O Desenhador Defunto

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1. No fim foi por uma questão de estilo. 2. Não consegui escrever essa carta de despedida, nem escolher um método.


1. Desisti dessas ideias, sabendo que um dia haveriam de regressar, quando as coisas piorassem outra vez. 2. Deveria tentar perceber como tocar no problema de dizer adeus. 3. Ficaria bem deixar qualquer coisa aqui, como uma dessas canções compostas para a glória da angústia, há muito tempo. 4. Não consigo imaginar um leitor, nem me concebo a passear como um cartoon, tropeçando num truque gasto por Deus, e inventando um poder chamado degradação ou super-vergonha. 5. Um dia escreverei na terceira pessoa, como se a dor fosse um fingimento absoluto. ‘Pode levar uma folha se quiser’ 6. Poderei despedir-me do eu, e escrever como se fora um estranho para mim mesmo? ‘Obrigado, Ah já li isto. Sabe, sou amigo do artista’.


1. Depois há todo esse problema que vem com o desenho. ‘Bem, boa noite’ 2. Não basta que seja impossível eu representar-me sem cair em armadilhas românticas, devo ainda libertar essa dança entre a imagem e o texto, e ver os dois espiralar para uma espécie de abismo. 2. ‘O DESENHADOR DEFUNTO’


1. Mas quem ouve esta mentira? Este não sou eu, não é este o Francisco Koppens. 2. O meu cabelo rareia, a minha barriga expande-se, a minha cara é barba e confusão.


1. Vou mostrar. É só olhar e ver. 2. É só ver. 3. Este é o meu corpo.


1. Abaixo a auto-reflexividade. É esse o título da exposição. Tive que ir porque sou amigo do artista. 2. Vai-me telefonar em breve e é bom que eu esteja preparado. 3. Abaixo a auto-reflexividade. Cristo, o que é que ele queria dizer com isto? 4. Há desenhos com um tom de ilustração, vagamente racistas. Há esculturas que vão com os desenhos. E um texto para levar para casa.


1. Cristo, o que é que ele queria dizer com isto? Serei eu auto-reflexivo? Estaremos todos condenados a um desaparecimento absoluto? 2. Sou porventura agora auto-reflexivo, pronto a elogiar a glória de mim mesmo, como nesses almanaques de auto-ajuda que o meu irmão me arranja. 3. ‘Olá’. 4. ‘Então, correu-te bem o dia’? 6. ‘Vou... vou cozinhar qualquer coisa. Depois desenho. Não esperes por mim, ‘querida’’


1. Comecemos com um elogio do tarado, pois o tarado é um místico, o único místico que sobrou. ‘A ver, alho, coentros, e qualquer coisinha do velho Portugal’... 2. O tarado em questão escreve cartas em forma de banda desenhada. Os destinatários são homens famosos e pessoas vagamente conhecidas, pessoas-remorso. ‘Vou cozinhar para dois’. 3. Também faz histórias eróticas que não mostra a ninguém, histórias em que um personagem sofre horrores nas mãos de mulheres poderosas e perversas. 4. Nunca recuperou da leitura da Vénus de Masoch. Tem nesse livro uma casa raríssima. Assim como na bíblia.


1. É um desenhador, mas a sua profissão evaporou. Em tempos trabalhou para arquitectos e engenheiros, sentado ao estirador. 2. Agora que os computadores tomaram conta do mundo, o desenhador é incompetente, e refugia-se nos seus hábitos nocturnos. 3. Também visita galerias de arte, apenas para ser perseguido por medo e dúvida.


1. Caro Papa. Não tenho a menor esperança que venha a ler isto, a não ser que seja um fã secreto de bandas desenhadas retorcidas, e os seus secretários estejam a par desse gosto suspeito. 2. Toda a gente dá uma coça em São Paulo e Santo Agostinho. 3. Paulo era um homófobo tristemente interessado na submissão das mulheres. Conseguiu que esse seu gosto se tornasse universal. 4. Agostinho era de uma raça perigosa, do tipo que floresce na confissão. De tal modo que a confissão se tornou na própria doença que afirma curar.


1. Mas deixemos Paulo e Agostinho entregues à sua auto-flagelação. 2. Mudemos de pregação. ‘Na verdade, na verdade...’


1 Deixemos Cristo falar de uma castração universal. ‘Na verdade, na verdade vos digo...’ 2 ‘Se olhardes para uma mulher com luxúria, já haveis cometido um adultério do coração’ 3 E agora o grande final, Papa... ‘Se o teu olho ou a tua mão são motivo de escândalo, é melhor que os cortes e atires à fogueira, tudo isso é melhor do que todo o corpo arder mais tarde nas chamas do inferno’ 4 Está a ver, Santo Padre? Cristo está a falar da pila! Quer que cortemos, se for para nós motivo de escândalo, e é óbvio que assim o é.


1. Será que Cristo não sabia nada disto? Olaré. 2. ‘A BD diz ‘por isso deixe essa fixação com a cadeirinha mágica e admita que Cristo às vezes estava com os azeites, como toda a gente. Cordialmente seu, o católico perverso’’ 3. ‘Nunca... nunca tinha lido isto assim. É de facto uma defesa da castração universal. Que depressão’. 4. Então o Papa abriria uma velha caixa cheia de bíblias de Tijuana, e sentir-se-ia tentado a folheá-las. ‘Deita-as para a lareira, Ratz. Queima todo este nojo’


1. Mas quem é que eu acho que estou a enganar? O Papa não tem BDs porno, e a minha carta vai acabar nas instalações de reciclagem do Vaticano. 3. ‘Sua Santidade, Papa Bento XVI, Vaticano...’ 4. E que tom é este? Sou agostiniano até à medula, partilho a doença e o veneno.


1. A pequena flor foi tocada por aquela canção do amor. Há quem respeite o inventor do catolicismo. 2. Que se lixe, mando a BD, mesmo assim. A bíblia já não queima ninguém por difamação. 3. Às vezes acho que falo assim para esconder qualquer coisa fria e escura. Tentativas de preencher o vazio? Simone Weil, minha única amiga? 4. E pensar que soo contente nessa carta. Que triste troll. 5. Desenha novas vinhetas. Começa uma construção de sexo. Normalmente rasuro tudo, pinto cada quadrado de preto até tudo parece uma série de pinturas monocromáticas. Começo e acabo em vergonha.


1. Houve uma revolução. Estamos no ano 3000 e houve uma sublevação. 2. Após milénios de opressão, as mulheres pegaram em armas e criaram uma ditadura. A maioria dos homens morreu nas Guerras do Sexo. 4. Ela não fala comigo há dez anos. 5. Vivemos juntos, dormimos na mesma cama, mas ela não me dirige uma palavra há uma década.


1. Já nos habituámos a este grande silêncio, como monges cansados. 2. O que é que estás a fazer? São duas da manhã e amanhã é dia de trabalho, dia de computador. 3. A maioria dos homens morreu nas Guerras do Sexo, mas um pequeno grupo foi poupado por razões recreativas. 4. Tens que ir para a cama, amanhã é segunda. 5. Mais um domingo passou sem missa.


1. Amanhã é dia de computador. Deus, onde estás? Deus bombeiro, Deus promessa? 2. No reino das poderosas amazonas, começa agora a caça ao homem. 3. Reza e cala. Pai Nosso que estais no céu... 4. Amanhã desenho as poderosas amazonas. Santificado seja o vosso nome... 5. O computador... Aquele mapa de vãos já devia estar pronto há semanas.


1. Venha a nรณs o Vosso reino... 2. No reino das poderosas amazonas... 3. Seja feita a vossa vontade... 4. Nรฃo me fala hรก jรก dez anos, mas ainda se aninha junto a mim, talvez por causa do calor.


1. Deus meu, onde estás. São sete da manhã numa Londres gasta e velha, e tu onde estás? Ouvi dizer que na Opus Dei começam o dia com a palavra ‘serviam’. 2. Estão prontos para servir, santificando-se pelo trabalho. 3. Como os lemmings da Disney. 4. Trabalhar é apenas adiar o suicídio. Tenho de me mexer. Tenho que levantar o rabo e andar.


1. No reino das poderosas amazonas começa agora a caça... Santo Agostinho não gostaria destes pensamentos. 2. Sou impuro até à medula. Descobri isso no dia da minha primeira comunhão, quando fazia filinha para receber a hóstia. 3. Só conseguia pensar ‘caralhão, caralhão’ 4. E ‘foda-se, foda-se, foda-se’. ‘O corpo de...’ 5. Deixei que o padre poisasse a hóstia na minha boca, mesmo sabendo que estava impuro.


1. ‘A missa acabou. Não quer ir embora?’ ‘Eu... estou a rezar’ 2. ‘Jesus ficou... Tenho de ir à casa de banho’ 3. ‘Há uma na sacristia. Vá lá...’ 5. ‘Jesus ficou colado ao céu da boca. É um sinal. Deita-o para a sanita.’ 6. ‘Não mereço Jesus...’


1. ‘Sou nojento. Como é que pude... pensar naquelas coisas...’ 3. Porque é que sou católico? Como é que posso ser uma coisa que não recomendaria a ninguém? 4. ‘Aquele tipo parece agressivo. Meu Deus, o que é que ele vai fazer? Tem as mãos sujas’


1. ‘Foda-se, odeio rabos de cavalo. Corta-me isso, ficas ridículo’ ‘Está bem, está bem, obrigadinho’ 2. ‘Isso, devias agradecer-me por dizer a verdade’ 3. Dizer a verdade. Parrhesia. Merda de Foucault. Vou cortar o rabicho. 5. É aqui. O atelier é no quarto andar.


1. Acho que não morreria, se o meu patrão me atirasse pela janela. Sempre vi a fúria de Deus nos meus empregadores. 2. Provavelmente conseguiria levantar-me ou rastejar para o elevador. 3. Obediente, sangrento, sentar-me-ia no posto de trabalho como se nada se tivesse passado. ‘Quarto andar. Portas abrindo’ 4. Bom dia


1. Não respondeu. 2. Será porque sou incompetente? 3. Será que desapareço? 4. Ou que o silêncio da Aurora se está a espalhar por toda a parte? ‘Koppens?’ 5. Será que o carrego comigo, será que provoco o silêncio nos outros? ‘K?’ 6. ‘K, preciso desses desenhos a sair da plotter às três da tarde’


1. ‘Então, Rupert, como é que foi o concerto na sexta-feira?’ ‘Foi bom, boa onda’ 2. ‘Fixe. Estou a ver que já estás a cotar o projecto. Muito bom’


1. Perco-me. Não é a coisa mais fácil de explicar, mas quando se trabalha com rigor infinito, o caos espreita. 2. As formas abstractas tomam conta de mim e interrompem a narrativa do que estou a fazer. 3. De qualquer modo, tudo isto vai desaparecer, todos estes edifícios que o arquitecto me dita, em trezentos anos. E dentro de quatro biliões de anos, o sol vai engolir-nos, e vai ser com se nada tivesse acontecido. Nada vai ter acontecido.


1. No entanto a minha vergonha vai sobreviver a tudo, n達o fosse eu um K. 2. N達o foi sempre assim. Eu era um dos melhores desenhadores de Lisboa, antes dos computadores.







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