ESPORTES
PÁGINA B4
O TEMPO
BELO HORIZONTE • DOMIGO • 12 DE FEVEREIRO DE 2006
EU SOU
HELENO! REPRODUÇÃO CHARLES SILVA DUARTE/PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO JOÃO NEPOMUCENO
A genialidade, as conquistas amorosas e a loucura do goleador atormentado; a fantástica e trágica história do maior atacante da era romântica do futebol contada por quem conviveu com o superastro do Botafogo em Barbacena e São João Nepomuceno. Até o próximo domingo, O TEMPO irá publicar uma série de reportagens sobre o primeiro bad boy do futebol brasileiro
MAURÍCIO MIRANDA/PEDRO BLANK ENVIADOS ESPECIAIS
ARBACENA e SÃO JOÃO NEPOMUCENO – O prontuário número 220 da Casa de Saúde São Sebastião registra o dia exato da internação do advogado Heleno de Freitas, então com 35 anos: 19 de dezembro de 1954. Neste hospital psiquiátrico, em Barbacena, cidade localizada a 173 quilômetros de Belo Horizonte, ele ficou internado por quatro anos, dez meses e 20 dias. Só deixou o sanatório morto. Por causa de uma Paralisia Geral Progressiva (PGP), decorrência direta da sífilis cerebral, Heleno perdeu praticamente todos os neurônios e aos 39 anos pensava e agia como uma criança de cinco. O mau funcionamento dos órgãos fez com que o corpo definhasse e ao ser colocado no caixão o homem de 1,80 m sequer alcançava os 40 quilos. Mas Heleno de Freitas teve outra aparência e outra profissão. Dono de uma elegância ímpar, ele foi rei. Na década de 1940, seu ofício era fazer gols, muitos. Com a camisa do Botafogo, disputou 233 partidas e anotou 204 gols, performance que o mantém até hoje como o quarto maior artilheiro da história do alvinegro, atrás apenas de Quarentinha (308), Carvalho Leite (275) e Garrincha (242). Ainda
B
foi aplaudido na Colômbia e na Argentina. No Brasil, defendeu América-RJ e Vasco, sem contar uma passagem pelo juvenil do Fluminense. Fora dos estádios, Heleno era a imagem da elegância e desfilava sua majestade no Copacabana Palace, point da high-society do Rio de Janeiro, então capital federal. Lá, o atacante dos cabelos impecavelmente penteados à base de gomalina, fascinado por Cadillacs de alto luxo e jeitão de galã de Hollywood, encantava mulheres com a mesma facilidade que deixava para trás os zagueiros mais truculentos. Na lista de corações arrebatados pelo jogador, estão algumas das mulheres mais desejáveis de todos os tempos do cinema e há quem garanta que a esposa de um ex-presidente argentino se derreteu por Heleno, superídolo numa época em que não havia televisão e seus feitos ganhavam notoriedade por meio do rádio e do jornal.
Sem Copa Quis o destino que Heleno jamais participasse de uma Copa do Mundo. Como a Segunda Guerra Mundial impediu a realização das competições de 42 e 46, sua única oportunidade seria em 50, curiosamente no Brasil. No entanto, uma briga com o técnico Flávio Costa, que teria dado uma surra em Heleno após ser ameaçado com
um revólver sem munição, o colocou fora das convocações. Sua trajetória na seleção é curta. Foram 18 partidas, 15 gols e o posto de artilheiro do Sul-Americano de 45, no Chile. A troca de sopapos com Flávio Costa, entretanto, não foi a primeira de Heleno. Desde jovem, ele demonstrava ser genioso. Escolhia a dedo suas amizades na escola, gostava de ser paparicado, fazia o que desejava e ao ser contrariado, usava a força para prevalecer sua vontade. No auge, esse descontrole emocional o levou a se transformar no goleador atormentado, egocêntrico e com mania de grandeza. Batia em árbitros, treinadores, adversários e – não se espante – até mesmo em companheiros de equipe que porventura errassem um passe.
Vício em éter O comportamento de Heleno acabou o atirando à demência e os holofotes saíram de cima do astro a partir de 1950. Ficou viciado em lançaperfume e no ápice do desespero tentava se controlar cheirando éter puro. Para completar, o craque maldito foi diagnosticado, equivocadamente, como esquizofrênico, quando, na verdade, uma sífilis em último grau o havia condenado à loucura. Uma sentença de morte. Descoberta a tempo, a sífilis, nos anos 50, poderia ser tratada no estágio inicial com
o uso de penicilina. Já louco, Heleno procurou levar uma vida normal, longe do futebol, na casa do irmão Heraldo, em São João Nepomuceno, na Zona da Mata. Apesar de ser cidadão do mundo, o atacante insano era mineiríssimo. Na sua terra natal, onde ia sempre nos momentos de folga e parava a cidade, tentou se livrar dos tormentos. Fracassou. Só restava o acompanhamento médico. Heraldo decidiu interná-lo em 1954. Houve melhoras no quadro clínico de Heleno, porém, ele acabou ficando caquético e deu adeus à vida em 1959. Mais de 46 anos após seu falecimento, Heleno ainda consegue renascer através de seu mito. Sua história desperta interesse e permanece com pontos obscuros. Para contar os últimos capítulos do goleador atormentado, a equipe de O TEMPO refez os derradeiros passos do craque-problema em Barbacena e São João Nepomuceno e até o próximo domingo irá publicar uma série de reportagens sobre o primeiro badboy do futebol brasileiro. Na demência total, esqueceu suas façanhas no futebol. Mas tinha consciência de que foi alguém especial, tanto que, totalmente perturbado, com quatro cigarros na boca e dois nas narinas, perto do fim, mantinha a megalomania ao falar de si: “Eu sou Heleno!”