ESPORTES
O TEMPO
PÁGINA A19
FOTOS CHARLES SILVA DUARTE SOBRE ACERVO DA PREFEITURA DE SÃO JOÃO NEPOMUCENO
BELO HORIZONTE • QUARTA-FEIRA • 15 DE FEVEREIRO DE 2006
A DERROCADA COM
LANÇA-PERFUME Botafoguense maldito se envereda pelas baladas nas noites cariocas e se vicia no éter até ser tomado pela loucura que o levaria à morte MAURÍCIO MIRANDA/PEDRO BLANK ENVIADOS ESPECIAIS
ARBACENA E SÃO JOÃO NEPOMUCENO – Heleno de Freitas se considerava um super-homem. Na sua cabeça, nada poderia lhe roubar as mulheres, o belo futebol, a fama, a fortuna e o glamour. Na cabeça alucinada do craque da estrela solitária, os anos de 1940 ficariam paralisados no tempo e a roda da história seria incapaz de macular seu corpo com as marcas indeléveis da velhice. Mas Heleno era feito do mesmo material que todos os homens. Para sobreviver às noitadas, aguentar as mulheres que batiam na sua porta e ser aceito na alta sociedade, Heleno se entregou ao vício. Tudo começou com o inocente lança-perfume, algo comum para época, porém, era o início da derrocada do botafoguense maldito. Nos bailes que frequentava no Rio de Janeiro, Heleno dançava no embalo de lança-perfume, cujo uso era liberado no Brasil e só viria a ser proibido em 1961, pelo presidente Jânio Quadros. Ídolo do
B
Botafogo, o atacante não fazia a menor questão de esconder que curtia a noite e aproveitava as baladas com suas bisnagas de 10 g, 30 g e 60 g de lança-perfume. “Na época, não tinha droga. Ele molhava a manga da camisa (com lançaperfume) e cheirava nas festas. Não existia maconha, cocaína e nada dessas drogas modernas. O vício dele era esse”, conta a sobrinha de Heleno, Helenize.
Nervos devorados Enquanto permaneceu no auge, balançando as redes com a mesma facilidade que trocava de terno, Heleno administrou o vício. No entanto, o artilheiro lentamente tinha seus nervos devorados pela sífilis cerebral e em 1948 sofreu um duro revés. As brigas diárias com companheiros, as farras e os desentendimentos com treinadores fizeram Carlito Rocha vender Heleno para o Boca Juniors, da Argentina, por 600 mil cruzeiros. Golpe duro para quem já tinha os neurônios sendo devorados lentamente por uma sífilis cerebral. Na Argentina, o ambiente não podia ser pior para Heleno. Seus
Fugazes momentos de paz
Heleno jamais se lembrou que era um atleta nas baladas e não tinha constrangimento em fumar e cheirar lança-perfume nas festas
Alcoolismo e quebra-quebra na terra natal Oficialmente, quase todos registros sobre os vícios de Heleno de Freitas apontam apenas para o exagerado uso do cigarro e do éter. Mas a reportagem de O TEMPO conseguiu apurar nas viagens a Barbacena e São João Nepomuceno que o atacante ia além e não conseguiu se abster do álcool. Se não bastasse o testemunho dos amigos e outras testemunhas oculares que viram o craque esbaldar-se com a bebida, cartas trocadas entre os médicos do hospital São Sebastião e os familiares de Heleno confirmaram o vício do paciente com o álcool. Nem mesmo o espaço de quase 47 anos após a morte do gênio da bola foi capaz de apagar da memória do aposentado Fernando Galvão, 71, as lembranças de seu conterrâneo mais ilustre. Sentado num dos bancos da praça Heleno de Freitas, em São João Nepomuceno, Galvão lembrou dos tempos em que o goleador atormentado não se separava do álcool. “Ele chegava aqui, no Bar Central – apontou para alguns metros à frente, no antigo ponto boêmio – e estava sempre bebendo. Fazia a farra dele”, disse. Ele se recorda que o atacante chegava ao bar e abaixava a capota do seu Cadillac conversível. Ainda garoto na década de 50, o empresário da noite de São João Nepomuceno, Keko Pinto, ouviu atentamente os casos contados por seu pai sobre as polêmicas saídas do já consagrado Heleno na pequena cidade do interior mineiro. “Ele cansou de quebrar o Bar Gato Preto, quebradeira era com ele mesmo. O Heleno cheirava 10 l de éter, gostava de de beber e chamava todo mundo para a mão”, disse contando que, ao final da noite, o atacante saia dirigindo como um louco. Anos depois, quando internado em Barbacena, o atacante ainda sustentava o seu vício, segundo o amigo e funcionário público Valter Antônio, 61. De acordo com ele, o álcool foi o único motivo da internação do artilheiro. “Os médicos Hermont e Tollendal eram pessoas que viam o Heleno como um alcoólatra e não um cara com problema mental e fizeram um tratamento de desintoxicação.” Valtinho se recorda perfeitamente da dependência do goleador, quando Heleno deixava o hospital, às quintasfeiras, para fazer o papel de auxiliar-técnico de João Fubá, treinador do extinto Independente.
colegas de Boca, não o aceitavam e boicotavam o ex-ídolo alvinegro. A incompatibilidade do center-forward era tamanha no novo time portenho que ele acabou dispensado. Nesse ínterim, Heleno mergulhou definitivamente numa agonia psíquica que o levaria a morte. Para confortar a alma irriquieta, doses cavalares de lança-perfume. Heleno começava a ter alucinações. O lança-perfume não surtia mais efeito. A loucura do deus dos gramados clamava por algo mais forte. Desprestigiado com a dispensa do Boca, ouvindo vozes, Heleno foi para o Vasco e conquistou o Campeonato Carioca de 1949, o único título da carreira. Discutiu com o técnico Flávio Costa e por isso não apareceu no pôster dos campeões. Tentou prosseguir a carreira no Atlético Barranquilla, na Liga Pirata da Colômbia, virou ídolo, mas não teve forças para continuar. Já estava totalmente louco e agora escravo do éter. Precisava cheirar a todo instante para viver. Por causa disso, a mulher Hilma pediu a separação e Heleno fracassou novamente ao tentar recomeçar a carreira no América-RJ.
Quando se sentava à mesa, o goleador atormentada fazia questão de saborear uma bebida alcoólica, de preferência as destiladas; na fase final brigas dentro de campo ficaram comuns por causa do vício e da demência
Torrando bichos na boemia “O Heleno era um alcoólatra em último grau e o que pintasse na frente ele bebia, até no treino. O João Fubá sempre pedia para ele não beber, mas Heleno falava que a branquinha (cachaça) era a sua vida. Ele reconhecia o mal que estava sofrendo, dava conselho para não bebermos. Infelizmente, a gente não obedecia”, afirmou Valtinho, se lembrando das épocas em que Heleno passava as noites na praça Mauá, no Rio de Janeiro, torrando o bicho das partidas vencidas pelo Botafogo com cachaça e mulheres. Fora as versões populares, trecho de uma das cartas trocadas pelo doutor Hermont Nascimento com Heraldo (irmão de Heleno), no dia 11 de outubro de 1955, confirma oficialmente que o jogador internado para tratar da sífilis tinha dependência alcoólica. Na ocasião, o médico desaconselhava a saída do paciente da
clínica para participar de uma festa de casamento familiar. “...a presença de Heleno às solenidades de casamento de sua prima deverá trazer dissabores. ... sua insistência em satisfazer o vício de beber, fumar e etc torna-se muito inconveniente.” Proibido de ingerir álcool durante o tratamento e liberado apenas para fumar, Heleno matava a sua sede de bebida nos curiosos passeios feitos com os enfermeiros no antigo Bar Colonial, em Barbacena. Como lembra o historiador Antoninho Stefani, 67, nos tempos que ficava com o seu pai na padaria vizinha ao bar. “Tinha um garçom de idade, o Joaquim, que pegava um copo d’água filtrada e dava para o Heleno, que gostava de parar no bar por ser querido pelos fregueses. Ele (Heleno) pedia a sua bier white (cerveja branca), se sentava, tomava a bebida e saía sem pagar.”
Aos 31 anos, Heleno era tudo, menos Heleno. O futebol profissional não tinha mais lugar para ele. Sua preocupação era encontrar frascos de Kélene, anestésico fabricado pela Rodhia, e através do éter alcançar raros e fugazes momentos de paz. “Ele foi dominado pelo vício. Comprava caixas de lança-perfume e ficava cheirando aqui em São João (Nepomuceno). Como nada fazia mais efeito, tinha de ser o éter puro e o álcool. Dava pena. Aí, o irmão decidiu fazer a internação”, lembrou o radialista aposentado Adílson Cunha Onóri, que viu Heleno chegar à cidade natal depois de sair do América e tentar, em vão, recuperar a sanidade.
Perturbado Em 1952, aquele apontado como o homens mais elegante de sua época, senhor das mulheres, rei da bola, estava louco. As alucinações eram tão intensas que serviram como uma sentença de morte para o artilheiro. Foi diagnosticado como esquizofrênico. Ficou internado numa clínica no Rio de Janeiro e amarrado numa camisa-de-força. Tomou choques. Apanhou inutilmente. Numa dessas, fugiu do hospital. O acharam perdido no Rio e com uma faca na mão. “Vou matar se me levarem para a clínica de novo”, gritava Heleno ao ser encontrado. Heleno jamais apresentou sintomas da esquizofrenia e morreu por isso. Tinha uma sífilis cerebral, que destruía seus neurônios e o transformava em um doente mental. Depois disso, tudo que fosse tentado seria em vão. Heleno estava morto em vida. Os assassinos eram dois: o vício e a sífilis.
Leia amanhã: A sífilis que matou Heleno e o reencontro com Tollendal