Heleno de Freitas - O craque maldito 8

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ESPORTES

O TEMPO

PÁGINA B5

BELO HORIZONTE • DOMINGO • 12 DE FEVEREIRO DE 2006

ENTERRADO VIVO Com duas datas de óbito diferentes, nem mesmo após sua morte, Heleno de Freitas fica livre das polêmicas MAURÍCIO MIRANDA E PEDRO BLANK ENVIADOS ESPECIAIS

ARBACENA E SÃO JOÃO NEPOMUCENO – É difícil confirmar com duas versões verossímeis uma mesma história sobre Heleno de Freitas. Hoje, ele completaria 86 anos e não há contestação para esse fato. Seria natural que o mesmo acontecesse para sua morte, porém, não há unanimidade sobre o dia exato de seu fim. No Cemitério Municipal de São João Nepomuceno, no túmulo em que estão os restos mortais do ex-craque botafoguense, está talhado na pedra lapidar o dia de seu falecimento: 3 de novembro de 1959. Nenhum problema se o seu atestado de óbito não fosse de 8 de novembro, ou seja, cinco dias depois de seu enterro. Heleno está enterrado num túmulo discreto, juntamente com o irmão Heraldo.

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Não consta nenhuma numeração no local em que ele se encontra, o que dificulta bastante sua localização no amplo e único cemitério da cidade. No simples jazigo de mármore preto, não há qualquer menção ao fato de ali estar enterrado um dos maiores atacantes brasileiros da história. Nada de símbolo do Botafogo ou de algum outro clube do goleador atormentado. É uma construção humilde, mas que lança no ar a polêmica sobre o dia correto da morte do atleta. O 3 de novembro, gravado em bronze no túmulo do craque, destoa das últimas anotações à caneta do prontuário de Heleno na Casa de Saúde São Sebastião que circularam em letra cursiva o 8 de novembro de 1959. Nem mesmo a prefeitura da cidade natal de Heleno, mais de 46 anos a-

pós o funeral do artilheiro, se deu conta de que o jogador havia sido “enterrado vivo”. Curiosamente, percorrendo a pequena São João Nepomuceno é possível se deparar com outra data de falecimento gravada na praça Heleno de Freitas. A inscrição da morte do jogador, localizada abaixo do seu busto de bronze, aponta para o mesmo dia 8 de novembro de 1959 da certidão de óbito. Testemunha viva dos últimos dias de Heleno e um dos responsáveis por cuidar do jogador durante seus quase cinco anos

FOTOS CHARLES SILVA DUARTE

Longa viagem Pela inscrição na lápide de seu túmulo, em São João Nepomuceno, Heleno de Freitas teria morrido no dia 3 de novembro de 1959, ou seja, cinco dias antes do falecimento registrado na ficha da Casa de Saúde São Sebastião e na praça que leva seu nome na cidade natal

Três versões para uma mesma morte Considerando o imaginário popular, a morte de Heleno de Freitas ocorreu em circunstâncias diferentes. Durante o período em que O TEMPO esteve em Barbacena foram apuradas três versões totalmente diferentes sobre a morte do craque enlouquecido. A reportagem teve acesso, em primeira mão, ao prontuário com a causa morte oficial, mas também conversou com outras duas pessoas que confirmam a mitificação sobre o fim de Heleno.

Choque de cabeça Seu José Alves Cardoso, 79, exfuncionário da Liga de Desportos, não tem dúvidas de que Heleno acabou louco, na Casa de Saúde São

de agonia, o médico José Theobaldo Tollendal chegou a dar uma risada quando questionado sobre as duas datas. Mas bastou a primeira olhadela nos documentos cuidadosamente guardados na ex-clínica São Sebastião, de Barbacena – hoje hotel São Sebastião – para afirmar:”É impossível estar errado. Primeiro, pela questão do óbito, não tem como o cartório errar. Se fosse um erro de datilografia na ficha, poderia falar que a secretária tinha feito bobagem, mas está anotado à mão e com a letra do meu sócio, doutor Hermont”.

Sebastião. “A estátua que fizeram para o Heleno na Colômbia é que o pôs louco”. Do “ouvi falar”, Cardoso relata o último dia do artilheiro.”Ele morreu alucinado. Falam que os funcionários do hospital se distraíram, o Heleno bateu a cabeça na grade e se foi.”

Infarto Para o funcionário público Valter Antônio, 61, e que se considera amigo pessoal de Heleno, o problema do craque nunca foi a loucura. De acordo com ele, o gigante dos gramados foi derrubado pelo vício. “O Heleno foi internado porque era alcoólatra em último grau”. Valtinho lamenta a perda do amigo que, segundo ele, po-

deria estar vivo até hoje. “O Heleno foi recuperado e morreu de infarto. Ele estava no pátio do hospital, dando embaixada num bagaço de laranja, quando sentiu uma dor, caiu e morreu.”

PGP ”O Heleno morreu de paralisia geral progressiva (PGP), fase terciária da sífilis cerebral.” Ao se aproximar do quarto onde Heleno dormia, o médico José Tollendal falou como foi a morte do goleador. “O enfermeiro encontrou Heleno morto por volta das 10h. Ele estava deitado na cama, agonizando e com respiração ofegante. Teve morte instantânea.”

O translado do corpo do goleador entre os 148 km que ligam a clínica de Barbacena ao cemitério de Nepomuceno pareceu ter durado dias. Única parente viva de Heleno na cidade onde ele nasceu, a sobrinha do jogador e exatleta de vôlei, Helenize de Freitas, guarda na lembrança a viagem tumultuada para a família trazer o corpo. Nesse caso, portanto, a data do enterro gravada no túmulo teria, obrigatoriamente, de ser posterior a 8 de novembro e, não, anterior, como a reportagem de O TEMPO constatou. “Estava chovendo muito e o carro do meu pai – Heraldo, que acompanhava e custeava todo tratamento de Heleno, juntamente com o irmão Oscar – deu defeito na ida, não andava. Parecia que era para segurá-lo para não ver a agonia do meu tio. Houve realmente um atraso enorme e a volta demorou muito com o mau tempo”, contou Helenize. Num trecho de uma das cartas trocadas com os médicos Tollendal e Hermont Nascimento, Heraldo confirmou a prolongada viagem com o corpo do irmão até o seu túmulo, o que reforça a tese de que o enterro do atacante foi adiado por problemas de transporte. Além de salientar a ida demorada, por conta da chuva torrencial, o irmão mais velho de Heleno relatou uma volta ainda pior. Depois de trocar de carro no meio da estrada, eles ficaram presos num atoleiro durante toda a noite e só chegaram a Nepocumeno às 9h do dia seguinte. Embora poucas pessoas tenham tomado conhecimento da morte do louco ilustre em Barbacena, sigilo pedido pela família, a realidade foi outra na cidade onde ele era considerado o mais nobre filho. Apesar de ter chegado a Nepomuceno ao amanhecer, o corpo do craque só foi enterrado às 15h, por três motivos: as rádios locais noticiaram o funeral nesse horário, parentes do jogador estavam de viagem a caminho do enterro e o comércio local solicitou esse horário para que pudesse fechar suas portas durante o sepultamento.

Movimentação Mesmo com apenas nove anos, a sobrinha Helenize guarda imaculada na memória a imagem do adeus ao tio. Todos se mobilizaram para despedir do indiscutível Heleno no cemitério, de crianças aos anciões que admiravam o seu futebol e seu alucinante estilo de vida. “A cidade inteira, pequenininha naquela época, estava no enterro. Lembro que os colégios participavam com seus alunos uniformizados. Meu tio era muito popular e mal podia sair na rua que a molecada ia atrás”, lembra, com orgulho. Um fato inusitado chamou a atenção de Helenize e deixou grande parte do povo nepumucenense curioso. Nem parentes mais próximos e muito menos as pessoas que estavam acompanhando o sepultamento do atacante conseguiram descobrir a identidade de uma pessoa que acompanhou o enterro como se fosse um ente querido. “Um senhor que ninguém conhecia ficou o tempo inteiro na cabeceira do caixão do meu tio. Foi muito estranho e foi um fato curioso, pois ele não falou com ninguém e foi embora”. Esse é Heleno. Capaz de encantar até na morte.


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