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O alfaiate, a melodia e o tempo

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Da Independência

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Rua da Glória, esquina com a Boa Vista. Driblando pedestres, concretos, panfletos e o calor de Juazeiro do Norte, a equipe da Memórias Kariri procurou entre as muitas ruas emaranhadas da cidade pelo endereço que nos levaria ao nosso entrevistado. Rua da Glória, esquina com a Boa Vista. É lá que mora João Martins Gonçalves. Sentado na calçada, seu olhar, que acompanhava todo o movimento a sua volta, nos capturou por um instante. Depois de um momento de conversas e apresentações, buscamos saber sua idade. Ele mostrou então quatro dedos para nós. ‘Sabem quantos anos são?’, perguntou. ‘Tenho 94. É que depois dos 90 tudo zera’. De Missão Velha, seu João chegou a Juazeiro em 1954, e trouxe na bagagem seu ofício, o de alfaiate, mas no outro canto da mala uma outra paixão: a música. Dono de uma alfaiataria na Rua São Pedro, logo montou uma banda - ‘J. Martins e seu Conjunto’, seu primeiro grupo musical. E com ele se apresentou por todo o Nordeste. Conheça a história desse alfaiate e artistas , um personagem hoje conhecido por várias cidades do Cariri cearense.

Seu João, o senhor é daqui mesmo? Os pais do senhor são daqui ou vieram para cá?

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Eu sou natural de Missão Velha. Meus pais eram da região, mas eram de sítio. Meu avô materno, João André Gomes, tinha um pedaço de terra perto de Missão Velha. Nossa família, os Andrés, é de São José de Piranha, na Paraíba. O pai da minha mãe é de lá. Ele veio para a região do Cariri junto com a família, ainda novos, e ficaram em Missão Velha. Quanto aos meus avós paternos, eu nunca conheci. Minha profissão mesmo quando eu vim para Juazeiro do Norte era alfaiate. Eu era um bom alfaiate. Eu trabalhei muito aqui, eu vim aqui para a cidade em 1954. Quando eu cheguei tinha 29 anos e Juazeiro podia dizer que ia dos Franciscanos para a rua Doutor Floro, para a Matriz.

E o senhor aprendeu o ofício de alfaiate com alguém ou foi sozinho?

A profissão de alfaiate eu aprendi em Missão Velha com uns parentes meus que eram alfaiates, então eu aprendi lá. Quando eu vim pra cá eu abri logo uma alfaiataria minha, na rua São Pedro.

E o senhor ainda trabalha com alfaiataria ou já se aposentou?

Trabalhei por muitos anos mas eu já deixei faz é tempo. Minha alfaiataria ficava em frente onde hoje é a galeria Zé Viana, na época era o armazém de Adjassis Cidrão. Foi em 1958 isso. Eu fiquei com a alfaiataria na rua São Pedro de 58 até mais ou menos 71, aí depois fui trabalhar na rua abaixo do correio, entre a rua São Pedro e a rua Padre Cícero. Aí nesse ponto eu passei muito tempo.

Aí o senhor fechou a alfaiataria em que ano?

Em 1996 eu já não tava mais querendo trabalhar. Eu parei a alfaiataria quando me mudei para essa casa, na rua da Glória. O negócio já tava fraco, não tinha mais ninguém que queria fazer terno. Mas até quando eu tava morando na rua São José, antes de vir para cá, eu ainda fazia, sozinho.

E como era a clientela do senhor?

Eu atendia principalmente o pessoal da alta sociedade, porque terno era caro. Na época que eu trabalhava de alfaiate, não existia essas confecções para vender, a roupa tinha que ser feita. Eu trabalhava de seis horas da manhã até uma da madrugada fazendo serão com quatro operários para dar conta dos pedidos. E na época tinha muito alfaiate aqui. Quando eu cheguei aqui, as profissões do Juazeiro eram ourives, alfaiate e sapateiro. As ruas eram até divididas por profissão; tinha a rua dos ourives, a rua dos alfaiates e a rua dos sapateiros.

O senhor, além de alfaiate, também era envolvido com música...

Eu tive dois conjuntos musicais, mas eu nunca fiz dinheiro com isso. Eu aprendi a tocar porque eu fazia serenata com os meus amigos por diversão. Na minha época, a gente fazia serenata para as namoradas. Não existia energia elétrica. Quando eu cheguei aqui em Juazeiro, tinha dois

Minha profissão mesmo quando eu vim para Juazeiro do Norte era alfaiate. Eu era um bom alfaiate. Eu trabalhei muito aqui, eu vim aqui para a cidade em 1954 motores, umas caterpillar lá no mercado, que forneciam energia de seis da tarde até dez da noite. A luz era tão ruim que parecia um braseiro dentro de um copo. Aí quando passava essa hora apagava e ficava sem energia. Aí quando a lua saía e a cidade tava clara, a gente saía e fazia a serenata para as namoradas com a luz da lua. Era um tempo bom.

E como era o nome do conjunto do senhor?

O primeiro conjunto que eu formei aqui tinha o nome de ‘J. Martins e seu conjunto’, porque tinha um conjunto aqui no Ceará, de Ivanildo, chamado ‘Ivanildo e seu conjunto’, daí eu me inspirei. Quase todos os componentes desse conjunto eram de Missão Velha. Foi esse conjunto que foi aplaudido em pé no Clube dos Diários, em Teresina.

E aí o senhor teve outro conjunto além desse?

Tive. Depois que eu acabei o J. Martins e seu Conjunto, em 1969. No ano seguinte, em 1970, eu formei outro conjunto, chamado ‘IlderMartinsSom’, porque era a junção do meu nome com o nome de Ildergard, um músico que tinha um conjunto também. Tinha muito músico bom nele. Tinha uma cantora, chamada Heleninha Sobreira, que cantava demais. Daí em 1978, Ildegard saiu do conjunto, e eu mudei o nome para ‘MartinsSom’. Aí foi que fez sucesso mesmo.

Então o senhor trabalhava como alfaiate, mas a paixão mesmo do senhor era a música?

Não. A minha profissão mesmo era alfaiate. Eu nunca ganhei dinheiro com conjunto. Eu andei esse nordeste todinho. Porque eu era vaidoso, eu queria um bom conjunto e de fato eu tive dois bons conjuntos. Eu acho que foram uns dos melhores conjuntos do Nordeste. Eu tirava era dinheiro da minha alfaiataria e botava dentro dos conjuntos. Para pagar bem aos músicos e para ter músicos bons.

E esses conjuntos eram como se fossem bandas?

Isso. Meus conjuntos tinham tudo, tinha cantor, tinha cantora. Eu tinha um vocal tão bom nos meu conjuntos que às vezes a gente tocava do mesmo jeitinho do disco, às vezes eu achava até melhor que o disco, quando a gente ensaiava. Eram bons meus conjunto. Eu andei esse Nordeste todo tocando em festa. Em 67, eu fui aplaudido de pé no Clube dos Diários de Teresina com o meu primeiro conjunto, onde lá tinha um bocado de conjunto bom, mas acharam melhor o meu.

O senhor ia a convite desses locais ou o senhor mesmo arranja os shows quando chegava nas cidades?

Eu tinha um empresário para vender o show. Ele saía daqui de Juazeiro e vendia festa no estado do Piauí, Maranhão, Pernambuco, Bahia… eu andei esse Nordeste quase todo. O nome do meu empresário era Raimundo Nilton.

E como foi que o senhor começou com essa história de conjunto?

A história dos conjuntos começou quando eu me mudei de Missão Velha para Milagres. Eu trabalhava como alfaiate já nessa época, era casado. Eu me casei em 1946, e, em 1948, fui para Milagres. Daí lá, eu cheguei e tinha um regionalzinho lá dos rapazes. Quando eles me viram tocando, não quiseram mais tocar, disseram que eu tocava bem demais e queria que eu tocasse no lugar deles. Aí Zé Brasileiro, junto com Alberto Brasileiro, foram fazer um show em bar daqui de Juazeiro chamado “Ballas Cowboy”, que tocava as músicas de Bob Nelson e outras desse estilo ‘cowboy’, que fez muito sucesso no Brasil nos anos 50. Esse bar pertencia ao Alberto, que tinha uma fábrica de balas, bombons, em Natal, no Rio Grande do Norte. Foi daí que surgiu o nome do bar. Então quando eles quiseram fazer esse show, eles foram atrás do regional lá de Milagres para tocar, só que os rapazes não quiseram, disseram que não sabiam acompanhar. Mas daí eles me indicaram, disseram que eu tocava violão muito bem.

E aí o senhor foi?

Quando Zé Brasileiro foi perguntar se eu podia tocar no bar, eu disse que não, que não sabia tocar para muita gente, que só tocava para mim. Mas aí ele disse que o regional não ia tocar, que eu tinha que ir. E aí eu sabia todas as músicas, meu ouvido era muito bom para melodia, tanto que Zé começou a cantar uma música de Vicente Celestino e eu acompanhei no violão todinha, que nem no disco. Depois que eu toquei, ele disse: ‘O que você tá fazendo em Milagres, rapaz? Você é um grande violonista!’ e eu respondi ‘Eu sou é alfaiate” (risos). Mas aí acabei topando o convite e indo tocar no bar. Foi depois disso que o Zé me disse que a rádio Iracema de Juazeiro tava sem violonista, que era para eu tentar a vaga lá. Aí foi na mesma época que a rádio tava fazendo o primeiro aniversário, em 1951.

Então o senhor foi para na rádio Iracema por causa do show?

Coincidiu de Coelho Alves, diretor da rádio na época, me telegrafar e chamar para tocar nesse dia (data do aniversário da rádio). Aí eu vim, passei 15 dias ensaiando no regional. Depois que eu toquei lá eles pelejaram para me fazer ficar trabalhando lá, na época me ofereceram um pagamento muito bom, 800 mil réis, mas eu não quis. Mas fiquei com aquela vontade, de fazer mais música. Aí quando foi em 1954, por causa da seca, muita gente foi embora de Milagres para São Paulo, e eu vim para Juazeiro. Aí quando eu cheguei em Juazeiro, a rádio tava lá embaixo, não tinha nada mais. Fui eu que formei outro regional para a rádio. Aí eu fiquei aqui no regional da rádio Iracema de 1954 até 1958. Naquele ano, a rádio Educadora do Crato tava em experiência e eu fui para lá com um sobrinho meu que tocava pistão e aí fiquei lá até 1961, quando eu voltei para Juazeiro e formei o meu primeiro conjunto e fiquei tocando no Clube 13. Aí fiquei tocando em conjunto de 1961 até 2000, 2002.

O senhor disse que viajou o Nordeste todo. Qual foi o primeiro lugar que o senhor foi?

A primeira vez que eu saí do Juazeiro para tocar em outro Estado, foi no Piauí, em Floriano. Chega eu fiquei besta quando eu vi o pessoal louco pelo conjunto. Aí pronto, eu criei gosto e foi quando eu deixei um rapaz cuidando da alfaiataria e fui só malandrar. (risos). A minha mulher até ficava com raiva de mim, do tempo que eu passava viajando.

E nessa história toda ainda tem a família do senhor. Como era o nome da sua mulher?

Era Maria André Gonçalves. Ela morreu em 2009, eu já tinha 82 anos. Inclusive nós eramos primos legítimos. Quando foi pra eu me casar, na época, existia uma protocolo para parentes não casarem, daí teve que ir uma solicitação para o Vaticano, parece, para eu e minha mulher termos a autorização.

Vocês tiveram quantos filhos juntos?

Foram nove, mas vivos só tem cinco. São três homens e duas mulheres. Minha filha mais velha tem 69 anos. Eu tenho até um filho que tocou comigo no conjunto por um tempo, teclado e violão. Mas ele nunca gostou muito, não. Além desses tem uma menina, irmã da minha mulher, que eu criei como minha filha. Inclusive um filho dessa mulher mora hoje comigo, que eu criei também quando o pai morreu.

E educação. O senhor ainda estudou?

Na minha época era difícil demais estudar. Eu fiz o chamado terceiro ano primário. Era o estudo mais avançado que tinha em Missão Velha na época. Depois que o estudo avançou mais um pouco, teve gente de lá que estudou mais, mas não sabia o que eu sabia! Eu sempre fui muito vivo. A matéria que eu gostava mais era matemática. Agora mesmo, quando chega turma de estudante de faculdade de Nutrição, Fisioterapia,Medicina fazendo teste lá no Sesc, onde eu faço hidroginástica, eles ficam impressionados com as contas que eu sei fazer de cabeça. Então eu agradeço muito a Deus. Eu acho que eu sou assim, mesmo com essa idade, por que eu gosto muito de brincar. Por exemplo, teve uma vez que eu tava descendo para o Sesc com uma das senhoras que faz aula comigo, que nem conhecia direito. Daí quando eu fui dobrar a rua eu pisei em falso e ia caindo. Aí olhei pra ela e disse: ‘Por que a senhora me empurrou?’ (risos). Ela achou que eu estava falando sério, a coitada. Até que eu expliquei a ela que era brincadeira.

Além das atividades que o senhor faz no Sesc, eu sei que hoje em dia você faz Seresta toda última sexta-feira do mês na Cantina Zé Ferreira, aqui em Juazeiro do Norte. Como foi que essa tradição começou?

Começou porque eu andei lá um dia, e eu não conhecia o local, e percebi que lá tem muita coisa antiga, fotografias de Padre Cícero e Beata Maria de Araújo, tem rádio de pilha. Então eu entrei lá e tinha um menino cantando sertanejo, que era o filho do dono, de doutor Humberto, aí doutora Alice, que é muito minha amiga, me viu lá e disse para doutor Humberto me chamar para tocar lá. Aí ele perguntou se eu ainda tava tocando, e eu disse que não, que só tocava para mim hoje em dia. Aí ficou falando, dizendo para eu ir, até que eu acabei cedendo. Eu disse - ‘Vamos dar um mês para ver se eu venho mesmo’. Daí no dia que eu fui lotou. O pessoal não sabia que eu ainda tocava, por causa da

‘O que você tá fazendo em Milagres, rapaz? Você é um grande violonista!’ e eu respondi ‘Eu sou é alfaiate’ idade. Aí foi uma beleza, e daí pegou. Isso tem uns dois, três anos.

E o senhor ganha para tocar lá?

Eu disse para ele que não queria, porque eu não tava mais fazendo profissão, não queria compromisso. Mas aí ele insistiu e ficou me dando 100 reais para eu ir. Mas eu toco pouco. Sempre que eu vou dá câimbra nos dedos e aí eu não vou mais para lugar nenhum. Aí eu chego lá e toco no máximo umas duas horas, o resto eu boto os cabas para tocar e fico tomando uma cerveja.

Então o senhor fez muita coisa. Trabalhou como alfaiate, viajou bastante, trabalhou em rádio... Para finalizar nossa conversas eu quero saber só mais uma coisa: qual foi a verdadeira paixão do senhor dentre todas essas coisas?

Rapaz, eu acho que tudo que eu fiz eu fiz com amor. Ave Maria, eu fazia um paletó, colocava no manequim, ficava olhando e achava uma beleza. Quando eu ia tocar eu tocava com vontade que o povo gostasse. Então eu me acho muito feliz por isso. O povo às vezes até me pergunta se eu tenho certeza da minha idade, por eu ainda fazer o tanto de coisa que eu faço. Uma vez até me disseram - ‘Mas me dê a receita de ser assim, lúcido desse jeito...” aí eu disse - “Olha só, o segredo é nunca ter raiva”. Eu trabalhei com cara que bebia demais, mas eu nunca tive raiva de ninguém. Outra, não gostava muito de dinheiro. Até que eu ganhei um bocado de dinheiro aqui em Juazeiro. Em Conjunto eu nunca ganhei muito dinheiro não, mas trabalhando de alfaiate eu ganhei. Eu fazia cerca de 20 ternos por semana, fora calça e camisa. Um terno naquela época já era 150, 250 mil réis. Eu lembro que teve um tempo que meu pai chegou aqui, viu o movimento na minha loja, e me pediu ajuda. E eu ajudei muito meus pais, que eram bem pobres. Então eu ganhei muito dinheiro aqui, mas nunca liguei para guardar. Eu até brinco dizendo que o que eu não dava, eu guardava no banco. ‘Então você tem uma poupançazinha’? o povo pergunta. ‘Eu botava era no banco da praça, pra quem passasse pegar!’ (risos). Então eu não tenho nada, não me preocupo com nada, por isso que eu sou assim. Não me preocupo nem com doença, que eu não vou atrás!

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