ISSN 1808-7191
A REVISTA DO MÉDICO VETERINÁRIO
ANO 19 - Nº 113 - SET/OUT 2016
Indexação Qualis
Diagnóstico e tratamento das fraturas e luxações da articulação
Nosso Clínico - n.113 - Ano 19 - Setembro / Outubro 2016
em cães e gatos
9 de Setembro DIA DO MÉDICO-VETERINÁRIO Parabéns pelo seu dia! • Transposição do ducto parotídeo em cão: relato de caso ENCARTE: • Púrpura em cão Shih-Tzu com trombocitopatia causada por Erliquiose Canina: relato de caso • Técnicas de Inseminação Artificial em cães: revisão • Tratamento Nutracêutico para pequenos animais hepatopatas • O ensino da Homeopatia nos cursos de Medicina Veterinária do Brasil: panorama geral • Eficácia anti-helmíntica da Ivermectina na forma de comprimido em cães naturalmente infectados por nematoides gastrintestinais
www.nossoclinico.com.br
Clínica de Marketing COLUNAS: Dicas do Laboratório • Conhecimento Compartilhado • Bem-Estar Animal • Terapia Celular • Prevenção & Tendências • Leishmaniose • Oftalmologia • Dirofilariose: Você Sabia? • Endocrinologia • Centro de Estética • Nutrição Animal • Medicina Felina • Medicina Tradicional Chinesa • Comportamento Empresarial • Cardiologia • InfoPet • Fisioterapia
Nosso Clínico • 1
EDIT ORIAL EDITORIAL
A grandeza da Nação "A grandeza de uma nação e o seu progresso moral, podem ser avaliados pela forma como tratam os seus animais" A frase em epígrafe, atribuída à Mahatma Gandhi, é usualmente inserida em manifestações referentes ao bem-estar animal. Nada mais apropriado e coerente. Entretanto, este editorial busca uma interpretação dessa frase sob outro olhar. No lugar de pensar em como os indivíduos e famílias tratam os animais, considere como o Governo trata os animais. E não pelo tratamento físico, mas da forma menos calorosa possível: pelo tratamento fiscal. Atualmente a carga tributária incidente sobre os alimentos para os pets representa aproximadamente 50% do valor do produto. A cada R$100 pagos em um saco de ração, metade fica com o Governo. Situação bem diferente dos alimentos para os seres humanos, onde os tributos representam cerca de um quinto do valor - carga que já é elevada (no Brasil Colônia já se revoltava contra o Quinto, a tributação da Coroa portuguesa sobre o ouro brasileiro ...). E porque é tão alta essa carga tributária, que recentemente foi impactada negativamente por mais um aumento no IPI (imposto sobre produtos industrializados)? A razão é simples: os pets, ou seja, os animais, são tratados como supérfluos. Desconsidera-se todo o benefício, terapêutico inclusive, proporcionado pela convivência de humanos e pets. É necessário gerar mais e mais pesquisas, com metodologia científica robusta, para reverter essa situação. Para que, assim, os custos de manutenção do pet possam ser reduzidos, proporcionando maior movimentação da economia e das atividades relacionadas aos pets. Tratar tributariamente os animais com respeito proporcionaria maior grandeza da nação e o seu progresso moral, como é proposto na releitura da frase atribuída à Gandhi. Roberto Arruda de Souza Lima Professor da ESALQ/USP raslima@usp.br • www.arruda.pro.br
FUNDADOR Synesio Ascencio (1929 - 2002) DIRETORES José Figuerola, Maria Dolores Pons Figuerola EDITOR RESPONSÁVEL Fernando Figuerola JORNALISTA RESPONSÁVEL Russo Jornalismo Empresarial Andréa Russo (MTB 25541) Tel.: (11) 3875-1682 andrearusso@uol.com.br PROJETO GRÁFICO Studio Figuerola EDITOR DE ARTE Roberto J. Nakayama EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Miguel Figuerola MARKETING Master Consultoria e Serviços de Marketing Ltda. Milson da Silva Pereira milson.master@ig.com.br PUBLICIDADE / EVENTOS Diretor Comercial: Fernando Figuerola Pons Tels.: (11) 3721-0207 / 99184-7056 fernandofiguerola@terra.com.br ADMINISTRAÇÃO Fernando Figuerola Pons Juliane Pereira Silva
2 • Nosso Clínico
ASSINATURAS Tel.: (11) 3845-5325 editoratrofeu@terra.com.br
Cláudia S. Fonseca Repetti Cirurgia de Peq. Animais (Unimar) claudiarepetti@yahoo.com.br
Jorge Pereira Oftalmologia Veterinária contato@cepov.com.br
Patrick dos Santos Barros dos Reis Cirurgia Geral patrickreisvet@hotmail.com
REVISTA NOSSO CLÍNICO (ISSN 1808-7191) é uma publicação bimestral da EditoraTroféu Ltda.
Daniel Giberne Ferro Odontovet - USP deferro@usp.br
Julio César Cambraia Veado Clínica de Pequenos Animais (Unimar) cambraia@vet.ufmg.br
Paulo Ricardo de Oliveira Paes Patologia Clínica (UFMG) paulopaes@vet.ufmg.br
Edgar Luiz Sommer Diagnóstico por Imagem (Provet) edgarsommer@sti.com.br
Kárita Dannielle Assis Borges Gastroenterologia e Clínica Geral karitavet@gmail.com
Ricardo Coutinho do Amaral Clínica Médica de Pequenos Animais
Fábio F. Ribeiro Manhoso Homeopatia e Med. Vet. (UNIMAR) fabiomanhoso@unimar.br
Kellen Sousa Oliveira Reprodução Pequenos Animais ksoliver13@hotmail.com
Fábio Futema Anestesiologia fabiofutema@uol.com.br
Lucas Marques Colomé Clínica Cirúrgica Animal lucascolome@hotmail.com
Fabíola Paes Leme Patologia Clínica (UFMG) fabiola.ufmg@gmail.com
Luís Carlos Medeiros Jr. Radiologia luis.carlos@vetimagem.com.br
Fernanda Antunes Pesquisadora (UFRJ) prfernandaantunes@yahoo.com.br
Marco Antônio Gioso Odontologia - USP maggioso@usp.br
Fernando Antônio Bretas Viana Oftalmologia e Farmacologia fbretas@vet.ufmg.br
Marconi Faria Dermatologia marconi.farias@pucpr.br
Flávia Borges Saad Nutrição de Pet (UFLA) borgesvet@ufla.com
Michèle A.F.A. Venturini Odontovet - USP michele@odontovet.com
Alessandra Martins Vargas Endocrinologia e Metabolismo alessandra@endocrinovet.com.br
Flávia R.R. Mazzo Cardiologia Clínica (Provet) flamazzo@gmail.com
Moacir Leomil Neto Cardiologia Veterinária - USP mleomil@pucpcaldas.br
Alexandre G. Teixeira Daniel Clínica e Cirurgia de Felinos alegtd@yahoo.com.br
Herbert Lima Corrêa Odontovet - USP herbert@odontovet.com
Olicies da Cunha Cirurgia Geral olicies@bol.com.br
Administração, Redação e Publicidade: Rua Braço do Sul, 43 - Morumbi CEP: 05617-090 - São Paulo - SP Tels.: (11) 3721-0207 / 3845-5325 3849-4981 / 99184-7056 editoratrofeu@terra.com.br nossoclinico@nossoclinico.com.br NOTAS: a) As opiniões de articulistas e entrevistados não representam necessariamente, o pensamento de NOSSO CLÍNICO. b) Os anúncios comerciais e informes publicitários são de inteira responsabilidade dos anunciantes.
CONSULTORES CIENTÍFICOS Adriane Pimenta da Costa Val Dermatologia adriane@vet.ufmg.br
Ricardo Siqueira da Silva Cirurgia e Ortopedia de Peq. Animais lorrags@domain.com.br Roberto Silveira Fecchio LOC FMVZ-USP bob_vetmeto@yahoo.com.br Rodrigo Cardoso Rabelo Especialidade Medicina Intensiva ricobvccs@gmail.com Silvia Renata G. Cortopassi Anestesiologia silcorto@usp.br Tânia de Freitas Raso Patologia Animais Silvestres tfraso@usp.br Thalita M. Vieira Setor de Cardiologia (Provet) tatamv@hotmail.com Thiago Dutra Vilar Patologia vilartd@vm.uff.br Wanderson A. Ferreira Marketing najacoyote@terra.com.br
Nosso Clínico • 3
MEDICINA VETERINÁRIA PARA ANIMAIS DE COMPANHIA
SUMÁRIO
Foto Capa: ODONTOVET Foto Destaque: Manuella Oliveira Borges de Sampaio
“NÓS APOIAMOS A CAUSA DOS ANIMAIS” Para mais informações visite:
ANO 19 - N° 113 - SETEMBRO / OUTUBROO 2016
06
Diagnóstico e tratamento das fraturas e luxações da articulação Temporomandibular em cães e gatos
12
Transposição do Ducto Parotídeo em cão: Relato de caso
22
Púrpura em cão Shih-Tzu com Trombocitopatia causada por Erliquiose Canina: Relato de caso
30
O ensino da Homeopatia nos cursos de Medicina Veterinária do Brasil: Panorama Geral
36
Tratamento Nutracêutico para pequenos animais hepatopatas
06
12
22 36
44
Técnicas de Inseminação Artificial em cães: Revisão
54
Colunas
Encarte: Clínica de Marketing
54
www.arcabrasil.org.br
NOSSO ENDEREÇO ELETRÔNICO Home page: www.nossoclinico.com.br Redação: andrearusso@uol.com.br Assinatura/Administração: editoratrofeu@terra.com.br Publicidade/Eventos: fernandofiguerola@terra.com.br Editora: nossoclinico@nossoclinico.com.br
Nosso Clínico. - - vol. 1, n.1 (1998) - . -- São Paulo : Editora Troféu, 1998 il. : 21 cm Bimestral. Resumos em inglês, espanhol e português. ISSN 1808-7191. 1998 - 2008, 1-11 2016, 19 (n.113 - set/out 2016) 1. Veterinária. 2. Clínica de pequenos animais. 3. Animais silvestres. 4. Animais selvagens.
Normas para Publicação de Artigos na Revista Nosso Clínico A revista Nosso Clínico tem sua publicação bimestral, com trabalhos de pesquisa, artigos clínicos e revisão de literatura destinados aos Médicos Veterinários, estudantes e profissionais de áreas afins. Além de atualizações, notas e informações, cartas ao editor e editoriais. Todos os trabalhos devem ser inéditos e não podem ser submetidos simultaneamente para avaliação em outros periódicos, sendo que nenhum dos autores será remunerado. Os artigos terão seus direitos autorais resguardados a Editora que em qualquer situação, agirá como detentora dos mesmos, inclusive os de tradução em todos os países signatários da Convenção Pan-americana e da Convenção Internacional sobre os Direitos Autorais. Os trabalhos não aceitos, bem como seus anexos, não serão devolvidos aos autores. Artigos científicos inéditos, revisões de literatura e relatos de caso enviados à redação serão avaliados pela equipe editorial. Em face do parecer inicial, o material é encaminhado aos consultores científicos. A equipe decidirá sobre a conveniência da publicação, de forma integral ou parcial, encaminhando ao autor, sugestões e possíveis correções.
4 • Nosso Clínico
Para esta primeira avaliação, devem ser enviados pela internet (nossoclinico@nossoclinico.com.br) arquivo de texto no formato .doc ou .rtf com o trabalho e imagens digitalizadas no formato .jpg. No caso dos autores não possuírem imagens digitalizadas, cópias das imagens acompanhadas da identificação de propriedade e autor, deverão ser enviadas via correio ao departamento de redação. Os autores devem enviar a identificação com endereço, telefone e e-mail para contatos. Os artigos de todas as categorias devem ser acompanhados de versão em língua inglêsa e espanhola de: título, resumo (com 600 a 800 caracteres) e unitermos (de 3 a 6). No caso do material ser totalmente enviado pelo correio devem ser necessariamente enviados, além da apresentação impressa, uma cópia em disquete de 3,5’’ ou CD-rom. Imagens, tabelas, gráficos e ilustrações não podem em hipótese alguma ser proveniente de literatura, mesmo que indicado a fonte. Imagens fotográficas devem possuir indicação do fotógrafo; e quando cedida por terceiros, deverão ser obrigatoriamente acompanhadas de autorização para a publicação. As referências bibliográficas serão indicadas ao longo do texto apenas por números sobrescritos ao final da citação, que cor-
responderão à listagem ao final do artigo em ordem alfabética, evitando citações de autores e datas. A apresentação das referências ao final do artigo deve seguir as normas atuais da ABNT. Em relação aos princípios éticos da experimentação animal, os autores deverão considerar as normas do Colégio Brasileiro de Experimentação Animal. Deve ser enviado pelo correio, à editora, um certificado de responsabilidade assinado pelo menos por um dos autores, contendo o título original do trabalho, nome de todos os autores assinatura e data. O certificado deve ser redigido conforme o modelo abaixo: “Certificamos que o artigo enviado a Revista Nosso Clínico é um trabalho original, não tendo sido publicado em outras revistas, quer no formato impresso, quer por meios eletrônicos, e concordamos com os direitos autorais da revista sobre o mesmo e com as normas para publicação descritas. Responsabilizamo-nos quanto às informações contidas no artigo, assim como em relação às questões éticas.” Obs.: Os mesmos artigos serão avaliados pelo conselho técnico e caso aceitos, serão publicados com aviso prévio ao autor, para aprovação e correção da diagramação por esta enviado.
Nosso Clínico • 5
Diagnóstico e tratamento das fraturas e luxações da articulação temporomandibular em cães e gatos “Diagnostic and treatment of temporomandibular jont fractures and luxation of dogs and cats” “Diagnóstico y tratamiento de las fracturas e luxaciones de la articulación temporomandibular em perros e gatos”
M.V. Daniel G. Ferro Equipe Odontovet Doutor em cirurgia pela FMVZ-USP Especialização em odontologia veterinária pela ANCLIVEPA-SP ferro@odontovet.com M.V. Herbert Lima Correa Equipe Odontovet Mestre em cirurgia pela FMVZ-USP Especialização em odontologia veterinária pela FMVZ-USP herbert@odontovet.com * Autora para correspondência
RESUMO: As fraturas e luxações da articulação temporomandibular (ATM) podem ser decorrentes de traumas automobilísticos, quedas, brigas ou agressões. Os pacientes com lesão traumática na região, normalmente apresentam desvio da oclusão e impossibilidade de ocluir a cavidade oral. A avaliação física e exame radiográfico (radiografia de crânio convencional ou tomografia computadorizada) são fundamentais para o planejamento e indicação do tratamento adequado. Nas luxações e fraturas com pouco desvio de eixo dos fragmentos, o tratamento conservador com limitação da abertura da cavidade oral (focinheira esparadrapada ou bloqueio intermaxilar com resina acrílica) tem bom prognóstico desde que instaurado logo após o trauma. Nas luxações crônicas e nas fraturas com grandes desvios e eixo, a abordagem cirúrgica (condilectomia) terá bons resultados com relação à manutenção da oclusão. Unitermos: transtornos da articulação temporomandibular, cães, gatos, luxações, fraturas ósseas ABSTRACT: Fractures and luxation of the temporomandibular joint (TMJ) may be due to motor vehicle injuries, fall, fights and aggressions. Patients with injury in the region usually present malocclusion and are unable to close the mouth. The physical assessment and radiographic examination (conventional skull radiograph or CT scan) are essential for planning and indication of proper treatment. In luxations and fractures with little deviation of the fragments, conservative treatment with tape muzzle or dental bonding results in good prognosis since established shortly after the trauma. In chronic luxations and fractures with large deviations, surgical approach (condylectomy) will have good results in maintenance of occlusion. Keywords: temporomandibular joint disorders, dogs, cats, dislocations, bone fractures RESUMEN: Las fracturas y luxaciones de la articulación temporomandibular (ATM) pueden deberse a lesiones de vehículos, caídas, peleas o agresiones. Los pacientes con lesiones en la región generalmente presentan desviación de la oclusión y incapacidad para ocluir la cavidad oral. La evaluación física y radiográfica (radiografía de cráneo convencional o tomografía computarizada) son esenciales para la planificación y la indicación de un tratamiento adecuado. En luxaciones y fracturas con poca desviación de los fragmentos, los resultados del tratamiento conservador tiene bon pronóstico ya establecido poco después del trauma. En luxaciones crónicas y fracturas con grandes desviaciones, abordaje quirúrgico (condilectomia) llevará a buenos resultados con respecto al mantenimiento de la oclusión. Palabras clave: trastornos de la articulación temporomandibular, perros, gatos, luxaciones, fracturas óseas
Introdução As fraturas de mandíbula e maxila são comuns na clínica de pequenos animais, especialmente nos centros urbanos. Podem ser causadas por acidentes automobilísticos, brigas entre cães, agressões, extração dentária, quedas, doença periodontal ou neoplasias, estas duas últimas predispondo o animal à fraturas patológicas1,2. A maior parte das fraturas ocorre na região do corpo da mandíbula tendo maior prevalência em cães e sínfise1,3,4,5. Porém, a região da ATM também pode ser afetada, tendo maior prevalência em gatos. Os distúrbios mais frequentes são as luxações (perda completa da relação articular) ou sub-luxações (perda parcial da relação articular), fraturas e anquiloses tardias: intra-capsulares (verdadeiras) ou extra-capsulares (falsas ou pseudo-anquiloses). Estas alterações são mais frequentes em felinos que sofreram trauma orofacial, principalmente quedas, e normalmente estão acompanhadas de outras injúrias1,6,7. Anatomia da articulação temporomandibular A ATM do cão e do gato é uma articulação condilar sinovial alongada na qual o processo condilar (cabeça e colo) da mandíbula se articula com a fossa 6 • Nosso Clínico
mandibular do osso temporal. A fossa mandibular apresenta uma extensão caudoventral, o processo retro-articular, que previne a luxação caudal do processo condilar. Em sua margem cranial, o tubérculo articular é relativamente pequeno nos cães e discretamente mais evidente nos felinos (figuras 1 e 2). Ambas superfícies articulares são recobertas por uma única camada fibrocartilaginosa8,9.
ODONTOVET
M.V. e C.D. Michèle A.F.A. Venturini* Equipe Odontovet Mestre em cirurgia pela FMVZ-USP michele@odontovet.com
Figura 1: Imagem de crânio seco de cão destacando região de articulação temporomandibular e suas estruturas intra-capsulares: (1) processo condilar e (2) fossa mandibular
ODONTOVET
Histórico, Sinais e Sintomas O histórico de trauma está sempre presente nos casos de luxações e fraturas na região da articulação temporomandibular. O sinal mais frequentemente encontrado é a incapacidade de fechar completamente a cavidade oral. Nas sub-luxações, normalmente a maloclusão não é percebida; já nas luxações, é sempre presente. A luxação rostral unilateral resulta no desvio da mandíbula para o lado oposto ao lado afetado. Na luxação caudal unilateral, o desvio da mandíbula se dá para o lado luxado. A luxação bilateral rostral resulta em leve protusão rostral da mandíbula enquanto a luxação bilateral caudal leva ao posicionamento caudal da mandíbula. A fratura envolvendo a ATM pode ou não levar à maloclusão dependendo do grau de deslocamento dos fragmentos1,6,10. O exame físico do paciente sem anestesia é limitado à avaliação da oclusão (presença de desvio) (figura 3) e observação da capacidade ou incapacidade do paciente em abrir ou fechar a cavidade oral, além da observação de eventual sintomatologia neurológica. Deve-se lembrar que a causa da lesão é traumática. Assim, a completa avaliação física do paciente se faz necessária através de radiografias de tórax, ultrassom abdominal, hemograma completo, bioquímica sérica e urinálise1,6,10. O exame físico completo é realizado com o paciente sob anestesia geral no qual avalia-se a presença de dilaceração de tecidos moles ou fraturas abertas. A mandíbula e a maxila são gentilmente palpadas e manipuladas. Crepitações sugerem fraturas e a pressão da mandíbula contra a maxila normalmente levará ao fechamento da cavidade oral. Maloclusão e impossibilidade de fechar a boca pela manipulação indicam presença de luxação
ODONTOVET
Entre a cabeça do côndilo e a fossa mandíbular, o disco articular acompanha a curvatura da articulação com convexidade caudal e com bordas mais espessas. Nos felinos, é representado apenas por uma fina lamela de tecido fibroso. A principal função do disco articular é diminuir o atrito promovendo uma dupla camada de líquido sinovial. Também atua como amortecedor e estabilizador da articulação1,8,9. Externamente, a cápsula articular é formada por tecido fibroso que é lateralmente mais espesso tanto no cão quanto no gato, sendo no cão recoberta por um ligamento que a fortalece1,8,9.
de ATM. Frequentemente, hematoma na região do arco glossopalatino do lado da lesão (fratura ou luxação) é observado (figura 4). O exame da cavidade oral é complementado por radiografias de crânio e tomografia computadorizada1,6,10. Deve-se fazer o diagnóstico diferencial com afeções agudas ou crônica que levam à impossibilidade de fechar a boca corpo estranho em cavidade oral (figura 5), displasia de ATM, luxação
Figura 4: Imagem da região de arco glosso palatino direito de gato com sinais de hematoma que sugere trauma em região distal de mandíbula ou ATM com consequente hemorragia
ODONTOVET
ODONTOVET
Figura 2: Imagem de crânio seco de gato destacando região de articulação temporomandibular e suas estruturas intra-capsulares: (1) processo condilar, (2) fossa mandibular e (3) processo retroarticular ..................................................................................................................
Figura 3: Imagem em vista frontal de cavidade oral de gato com desvio oclusal esquerdo que fica evidenciada pelo deslocamento lateral esquerdo da linha média da mandíbula em relação a maxila e pelo posicionamento vestibularizado do dente canino inferior esquerdo em relação ao dente superior ...................................................................................................................
Figura 5: Imagem de cavidade oral de cão em vista lateral esquerda evidenciando presença de corpo estranho preso entre dentes molares (superior e inferior) que impede a completa oclusão do animal Nosso Clínico • 7
ODONTOVET
dental devido a doença periodontal grave levando à interferência oclusal (figura 6) e neuropatia do trigêmeo.
Figura 6: Imagem de cavidade oral de gato em vista lateral esquerda evidenciando luxação e desvio vestibular do dente molar inferior que impede a completa oclusão do animal ...................................................................................................................
ODONTOVET
Diagnóstico por Imagem O exame radiográfico de crânio para a avaliação da articulação temporomandibular deve ser feito em incidência dorsoventral ou ventrodorsal e laterolaterais oblíquas para individualização de cada articulação. Os achados radiográficos incluem fraturas, luxações ou ambas10. Nas luxações, o côndilo apresenta-se deslocado da fossa articular rostral e dorsalmente (figuras 7) ou caudalmente à mesma. As luxações caudais normalmente vêm acompanhadas de fratura do processo retro-articular e são menos frequentes do que as luxações rostrais1,6,9,10. As fraturas temporo-mandibulares podem ser diagnosticadas nas projeções dorsoventral e laterolaterais porém a tomografia computadorizada permite melhor avaliaçãode fraturas por permitirem a visão de cortes axiais, frontais e sagitais da ATM sem sobreposição de estruturas (figura 8)10.
Tratamento Nas fraturas e luxações da articulação tempomandibular o tratamento pode ser conservador ou cirúrgico. As sub-luxações não necessitam de tratamento específico além de comida pastosa e restrição de atividades com a cavidade oral. Nas luxações, deve-se sempre tentar redução fechada logo após o trauma pois luxações crônicas apresentam organização de tecido fibroso no espaço articular o que dificulta ou impossibilita seu reposicionamento1,6,10. Para realizar a redução da luxação, o paciente deve ser anestesiado com protocolo anestésico que permita bom relaxamento da musculatura. Após sua entubação, o paciente é posicionado em decúbito esternal. Um lápis de madeira ou uma caneta de plástico devem ser colocados transversalmente na cavidade oral na altura dos dentes segundo e terceiro molares inferiores (figura 9) para a obtenção de um fulcro. A utilização de material duro pode levar à fratura da ponta de cúspide dos dentes. Em seguida, tentase fechar gentilmente a cavidade oral. Esta manobra movimenta o processo condilar para uma direção ventral (figura 10). A maioria das luxações são rostrodorsais. Neste caso, após o posicionamento ventral do processo condilar, a mandíbula é delicadamente empurrada caudalmente para o lado luxado para posicionar o processo condilar na fossa articular (figura 11).
Figura 8: Imagem em corte transversal de tomografia computadorizada de crânio de gato evidenciando fratura simples completa de côndilo de articulação temporomandibular direita
8 • Nosso Clínico
ODONTOVET
Figura 7: Imagem radiográfica em projeção dorsoventral simétrica de crânio de gato. A seta mostra luxação rostral da articulação temporomandibular
10
11
Figura 10: Imagem lateral esquerda de crânio seco de cão mostrando segunda etapa de redução de luxação rostral da articulação temporomandibular. Ao comprimir a extremidade rostral da boca do animal e promover sua oclusão, obtém-se movimento pendular de alavanca auxiliado pelo fulcro obtido pelo posicionamento de lápis entre os dentes 1o e 2o molares inferiores e os dentes 4o pré-molar e 1o molar superiores. Esta manobra promove deslocamento e distanciamento do côndilo em relação a fossa mandibular. Figura 11: Imagem lateral esquerda de crânio seco de cão mostrando terceira e última etapa de redução de luxação rostral da articulação temporomandibular. Após comprimir a extremidade rostral da boca do animal e promover sua oclusão, faz-se movimento de pressão da mandíbula em direção distal que induz o reposicionamento anatômico do côndilo na fossa mandibular
ODONTOVET
ODONTOVET
Figura 9: Imagem lateral esquerda de crânio seco de cão mostrando luxação rostral da articulação temporomandibular e posicionamento de lápis entre os dentes 1o e 2o molares inferiores e os dentes 4o prémolar e 1o molar superiores para configuração do fulcro de alavanca na primeira etapa da manobra de redução
nho dos fragmentos. Assim, o tratamento conservador com uso de focinheira esparadrapada ou bloqueio intermaxilar com resina acrílica é o mais indicado. Porém, as lesões da superfície articular pode levar à anquilose da articulação1,3,4,7,10,12. Nos casos de luxações crônicas ou de fraturas nos quais não se consegue um correto posicionamento da mandíbula em oclusão normal, a abordagem cirúrgica, condilectomia, faz-se necessária1,3,4,7,10,12.
ODONTOVET
Se a luxação for na direção caudal, a mandíbula é tracionada rostralmente. Após o reposicionamento do processo articular, a mandíbula é aberta e fechada diversas vezes para observar se não ocorre recorrência da luxação. Radiografias dorsoventral ou ventrodorsal e laterolaterais oblíquas devem ser realizadas para confirmar o correto posicionamento da ATM1,6,10,11. Se a redução tiver sido realizada facilmente e mantida em posição após a manipulação, não há necessidade de restrição dos movimentos da mandíbula. O paciente deve ser alimentado com comida pastosa e não ter acesso a brinquedos ou mastigáveis por cinco a seis semanas. Se a redução tiver sido difícil ou a luxação recorrer após a manipulação, a oclusão deverá ser mantida com o uso de focinheira esparadrapada (figura 12) ou bloqueio intermaxilar com resina acrílica (figura 13) por duas semanas1,2,6,9,10,11,12. As fraturas envolvendo a ATM normalmente ocorrem com outras fraturas maxilofaciais ou ruptura da sínfise. Os fragmentos intra-articulares podem ser estabilizados pela musculatura da mastigação, cápsula articular e ligamentos. Estas fraturas são de difícil estabilização com fixação interna devido ao diminuto tama-
Figura 13: Imagem em vista frontal de cavidade oral de gato evidenciando bloqueio intermaxilar para imobilização confeccionado através de aplicação de resina de metilmetacrilato sobre os dentes caninos superiores e inferiores. Notar abertura da boca que deve ter um máximo de 0,5 cm a fim de manter conforto de deglutição
ODONTOVET
ODONTOVET
Figura 12: Imagem de cão com focinheira esparadrapada para imobilização da cavidade oral do animal. São coladas duas fitas de esparadrapo, uma contra a outra a fim de que a focinheira não adira à pele. Confecciona-se anel para aplicação no focinho e uma fita longa que se liga ao anel e fixa-se atrás da cabeça do animal
Pós-operatório, Prognóstico e Complicações Os pacientes com trauma maxilofacial devem ser medicados com anti-inflamatórios e analgésicos por três a cinco dias após a manobra clinica ou cirúrgica para restabelecimento da oclusão. Nos animais que terão limitação na abertura da cavidade oral (focinheira esparadrapada ou bloqueio intermaxilar), durante a manobra de reposicionamento da mandíbula, pode-se lançar mão da colocação de sonda esofágica para facilitar e permitir o aporte medicamentoso, alimentar e hídrico do paciente10,12. Os resultados do tratamento conservador das luxações e fraturas com pouco desvio de fragmentos dependem do trauma e do manejo pós-operatório do paciente. Recorrência da luxação pode acontecer nos casos de grande injúria de tecido mole e/ou inadequado manejo pós-redução. A união fibrosa pode ocorrer secundária à instabilidade da fratura o que normalmente não vai interferir com o funcionamento normal da mandíbula1,6,10. Em geral, com o tratamento conservador, a maioria das luxações ou fraturas sem grandes desvios têm prognóstico bom, com boa reparação tecidual e manutenção da função normal da cavidade oral. Se após o tratamento conservador, os resultados funcionais não forem adequados (maloclusão, anquiloses ou doenças degenerativas da ATM), a condilectomia pode ainda ser realizada1,6,10,12. Clinicamente, as maloclusões são raras nas condilectomias unilaterais. Nas condilectomias bilaterais, a mandíbula pode posicionar-se caudalmente, apresentar discreto desvio lateral e o paciente apresentar mordida aberta. Em geral, qualquer maloclusão devido à condilectomia é discreta e não interfere com a oclusão do paciente. No caso do desvio ser importante, a mandíbula pode ser levada para a posição normal com o uso de botões e elásticos (figura 14). Se esta manobra não levar a resultados satisfatórios, os dentes que estiverem causando trauma oclusal devido ao desvio, normalmente os dentes caninos, deverão ter sua coroa amputada ou ser extraídos1,2,3,4,6,10.
Figura 14: Imagem em vista lateral direita de cavidade oral de cão que passou por condilectomia esquerda e no qual foi aplicado elástico ortodôntico de corrente entre os dentes canino inferior e quarto pré-molar superior a fim de minimizar o desvio esquerdo da oclusão Nosso Clínico • 9
Discussão e Conclusões A luxações e fraturas da articulação temporomandibular podem ser debilitantes por dificultarem a apreensão e ingestão dos alimentos e podem não ser diagnosticadas clinicamente, principalmente nos casos de fraturas com pouco desvio dos fragmentos10. Indica-se que todo cão ou gato que sofreu um trauma crânio facial seja submetido à avaliação clinica e principalmente radiográfica para o diagnóstico de lesões na ATM. Uma avaliação tomográfica é indicada, porém requer melhor planejamento anestésicodiante do histórico de trauma. As luxações crânio-dorsais da articulação temporomandibular são provavelmente mais frequentes devido à anatomia da região. O tubérculo da margem anterior de tamanho diminuto facilita o deslocamento do processo condilar cranialmente. Em contrapartida, pelo processo retro-articular ser mais proeminente, o mesmo está mais sujeito à fraturas8 que, segundo levantamento de Arzi et al. (2013), ocorrem mais em felinos. Os gatos estão mais sujeitos a quedas com trauma frontal o que leva a mandíbula em direção caudal e incidência de força sobre a articulação. Além deles não apresentarem o ligamento lateral como nos cães que pode fortalecer a articulação. No tratamento conservador, vários autores sugerem o uso de focinheira esparadrapada ou de bloqueio intermaxilar com resina acrílica para limitar a abertura da cavidade oral1,6,10,11. O focinheira esparadrapada facilita o acúmulo de sujidades e saliva, aumentando a umidade na pele da região e incidência de dermatite de contato que, além de promover odor forte, causa desconforto para o paciente. Para evitar estes inconvenientes, a focinheira deve ser trocada a cada 2 dias pelo proprietário que poderá inadvertidamente não reposicionar a mandíbula em posição correta. Além disso, um paciente com focinheira deverá usar o colar elisabetano para impedi-lo de tentar remover a focinheira passando a pata ou esfregando o focinho. Indica-se o bloqueio intermaxilar com resina acrílica por garantir o correto posicionamento da mandíbula durante o período necessário e por não apresentar as desvantagens do uso de focinheira esparadrapada. A mesma poderá ser usada em caso de emergência para promover conforto ao paciente até o momento do atendimento especializado. É importante salientar que nos casos de fraturas, mesmo que o tratamento adequado tenha sido instituído, a anquilose da articulação afetada pode ocorrer, o que deve ser comentado com o proprietário. Da mesma forma, diante de um caso de luxação, no qual apenas radiografias de crânio tenham sido realizadas, é importante alertar da possibilidade de ocorrer anquilose futura já que aradiografia não é o melhor exame para o diagnóstico de
10 • Nosso Clínico
fraturas na região da ATM10. A articulação temporomandibular pode ser sede de alterações que podem comprometer de forma significativa a oclusão do paciente. O diagnóstico preciso e tratamento imediato são importantes para minimizar sequelas importantes da oclusão e promover o bem-estar do paciente. ® Referências 1. HARVEY, C.E.; EMILY, P.P. Small Animal Dentistry, 1.ed. St. Louis: Ed. Mosby, 1993, p.413. 2. ZETNER, K. Treatment of jaw fractures in small animals with popular pin composite bridges. Veterinary Clinics of North America: Small Animal Practice, v.22, n.6, p.1462-1467, 1992. 3. UMPHLAT, R.C.; JONHSON, A.L. Mandibular fractures in the cat. Veterinary Surgery, v.17, n.6, p.333-337, 1988. 4. UMPHLET, R.C.; JOHNSON, A.L. Mandibular fractures in the dog: a retrospective study of 157 cases. Veterinary Surgery, v.19, n.4, p.472-275, 1990. 5. LOPES, F. M.; GIOSO, M. A.; FERRO, D.G.; LEON-ROMAN, M. A.; VENTURINI, M.A.F.A.; CORRÊA, H.L. Oral fractures in dogs of Brazil – a retrospective study. Journal of Veterinary Dentistry, v.22, n.2, p.86-90, 2005. 6. WIGGS, R.B.; LOBPRISE, H.B. Veterinary Dentistry – Principles and Practice. Philadelphia: Lippincott-Raven Publishers, 1997, p.518-537. 7. CETINKAYA, M.A. Temporomandibular joint injuries and ankylosis in the cat. Vet Comp Orthop Traumatol, 2012, 25(5): 366-74, doi: 10.3415/ VCOT-11-10-0146. Epub 2012 Jul 25. 8. CHWARZ, T.; WELLERD, R.; DICKIE, L.M.; KONAR, M.; SULLIVAM, M. Imaging of the canine and feline temporomandibulary joint: a review. Veterinary Radiology Ultrasound, 2002, Mar-Apr., 43(2):85-97. 9. ARZI, B.; CISSEL, D.D.; VERSTRAETE, F.J.; KASS, P.H.; DURAINE, G.D.; ATHANASIOUS, K.A. Computed tomography findings in dogs and cats with temporomandibular joint disorders: 58 cases (2006-2009). Journal of American Veterinary Medical Association, 2013. Jan. 1;242(1):6975. doi: 10.2460/javma.242.1.69. 10. VESTRAETE, F.J.M.; LOMMER, M.J. Oral Maxillofacial Surgery in Dogs and Cats. Saunders Elsevier, 2012, p.567. 11. EGEN, M.H. Initial management of closed fractures and joint injuries. Veterinary Clinics of North American Small Animal Practice. 1980 Aug.; 10(3):691-706. 12. BENNET, J.W.; KAPATRIN, A.S.; MARRETA, S. Dental composite for the fixation of mandibular fractures and luxations in 11 cats and 6 dogs. Veterinary Surgery, 1994, May-Jun. 23(3):190-4.
Nosso Clínico • 11
em cão: relato de caso “Parotid duct transposition in dog: case report” “Transpocisión del ducto parotídeo en un perro: relato de caso” ..................................... Karina Barbosa de Souza* (karina_b_souza@yahoo.com.br) Residente do Laboratório de Oftalmologia Comparada do Hospital Veterinário da Universidade Federal do Paraná UFPR Manuella Oliveira Borges de Sampaio (manu.oftalmovet@gmail.com) Mestranda do Departamento de Ciências Veterinária da UFPR Thayane Cristine Santos Vieira (thay_vieir@hotmail.com) Mestranda do Departamento de Ciências Veterinária da UFPR Fabiano Montiani-Ferreira (montiani@ufpr.br) Docente do Curso de Medicina Veterinária e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Veterinárias da UFPR * Autora para correspondência
12 • Nosso Clínico
RESUMO: A transposição do ducto parotídeo é um procedimento cirúrgico utilizado como alternativa para o tratamento da ceratoconjuntivite seca refratária ao tratamento clínico. Esta abordagem cirúrgica é realizada por meio da transposição do ducto parotídeo da cavidade oral para o fórnice conjuntival inferior, permitindo a substituição da lágrima pela saliva. Um cão de 2 anos de idade, sem raça definida, porte grande, foi atendido pelo serviço de oftalmologia do Laboratório de Oftalmologia Comparada do Hospital Veterinário da Universidade Federal do Paraná e diagnosticado com ceratoconjuntivite seca severa de provável causa neurogênica. Como o paciente demonstrou ser refratário ao tratamento clínico previamente instituído, optou-se pelo procedimento cirúrgico mencionado, utilizando a abordagem transcutânea (aberta). Apesar das consequências, que incluíram a epífora, blefarite e deposição de minerais na córnea, o procedimento foi bem-sucedido, permitindo a lubrificação da superfície ocular. Unitermos: ceratoconjuntivite seca, tratamento cirúrgico, lágrima, CCS ABSTRACT: Parotid duct transposition is an alternative surgical approach for the treatment of keratoconjunctivitis sicca when the clinical management has proven unsuccessful. This procedure consists in the transposition of parotid duct from the mouth to the inferior conjunctival fornix to provide lubrification of the eye. A large 2-yearold dog, presented at ophthalmology service of Comparative Veterinary Ophthalmology Laboratory at the Veterinary Hospital of the Federal University of Paraná with severe keratoconjunctivitis sicca with probably a neurogenic cause and refractory to previous medical treatments. There by, the patient was treated surgically by the afore mentioned technique. Although some of the expected complications appeared, including epiphora, blepharitis and mineral deposition in the cornea, the surgery was successful providing lubrication of the eye. Keywords: keratoconjunctivitis sicca, surgical treatment, tear, KCS RESUMEN: La transposición del ducto parotídeo es un procedimiento quirúrgico utilizado como alternativa al tratamiento de la queratoconjuntivitis sicca que es refractaria al tratamiento clínico. Esta abordaje quirúrgica es realizada por medio de la transposición del ducto parotídeo de la cavidad oral para el fórnix conjuntival inferior, permitiendo la sustitución de la lágrima por la saliva. Un canino de 2 años de edad, sin raza definida, porte grande, fue atendido por el servicio de oftalmología del Laboratorio de Oftalmología comparada del Hospital Veterinario da Universidade Federal do Paraná y diagnosticado con queratoconjuntivitis sicca severa probablemente de causa neurogénica. Como el paciente demostró ser refractario al tratamiento clínico instituido previamente, se optó por el procedimiento quirúrgico mencionado anteriormente, utilizando el abordaje transcutáneo (abierto). A pesar de las consecuencias, que incluyeron epífora, blefaritis y deposición de minerales en la córnea, el procedimiento fue bien sucedido, permitiendo la lubricación de la superficie ocular. Palabras claves: queratoconjuntivitis sicca, tratamiento quirúrgico, lágrima, QCS
KARINA BARBOSA DE SOUZA
Transposição do
Revisão de Literatura: Ceratoconjuntivite Seca O filme lacrimal pré-corneano é responsável pela manutenção da saúde da superfície ocular, em consonância com a conformação e função normal dos anexos oculares3,18,19,34. O mesmo é trilaminar, composto externamente por uma camada lipídica, centralmente pela camada aquosa e internamente por muco. O filme apresenta várias funções tais como proteção, lubrificação, nutrição, remoção de corpos estranhos da superfície ocular e defesa por meio de substâncias antimicrobianas20. A porção lipídica é produzida pelas glândulas sebáceas (glândulas Tarsais) localizadas na placa tarsal das pálpebras, sendo responsável por impedir a evaporação das camadas subjacentes e estabilização do filme, aumentando a tensão superficial. A porção aquosa constitui o maior volume da lágrima e é responsável pela nutrição, lubrificação e proteção da superfície ocular, sendo produzida pela glândula da terceira pálpebra (aproximadamente 30%) e pela glândula lacrimal principal (aproximadamente 70%) localizada na região temporal da órbita. A camada mais interna, muco, é produzida pelas células caliciformes conjuntivais e permite a distribuição uniforme do filme sobre a córnea, promovendo estabilidade3, sendo constituído por glicoproteínas e forma o glicocálix que reveste a membrana apical das células do epitélio corneano. O glicocálix permite o movimento livre do muco na superfície da córnea10. A integridade do epitélio corneano e da camada de mucina é necessária para manutenção do filme lacrimal sobre a superfície corneana19. Anormalidades, em quantidade ou qualidade, de qualquer uma das três camadas do filme lacrimal pré-corneano podem comprometer sua dinâmica e suas funções primordiais29. A ceratoconjuntivite seca (CCS) ou “olho seco” é uma doença oftálmica com alta incidência em cães, caracterizada pela inflamação da superfície ocular (córnea e conjuntiva) provocada pela disfunção do filme lacrimal pré-corneano3,22,23,40,44, sendo mais caracterizada principalmente pela redução da porção aquosa do filme lacrimal3. A etiologia da ceratoconjuntivite seca é variada, podendo ser de origem neurogênica27, congênita caracterizada por aplasia ou hipoplasia da glândula lacrimal (comum em cães da raça Yorkshire Terrier)41, infecciosa (leishmaniose31 ou cinomose, que pode causar ceratoconjuntivite seca temporária ou permanente1), endócrina (diabetes mellitus9, hiperadrenocorticismo e hipotireoidismo42), droga-induzida (atropina, clorpromazina15 e sulfonamidas38), imunomediada40 e iatrogênica (remoção da glândula da terceira pálpebra)35. A causa mais comum de ceratoconjuntivite seca em cães adultos é a inflamação imunomediada das glândulas lacrimais40 que se manifesta geralmente de forma bilateral, provocando grave redução da porção aquosa do filme lacrimal pré-corneano. Além dessas condições, tem sido observado que o envelhecimento também contribui para a diminuição da produção lacrimal20. Os sinais clínicos variam conforme o tempo da doença (aguda ou crônica) e a gravidade da deficiência do filme lacrimal e abrangem: ceratite e conjuntivite, infecção secundária, desconforto ocular e secreção mucopurulenta42. A desidratação, má nutrição e irritação crônica da superfície ocular provocam hiperemia conjuntival, metaplasia escamosa, hiperqueratinização epitelial e edema corneano. Células inflamatórias e vasos sanguíneos migram para o estroma corneano, porém tais alterações provocam déficit visual e podem levar à cegueira3. O diagnóstico é estabelecido com base na associação do histórico do animal com o exame oftálmico o qual inclui biomicroscopia com lâmpada de fenda, uso de corantes vitais como a fluo-
resceína (detecta defeitos epiteliais corneanos e determina o tempo de ruptura do filme lacrimal), o rosa bengala (detecta células desvitalizadas) e o teste lacrimal de Schirmer. É importante que os testes sejam realizados numa sequência cronológica para minimizar alterações nos testes subsequentes18. O teste lacrimal de Schirmer é utilizado para quantificar a produção da fase aquosa do filme lacrimal por meio de uma tira de papel milimetrado e padronizado (papel Whatman 40), que é colocada no fórnice conjuntival inferior durante um minuto, podendo ser realizado sem anestesia tópica ou com anestesia tópica, denominando-se teste lacrimal de Schirmer 1 e teste lacrimal de Schirmer 2, respectivamente. O primeiro avalia a produção lacrimal basal e reflexa, e o segundo exclui a produção reflexa pela estimulação do nervo trigêmeo20. A leitura do teste lacrimal de Schirmer 1 em cães normais é igual ou maior a 15 mm/min. Os resultados abaixo desse valor são indicativos de ceratoconjuntivite seca19. A estimativa clínica da taxa de evaporação do filme lacrimal e avaliação indireta da camada de mucina são realizadas por meio do tempo (em segundos) de ruptura do filme lacrimal. O teste é realizado instilando-se uma gota de fluoresceína no olho e, então, manualmente, as pálpebras são mantidas abertas. O tempo é registrado do último ato de piscar até o aparecimento do primeiro ponto de interrupção no filme, caracterizado por uma área da córnea livre do esverdeado de fluoresceína. No cão com deficiência de mucina, a ruptura do filme lacrimal ocorre em menos de 5 segundos19. O tratamento da ceratoconjuntivite seca pode ser realizado com um ou uma combinação de fármacos, dentre eles: anticolinérgicos, anti-inflamatórios, lacrimomiméticos, mucolíticos e imunomoduladores (lacrimogênicos)17 com objetivo de lubrificar, estimular a produção lacrimal e manter a integridade da superfície ocular sendo, geralmente, necessário por toda a vida do paciente. Dentre os lacrimogênicos utilizados estão os imunomuduladores (ciclosporina A, tacrolimus e pimecrolimus) e os parassimpatomiméticos (pilocarpina), os quais são drogas que promovem o aumento da produção da porção aquosa do filme lacrimal3-9. Os imunomuduladores também reduzem o grau de ceratite nos cães afetados32. A ciclosporina A, um polipeptídeo produzido pelos fungos Tolypocladium inflatum e Cylindrocarpon lucidum, é o fármaco de eleição e tem sido prescrito para uso tópico em larga escala para tratamento de seres humanos e cães17. A ciclosporina A reduz a resposta imune da glândula lacrimal, inibindo a proliferação e infiltração de linfócitos T helper e T citotóxicos, reestabelecendo a produção da porção aquosa do filme lacrimal e restaurando as células caliciformes conjuntivais produtoras de mucina. Tanto o tacrolimus quanto a ciclosporina A inibem a calcioneurina, a qual inibe a proliferação de células T e previne a liberação de citocinas pró-inflamatórias21. A formulação comercial veterinária de ciclosporina A possui a concentração de 0,2% na forma de pomada oftálmica (Optimmune® - Schering Plough), porém, a mesma pode ser manipulada na concentração de 0,5%, 1% ou 2%. O aumento da leitura do teste lacrimal de Schirmer 1 é observada geralmente após 3 semanas de tratamento. O tacrolimus, um antibiótico macrolídeo produzido pela bactéria Streptomyces tsukubaensis, possui mecanismo de ação semelhante ao da ciclosporina A. Quando comparada ao tacrolimus, a ciclosporina A foi considerada equivalente em efetividade e segurança21. O tacrolimus apresenta indicação para uso em pacientes não Nosso Clínico • 13
responsivos à ciclosporina por apresentar efeito lacrimomimético discretamente maior8,21,45 sendo utilizado na concentração 0,02% a 0,05%. Em seres humanos apresenta potencial cancerígeno, efeito ainda desconhecido em cães21, apesar de alguns autores relacionarem o uso de imunossupressores tópicos (imunomudulares) ao desenvolvimento de carcinoma de células escamosas corneano primário em cães13. Os lacrimomiméticos são utilizados em conjunto com os lacrimoestimulantes, os quais são indicados para reposição da deficiência de um ou mais dos três componentes do filme lacrimal (água, mucina e lipídeos)18. Existe no mercado uma grande variedade de “substitutos da lágrima”, sendo a maioria um composto da combinação de diferentes polímeros, tampões, agentes de tonicidade e, ocasionalmente, conservantes e vitaminas na forma de pomada, gel e colírio. Produtos que possuem cloreto de benzalcônio ou clorobutanol como conservantes não devem ser aplicados por mais de 6 vezes por dia por apresentarem toxicidade epitelial8. Os corticosteroides podem ser utilizados com o objetivo de reduzir a inflamação nas glândulas lacrimais e reduzir o grau de ceratite e conjuntivite, porém deve-se ter cuidado devido ao risco de ulceração da córnea18. Em casos refratários ao tratamento clínico, o tratamento cirúrgico deve ser considerado. A oclusão do ponto lacrimal ventral (inserção de plug de silicone, debridamento ou sutura dos condutos ou eletrocauterização) e a tarsorrafia parcial permanente são técnicas utilizadas em cães com ceratoconjuntivite seca grave, porém o resultado do tratamento é limitado. A obstrução do ducto de drenagem nasolacrimal conserva a produção lacrimal existente, mas é obviamente ineficiente quando a produção é nula14,43. A transposição do ducto protídeo é uma opção de tratamento cirúrgico em caso de insucesso no tratamento clínico14,33, visto que a glândula lacrimal é considerada análoga às glândulas salivares com uma grande similaridade entre suas secreções. Neste procedimento o ducto parotídeo, também denominado de “Ducto de Stenon”, é transposto da cavidade oral ao fórnice conjuntival inferior, permitindo a substituição da lágrima por saliva2,4. Alternativas como a autoenxertia das glândulas salivares labiais no fórnice conjuntival5, uso de células-troncos mesenquimais de tecido adiposo alógenas implantadas ao redor das glândulas lacrimais e da terceira pálpebra40, uso do interferon-α via oral na dosagem de 20 a 40 UI proposto16, uso de formulação oftálmica tópica composta por álcool polivinílico 1,4% adicionado com acetilcisteína 10% e pilocarpina 1%, uso tópico de colírio de óleo de semente de linhaça30 têm sido estudadas como coadjuvantes para tratamento da ceratoconjuntivite seca. Vários estudos apresentam novas possibilidades terapêuticas para ceratocojuntivite seca por meio do uso tópico de fator de crescimento nervoso. Estudos demonstraram que esta molécula está envolvida na fisiopatologia da superfície ocular e que possui receptores expressos nas células da conjuntiva e da córnea24. Dodi e colaboradores (2007) utilizaram um colírio à base de fator de crescimento nervoso murino purificado diluído em óleo de parafina no tratamento de ceratocojuntivite seca espontânea em 6 cães, a cada 12 horas, durante 4 semanas, observando aumento significativo do teste lacrimal de Schirmer 1 e redução da hiperemia conjuntival e da secreção mucopurulenta, demonstrando propriedades anti-inflamatórias12. Em outro estudo, a administração tópica do fator de crescimento nervoso estimulou a produção lacrimal, resultando em aumento significativo do teste lacrimal de 14 • Nosso Clínico
Schirmer 1, da sensibilidade corneana, produção de mucina e densidade das células califormes conjuntivais, além da redução da ceratite observada em 3 cães com ceratoconjuntivite seca iatrogênica provocada pela excisão da glândula da terceira pálpebra7. Mais estudos clínicos são necessários para avaliar a molécula de fator de crescimento nervoso e seu mecanismo de ação no tratamento da ceratoconjuntive seca. Relato de Caso (Material e Métodos) Um cão de grande porte, 37 kg, sem raça definida, de 2 anos de idade, foi atendido pelo serviço de Oftalmologia Clínica e Cirúrgica do Laboratório de Oftalmologia Comparada do Hospital Veterinário da Universidade Federal do Paraná, sob queixa de blefaroespasmo e secreção ocular unilateral esquerda (OS). Ao exame oftálmico, observou-se, no OS, secreção mucopurolenta, leucoma e blefaroespamo e hiperemia conjuntival bilateral. O resultado do teste de produção lacrimal de Schimmer 1 (TLS 1) foi de 16 mm/min no olho direito (OD) e 0 mm/min no OS, confirmando o diagnóstico de ceratoconjuntivite seca. O paciente não possuía histórico de trauma craniano ipsilateral ao olho acometido pela CCS (sugerindo a hipótese de lesão de nervo facial), nem mesmo porte compatível aos casos de hipoplasia da glândula lacrimal principal, nem histórico de excisão da glândula da terceira pálpebra ou cinomose, o que levou à hipótese de CCS unilateral neurogênica, uma vez que se tratava de um animal jovem, fato este que também torna incomum a hipótese de CCS imonomediada. O paciente não apresentava sinais clínicos de doenças endócrinas, como o hipotireodismo, hiperadrenoscorticismo ou diabetes. Para o tratamento e auxílio diagnóstico, a prescrição inicial foi de tacrolimus 0,03% na forma de pomada manipulada a cada 8 horas no OS e a cada 24 horas no OD. O retorno foi realizado após 21 dias de tratamento, não havendo melhora clínica, o que evidenciou a hipótese de CCS neurogênica, uma vez que em casos de CCS imonomediada a resposta aos imunomoduladores tende a ser satisfatória. O resultado do TLS 1 foi de 10 mm/min no OD e se manteve 0 mm/min no OS. Diante do quadro, a concentração do tacrolimus foi aumentada para 0,05%, mantendo a frequência de administração. Foram acrescentados ao tratamento: Ômega 3, 1000 mg por via oral, uma vez ao dia, e colírio de acetato de prednisolona 1% (Pred Fort® - Allergan), a cada 8 horas para o OS. Novos retornos foram realizados em intervalos de 2 meses. Diversos lacrimomiméticos foram prescritos ao longo dos retornos, com frequências de até 6 vezes ao dia, devido à ausência de melhora clínica. Os lacrimomiméticos utilizados foram à base de hipromelose (Genteal® - Novartis), polietilenoglicol (Systane® - Alcon), Dexpantenol (Epitegel® - Bausch & Lomb) e dimetilpolisiloxane colírio (Ophthalmos®). Por fim, foi prescrito o parassimpatomimético cloridrato de pilocarpina 2% colírio (Pilocarpina 2%® - Allergan), inicialmente para uso tópico, 1 gota a cada 12 horas no OS, provocando intolerância ocular por parte do animal e desistência do tratamento por parte dos proprietários. Em última tentativa de tratamento clínico, recomendou-se a mesma pilocarpina 2% colírio na dose de 4 gotas, por via oral, a cada 12 horas, sendo aumentada gradativamente até atingir 16 gotas, em associação ao xarope de ácido graxos (0,5 ml/10 kg) uma vez ao dia. Após 14 meses de tratamento clínico, o OS se manteve refratário. Sendo assim, optou-se pelo tratamento cirúrgico utilizando a técnica da transposição do ducto parotídeo.
Nosso Clínico • 15
16 • Nosso Clínico
FABIANO MONTIANI-FERREIRA
Após 10 dias do procedimento, os pontos da cavidade oral e face foram removidos mediante cicatrização das feridas cirúrgica. No exame oftálmico foi observada a lubrificação satisfatória da superfície ocular do olho esquerdo e presença de epífora com o TSL1 excedendo 30 mm/min no OS. Após 60 dias do procedimento cirúrgico, foi prescrita para o olho operado a formulação manipulada do colírio de EDTA 1% a cada 12 horas como quelante preventivo de cristais de cálcio, comum de se depositarem na córnea após a transposição do ducto parotídeo, e a associação de dexametasona, neomicina e polimixina B na forma de pomada (Maxitrol® - Alcon) para a blefarite causada pela umidade devido ao excesso de saliva acumulado sobre as pálpebras. Após 6 meses do procedimento cirúrgico, foi observado depósitos cristaloides de minerais na córnea e pálpebras, além de blefarite no OS. Optou-se, então, por aumentar a concentração do colírio de EDTA de 1% para 2%, a cada 12 horas, para uso contínuo e reforçado para os proprietários a importância da higienização das pálpebras com solução fisiológica. O proprietário relatou que durante a alimentação do paciente a produção de saliva e consequente epífora aumentavam consideravelmente.
Figura 1: Identificação da papila parótida adjacente ao dente quarto pré-molar superior esquerdo e canulação com fio cirúrgico monofilamentar de polipropileno azul 2-0
FABIANO MONTIANI-FERREIRA
No pré-operatório o paciente foi medicado com a associação de antibióticos compostos por 80.000 UI/kg de espiramicina e 13,5 m/kg de metronidazol (Stormogyl 20® - Merial), uma vez ao dia, por 3 dias, com término no dia do procedimento cirúrgico. Antes do procedimento cirúrgico, a função da glândula parótida foi avaliada por meio da instilação de colírio de atropina 1% na língua do paciente e posterior observação da salivação profusa como resposta, demonstrando a patência do ducto e produção salivar satisfatória. O protocolo anestésico utilizado compreendeu a medicação pré-anestésica, composta por acepromazina (0,035) e fentanil (2 mg/kg) via intramuscular, a indução, com a administração intravenosa de propofol (3 mg/kg) e fentanil (2,5 mg/kg) e a manutenção com isofluorano. O paciente foi posicionado em decúbito lateral direito e o campo cirúrgico foi preparado com a tricotomia da lateral esquerda da face e antissepsia da mesma, assim como da região periocular, conjuntiva do olho esquerdo e cavidade oral, por meio da solução de polivinil pirrolidona (Iodopovidona tópico® - Rioquímica) na concentração de 5%, seguido de colocação de campo cirúrgico fenestrado estéril. Após a anestesia e preparação cirúrgica das pálpebras do OS e da lateral da face esquerda, a papila do ducto parotídeo foi identificado próxima à base (ventrolateral) do dente quarto prémolar superior esquerdo. O ducto foi canulado com fio de cirúrgico não absorvível monofilamentar de polipropileno 2-0 (Prolene, Ethicon, Johnson & Johnson Intl., Somerville, NJ) e uma incisão foi realizada na mucosa oral ao redor da papila, sendo esta dissecada juntamente com o ducto parotídeo. Por meio de uma incisão cutânea da lateral da face esquerda e dos músculos faciais superficiais, o ducto parotídeo foi exposto e facilmente identificado pelo fio de nylon. O ducto foi cuidadosamente dissecado através da incisão e liberado da fáscia superficial do músculo masseter, diferenciando-o dos nervos vestibular ventral e dorsal. Realizou-se a dissecação do ducto até a face caudal do ângulo da mandíbula de forma a conseguir comprimento adequado para recolocação na região ventrolateral do fórnice inferior do OS. A incisão da cavidade oral foi suturada com fio multifilamentar ácido poliglicólico 4-0 (Bioline®) utilizando padrão de sutura simples interrompido. Um túnel foi confeccionado através da divisão do subcutâneo com uma pinça hemostática Halsted até a região ventrolateral do fórnice conjuntival do OS, onde se realizou uma incisão para a passagem da papila dissecada. Em seguida a papila do ducto transposto foi suturada na conjuntiva com fio cirúrgico poligalactina 910, calibre 6-0 utilizando padrão isolado simples. A síntese da ferida cirúrgica facial foi realizada por meio da redução do espaço morto do tecido subcutâneo com fio de sutura multifilamentar poligalactina 910 4-0 (Vicryl® - Ethicon) em padrão Cushing e dermorrafia com fio nylon 3-0, padrão simples separado. No pós-operatório foram prescritos, por via oral, o antibiótico enrofloxacino na dose de 5 mg/kg (Baytril 150 mg® - Bayer), a cada 24 horas por 7 dias, e o anti-inflamatório carprofeno na dose de 4,4 mg/kg (Rimadyl 75 mg® - Zoetis), a cada 24 horas por 5 dias. Para o olho esquerdo foram prescritos o colírio antibiótico de Ciprofloxacina 0,3% (Ciloxan® - Alcon) a cada 12 horas durante 10 dias e o anti-inflamatório trometamol cetorolaco (Cetrolac® - Genom) a cada 12 horas, o qual foi substituído para diclofenaco de sódio 0,1% (Still® - Allergan), a cada 12 horas, por 21 dias.
Figura 2: Exposição do ducto através da incisão cutânea na lateral da face esquerda do paciente
MANUELLA SAMPAIO
FABIANO MONTIANI-FERREIRA
MANUELLA SAMPAIO
Figura 3: Incisão ventrolateral no fórnice conjuntival inferior esquerdo utilizando uma tesoura romba como guia após divulsão e criação de um túnel subcutâneo conectando o fórnice a incisão cutânea facial
FABIANO MONTIANI-FERREIRA
Figura 5: Primeira e segunda avaliação pós-operatória, 10 e 20 dias, respectivamente. Nota-se o olho esquerdo bem lubrificado e excesso de saliva extravasada sobre as pálpebras, principalmente no segundo retorno (foto inferior), nesta ocasião já havia presença de blefarite discreta
KARINA BARBOSA DE SOUZA
Figura 4: Fixação por meio de sutura do ducto parotídeo ao fórnice ventrolateral ventral utilizando fio cirúrgico poligalactina 910 6-0 em padrão simples separado
...................................................................................... Discussão e Considerações Finais A terapia medicamentosa é a primeira escolha no tratamento da ceratoconjuntivite seca em cães16,18 com insistência por, pelo menos, 3 meses antes de uma mudança de conduta14. Neste caso, o paciente apresentou o OS refratário ao tratamento clínico, o qual se estendeu por 12 meses. A abordagem clínica foi com o uso de: imunomodulador, anti-inflamatório, diferentes lacrimomiméticos, parassimpatomimético e suplementação com ácidos graxos e ômega 3. Optou-se pelo uso do tacrolimus na concentrações 0,03% e depois 0,05% por apresentar efeito lacrimomimético levemente maior em relação à ciclosporina A821,44, porém após meses de utilização do tacrolimus, foi acrescentado o colírio de pilocarpina 2%, inicialmente para uso tópico, 1 gota a cada 12 horas no OS, provocando intolerância e desistência do tratamento. Logo, o mesmo foi administrado por via oral juntamente com a alimentação na dose de 4 gotas, aumentando gradativamente até atingir a dose de 16 gotas. A pilocarpina é um parassimpatomimético de ação direta (agonista muscarínico) inespecífico que estimula o sistema nervoso parassimpático, inclusive as glându-
Figura 6: Epífora e deposição de minerais nas pálpebras e córnea no olho esquerdo três meses após a transposição do ducto parotídeo
..................................................................................... las lacrimais, entretanto pode desencadear reações adversas por intoxicação parassimpática, que incluem: salivação excessiva, vômito diarreia e bradicardia. Os pesquisadores Petersen-Jones e Stanley (2009) recomendam ajustar a dose de forma empírica de acordo com o porte do cão, iniciando com 1 a 4 gotas da pilocarpina 1%32; enquanto Sánchez e colaboradores (1994) indicam a administração de pilocarpina a 2% na dose de 2 a 4 gotas a cada 10 kg36. A resposta lacrimogênica da pilocarpina deve ser observada de 2 a 6 semanas após o início de sua administração e, quando não presente em 4 semanas, deve-se aumentar a dose gradativamente (uma gota de cada vez), reduzindo-a em caso de efeito colateral. Sua administração é contraindicada em pacientes com insuficiência cardíaca, diarreia crônica, pancreatite e bloqueios cardíacos36. Nosso Clínico • 17
A pilocarpina estimula a produção lacrimal em animais com ceratoconjuntivite seca neurogênica, pois estes apresentam hipersensibilidade por denervação32, no entanto esse efeito só é possível quando ainda existe tecido lacrimal funcional36. Como a glândula lacrimal sofre atrofia secundária por denervação, o tratamento com pilocarpina deve ser iniciado precocemente36. Em função da ausência de resposta ao tratamento clínico pelo OS e uma ceratocojuntivite seca leve responsiva no OD, suspeitou-se que o paciente apresentasse doença de origem neurogênica no OS com possível atrofia secundária da glândula lacrimal, apesar de apresentar mucosas nasais hidratadas. A ceratoconjuntivite seca de origem neurogênica pode ou não estar associada à mucosa nasal ipsilateral seca, com apresentação aguda e unilateral27, provocada por lesão do nervo facial e inervação parassimpática eferente, sendo idiopática na maioria dos casos. Nesses pacientes, é indicado um exame neurológico completo e exclusão do hipotireoidismo e diabetes mellitus36. Olhos diagnosticados com ceratocojuntivite seca apresentando um TLS1 inicial de 5 mm/min ou mais e os que apresentam a doença há menos de 6 meses podem ter um prognóstico favorável e são mais propensos a responder ao tratamento clínico32, conforme ocorreu com o OD do paciente. A transposição do ducto parotídeo é um procedimento cirúrgico indicado para o tratamento da ceratoconjuntivite seca em pacientes refratários ao tratamento clínico, permitindo a lubrificação da superfície ocular com saliva, a qual compartilha semelhanças químicas e físicas com o filme lacrimal pré-corneano32,36, sendo bem tolerada pela córnea e conjuntiva, já descrita em humanos, cães, gatos e cavalos. Em contrapartida, o conteúdo mineral da saliva é ligeiramente maior em comparação com a lágrima (1,8% em comparação com 1,6%, respectivamente). Consequentemente, os depósitos de precipitados salivares sobre as pálpebras e córnea provocam irritação ocular e inflamação após a transposição do ducto parotídeo como efeitos adversos28,37. A dermatite úmida aguda pode ocorrer devido ao transbordamento de saliva, sendo uma complicação comum. A deposição de cristais sobre as pálpebras e córnea podem ser reduzidas com a administração do colírio de EDTA 1% (ácidoetil-diamino-tetracético) e uma dieta baixa em nitritos36. Ou seja, as complicações em longo prazo incluem depósito de cálcio na córnea e pálpebras, epífora salivar contínua associada ao desconforto ocular, secreção ocular mucosa, hiperemia conjuntival, pigmentação corneana progressiva, blefatite, dermatite facial, sialolitíase do ducto parotídeo, dilatação do ducto parotídeo e sialocele33,36. Outro efeito negativo é que a produção de saliva pela glândula parótida é contínua e desta forma a quantidade se eleva durante a alimentação. Com isso, ressalta-se que o proprietário deve estar ciente das complicações pós-operatórias, tanto temporárias quanto tardias36 e que o procedimento não exclui a necessidade do uso de medicações tópicas. Possíveis complicações adicionais incluem fibrose e estenose do ducto, causando falha na lubrificação e no tratamento da ceratoconjuntivite seca. Como consequência, pode ocorrer o acúmulo de secreção no interior do ducto, gerando atrofia da glândula parótida por aumento da pressão pela obstrução do mesmo. Uma correção cirúrgica pode ser realizada para restabelecer a patência do ducto39. Para reduzir a epífora provocada pelo excesso de secreção salivar, alguns autores propuseram a ligadura parcial do ducto parotídeo em local próximo à glândula parótida após 18 • Nosso Clínico
a transposição do ducto parotídeo37. A higienização regular da face e a manutenção dos pelos aparados em animais de pelos longos contribuem para prevenção da blefarite36. Devido ao potencial de complicações (ocorrendo entre 9% a 37% dos casos, conforme cita a literatura), a transposição do ducto parotídeo deve ser realizada somente por um profissional com experiência na técnica. O procedimento pode ser realizado utilizando duas abordagens: a transcutânea (lateral da face - aberta) e a oral (fechada)14. As complicações cirúrgicas relatadas incluem trauma do ducto no transoperatório (transeção ou torção do ducto), falha temporária ou permanente, parcial ou completa do ducto, edema facial pós-operatório e deiscência da ferida cirúrgica facial33. Segundo Gellat 2011, a abordagem transcutânea é preferida por permitir maior exposição do ducto, reduzindo o risco de seccioná-lo, além do nível de contaminação oral ser menor. A abordagem oral foi inicialmente desenvolvida para o procedimento em seres humanos, com a finalidade de evitar cicatrizes na pele. Ressalta-se que o tratamento cirúrgico para ceratoconjuntivite seca raramente é necessário, sendo a transposição do ducto parotídeo o procedimento mais utilizado14. No caso do paciente relatado, a transposição do ducto parotídeo foi um tratamento bem-sucedido, permitindo a lubrificação da superfície ocular com secreção salivar. Apesar das consequências já esperadas do procedimento, tais como epífora, blefarite e deposição de minerais na córnea, os proprietários ficaram satisfeitos com o resultado devido ao esclarecimento prévio em relação ao procedimento cirúrgico. O comprometimento dos mesmos, com relação à higienização da face do animal e a administração das medicações, constituiu parte importante do processo, juntamente com a escolha de um cirurgião com experiência na técnica. ® Referências
1. ALMEIDA, D.E.; ROVERATTI, C.; BRITO, F.L.C.; GODOY, G.S.; DUQUE, J.C.M.; BECHARA, G.H.; LAUS, J.L. Conjunctival effects of canine distemper virus-induced keratoconjunctivitis sicca. Veterinary Ophthalmology, [s.l.], v.12, n.4, p.211-215, jul. 2009. 2. BAKER, G.J.; FORMSTON, C. An Evaluation of Transplantation of the Parotid Duct in the Treatment of Kerato-conjunctivitis Sicca in the Dog. J Small Animal Practice, [s.l.], v.9, n.6, p.261-268, jun. 1968. 3. BEST, L.J.; HENDRIX, D.V.H. Diagnosis & Treatment of keratoconjunctivitis sicca in dogs. Today’s Veterinary Practice, v.4, n.4, p.16-22, July/August 2014. 4. BOTHELHO, S.Y.; HISADA, M.; FUENMAYOR, N. Functional Innervation of the Lacrimal Gland in the Cat. Archives Of Ophthalmology, [s.l.], v.76, n.4, p.581588, out. 1966. 5. CASTANHO, L.S.; MOREIRA, H.; RIBAS, C.A.P.M.; WOUK, A.F.P.F.; SAMPAIO, M.; GIORDANO, T. Transplante de glândulas salivares labiais no tratamento de olho seco em cães pela autoenxertia. Revista Brasileira de Oftalmologia, [s.l.], v.72, n.6, p.373-378, dez. 2013. 6. CHEN, Z.; JIE, Y.; YU, G. Treatment of Severe Keratoconjunctivitis Sicca by Parotid Duct Transposition after Tympanic Neurectomy in Rabbits. Investigative Opthalmology & Visual Science, [s.l.], v.52, n.9, p.6964-6970, 31 ago. 2011. 7. COASSIN, M.; LAMBIASE, A.; COSTA, N.; DE GREGORIO, A.; SGRULLETTA, R.; SACCHETTI, M.; ALOE, L.; BONINI, S. Efficacy of topical nerve growth factor treatment in dogs affected by dry eye. Graefe’s Arch Clin Exp Ophthalmol, [s.l.], v.243, n.2, p.151-155, 14 jan. 2005. 8. CORR, A. Canine keratoconjunctivitis sicca (KCS). Metropolitan Veterinarian Associates, v.4, n.1, abril 2015. 9. CULLEN, C.L.; IHLE S.L.; McCARVILLE, C. Keratoconjunctival effects of diabetes mellitus in dogs. Vet Ophthalmol, [s.l.], v.8, n.4, p.215-224, jul. 2005.
Nosso Clínico • 19