ainda são muito precárias as formas de produzir temporadas, divulgações muito fracas, falta uma visão de mercado, de público-alvo. Os grupos se resumem a botar cartaz na frente do teatro, chamar a classe e os amigos, e não ir direto a um público que não está acostumado com teatro.

FERNANDO Em relação a espaço cênico, o grupo tem algum tipo de preocupação, a priori, de busca de algum tipo de configuração espacial? VILELA O grupo se adequa muito às realidades. Nós gostamos, a priori, de semiarenas e lugares não-convencionais, não gostamos muito de teatrões, apesar e ter feito em São Luís e ter achado maravilhoso. O Ato fez rua, mas foi concebido inicialmente para espaços não-convencionais.

FERNANDO Em que grau a preocupação com o público interfere na criação artística de vocês? VILELA Nos dois processos eu acho que não houve essa preocupação, nem esse entendimento. Depois de pronto é que houve uma preocupação maior, principalmente em relação a Ato. Como estar na rua, como criar essa relação? Que público é

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esse que nos recebe, são crianças vendo isso, são adultos? Como é a relação dessas pessoas com o teatro? Que leitura elas fazem? Aí é que começou a se pensar isso, mas em Corra eu acho que não houve essa preocupação. Engraçado que, há um tempo atrás, nessa discussão de montar algo novo, eu propus dirigir o Canto de Gregório, gosto muito daquele texto. Depois eu vi que o grupo chegou à conclusão de que aquilo “não é pro nosso público”. O diário de uma guerra, se for montado, tem mais a ver. Vai ter essa preocupação, se vai atingir esse público específico que é nosso.

FERNANDO Você falou que o grupo todo é formado em arte-educação. O grupo tem uma prática de ministrar oficina? VILELA As pessoas têm, o grupo não. Algumas pessoas sobrevivem de ministrar oficinas, de participar de projetos sociais, desenvolver ações educativas na rua, mas o grupo não tem. Talvez porque, quando se fala de uma oficina de um grupo, a gente espera o processo de trabalho do grupo, e como a gente não tem muito claro que processo é esse, a gente fica meio receoso de mostrar um processo e as pessoas não 142

entenderem aquilo. Então o grupo hoje está começando a fomentar isso.

FERNANDO Em relação a registro, principalmente de processo, registro escrito, de vídeo, de foto, vocês têm uma preocupação em manter isso? VILELA Eu acredito que os diretores têm algum material, mas o grupo nunca teve acesso. Fotos e vídeos existem, principalmente das apresentações, das visitas aos lugares. Todo lugar que se vai a câmera vai junto e registra público, entrevista as pessoas, espaço, como foi, mesmo que com a câmera não tenha uma qualidade tão boa, mas enquanto registro mesmo.

FERNANDO Fala um pouco mais sobre esses vídeos, de onde surgiram, como são feitos. VILELA A gente tem a sorte de pessoas próximas trabalharem com vídeo e terem interesse em estar editando isso. A gente tem vídeo sobre a temporada na rua, um


vídeo muito bonito, dividido em três partes, que fala sobre o olhar do público, o olhar do grupo e o próprio espetáculo na rua. E tem vídeo de viagens e temporadas, que amigos próximos que trabalham com vídeo e cinema querem experimentar. Existe inclusive a proposta de um cineasta de Pernambuco de transformar o Ato num produto acabado.

FERNANDO Fala um pouquinho como é que é a relação do Magiluth com outros grupos, tanto daqui, quanto de outras cidades, outros estados. Existe uma busca sistemática ou um espaço de troca? VILELA Eu acho que os trabalhos do Magiluth começaram a impor uma relação dos outros grupos com a gente. O Magiluth era um bando de meninos saindo da universidade, mas aí a maneira de se portar, organizacionalmente, dos resultados estéticos, fez com que os grupos começassem a ter um interesse em se relacionar com a gente. Esteticamente nós ainda não formalizamos trocas com nenhum grupo, pelo menos aqui em Pernambuco. Talvez agora seja o momento de focar mais no nosso trabalho, descobrir coisas nossas, pra depois começar a trocar. Mas a relação com os grupos é forte, tem a questão do movimento que foi criado por nós junto com a Fiandeiros e com o Quadro de Cena, pra discutir políticas públicas, e esse movimento nasce muito da afinidade que os grupos têm, afinidades estéticas e pessoais. Magiluth esteve no Colaborativo durante um tempo, era um movimento de trocas estéticas também. Com o Nordeste a gente está começando a construir um relacionamento mais forte, com os Clowns, com o pessoal do Beira, Bagaceira, os grupos que a gente foi encontrando no meio do caminho. Eu acho que o FILTE foi muito importante na trajetória do grupo, foi o Festival onde o grupo conseguiu criar uma rede de relacionamentos, conseguiu ser visto fora do estado por um público maior. Foi um público especializado, e por mais que o grupo tivesse circulando em alguns outros festivais, eram festivais meio off. Com o FILTE a gente teve a oportunidade de ter o encontro com os grupos do Nordeste, deles conhecerem o nosso trabalho, começar a disseminar e as relações serem mais fortalecidas. É de total interesse nosso continuar assim, estamos começando a construir essa rede, ainda muito devagar.

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FERNANDO Qual é o próximo passo pro Magiluth hoje? VILELA O passo principal do grupo é se profissionalizar “à vera”. Eu acho que as estruturas de teatro que se dizem profissionais em Pernambuco são muito frágeis, não são profissionais ainda. Essa profissionalização passa por aquisição de espaço, por sustentabilidade dos integrantes, poder viver desse trabalho, e consolidação de formas estéticas do grupo, elaboração dos trabalhos. A gente vê que a gente está na corda bamba, um passo pra esquerda a gente pode perder muita coisa, um passo pra direita a gente se profissionaliza. Porque os medos que existem pra dar esse passo são muito grandes. Pode até parecer prepotente, mas a gente acha que tem que se profissionalizar agora. Acreditamos que, pra chegar nos resultados que nos queremos realmente, é necessário essa profissionalização de fato, pra construção da nossa estabilidade, nos dedicarmos a isso com todas as forças e com todo foco possível. A gente espera poder trabalhar com produções financeiramente mais confortáveis também, acho que a partir disso a gente pode chegar nesse nível de profissionalização. 144

FERNANDO Que são o quê, quando você fala em formas mais confortáveis? VILELA É o mínimo de recursos pra você poder pagar sua conta e dizer: “Eu trabalho só no grupo!”. Se eu tivesse uma redução de 40% do meu salário, eu não teria problema, mas eu preciso ter uma certeza que pelo menos esses 60% eu vou garantir, eu vou pagar minhas contas. E isso serve pra todos, eu acho. Na verdade alguns já vislumbram isso, e já estão na luta mesmo sem esses 60%, sem nada, estão disponíveis pra o grupo. Mas eu acho que como somos muito novos, é preciso uma pessoa pra estar puxando, e é justamente as pessoas que não podem estar cem por cento no grupo que deveriam ser as que estariam puxando. Os que estão mais disponíveis são as pessoas justamente que dizem: “calma, tem seu tempo, um dia vai chegar!”. Talvez elas estejam tão disponíveis justamente por isso, então, na luta trabalhando, construindo as coisas. O foco é isso.




Teatro Marco Zero Recife (PE) Entrevista realizada no Espaço Compassos, Recife, em 22 de maio de 2009. 147

FERNANDO YAMAMOTO Como é que foi o processo de criação do Marco Zero? ANA ELIZABETH JAPIÁ Éramos três ex-alunos da UFPE que, assim que nos formamos, tivemos a ideia de montar um grupo: Eu, Doreide e Fernando. Chamamos algumas pessoas, algumas ficaram, outras saíram, outras entraram depois. Éramos sete e esse grupo ficou durante uns três anos.

FERNANDO Ele já surgiu com a perspectiva de ser grupo? ANA ELIZABETH Já. Nosso primeiro trabalho foi uma pesquisa sobre a performance, a gente não tinha nenhuma ideia de montar um espetáculo, a gente queria montar um seminário sobre performance na cidade. Fizemos um projeto, demos entrada na lei de incentivo municipal, mas ele foi reprovado. Foi um baque. Aí fomos por outro caminho, de montar um espetáculo, né? Era um espetáculo infantil, a partir


de um texto que eu tinha escrito na universidade. Iniciamos um processo, nos debruçamos sobre o teatro infantil, e em 2003 a gente estreou. E era sempre uma alegria conquistar uma pauta, era tudo muito novo pra gente! ANA CAROLINA MIRANDA Pois é, sair no jornal... ANA ELIZABETH Nasceu o espetáculo e a estruturação do grupo. Tivemos esse espetáculo, que teve uma vida relativamente longa, porque participou de vários festivais. A gente conseguiu patrocínio pra ir pra Curitiba, percorremos Pernambuco todo com ele e participamos do Festival de Teatro Nacional com um infantil, que foi importante também. ANA CAROLINA O décimo Janeiro de Grandes Espetáculos, também. ANA ELIZABETH E veio o prêmio do Janeiro, da APACEPE, que foi assim... Eu não dormir aquela noite! A gente não tinha grana, a gente montou um espetáculo com um empréstimo de dois mil reais, uma loucura! E ganhamos melhor espetáculo, 148

melhor direção, que foi uma direção coletiva, que foi uma conquista também, do reconhecimento desse formato de direção. Atriz revelação, que foi Carol, e melhor cenário. Depois a gente montou uma performance, no Espaço Grial, que se chamava Palavra. E em seguida nós iniciamos um projeto com Clarice Lispector, que também não foi compreendido, porque a gente não tinha um texto pronto. A gente queria trabalhar um processo, e mais um baque, né? A comissão não reconhecia como legítimo você trabalhar a partir de um processo, ter um texto a partir disso. Tinha que apresentar tudo pronto! ANA CAROLINA Texto, cenário, figurino, tudo esquematizado. ANA ELIZABETH E a gente dizia que ia construir isso e eles não acreditavam. Então foi mais um baque, e Clarice ficou adormecida. ANA CAROLINA Teve Nau à Vista, também. ANA ELIZABETH Nau à vista foi uma intervenção urbana que foi uma encomenda do SESC. Foi outra experiência você trabalhar sob encomenda. Porque eles


queriam isso: o tema era o “descobrimento” do Brasil. A gente teve uma resistência, mas foi um processo tão rico, uma experiência muito interessante de construção coletiva, também. ALMIR MARTINS E aí vem o Curta Cenas, que foi fantástico. Foi um festival fora de série, que mobilizou muita gente. O espaço ficou pequeno, pela qualidade dos projetos. ANA CAROLINA Com o tempo a gente teve que sair. Começou no Teatro Arraial, depois foi para o Apolo, e brevemente iria para o Santa Isabel. Grupos que se apresentavam com cenas curtas de dez a quinze minutos, pra poder mostrar o trabalho e a cidade poder conhecer quais são os grupos que tinham em Pernambuco. Era muito legal, porque em uma noite tinha oito espetáculos. ANA ELIZABETH Mais a Mostra Infantil, né? Aí davam vinte e oito! Três noites com oito adultos, mais quatro da Mostra Infantil, eram vinte e oito espetáculos durante três dias. ALMIR Sem falar no enriquecimento que existia na troca dos grupos. Os oito daquela noite passavam os ensaios juntos, passavam o dia da apresentação juntos, então era uma troca constante, de aprendizado, de aquecimento, de tudo. Era massa esse festival que o Marco Zero criou.

FERNANDO Teve quantas edições? ANA ELIZABETH Três. A última foi em 2006. O Curta Cena, estava tomando uma proporção assustadora, mobilizando a categoria, então não interessava aos produtores, né? Eu acho que, quando não foi aprovado pelo Funcultura, deve ter sido por questões políticas. Eu sinto isso, não posso afirmar, mas eu sinto que foi por questões políticas. Mas enfim, eu acho que valeu pela contribuição que a gente deu à cena da cidade, muitos grupos se formaram ou fortaleceram durante o Curta Cenas.

FERNANDO O próprio Magiluth. ANA ELIZABETH O Magiluth é cria do Curta Cenas, né?

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FERNANDO E hoje, como é que o grupo funciona? Como se dividem as funções artísticas, administrativas? ANA ELIZABETH Durante um ano e meio a gente suspendeu as atividades, e retomamos em 2009. A gente trabalha sempre em regime de cooperativa. Pra cada projeto a gente nomeia um tesoureiro, um coordenador, um secretário, que registra a parte da documentação, se encarrega do portfólio, do clipping. Tudo que aparece, imprensa, vai coletando, vai organizando. Geralmente a produção quem faz são todos, a gente divide a produção executiva.

FERNANDO E artisticamente, como é que vocês dividem as funções? ANA ELIZABETH Todos os quatro são arte-educadores, vieram da universidade, têm essa formação acadêmica. Acho que por isso essa preocupação de sempre atrelar à produção artística uma visão pedagógica. A concepção geralmente alguém traz a ideia, mas a gente vai discutindo até chegar num conceito, que é geralmente 150

consensual. Quando a gente tem o conceito, as ideias que vão surgindo a gente vai vendo se estão consonantes ou não com essa proposta, e vai descartando ou não. Tudo é muito discutido, inclusive no primeiro trabalho gerou até uma certa rejeição. Não é fácil não!

FERNANDO Então a direção também acaba compartilhada por todos? ANA ELIZABETH Geralmente existe um coordenador, que assume mais uma diretriz!

FERNANDO Mas em geral ele está em cena? ANA ELIZABETH Ele está em cena. Minha Cidade é o primeiro trabalho em que eu estou fora.

FERNANDO Quais são as principais fontes de financiamento do grupo hoje?


ANA ELIZABETH O primeiro espetáculo, como participou de muitos festivais, a gente teve patrocínio, conseguiu fazer um caixa legal.

FERNANDO Patrocínio direto ou por lei? ANA ELIZABETH Por lei e da CHESF.

FERNANDO Por edital? ANA ELIZABETH Não tinha edital, agora é que abriram, foi com patrocínio direto. Então a gente conseguiu fazer um caixa e o grupo sobreviveu. Hoje a gente está com o dinheiro dessa bolsa da FUNARTE pra produzir o texto e o espetáculo vai ser um plus, porque não está previsto. Eles só querem o texto, mas a gente vai fazer o espetáculo também. Paralelamente vai fazer um projeto pra concorrer em edital, mas a gente sempre trabalha com plano A e plano B, não dá pra ficar à espera.

FERNANDO Os processos criativos, em geral, têm quanto tempo de duração? ANA ELIZABETH O livro foram seis meses. Nau à vista, que foi essa encomenda, a gente levou uns quatro meses pra construir. Mas, por exemplo, essa ideia de Minha cidade tem uns três anos. Vai amadurecendo. Na verdade, quando você começa a concretizar o processo, ela já tem um tempo de vida na sua cabeça.

FERNANDO E como é a vida dos espetáculos de vocês? Quanto tempo, em geral, têm durado? O que tem determinado esse tempo de vida? ANA ELIZABETH O livro de fábulas foi de 2003 à 2006, três anos, com uma vida muito intensa. Mas a gente tem essa consciência que tudo tem um tempo de vida.

FERNANDO E como é que é a relação de vocês com o espaço cênico? Vocês costumam a pensar tipologia espacial durante o processo como pressuposto ou, em geral, vocês trabalham a relação frontal? Como é que é isso?

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ANA ELIZABETH A gente tem uma liberdade muito grande com relação ao espaço. ANA CAROLINA Com Nau era um casarão, a gente ocupava vários espaços. Não tinha nada à italiana.

FERNANDO Então é um traço do grupo de vocês essa coisa de pensar o espaço? ANA ELIZABETH É. Pra gente, o espaço cênico pode ser qualquer espaço, pode ser transformado em espaço cênico.

FERNANDO E em relação a dramaturgia, como vocês lidam? ANA ELIZABETH Em Minha Cidade, a ideia é construir uma cidade imaginária paralelamente à construção do indivíduo. A minha monografia de especialização foi sobre produção cultural pra criança, e o que eu defendo é que não é possível você trabalhar pra criança se você não tem contato com criança, se você não tem nenhuma 152

relação! Como é que você vai entender aquilo? Em Minha Cidade, a primeira etapa é a pesquisa bibliográfica, a coleta de dados, de depoimentos e das ideias das crianças. Elas vão construir essa cidade imaginária, a gente vai registrar essas imagens, essas palavras, essas ideias, que vão servir de ferramenta pra construção do texto mesmo. ANA CAROLINA E que vai ser um trabalho nas escolas.

FERNANDO Em que grau se dá a preocupação com o público durante os processos de montagem de vocês? Quanto que isso interfere num processo? ANA CAROLINA Muito, né? Se lembra do Livro? ANA ELIZABETH Antes de estrear, a gente fez apresentações pra grupos menores, que já sabiam que era uma proposta de colaborar e discutir, dizer o que é que está faltando. É uma característica do Marco Zero também, a gente está aberto à crítica, ao diálogo. E a gente sente um melindre muito grande na cidade, as pessoas estão


muito cheias de suscetibilidade, elas não querem ouvir não, e a gente fazia questão de ouvir. Muitos comentários provocaram mudanças, alteraram coisas do espetáculo.

FERNANDO E essa experiência foi durante o processo ainda? ANA CAROLINA Foi antes da estreia, mas depois que estreou também teve umas mudanças. ANA ELIZABETH Interessante que a crítica tanto pode colaborar pra mudanças, como pra sedimentação, pra gente reafirmar aquilo que a gente defende. A gente percebeu isso também. Vinham com questionamentos que a gente tinha certeza que era aquilo que a gente queria. Nesse caso do Livro, a gente trabalhou com uma sonoplastia de Villa Lobos e o professor Marco Camaroti disse que estava anacrônico, que não funcionava. E olhe que ouvir uma crítica, um comentário dele, não é fácil! Mas a gente sustentou, foi de muita coragem! Nós mantivemos, e não nos arrependemos.

FERNANDO O Marco Zero tem prática de oferecer oficina? ANA ELIZABETH Do grupo não, ainda não.

FERNANDO O grupo tem uma preocupação com registro dos processos de montagem, seja escrito, foto, vídeo? Vocês documentaram esses processos de montagem? ANA ELIZABETH No Livro a gente filmou, tem fitas e fitas do Livro de Fábulas, que a gente se filmava. Como era direção coletiva, a gente filmava e assistia depois.

FERNANDO Como é a relação do grupo com outros grupos, seja daqui de Recife ou de fora? vocês costumam criar espaços de troca, de articulação política? ANA ELIZABETH Temos a consciência de que todos temos que crescer juntos. Pra cena é importante que todos tenham espaço, que todos cresçam. Agora eu tenho muita vontade de compartilhar processo, sabe? A gente não teve essa experiência ainda. Pegar um grupo e construir em conjunto. Acho que até surgiu, né?

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ANA CAROLINA Sim. Com o Quadro de Cena. ANA ELIZABETH A gente teve até uma proposta do Quadro de Cena de montar um espetáculo, mas nós iríamos ficar mais na produção. Mas eu queria dividir a cena com outro grupo. Acho que é uma experiência legal. A gente tem um projeto que é trabalhar com dramaturgos convidados, quem sabe também um diretor convidado!

FERNANDO Pra gente finalizar, qual é hoje a bola da vez do Marco Zero? Qual é a grande questão do grupo hoje? ANA ELIZABETH Eu acho que é o envolvimento com o GRITE. A gente está com uma articulação política pra ver se consegue mudar a cena na cidade. Independente dos nossos processos, das nossas montagens, essa é uma questão mais urgente, porque é a partir daí que nós vamos conquistar o edital único que a gente tanto quer para as artes cênicas, um FUNCULTURA próprio para as artes cênicas, como o audiovisual já conseguiu. É a partir daí que a gente vai conquistar espaços públicos, 154

ocupação.




Grupo Teatral Quadro de Cena Recife (PE) Entrevista realizada no Teatro Hermilo Borba Filho, Recife, em 22 de maio de 2009. 157

FERNANDO yamamoto Como surgiu o Quadro de Cena? SAMUEL O grupo nasceu num curso ministrado por mim, em 2003, que uma Companhia de Teatro, chamada Galharufas, realizava todo ano. A minha cadeira era Interpretação e Improvisação, e era aluno pra caramba, mais de cinquenta. Em 2004, depois que acabou o curso, os meninos remanescentes do curso, no caso Andreza, Telma, Milena, Lucas, Vicente e Beatriz, que entrou depois, me procuraram pedindo pra que eu realizasse um curso paralelo, com o intuito de formar um grupo de teatro, porque eles queriam muito dar continuidade ao processo.

FERNANDO Surge deles então? SAMUEL É. Eles me procuraram e achei super positivo. Além de eles serem jovens, na época eram todos de menores. Eu não entrei diretamente no grupo, mas eu dei continuidade ao curso, porque eu participava de outro grupo chamado Arte


em Foco. Quando o Arte em Foco acabou, eu humildemente pedi pra participar do grupo. A gente continuou com o curso, voltado mais para pesquisa em cima de Grotowski, Artaud, Brecht, Viola Spolin e Michael Chekhov, e montamos um espetáculo chamado O Alto da Barca dos Mundos, que nunca veio à cena. Depois a gente registrou o grupo na FETEAPE, a Federação de Teatro de Pernambuco, e o SESC me convidou pra dirigir o Poetas da Terra. Eu disse que eu queria fazer com o meu grupo, e foi o que aconteceu. A gente fez um trabalho chamado Um sorriso sobre o oceano com poemas vestidos de amor, que foi um espetáculo em cima das poesias de Lourdes Sarmento. E a partir daí a gente foi convidado por um poeta chamado Alexandre Santos para o lançamento de um livro patrocinado pela CHESF. Era um projeto multimídia, que envolvia música, vídeo e teatro, e a gente realizou esse trabalho. Depois realizamos um espetáculo chamado G’DAUSBBAH, que é um anagrama em cima de Bush e Bagdá. Então o grupo permanece fazendo esses trabalhos, sendo convidado para trabalhar em cima de poesias, tanto pelo SESC, quanto pelos poetas, e o grupo ficou conhecido por ser convidado dos poetas. Em 2006, eu tinha um projeto paralelo, 158

que se tornou um projeto do grupo, chamado O amor do galo pela galinha d’água. Eu falei pro grupo que tinha essa projeto havia dez anos e, mesmo sabendo que todo o elenco desse espetáculos já estava convidado, definido, o grupo se prontificou em entrar nessa, basicamente como produtor, mas eu acabei trazendo pro elenco Andreza Nóbrega e Vanessa Lorena. Elas participaram desse processo de montagem e a gente assumiu a produção. Foi muito positivo, o espetáculo ganhou prêmio, mas foi um grande aprendizado pra o grupo, porque eles entraram pela primeira vez num processo de produção, um processo direto com atores, vamos dizer assim, que já tinham uma bagagem grande, para administrar um projeto grande. O amor do galo era um projeto grande, num total de vinte e cinco pessoas, e o grupo era ainda jovem, mas conseguiu administrar isso da melhor forma possível e a gente conseguiu fazer um trabalho interessante. ANDREZA A gente teve a participação não só na questão de produção executiva, de compra de materiais, mas a gente fazia desde a camareira, bilheteira, contra-regra-


gem, então a gente assumiu realmente todas as funções fora da cena. Isso foi muito rico pro crescimento do grupo, nesse processo de colaboração. SAMUEL Quando acabou o projeto, a gente ainda fez uma temporada de O amor do galo sem dinheiro nenhum, mas depois a gente viu que realmente não dava. Nos reunimos e dissemos que iríamos focar no grupo, éramos atores, queríamos atuar. ANDREZA E paralelamente ao trabalho do Galo a gente não deixou o grupo só centrado na questão da produção, Samuel estava escrevendo já um texto, a gente vinha se movendo nas pesquisas. A gente tinha muito certo o que a gente queria enquanto grupo.

FERNANDO Esse trabalho de treinamento continuava em paralelo? ANDREZA Sim. Samuel sempre ministra cursos de teatro na cidade. Ele ia abrir uma nova turma, e lançamos pra ele que queríamos estar juntos com ele nesse momento, pra estar dialogando com outras pessoas que estão vindo fazer o curso, porque a gente sentia essa necessidade de não ficarmos fechados. Nesse momento que Samuel ministrou esse curso a gente vira o Quadro de Cena. A gente assumiu a produção do curso, começou a se organizar na questão pedagógica, de plano, de como melhorar o curso em si.

FERNANDO Vocês funcionavam como monitores? Alguns ministravam juntos? ANDREZA Em alguns momentos funcionávamos como monitores, na questão de aquecimento, mas a gente também ficava como aluno mesmo. As pessoas sabiam que a gente era o grupo Quadro de Cena, mas a gente colocava que a gente estava participando igualmente a eles. SAMUEL Bom, aí veio O auto da barca, quase ao mesmo tempo do processo de Historinhas de Dentro, o espetáculo atual do grupo, que a gente já vinha ensaiando, pesquisando, fazendo leitura. A gente fez uma leitura dramatizada num projeto da

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Prefeitura chamado Lendo Pernambuco. A gente decidiu não fazer uma leitura simplesmente pra ganhar algum dinheiro, mas trabalhar um processo. ANDREZA Samuel estava escrevendo esse texto na época de O amor do galo pela galinha d’água, ele trouxe pra gente como uma proposta, e a gente realmente aceitou, gostou muito da ideia, e acolheu essa proposta como um projeto a ser realizado pelo grupo. Então aí a gente pensou em como iria fazer, a questão do financiamento, até porque a gente queria montar um núcleo de profissionais que viessem colaborar com a nossa formação. Não seria montar um espetáculo por montar, mas sim investir na formação, na minha, na de Samuel enquanto dramaturgo, diretor, atores, etc. Aí vimos o projeto Lendo Pernambuco, mandamos o projeto, e fomos aceitos. Escolhemos um hospital como nosso ambiente, que era uma forma de levar o texto pra esse público, de ter um retorno, de estar em contato direto com essas pessoas de que tratava a nossa temática. Foi um momento de troca, de laboratório. Paralelamente a isso, a gente sempre vinha buscando formas de manter um caixa do grupo, pra esses traba160

lhos que viriam, pra investir na formação do grupo. Começamos fazendo bazar, uma coisa inusitada, todo mundo pegava suas roupinhas e ia pra Jordão Baixo vender. SAMUEL É questão mesmo da persistência, de guerrilha, mesmo. Parece uma coisa amadora vender roupa velha, vender sapatinho pra montar espetáculo, mas se na época era o que tinha, foi o que a gente jogou, a gente não se arrepende em nenhum momento de ter feito isso pra fazer um caixa do grupo, pra poder pagar um diretor musical, um preparador vocal, um preparador circense. ANDREZA E se fez teatro nessas vendas! Uns ficavam na função de vender, e outros ficavam naquele tumulto ali, olhando as roupas, e as pessoas passavam, chamava a atenção! A gente conseguiu uma graninha legal, pra gente foi extremamente significativo. Com esse dinheiro dessa leitura a gente juntou 50% pra pagar nosso diretor musical, tanto é que a nossa primeira leitura no hospital já foi com indicações das músicas do espetáculo, a gente já pôde experimentar a questão sonora dentro do hospital, que foi extremamente importante naquele momento pra gente.


FERNANDO Qual a rotina do grupo? Como é que o grupo hoje funciona em termos de divisões de funções? THOMÁS AQUINO Minha função é coordenar a sala, o espaço onde a gente trabalha, onde temos as reuniões. Ver pagamento de aluguel, ver o que falta, o que está danificado, reformas. Tudo que é relacionado ao espaço, sou eu que coordeno. MARCELLA MALHEIROS A gente sentiu a necessidade uma pessoa pra fazer projeto, junto com Eduardo, e eu fiquei com a parte de assessoria de imprensa. ANDREZA Eu sou a tesoureira do grupo. É uma função delicada, no sentido que tem que estar muito organizado, pra própria administração do grupo. É uma função que quase todo mundo no grupo não quer, eu fui meio que obrigada a assumir, mas é uma área que eu gosto muito. Essas funções dentro do grupo, são pra dar diretrizes e organizar aquele segmento.

FERNANDO Todos tem funções artísticas e administrativas? SAMUEL Sim. Eu sou o presidente, e a minha função é, além de gerenciar tudo isso, fiscalizar, eu tenho como objetivo também lançar propostas, fico encarregado desse planejamento. ANDREZA A gente tem outra função, que são as responsáveis pelo material cênico, que é a função de Milena Marques e Beatriz de Lacerda, que são as outras duas integrantes do grupo.

FERNANDO O grupo consegue manter alguns dos seus integrantes? SAMUEL Bem, eu vivo essencialmente de teatro, mas não só do grupo. Eu dou aula, oficina.

FERNANDO Existe esse desejo, essa perspectiva? Ou a ideia é que se mantenha fazendo outros trabalhos? ANDREZA Existe a ideia de que a gente seja um grupo que possa se auto sustentar.

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THOMÁS Eu acredito bastante nisso. Eu tranquei a faculdade, não tenho trabalho nenhum, estou acreditando muito no grupo. ANDREZA Uma coisa que eu sempre falo: somos um grupo essencialmente jovem, então vinte um, vinte e dois, Samuel é o “idoso”, é o mais velho do grupo. Então temos uma dificuldade que é desprender um tempo da universidade, que é uma questão que a gente reconhece como importante pra formação. Temos três jornalistas em formação, uma publicitária e uma arte-educadora, então a gente tem um potencial muito grande dentro do grupo, e isso dialoga fortemente com o grupo. Futuramente queremos desempenhar essas funções dentro do grupo. Mas os horários variam, então temos que vir no fim de semana, ter aquele jogo de cintura. Hoje ninguém realmente se mantem do grupo, e tem pessoas, como Samuel, que se mantêm do teatro, já tem uma experiência. Há uma preocupação de estarmos sempre ligados com as questões fora do grupo. Por exemplo, eu fui convidada pra fazer um espetáculo fora do grupo, aí eu conversei com o grupo antes de aceitar a proposta, coloquei os 162

aspectos importantes, porque fui convidada pro outro grupo da cidade, que também tem um projeto de pesquisa e daria pra gente dialogar. Então, estou fazendo o trabalho com eles, mas sempre colocamos o grupo como prioridade.

FERNANDO Quanto tempo de processo vocês levam pra montar um espetáculo? SAMUEL Em geral, nove meses. Eu acho que esse novo vai durar um ano, porque são várias linguagens se encontrando ou desencontrando. Teatro medieval, através dos autos, a Comédia Dellarte, o circo, o cavalo-marinho, o clown. A gente vai trabalhar com todas essas linguagens dentro do material que a gente já pratica, então vai ser um espetáculo que vai precisar desse tempo grande. Em dois ou três meses não se monta.

FERNANDO E aí com é que é, uma vez estreado, a vida do espetáculo? Existe a perspectiva de repertório? Como é que vocês têm conseguido fazer?


ANDREZA A gente compreende que Historinhas de Dentro é o nosso primeiro espetáculo profissional, porque os outros foram espetáculos de poesias. O amor do galo pela galinha d’água foi um espetáculo em que a gente trabalhou com a função de produção executiva, O Auto da Barca dos Mundos era um espetáculo de conclusão de curso, não era do grupo.

FERNANDO Então Historinhas é o primeiro espetáculo. Ele já está há quanto tempo? ANDREZA Vai fazer um ano em julho.

FERNANDO E vocês conseguiram fazer temporada pro espetáculo? SAMUEL A gente fez uma temporada no Apolo de um mês, dois dias por semana. Depois fizemos no SESC Casa Amarela, também de um mês também, e agora fizemos no Teatro Barreto nossa terceira temporada de um mês e meio. ANDREZA Porque tem um problema muito grande na questão de pauta. E a gente ganhou as pautas do Barreto Jr. de um mês e meio. Então fizemos três, no Teatro Apolo, no Teatro Capiba e no Teatro Barreto Jr..

FERNANDO Vocês tem intenção de manter o Historinhas em repertório, ter longa vida. ANDREZA Temos sim. Aí como eu te falei, um projeto que a gente tem agora é fazer o espetáculo, num projeto com as escolas. Essas temporadas trouxeram não só um amadurecimento artístico, mas enquanto produção também, articulação na divulgação, no foco do público. A gente costuma ter reuniões de avaliação, tanto nas questões artísticas, quanto nas questões de produção. E aí a gente entende o quanto é fundamental essa experiência, sendo um grupo que já está há quatro anos tentando se consolidar. SAMUEL E com um espaço “próprio”, que é alugado. Mas a gente tem um espaço pra ensaiar! Então, é um grupo jovem que já tem essa visão artística, de produção, é muito bacana. Eu fico muito feliz vendo a Fiandeiros hoje tendo um espaço, espero

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que o Magiluth tenha o seu espaço, o Marco Zero, que você vai ver o quanto vai engrandecer o trabalho na cidade, no estado, porque os grupos terão o espaço pra experimentar.

FERNANDO Durante os processos de criação de espetáculo, vocês já pensam em algum tipo de espaço? Têm alguma preferência? ANDREZA Não, a gente não pensa num espaço específico. É mais o que o espetáculo está pedindo. Muitas vezes rola algumas adaptações, como em Historinhas, que montamos pra palco italiano, mas já fizemos em semi-arenas, ou em escolas. Só que não é que a gente fica adaptando pra qualquer espaço alternativo, não é isso. Mas a gente compreende que tem certas escolas que, mesmo que a gente estimule a ida dessas pessoas para o teatro, elas não vão, e a gente quer dialogar com os alunos daquela realidade. E é até uma forma de experimentarmos esse novo espaço, essa questão da adaptação. 164

SAMUEL Eu, como um diretor, vejo muito a ideia de fugir dos teatros convencionais, e prefiro casarões, praças, ruas, circos. Não quero me prender muito a isso, quero experimentar outras possibilidades.

FERNANDO Como é a relação de oficina? O Quadro de Cena tem uma prática de oferecer oficina, enquanto grupo? ANDREZA Não. A única pessoa que ministra oficinas no grupo é Samuel. Nesse próximo projeto que a gente vai fazer com as escolas, tem a ideia de eu ministrar oficinas de capacitação com os professores. A gente ainda não se sente tão capacitado.

FERNANDO Nos processos de vocês, existe a preocupação com o registro? SAMUEL Como a gente trabalha sempre com Viola Spolin, quando acaba o ensaio, a gente sempre faz um grande círculo e conversa. Mas não tem nada registrado num diário.


ANDREZA No Auto da Barca dos Mundos a gente fez. Em Historinhas de Dentro havia a proposta, inclusive eu levei um caderninho modelo, que todos deveriam fazer, mas que não conseguimos ainda, não teve uma adesão realmente dos integrantes.

FERNANDO E como é que é a relação do grupo com outros grupos? Vocês costumam buscar fomentar espaços de troca? SAMUEL Hoje a gente está mais numa relação política. Como os grupos são novos nos seus processos e criações, ainda não se tem essa prática do intercâmbio. Mas tem uma coisa que estou achando interessante nessa cidade é a mobilização política através do GRITE. Essa coisa da consciência política, estar atento as leis de incentivo, ao calendário cultural da cidade, o secretário e gestor de cultura, o porquê disso. Esse encontro político do GRITE vai ser uma coisa que vai solidificar o trabalho de grupo na cidade, até porque está fazendo um grande diferencial na cidade, seja por seus trabalhos em cena, seja por essa iniciativa de se transformar em movimento. Se a gente consegue elaborar aqui na cidade um fomento pra grupo, não vão ganhar só os grupos.

FERNANDO Pra concluir, qual que é a bola da vez pro Quadro de Cena? Qual que é o assunto, a questão que está no topo da pauta para o grupo? SAMUEL Ainda o Historinhas de Dentro, é um espetáculo, por ser o primeiro, todo dia falamos nele, é produção, é projeto. É um projeto que precisa ser melhorado, então nosso designer gráfico está fazendo um puta projeto, pra entregar pros festivais. Essa é uma pauta muito, muito, muito recorrente. ANDREZA Eu acho que é um turbilhão de sonhos, de perspectivas, de realizações. É um espaço maior, é um espaço cultural que a gente queira, são tantas coisas, é o GRITE, é a pesquisa, se capacitar sempre mais. Acho que são vários pontos que estão sempre permeando o grupo.

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TEA Caruaru (PE) Entrevista realizada na sede do grupo, Caruaru, em 17 de maio de 2009. 167

FERNANDO YAMAMOTO Pra começar, me contem como essa quase cinquentenária história começou. ARARY MARROCOS Bem, existia na cidade o Teatro de Amadores de Caruaru, antes do TEA. Então aconteceu um festival, o Festival Universitário de Teatro, e que produziu algumas oficinas e debates. Esse grupo nunca havia participado disso, somente espetáculos, a gente lia o texto, decorava e ia pro palco fazer, sabe? Aí a gente viu o quanto a gente estava atrasado em relação aos grupos que vieram pra cá. Tinha um professor da universidade, Joel Pontes, que trouxe esse festival pra Caruaru, e era muito amigo nosso. Então eu disse: “Joel, o que a gente faz? A gente precisa fazer oficinas, precisa de debates, precisa dessas coisas também, a gente não sabe de nada!” Ele se propôs então a nos ajudar e coordenar umas oficinas. A gente não tinha dinheiro, não tinha nada, então ele disse pra gente arranjar a hospedagem, a alimentação e o transporte com a Prefeitura, que ele traria os professores da universidade.


A gente não iria pagar nada! Durante dois anos os professores vinham aos finais de semana, uns durante três meses, outros dois meses, e tinha aula de maquiagem, cenografia, uma noção de tudo. Uns dois anos depois a gente começou a caminhar sozinho, continuou com essas oficinas, repassando tudo que a gente aprendeu, e as oficinas continuam até hoje, sempre com professores voluntários. Quarenta e seis anos depois foi que a gente conseguiu apoio, pela a primeira vez a gente está conseguindo, para a oficina desse ano. Quando Joel Pontes se propôs a fazer esse trabalho de oficinas, nós nos reunimos com o pessoal do Teatro de Amadores, que Argemiro também fazia parte, mas eles não quiseram, disseram que já sabiam demais, não queriam esse negócio de curso, só queriam fazer espetáculos mesmo. Então fundamos um grupo pra que aquilo acontecesse. É aí que surgiu o TEA.

FERNANDO Isso foi em que ano? ARARY Em 1962. A gente fundou o TEA especificamente pra isso, pra promover, ensinar, aprender. O teatro tomou um rumo diferente, estava tudo no outro rumo. 168

De 1962 pra cá a gente começou, sempre quando há oportunidade, a trazer alguma pessoa com mais experiência, um professor, um diretor. Eu acho que o que renova a cena em Caruaru é justamente isso. Depois nós criamos o FETEAG, o nosso festival. FABIO PASCOAL Foi em 1981. ARARY Quem ia ao teatro era um público mais adulto. O estudante, o jovem, não ia, ao contrário do que é hoje. Então a gente pensava: “como é que a gente vai levar esse estudante para o teatro?” Então Fábio e Chiquinho, um dos integrantes do grupo, resolveram fazer o FETEAG, que era um trabalho nas escolas, tipo um festival competitivo, com três ou quatro espetáculos, fraquinho! Mas depois foi melhorando, melhorando muito, aumentando e chegou a participar mais de vinte colégios, não foi Fabio? Em 2002 a gente abriu pra o estado todo. Teve um ano que teve mais de oitenta grupos escritos. A gente passou a ter comissão julgadora, curador, aquele negócio todo. A gente conseguiu também que a Secretaria de Educação pagasse uma


gratificação para monitores desenvolverem os trabalhos nas escolas. Foi uma parceria muito boa, que durou uns quatro anos. Mas Fábio questionava muito, porque tinha monitor que recebia o dinheiro, ensaiava duas vezes por semana e fazia o espetáculo, somente pra ganhar o dinheiro. Quando abrimos pra o estado, tudo modificou. A ajuda de custo passou a ser dada a quem fosse selecionado. Lógico que, à medida que isso foi acontecendo, as pessoas que faziam essas coisas só pra ganhar dinheiro se afastaram. Caiu muito a participação de cada grupo, até hoje eles questionam muito esse problema da seleção, sugeriram até em fazer duas premiações no festival, uma para os grupos do Estado, outras para os grupos de Caruaru, pra que Caruaru possa participar novamente. A gente não sabe como vai resolver isso. FABIO A situação da gente hoje é: Caruaru fazer um festival, selecionar um adulto e um infantil, e desses irem direto para o FETEAG, e os outros concorrerem direto pela seleção. Mas os daqui a gente garante a presença, porque a gente tem uma parceria com o festival infantil de Recife, de Pedro Portugal. Então, o melhor adulto e o melhor infantil já estão classificados, e os outros podem se inscrever e participar normalmente. Então seria uma oportunidade de fomentar o movimento teatral na cidade, mas a grande dificuldade que a gente tinha no FETEAG antigamente, é que era muito difícil controlar o trabalho dos monitores nas escolas. Quer dizer, você começava a fazer um trabalho que não era seu. ARARY De fiscalização, né? FABIO Uma época a gente tinha, nos meses de março, abril e maio, oficinas de capacitação. Então os monitores de todas as cidades se inscreviam e vinham pra cá no final de semana, a gente dava alojamento, alimentação, e eles ficavam durante um final de semana fazendo trabalho de formação, capacitação. Então primeiro eles faziam a capacitação, no outro módulo eles apresentavam um projeto, e a gente ia discutir esse projetos que eles estavam a fim de desenvolver.

FERNANDO Então vocês, de alguma forma, acompanhavam esse processo todo.

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FABIO É. A gente passou a fazer isso sem ir às escolas, mas fazendo um ponto de encontro aqui. Então vinha gente de Triunfo, Serra Talhada, Limoeiro, e aqui se encontrava e se discutia. Discutia-se o que estava se fazendo em cada canto.

FERNANDO E vocês não fazem mais isso? FABIO A gente não conseguiu manter, não teve mais verba pra isso.

FERNANDO Vocês conseguiram isso por quanto tempo? FABIO Por cinco anos. A gente conseguiu fazer isso durante esse período porque a prefeitura bancava essa parte de logística e o SESC tinha alojamento. A prefeitura fazia a parte contratar o monitor e dava a alimentação. A gente usava o espaço, trabalhava no espaço, fazia a programação. Era um espaço muito interessante de troca de experiências entre todo mundo.

FERNANDO Além do resultado direto do Festival, tinha o desdobramento das relações. 170

FABIO Exatamente. Depois a gente aumentou isso, fazendo um módulo em Caruaru, um no sertão, e outro no litoral.

FERNANDO É uma experiência realmente fantástica de formação. Como está o TEA hoje? Como é que é a rotina do grupo, como ele funciona? FABIO Zé Carlos e Charles mantêm, ainda hoje, as oficinas no TEA, durante o ano todo, sempre aos sábados, com o resultado com uma montagem de espetáculo. Então sempre foi essa a história do TEA. Durante o ano todo, aos sábados e com montagem. ARARY A gente começava junto com o ano letivo, até o fim do ano. FABIO Em 2004, eu convidei um diretor de Recife, Jorge Clésio, pra montar Romeu e Julieta. Isso foi uma grande virada, essa coisa da percepção do trabalho do ator. Depois, em 2005, Os Anjos da Noite, com Zé Carlos, em 2008 montou Palácio dos Urubus


com Jô, que também era um oficineiro do grupo. Eu me afastei do grupo por um tempo e, quando voltei, em 2004, eu peguei esses meninos mais antigos, e a gente criou um núcleo, dentro do próprio TEA, um espaço aberto, com o objetivo de pesquisar o trabalho do ator, o trabalho de dramaturgia, tentar entender o que é isso, se encontrando mais vezes, pelos menos três vezes por semana. A gente começou a trabalhar com um grupo muito grande, mas depois foi reduzindo, até terminar só duas meninas. O grupo continuou montando os espetáculos maiores, das oficinas, e o núcleo continuou pesquisando. São duas coisas que caminham juntas e são abertas.

FERNANDO Claramente é um grupo que tem um caráter pedagógico muito forte, desde a fundação já tem essa ideia. Como é que o grupo funciona em termos administrativos? Quem que faz os projetos, quais as fontes de financiamento, como é que funciona a estrutura administrativa? FABIO A gente nunca teve, na realidade, um suporte financeiro. ARARY Só durante um ano, não me lembro qual foi a época, o diretor da Fundação de Cultura, Haroldo, passou pagar um salário, mas quando ele saiu e o outro presidente assumiu, a primeira coisa que fizeram foi cortar! Quer dizer, a gente teve foi seis, oito meses, e foi a única ajuda. FABIO Esse ano o grupo aprovou uma exposição, aprovou as oficinas, aprovou o Ponto de Cultura, e foi considerado “Patrimônio Vivo”. A ideia é que a gente consiga se profissionalizar.

FERNANDO Vocês têm essa perspectiva? FABIO Desde que eu fui pra São Paulo, penso realmente em transformar isso numa escola. Eu já fui com essa ideia, fui lá fazer um curso de produção e a minha ideia era essa: criar uma escola permanente e que a gente conseguisse se profissionalizar. A minha ideia no núcleo foi justamente isso, cada um ficar responsável por uma parte. Fulano fica responsável pelas despesas, receita, fazer o caixa do grupo, fulano elabo-

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rar os projetos, fulano cuidar da mídia. Então a gente dividiu tarefas, pra que cada um começasse a ficar responsável por uma parte disso. E a gente está funcionando assim, né? A gente está buscando essa fonte de recurso que não seja só via lei de incentivo. Por exemplo, a gente fez agora um projeto pra TV Asa Branca que a gente fez um caixa, então você tem dinheiro pra conseguir produzir. O Ponto de Cultura, que vai vir agora, quem vai administrar é o núcleo. O TEA administrou as oficinas, eu elaborei essa coisa da grade, do conteúdo programático, e o núcleo vai tomar conta do Ponto de Cultura.

FERNANDO Você pode definir melhor o que é o núcleo? FABIO O núcleo, vamos dizer assim, é um grupo dentro do grupo, dentro do TEA.

FERNANDO E aí quando vocês falam em profissionalização, vocês estão falando em sustentabilidade também? 172

ARARY Justamente. Porque precisa, né? Se a gente ficar muito dependente de editais, a gente fica muito vulnerável. Porque em ano que não se consegue financiamento, como esse, a gente não consegue se manter.

FERNANDO Então as montagens dos espetáculos de vocês, elas estão ligadas às oficinas ou não necessariamente? ARARY Sempre estão, menos A Metaformose, que foi o núcleo.

FERNANDO Em geral, qual é o ponto de partida dos processos de criação? Surge de uma pesquisa de texto? FABIO Do TEA é sempre partindo de um texto, sempre. No núcleo não, é a partir de fragmentos que a gente vai construindo no próprio exercício de sala de trabalho.

FERNANDO E no TEA, essa escolha do texto se dá a partir de que critério? FABIO Do diretor.


FERNANDO São diretores convidados? ARARY Não, geralmente é José Carlos que tem dirigido, e indica o texto.

FERNANDO E qual é a média de duração dos processos de montagem? ARARY Nove, dez meses. A do núcleo demorou mais, não? FABIO É, durou um ano e pouco de trabalho.

FERNANDO Existe perspectiva de alimentação do núcleo a partir de quem vai surgindo no TEA? Isso acontece? FABIO Como também do núcleo passar a ministrar oficinas no TEA. Por exemplo, Pedro, que faz parte do núcleo, agora ele vai ministrar uma oficina de iluminação no TEA. ARARY Juliana, que faz parte do núcleo, vai também fazer um trabalho lá.

FERNANDO E como é que se dá a vida dos espetáculos? Vocês conseguem fazer temporada? Vocês conseguem manter ele em repertório por algum tempo? Como é que é isso? FABIO O TEA tem mantido os espetáculos, tem conseguido fazer temporada geralmente de um mês, e manter pelo menos um ano o espetáculo vivo, esporadicamente em algum festival. O núcleo está desde 2006 com o espetáculo rodando, e a ideia é que a gente mantenha em repertório.

FERNANDO E nessas temporadas vocês usam o espaço de vocês, ou utilizam outros espaços? ARARY A gente sempre usa o Teatro João Lira. FABIO As montagens do TEA sempre são fora daqui, porque geralmente tem muita gente envolvida, e o nosso teatro é muito pequeno.

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FERNANDO E vocês têm com algum tipo de espaço cênico preferencial? Em geral é frontal, italiano? FABIO Geralmente o TEA sim. ARARY Mas a gente já fez de rua. A gente já montou um espetáculo de palco pra fazer temporada, depois é que a gente adapta pra rua, pras escolas. FABIO No núcleo não, a gente vai pesquisar espaço.

FERNANDO Em que grau a preocupação com o público interfere no processo criativo do grupo? Até porque eu imagino que seja diferente, pensar em núcleo e em TEA, né? FABIO O TEA tem muito essa preocupação com o público. ARARY Agora, o núcleo não tem. O TEA, além de ter as oficinas, de querer formar atores, técnicos, a gente tem a intenção de formar um público em Caruaru. Então a 174

gente tem a preocupação de levar uma coisa que não seja muito difícil para atingir o público, e que também não seja besteira, né? FABIO Também é a nossa preocupação no núcleo, mesmo que seja um grupo menor, mas que seja um grupo que exercite a reflexão, só que com um caráter mais experimental.

FERNANDO Como é que se dá o registro dos processos do TEA? FABIO Tanto o núcleo quanto o TEA têm diários, tanto coletivo quanto individuais. ARARY Além de filmagens, fotografias, registro em jornais, em revistas, a gente tem um acervo muito bom do grupo.

FERNANDO Então isso é uma preocupação de vocês? Mesmo o pessoal que está fazendo a oficina tem essa prática?


ARARY É. Antigamente a gente não tinha muito cuidado, mas durante o processo de Romeu, a gente trouxe a Rose Mary, da UFPE, que veio dar oficina de voz, e ela disse “Gravem tudo, registrem a oficina, tudo, entrada e saída de ator, conversa, tudo!”. Aí, desde 2004 a gente passou a ter mais cuidado também com as oficinas, com tudo, porque a gente só cuidava mesmo quando fazia espetáculo.

FERNANDO E vocês tem alguma perspectiva de sistematização desse material para publicação? FABIO Tem a ideia dos cinquenta anos, e ser editado um livro. ARARY Leidson Ferraz está fazendo um trabalho muito importante, que está servindo de suporte para o que a gente quer fazer. FABIO Mas eu acho que a grande dificuldade que a gente ainda tem na cidade é a qualificação. Isso é uma dificuldade muito grande. Todo mundo ainda é muito autodidata, então a formação é uma coisa que me preocupa muito. As pessoas fazem uma oficina de um mês e já querem dirigir, sem saber nem pra onde vai. Está ficando cheio dessas coisas assim.

FERNANDO E o FETEAG tem cumprido algum papel nesse sentido? FABIO Sim, em todos os espetáculos do FETEAG, a gente tem uma avaliação técnica, depois que faz o espetáculo. ARARY Terminou o espetáculo, há sempre um debate com o grupo. FABIO Além de palestras durante o festival, sobre dramaturgia, trabalho de ator, e as oficinas. Muitas pessoas já deram oficina. Mas eu acho que basicamente o que diferencia o trabalho do Núcleo com o trabalho do TEA, é que o núcleo está muito mais preocupado com o trabalho do ator e o TEA está preocupado com a formação do homem.

FERNANDO Como se dá a relação de vocês com outros grupos, daqui e de fora?

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FABIO Na realidade o movimento de teatro de grupo de Caruaru é muito pequeno. Hoje está reduzido a nós, o Arte-em-Cena e o Parangolé, que na realidade não é um grupo, ela tem uma produtora. ARARY Ela é uma produtora, e não um grupo. Ela vai montar um espetáculo, convida vários atores, monta o espetáculo e acabou. E tem o Feira, que tem uma história complicada, porque é um grupo de uma referência muito forte, mas quando Vital foi embora o Feira ficou sem quem tomasse a frente, quem escrevesse ou dirigisse. Então ficou num processo de remontagem. Há trinta anos que estão montando os mesmo espetáculos.

FERNANDO Pelo que vejo, a cena tem principalmente vocês e o Arteem-Cena. Como é que se dá essa relação, há algum tipo de troca? FABIO Não. É muito pouca a relação de troca, eu às vezes eu fico tentando. Por exemplo, agora eu conversando com Severino pra ver se a gente desenvolve o cine176

clube, mas a troca se dá exatamente no Festival, porque a gente traz as pessoas de lá para ministrar cursos, mas é só durante esse período. Com essa coisa do Ponto de Cultura, eu quero ver se eu me aproximo mais do LUME, de vocês.

FERNANDO Com certeza! Obrigado pela generosidade em me receber, e parabéns pela história de resistência e perseverança que vocês nos apresentam!




Grupo Totem Recife (PE) Entrevista realizada no Paço Alfândega, Recife, em 18 de maio de 2009. 179

FERNANDO Fred, me conta a história do Totem. FRED Eu tinha um grupo que chamava-se Trem-Fantasma, na década de 1980. Era um grupo bem experimental, só ocupávamos os espaços chamados alternativos, nunca fomos pra um palco italiano. Paralelo a isso eu mantinha um grupo de teatro no Colégio Estadual de Olinda e, quando eu saí da escola, boa parte das pessoas que estavam trabalhando comigo se juntaram aos remanescentes do Trem Fantasma, que tinha se desagregado, e da junção desses dois grupos nasceu o Totem.

FERNANDO Em que ano isso? FRED Agosto de 1988. As coisas mais experimentais do Trem Fantasma que marcaram o Totem. Desde então muita gente entrou e saiu, tem gente que entrou em 1988, tem gente que entrou em 1993, e a última renovação foi em 2003, e essas pessoas estão até hoje.


FERNANDO Como o Totem funciona hoje? Tanto em termos artísticos como administrativos, como é que as funções são divididas? Que tipo de rotina vocês conseguem manter dentro do grupo? FRED Administrativamente a gente não consegue ser uma empresa. Ninguém do grupo tem o tino de manter o grupo funcionando como uma empresa, com CNPJ, essas coisas. Nós temos uma grande dificuldade, sempre tivemos, e isso emperra muito o grupo de crescer. De vez em quando a gente se alia a alguém que trabalha com produção, que topa fazer junto conosco, mas a gente mesmo não consegue gerir esse negócio. Mas conseguimos nos ver três vezes por semana mas, como estamos sem espaço, a gente só está ensaiando pra valer nos sábados, nos outros dois dias é estudo de texto, discussão. A estrutura do grupo é que todo mundo colabora, então, por exemplo, a menina que hoje está trabalhando com a gente com luz, ela vai a todos os encontros, não é aquele iluminador convidado, ela tem que compreender como é que a gente pensa, com é que a gente visualiza as cenas, como é que a coisa 180

vai crescendo, coletivamente. Não posso dizer que a direção chega a ser coletiva, porque na hora de tomar algumas decisões eu tomo, mas acho que acato mais de 80% de sugestões que eles trazem. Então, por exemplo, na quinta-feira é o dia de definir o que a gente vai fazer no sábado. É tudo muito coletivo.

FERNANDO E artisticamente, como vocês se dividem? Você dirige e os outros são atores? FRED Eu sempre fico direção e Lau, minha mulher, como tem formação em dança, eu deixo também muito espaço para as opiniões dela, principalmente porque a gente também trabalha nessa fronteira entre teatro e dança. Então Lau participa muito, praticamente co-dirige, mas não quer dizer que as pessoas do grupo também não deem suas opiniões, suas sugestões. Somos mais, digamos assim, coordenadores do que diretores, essa palavra talvez nem caiba.

FERNANDO E quais são as principais fontes de financiamento do grupo hoje? De onde que entra dinheiro?


FRED Quando a gente está com espetáculo pronto, entra dinheiro de bilheteria ou quando a gente consegue vender pra algum festival. Edital a gente nunca conseguiu aprovar.

FERNANDO Falando um pouco agora sobre os processos criativos de vocês. Em geral, qual é o ponto de partida pra um processo criativo de um trabalho? De onde surge a primeira faísca? FRED Rapaz, isso varia, dependendo do espetáculo. Eu vou falar do mais recente, e talvez a gente pense mais pro passado. Na década de 1980, quando eu conheci o trabalho do Bukowski, sempre alimentei uma vontade de montar alguma coisa a partir do universo dele, que eu acho um escritor muito legal. Coincidentemente a gente, hoje, tem no Totem uma legião de fãs de Bukowski. Então a vontade de fazer, nesse caso, veio porque a maioria do grupo, quem não gostava, agora está gostando, mas muita gente já conhecia e já gostava. Era um mini fã clube, entendeu? Então a ideia não é adaptar contos, nem pegar poemas e fazer performances a partir de poemas, é se apropriar do universo, e como a maioria das cenas que a gente faz é muito mais corporal do que com texto pronunciado, então vamos pesquisar como passar isso pro corpo de uma maneira simbólica, usando o que a gente sempre faz muito, que é a questão dos símbolos visuais, das artes visuais dentro do trabalho. Caosmopolita era uma inquietação acerca da agonia que é morar numa cidade grande. A partir de reflexões e discussões, conversas sobre a questão cosmopolitana, aí que veio a ideia do “caosmopolitano” que terminou em Caosmopolita, a partir das nossas próprias agonias em relação a estar morando numa cidade assim.

FERNANDO Também foi um processo que levou bastante tempo? FRED Levou um tempo grande. Tem um espetáculo mais atrás, Atravessando o tempo, que falava da questão dos povos indígenas, a chegada dos europeus e os dias de hoje. Eu trabalho na secretaria de educação, e muitas vezes fui convidado a participar de capacitações para professores indígenas. E eu pensava: “o que é que eu vou dizer pra esse povo? O que eu, professor de arte, vou trabalhar com professores indígenas?

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Não tem como!” Algumas vezes que eu estive com eles era muito mais sentar, conversar e tentar entender como eles pensavam, o que é que eles queriam, o que é que eles não queriam. Comecei a perceber que existe na prática uma organização muito grande entre eles. Esse pessoal hoje está vivo porque são muito resistentes, eles são muito aguerridos. E eu tinha lido um livro que um índio escreveu, que ele falava do tempo do sol e da lua, o tempo da perseguição e da correria e o tempo da resistência, que é o tempo contemporâneo. Quando a gente estava no processo de formatação, laboratórios e discussões, eu descobri um livro de uma professora daqui da universidade, Maria Idalina, que se chama A guerra dos Bárbaros. Ela conta que, depois que os holandeses foram expulsos de Pernambuco, os portugueses decidiram expandir pra o interior, e foram sessenta anos de guerra pra dizimar os povos indígenas, e daí nasceu a cultura do gado, de vaqueiro, a cultura do couro, já que em cada terra que ia sendo tomada na bala, eles iam ocupando com gado. Esse livro aí foi decisivo pra gente montar o trabalho, que não tinha texto pronunciados em português, eram textos onomatopeicos, línguas inventadas, a gente se baseou no iate, que é dos 182

Fulni-ô, alguma coisa de tupi, e criávamos frases, escrevíamos as histórias em português, transcrevíamos pra essa língua inventada e o espetáculo é amarrado nesses sons onomatopeicos em cima de línguas indígenas.

FERNANDO Esses processos de montagem, em geral, levam quanto tempo? FRED Rapaz, no mínimo um ano de trabalho. Atravessando o tempo chegamos até a estrear num momento em que achávamos que não estava pronto, mas tinha um compromisso de participar de uma mostra em Olinda, e a gente mostrou e parou de novo. Passamos ainda muitos meses, praticamente um ano ensaiando novamente. E teve outros mais atrás: Ânima, que foi a partir do universo feminino, também demorou muitos mais de um ano pra ficar pronto, porque a gente teve que estudar muito sobre deusas e mitologias de todos os tempos que você possa imaginar. A gente nunca partiu de texto dramático, vem dessas muitas leituras, daí vêm as ideias. Acho que a motivações são diferentes, embora sejam parecidas na maneira de buscar.


FERNANDO Em geral, quanto tempo vocês mantêm esses espetáculos vivos no repertório? FRED Isso varia. O Ita, que foi o que fez o Totem aparecer pra cidade, atravessou a década de 1990, chegou a ir pra fora do estado e a última apresentação dele, se não me engano, foi em 2003 em João Pessoa. Ele passou por modificações, naturalmente, acho que a gente teve três ou quatro Itas diferentes. Ele, Artaud! a gente passou quatro anos. Caosmopolita já vai em quatro anos. Depende muito, mas o Ita foi o que teve a maior duração.

FERNANDO Fala um pouquinho dessa relação do Totem com o espaço cênico, já que desde o Trem Fantasma vocês têm essa busca por espaços alternativos. É uma premissa do grupo? FRED Na maioria das vezes. Por exemplo, Ita foi apresentado em sala de aula, pátio de escolas, bares, circo, e fez em espaço de palco italiano. Então ele se moldava muito. Já o Artaud, ele só foi pra palco italiano. Anima foi pensado também pra espaço alternativo. Já Caosmopolita foi totalmente pensado pra palco italiano. Agora a gente está discutindo sobre o Bukowski, e quer que ele seja adaptável, tanto pra uma coisa como pra outra. Os espetáculos são muito maleáveis.

FERNANDO É interessante o seu relato, porque eu tenho visto, pela experiência até dos Clowns, que em geral a regra é os grupos que montam pra ocupar um espaço convencional e depois eles adaptam pra espaços alternativos. Vocês parecem que trilham o caminho oposto, né? Acho que é mais fácil até porque você já pensa o espaço de uma forma múltipla, não amarrada. Esse caráter relativo ao espaço, você acredita que seja mais por opção estética ou pela flexibilidade, pra gerar mais oportunidades pra o espetáculo? FRED Eu acho que faz parte do próprio espírito do grupo. A gente não pensa em vender mais, porque a gente nunca consegue vender mesmo! (risos)

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FERNANDO Parece-me que outro traço do Totem seja a questão do fragmento na abordagem dramatúrgica. Fala um pouco mais sobre isso. FRED Ele, Artaud! a gente montou pedaços dos textos dele que falavam da morte. Vira a página, pedaços de texto que falavam do teatro, exclusivamente do teatro. Vira a página, pedaços que falavam da loucura, reflexões sobre a vida e sobre a arte. E assim foi, então a gente tinha fragmentos que foram retirados de textos dele. E cada membro do grupo ia montar as suas performances individuais em cada página dessa. Nara Sales tinha um texto que falava sobre espiral. Jaílson usava uma corda, por causa de uma pesquisa que a gente tinha feito, que a corda é um dos símbolos que liga a terra ao céu, essas coisas bem mitológicas, bem simbólicas. Nesse tempo tinha umas oito pessoas, aí numa determinada apresentação duas não podiam ir. A gente reorganizava todo o roteiro a partir da ausência ou não de pessoas. Então é fragmento em diversos sentidos, mas cada quadro, cada cena, ela se encerra, ela se 184

completa, se basta.

FERNANDO E vocês sempre fazem esse processo a partir de exercícios individuais? FRED Sempre. O pensamento é que as performances individuais, depois de somadas, vão dar a performance coletiva. Embora as performances individuais possam ser transformados em duplas, em trabalhos coletivos.

FERNANDO Em que grau se dá a preocupação com o público quando vocês estão em processo de montagem? FRED Acho que no processo de construção do trabalho não se tem isso não. Agora, muitas vezes, quando a cena tá pronta, nos perguntamos: “Será que as pessoas vão entender isso?”. Isso pode levar a uma modificação ou não, entende?


FERNANDO E como é que é o trabalho de oficinas de vocês? Você falou até que quando vocês tinha um espaço, vocês mantiveram com oficina um tempo. Vocês tem uma prática constante de ministrar oficina? FRED Atualmente não tem sido constante, mas sempre acontece.

FERNANDO E aí são ligadas a própria prática do grupo? Como é que funciona? FRED Quando a gente dá oficinas assumindo enquanto Totem, as oficinas são baseadas nas práticas dos nossos ensaios, nos laboratórios que nós construímos para trabalhar, totalmente. Agora tem coisas que acontecem que a gente não precisa dizer que é o Totem que está fazendo. Por exemplo, eu trabalho na Escola de Arte João Pernambuco, então eu monto espetáculo lá, e lá trabalha comigo Tatiana, que é do Totem, então muito espetáculos que a gente faz na João Pernambuco é claramente dentro do caminho do Totem. Então são coisas do Totem que eu aplico na escola, sem precisar dizer que é Totem.

FERNANDO E quando são oficinas que são oferecidas pelo Totem? Em geral, são só você quem ministra, ou são mais integrantes em conjunto, ou ainda ministram as oficinas separadamente? FRED A maioria das que já fiz, foram sempre em parceria com Lau. Mas já tivemos oficinas de Lau com Aracelly, de Inaê e Aracelly, de Inaê e Gabi. As pessoas que já estão há muito tempo no grupo também tem feito.

FERNANDO E nesses mais de vinte anos de história, vocês costumam ter uma preocupação com o registro desses processos? FRED A gente tem muita foto, muita, acho que não existiu nenhum trabalho que não tivesse sido fotografado. Agora, os registros em vídeo, não temos com qualidade. Tem registro, mas não com aquela qualidade. De Caosmopolita pra trás a gente tem muita coisa escrita. Eu, Artaud! também e muitas fitas.

FERNANDO Dos processos inclusive?

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FRED Pouca coisa de processo, mais de espetáculo. De coisas escritas, a maioria que tem é minha, muita coisa que eu já escrevi, que publiquei pela ABRACE, tem a tese do Alexandre Nunes, que hoje trabalha na Universidade de Goiás, que. Ele trabalhou no Totem durante muito tempo, por uns seis ou sete anos. Então na tese de mestrado dele, ele fala sobre Ator e Alma, e tem um capítulo inteiro sobre o Totem. Na tese de doutorado de Nara Sales, ela é professora da UFAL, e também trabalhou um tempão com a gente, ela falou de alguns grupos do Brasil que trabalharam a partir das ideias de Antoin Artaud, e também tem um capítulo sobre o Totem. Tem outra menina, Márcia Virgínia, cujo doutorado foi em cima da dança e o sagrado ou a cura pela dança, e também cita o Totem. E vários outros, tem muita pesquisa que cita e investiga o Totem.

FERNANDO E como é que é a relação do Totem com outro grupos, tanto aqui de Recife, quanto de fora? Vocês mantêm uma relação sistemática com outros grupos? 186

FRED Eu acho que não é muito intensa não, sabe? Principalmente de fora. A gente ter ido o ano passado pro NORTEA foi importante, pra conhecer outros grupos, conhecer pessoas, se aproximar mais. Mas aqui mesmo, talvez pela estética do grupo, a gente é um pouco deslocado. E isso não impede da gente ter relações boas com muita gente, embora eu ache que são poucos grupos que se aproximam artisticamente ou esteticamente. Mas a gente mantém boas relações com muita gente.

FERNANDO Você falou que vocês se sentem um pouco isolados, em termos estéticos. Você acha que isso está mudando? Você acha que está se formando uma cena voltada mais pra questão da performance, do teatro-dança, aqui em Pernambuco? FRED Eu acho que sim. Começou a mudar de uns anos pra cá, com a chegada de gente mais nova. Mas Recife é engraçado. Por exemplo, em música aqui tem muita gente conservadora, mas tem muita gente que faz música, digamos, experimental, e convivem! A dança talvez seja a linguagem mais avançada pra cidade. As pessoas de


dança não têm barreiras. O pessoal que faz artes visuais também tem muita experimentação, muita coisa nova que você vai achar em São Paulo, ou em Nova Iorque Só que o pessoal de teatro parece que ainda é o que tem mais medo de ousar, entende? Pernambuco também tem outra coisa muito interessante que é tudo em cima de homenagens póstumas, a Capiba, a Luiz Gonzaga, muito em cima de saudosismo e de homenagens. Mas a coisa está mudando. No GRITE tem muita gente com a cabeça aberta, no Colaborativo, e tem outros grupos que também estão vislumbrando outras coisas. Tem mudado, com certeza tem mudado.

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03 Piauí



Cartografia da cena local Maneco Nascimento Ator, radialista e Jornalista

Francisco Pellé Ator, diretor e fundador do Grupo Harém

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Desde as primeiras manifestações lítero-musicais, os dramas de quintais e de cunho familiar ao entretenimento e interrelação cultural, o movimento teatral local não foge à regra, ganha espaço e rabisca as primeiras linhas limítrofes para o exercício das cênicas no Piauí. Já em fins do século XIX, o intelectual Jônathas Batista, entre outros, desempenhava o papel de autor de dramas e ou textos para a prática da sua geração de fazedores de teatro amador. Em período ao que o aspirante ao palco era um “al faz tudo”, ele e seus colegas de brinquedos cênicos dividia-se à cena em que atuava, dirigia e incrementava a hora de ser estrela. Falar da cena teatral piauiense será se reportar às memórias das primeiras iniciativas, para não desmerecer o princípio histórico de construção do teatro local manifestado. Desde Jônathas Batista, autor de textos dramáticos no século XIX, até as mais elementares traduções de linguagem que reforçam os desenhos dramatúrgicos atuais, muito se alimentou a práxis que possibilita refletir o espelho cênico consumido hoje.


Dos primeiros exercícios atraídos à atenção de Batista e dos artistas em seu entorno, deu-se um salto para o final da década de 1950, em que nova efervescência trazia nomes do nosso memorial do teatro, na pessoa de Gomes Campos, Santana e Silva, Tarciso Prado, Ana Maria Rêgo (atriz de teatro e rádionovela) e um nobre senhor vindo das bandas do Ceará, que completou a geração de jovens praticadores da cena na cidade, Ary Sherlock. Esse grupo de atores e atriz, acompanhado de muitos outros simpatizantes, deixou seu grifo nos tablados e palcos improvisados porque a cena não pára. Onde houver um coro, corifeu ou persona, ali está instalado o teatro. Santana e Silva, disse, certa vez, em depoimento ao Documentário Theatro 4 de Setembro - 100 anos, no ano de 1989, que as dificuldades, debeladas, os impingia a fazerem teatro em fundo de quintal. E Santana foi um dos memoráveis diretores de sua geração. O Professor e Filósofo, Gomes Campos, autor de textos dramáticos e cômicos, de uma sutileza política reinventada em sua dramaturgia, tem responsabilidade como 192

representante do fomento do Teatro do Estudante do Brasil - seção Piauí. Com seu alunado do Diocesano, a partir de pesquisas sobre a literatura de cordel, construiu o maravilhoso O Auto do Lampião no Além, que representou o Piauí, em Festival de Teatro do Estudante, no Rio de Janeiro, idealizado pelo papa do Teatro do Estudante do Brasil, Paschoal Carlos Magno. Os atores estudantes piauienses, com O Auto do Lampião no Além foram escolhidos como o melhor espetáculo do Festival, naquele ano de 1968. O saudoso Professor Gomes Campos, até seu desaparecimento ao hall das grandes celebridades do teatro brasileiro, viveu rodeado de jovens estudantes atores, sempre estimulando o fazer teatral, desde os dramas profanos, sacros e filosóficos. Soma em seu histórico o fato da peça O Auto do Lampião no Além encenada pelo Grupo Harém de Teatro, na década de 1990, conseguir o Prêmio do Mérito Lusófono, concedido pela Embaixada de Portugal. A montagem concorreu com vários países, no mundo, falantes da língua portuguesa.


Ana Maria Rêgo, a dama dos primeiros passos, foi parceira de Ary Sherlock, tanto nas rádionovelas, como nos palcos. A pioneira em romper o preconceito, de forma mais contundente, e correr o risco de ser atriz. Não se arrependeu e ganhou homenagem justa das novas gerações de artistas. Entrou para o interesse do olhar nacional ao ter atribuído o seu nome ao Concurso Nacional de Monólogos “Ana Maria Rêgo”, que em 2012, a Fundação Municipal de Cultura Monsenhor Chaves, através da Prefeitura de Teresina, lança a 19ª. Edição. Santana e Silva também deixou seu legado de diretor rígido, mas eficaz na suas encenações. Ary Sherlock teria sido responsável pela realização de um dos grandes sucessos de público, no Theatro 4 de Setembro, A Tragédia do Gólgota, em que as filas dobravam a esquina em concorrência para ver o espetáculo. Tarciso Prado, o eterno amante do teatro, continua em nosso meio, emprestando seu calor e disposição para discutir, apreciar e fazer lobby ao velho e bom teatro piauiense. Na pele da personagem Cipriano, de filme homônimo, do cineasta piauiense Douglas Machado, rompeu as fronteiras domésticas e possibilitou ao mundo uma interpretação concentrada e comovente de um homem em cortejo ao próprio enterro. Na segunda metade da década de 1970, o Governo do Estado do Piauí, à época comandado por Alberto Silva, implantou na cidade o CEPI - Centro Integrado de Artes. Daquele laboratório de arte e cultura que reunia diretores, músicos, atores e coralistas surgiram resultados surpreendentes. Na área de teatro, Murilo Ekhardt, vindo de Brasília, possibilitou uma montagem de Auto do Lampião no Além. Um assomo de moderno e contraventor do tradicional revisitado. Também surgiram ali encenações de O Circo 5 e O Cavalinho Azul. A geração que hoje completa seus mais de trinta anos de atuação, passou por ali. Fábio Costa, Zé Afonso de A. Lima, Aci Campelo, Ritinha Cavalcante, Lorena Campelo, Assai Campelo, entre outros. A atriz Lari Sales, um dos + expoentes nomes da dramaturgia local encenada, chegou depois e assinou o livro de pautas ao renovado teatro amador, com fervor de profissionalização conquistada.

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Entre os grupos de teatro continuado que permanecem na cena estão, Grupo Raízes de Teatro, Grupo de Teatro Pesquisa, Grupo Harém de Teatro. Também representam-se ao ritual de passagem pelas cenas e beberam na fonte de espelho dos pioneiros da geração de 1950 e 1960, as associações Grumuchoa de Teatro, Grupo Teste, Cia. de Dramas e Comédias,Grupo Pavão, Biboca de Teatroe, os + contemporâneos, Oficinão de Teatro, Corpos de Teatro, Os Shakespirados, Oficina de Teatro Procópio Ferreira, Tribo de Teatro, Grupo Proposta de Teatro (Timon/Teresina), Grupo Humanitas de Teatro(Timon/Teresina), A&C Produções Artísticas e Grupo As Petúnias de Teatro. A grande novidade compondo o exercício da produção cênica é a Escola Técnica de Teatro Professor Gomes Campos. Projeto defendido com muita convicção por Aci Campelo, diretor da Escola até 2011, tem dado um fôlego teórico prático ao exercer teatral dos iniciados na cena piauiense. Os Grandes Festivais que a cidade produziu com repercussão nacional e internacio194

nal e que orgulham o movimento consolidado de teatro amador do Piauí são da pecha da Fundação Municipal de Cultura Monsenhor Chaves/Prefeitura de Teresina e do Grupo Harém de Teatro, respectivamente. A FMC realizará, em 2012, o 19º. Festival Nacional de Monólogos “Ana Maria Rêgo”; o 6º. Festival de Teatro de Teresina e o 14º. Concurso de Performance. O Festival de Monólogos que começou em cima de um caminhão, ganhou vida longa e quente, a perder de vista. O Grupo Harém de Teatro, por sua vez, com 26 anos de atuação, surgiu em 1985 com a Semana Chico Pereira e de lá para cá tem movimentado a cena local com repercussão nacional e internacional. Uma particularidade desse Grupo é a montagem da peça Raimunda Pinto, Sim Senhor!, de Francisco Pereira da Silva, autor piauiense, natural de Campo Maior, que construiu carreira e respeito da profissão de dramaturgo e crítico de teatro, na cidade do Rio de Janeiro.


Raimunda Pinto, Sim Senhor!, tornou-se um dos espetáculos mais premiados e ocupantes de palcos de outras capitais brasileiras. Sempre com recepção muita boa do público que a viu. Sobreviveu por dezenove anos em cartaz. Depois de Raimunda o Grupo montou a A Casa de Bernarda Alba, de Garcia Lorca, dramaturgo granadino. A montagem dramática deu uma quebra na permanência saudável hareniana de fazer rir às pessoas. No final de 2011, o Grupo montou a primeira peça autoral, Macacos me Mordam - A Comédia. O maior mérito do Grupo Harém de Teatro foi idealizar e trazer à cena local o Festival de Teatro da Língua Portuguesa - FESTLUSO. Atraindo a atenção e participação de países lusófonos, já possibilitou a vinda ao Piauí de espetáculos de Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Portugal (1ª. Edição); Angola, Moçambique, Cabo Verde e Portugal (2ª. Edição). Ainda está por abraçar Timor Leste em futuro próximo. Na 3ª Edição do FESTLUSO, o Grupo Harém de Teatro facilitou a vinda de Guiné Bissau e da Galícia que também participa do tronco dessa lusofonia. E para a 4ª. Edição o FESTLUSO receberá, nesse 2012, novas fronteiras de línguas, falas e oralidades do experimento da lusofonia. Um dos experimentados amantes do teatro local, Ací Campelo, também dramaturgo e diretor de cena, lançou História do Teatro Piauiense, no ano de 2010, em que garimpa elementos da história em construção, a vida de teatro dos primeiros amadores. O autor possibilita fatos e dados pitorescos e revela o esforço laborado de quem trazia à luz os passos iniciáticos às cenas locais. O livro ganhou vida de edição graças ao Incentivo Cultural da Lei A. Tito Filho/Prefeitura de Teresina e Faculdade Santo Agostinho. Dessas peças do histórico prospectadas na vida longa ao palco vivo da cidade, o livro também apresenta o teatro do século XIX e as referências do nascedouro das primeiras Casas de espetáculos, o Teatro Nacional de Santa Teresa, o primeiro Teatro do Piauí, às pesquisas levantadas pelo autor, construído em 1858; o Teatro 06 de Julho, plantado numa residência no ano de 1875 e, naturalmente, o Theatro 4 de Setembro que começa sua gestação em uma reunião realizada entre as damas da

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sociedade provincial de 1889 e o Presidente da Província, encontro ocorrido no dia 4 de setembro daquele ano. “Com o fechamento do Teatro Nacional de Santa Teresa, as representações teatrais em Teresina voltam às casas e quintais particulares (...)” (CAMPELO, Ací. História do Teatro Piauiense. Teresina- PI. Halley, 2010, 276p.). O Teatro Concórdia, segundo o autor, surge em 13 de junho de 1879 e com seu fechamento em 1890, teatro, palestras literárias e outros eventos oficiais ou particulares passam a ter sede no Palacete da Assembléia Provincial. A histórica ida da comissão de senhoras da sociedade de Teresina ao Palácio do Governo, solicitar ao Presidente da Província, Teófilo Fernandes dos Santos, a construção de um novo e profissional Espaço para receber as companhias nacionais e estrangeiras e acolher, também, os grupos e agremiações responsáveis pela vida útil e constante que o movimento cunhou como legado aos dias atuais é o que planta respostas à nossa memória absorvida. 196

A Casa, batizada com a data da visita cultural ao Presidente da Província, com pé direito definido também ao movimento cênico atual, o Theatro 4 de Setembro, foi entregue ao governador Coriolano de Carvalho e Silva, em 21 de abril de 1894, pelo comerciante e responsável pela construção da obra arquitetônica, Manuel Raimundo da Paz, nomeado seu primeiro Diretor. É nessa emblemática Casa de espetáculos que a efervescência cultural das cênicas se sedimenta e ganha o corpus do teatro hoje representativo da cidade e do Estado. Desde a iniciativa febril dos primeiros amadores, do ainda século XIX, incorporadores da mimeses de atuação para palcos e cenas, nosso teatro faz-se vivo. Na História do Teatro Piauiense (Idem) se tem lampejos dos grupos teatrais piauienses de 1900 a 1930, o vazio dos anos 30 e 40, o recomeço da década de 50, o Grupo de Teatro Experimental - TEEX, o Teatro Estudantil Teresinense - TESTE, o Grupo de Espetáculos do CEPI, a criação da Federação de Teatro Amador do Piauí - FETAPI, o Grupo de Teatro Pesquisa - GRUTEPE, o Grupo Raizes de Teatro,


os Festivais de Teatro, Síntese Histórica dos Grupos de Teatro de Teresina e o Teatro nos Municípios para fecho da colcha de retalhos dessa dinâmica teatral de história experiênciada. A Cidade cresceu, o movimento teatral do Estado e da Capital também. As artes cênicas de um modo geral ganharam fôlego de profissionalismo e força de representação. E, naturalmente, ganham também um grande estímulo através das Leis de incentivo cultural. A municipal, Lei A. Tito Filho; a estadual, Sistema Estadual de Incentivo à Cultura - SIEC; a lei Federal e os projetos de fomento e circulação da cultura cênica, através do Ministério da Cultura/FUNARTE. Aos que nos antecederam, lembramos com louvor e às novas gerações que tomaram os tablados, com muita convicção, repetimos: Evoé, novos artistas! Estes que reinventam, a cada momento, a cartografia da cena local!

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Grupo Harém Teresina (PI) Entrevista realizada no Espaço Trilhos, sede do grupo, Teresina, em 01 de maio de 2009. 199

FERNANDO YAMAMOTO Falem como se deu a criação do grupo. FRANCISCO DE CASTRO Ele foi fundado em 1985, com a Semana Chico Pereira. Teve um grande festival de teatro que teve essa mostra, em homenagem ao Chico Pereira, que é um dramaturgo piauiense e, a partir daí foram montados dois espetáculos. MOISÉS CHAVES Raimunda Jovita na roleta da vida e O trágico destino de duas Raimundas ou os dois amores na vida de Lampião antes de Maria Bonita e só agora revelados, um dirigido pelo José da Providência e outro pelo Arimatan Martins. Depois a gente resolveu juntar os dois espetáculos em um só. A gente fez a estreia aqui, depois na Paraíba, São Paulo e Paraná.

FERNANDO Então era uma produção, um espetáculo ligado a um evento, que depois se transforma em grupo. Como se dá a rotina de trabalho do grupo, tanto do trabalho administrativo, quanto do artístico?


CASTRO O grupo funciona o dia todo. Pela manhã, nós temos uma equipe que trabalha aqui no Ponto de Cultura, que é coordenado pelo Moisés, junto com a Eva e a Letícia. Na parte da tarde fica o Marcelo, na coordenação do Ponto, e os outros artistas integrantes do grupo vão se aproximando no turno da tarde e noite. Cada um tem uma responsabilidade. Se está acontecendo um espetáculo, um fica na bilheteria, outro faz o borderô, todos revezam em todas as funções. A parte burocrática do grupo é feita por mim: documentação, arquivo, correspondência. O Airton é o presidente, o Pellé é o tesoureiro e eu sou o secretário. Então, eu mexo com a documentação, o Pellé mexe com a parte financeira e o Airton é quem faz toda questão de produção gera.

FERNANDO Existem integrantes exclusivamente administrativos ou todos têm funções administrativas e artísticas? CASTRO Todos tem função administrativa e artística, a não ser a Eva, que é a funcionária do Ponto, e faz a parte só de serviços, mas ela não é integrante do grupo. 200

MOISÉS Em relação à parte artística, o Arimatan é o nosso diretor, ele que dirigiu todos os espetáculos até agora. A gente tem uma reunião semanal às segundas-feiras. O Arimatan conduz essa parte artística e os meninos vão fazendo essa parte de produção, captação de recursos para o Ponto e para o grupo.

FERNANDO Falem um pouquinho dessas reuniões de segunda-feira. MOISÉS A gente costuma dizer que é a segunda de primeira. Nós nos encontramos toda segunda-feira, tanto a parte administrativa, quanto os atores, o grupo todo, mas isso não impede que convidados sejam bem-vindos nessas reuniões. Nessas reuniões nós discutimos, conversamos sobre o que está sendo produzido, o que vai se produzir e, em casos mais sérios, a gente marca reuniões extraordinárias pra podermos conversar sobre isso.

FERNANDO O grupo tem integrantes que vivem do grupo? Como é que se dá esse sustento em relação aos grupos e seus integrantes?


MOISÉS A maioria dos meninos têm uma outra fonte de renda, com exceção de mim e do Marcelo, que vivemos exclusivamente do salário que é pago pelo grupo, além dos cachês que entram com as vendas de espetáculos. CASTRO O cachê de espetáculo é dividido em partes iguais, é cooperativo. Todo elenco e parte técnica recebem o mesmo valor. MOISÉS Talvez seja isso que nos mantenha tão unidos, é uma divisão igualitária. Não tem a estrela que vai ganhar isso e o contra-regra vai ganhar isso. Tudo é igual.

FERNANDO Quais são as principais fontes de financiamento do grupo? PELLÉ As principais fontes são convênios, principalmente com o Governo do Estado. A gente aproveita a realização de eventos e embute uma cota de taxas de administração para o grupo. Outra é o Ponto de Cultura, que permitiu que o grupo se qualificasse administrativamente, comprasse equipamentos, mantivesse um pequeno pessoal administrativo de limpeza e escritório, para que o grupo fique em funcionamento. Nas outras despesas, os integrantes do Harém ainda tem que manter o grupo. Como é um regime cooperativado, quem tem põe, quem não tem tira (risos) e aí algumas pessoas têm que fazer suas contribuições para manter o dia-a-dia do grupo. Tem também as bilheterias. Quando os espetáculos estão em cartaz a gente tira um percentual de 20% destinado para essa manutenção, administração e produção do grupo.

FERNANDO Em relação aos processos de criação dos espetáculos, qual o ponto de partida inicial pra vocês entrarem em uma montagem? PELLÉ Eles partem muito da cabeça do nosso diretor artístico. O diretor, dentro do grupo, ainda tem essa função de pensar os processos criativos e depois compartilhar com o grupo. Dentro das das nossas reuniões ele apresenta a ideia, que são aceitas ou não pelo coletivo. Já houve vários projetos criados que não foram concretizados, porque o grupo precisa se apropriar. Não é uma coisa imposta. Alguns atores já

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optaram por não participar de uma determinada montagem porque não tá querendo fazer aquilo naquele momento.

FERNANDO E qual é a duração em média dos processos de criação de vocês? PELLÉ De um a dois anos. São processos lentos, algumas vezes interrompidos, aí eles voltam e seguem. A gente sempre, desde a nossa formação, teve processos muito lentos de criação e maturação. MOISÉS É, mas acontece também, por exemplo, quando o grupo recebe o convite pra montagem de um espetáculo que já vem pago, como foi o caso do Pathelin, em nove dias a gente foi capaz de fazer. FERNANDO FREITAS Eu queria só acrescentar uma questão, que o grupo não nos sustenta. Cada um tem seu trabalho, cada um tem sua vivência e, às vezes, é isso que mais dificulta. Se nós tivéssemos uma produção, se o grupo fosse auto202

sustentável, se me pagassem um salário, a gente estava montando espetáculo a cada trimestre. Mas cada um tem seu trabalho, e isso é uma dificuldade e uma realidade de todos nós. CASTRO Por exemplo, nosso horário de ensaio é sempre às 22h, sem hora pra acabar. MOISÉS É a faculdade de um, o trabalho de outro. Mas uma coisa que eu acho interessante falar que, embora não tenha patrocínio, o grupo Harém é auto-sustentável, porque os espetáculos geram isso. Raimunda Pinto fez caixa pra esse grupo, já fez caixa pra ator que montou fábrica, tem casa. E isso é louvável.

FERNANDO Falando nisso, já que você tocou nessa questão do Raimunda Pinto, como é que se dá a vida útil dos espetáculos de vocês? Quanto tempo de temporada vocês conseguem fazer aqui? MOISÉS O Raimunda Pinto eu acho que é o grande divisor de águas da história do teatro piauiense. Foi o primeiro espetáculo a fazer longas temporadas em Teresina, foi


o primeiro espetáculo a construir filas enormes na porta do teatro pra que as pessoas assistissem, nós chegamos a fazer viagens por conta da bilheteria desse espetáculo. Então, assim, a gente já tentou matar, o Pellé já fez despedida desse espetáculo (risos), mas a gente sempre tem que retornar, porque o povo pede. Outros espetáculos vão aparecendo, mas a gente continua com o Raimunda Pinto. Quer dizer, o Harém também tem essa outra característica de manter o repertório.

FERNANDO Como é que é a questão da dramaturgia pra vocês? CASTRO Nós somos fiéis ao texto. Em todas as nossas montagens nós fomos muito fiéis. O único que nós fizemos uma adaptação foi o do Plínio Marcos que é o O Assassinato do anão do caralho grande. PELLÉ É sempre muito próximo porque a gente só monta o que a gente gosta, o que a gente acha, principalmente dentro da dramaturgia piauiense, que tenha um valor dramatúrgico, que tenham um recado pra ser dado, pra ser montado. Nós temos uma diversidade grande da dramaturgia piauiense, mas preferimos trabalhar com três: Chico Pereira, Gomes Campos e Benjamin Santos. Nós sempre fomos muito ligados à questão do texto, do autor, do que ele quer dizer, com o que o grupo quer dizer. Esses autores falam muito próximo do que a gente quer falar, do nosso subdesenvolvimento, da nossa precariedade, do nosso humor, da nossa picardia e esses textos refletem muito bem essa dramaturgia conceitual do grupo.

FERNANDO E como é que é a relação com o espaço cênico pra vocês? Em geral vocês buscam uma relação frontal, italiana? PELLÉ A gente sempre teve a ideia de montar espetáculo pra qualquer lugar. A não ser O Auto do Lampião, Por isso que ele não teve o mesmo sucesso que os outros. Ele foi pensado para a caixa cênica. Era um espetáculo que tinha que andar com quarenta feixes de talo de côco, quinhentas lâmpadas, um aparato técnico muito grande, não tinha condições de você fazer aqui, numa praça. Dentro dos nossos espetáculos ele foi o único que a gente decidiu que teria um palco específico.

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FERNANDO E nos outros casos vocês montam pensando em caber em qualquer lugar, ou pensam em algum espaço específico e depois adaptam? PELLÉ Não. Nós pensamos nas condições técnicas que os equipamentos do Estado nos oferecem, é a primeira coisa que a gente pensa. A gente tem que pensar numa produção que possa circular, não ficar parado. MOISÉS Nós já chegamos a fazer o Raimunda Pinto em cima de uma mesa de jantar em uma cidade no interior do Piauí. Não tinha teatro, não tinha palco, não tinha nada. Era uma grande mesa num sobrado de uma pessoa rica e nós fizemos em cima de uma mesa. PELLÉ Subiam a cada três atores porque não dava pra subir todos. (Risos)

FERNANDO Em que grau a preocupação com o público interfere nos processos criativos de vocês? 204

PELLÉ Um grau dez. Depois do surgimento do Harém houve uma nova maneira de fazer teatro no Piauí, um interesse maior de assistir e de fazer, então, a gente tem sempre aquela preocupação com o público, que também já fica ansioso pra ver o que o Harém está fazendo. MOISÉS Ao mesmo tempo, embora tenha essa preocupação com o público, a gente também tem um interesse de mostrar esse resgate do homem brasileiro na cena, para que essa plateia se perceba e se analise melhor.

FERNANDO Falem um pouquinho da prática de oficinas de vocês. MOISÉS O Arimatan desenvolve essa coisa da formação, e o grupo carrega e fortalece esse trabalho. Nós temos o Ponto de Cultura que, por uma “imposição benigna” do Pellé, nós nos preocupamos com essa coisa técnica que ninguém se preocupava antes. O Pellé tem esse rigor, tem essa preocupação, e isso tem modificado o pensamento pra que as pessoas tenham essa formação. No grupo nós temos professores de dança, temos instrutor de voz, eu sou iniciador teatral, quer dizer, o grupo, por


não haver escola de teatro há vinte e cinco anos, tem se preocupado em formar isso, em dar material. De três anos pra cá nós temos uma escola de teatro oficial. Isso não havia antes e o Harém contribuiu muito para que isso acontecesse. O mercado ficou tão abrangente que o Harém, talvez por isso, seja essa grande referência que é em Teresina, no Piauí.

FERNANDO O grupo tem preocupação com o registro das atividades? MOISÉS Sim, o Castro é o mais organizado, é a pessoa que lida com isso. CASTRO O grupo passou a ter essa organização de documentos depois que eu entrei. Tinha todo um material, mas ficava jogado na casa do Pellé, do Arimatan, do Moisés e eu fiz essa parte de juntar esse material.

FERNANDO E dos processos, vocês tem registro? PELLÉ Não, nós não temos isso sistematizado, temos pouca coisa. CASTRO A gente não tinha essa estrutura que temos hoje. PELLÉ É. A gente sempre foi um grupo muito precário. A gente veio ter essa estrutura depois do Ponto de Cultura. CASTRO A gente vem também se tornando referência de material de pesquisa também. Por exemplo, ninguém falava no Chico Pereira, há quinze ou vinte anos atrás. Hoje ele entra em questão de vestibular, se tornou tema de teses dos alunos em trabalhos finais da faculdade.

FERNANDO Vocês publicaram, inclusive, uma parte da obra dele, né? PELLÉ Publicamos. E isso vai contribuir pra que ele entre no vestibular do Piauí, foi muito importante na relação com a cidade.

FERNANDO Como é que é, já falando nisso, a relação com os outros grupos?

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PELLÉ A relação do Harém com os outros grupos é excelente, a relação dos outros grupos com o Harém é conflituosa! (risos) Alguns taxam o Harém de grupo oficial, de ser um grupo que sempre esteve aos olhos e à beira do poder. Então, tem sempre uma corrente de reação ao grupo. Por outro lado não, tanto que as amizades pessoais são as melhores, além do que os grandes, pequenos e médios atores da cidade já foram dirigidos pelo Arimatan Martins, que é diretor do grupo Harém. Claro que existem esses conflitos, mas eu acho que vai melhorar agora, pelo fato de a gente ter uma sede que possa abrir para os outros grupos. Nós somos o único grupo do Piauí que tem um espaço.

FERNANDO E como é que vocês vêem a articulação política entre os grupos? PELLÉ Nos últimos dez anos, quando nós nos afastamos dos movimentos de sindicato e federação, não há lideranças de políticas culturais na cidade. Nós estamos vivendo de velhas lideranças, porque não há uma formação de novas lideranças. Houve 206

um enfraquecimento da classe artística. MOISÉS Mas isso se deve também porque essas pessoas quiseram usar o sindicato e a federação como trampolim político. PELLÉ Trampolim político pra assumir cargos na secretaria de cultura, na direção do teatro e isso foi enfraquecendo politicamente o movimento. A relação política do grupo Harém é a melhor possível. A gente tem uma articulação política em todos os campos, sejam eles municipal, estadual ou federal, mas isso foi uma coisa construída ao longo dos anos em respeito à história do grupo e não por imposição, por querer defender partido a, b ou c. É claro que as nossas tendências de esquerda e revolucionárias foram sempre muito claras, mas nem por isso nos governos no Piauí de direita nós deixamos de sentar pra negociar, pra conversar, conseguir, barganhar alguma coisa. Então, a relação política do movimento não reflete a relação política do Harém. A gente conseguiu conquistar essa coisa de igualdade, pra chegar lá e dis-


cutir. Não estamos pedindo nada. Isso é obrigação. Não quer dar, não dá. O grupo vai fazer do mesmo jeito.

FERNANDO Tenho perguntas específicas sobre alguns aspectos do grupo que achei muito interessantes. Pra começar, eu queria que vocês contassem um pouquinho da história desse espaço, que é fantástico. PELLÉ Esse espaço é fruto de uma invasão que a gente fez pelo “Movimento dos Sem Teatro”. (risos) Logo depois que a gente foi expulso do Teatro 4 de Setembro onde nós “habitávamos”, achamos esse espaço aqui, ocioso, que tinha sido retomado no governo Hugo Napoleão, um governo que entrou no vácuo da história. Fizeram uma pequena reforma e deixaram abandonado, entregue à Fundação Nacional do Humor, que por sua vez nunca deu as patas, e a gente resolveu ocupar. Fomos lá, dissemos que iríamos ocupar, colocaram alguns empecilhos, mas falamos que iríamos ocupar e que depois discutiríamos. Isso tava tudo deteriorado, mas a gente ocupou e deu uma vida de novo a esse espaço. Quando a gente ganhou o Ponto de Cultura, também veio a liquidação da RFFSA, e esse patrimônio foi incorporado ao IPHAN. Nós procuramos o IPHAN com os dados do Ponto de Cultura, com aquele lance da indicação dos Pontos usarem espaços ociosos, e falamos que queríamos ocupar legalmente o espaço. Antes havia um impasse aqui, o estado dizia que o espaço era dele, a Fundação Nacional do Humor também, o espaço tinha muitos donos e a gente aqui dentro, calado. O IPHAN começou a ocupar e nos autorizou o uso do espaço.

FERNANDO E sobre o Festival Lusófono, o que vocês podem me falar? PELLÉ O festival é um resultado de um trabalho que a gente vinha desenvolvendo há mais de dez anos de intercâmbio com Portugal. Esse festival é um compromisso do Harém, de quando nós fomos ao Extremo, em Portugal, depois de todo um protocolo com a EXPO 98, com a Fundação Joaquim Nabuco, que cada pessoa que esteve lá iria voltar para seu país de origem e consolidar essa relação da lusofonia. O pessoal de Cabo Verde, por exemplo, fez uma oficina em co-produção, e a gente optou por fazer um festival.

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FERNANDO Essa montagem do Plínio foi uma dessas ações? PELLÉ Foi uma dessas ações dessa co-produção e a segunda ação foi o festival. Ele seria o coroamento de todo esse relacionamento de dez anos que vinha se desenvolvendo. Tanto que, no primeiro festival, nós tivemos a preocupação de trazer pra cá todas as pessoas que estiveram ligadas diretamente à essa ação em Portugal. Fizemos questão de trazê-los e fazer esse grande congraçamento, promover a discussão de linguagem e de política. Num segundo momento, o festival vai saindo um pouco desse ciclo de pessoas e vai procurar outros grupos, outras formas de produção, outras formas de ver e pensar o teatro de língua portuguesa.

FERNANDO E a rádio? É uma coisa extremamente peculiar, um grupo que tem uma rádio. PELLÉ A rádio também estava nesse espaço, nós recebemos um pacote. Ela era uma rádio de um locutor piauiense chamado Gilberto Melo, que era uma rádio vo208

lante, porque os órgãos sempre iam atrás dele pra fechar a rádio, aí ele saía e abria a rádio em outros lugares. Ele faleceu e a viúva ficou precisando de grana, então negociou com o estado a venda do equipamento e do acervo dele. Na verdade, o que a gente queria não era o equipamento, que era um negócio fuleira, o rico da rádio é o acervo do Gilberto Melo! (risos) Então a gente manteve a rádio porque, quando a gente chegou, ela já estava aqui dentro. Com o Ponto de Cultura a gente deu uma guaribada nela, compramos equipamento, antenas novas, melhoramos o acervo musical também. Ela não é uma rádio comercial, é uma rádio laboratório e um órgão de divulgação nosso e dos outros grupos. Colocamos boa música, a música popular do Piauí e do Brasil.

FERNANDO Pra fechar a entrevista, eu queria que vocês falassem um pouco sobre a questão de gênero, já que é uma peculiaridade desse grupo só ter homens. Como vocês veem isso? PELLÉ Isso é uma coisa que a gente vem discutindo mais recentemente. A gente nunca tinha chegado a esse conceito, mas que a gente viu, na realidade, que ele é um


grupo de gênero, que só tem homem, tem sua essência masculina. Isso não é proposital, mas foi construído ao longo dos anos. Ele não é fechado, não é que mulher não possa participar, que a gente não gosta que tenha atrizes. Não. Ele é um grupo de gênero muito preocupado com a alma feminina, porque a nossa dramaturgia está carregada desse sentimento feminino, do desejo de falar de mulheres, de mulheres fortes. A própria história da Raimunda Pinto e de outras mulheres que a gente trata nos nossos espetáculos.

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Grupo Raízes de Teatro Teresina (PI) Entrevista realizada na Escola de Teatro Gomes Campos, Teresina, em 02 de maio de 2009. 211

FERNANDO yamamoto Lorena, fala como surgiu do Raízes. LORENA Era um grupo de amigos que trabalhava com um carioca, Murilo Eckhardt, que foi chamado pelo Governo do Estado para trabalhar teatro, e Reginaldo Carvalho, para trabalhar música, num centro de estudos chamado CEPI, Centro de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares. Foi aí que a gente começou a fazer teatro mais profissionalmente, em 1975. Nós trabalhamos com eles até 1977, quando o CEPI foi extinto. Quando soube que Murilo ia embora, a gente teve a ideia de formar um grupo, senão a gente ia ficar perdido

FERNANDO Quantos ainda estão hoje? LORENA Eles se espalharam todos. Só eu fiquei da primeira formação. E por que Grupo Raízes? A ideia era trabalhar as coisas da terra. Em janeiro de 1977 estreamos um show lítero-musical, chamado Viagem, para trabalhar as músicas das pessoas que


faziam música dentro do grupo, poesia das pessoas que escreviam e outras músicas que a gente se identificasse. Daí nasceu o Grupo Raízes de Teatro. Logo em 1977 juntamos um monte de grupo para se registrar e criarmos a Federação.

FERNANDO Como é que é a rotina de trabalho do grupo hoje? LORENA Bom, na época era bem mais fácil, todo mundo adolescente, o trabalho era esse. Hoje é bem complicado porque todos têm outros afazeres. A pessoa que menos trabalha, trabalha muito. Então, como é muito difícil a gente se encontrar. Nós temos três espetáculos montados, e a gente se encontra mais para ensaiar para apresentações.

FERNANDO Como é a organização administrativa do grupo? Todo mundo divide as funções? LORENA Não. Fica a cargo, geralmente, de duas pessoas. Nós temos a coordenação geral e a tesouraria. A secretaria só é registrada em ata quando altamente necessário. 212

FERNANDO E como é que o grupo se divide em relação às funções artísticas? LORENA Nós temos três produtores. Se a gente tem uma apresentação, e um produtor está muito ocupado, o outro assume a produção junto com o elenco. Todo mundo ajuda também.

FERNANDO Então esses produtores não têm função artística no grupo? LORENA Não. Eles são, digamos, produtores oficiais de espetáculos, estão nos programas como produtores.

FERNANDO Quais são hoje as principais fontes de financiamento do grupo? LORENA É difícil a gente ter um incentivo do governo do estado ou da prefeitura. Federal também é difícil vir pra cá. E também como a gente, digamos, não tem uma capacidade técnica maior de projetar, isso também acarreta muito pra gente não


ganhar muito incentivo, tem gente mais capacitada que ganha mais. Hoje nós temos três espetáculos. Um foi montado pelo Prêmio Myriam Muniz, o infantil foi produzido com dinheiro da gente, e o adulto agora com dinheiro da Marina. A gente resolve investir no espetáculo e investe mesmo. A gente quer a volta, mas é difícil, quase nunca dá, é o puro prazer mesmo de ver aquele produto realizado.

FERNANDO Em geral, qual o ponto de partida dos processos de criação do grupo? LORENA A gente parte muito do tema, pela temática do texto. Todos se consultam sobre o que iremos fazer, aparece determinado texto, e a gente faz. Se um dia se eu tiver vontade de montar um monólogo, eu chamo a equipe para isso. Se alguém achar que está na hora de trabalharmos determinado tema dentro do grupo, a gente chega junto e vê. Agora estamos trabalhando um texto escrito por nós mesmos. É um infantil.

FERNANDO Escrito em sala, durante os ensaios? LORENA É. Exatamente. É que surge uma outra dificuldade, de se pagar os direitos autorais. A gente quer ver se sai alguma coisa do grupo.

FERNANDO E as direções, em geral, de quem são? LORENA Eu sempre digo que a direção é o mais difícil. Eu sou atriz, os anos passam, você vai acumulando coisas pra repassar e a gente sempre convidava alguma pessoa. A gente teve um diretor, mas ele foi cruelmente assassinado, e nós ficamos ao léu, as mães tiraram os filhos do grupo, não queriam mais os filhos envolvidos com teatro. éramos todos menores de idade, tinha gente com doze anos. O diretor era o mais velho, tinha vinte e dois anos. Eram dezoito crianças, ficaram quatro. O que é que a gente fazia? Era isso que a gente se perguntava. Um dia em casa, eu chorava muito, não tinha mais gente pra fazer teatro, não tinha texto, e aí um o Ací aparece, e disse que também escrevia pra teatro, que a peça dele tinha três personagens e que seu eu quisesse ele cortava um (risos). E foi aí que ele entrou. Aí eu disse que se a gen-

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te fosse interpretar, ele que ia dirigir, e ele se tornou dramaturgo e diretor ao mesmo tempo. Depois do Ací a gente convidou um diretor de fora, pra gente ter uma visão mais ampla, já que o grupo ainda não tinha confiança em cada um como diretor. Embora o Ací coordenasse, no fundo era a gente que se dirigia. Depois eu entrei como diretora também. Surgiu a necessidade de eu dirigir, fiz o primeiro, segundo, terceiro, e de vez em quando, pra gente sair dessa, a gente chama uma pessoa de fora, quando há verba. Inclusive o Arimatan já foi nosso diretor, o Wilson Costa também, Everaldo Vasconcelos, tivemos vários diretores e queremos que essas coisas surjam dentro do grupo também.

FERNANDO E como é que é, em geral, o tempo de processo de montagem de vocês? LORENA Quando a gente tem o patrocínio é muito rápido. Em dois ou três meses a gente conclui, porque você tem o tempo para aquilo e tem como se mobilizar, como produzir com mais rapidez. Quando não tem, levamos seis meses. Às vezes 214

passa de um ano para o outro, o dinheiro vem aos poucos, etc.

FERNANDO E como é a vida dos espetáculos? Vocês conseguem fazer temporada, manter em repertório por muito tempo? LORENA Conseguimos. Se nós quisermos voltar com um espetáculo que tem cinco anos, nós temos como fazer. Geralmente os espetáculos vão morrendo pela necessidade de um novo produto. Aqui a gente não tem temporada nem de uma semana, não segura. A gente tem temporada de dois, três dias. Aí você vai pra um teatro, no mês seguinte vai pra outro, depois vai pra outro, fica esperando ser aceito nos projetos de apresentações que as secretarias têm, e sustenta temporada assim. Os espetáculos duram três anos, por aí. O Chapeuzinho vermelho é de 2006, e a gente ainda quer que ele se apresente, porque se você tem dez apresentações, é difícil o espetáculo morrer em um ano. Isso prejudica muito porque a gente não consegue amadurecer o produto, sempre que a gente vai apresentar parece que está verde ainda. Quando a gente tem condições faz, pega um pique legal, mas aí um ator sai vem tudo de novo. É difícil você sustentar um elenco, principalmente quando a pessoa tem a necessi-


dade de trabalhar, ganhar seu dinheiro. Se a pessoa ela não tiver o pé firme pra dizer que quer teatro, ela se cansa e vai só trabalhar e estudar.

FERNANDO Você mesma, tem o Raízes e dá aula aqui na escola, né? LORENA É, sou professora também, é o jeito, mas tem gente que não tomou essa decisão. Agora eu quero abrir novamente uma oficina para o grupo, porque é onde a gente pesca um ou dois. A gente abre pra vinte, alguns vão saindo e ficam dois.

FERNANDO Como é que é a relação de espaço cênico pra vocês? Vocês têm uma predileção pra algum tipo de espaço? LORENA É mais italiano, mas a gente apresenta em espaços alternativos também.

FERNANDO Como é que você vê a influência do público nos processos de criação dos espetáculos? LORENA Já teve espetáculos que a gente fez modificações porque ouviu os comentários, procurou conversar com colegas que assistiram, saber o que estava atingindo ou não. A gente tem outros parceiros, eu não dirijo só o Raízes, e da mesma maneira que a gente assiste outro grupo e depois vai conversar pra dizer o que achou, a gente também chama essas pessoas pra conversarem com a gente.

FERNANDO Já que você tocou nesse assunto, eu queria saber como é a relação do Raízes com outros grupos da cidade. LORENA Eu acho uma relação bastante cordial e, de certa maneira, amigável. Há trocas, tanto de objetos, como de pessoas (risos). E de ideias também, claro.

FERNANDO Existe algum tipo de articulação política entre os grupos também? LORENA Olha, já existiu mais e nós estamos querendo reativar isso. A gente já teve uma federação articulada, grupos articulados politicamente, e a gente brigava, ia pra reuniões com secretários pra dizer o que queria e o que não estava legal, mas a gente tá perdendo um pouco disso. Há uma certa crise, os grupos estão mais fechados e a gente quer ativar isso novamente.

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Este livro foi composto em tipologia Garamond e Didot, em papel Polen Bold Natu 90 g/m2 e impresso na grĂĄfica ImpressĂŁo, Natal/RN. Tiragem: 600 exemplares.


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