Revista da Igreja Metodista no Estado do Rio de Janeiro Nº 41 • 2º Trimestre de 2014
VIOLÊNCIA Quando a dor e o medo silenciam Artigos revelam situações de opressão que marcam a sociedade. Como lidar com esses desafios?
Pentecostes e vida missionária
História Viva: Ana Gonzaga
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Lidando com a violência
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á décadas, o cidadão fluminense convive com a violência urbana. De acordo com o Instituto ligado à Secretaria de Segurança Pública, em 2013, houve mais de 4,7 mil homicídios no Estado. Na visão dos analistas, esse levantamento faz com que a população tenha a sensação de viver em clima de guerra. E, quando destacamos que esses números representam apenas os casos registrados em boletim de ocorrência, ficamos ainda mais assustados. Se a população sofre ao acompanhar a escalada da violência pela TV, imagine aqueles que vivem em meio ao perigo diariamente. Por conta disso, nesta edição, Fé e Nexo traz uma reportagem na qual foram entrevistados pastores responsáveis por igrejas situadas nessas áreas. Eles aceitaram o duro desafio de levar Cristo, por exemplo, a pessoas vítimas e protagonistas da maldade. Para o líder da Metodista na Rocinha, pastor Nélio do Espírito Santo, apesar da instalação das UPPs, a pacificação nas comunidades
ainda não é uma realidade. Além do reverendo Nélio, outros pastores falam da experiência de anunciar Jesus em regiões carentes da paz que excede todo o entendimento. Confira a partir da página 8. Outro tipo de violência o Brasil está “revivendo” este ano. Trata-se do período da ditadura, que completou 50 anos. No artigo intitulado As igrejas da ditadura: uma reflexão, a jornalista Magali do Nascimento Cunha fala sobre esse passado mal resolvido do nosso país, inserindo as igrejas nesse contexto. Na visão dela, a situação ainda não mudou. “A ditadura não acabou. Ela foi silenciada e está introjetada: ela ainda existe nas instituições e suas práticas”, afirma. Já a deputada federal Liliam Sá faz uma abordagem sobre uma pesquisa do Ipea que causou grande polêmica recentemente. De acordo com a primeira divulgação do Instituto, 65% dos entrevistados concordavam que mulheres com roupas provocantes mereciam ser atacadas. Mesmo depois de os dados serem
corrigidos, seriam 26% e não 65%, na avaliação da parlamentar, o levantamento ainda é preocupante. A partir da página 12, a deputada esclarece essa e outras questões associadas à violência e exploração sexual contra mulheres. Se há mulheres exploradas, existem também aquelas que são exemplo de amor ao próximo. E dentro da história do Metodista da Primeira Região, encontramos Ana Gonzaga. A vida dela está diretamente ligada ao Instituto que leva o seu nome. Completado mais um ano de atividade, Fé e Nexo retrata historia dessa instituição. Embora fosse avessa a fotos, Ana Gonzaga nos deixou sua melhor imagem, o Imag. Esperamos que as experiências registradas nesta edição contribuam para o crescimento do leitor como cidadão e servo de Deus. Boa leitura! Nádia Mello Editora
Tolerância Religiosa A leitura desse livro permitirá ao leitor, fazer uma análise das condições e situações que permitiram aos ingleses, na cidade do Rio de Janeiro, então sede administrativa da América Portuguesa (1808-1811), o direito ao culto protestante, uma vez que a religião oficial do Reino de Portugal era o catolicismo romano, observando as diferenças entre os dogmas das duas religiões. A obra também retrata os vários conflitos entre católicos romanos e protestantes pela construção de um cemitério evangélico que culminou com a entrada em vigor das normas de 1850 que disciplinou a construção de cemitérios públicos no Brasil. O autor aborda fontes primárias, manuscritos e impressos eclesiásticos não eclesiásticos assim como uma bibiografia específica e registros históricos. O livro é de autoria do reverendo Heraldo Costa, Professor de História e Filosofia, filiado a Associação Nacional de História (ANPUH), Heraldo é autor de outros seis livros. Casado com Edna Sueli e pai de Fernando Costa. Atualmente, pastoreia a Igreja Metodista em Santa Bárbara e também é Diretor Comercial da Editora Chama.
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Bispo da Primeira Região Eclesiástica Paulo Lockmann
Conselho Editorial Coordenador Ronan Boechat de Amorim Selma Antunes da Costa Nádia Mello Pablo Massolar Luiz Daniel Gláucia Mendes Editora Nádia Mello (MT 19. 333) Assistentes de redação Camila Alves Carla Tavares Revisão Evandro Teixeira Diagramação Estúdio Matiz Circulação: 11.000 exemplares Esta publicação circula como suplemento do Jornal Avante, não sendo, portanto, distribuída separadamente.
Pentecostes e Vida Missionária Paz só em Jesus! As igrejas na ditadura: uma reflexão
Quebrando o silêncio contra a violência e a exploração sexual
14 Pequena História do Instituto
Metodista Ana Gonzaga
CALENDÁRIO LITÚRGICO
Pentecostes (8/06) Entre os hebreus, era comum a celebração da chamada Festa das Semanas. Isso porque ela acontecia sete semanas após a Páscoa. Nela, o povo dava graças ao Senhor pela colheita. Mais tarde, adquiriu mais uma dimensão celebrativa, a da proclamação da Lei (instrução) no Sinai, 50 dias após a libertação do Egito. Na era cristã, o Pentecostes tornou-se o último dia do ciclo pascal. A espiritualidade que nos orienta nesse período fala da presença consoladora do Espírito, que semeia nos corações a esperança do Reino de Deus e nos impulsiona para a missão. Símbolos do Pentecostes Pomba, fogo, vento, água (sinais da presença do Espírito Santo). Cor: vermelho Essa cor simboliza o fogo e o sangue dos mártires, é a cor das celebrações do Espírito Santo e da Igreja: Pentecostes.
Tempo comum – Vivência do Reino A segunda parte do Tempo Comum, que também é o período mais longo, começa na segunda-feira após Pentecostes e dura até a véspera do Primeiro Domingo do Advento, quando tem início o Ciclo do Natal. Sua espiritualidade comemora o próprio ministério de Cristo em sua plenitude, principalmente aos domingos, e enfatiza a vivência do Reino de Deus e a compreensão de que os cristãos são o sinal desse Reino. Se na primeira parte do Tempo Comum a ênfase é o anúncio, na segunda é a concretização do Reino de Deus. Símbolos para o segundo Tempo Comum Flores (sinalizando a Criação e a Nova Criação – consciência ecológica); feixe de trigo (sinalizando a colheita e os frutos da terra); a pesca / rede com peixes (sinalizando a missão do Reino); a mesa (representando a fartura e a comunhão); o triângulo (representando o equilíbrio e a constância necessários ao cotidiano cristão); e a coroa (sinalizando a consumação plena do Reino de Deus). Rua Marquês de Abrantes, 55, Flamengo Rio de Janeiro – RJ – CEP 22230-061 Tel: (21) 2557-7999 / 3509-1074 / 2556-9441 Site: www.metodista-rio.org.br Twitter: @metodista1re Facebook: www.facebook.com/metodista1re
Cor: verde Em ambos os períodos do Tempo Comum, usa-se o verde como cor litúrgica – sinalizando a Criação, a perseverança e a constância –, que pode ser combinado com o dourado (cor da realeza). (Extraído do Calendário Litúrgico oficial da Igreja Metodista)
Reflexão bíblica
Pentecostes e Vida Missionária Atos 2.1-47 Identificando o perfil de uma Igreja Missionária
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ara falar da ação missionária ou, se quiserem, de uma Teologia da Missão, muitos textos podem ser utilizados, desde o Gênesis e seus relatos da criação até a mensagem do Apocalipse em sua natureza de revelação do Espírito, que traz vida em meio à morte e opressão, juízo aos poderes deste mundo. Pessoalmente eu escolhi um relato dependente da tradição do Pentecostes em Jerusalém como elemento histórico salvífico, pontualizador de uma ação do Espírito que traz vida ao mundo e torna visível a Missão da Igreja. Até o dia de Pentecostes, os discípulos vinham vivendo uma expectativa, marcada pelo medo e a falta de perspectiva, onde a pergunta era: O que fazer? Para onde ir? Jesus havia sido morto e ressuscitara, sendo elevado aos céus (Lc 24.51). Isso não aplacara a ira e indignação das autoridades judaicas. É verdade que a palavra de Jesus os alimentava e amparava: “Ficai em Jerusalém, até que do alto sejais revestidos de poder” (Lc 24.49). Como propósito de Deus, a cidade de Jerusalém tornou-se o início de tudo, especialmente no Evangelho de Lucas e Atos. Nesta primeira narrativa, após a introdução do Evangelho (Lc 1.1-4), segue-se a apresentação de Zacarias, como sacerdote, o qual, no templo em Jerusalém, recebe a revelação de que sua esposa Isabel, que era estéril, teria um filho, e este
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se chamaria João e cumpriria o ministério de precursor do Messias, preparando a partir de Jerusalém, conforme a revelação no templo (Lc 1.11-14), o caminho do Senhor, segundo anunciara o profeta Isaías (40.2-5). A mensagem foi: “Falai ao coração de Jerusalém...” Com a mesma autoridade do profeta, ou do anjo Gabriel a Zacarias, estamos sendo levantados para falar ao coração do Brasil. Assim é que a eles restava permanecer no Cenáculo, amparados mutuamente, mas encerrados e ansiosos. Os primeiros sinais deste acontecimento repentino foram:
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De repente, veio um vento forte, e encheu toda a casa. A primeira evidência que a Igreja experimentou depois da ascensão de Jesus, como evidência da presença do Espírito, foi um vento forte no meio da reunião. Certamente esta foi uma sensação física. O Espírito de Deus nos toca, e, se estamos atentos, podemos sentir. A percepção é que ele enche toda a casa. Daí podemos deduzir duas coisas: a primeira é que não podemos programar a manifestação, pois é sempre repentina e segundo a propósito de Deus; a segunda é que eles a estavam buscando e que havia unanimidade entre eles nisto. Não é à toa que o texto de Atos diz mais à frente: “era um só o coração e a alma”. Unanimidade na busca da promessa é fundamental para que haja visível manifestação do Espírito e o poder na missão. Nada entristece mais o Espírito Santo do que divisões e partidarismos na Igreja,
pois, quase sempre, é resultado da falta de amor e negação da missão.
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Segundo o relato de Pentecostes, é que a expressão “foram vistas” (= oftesan o aoristo passivo do verbo = ver) me parece mais apropriada do que “apareceram”, pois mostra que este episódio das línguas de fogo seguida ao vento forte tem testemunhas sensitivas. Da mesma forma, sentir fisicamente o vento forte, ver as línguas de fogo, foi outra experiência marcante e sinalizadora da presença do Espírito Santo. Hoje, nós, em nosso racionalismo, queremos tornar menos extraordinária a ação e presença do Espírito Santo. Secularizamos o máximo que podemos, tudo que é epifânico (irrupção do divino e sobrenatural na história) nós dizemos ser mitológico ou ocorrido apenas nos tempos bíblicos, pois nós não precisamos mais hoje. Eu quero reafirmar que a presença do Espírito pode e deve ser esperada na caminhada missionária com sinais e prodígios sobrenaturais. Primeiro, porque nós hoje não somos mais crentes que os judeus e gentios que experimentaram tais evidências, e, por isso, dispensaríamos tais sinais para crer. Segundo, porque numa fé introspectiva ou intelectual, e, por isso, racional, o que é bom não anula a sede e necessidade da alma humana de ver Deus agir de maneira visível e poderosa. Prova disso é o crescimento da busca de religiões que enfatizam experiências pessoais e extraordinária com o divino. Em terceiro
lugar, porque o Deus da Bíblia está vivo e presente pelo seu Espírito na História e segue manifestando-se com múltiplos sinais, e cuja racionalidade é superior a nossa por ser conduzida pela sabedoria de Deus que em tudo é superior a nossa. Deste modo seja Deus verdadeiro!
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Ficaram cheios do Espírito Santo e falavam em outras línguas. Aqui já há o poder (= dynamis) na vida dos discípulos e discípulas. O vento e o fogo os tirou da imobilidade, e os colocou nas ruas de Jerusalém. Já não mais encerrados entre quatro paredes, nem intimidados, mas cheios de alegria e poder de Deus, moviam-se em direção ao povo, e, segundo o texto, passaram a anunciar as maravilhas de Deus. É a Igreja nas ruas, vista, percebida e entendida. A evidência é a da mobilidade, movimento e a da comunicação de algo que o povo percebe ser maravilhas de Deus e que lhes fala de modo que eles entendam e acima de tudo necessitam. Hoje somos uma Igreja no templo, todos percebem quando há uma Igreja reunida no Santuário; seja qual for a forma de expressão, não é difícil ver a Igreja no templo. O que está ficando difícil é ver a Igreja nas ruas. Estamos ficando tão comportados, tão identificados com o presente século que está ficando mais difícil ver a Igreja nas ruas. Não foi assim com João Wesley. Aonde ele chegava havia uma comoção na cidade e, às vezes, até tumulto. As almas eram visivelmente afetadas. Parece que a fama que o seguia era a mesma que seguiu a Paulo e Silas, em Tessalônica: “Os que têm revolucionado o mundo chegaram até nós”. Prova da incompreensão em Jerusalém é que alguns disseram que estavam embriagados (At 2.13).
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Um leigo, um pescador, homem rude como Pedro, torna-se um intérprete dos Profetas e o primeiro pregador do cristianismo primitivo. Os efeitos
em Pedro são: a) Dele é retirado o medo de comprometer-se com Jesus ou de ser preso; b) A ele é dada coragem para enfrentar os que se opõe; c) A ele é dada sabedoria de Deus para saber relacionar corretamente a ação do Espírito presente naquele momento e a Palavra de Deus conhecida por todo o Israel, ou seja, a mensagem do Profeta Joel; d) A ele é dada palavra ungida e que tocou no coração das pessoas a ponto de três mil crerem no Jesus que havia sido crucificado: “Deus o fez Senhor e Cristo!” (At 2.36).
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Pentecostes como celebração da fé e da tradição da igreja de Atos dos Apóstolos (At 2.42-46). A Igreja nascida do propósito de Deus e na unção do Espírito Santo desenvolveu características que são indissociáveis de seu modo de ser. A isso chamamos tradição, ou seja, um conjunto de experiências e práticas que designam quem somos e tornam-se símbolos da unidade da Igreja. Quais são? Não é possível declinar todos, mas sublinhamos aqui as que se encontram em Atos 2.42-46 e que precisamos retomar em nosso meio, hoje tão confuso doutrinária e religiosamente. a) “... doutrina dos apóstolos”
Isto significa o ensino de Jesus, a permanência da Palavra no meio da comunidade ou o que alguns exegetas afirmam ser o círculo sinagogal cristão, ou seja, um espaço docente onde a fé dos apóstolos era compartilhada e ensinada. A Escola Dominical e os grupos pequenos de discipulado são hoje espaços para promovermos a sã doutrina. b) “... na comunhão, no partir do pão...” Havia a consequente e celebração da fé, ou seja, o culto propriamente dito. Onde há uma comunidade cristã tem que haver uma expressão de adoração e serviço a Deus. Junto a esta celebração era parte permanente a ceia como expressão de profunda comunhão e uni-
dade, era celebrada na forma de uma refeição singela. Esta refeição é também uma denúncia num mundo que tira as pessoas da mesa da refeição. Sim, hoje, poucos comem bem, muitos passam fome; lembremo-nos das crianças indígenas no Mato Grosso do Sul. c) “...e nas orações...” Ao lado da catequese e do culto estava o movimento de oração na Igreja. Assim como não existe Igreja sem ensino ou sem culto não existe Igreja sem oração incessante diante de Deus. Quando Pedro foi preso, o texto de Atos 12.5 diz que havia oração incessante em favor dele. Sua libertação foi resposta de oração. Nossos cultos precisam ser espaço do testemunho de respostas de oração. d) “ ...Em cada alma havia temor, e muitos prodígios e sinais eram feitos...” Como parte da tradição catequética, cúltica e de oração, estava a ação sobrenatural que o Espírito Santo operava por meio dos apóstolos. São experiências fundamentais da tradição cristã. Será sempre uma quebra da unidade e da tradição querer resumir a natureza da Igreja a um destes momentos ou mesmo excluir um deles. Tenho dito: o Jesus que ressuscitou a Lázaro e curou Bartimeu da cegueira continua vivo e pronto para atuar. Nossa fé não se apoia em milagres, mas em Jesus; porém os milagres são estímulos a nossa fé; fazem parte da vida e da missão da Igreja. Hoje, alguns, sobre o pretexto de fugir de uma teologia intelectual, fria e formal, abandonam a reflexão e o ensino, e, assim, esquecem a importância da catequese ou discipulado. Aí temos uma Igreja sem profundidade bíblica, crentes entusiastas, mas sem maturidade espiritual, vulnerável a todo o vento de doutrina. Por outro lado, há crentes que resumem a natureza da Igreja a uma concordância com um determinado número de afirmações
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doutrinárias, negando toda e qualquer manifestação sobrenatural. Entre uma e outra expressão de radicalidade andam os partidarismos que conspiram contra a Unidade da Igreja, conforme dada pelo Espírito a partir do Pentecostes. Por outro lado, há crentes que resumem a natureza da Igreja a uma concordância com um determinado número de afirmações doutrinárias, negando toda e qualquer manifestação sobrenatural. Entre uma e outra expressão de radicalidade andam os partidarismos que conspiram contra a Unidade da Igreja, conforme dada pelo Espírito a partir do Pentecostes.
vemos no item 5, ou seja, o modo de ser da Igreja, que transmitia reverência, comunhão, amor, solidariedade e o poder de Deus. O resultado natural deste testemunho da vida comunitária foi:”... louvando a Deus, e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos”, (At 2.47). Deus em Cristo, manifestava graça, amor e poder na vida das pessoas.
Pentecostes como estímulo à unidade da Igreja
a) “... os que creram estavam juntos e tinham
tudo em comum... distribuíam entre todos à medida que tinham necessidades... A consequência inevitável do compartilhar a fé, o pão e as experiências era um compromisso com os que tinham menos, e mais ainda com os que nada tinham. Ao repartir os bens, o dar é uma exigência da natureza da Igreja nascida no Pentecostes. É também o ensino de Jesus...”mais bem-aventurado é dar do que receber... “ (At 20.35). Vivemos numa sociedade perversa e anticristã: não se dá ou quando se dá é para receber muito mais, expropriar o outro, o Estado, a Sociedade. Isso vimos nas CPIs do Congresso, ou nas negociações do Fundo Monetário Internacional, no qual se protege em primeiro lugar o dinheiro e não as pessoas. Não há Unidade na desigualdade, na relação injusta de trabalho, na falta de habitação, saúde e trabalho com salário justo. É um desafio para a unidade da Igreja o repartir justo dos recursos. b) Pentecostes como chamada ao testemu-
nho e ao crescimento da Igreja (At 2.47). A vida da Igreja de Atos dos Apóstolos causou um impacto muito forte em Jerusalém, e a razão é o que descre-
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No dia de Pentecostes, o derramar do Espírito Santo suscitou que a Igreja ficasse cheia do Espírito Santo, e os discípulos passaram a falar em diversas línguas. O que eles falavam? “Das grandezas de Deus”. Noutra tradução: “das obras de Deus”. Havia diversidade (várias línguas), mas havia unidade no essencial: o anúncio da obra maravilhosa e salvadora de Deus. Pode-se ainda dizer que nós não fizemos ainda tudo o que podemos em favor da Unidade. Prova disso é que existem facções entre nós. A questão grave nisto tudo é que propagamos uma heresia quando dizemos que fomos guiados pelo Espírito, a esta ou aquela posição, a qual tem como consequência a quebra da unidade, e ainda usamos a Bíblia e o Espírito Santo como pretexto. O Espírito não nos separa, pois seu fruto é o amor, quem nos separa são as nossas ideias e projetos pessoais. Porque se fossemos realmente guiados pelo Espírito Santo e tivéssemos o amor como prioridade, nós não viraríamos as costas para os que pensam diferente de nós. No fundo o grande problema da nossa falta de Unidade é a incredulidade! Sim, porque se crêssemos de verdade que nossas ideias e projetos procedem de Deus, nós não precisaríamos brigar com os irmãos,
mas orar por eles. Nossos partidarismos são consequência de nosso empenho de convencermos à força os que pensam diferente de nós, e, quando não conseguimos, viramos as costas para eles. Temos medo de perdermos nossas ideias e assim perdermos o controle do meio ambiente onde vivemos. E pior ainda, sermos controlados pelas ideias dos outros. Na verdade, o que existe em nós é uma necessidade de dominarmos e dirigirmos os outros, fruto da sociedade em que vivemos onde há uma batalha diária entre as pessoas. Finalmente, vocês perguntariam: Onde está a falta de fé? “Quando nós, verdadeiramente, cremos que a transformação interior é obra de Deus e não nossa, podemos dar descanso a nossa paixão por endireitar a vida e idéias dos outros”. (Foster, R. – Celebração da Disciplina – Editora Vida 1990 – SP). Sem essa paixão nosso partidarismo se transforma em civilizado respeito às opiniões alheias, e passamos a conseguir amar estes irmãos, e orarmos por eles, e quando oramos pelos que pensam diferentemente de nós, três coisas podem ocorrer: 1. Deus pode mudar os irmãos que pensam
diferente de nós, aproximando-nos; 2. Deus pode mudar a nós mesmo mos-
trando que nossas ideias não eram tão santas e perfeitas como pensávamos; 3. Deus pode mudar ambas as partes,
pois quando buscamos a Deus, Ele, por seu Espírito, põe amor em nosso coração pelas pessoas, e nos tornamos mais flexíveis e abertos às ideias e opiniões alheias e, como resultado, mais próximos e unidos.
Bispo Paulo Lockmann Primeira Região Eclesiástica
REPORTAGEM
Paz só em Jesus! Pastores de Igrejas em comunidades marcadas pela violência vivem o desafio de falar de vida onde há muitas mortes
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os últimos meses, a população do Rio de Janeiro tem sido bombardeada com informações quanto à onda de violência que tem impregnado todo o Estado. É certo que os problemas de segurança pública já vêm se arrastando há décadas. No entanto, nunca antes houve tanta massificação por parte das mídias na divulgação dos casos. Em contrapartida, uma análise detalhada dos números disponibilizados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), ligado à Secretaria de Estado de Segurança Pública, confirma a sensação de guerra urbana sentida pela
população. Os números oficiais do Rio, com relação a 2013, divulgados este ano, são alarmantes: 4.761 homicídios no Estado; 1.323 homicídios na capital; 60.777 assaltos a transeuntes no Estado; 28.043 roubos de veículos no Estado; 6.929 assaltos a estabelecimentos comerciais no Estado; 1.492 assaltos a residências no Estado; 3.536 roubos de carga no Estado; 5.477 roubos de celular no estado; 17.660 furtos de veículos no Estado; 7.222 menores apreendidos no Estado. Vale ressaltar que esses dados representam apenas os episódios registrados
em boletim de ocorrência. Sendo assim, os números podem ser bem maiores. Entretanto, a Secretaria de Segurança Pública informou, em nota, que a inauguração de companhias destacadas da PM nas zonas Norte e Oeste, na Baixada, em Niterói e São Gonçalo, e a implantação das delegacias de Homicídio da Baixada e de Niterói vão ajudar a reduzir os índices de criminalidade. O texto ressalta ainda que o atual governo recebeu o Estado com 41,3 homicídios por 100 mil habitantes, enquanto que em 2013 o índice foi de 28,9 por 100 mil habitantes.
O grande desafio missionário, hoje, é levar a igreja a interferir nesse processo com uma ação preventiva. Ela tem que chegar antes das drogas, do sexo e da violência
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Diante desse quadro, é de se esperar que o momento conturbado na área de segurança em que o Estado do Rio de Janeiro se encontra acabe por refletir na igreja. A violência, segundo o pastor Nélio Espírito Santo, líder da Igreja Metodista na Rocinha, em São Conrado, zona sul carioca, é um obstáculo para qualquer empreendimento no Rio. No entanto, ele diz que, no que se refere ao avanço missionário, não é um impedimento. “A Igreja se faz presente mesmo em áreas de grandes conflitos e tem sido respeitada pelos serviços que prestam nas comunidades”, enfatiza o ministro do Evangelho, que afirma ainda: “Por outro lado, por questões de segurança, em alguns momentos, se faz necessário evitar uma determinada localidade, mas não podemos nos ausentar definitivamente”. A maior favela da América Latina, em 2012, recebeu a implantação de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), que conta com cerca de 900 policiais militares. Contudo, o pastor Nélio frisa que, no caso específico da Rocinha, a pacificação está longe de ser uma realidade, principalmente após o desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza [ele desapareceu no dia 14 de julho de 2013, após ter sido detido por policiais militares e conduzido da porta de sua casa, na Favela da Rocinha, em direção à sede da UPP do bairro]. “A polícia militar perdeu muita credibilidade e, hoje, não consegue atuar nas áreas de maior conflito. Com isso, em alguns lugares da comunidade, o clima está mais tenso do que antes da chegada da polícia”, revela. A observação do pastor Nélio Espírito Santo sobre a situação da Rocinha é confirmada pelo Setor de Inteligência da Unidade de Polícia Pacificadora que divulgou que, um ano e dois meses depois da implantação da UPP, traficantes movimentaram R$ 10 milhões por mês na comunida-
de. Em abril de 2011, antes da ocupação da favela pela polícia, um levantamento da Delegacia de Combate às Drogas (DCOD) apontou que a quadrilha movimentava R$ 8 milhões. Nesse mundo das drogas, de acordo com o pastor Nélio, crianças de 7 e 8 oito anos de idade têm seus primeiros contatos com os entorpecentes. “O envolvimento com a violência acontece entre os 14, 15 anos, quando os adolescentes se envolvem em conflitos que geram brigas e mortes. Já entre os 17 e 18 anos, alguns estarão buscando um lugar de destaque no tráfico, disputando pontos de venda e distribuição de drogas”, assegura. Depois dos 24 anos, segundo o pastor, os sobreviventes começam a procurar ajudar para sair do tráfico. “Alguns buscam as igrejas, porém com uma vida bem destruída. Muitas vezes, com crimes praticados”, salienta. E completa: “O grande desafio missionário, hoje, é levar a igreja a interferir nesse processo com uma ação preventiva. Ela tem que chegar antes das drogas, do sexo e da violência”.
Resgate espiritual Após a chegada das UPPs nas comunidades cariowcas, a população da Baixada Fluminense deparou-se com o aumento da criminalidade. A situação ficou tão evidente que os prefeitos da região têm cobrado do governo do Estado políticas públicas para o enfrentamento da violência naquela localidade, alegando que o fato se deve à migração da bandidagem que deixou o município do Rio de Janeiro e rumou para a Baixada. Essa violência foi sentida de perto pelos membros da Igreja Metodista em Jardim Paraíso I, Nova Iguaçu. Recentemente, após a celebração de um culto, ladrões entraram pelos fundos da igreja, cortaram os fios externos de alarme, arrombaram a porta lateral e quebraram a central de alarme. “Eles levaram todo o equipamento de
som”, conta o pastor Edney Ferraz, líder local, revelando que algumas providências foram tomadas a partir do furto. “Colocamos um sistema de alarme diferenciado com números telefônicos cadastrados, câmeras para monitor o entorno da igreja, trocamos as trancas, e estamos pensando em colocar no seguro todo o patrimônio da igreja”, assevera. Toda essa problemática da criminalidade, na visão do pastor Rodney, está relacionada à destruição familiar, que gera graves inversões de valores. Ele conta que é bastante comum ouvir relatos de pessoas que conhecem famílias com históricos de destruição que passam por gerações. “Faz pouco tempo que ouvi a história de um menino que está envolvido com a criminalidade desde a infância. Filho de pai alcóolatra, a mãe precisava trabalhar o dia inteiro para sustentar a família. Criado pela avó, que não tinha pulso firme, ele acabou no tráfico. Esses jovens veem na criminalidade a oportunidade de poder, autoridade e consumo”, enfatiza. Para combater o ciclo vicioso de violência no Estado e no País, o pastor Edney aposta no discipulado. A Igreja Metodista em Jardim Paraíso I desenvolve o projeto O Discipulado Atingindo a Comunidade, que oferece reforço escolar, aulas de dança, lutas e música visando tirar crianças e adolescentes da vulnerabilidade social. “Além de discipular para que essa geração cresça sob os princípios do Evangelho, o papel da igreja é recuperar os valores espirituais das pessoas, para que possam recuperar a autoestima e serem regeneradas para uma nova vida em Cristo”, conclui. Confrontos no mundo físico se assemelham aos confrontos no reino espiritual. Essa é a opinião do pastor Wallace de Moraes, líder da Igreja Metodista em Bacia de Anchieta, no Rio de Janeiro. Algumas pessoas, de acordo com ele, são como uma comunidade dominada pela
força do tráfico. “Algumas com baixo poder bélico, e outras como um verdadeiro arsenal da maldade. Algumas poderiam nos levar a pensar que tal ‘comunidade’ jamais poderia ser dominada, transformada e pacificada”, prega. No entanto, o pastor Wallace diz que, na batalha espiritual para libertar as pessoas dominadas pelo poder da maldade, é preciso de armamento de grande potencial. “Qualquer pessoa ou comunidade pode ser livre, liberta, porque não lutamos contra pessoas, mas contra o arsenal da maldade que se instala dentro delas. Para manietar o valente, é preciso conhecer e saber usar as armaduras de Deus”, observa. E pergunta: “E quais são as armaduras de Deus?”. A resposta está na carta aos Efésios escrita pelo apóstolo Paulo (Ef 6.1018): “No demais, irmãos meus, fortalecei-vos no Senhor e na força do seu poder Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para que possais estar firmes contra as astutas ciladas do diabo; porque não temos que lutar contra carne e sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais. Portanto, tomai toda a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau e, havendo feito tudo, ficar firmes. Estai, pois, firmes, tendo cingidos os vossos lombos com a verdade, e vestida a couraça da justiça, e calçados os pés na preparação do evangelho da paz; tomando sobretudo o escudo da fé, com o qual podereis apagar todos os dardos inflamados do maligno. Tomai também o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus, orando em todo tempo com toda oração e súplica no Espírito e vigiando nisso com toda perseverança e súplica por todos os santos”. Patrícia Scott Jornalista
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As igrejas na ditadura: uma reflexão
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tema O papel das igrejas na ditadura traz com ele três palavras: memória, verdade, justiça. As três estão conectadas. Estamos falando de um passado, mas de um passado mal resolvido, que deixou marcas, feridas que ainda não foram cicatrizadas. São feridas abertas porque o passado não foi construído com verdade e justiça. Sou de uma geração em que a palavra “ditadura” não era utilizada para falar desse tempo vivido – utilizava-se a palavra “revolução”. Era uma forma de silenciar a memória. E, neste caso, mentir (revoluções são de outra natureza). Como as feridas abertas nesse passado feito de injustiça, repressão, exclusão e crueldade com as prisões arbitrárias, a tortura e a morte poderiam ser curadas com falseamento da verdade e com o apagamento da memória? Por isso é preciso reafirmar que memória se constrói afinal, o passado ainda está em nós. E ele está sendo reconstruído por um Brasil que quer curar as feridas, cicatrizar as fendas abertas nos corpos e na alma. Para isso é preciso buscar a verdade e fazer a justiça fluir como um rio. A ditadura não acabou. Não. Ela foi silenciada e está introjetada: ela ainda existe nas instituições e suas práticas. Por isso o autoritarismo ainda é realidade. Por isso ainda há tortura nas prisões. Por
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isso ainda precisamos perguntar “Onde está o Amarildo?” Nesse sentido, a memória coletiva nunca deve ser vista apenas como revisão ou recuperação do passado. A memória precisa ser vista como utopia. É o olhar para o passado como algo que alimenta o presente e o futuro. Aqui a memória edifica as pontes que ligam o presente ao passado, sendo o presente não uma oposição ao passado, porque uma vez que o passado não mais existe, a lembrança é “uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente” (Maurice Halbwachs)[1]. Evoco aqui outras afirmações que respaldam este pensamento: A memória traz em si a possibilidade de vermos o presente, não como uma realidade fixa e imutável, como algo eterno, mas como um produto humano, como um momento de passagem, uma ponte através da qual o passado constrói o futuro. E é para o futuro que se volta, assim, essa memória ativa, afirmando o poder e a força da ação humana sobre sua própria história, desnaturalizando o tempo humano. (Norberto Luiz Guarinello)[2] A memória tem uma função subversiva. (...) Talvez que a memória das
esperanças já mortas seja capaz de trazê-las de novo à vida, de forma que o passado se transforme em profecia e a visão do paraíso perdido dê à luz a expectativa de uma utopia a ser conquistada. (Rubem Alves)[3] Não existimos para dizer o que é, mas para fazer o que não é. (Cornelius Castoriadis)[4]
No contexto do período de implantação da ditadura militar, 1964, as igrejas evangélicas guardavam suas marcas identitárias: eram fortemente marcadas pela ética pietista, predominantemente individualista, e a pregação da separação igreja-mundo e da não-preocupação com as questões terrenas, que restringiam a compreensão de missão no Brasil ao anticatolicismo e à pregação espiritualizada da fé cristã, com fins conversionistas de adesão de novos fiéis. No entanto, havia brechas: a abertura de pessoas e grupos do Brasil para o contato com as expressões de unidade e cooperação internacionais (movimento ecumênico), que despertou para uma nova dimensão, a responsabilidade sociopolítica dos cristãos, que estimulou uma atuação das igrejas para além das fronteiras denominacionais. A fundação do Conselho Mundial de Igrejas (1948) deu nova forma a esta
significação, com a articulação de diferentes movimentos e motivações para a ação cristã. O Setor de Responsabilidade Social e o Departamento de Ação Social da Confederação Evangélica do Brasil foram os destaques deste momento. Uma outra dimensão que contribuiu com este processo foi o novo pensamento teológico, que irrompeu na Europa no início do século XX. Este vinha sendo obstruído no Brasil pela compreensão fundamentalista da educação teológica (anti-intelectualista e contrária a reflexões que fossem além de uma leitura literalista da Bíblia), mas encontrou brechas nos anos de 1950 para ser disseminado nos seminários evangélicos. Esta nova forma de fazer teologia procurava contextualizar o estudo da Bíblia e os ideais da Reforma Protestante, isto é, lembrá-los, interpretá-los e re-significá-los à luz dos desafios do tempo presente. O Seminário Presbiteriano de Campinas, reconhecido, à época, como uma das melhores escolas de teologia do Protestantismo latino-americano, destacou-se no processo, tendo à frente nomes como o de Richard Shaull. Os movimentos de juventude evangélica (estudantil e no interior das igrejas) acompanharam o aprofundamento da inserção dessas novas dimensões e conseguiram representar uma espécie de síntese do novo pensamento teológico e dos ideais de unidade e responsabilidade sociopolítica dos cristãos. Estes movimentos formaram lideranças expressivas para as igrejas evangélicas e para o movimento ecumênico nacional e internacional e realizaram atividades que transformaram a atuação das igrejas, como encontros de estudo e os acampamentos de trabalho em áreas empobrecidas do País. O destaque na ação da juventude foi a União Cristã Estudantil do Brasil
(UCEB) e o Departamento de Juventude da Confederação Evangélica do Brasil, que ganharam expressão internacional. Os atores desse processo de renovação eram clérigos e leigos, alguns das cúpulas, muitos das bases eclesiais, jovens e adultos, que possibilitaram a formação de movimentos que passaram a desafiar as igrejas, com mudanças. O ápice deste processo se manifestou nos anos de 1950 e 1960 mas ele foi interrompido com uma reação conservadora das hierarquias eclesiásticas, reforçadas pelo golpe militar de 1964, que desencadeou um processo repressivo na vida do País. A reação dos dirigentes pode ser compreendida como o resultado de um histórico fechamento ao novo, com o qual as igrejas de toda forma deveriam, cedo ou tarde, se defrontar. Os grupos conservadores, justificando o “medo do comunismo”, recusavam-se a aceitar a pluralidade e a diversidade de pensamentos e práticas, trabalhando para que prevalecesse apenas a sua concepção de igreja e de fé. Este “medo do novo” era expresso não somente em relação aos grupos ecumênicos, mas também a outras manifestações e práticas diferenciadas do modo de ser consolidado, como, por exemplo, a ação pentecostal e dos movimentos de renovação carismática. Também é importante reconhecer que as pessoas que ocupam espaços de poder nas igrejas sempre tiveram dificuldade de lidar com as perspectivas diferentes na dinâmica da prática eclesial seja no campo teológico ou no campo pastoral que levem as igrejas para além do mesmo, que criem pensamento e postura críticos, e desenvolvam uma espiritualidade encarnada. Por isso a reação de lideranças e segmentos das igrejas ao processo de renovação, que trazia os temas da unidade/ecumenismo e da res-
ponsabilidade sociopolítica para a prática pastoral, já acontecia desde os anos 50 e foi reforçada com exclusões e expurgos facilitados pelo sistema estabelecido pela ditadura militar. Claro! Já escrevia o renomado psicanalista Carl Jung: “Pela lógica, o contrário do amor é o ódio; o contrário de Eros, Phobos (o medo). Mas, psicologicamente, é a vontade de poder. Onde impera o amor, não existe vontade de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro”.[5] Ao mesmo tempo, houve resistência. Gente que sofreu na carne pelo Reino de Deus e sua justiça e viveu na clandestinidade, habitou os porões da ditadura. Estamos aqui hoje para lembrar. Não com o espírito de rancor e vingança, porque ela pertence a Deus. Mas para lembrar, trazer a memória silenciada à vida, a fim de ressaltarmos a verdade, em busca da justiça. E acima de tudo, em busca da realização do amor. Essa é a vontade de Deus como diz o Evangelho de João, “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (João 8.14) e o arcebispo de São Paulo D. Paulo Evaristo Arns, “Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça”. Notas: [1] Memória Coletiva. São Paulo: Vértice/ Editora Revista dos Tribunais, 1990, p. 71 [2] Memória coletiva e história científica. Revista Brasileira de História. São Paulo: Espaço Plural, v.14, n.28, 1994, p. 188-189 [3] Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 19. [4] A instituição imaginária da sociedade. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p.197 [5] Psicologia do inconsciente. Petrópolis, Vozes, 1978, p. 49. Magali do Nascimento Cunha Jornalista, professora e Doutora em Ciências de Comunicação
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Quebrando o silêncio contra a violência e a exploração sexual
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ecentemente, uma pesquisa divulgada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) causou polêmica e chocou muita gente ao informar que 65% dos entrevistados concordavam que mulheres com roupas provocantes mereciam ser atacadas. Uma avalanche de campanhas contra os dados tomou conta das redes sociais. O instituto reconheceu que estava errado e corrigiu: não seriam 65% e sim 26%. Esse fato nos leva a refletir sobre a imagem da mulher na sociedade moderna. Os 26% ainda são muito. Estupro é crime e nada o justifica. Não vamos fazer, aqui, apologia à erotização através de roupas ou do que quer que seja. Segundo o coordenador do Serviço de Violência Sexual do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, Jéferson Drezett, no caso específico das mulheres adultas e adolescentes acolhidas pelo programa, em aproximadamente 70% das ocorrências, os ataques acontecem durante situações cotidianas, ou seja, quando geralmente as mulheres não estão com roupas provocantes. Quantas mulheres foram atacadas no passado com vestimentas que cobriam o corpo todo? O que estimula o estupro é a
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pornografia cada vez mais facilitada pela internet e pela TV. Apesar de todos os movimentos feministas e de atos heroicos como o que custou a vida de 129 operárias na primeira greve feminina da história, a violência contra a mulher aumenta. Em 1857, operárias têxteis protestaram, em Nova Iorque, pela redução da jornada de trabalho de 16 para 10 horas e por outras melhorias no trabalho. Foram reprimidas pela cavalaria da Polícia. Muitas fugiram para dentro da fábrica para se proteger. Mas os portões foram trancados por fora e a Polícia ateou fogo no prédio por determinação dos patrões, causando a morte de 129 mulheres carbonizadas ou por asfixia. Cento e cinquenta e sete anos depois, nos deparamos com a notícia de que, a cada 12 segundos, uma mulher sofre violência no Brasil. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em cinco anos os registros de estupro no país aumentaram 168%. Segundo o Ministério da Saúde, apenas entre janeiro e junho de 2012, pelo menos 5.312 pessoas sofreram algum tipo de violência sexual. Quase a metade das vítimas de violência sexual atendidas em 2013 pelo
Programa Bem-me-quer, do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, tinha até 11 anos de idade. Como autora e relatora da CPI da Exploração Sexual da Câmara dos Deputados, tenho acompanhado o sofrimento de crianças abusadas. São marcas que ficam por toda a vida. Em Coari-AM, a CPI conseguiu prender o prefeito Adail Pinheiro, acusado de chefiar uma rede de exploração sexual infantil. Testemunhas contaram que foram estupradas pelo prefeito aos 10 anos. O negócio era tão sujo que escutas telefônicas mostraram que avião fretado com dinheiro do Fundo Municipal de Saúde de Coari deixou de socorrer um bebê com grave problema cardíaco para transportar convidados para festa com o prefeito. O bebê acabou morrendo. Em Manaus, adolescentes fazem programas em jet ski. Lá, os barcos são usados como motel e as redes de exploradores atravessam os rios. Em São Paulo, ao redor do Itaquerão – exatamente onde o Ministério Público atua – vi crianças de 10 anos sendo exploradas sexualmente. Em Brasília, meninos de 10 a 16 anos eram prostituídos perto das rodoviárias atraídos pelo dia do pagamento dos servidores, quando recebiam até R$ 1.500.
A CPI também mandou para a prisão o ex-deputado estadual Nilson Nelson Machado, o Duduco, de Florianópolis, em Santa Catarina, acusado de maus tratos e abusos sexuais contra menores que ele adotava. As vítimas dos pedófilos são de famílias pobres e recebem promessa de dinheiro fácil. No Rio de Janeiro, a cidade do novo Maracanã, cuja reforma custou mais de 1 bilhão de reais, meninas eram exploradas até por R$ 1,99. Esta barbaridade acontecia na Ceasa, em Irajá, e foi descoberta pela CPI da Exploração Sexual da Câmara Municipal que presidi enquanto vereadora. Em 2013, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República recebeu, através do Disque 100, 35.091 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes. Desse total, 7.217 eram referentes à exploração sexual. Apenas nas 12 cidades-sede da Copa foram 1.360 casos. Mas a realidade é ainda pior. Isto porque o crime sexual é subnotificado. Na maioria das vezes, o agressor é da própria família e o medo de denunciar impede que muitos casos entrem para a estatística.
O despreparo da Polícia em receber a denúncia acaba submetendo muitas mulheres à revitimização. A saúde é outro problema. Nem sempre o acolhimento é adequado. Tanto que, no ano passado, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei 12.845, que determina o atendimento imediato e obrigatório em hospitais integrantes da rede do SUS a vítimas de violência sexual. A exploração sexual seja com crianças ou mulheres é fruto do machismo e da falta de reconhecimento do amor igual e incondicional de Cristo por todo ser humano. Muitas mulheres cristãs são violentadas em casa e também silenciam. Não buscam ajuda. A sociedade e a Igreja precisam se envolver em campanhas permanentes de combate a esse mal. E incentivar a denúncia que pode ser feita pelo Ligue 180 sem que a vítima se identifique. A mídia, que tanto dita modas e costumes, tem um papel fundamental no combate à exploração e toda forma de violência contra a mulher e a criança. Colocamos uma campanha na rua “Quebrando o silêncio” que incentiva a denúncia e divulga a Lei Maria da Penha, uma das maiores conquistas em termos
de legislação em defesa das mulheres. A lei proíbe penas pecuniárias, ou seja, pagamento de multas ou cestas básicas. E dá cadeia. Como diz a Palavra de Deus em I João 5.19: “... o mundo jaz no maligno”. Prova disto foi uma mudança recente que aconteceu nos Estados Unidos. A Associação de Psiquiatria Americana passou a classificar a pedofilia- pasmemcomo orientação sexual. Nós da bancada evangélica lutamos para que esse tipo de aberração não chegue aqui. Contra a exploração sexual e toda forma de violência a primeira de todas as dicas é o investimento na família, a educação cristã. O sábio Salomão já dizia: Instrui o menino no caminho em que deve andar, e até quando envelhecer não se desviará dele. (Provérbios 22:6).
Deputada Federal Liliam Sá Relatora de CPI do Turismo e Exploração Sexual Infantojuvenil
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História Viva
Pequena História do Instituto Metodista Ana Gonzaga
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rica história do Orfanato Ana Gonzaga, inaugurado no dia 1º de maio de 1932, é fruto dos sonhos de duas mulheres que se conheceram com mais de 60 anos e desenvolveram uma amizade muito rica e inspiradora. A primeira delas chama-se Layona Glenn, uma missionária enviada pela Igreja Metodista dos Estados Unidos para servir ao Brasil, aqui chegando em 1894. Ela viveu 39 anos de sua vida trabalhando no e pelo Brasil. Um dos seus sonhos era um orfanato, uma instituição para abrigar crianças órfãs ou carentes. Conseguindo aprovação de suas ideias, mas sem recurso financeiro de nenhuma espécie, coube a ela o encargo de liderar o projeto e arrecadar recursos para a obra. Isto ocorreu em 1927, quando ela dirigia a escola do Instituto Central do Povo, no Rio de Janeiro. Como ela mesmo declarou, “poucas pessoas mostravam-se interessadas no projeto”. A primeira oferta foi do Dr. Antenor Dias, dentista que trabalhou com muita dedicação, por mais de 30 anos, no Instituto Central do Povo. O valor dessa doação foi na moeda da época, de quinhentos mil réis. Outro grande amigo do projeto era o Rev. Osório Caire, que era, na época, pastor da Igreja Metodista de Vila Isabel. Quando em visita ao Instituto Central do Povo (ICP), Layona Glenn lhe falou da oferta recebida, cujo valor era bem
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razoável na época. Entusiasmado, o Rev. Osório disse a Layona que gostaria de apresentar-lhe a uma senhora membro de sua igreja, que era crente fervorosa, caritativa e bem abastada. “Creio eu” – disse-lhe ele – “que ela será capaz de lhe dar outro tanto”. Combinaram então que, no dia seguinte, ele a acompanharia à casa de Anna da Conceição Gonzaga, que morava no bairro da Tijuca. Caminhando para a visita, o Rev. Osório lhe aconselhou a não fazer qualquer pedido direto mas que apenas lhe apresentasse os seus planos. Se ela fosse simpática à ideia, haveria de ofertar o quanto quisesse. Sábio conselho aquele porque, nem de leve, ninguém poderia sequer imaginar o tamanho do coração de Anna da Conceição Gonzaga. Apesar de ser uma mulher de recursos, vivia simplesmente, numa casa de vila que tinha um pequeno jardim e, no muro, uma trepadeira corona regina cobria as pedras com uma profusão de flores cor de rosa. Como disse Layona Glenn, violetas e amores-perfeitos ladeavam o caminho de cimento que ia do portão de entrada à porta da casa. As duas flores definiam certamente o caráter de Anna. A violeta, pela humildade, e o amor-perfeito, que era exatamente o tipo de amor que ela nutria pelas pessoas. Sobre a amizade que juntou essas duas mulheres, a própria Layona Glenn testemunhou: “Raras vezes acontece de
duas pessoas estranhas, que se encontram nos anos avançados da vida, sintam-se mútua e irresistivelmente atraídas e formem uma amizade sincera, inabalável e duradoura”. Ela falava de seu primeiro encontro com Anna Gonzaga. Esta tinha 66 anos e Layona, 61. Ao apresentar com muita singeleza os planos e mostrar um álbum de fotografias de alguns orfanatos da Igreja Metodista nos Estados Unidos, os visitantes foram surpreendidos com uma pergunta de Anna Gonzaga: “A senhora conhece minha fazenda em Inhoaíba?” A visitante respondeu que conhecia apenas de vista. – Pois bem – continuou ela – não acha que seria um bom lugar para um orfanato? Pensando que Anna Gonzaga queria lhe vender a fazenda para o estabelecimento do orfanato, Layona respondeu: – Sem dúvida, Dona Anna, seria muito apropriada mas não podemos nem sonhar com uma fazenda tão vasta e de preço tão elevado. – Não estou falando de preço – insistiu Anna – estou me referindo à localização. Sem poder sequer imaginar sua intenção e receando magoá-la, Layona Glenn lhe respondeu diplomaticamente: – Na verdade, dona Anna, o lugar seria ideal, mas nós nem de leve podemos considerar tal coisa, por estar muito além de nossas possibilidades.
Em homenagem àquela que fora fiel no muito e que havia dado o que tinha para a realização do seu sonho de amor, o seu nome foi dado à instituição
– Pois está muito bem – continuou Anna com naturalidade – Está muito bem! Vou doar a fazenda de Inhoaíba para o Orfanato. Ao ouvir isto, Layona levou um susto, sem poder acreditar no que ouvira. A expressão do seu rosto era tão forte que Anna Gonzaga riu muito e, “muito espontaneamente”, fê-la voltar à realidade com as seguintes palavras: – Pode crer, Miss Glenn, estou falando sério! Vou doar ao Orfanato minha fazenda de Inhoaíba!
A explicação do milagre Layona Glenn, já com 83 anos de idade, veio ao Brasil em 1949 para a inauguração do prédio principal do Orfanato Ana Gonzaga, que ocorreu no dia 7 de setembro daquele ano durante a festa anual da instituição. Naquele ano, o dia 1º de maio caiu num domingo. Para as comemorações, ela escreveu o livrinho Dona Anna da Conceição Gonzaga – um tributo de homenagem, por sua amiga Layona Glenn. Os diálogos acima fazem parte da narrativa de Miss Glenn, como era conhecida. O alvo inicial de sua campanha
era arranjar 30 contos de réis para adquirir um sítio modesto para dar início à obra. A propriedade doada valia na época mais de mil contos de réis, uma verdadeira fortuna. Anna Gonzaga, que era solteira, estava há muito tempo preocupada com o problema da disposição que deveria dar aos bens que herdara de seus pais. Pouco antes do encontro das duas, orando à noite, ajoelhada, ela resolvera dar tudo o que possuía a Deus. Como diz Miss Glenn: “Ficou tão impressionada que, levantando-se dos joelhos, embora sozinha, exclamou em alta voz: Vou dar tudo a Deus, que tudo me deu!”. Continuando, ela declarou aos dois visitantes que estava certa de que era esta a oportunidade que Deus lhe apresentava para cumprir a promessa feita naquela noite.
Tempo de preparação Apesar da generosa oferta de amor, não foi fácil transformar o sonho em realidade. A burocracia jurídica para a transferência da fazenda demorou muito. Foram necessários alguns anos para a regularização da propriedade. Ansiosa para espalhar a Boa-Nova de salvação, ela apressou
a fundação da Igreja Metodista em sua fazenda. No dia 31 de julho de 1927, foi inaugurada a “Casa de Oração” da futura Igreja Metodista do Salvador. O trabalho foi organizado pela Igreja Metodista de Vila Isabel, liderado pelo Rev. Osório Caire. Como pregador local, por sugestão de Anna Gonzaga, foi nomeado Manoel Batista Leite, que mudou-se para Inhoaíba com sua esposa Violeta para organizar a igreja. Foi nomeado pastor, em outubro daquele ano, das igrejas de Inhoaíba, Campo Grande e Realengo. Com novas campanhas financeiras, foram obtidos recursos para as obras que eram necessárias para a instalação do orfanato. Finalmente, no ano de 1932, elas estavam quase ao final. Com participação de Ana Gonzaga e o Orfanato foi inaugurado no dia previsto, 1º de maio de 1932 na presença de muitas autoridades da Igreja Metodista. Em homenagem àquela que fora fiel no muito e que havia dado tudo o que tinha para a realização do seu sonho de amor, o seu nome foi dado à instituição. João Wesley Dornellas Pesquisador do Metodismo (em memória)
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