ESTUDOS DE RECEPÇÃO
Projeto contemplado pelo Edital 11/2014 da Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo. De abril a julho de 2015 - Vitória, Vila Velha/ES
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Os estudos de recepção são uma tradição relativamente recente no campo das ciências da comunicação. Ela surgiu na década de 1980 com uma proposta sobretudo empírica, de investigar junto ao espectador como as mensagens veiculadas pela mídia são de fato recebidas e interpretadas. Até então, a transmissão era entendida como um processo linear e em larga medida autoevidente, e os pesquisadores não pareciam ver qualquer mistério no modo como a produção de cinema, rádio e TV poderia ser decodificada por cada indivíduo. O caráter de massa da mídia era enfatizado porque sua audiência era tratada como tal: um receptáculo homogêneo e apático. Com uma atenção detalhada aos diversos modos de engajamento cotidiano com os sistemas de comunicação, se tornaria possível uma compreensão multifacetada do seu funcionamento. Foi como descobrir um território que sempre esteve lá. Como tantos outros regimes de pensamento, esse também veio acompanhado da conquista de um novo campo de pesquisa, que
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entretanto nada tinha de efetivamente novo. A ciência viria a se aproximar do espectador não apenas conceitual como também fisicamente, penetrando o seu habitat, as salas de estar e as antessalas de consultórios, como reversos inevitáveis da emissão televisiva, contextos pontuais em que a leitura acontecia. É interessante apontar que se tratavam de espaços dos quais o cientista não poderia simplesmente se apoderar e neutralizar, como a um laboratório ou qualquer outro domínio etnográfico, em nome de uma suposta necessidade de distanciamento crítico. Eram, afinal, as casas de seus vizinhos. Na época, a autoridade científica ainda não tinha encontrado subterfúgios que a tornassem capaz de romper explicitamente com as noções burguesas de privacidade. Dessa forma, o trabalho do pesquisador se encontrava subordinado à hospitalidade do indivíduo pesquisado, complicando as microestruturas de poder arraigadas entre sujeitos e objetos. Essa dinâmica nos desperta para a polissemia
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do termo, para o fato de que os estudos de recepção midiática, interessados nos modos como o espectador absorve a linguagem, também operem como experiências de recepção interpessoal, que nos permitem vislumbrar como o ser humano acolhe o mais diferente entre todos os seus semelhantes: um estranho dedicado a investigar os seus hábitos de consumo. De maneira mais ampla, ela também indica que as transformações nos regimes de produção de conhecimento podem implicar reconfigurações entre diversas esferas públicas e privadas. Parte dessas preocupações, que parecem ter demorado a se instaurar no campo dos estudos de mídia, faz muito tempo esteve presente no âmbito da produção artística. Não que a história da arte faça deferência à opinião desta ou daquela pessoa (à exceção, talvez, do próprio artista). Todavia, tanto a prática quanto a crítica sempre tiveram grande consideração pelas situações nas quais os trabalhos poderiam ser de fato encontrados. Isso se manifesta em diversas instâncias,
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como no projeto político-revolucionário que instituiu os museus, visando apresentar a arte como um patrimônio da humanidade, universalmente acessível; na atenção poética dedicada à especificidade dos lugares; e até mesmo no misto de valorização simbólica e pecuniária que afeta uma obra ao ser colocada em determinado acervo. A casa nunca esteve isenta dessas interações. Bem antes que a galeria moderna existisse, o lar dos mecenas foi lugar de exposição – ao menos, para uma audiência seleta. Já na época em que os comunicólogos decidiram se embrenhar pelo espaço doméstico, também os curadores vieram a realizar suas primeiras incursões formais por esse território. Em 1986, o arquiteto Jan Hoet, futuro diretor da nona Documenta, organizou a exposição Chambres d’Amis, na qual cinquenta casas particulares na cidade de Gante (Países Baixos) receberam o trabalho de cinquenta artistas comissionados, ficando abertas ao público por diversas semanas. Cinco anos depois,
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um jovem Hans Ulrich Obrist apresentaria a sua primeira exposição na cozinha do próprio lar: World Soup surgiu também como solução para a falta de acesso do curador aos espaços tradicionais da arte. Essa abertura da propriedade privada para a exposição de arte (uma atividade de inegáveis, ainda que controversas, dimensões públicas) parece ganhar maiores fundamentos face à crescente claustrofobia criada de um lado pela especulação imobiliária, e de outro pelo gatekeeping institucional. No Brasil, em iniciativas recentes como Moradas do Íntimo (Gê Orthof e Karina Dias, 2009) e Deus não surfa (Santiago Navarro e Marta Mestre, 2013), a entrega provisória do lar não apenas serve como resposta à escassez territorial, como também colabora na busca por frescor poético. Não obstante, é preciso examinar com atenção as condições de sociabilidade embutidas nesse tipo de proposta. O patrocínio da empresa Airbnb a um projeto semelhante em Hong Kong, em 2015, sugere uma possível
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adesão ao processo de captura de cada nicho da vida pessoal pelas operações de mercado. Sob a intenção declarada de “cultivar e celebrar momentos de pertencimento entre estranhos”, talvez haja a derradeira forma de capitalização, interessada em transformar qualquer oportunidade de camaradagem em um negócio. Portanto, se aqui retomamos a ideia de “estudos de recepção”, é no sentido de contornar o puro fascínio com o lugar doméstico, buscando ao invés disso observar os procedimentos que o tornam disponível às pessoas e às coisas da arte contemporânea. Tratou-se, primeiramente, de encorajar um duplo exercício de hospitalidade. Cada um dos anfitriões envolvidos no projeto veio a receber, sob seus cuidados, o trabalho de um artista convidado. Por cerca de dez dias, a obra ficou instalada em seu lar, em meio aos objetos que por ventura já morassem ali, e o espaço foi aberto ao público. Toda a organização das visitas ficou a cargo desses anfitriões. Solicitados, eles tinham a responsabilidade de
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acolher a audiência e apresentar-lhes a obra, de modo que sua rotina foi ocupada por extraordinárias obrigações de curador, secretário e até mesmo mediador institucional (nenhuma das quais particularmente poética). Ao mesmo tempo, o projeto recupera parte do significado original da pesquisa acadêmica, na medida em que cria circunstâncias experimentais para um exame dos processos de apreciação estética. Como foi para os anfitriões lidar, ainda que temporariamente, com obras que não lhes pertencem, e talvez nem mesmo lhes digam respeito, dia após dia, no seu espaço de residência? E, para o visitante eventual, que tal encontrar a arte não no contexto neutro de um museu ou galeria, mas sim no domínio idiossincrático de outro sujeito, em meio às suas coleções e porta-retratos, sob o constrangimento do encontro às cegas, da familiaridade arquitetada entre estranhos?
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FICHA TÉCNICA Artistas: Raquel Garbelotti, Elton Pinheiro, Júlio Tigre, Mariana Antônio Anfitriões: Yiftah Peled e Elaine de Azevedo, Erly Vieira Junior e Waldir Segundo, Elsimar Rosindo Torres, Gabriel Menotti Curadoria: Clara Sampaio e Gabriel Menotti Produção: Maria Grijó Simonetti e Melina Galante Projeto Gráfico e Diagramação: Paulo Prot Textos: Clara Sampaio (p. 21-23, 37-39, 43-45); Gabriel Menotti (p. 4-10, 26-28, 53-55, 59-61, 69-71, 75-77) Imagens: Clara Sampaio (p. 19, 35, 51); Elton Pinheiro (p. 40-41); Júlio Tigre (p. 56, 57); Mariana Antônio (p. 67, 72, 73) Revisão: José Irmo Gonring Documentação: Carol Vargas, Matheus Noronha e Shay Peled Patrocínio: SECULT-ES, Funcultura Apoio: OÁ Galeria, Baile/UFES Agradecimentos: À Ignez Capovilla, Thais Hilal e Hilal Sami Hilal, e aos artistas e anfitriões participantes do projeto ISBN 978-85-919103-0-4
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A CASA DE YIFTAH E ELAINE
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O campo doméstico pode ser compreendido como um conjunto de memórias afetivas, receptáculo do percurso de vida de cada um. Quanto mais tempo se habita um lugar, mais se imprime nele nossa presença, seja na maneira como optamos posicionar os móveis e criar fluxos que nos pareçam bons, seja no modo como desgastamos com o uso e o tempo os vários objetos que dispomos em casa. O apartamento de Yiftah e Elaine parece conter os diversos acontecimentos que percorreram ao longo de suas vidas: as idas e vindas por países na Europa, o crescimento da família, as mudanças entre cidades do Sul do Brasil, a carreira acadêmica. Da Inglaterra para o Brasil, vieram quando a primogênita estava a caminho, uma escolha feita pela família para evitar o serviço militar obrigatório para Yiftah e uma educação tradicional em Israel para as meninas. A primeira base seria Curitiba, onde Elaine possui familiares. Seis anos mais tarde, se mudariam para Florianópolis para continuar os estudos
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acadêmicos e lá manteriam, na própria casa, um espaço de experimentações artísticas chamado Contemporão. No espaço, ampliariam a rede de contatos e interações com artistas, realizando exposições, encontros e performances, uma reação às escassas opções institucionais de arte oferecidas pela cidade. Um salto no tempo e estariam a caminho de Vitória, onde viriam a se tornar professores da Universidade, trariam a filha mais nova e a ideia do Contemporão para um outro espaço. O gosto por viver em casas motivou a busca por imóveis no centro da cidade, na esperança de encontrar uma casa semelhante à anterior, que pudesse funcionar como ateliê, espaço expositivo e residência. Depois de algumas negociações, acabaram optando pela segurança e a praticidade de um condomínio. Em um mesmo bairro ficaram com dois apartamentos: um compacto para as atividades do Contemporão, compartilhado com outros professores da Universidade, e outro mais amplo para a família.
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O novo lar deixa transparecer o gosto do casal de receber visitas, prática estabelecida desde a temporada na Europa. Nele, acolhem alunos e amigos, e o termo “sala de estar” parece muito acertado: no ambiente com luz indireta, um grande sofá ocupa boa parte do espaço e convida para a conversa sem pressa. Os assuntos podem percorrer os objetos cuidadosamente dispostos na sala, registros de viagens da família, obras de arte e livros. Nas paredes, trabalhos trocados com amigos e alunos e diversas obras de Yiftah, como uma instalação parcialmente remontada, despertam a curiosidade das visitas. Houve ocasiões em que o conteúdo dos trabalhos surpreendeu os mais desavisados. Sobre isso, reagem com bom humor e generosidade para aguçar a imaginação de cada um, contando a história das escolhas presentes na sala. Se a opção pelo apartamento em detrimento da casa prejudicou a atmosfera criativa do casal, isso não é aparente: a sala de estar é uma verdadeira imersão na trajetória afetiva de Yiftah, Elaine, Rayana e Shay.
Raquel Garbelotti, (303(1202)), planta baixa e maquete em acrĂlico, 2015.
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O TRABALHO DE RAQUEL GARBELOTTI
O trabalho de Raquel Garbelotti - p. 27
Um modelo é um utensílio epistemológico; ele auxilia na compreensão e, por conseguinte, no controle daquilo que pretende representar. Condensando o lugar numa maquete, nos tornamos capazes de acessá-lo por inteiro de só uma vez. O jogo de escalas causa a impressão de uma certa distância que, não obstante, nos torna mais próximos. O ponto de vista que se obtém é o do sentinela ou da ave em sobrevoo, sempre pronta para dar rasante. Essa perspectiva nos incita: ela parece pressupor ação, ou pelo menos cria a sua possibilidade. Nesse sentido, o modelo é um elemento incompleto, da ordem da linguagem, não só porque existe necessariamente em função de outro, mas também porque espera algo da gente. Como tal, produz identidade pela via da diferença – e, se dá entrada, não é senão por meio da separação. É disso que nos adverte o bom e velho adágio sobre não confundir o mapa com o território. O sistema que põe o observador em contato com o objeto não deixa de ser um obstáculo que se interpõe entre eles.
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Partindo do princípio contrário, o trabalho de Raquel Garbelotti nos leva a contemplar esse paradoxo. Nas intervenções da artista, são os obstáculos que induzem a situação de observação. Ao erguer paredes inúteis ou diminuir a abertura de portas e janelas a tal ponto que as torna impossíveis de serem transpostas, Raquel transforma a experiência de ocupar o espaço num procedimento sobretudo escópico, que nos compele a reconhecer limites. Inicialmente, o convite para visitar o seu apartamento indo ao apartamento dos outros pode soar como um evento quântico, que traria evidências palpáveis das curvas que o universo dá sobre si mesmo, fazendo coincidir os lugares sem necessariamente multiplicá-los. Não obstante, somos apresentados à impossibilidade cartesiana: ao invés de escorregar por um wormhole fractal, nos encontramos como que aprisionados entre os níveis de uma matrioska arquitetônica. Nessa afirmação da ordem que separa uma coisa das outras, a maquete despista o corpo para
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atrair a mente – e, contraindo o espaço, termina por expandi-lo.
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A CASA DE ERLY E WALDIR
A casa de Erly e Waldir - p. 37
As residências modernistas eram pensadas como unidades de habitação ou, como o arquiteto Le Corbusier conceituou, “máquinas de morar”. Quando se concluiu que era possível construir casas em série, estudando os materiais para evitar perdas - e aumentando a velocidade de construção e racionalização da obra - foi formado um modelo de habitação que contemplaria as necessidades básicas de todos os cidadãos. A propagação de um pensamento arquitetônico modular, eficaz e básico, pode ser considerada uma das principais heranças deixadas à arquitetura contemporânea. Mas se por um lado, a padronização permitiu que mais residências fossem construídas, por outro parece ter transformado a própria paisagem urbana: a escolha por materiais e acabamentos simples tem produzido projetos padronizados onde o custo-benefício da construção é determinante. O desenho modular parece antecipar modelos de ocupação do espaço, restringindo por vezes suas alterações internas conforme uso e o gosto.
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Por essas razões, alguns buscam refúgio em bairros antigos, notadamente em áreas centrais, onde ainda é possível encontrar imóveis de diferentes épocas, com plantas diversas. O de Erly foi encontrado com a ajuda de uma amiga e as especificações eram relativamente simples: um apartamento de primeiro andar, espaçoso, em um lugar tranquilo. Voltado para os fundos do terreno, a luz é serena, e às 18h é possível ouvir as badaladas pontuais do sino da igreja. Em contraste com a agitação habitual dos centros urbanos, na residência pouco se ouve dos ruídos de carros e passantes. Os sons que mais se escutam são da enorme coleção de vinis e CDs (além de DVDs, livros e obras de arte) que Erly possui. Sua essência de professor e pesquisador preenche o apartamento, onde nenhum canto é desperdiçado. Sempre aberta às descobertas e indicações, a coleção só cresce. Boa parte das obras de arte se encontram na sala e foram compradas de amigos ou conhecidos. Erly nutre um carinho particular por essa exposição viva: cada nova aquisição
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encontrará um lugar especial em sua curadoria doméstica, alternando trabalhos, selecionando novos que merecerão destaque. Para acomodar a variada coleção, o cineasta dispôs de caixas, prateleiras e paredes. Depois, o apartamento teve de se adequar aos novos moradores; o marido Waldir, que também é colecionador, trouxe ainda mais objetos, e Claire, a mascote canina, demandou remanejamento dos vinis que ficavam no chão. Nesse “modo de habitar”, o prazer de estar em casa e constantemente transformar seus espaços adapta a residência, mas não seus habitantes. A casa sempre em mutação de Erly parece destoar da mencionada padronização de espaços, adaptando-se segundo necessidades pessoais.
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O TRABALHO DE ELTON PINHEIRO
O trabalho de Elton Pinheiro - p. 43
Nas casas, os mais diversos ruídos podem passar desapercebidos, tamanha familiaridade envolvida nessa relação cotidiana. As fontes podem ser variadas: o ranger da porta, o estalar dos móveis de madeira, a água fervendo para o café, os sons do dia, o silêncio da noite. São elementos que compõem a paisagem sonora de cada lugar e, para percebê-los, é preciso tempo. Esse outro regime de escuta, no entendimento de Elton Pinheiro, é necessário para que cada música ou trabalho de arte aconteça. Parece cada vez mais raro nos dedicarmos à suspensão do tempo, ao momento em que o foco estaria apenas no objeto ou situação diante de nós. É sobretudo nessa suspensão que reside o trabalho de Elton. Desenhos e anotações aparecem como elucubrações que se multiplicam povoando diários, o lugar de criação do artista. Inquieto entre músico e artista visual, problematiza as convenções de representação musical, ora estabelecendo cores para os acordes, ora experimentando ruídos
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fabricados com elementos que habitam seu estúdio caseiro. Nesse percurso, preenche um sem número de cadernos que compõem o registro de seu processo criativo, aos quais pode recorrer e completar, num eterno jogo de aprendizado e experimentação. É à medida que nos aproximamos de seu processo reservado de criar que começamos a compreender o trabalho de Elton. É uma relação que demanda entrega e tempo, justamente o método que emprega na criação de suas obras. Na proposta em questão, a matéria é o universo doméstico e seu espectro de sutilezas sonoras, com as quais o artista tem interesse em experimentar e compor. Cada camada de som é compreendida em seu potencial de dialogar com o lugar que a receberá. Os sons se originam, portanto, de um espaço doméstico e são destinados para outro, com a intenção de criar uma trilha sonora a ser percebida em conjunto aos ruídos da casa em que estará presente. A música aqui é pensada como conector de momentos:
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se inicia no estúdio do artista e é recebida na residência onde se espacializará, mas não se encerrará ali. Uma vez relocada, pode criar novos espaços sonoros e relações, recurso que o artista utiliza para estimular a prosa e suspender o tempo.
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A CASA DE ELSIMAR
A casa de Elsimar - p. 53
As casas no Condomínio Residencial Plácido Barcellos não são parecidas. Elas variam na cor das fachadas, na configuração das janelas, e até no número de andares. Qualquer mínimo detalhe arquitetônico serve de pretexto para fazer diferença. Ainda assim, é difícil negar o seu parentesco. A afinidade salta aos olhos não só pelo modo como estão enfileiradas ao longo das ruas, sistematicamente, compartilhando paredes laterais. Por baixo das divergências, perdura uma estrutura comum, que se repete em uma após a outra, revelando que partiram do mesmo lugar. Pode até ser que, um dia, tenham sido perfeitamente iguais. Uma delas foi comprada pelo pai quando, há mais de quarenta anos, se mudou para Vila Velha com a esposa e os filhos. Aqui, Elsimar viveu a infância e a adolescência, e aqui também começou a pintar, instruído por uma professora que morava na mesma rua. Suas primeiras telas eram motivos florais feitos com técnicas renacentistas, que ele produzia em um atelier improvisado na
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área de serviço. Recebia as pessoas que vinham conhecer suas obras enquanto a mãe botava lençóis para secar no varal. Foi quando a pintura virou profissão que resolveu se mudar, em busca de um espaço mais adequado para o encontro com os clientes. A casa continuou a casa dos pais, depois ficou sob a guarda de um irmão, até que recentemente a família decidiu que era hora de vendê-la. Dessa vez, foi Elsimar que comprou. O lugar não estava muito diferente de quando ele havia saído. O bairro preservara a sua atmosfera suburbana, que nem sequer o barulho da movimentada avenida Carlos Lindemberg consegue perturbar. E mesmo o imóvel, ao contrário daqueles ao redor, passou décadas sem ter passado por grandes mudanças. Ao encontrar um território tão conservado, a primeira coisa que Elsimar fez foi planejar uma reforma, como se planejasse um futuro. Ele queria a fachada despida e refeita com uma varanda, abrindo a construção para fora. Ele queria os cômodos todos reorganizados, criando espaço não só para trabalhar,
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como também para dar aulas. Em suma, a vida que buscava pedia geometrias que deixassem entrar a luz do dia e as pessoas, e já não era sem tempo que o número 1109 do Bloco XI viesse a superar a planta original. Parte do projeto foi pago com um tríptico.
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O TRABALHO DE JÚLIO TIGRE
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Às vezes com esmero, às vezes por desleixo, o ser humano parece constantemente levado a especificar lugares para si. Sobre o transtorno da natureza, vem praticar engenharia: desbastar o terreno, erguer paredes e comprar móveis; empilhar umas coisas sobre estes e pendurar outras naquelas, marcando o espaço cada vez mais como o seu. Esse impulso doméstico remonta à pré-história e à não menos ancestral necessidade de um abrigo contra o clima e os outros bichos. Mais do que física, a conquista que se busca é simbólica, no que permite à pessoa suprimir a desordem do mundo e substituí-la pela sua própria. Não por acaso, as derradeiras infraestruturas do assentamento parecem ser aquelas que proporcionam a mais perfeita regulagem de temperatura e iluminação, adequando o ambiente às peculiariedades do organismo que o habita. Dessa forma, a vida define e se imprime em cada medida da construção, numa ambição heróica de perdurar com ela.
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Mas quem foi que disse que as construções perduram? Os muros com que resguardamos nossa intimidade não podem por sua vez ser resguardados do tempo. Sua permanência não passa de um truque cenográfico, realizado às custas de supervisão contínua, muitas reformas e demãos de tinta. No sentido de romper nossa isenção perante a ruína, Júlio Tigre conjura os atos falhos do progresso e intercede em seu favor: seja dos que sempre estão lá, encobertos pela banalidade cotidiana, seja dos que com certeza virão, alimentados por cada gesto displicente ou calculado. Nesse projeto de percepção, uma verdade é trazida à tona quando as coisas vêm abaixo: a promessa de que, no futuro, também nós seremos nódoas, vestígios num sítio que não mais nos pertence. Cada circunstância que buscamos encobrir, na sua aparente gratuidade, jamais se perderá completamente: são pormenores que se inscrevem na monstruosa biografia do mundo. Debaixo da sombra de séculos, só nos resta
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acreditar que a casa em escombros expresse não uma tragédia, senão o triunfo de uma ordem maior, na qual as interpéries que a açoitam por fora comugam com os hábitos que a consomem por dentro, formando uma mesma assombração coletiva – a História.
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A CASA DE MARIANA ANTÔNIO
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Sobre a mesa comprida, é bem capaz de haver uma jarra de suco de manga ou um tabuleiro de bolo de cenoura. Mariana recebe as pessoas com generosidade, oferecendo o lanche como se compartilhasse do seu próprio conforto de estar em casa. Quantas vezes este móvel não esteve cercado de amigos, noite adentro, jogando conversa fora? Aqui, é fácil esquecer da hora: na janela da sala, o dia não passa. O apartamento de fundos dá para uma parede já desbotada, deixando que o tempo corra mais brando, quase à parte dos ciclos solares. Mas não é por falta de uma vista que a casa não tenha as suas paisagens, a começar pelo parapeito, onde foi feito um jardim com mudas trazidas da roça dos pais. Várias coisas estão guardadas à mostra, e qualquer canto pode acolher um diorama acidental, composto por quadros, livros e outros cacarecos coloridos. Revestindo a geladeira, montadas em folhas de ímã, há fotos o bastante para um álbum de família. A gente se sente entre as páginas de um scrapbook.
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Tudo o que ela mantém ao seu redor parece servir para lhe manter companhia, feito um inventário de presenças queridas. Nessa morada da memória, os amigos permanecem mesmo depois que foram embora, lhe esperando após o fim de cada jornada de trabalho. Pelo modo como recebe abrigo, é fácil pensar que o doméstico esteja plenamente sob o seu domínio. Habitar, afinal, implica construir o espaço dos hábitos, como quem coloca um caminho sob passos que já sabe dar. Não obstante, por baixo dos padrões configurados, Mariana trata o lar como um lugar do inesperado. Em toda rotina há encontros prestes a se realizar, basta prestar atenção e tomar os devidos cuidados, reconhecendo mesmo às mais tênues criaturas o direito à residência. Os objetos sempre podem ser outros, dependendo de como se dão à poeira, em seu jeito de variar sob a luz refletida. A prateleira não é hoje da mesma forma que ontem, conforme as plantas se enroscam ao redor da TV e os gatos exercem os seus
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costumes, agindo como os verdadeiros donos da casa. Pequenas entropias chegam trazendo novidade. Nem ĂŠ preciso sair por aĂ para sair da zona de conforto.
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O TRABALHO DE GABRIEL MENOTTI
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Toda casa é território para uma expografia mais ou menos deliberada, no que decidimos como arranjar aquilo que temos e o que nos foi emprestado. Instituindo o que vai em cada cômodo, lhe atribuímos uma realidade doméstica. Mesmo que não haja a intenção de um curador, há pelo menos o seu gesto quando trocamos os móveis de lugar, alternando posições relativas para melhor adequar o recinto a determinadas funções e horas do dia. Cada nova peça adquirida inevitavelmente virá compor com esse acervo – se não como presença, pelo menos como questão. As mais ricas heranças talvez não caibam no nosso cotidiano: há prateleiras de mogno que precisamos doar, enxovais de seda que vão pro maleiro e jogos de porcelana que ficam guardados, eternamente a espera de uma ocasião especial. Mas também há rabiscos dos filhos que ganham moldura e um lugar de destaque sobre a mesa da sala; há cinzeiros de argila que precisam estar ao alcance.
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Nenhuma ornamentação é livre de consequências narrativas. Aqui como num museu, o que é posto à mostra sugere uma organização não apenas do espaço, mas também das histórias que ele resguarda. Nesse sentido, o acúmulo nos induz a dilemas em que a visibilidade das coisas se confunde com a visibilidade da vida. Gradualmente, a decoração de interiores se coloca ao dispor dos vestígios, num feng shui que faça as lembranças correrem da maneira correta pelo nosso território particular. As semelhanças parecem, entretanto, parar por ai. Essa galeria de mim não é a princípio para os outros; não é particularmente orientada para a apreciação estética, nem mesmo do próprio habitante. Tudo o que se acomoda é abstraído e se esquiva inclusive do olhar, deixando um vazio no qual o morador se encaixa para desempenhar domicílio, entrando em simbiose com a morada. Daí o misto de afinidade e estranhamento de quem se encontra em lar alheio: é como se vestíssemos uma roupa comum feita com
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precisão sob as medidas de outrem. Quanto mais nossos movimentos se embaraçam, mais detalhes se tornam palpáveis, fazendo aparecer o anfitrião pelas suas circunstâncias. O desajuste nos convida a uma compreensão das diferenças. Inadequado, o hóspede ocasional permite à casa admirar a si mesma.
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