MARTINHO TORRES RICHARD TOWERS O livro-objeto
Tempo. Reflexos. O Desafio
Local: Escola Secundรกria Morgado de Mateus Biblioteca Escolar, 2014
Da ideia de criação de um livroobjeto à criação da editora “neoma” – novo movimento artístico.
Manter o ideal e corrigir a rota para o alcanรงar.
08h06
Corria rua abaixo, ofegante. Ia chegar atrasado. Maldição! Era a primeira vez em vinte e dois anos. Não se conformava com a situação. Queria parar o tempo, ordenar a sua suspensão. O sofrimento era atroz. Debatia-se com a realidade como quem enfrenta o mais temível dos monstros. Era feito daquela massa especial, gente que se fideliza incondicionalmente, que se liga umbilicalmente a um destino. Jurara servir a empresa acima de qualquer outro interesse. E os seus principais trunfos eram a dedicação e o rigor. Por esse motivo era apelidado de “pêndulo”. Tudo nele era pontualidade e organização. Uma falha como a de hoje era uma mancha negra no cadastro. O incólume cadastro. Conspurcara-o. Descia descoordenadamente pelo passeio irregular. Saltavam-lhe moedas e outros haveres dos bolsos. Não se detinha. Ao fundo da rua, começava a vislumbrar a entrada para os escritórios. Nunca chegara atrasado. Não sabia que tipo de condenação iria enfrentar. Uma coisa sabia: merecia um duro castigo. In Tempo, Richard Towers, (pág. 9)
Imaginemos que alguém consegue descobrir a fórmula para a imortalidade. Que interesse teria a vida sem a morte? Pois uma é indissociável da outra e uma existe na sombra da outra. Neste fio temporal da existência, alterna-se a vida com a morte. Nesta intermitência, consideramos uma o oposto da outra. Mas será assim mesmo? Não será antes uma a continuação da outra? Se assumirmos a perspectiva de uma anulação contínua, concluímos que não faz sentido criar uma solução que não contemple uma alternativa. O conceito de vida não existe sem a morte. É como a folha e o seu verso. São iguais em tudo, porém, num lado, a letras vibrantes e apaixonadas, inscreve-se a vida; no outro, vogando no vazio, repousa a morte. E assim se define a existência. Um equilíbrio entre a luz e a sombra. Entre o vazio e o cheio. O ser e o não-ser. E tão necessária é uma como a outra. É neste contexto que o tempo procura encontrar o seu lugar. A contagem, que se inicia quando nascemos e termina quando morremos, é efectuada de modo incessante por todos nós. Contabilizamos a existência uns dos outros. Dizemos que tal pessoa viveu tantos anos. E só assim conseguimos enquadrá-la no plano existencial; porém, essa pessoa não viveu x anos, mas sim em determinado espaço. Moveu-se, decidiu, agiu, contemporizou, avançou, retrocedeu, fez, desfez, amou, riu, chorou, cresceu, envelheceu. Foi. Existiu. Em suma, pensando ser diferente, não fugiu à linha oblíqua da vida. Só aqueles que conseguem fugir ao rumo provável da existência podem aspirar a quebrar o elo do tempo. Escapar ao destino é uma das nossas incansáveis tarefas. in Tempo, Richard Towers, 2011 (págs. 82-83)
Quando levantou a cabeça, pôde mirar-se no espelho, constatando um novo estado de espírito, uma nova chama brilhando nas íris, qual renascer inspirado. Sorriu. Gotas insubmissas escorriam-lhe pela face, caindo, insonoras, na pia branca. Ficou algum tempo a observar-se. Era por vezes assustador constatar que ele era aquela pessoa. E, se olhasse com atenção, de forma profunda, podia perceber que não se reconhecia, que não se identificava com aquele ser, aquele homem, aquela máscara que transportava todos os dias. Deixou-se levar até ao limiar do desconhecido e desviou a cara irreconhecível do espelho. Usou a toalha castanha como refúgio da alma. Esfregou bem os olhos e toda a face e voltou a colocar a toalha no suporte. Lançou novo olhar para o seu reflexo, usando de uma certa abstracção para não se enredar em pensamentos metafísicos desnecessários, mas não deixou de se sentir algo preso a questões que o atormentavam, de tempos a tempos, e que voltavam a toldá-lo naquele momento. Quantas vezes se detivera, olhando para as formas que assumia diante da superfície espelhada? Quantas vezes se perdera diante de si próprio, tentando encontrar-se num estranho labirinto que se formava nos seus olhos, qual fosso profundo e infindável? Quantas vezes se questionara acerca da verdade escondida por detrás daquele olhar, por detrás da sua máscara? Por mais que se aventurasse, por mais longe que se lançasse à descoberta de si, mais questões surgiam e menos se conhecia. Era um caminho impossível. Teve de abandonar a demanda, mais uma vez.
In Reflexos, Richard Towers, 2011 (págs. 7-8)
As crianças brincam. São espíritos felizes. Correm, saltam, gritam. Para lá do vidro, tudo parece mais claro, mais puro, como a neve que cai numa cadência mágica, num silêncio hipnótico. É um dia frio de Inverno, a temperatura ronda os dez graus abaixo de zero, mas há um calor que nasce de dentro e inspira. Sei agora que nunca voltarei a ser o mesmo. Sei que nunca voltarei a olhar para o mundo da mesma forma. Há toda uma verdade escondida para lá do que é óbvio, para lá do espectáculo que a vida e o mundo nos oferecem. Sei, porque o descobri. Descobri que vivemos uma ilusão e que, ao virar da esquina, a sorte ou o azar espreitam para nos derrubar. Não podemos escapar, nem desistir. O nosso destino é ir até ao fim. Olho para lá do vidro e compreendo o significado de uma vida em busca de felicidade. A felicidade está ali, nas crianças que saltam, e correm, e gritam. A felicidade está nessa contemplação, não no tabuleiro que enfeitiça. O objectivo é a vida, não o jogo. Por isso o abandono, por isso viro costas, mesmo sabendo que jogando, poderia tornar-me um deus. O abismo e a luz coabitam no mesmo espaço. Cabe-nos a nós escolher por onde queremos caminhar. Caminho para a saída, para a luz. Abro a porta, miro o espaço uma última vez, numa despedida do passado, no fechar de um capítulo. Todos temos uma segunda oportunidade. Eu sou a segunda oportunidade. Desço as escadas em caracol. Não sinto a náusea do trajecto, nem o agreste corrimão que me arde sob as mãos. Apenas sinto o alívio da escolha. E fecho a porta atrás de mim com um sorriso firme. Porque estou seguro da minha opção. In O Desafio, Richard Towers, 2012 (pags. 297-298
Maria Manuel Carvalhais
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