Fe e nexo dez 2010 abr 2011

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Carta ao leitor

Natal: vamos presentear Jesus! Quando chega o fim de ano, uma das imagens que nos vêm à mente é a troca de presentes típica das reuniões natalinas. No entanto, a maioria se esquece de presentear o aniversariante desse dia: Jesus. O texto do bispo Josué Adam Lazier nos transporta para o nascimento do Filho de Deus, quando os reis magos levaram ouro, incenso e mirra para presenteá-lo. Além de explicar o simbolismo por trás de cada elemento, ele nos leva a refletir sobre os sinais da graça de Deus representados pelos presentes dos reis magos. O reverendo Marcelo Carneiro também lembrou do Cristo ainda menino. Ele faz uma referência ao tratamento dispensado por Jesus às crianças. “Nossa esperança messiânica pode e deve estar focada nessa figura

da criança-messias, que é Jesus mesmo, e que em seu ministério deu tanta importância ao tema. Em seu artigo, bispo Paulo Lockmann também citou o clima de guerra instaurado no Rio em função do combate ao narcotráfico. No entanto, ele vê o Natal com uma resposta para o clamor do povo em tempos de aflição. Com base no livro de Isaías, capítulo 9, ele ressalta: “a visão de esperança para os aflitos”. Já o pastor Luiz Carlos Ramos destaca que embora constitua umas das importantes solenidades cristãs, o Natal já era celebrado antes de se tornar comum entre os crentes, lembrando ainda que: “os cristãos, então, ‘evangelizaram’ essa festa, reinterpretando-a à luz dos escritos bíblicos”. Ele ainda

diz: “Os que criticam a comemoração do Natal, acusando-o de ser uma festa pagã, devem ser advertidos de que não há uma única festa religiosa sequer que seja absolutamente genuína e exclusivamente cristã”. Uma coisa é certa. Independente da procedência da festa, é importante lembrar do que originou a maior expressão de amor que a humanidade já conheceu: Jesus deu sua vida por todos nós. E devemos presenteá-lo, reconhecendo-o como nosso senhor e salvador. Ele nasceu, morreu, mas ressuscitou, e vivo está para todo sempre. Feliz Natal e um abençoado Ano Novo. Nádia Mello Editora

Mais qualidade com Fé e Nexo Nesta edição, a Fé e Nexo presenteia você com um novo projeto gráfico. Além do conteúdo reflexivo e de formação, e da linguagem simples e acessível de sempre, a partir de 2011 a revista conta com um visual mais moderno. O novo layout ajuda na compreensão do conteúdo informativo, tornando a leitura de temas relevantes sobre o Cristianismo ainda mais leve e prazerosa.

Outra novidade é a periodicidade da Revista, que passa a ser quadrimestral. A medida visa à otimização dos recursos na área, nos permitindo investir também em outros braços da Comunicação. Todos esses esforços visam cumprir com excelência a nossa parte na Missão, contribuindo com o crescimento e a maturidade da fé do cristão metodista.


Nº 30 • dezembro 2010 / abril 2011

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Natal: Resposta de Deus, à terra aflita

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Sinais da graça no natal ou natal com os sinais da graça?

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O Natal do Sol da Justiça

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Um Natal vazio

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A criança é o messias

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Maranatha, vem Senhor Jesus!

Expediente Bispo da Primeira Região Eclesiástica Paulo Lockmann Conselho Editorial Ronan Boechat de Amorim - coordenador, Selma Antunes da Costa, Deise Marques, Marcelo Carneiro, Nádia Mello, Paula Damas Vieira. Editora Nádia Mello (MT 19.333) Assistente de redação Paula Damas Revisão Evandro Costa Capa e Diagramação Pablo Massolar Circulação: 10.500 exemplares Esta publicação circula como suplemento do Jornal Avante, não sendo, portanto, distribuída separadamente.

Capa Uma série de textos relacionados ao nascimento e vida de Jesus nos ajuda a refletir sobre o sentido do Natal e nos aponta para a esperança de uma vida melhor em Cristo. Ao mesmo tempo em que os artigos destacam um tempo de festa ressaltam a manifestação da graça de Deus no Evangelho de Jesus. O conteúdo aborda elementos em torno da vinda de Jesus, com percepções que vão do Deus-criança ao Deus da promessa; da origem da comemoração do seu nascimento ao significado da mensagem cristã. A foto utilizada na capa, (cedida pela Nações Unidas) retrata crianças do campo de refúgio em Dakhla, costa ocidental do Deserto do Saara, porção sul do Marrocos e que luta pela Independência desde 1981 e sofre com forte violência devido a opressão marroquina.

Calendário litúrgico Advento

Rua Marquês de Abrantes, 55, Flamengo, Rio de Janeiro - RJ CEP 22230-061 Tel: (21) 2557-7999 / 3509-1074 / 2556-9441 Site: www.metodista-rio.org.br Twitter: @metodista1re Facebook: www.facebook.com/metodista1re

Período: os quatro domingos que antecedem o Natal Cor Litúrgica: o roxo, o lilás e o rosa. O roxo significa contrição, daí a matização das cores no sentido de ir clareando conforme a chegada do Natal. O rosa, geralmente, é usado no quarto domingo do Advento, que simboliza a alegria. Símbolos litúrgicos: Coroa do Advento, simbolizando a realeza de Cristo; velas simbolizando a chegada de Cristo como luz do mundo; luzes, símbolo da luz que ilumina as trevas, o próprio Cristo.


Natal: Resposta de Deus, à terra aflita Isaías 9.1-7

Entre Israel e o Brasil Estamos chegando a mais um Natal, e chegamos em aflição, pois há guerra e rumor de guerra no mundo (Coreias, Iraque, Irã, etc.) e no Brasil, onde vivemos a guerra contra o narcotráfico, que ocupa nossas cidades e a vida e o coração de milhares de jovens. O Rio de Janeiro há poucos dias sentiu isso de maneira alarmante, mas convive com morte e violência há anos. Nesse quadro está dito a Israel, e a nós: “...não continuará a obscuridade (a aflição)”. A citação de Zebulon e Naftali se reporta às duas primeiras províncias de Israel, que foram invadidas e tomadas sob o jugo de Tiglate-Pileser, rei da Assíria (2 Rs 15.29). De fato, o rei estrangeiro e seus exércitos de ocupação lançaram no exílio a maior parte do povo, criando aflição e pranto. Do mesmo modo, a ocupação das áreas pobres de favela pelo narcotráfico pôs o povo sobre jugo, e provocou um exílio e consequente despovoamento, como vimos famílias inteiras em fuga dada a fúria do inimigo. Natal e Promessa “Não continuará a obscuridade”. O Deus que, devido à quebra 4

da aliança, “tornou desprezível a terra de Zebulon e a terra de Naftaly.” Nos últimos dias, tornará glorioso o caminho do mar. E como Deus fará isto?

Se houve esperança para a Galileia, há de ter para os lugares aflitos e assolados do nosso Rio de Janeiro. Como povo de Deus, somos convidados, na unção do Messias, a abrir tais caminhos. “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; e o governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz...” (Is 9.6)

A mensagem de Isaías tem seu centro na vinda do Messias. O nascimento de Jesus narrado pelos evangelistas se inspira nessa mensagem profética, especialmente num messias davídico. O anjo, ao comunicar a José o nascimento do Messias, o chama de José, filho de Davi, e em seguida cita Isaías: “... eis que a virgem conceberá e dará à luz a um filho e lhe chamará Emanuel.” (Is 7.14b) Assim, o tempo do Messias tornou-se uma visão de esperança para os aflitos. Dessa promessa do reinado do Filho de Davi, decorrem muitos outros: a) “...Tornará glorioso o caminho do mar, Galileia dos gentios...” Recordemos que Jesus se criou na Galileia e ali iniciou seu ministério. Galileia era constituída de terras prósperas, mas desprezada nos tempos de Jesus por conta das muitas ocupações estrangeiras. Quando, no Evangelho de João, Natanael reage acerca de ser Jesus, o Messias, ele diz: “... de Nazaré (Galileia) pode vir coisa boa?” (Jo 1.46). Refletindo o preconceito e a


discriminação contra essa terra tida como “gentílica”, mas, como aprendemos, esses galileus vão compor os discípulos de Jesus, e veem “o caminho glorioso do mar”, construído por Jesus, o Messias, de acordo com a profecia de Isaías. Qual a mensagem? Se houve esperança para a Galileia, há de ter para os lugares aflitos e assolados do nosso Rio de Janeiro. Como povo de Deus, somos convidados, na unção do Messias, a abrir tais caminhos. b) “O povo que andava em trevas viu grande luz, e aos que viviam na região da sombra da morte, resplandeceu-lhes a luz.” (Is 9.2). Mateus usa este texto junto com o versículo primeiro ao plantar o inicio do ministério de Jesus. Ele sai do deserto e vai para a Galileia – Cafarnaum (Mt 4.13-16), onde, após dominação assíria, persa, grega, e agora romana, vivia disperso, perdido, o que causou em Jesus o seguinte sentimento: “E, vendo a multidão, teve grande compaixão deles, porque andavam desgarrados e errantes como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9.36). Esse é o sentimento que deve tomar posse do nosso coração, profunda compaixão pelos que ainda andam nas trevas, anunciando que a promessa foi cumprida, a luz raiou: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas

não prevaleceram contra ela.” (Jo 1.1-5).E agora, há esperança para os aflitos! E nós temos compromisso com Ele, o Messias, “...a verdadeira luz que vinda ao mundo ilumina a todo homem.” (Jo 1.9). Somos chamados a cantar o cântico: “Grandes são as tuas obras, Senhor todo poderoso!!.” Irmão, irmã, neste Natal abra sua boca, proclame bem alto que a luz raiou, e o Messias chegou. O jugo deve ser quebrado, o pecado e a morte foram vencidos por Jesus, que abriu um novo e vivo caminho, para os que nEle creem.

Uma das nossas grandes prioridades é a criança e o adolescente. Nossos projetos de reforço escolar, abrem as portas (...) visando a tirálas da rua c) “Porque um menino nos nasceu [...] e o seu nome será...” A televisão nos mostrou muitas crianças nas áreas envolvidas dos conflitos. Não há coração que não fique preocupado com o destino, o futuro daquelas crianças. Nossas crianças, nossa juventude está sendo destruída pela violência, pelas drogas. Mas a mensagem já foi entregue, e a esperança tem um

nome: “um menino nos nasceu.” Seu nome será: “Maravilhoso Conselheiro, Deus forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz... ” (Is 9.6). Seus atributos têm por objetivo que: “...venha paz sem fim, sobre o seu Reino...e estabelecer e o firmar mediante o juízo e a justiça...” A vinda do Messias Jesus nos adverte de que é possível a paz; ela visa a alcançar os homens e mulheres de boa vontade. Assim, como consequência a justiça, a restauração do direito da criança e do adolescente. Uma das nossas grandes prioridades é a criança e o adolescente. Nossos projetos de reforço escolar abrem as portas da igreja para as crianças, visando tirá-las da rua e dar-lhes uma oportunidade de vida, já que o tráfico recruta dentre as crianças seus “soldados”. É urgente que o novo caminho inaugurado por Jesus e celebrado no Natal se transforme em ações permanentes em favor dos que vivem sob a aflição e jugo da violência, para que conheçam o tempo do reinado do Príncipe da Paz, Jesus. Nada de nos acomodarmos, vamos reagir, vamos pela graça construir um novo tempo.

Paulo Tarso de Oliveira Lockmann Bispo da Igreja Metodista na Primeira Região Eclesiástica

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Sinais da graça no Natal ou Natal com os sinais da graça? Mateus 2.11

É muito conhecida a história dos chamados reis magos e os presentes que deram ao menino nascido na manjedoura: ouro, incenso e mirra. Tradicionalmente estes presentes são interpretados como sendo a realeza de Jesus identificado no ouro ou o Reino de Deus que Ele inaugura em obediência ao Pai; ou a fé que agrada a Deus representado pelo incenso, cujo aroma expressa dedicação. São interpretados ainda como sendo o sofrimento que Jesus haveria de enfrentar anunciado pela mirra, que assinala também o martírio de Cristo. Seriam estes presentes símbolos da graça de Deus presente no cenário do nascimento de Cristo ou simbolizam a graça que move as ações divinas em favor de todas as pessoas? Não é exagero pensar que o ouro pode representar o Deus perfeito que se faz presente no meio de seres humanos imperfeitos e frágeis, mas que pela força da graça do Criador e Sustentador da vida podem superar estas imperfeições e fragilidades, não para serem melhores que os outros, mas para serem instrumentos graciosos e agregadores de valor na vivência humana. Também não é demais pensar que o incenso indica a confiança que as pessoas devem ter umas nas outras. Confiança no sentido de acreditar na

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força que os outros têm de superar suas dificuldades e contribuírem para a transformação da sociedade na perspectiva do Reino de Deus. Fé na vida, fé na convivência que supera diferenças e vence as barreiras do preconceito, da discriminação e da opressão. Este tipo de fé, que não é meramente intimista, é agradável a Deus. À luz do simbolismo da mirra podemos ponderar que a mensagem do Natal fala de entrega, de sofrimento, de martírio, pois não é possível idealizar uma sociedade fraterna e solidária, sem lutas, sem renúncias, sem superações, sem o “morrer” para os velhos preconceitos e o “nascer” para novos conceitos. Assim, os presentes do Natal do menino que nasceu na manjedoura são sinais da graça de Deus evidenciados por estas ações e atitudes, frutos de uma experiência que não fica apenas no sentir, mas se transforma em atos concretos, como foi o ato do Cristo que nasceu e morreu para anunciar esperança e a nova vida. O Natal sem estes sinais será sem graça, sem a graça de Deus que transforma as coisas simples em atos singelos e expressivos de valorização da vida. Que outros presentes podem ser relacionados junto com o ouro, o incenso e a mirra? Como dar presente para

Jesus? Na verdade, todos nós fazemos isto seguidamente. Os presentes que damos ao Senhor e Salvador da vida são devolvidos para que nós cuidemos deles. Se dermos amor para Deus, receberemos o amor de volta para que dele cuidemos. Se dermos perdão, receberemos o perdão para que ele se estenda por toda a nossa vida sob o nosso cuidado. Se dermos mágoas, elas ficarão conosco remoendo nossas vidas. Portanto, presentear a Deus é receber tudo de volta. É mais ou menos como aquela pequena história da criança que queria dar um presente para o menino Jesus e não encontrou nada, além do cordeiro da família que estava perdido na tempestade. A criança encontrando-o levou ao menino Jesus e ouviu a doce voz da mãe pedindo para a criança cuidar do cordeiro porque Jesus era apenas um bebê. Neste sentido, o Natal é tempo de refletirmos sobre os sinais da graça de Deus que estão presentes em nossas vidas identificando o cuidado divino, mas também é tempo de pensarmos nos “sinais” da graça que nós evidenciamos no nosso viver diário. São sinais da graça no Natal? É o Natal com os sinais da graça? Faz diferença? Pode fazer na vida do outro. Josué Adam Lazier Bispo da Igreja Metodista


O Natal do Sol da Justiça “Mas para vós outros que temeis o meu nome nascerá o sol da justiça, trazendo salvação nas suas asas” (Malaquias 4.2)

O Natal e a Páscoa constituem as mais importantes solenidades da tradição cristã. O Natal, porque faz referência à encarnação do Salvador divino na criança humilde de Jesus, filho de Maria, na época em que Herodes Antipas era o tetrarca da Galileia; e a Páscoa, porque rememora a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, ocorrida no período em que Pôncio Pilatos governava a Judeia. No entanto, não se trata de mera retrospectiva histórica, mas, antes, de atualização celebrativa de um acontecimento salvífico que tem implicações para o presente e é determinante em relação ao futuro daqueles que o celebram com fé.

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A Páscoa cristã é a festa mais antiga, e já era comemorada no final do primeiro século da nossa era. O Natal é mais tardio, e só se fixou a partir do século IV. Mas isso a partir da tradicional celebração do Dia de Epifania (6 de janeiro), já comemorado em meados do primeiro século. A Epifania (palavra que significa “manifestação”) era festejada pelos cristãos já no final do primeiro século e início do segundo (a ponto de ficar registrada nos Evangelhos, conforme Mateus 2) como a evidência de que o Evangelho de Jesus Cristo não era uma exclusividade dos judeus-cristãos, mas uma manifestação da graça de Deus para toda a humanidade. Por isso, recorda-se, nessa festa, a visita dos magos, que vieram do Oriente para saudar o Deus-criança e darlhe presentes; bem como o Batismo do Senhor, ocasião em que Jesus se apresenta publicamente como Filho de Deus; e ainda a realização do seu primeiro milagre, na cidade de Caná da Galileia, pelo qual Jesus inicia publicamente seu ministério. No contexto romano, do início da nossa era, por influência egípcia, havia uma grande festa popular que, a propósito do solstício de inverno (Hemisfério Norte), realizava uma série de rituais dedicados ao deus-sol. Tais rituais eram realizados na expectativa de que o mundo não fosse engolido pelas trevas ameaçadoras do inverno (ocasião em que o sol parecia ficar cada vez mais distante, os dias mais curtos e as noites mais longas). Essa festa era chamada de Adventus Redentoris e Natale Solis Invictus, ou a Chegada do Redendor e Nascimento do Sol Invencível. Os cristãos, então, “evangelizaram” essa festa, reinterpretando-a à luz dos escritos bíblicos. A justiça divina se alteia sobre a humana, tal 8

como descrito no capítulo 60 do profeta Isaías (a leitura desses 22 versículos descortina para nós o verdadeiro horizonte natalino). Leia. Como o calendário dos primeiros séculos era muito rudimentar, a data não era precisa e podia variar entre 21 de dezembro e 6 de janeiro. Com o passar do tempo, essa festividade foi adquirindo contornos mais claros, e convencionou-se o dia 25 de dezembro como sendo o dia do nascimento de Jesus e o dia 6 como o ápice da festa, culminando com alusão à visita dos magos. Os que criticam a comemoração

O Natal é precedido de quatro semanas de preparação, chamado período do Advento; a Páscoa é antecedida por quarenta dias de oração, chamados Quaresma do Natal, acusando-o de ser uma festa pagã, devem ser advertidos de que não há uma única festa religiosa sequer que seja absolutamente genuína e exclusivamente cristã. E não deixa de ser curioso o fato de que parece haver menos resistência a certas comemorações, às quais não há referência bíblica explícita, como Dia das Mães, Dia dos Pais, Dia das Crianças, Dia do Índio, Dia da Pátria, do que

àquelas com ampla fundamentação nas Escrituras, como Natal, Páscoa e Pentecostes. O entendimento das efemérides depende do olhar do intérprete: para uns (aqueles que crêem que os poderes “do mundo” são mais fortes que o “reinado de Deus”), trata-se da paganização do cristianismo; para outros (que crêem na força transformadora do Evangelho), trata-se da cristianização do paganismo. A questão está na fé de quem lê a realidade. A relação entre o Natal e a Páscoa pode ser mais bem compreendida se traçarmos um paralelo entre os elementos comuns e os contrastantes que ligam as duas festas: Jesus nasce numa gruta emprestada em Belém e é sepultado num túmulo emprestado por José de Arimateia. Comemora-se a noite de Natal, que remete ao Sol da Justiça, em pleno inverno; e a manhã da Páscoa, que a celebra lua cheia da primavera. Jesus nasce no inverno, que é símbolo de morte; e morre na primavera, que é símbolo da vida. Ao nascer, é colocado numa manjedoura de madeira; para morrer, é pregado numa cruz igualmente de madeira. Pastores pobres testemunham sua chegada; malfeitores crucificados testemunham sua morte. Anjos cantores anunciam seu nascimento: “glória a Deus nas alturas e paz na terra.” Anjo anuncia a Maria Madalena sua ressurreição: “ele não está aqui, mas ressuscitou”. A virgem, no nascimento; a pecadora (Maria Madalena), na ressurreição. Visita dos magos do Oriente, na Epifania; e testemunhas de todo o “mundo conhecido”, no Pentecostes. Dia 25 de dezembro (Natal) é data fixa. No entanto, pode cair em qualquer dia da semana. Já a primeira lua cheia da Primavera (Páscoa), que é data móvel (podendo ocorrer entre 21


de março e 23 de abril), é celebrada sempre no domingo mais próximo. O Natal tem influência pagã (egípcia); a Páscoa tem origem Judaica (e que marca a libertação do Egito). O Natal é precedido de quatro semanas de preparação, chamado período do Advento; a Páscoa é antecedida por quarenta dias de oração, chamados Quaresma. A festa do Natal se es-

tende até a Epifania, que se refere à manifestação de Deus a todas as nações que vêm ao seu encontro. A festa da Páscoa se estende até o Pentecostes, ocasião em que os discípulos (igreja) saem ao encontro das nações para anunciar-lhes as “maravilhas de Deus”, dirigindo-se a elas em suas diferentes línguas maternas. Trata-se, portanto de um tempo

que foi transformado, não meramente pelas palavras, mas pela Palavra, no dia em que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai (Jo 1.14). Luiz Carlos Ramos Pastor metodista e professor da Universidade Metodista de São Paulo

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Um Natal vazio Há uma expressão grega utilizada pela Teologia para expressar o processo pelo qual Deus, o Pai, “esvaziou-se” de sua posição e assumiu a condição de Filho, na pessoa de Jesus de Nazaré: “Kenosis”. É esse apequenar-se, tornar-se vazio de prerrogativas especiais, esvaziar-se a si mesmo. Em outras palavras, foi o caminho assumido por Deus com o propósito de chegar mais perto de sua Criação e se tornar como cada um de nós. Jesus, o galileu pobre e cheio de compaixão que mudou a vida de uma multidão de pessoas ao longo da História, é um irmão nosso, carne de nossa carne, sangue de nosso sangue. Um menininho. Ele choramingou pela primeira vez depois de vindo à luz desde o ventre de uma jovem de Nazaré, chamada Maria, e não encontrou lugar na hospedaria dos homens, tendo de se conter com a manjedoura dos animais como seu primeiro berço. Ele é um filho da humanidade, na sua mais radical concepção. Jesus encarna o que há de mais humano entre os humanos: o desafio de viver. Os animais vivem por uma espécie de imposição da natureza e pela capacidade de superar uma seleção imposta pela vida. Conosco parece acontecer algo diverso: apesar de sermos como 10

animais (no que diz respeito aos processos biológicos e evolutivos), vivemos porque transgredimos condições pré-estabelecidas e nos reinventamos. O Natal nada mais é que uma reinvenção de Deus. Se para os povos antigos, Deus é um soberano que demanda oferendas e obediência, dado que é dele que brota a chuva, o sol, o trabalho, a saúde, o pão e a família. Por isso, a relação entre homens e Deus é sempre pactuada pelo temor. Em Jesus, essa lógica soberano-súdita vira de cabeça para baixo e se reinventa. Alberto Caeiro assim percebeu tal movimento: Tinha fugido do céu. Era nosso demais para fingir De segunda pessoa da Trindade. No céu tudo era falso, tudo em desacordo Com flores e árvores e pedras. No céu tinha que estar sempre sério O belo prólogo do Evangelho de São João inicia: “No princípio era a Palavra, e a Palavra era Deus (...) e a Palavra se fez carne e habitou entre nós!” (Jo 1,1.14). Há duas profundas reviravoltas na compreensão das coisas: Deus não é um rei, Deus é “palavra” (aquilo que dá sentido); Deus não se esconde sobre um trono; em lugar disso, assume o rosto de uma criança

frágil e se torna um irmão nosso. Leonardo Boff tornou compreensível esse mistério com duas pequenas, mas lapidares, colocações: “humano como fora Jesus, é porque só podia ser Deus mesmo!”, ou, ainda, “o projeto de Deus não é fazer os homens deuses, mas fazer-se, a si mesmo, Homem.” Eis, na minha simples opinião, o que torna o cristianismo singular. Ensinamentos morais (fazer bem, amar ao próximo, perdoar, etc) e ensinamentos religiosos (amar a Deus, ser fiel a Ele, conhecer seus ensinamentos, etc) são lugares-comum em qualquer caminho religioso. O que torna, todavia, o cristianismo ímpar é a “encarnação” de Deus em Jesus de Nazaré. O problema, contudo, surgiu com a história da Igreja: Jesus esvaziou-se de si e, paradoxalmente, encheu-se de Deus e tornou-se o Cristo. Jesus, na Igreja, deixou, século após século, de ser um irmão nosso e tornou-se, a exemplo de seus antepassados simbólicos, Juiz e Rei. Sou pai de dois filhos. Duas pessoas infinitamente diferentes, mas incrivelmente unidas por um amor genuíno e despretensioso. Gratuito! Damo-nos tão bem um com o outro


Na companhia de tudo Que nunca pensamos um no outro, Mas vivemos juntos e dois Com um acordo íntimo Como a mão direita e a esquerda. (A. Caeiro) Fui presenteado pela vida com a suprema riqueza que é descobrir detalhe por detalhe quem é um ser humano. Participar, desde o primeiro instante, da vida de alguém é uma oportunidade única que a vida nos dá. Os primeiros movimentos, os olhares curiosos, as descobertas inauditas. Cada uma das experiências colhidas é uma verdadeira revolução. Mas há um desafio, eu diria, natalino, na experiência parental: o imperativo da “kenosis”. A exigência ética pelo “esvaziar-se”. Em outros termos: cuidar para que a vida germine e cresça com viço e beleza, mas garantindo-se a liberdade e a autonomia. Tal como o Menino nascido entre os animais, nossos filhos são pessoas,

desde sempre, independentes e inoculadas pela promessa da autenticidade. Eis aí, talvez, a radical missão dada aos pais: cativar e libertar! Ainda o Caeiro ajuda muito quando escreve: Depois fugiu para o Sol E desceu no primeiro raio que apanhou. Hoje vive na minha aldeia comigo. É uma criança bonita de riso e natural. Limpa o nariz ao braço direito, Chapinha nas poças de água, Colhe as flores e gosta delas e esquece-as. Atira pedras aos burros, Rouba a fruta dos pomares E foge a chorar e a gritar dos cães. (...) A mim ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas Quando a gente as tem na mão E olha devagar para elas. Reconheço que escrevo sobre utopias. Mas que fazer se a vida só tem sentido onde, exatamente, não há lugar? “U-topos”, a ausência de lugar.

“Não havia lugar para eles na hospedaria”. “Tinha fugido do céu.” Creio ser esse um sentido bom para o Natal (que se tornou tanta coisa em tantos “lugares”): experimentar a gratuita liberdade de se esvaziar e aprender a ver melhor! Quando eu morrer, filhinho, Seja eu a criança, o mais pequeno. Pega-me tu ao colo E leva-me para dentro da tua casa. Despe o meu ser cansado e humano E deita-me na tua cama. E conta-me histórias, caso eu acorde, Para eu tornar a adormecer. E dá-me sonhos teus para eu brincar Até que nasça qualquer dia Que tu sabes qual é. (A. Caeiro. Poema do Menino Jesus) A todos desejo um Natal mais “vazio”! Ricardo Lengruber Lobosco Pastor metodista e professor no Centro Universitário Metodista Bennett

Boa dica Assine o Jornal Avante Mantenha-se informado sobre os assuntos da Igreja Metodista no estado do Rio de Janeiro. Para assinar o AVANTE basta depositar o valor de R$ 20,00 (valor anual) no Banco Bradesco, agência 1414-1, c/c 931-8, em favor da Igreja Metodista da 1ªRE. Envie nome, endereço, telefone e e-mail, com a cópia do comprovante de depósito, para Rua Marquês de Abrantes, 55 – Flamengo, CEP 22.2230-061, Rio de Janeiro/RJ; ou pelo fax (21) 2557-7048; ou pelo e-mail avante@metodistario.org.br. Outras informações pelo telefone (21) 3509-1074 ramal 3.

Um pastor metodista Aos 84 anos, o pastor Jorge Lessa lança o livro Peregrinação de um pastor Metodista. Com o incentivo e apoio da família, o autor traz em sua biografia as realizações desse ministro do evangelho no campo material, moral e espiritual. Interessados em saber mais sobre a publicação devem entrar em contato pelo e-mail jorgelessa2010@hotmail.com.

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A criança é o Messias “O lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo se deitará junto ao cabrito; o bezerro, o leão novo e o animal cevado andarão juntos, e um pequenino os guiará” (Is 11.6). É tempo de refletir sobre o Natal de Jesus Cristo, o Messias. E a recente onda de violência na cidade do Rio de Janeiro, com a subsequente tomada dos complexos do Alemão e da Penha por forças militares e policiais, nos leva a pensar na natureza de nossa esperança messiânica. Recentemente fiz um curso sobre o livro de Isaías (capítulos 1-12) e fui surpreendido por uma visão aparentemente simples, mas profunda, do

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profeta: o Messias é uma criança! Alguns indícios do texto de Isaías mostram isso. O messias é chamado de renovo em duas ocasiões em Isaías (4.2 e 11.1). E também de rebento da raiz de Jessé (11.1). Isso indica na verdade uma antiga tradição popular a respeito de um libertador. Não é Davi, porque ele vem da raiz (ancestralidade) de Jessé, pai de Davi. Por outro lado, o messias não tem poder em si mesmo, mas seu poder vem do Espírito de Deus de acordo Isaías 11.2. Essa antiga tradição popular, recorrente no livro de Juízes, mostra que as pessoas precisam confiar em Javé e em seu poder, pois

somente pelo agir dEle é que temos verdadeira vitória. Uma das coisas que o profeta mostra em sua mensagem é a vontade de Deus em cuidar do povo, mas num processo de entrega e confiança sem limite da parte do homem, como se vê em Isaías 10.20-25. De tudo o que Ele exige, a confiança gerada pela fé é uma das atitudes mais esperadas. Desde que o ser humano foi criado, sempre que tentou resolver os próprios problemas, o resultado foi um só: morte e separação. Além disso, o messias é apontado diversas vezes como um menino, um filho pequeno, uma criança de colo,


ou seja, um pequenino sem qualquer força ou grandeza, como está na profecia de Isaías 7.14, 9.6 e 11.6,8. É uma criança com autoridade, porque é dominada pelo Espírito de Javé. Qual a consequência desse pensamento do profeta? Ele mesmo responde: “Ele julgará entre os povos e corrigirá muitas nações; estas converterão as suas espadas em relhas de arados e suas lanças em podadeiras; uma nação não levantará a espada contra outra nação, nem aprenderão mais a guerra” (2.4). A criança-messias vem para trazer paz – ele é o Príncipe da Paz, o Maravilhoso, Conselheiro – e transformar os corações e mentes das pessoas, quebrando uma mentalidade militarista e beligerante, por outra, de convívio pacífico e harmonioso, como em Isaías 11.6, e a promessa de 11.9: “Não se fará mal nem dano algum em todo o meu santo monte, porque a terra se encherá do conhecimento de Javé, como as águas cobrem o mar”. Assim, nossa esperança messiânica pode e deve estar focada nessa figura, da criança-messias, que é Jesus mesmo, e que em seu ministério deu tanta importância ao tema que afirmou: “Em verdade vos digo: Quem não receber o reino de Deus como uma criança de maneira alguma entrará nele.” (Lc 18.17). É uma fé a partir da criança-messias. Se as crianças têm aprendido a guerra, seja nas favelas, seja na África ou Oriente Médio, é responsabilidade dos adultos. O que Deus deseja é que alimentemos uma outra cultura, a da paz e do diálogo, contra qualquer violência, que envolva toda nossa força, entregando-nos a uma fé e confiança no agir de Deus. Ele é o reto juiz, que julgará ricos e pobres, e grandes e pequenos. Cabe a nós proclamarmos

sua grandeza e seu domínio de paz sobre a terra. Ao pesquisar na Internet me deparei com o caso de Tippi, uma menina, filha de franceses, que nasceu na Namíbia em 1990. Seus pais são fotógrafos da famosa revista National Geographic, e a ensinaram a amar e respeitar todos os seres vivos. A imagem da criança tão pequena à frente dos elefantes e outras impressionantes que estão disponíveis na internet, nos conduziu diretamente ao texto que encabeça o presente artigo. O profeta não estava louco, ou imaginando uma metáfora, mas via um mundo diferente, em que a criança estabelece as prioridades. E que mundo bom será esse! Mas assim como as crianças precisam de educação e formação não violenta, a realização do domínio de Deus sobre nós depende desse esforço, de nos permitirmos largar nos braços do Pai, deixar o comando de nossas vidas e crer mais que Ele pode completar a boa obra que começou em nós (Fp 1.6). Que sejamos guiados pela criança-messias, assim como o bezerro, o leão novo e o animal cevado da profecia de Isaías. Criança-Messias, guia dos diferentes, Salvadora de toda gente, Que ensina a paz, não a violência, Que nos mostra Deus, nosso Pai, De um jeito tão diferente, Mais presente, Nasce em nosso coração, Para que cantemos junto com a multidão celestial: “Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre as pessoas, a quem ele quer bem” Marcelo Carneiro Pastor metodista, professor e coordenador do Curso de Teologia do Centro Universitário Metodista Bennett

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Maranatha, vem Senhor Jesus! A fé cristã vive entre o já da intimidade com Deus e o ainda não da realização de suas promessas. O Reino já chegou, mas ainda não totalmente! Mesmo o cego do capítulo 9 do Evangelho de João poderia dizer: “Deus me curou, mas ainda há muita cegueira no mundo”. Nós mesmos que experimentamos a presença do bálsamo divino em nosso corpo, curando feridas que pareciam mortais, seguimos nesse mundo com ansiedades e frequentemente visitados por enfermidades físicas, psíquicas e espirituais. Muitas promessas de Deus continuam sendo promessas. Precisamente esse ainda não diz respeito à dimensão escatológica da nossa fé. Lembrando que a palavra grega éscaton significa último, derradeiro. Ou seja, a fé que professamos em Jesus Cristo traz o ingrediente da confiança, da entrega, da tranquilidade de uma criança que se aquieta no colo da mãe. Mas essa mesma fé traz também o ingrediente da espera, da promessa, do ainda não! Não é por acaso que uma expressão comum dos cristãos da Igreja Primitiva era: “Maranatha, vem Senhor Jesus!” Ou seja, um grito que expressa radicalmente a dimensão da espera, do desejo de superação, da necessidade de ir para além dos aperitivos da mesa 14

e servi-se da refeição definitiva. Assim, “maranatha” expressa bem o que a teologia chama de “tensão escatológica”, essa luta entre o já da presença de Deus em nossas vidas e o ainda não daquela eternidade que tanto ansiamos, o momento em que Deus será tudo em todos. Por isso, pode-

a fé que professamos em Jesus Cristo traz o ingrediente da confiança, da entrega, da tranquilidade de uma criança que se aquieta no colo da mãe mos dizer, como disse o teólogo suíço Karl Barth, que a fé cristã é essencialmente escatológica. E não é muito difícil entender isso. Basta dizer que o Deus a quem amamos e para quem vivemos não é um que tenhamos em nossas mãos. Um Deus assim não seria o bíblico, seria no máximo um ídolo.

O Deus de Jesus é, sobretudo, o que aguardamos e invocamos. Um Deus a quem esperamos. O Deus da esperança, conforme nos diz Paulo em Romanos 15.13. Os grandes teólogos do século passado, entre eles Albert Schweitzer, R.Bultmann e Karl Barth, perceberam com clareza a centralidade da perspectiva escatológica na fé cristã. Mas o teólogo que foi mais fundo nessa descoberta, que mais aprofundou as consequências dessa tensão escatológica no dinamismo da fé foi Jürgen Moltmann. A obra na qual Moltmann explicita a centralidade da dimensão escatológica na fé cristã tem o sugestivo nome de Teologia da Esperança. As afirmações de Moltmann contidas ali abalaram o mundo teológico nos anos 60 do século passado. Soaram como um evangelho, uma injeção de vida no mundo prostrado do pós-guerra. Lembrando que na década de 60 os ventos do Espírito sopraram forte sobre o ocidente: o concílio vaticano II, as lutas estudantis na França e em outras partes do mundo, o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, os primórdios da teologia da libertação, a renovação do pensamento teológico latino-americano (a tese de doutorado do teólogo protes-


tante Rubem Alves surge nesse período tendo como tema precisamente a questão da Esperança). Em todos essas dimensões, vejo o grito “maranatha”, tão esquecido pelo cristianismo durantes séculos, e que Moltmann soube resgatar tão bem, trazendo-o para o centro do pensamento teológico-cristão. Mas o que significa dizer que a fé cristã é escatológica do começo ao fim? Por que a escatologia é tão central nas páginas do Novo Testamento? E se é tão central, tão importante, por que a escatologia – como nos diz Moltmann – tornou-se uma apêndice da teologia sistemática? Vemos nos compêndios de teologia – é só pegar um tratado qualquer de teologia sistemática – a doutrina de Deus, da Igreja, da Salvação e por último, quase como um “patinho feio”, a doutrina da escatologia. Por quê? Para Moltmann, muito cedo o cristianismo se aburguesou, acostumou-se com o mundo, sobretudo quando passou a regê-lo, a ditar leis, a ser o braço religioso do estado romano: a ser governo! Isso foi mortal para o cristianismo. Talvez por isso mesmo nunca tenhamos conseguido nos levantar de todo desse golpe de acomodação ao mundo que se inaugurou na época constantiniana e que tem desdobramentos até hoje. É bom lembrar que o servo de Deus Thomaz Müntzer, no século XVI, via tal acomodação ao mundo e suas estruturas de poder nos próprios reformadores Lutero e Zwinglio. “Maranatha” só tem sentido para aqueles que se sentem inconformados com os rumos desta vida. Também para aqueles que, mergulhados no já da confiança e no já da certeza da presença do Pai no redemoinho dos acontecimentos da existência, sentem também o ainda não da presença

paterna no coração de um mundo resistente, autocentrado, fechado à comunhão, mergulhado no sangue da violência, do desamor, da injustiça, da miséria e da opressão, inclusive a religiosa. Sim, “maranatha” não é o grito dos rancorosos, dos miseráveis raivosos e enciumados com a riqueza do mundo. Não, é o grito de amor de quem experimentou a aceitação plena, a graça redentora e encantadora, e por isso não se conforma com as teias diabólicas do isolamento, da indignidade, do rebaixamento do ser humano e da criação à categoria de servos de qualquer deus que não seja o Deus de Jesus. E quantos deuses o nosso tempo conhece? O Poder, o Mercado, a Prosperidade a qualquer preço, a Ciência, o gozo individualista, o Indivíduo Senhor de Si.

‘maranatha’ não é o grito dos rancorosos, dos miseráveis raivosos e enciumados com a riqueza do mundo Por isso é tão central a dimensão escatológica da nossa fé. O objeto da nossa busca, da nossa experiência, do nosso anseio mais profundo é o Deus Trino, e Ele é, sobretudo, o Deus que esperamos. Portanto, para Moltmann, a doutrina escatológica significa precisamente isso: a doutrina da esperança. Deus está para além das experiências que já tivemos nesta vida, está para

além de tudo o que sabemos. Ele é o que faz novas todas as coisas. Ele é o Deus da Esperança. Está dentro de nós? Sim. Está fora de nós nos mais altos céus? Sim. Mas é aquele que de maneira especial está diante de nós, vindo ao nosso encontro com sua promessa. Albert Schweitzer resumiu com perfeição essa dimensão ao dizer: “Ele se nos achega como um desconhecido, sem um nome, como antes, ao lado do lago, Ele chegou junto àqueles homens que não o conheciam. Ele fala a mesma palavra a nós: Siga-me! E nos estabelece as tarefas que tem de cumprir para o nosso tempo. Ele ordena. E para aqueles que o obedecem, quer sejamos simples ou sábios, Ele revelará a si mesmo nas obras, nos conflitos, nos sofrimentos que nós passaremos em sua companhia, e como um mistério inefável, eles aprenderão em suas próprias experiências quem Ele é.” Então, pela fé podemos dizer que nos alimentamos e aprendemos com os acontecimentos do passado, que nos alimentamos e aprendemos com os nossos acertos e erros já ocorridos. Mas a boa notícia é que, pela fé, nos alimentamos também do futuro. O futuro de Deus, seu devir constante em direção à criação que Ele jamais abandonou. Seu vir ao nosso encontro, seu chegar-se a nós pelo seu Espírito também nos engravida. Por isso, na fé não buscamos apenas o possível, queremos também o impossível. Na fé, não nos contentamos apenas em reformar o antigo, ousamos imaginar algo realmente novo. Na fé, não nos guiamos apenas pelo que Deus já fez em nossas vidas, mas também pelo que fará. Ele, o Deus da promessa, o Deus da Esperança! Edson Fernando Professor do Curso de Teologia do Centro Universitário Metodista Bennett

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