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O TEMPO
PÁGINA A21
BELO HORIZONTE • QUINTA-FEIRA • 16 DE FEVEREIRO DE 2006
HELENO SELVAGEM O deus das cabeçadas perfeitas se despede do futebol na única vez que pisou no gramado do Maracanã, após agredir o árbitro, e inicia seu calvário por manicômios e clínicas
MAURÍCIO MIRANDA/PEDRO BLANK
de viver em sociedade. Com o Maracanã vazio e a TV Tupi transmitindo o confronto, pouca gente presenciou um ARBACENA E SÃO JOÃO NEPOMUCENO – Heleno destruído. Crônica de uma morte anunciada. Dentro de pouEm 1951, Heleno de Freitas tentava recomeçar a carreira no América-RJ. Com 31 anos, quíssimo tempo, Heleno se transformaria num selvatinha a convicção que a má fase vivida pode- gem, abandonando os hábitos refinados que o caracteria ser superada. O artilheiro acreditava que rizavam. Alimentação, só usando as mãos, o místico boera possível reviver a magia dos tempos de Botafogo, tafoguense estava tão demente que se recusava a seguvoltar a marcar seus gols e ter de volta a vida de gla- rar talheres. O ex-atleta que amava cigarro, de prefemour dos anos de Copacabana Palace. O América a- rência Continental, delirava ao engolir “bitucas” de cicreditava em Heleno. Heleno também apostava em si. garro que encontrava na rua. Quando iniciavam as aluO deus das cabeçadas perfeitas ia buscar a volta por cinações, Heleno se sacudia tanto que ficava com o corcima no Maracanã. Único estádio do Rio de Janeiro po repleto de escoriações. O diagnóstico errado de esquizofrenia roubou um temque não conhecia sua majestade. O 4 de novembro de 1951 era para ser o renascimento, mas entrou para a po precioso de Heleno. Ficou enjaulado num manicômio história como o fim de Heleno no futebol. A sífilis ti- no Rio de Janeiro. Depois de muitos eletrochoques, fugiu nha derrotado o homem mais elegante que os grama- e retornou para a cidade natal, em São João Nepomuceno. Antes de ser acolhido pelo irmão Heraldo, conheceu dos brasileiros viram. Nada deu certo. Heleno estava acabado. Na sua es- outra experiência traumática no hospício Casa de Saúde tréia no Maracanã, seus nervos não deixaram que ele fi- Esperança, em Matias Barbosa, perto de Juiz de Fora. casse em campo mais do que o primeiro tempo. Enquan- Mais uma experiência frustrada. O ex-ídolo era tratado to esteve em campo, xingou seus companheiros, bateu como louco. Até aí, ninguém imaginava que a sífilis comia boca com os jogadores do São Cristovão e, após agredir o lentamente os neurônios de Heleno. Percebendo a agonia do irmão, Heraldo trouxe Heleárbitro Alberto Gama Malcher, foi expulso. O América perdeu por 3 a 1. Das arquibancadas, o irmão de Heleno, no para sua casa. Mas ele apresentava sintomas claros da sífilis cerebral, como infantilizaRômulo, percebeu que havia algo de errado com o goleação, diminuição da capacidade indor atormentado. Só restava a família interná-lo. O cratelectual, distúrbios de memória, que não tinha condições mentais de aNO CE U OM NEP SÃO JOÃO DE RA delírio de grandeza e depressão. tuar e muito menos TU PREFEI ERVO DA SOBRE AC Entre o final de 1953 e parte de TE AR DU LVA ARLES SI FOTOS CH 54, Heleno morou com Heraldo, a cunhada e mais quatro sobrinhos. Daquelas crianças, uma mora até hoje em São João Nepomuceno: Helenize. “Lembro pouco do ENVIADOS ESPECIAIS
B
O goleador atormentado entre dois jogadores do América, na única vez em que pisou o gramado do Maracanã
titio. Sei que ele comia até chumbo derretido”, conta Helenize, citando mais um exemplo comum em sifilíticos, a fome descomunal. Embora Heleno jamais tenha feito nenhum tipo de agressão aos familiares, ele virou uma bomba-relógio. A qualquer momento podia explodir e as consequências seriam imprevisíveis. “O médico disse para o papai que não sabia até que ponto a doença poderia ir. Na época, eram quatro meninos dentro de casa e minha mãe estava grávida do quinto. Ela ficava muito nervoso com o titio falando o tempo todo que estava com fome. O médico recomendou a internação e ele não saiu mais do sanatório”, recorda Helenize.
Loucura total No dia 16 de setembro de 1954, Heleno de Freitas retomou a rotina em hospitais psiquiátricos na extinta Casa de Saúde Santa Clara, no bairro Serra, em Belo Horizonte. Na capital mineira, ele realizou exames de sangue e radiografias, que mantiveram o diagnóstico de esquizofrenia. Heraldo, desesperado com o sofrimento de Heleno, se reencontrou com José Tollendal, colega dois dois irmãos no Ginásio Mineiro, de Barbacena. Pela amizade com Tollendal, Heraldo decidiu internar Heleno na Casa de Saúde São Sebastião, a melhor de Barbacena nos anos 50. “Heleno era um desafio. Tentamos de tudo. Infelizmente, veio tarde demais”, diz, ainda emocionado, Tollendal, hoje com 83 anos e mais de 60 a serviço da psiquiatria mineira. O experiente pisiquiatra finalmente descobriu que a raiz de todo o drama de Heleno de Freitas era uma sífilis cerebral em último grau. Tarde demais. Durante quase cinco anos Tollendal fez de tudo para salvar o amigo e ídolo. No final de 1959, o médico foi obrigado a assinar o atestado de óbito do goleador.
Uma das raras imagens de Heleno de Freitas elegante, durante o tratamento em Barbacena, feita pela “Manchete Esportiva”
Diagnóstico errado derrota o artilheiro Os dias de glória do craque Heleno de Freitas foram tão meteóricos quanto a sua derrocada. Glorificado nos gramados na década de 40, principalmente entre 1942 e 1946, o goleador começou a ver seu reinado ruir no início dos anos 50. A partir de 1952, o atacante conheceu o seu pior adversário de todos os tempos: a doença. Heleno recebeu os primeiros cuidados médicos ainda no Rio de Janeiro, logo em seguida o jogador retornou a Minas Gerais, seu Estado natal, para se tratar. Internado em 1954 na extinta clínica psiquiátrica particular Santa Clara, no bairro Serra, em Belo Horizonte, o atacante atormentado recebeu o diagnóstico de esquizofrenia que, em breve, cairia por terra. Preocupado com a piora do quadro do irmão, Heraldo de Freitas resolveu procurar o médico José Theobaldo Tollendal, hoje com 83 anos, para tratar de Heleno. “O Heraldo estudou aqui e conhecia meu pai, e veio me procurar, pois eu era psiquiatra número 1 da cidade. Ele (Heraldo) viu que Heleno tinha passado por diversas clínicas e, como estava em estado terminal, resolveram trazê-lo para mim.”
Bastou pouco tempo para Tollendal desconfiar de que o jogador botafoguense havia recebido um diagnóstico errado. “Conversa daqui e dali, eu desconfiei não era esquizofrenia, pois ele não tinha sintomas básicos da doença. Resolvi fazer uma pulsão lombar, que deu positivo para sífilis cerebral.” Mas já era tarde. O artilheiro atormentado estava conhecendo a derrota por 30 a 0 para a doença, aos 45 minutos do segundo tempo. De acordo com o médico, a sífilis foi descoberta muito tarde, no seu terceiro e último estágio, que é a paralisia geral progressiva (PGP). O médico não soube precisar quando o craque poderia ter pego a doença, pois ela pode ficar incubada no paciente durante 30 anos. “O primeiro estágio da doença é uma feridinha no pênis, que dá para ser curada até com cinza de cigarro, mas ele deixou passar para a fase secundária (manchas pela pele e infecções que podem desaparecer sozinhas) e terciária (lesão nos ossos, coração e sistema nervoso).” O médico lamentou e estranhou como algo tão terrível foi passar despercebido nos clubes onde ele passou. “Eu não entendo,
porque sempre têm médicos nos departamentos de futebol, mas ninguém descobriu nada”, lamentou.
Derrota Mesmo sabendo que estava prestes a perder não um simples paciente, mas o seu ídolo, Tollendal não se entregou. Tentou o que era possível e impossível para tentar salvar Heleno. “Todas as teorias que aprendi na faculdade consegui perceber no Heleno. Cresci muito na minha profissão. Ele foi um compêndio para mim.” Mas, ao mesmo tempo que via o mito apresentar sinais de recuperação, o médico percebia a sua morte aos poucos, característica da PGP. Espontaneamente, Tollendal deixou escapar uma frase que soou como um desabafo pela perda de Heleno de Freitas e outros pacientes. “Escolhi uma profissão em que a gente sempre perde. Um advogado pode ganhar uma causa ou tirar um preso da cadeia. Nós, na chegada da morte, não conseguimos fazer nada”, disse o médico mais experiente de Barbacena, com 60 anos de profissão completos, admitindo a derrota.
Leia amanhã: O sofrimento de Heraldo com a demência de Heleno
Tollendal descobriu que a causa de toda a demência de Heleno não era esquizofrenia, mas, sim, sífilis cerebral no seu estágio mais avançado