O SUBTRAÍDO À VISTA
That which is Subtracted from Sight
Para o Roger, que vai co-escrever o meu próximo livro.
O Subtraído à Vista foi escrito e ilustrado por Filipe Felizardo com ilustrações do 1º capítulo de Carlos Gaspar. Publicado pela Chili Com Carne | chilicomcarne.com | Arranjo gráfico de Joana Pires | Direitos reservados aos autores Foram impressos 500 exemplares em Julho de 2015 na Europress | ISBN: 978-989-8363-37-4 | Depósito legal: 393949/15
O VIAJANTE CEGO texto de Filipe Felizardo
ilustrações de Carlos Gaspar
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É quando o Sol se pousa numa órbita cansada – e tanto o gelo como o Mar estão apenas iluminados pela luz que é cuspida pelos flancos do mundo. O silêncio é próprio dos intervalos – no adejar de uma pálpebra ou no cu do mundo, estamos no intervalo das coisas; daí, e não se propagando o som no vazio, o gelo fende-se mudo e o Maelstrom tudo engole, mas em seco.
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“A cavitação de um corpo celeste, seja ele planeta ou lua, revela-nos um espectáculo curiosamente desdramatizado; para além de se desenrolar com uma lentidão sonolenta, a ausência de som fá-lo parecer quase como um fingimento.” Stanislaw Lem, in ‘Fiasco’ O Viajante desloca-se sentado num camelo feito de Sombra. Já viajam há muito, no cansaço das vozes que contaram as histórias do desdobramento de horizontes, do comércio de contrafacções no deserto, de conversas com monstros e de peregrinações desiludidas. No dorso destas iniquidades, o Viajante talvez tenha convencido o camelo de que a sede se sacia na penumbra. [Deve ter sido quando o Viajante, perto de alguma cidade enterrada na areia, tendo mandado parar o camelo, empunhou o grão de areia e esperou que a Lua o desencriptasse em Pérola – daí, uma mentira de Luz (que é a Luz oculta na Ostra) entrou no olho do camelo. Daí, o camelo soube-se feito da sombra que, prenha, ladeia as coisas – e então, em sombra, deu o seu dorso ao Viajante e mergulhou por entre os grãos de areia; e deambulou até aqui] Agora, mais que Nunca, além da orla do Olho-Mundo, onde as coisas páram e se remoinham em fuga de si mesmas, o Viajante e o Camelo de Sombra páram. Como quem se perde ou ignora o seu destino e a sua proveniência. O Camelo de Sombra ajoelha-se e o Viajante desce do seu dorso. Tonta e inútil, a montada báctria centrifuga-se numa aurora, e o Viajante fica só, apoiado no seu cajado. Os olhos do viajante são brancos como pérolas. Translúcidos, transportam a lucidez de quem dorme de olhos abertos. O Viajante agora caminha, tacteando o chão de gelo com o cajado, ora para um lado, ora para o outro.
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É nesta placidez da paisagem penumbrenta do imparecer que o Viajante caminha, durante mais que pouco e menos que algum tempo. No meio desse meio tempo, o Viajante pára, pousa o cajado, levanta a túnica, acocora-se e, sem esforço, caga. Do buraco celeste explodem globos oculares – um par deles. Finda a excreção, o Viajante apalpa o chão em volta do cajado; tocando-o, levanta-se e caminha aos círculos, dignamente, como homem perdido, até se quedar, deitar, e, respirando funda e compassadamente – ainda, e aqui, num sempre qualquer, exibindo o alvor vítreo dos seus olhos.
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INTERVALO DENTRO DE UM INTERVALO INFINITO, MAS MAIOR QUE ESTE. Por magia ou por ciência, mas garantidamente por inconveniência, os olhos excretados puseram-se em movimento. Com gravidade e circunstância, orbitaram sobre o solo gelado até às cavidades oculares do Viajante. Essas, agora irisadas e pupiladas, mantiveram-se abertas honrando o sono translúcido do portador.
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FIM DO INTERVALO INFINITO, MENOR QUE O OUTRO QUE O CONTÉM. O Viajante acorda – aliás, levanta-se. Com o auxílio do cajado, retoma aquela qualquer caminhada. E assim procede. É no decorrer desta desorientação – a do avanço cego para um horizonte hiperbólico – que o Viajante, participante desfasado do Imparecer, bate com a fuça num grande calhau. É o monumento de Sombra que se centra no Labirinto polar, a grande pedra que fura e decapita o mundo.
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.... [“Havia ali um segredo. Lev Abalkin era apenas parte dele. E percebi agora porque é que Sua Excelência me quisera. Devia haver pessoas que conheciam o segredo, mas não eram capazes de fazer a busca. Havia muitas pessoas que poderiam fazer a busca tão bem como eu, e talvez até melhor, mas Sua Excelência percebera que a busca, mais tarde ou mais cedo, levaria ao mistério, e era importante que a pessoa tivesse o tacto de parar a tempo. Mas, mesmo que a busca trouxesse o mistério à tona, era importante que Sua Excelência confiasse no homem como confiava em si próprio. E o mistério de Lev Abalkin era também um mistério de identidade! Era realmente mau. O segredo mais negro e profundo de todos – a pessoa não deve saber da sua existência. O exemplo mais simples é informação acerca de uma doença incurável. Um exemplo mais complexo é o segredo de uma acção iniciada involuntariamente que inicia uma corrente de consequências, como aconteceu há muito com o Rei Édipo. Bem, Sua Excelência fez a escolha certa. Não gosto de segredos. Nos nossos dias e no nosso planeta, todos os segredos me parecem vis. Admito que muitos deles são bastante sensacionais e capazes de espantar a imaginação, mas, pessoalmente, nunca gostei de ser submerso neles e gosto ainda menos de mergulhar neles espectadores inocentes. A maior parte de nós, no COMCON-2, sentimos o mesmo em relação a isso e, provavelmente, é por isso que há tão poucas fugas de informação. Mas o meu desagrado em relação a segredos é obviamente maior do que o normal. Até tento nunca usar a expressão «revelar um segredo». Normalmente digo «desenterrar um segredo» e sinto-me um trabalhador sanitário nocturno, daqueles que costumam escavar esterco. Como agora, por exemplo.”] Arkady & Boris Strugatsky, in “O Besouro no Formigueiro”, 1979 ... 16
E assim, ocorre um cataclismo. Do grande calhau, fendido pelo embate do Nariz do Viajante, soltou-se uma infinitude de calhaus mais pequenos – Aparentemente, iguais ao gigante de que provinham. O Viajante sentiu o estrago realizar-se, e daí, curvou-se para tactear o solo em busca de um calhau mais pequeno. Encontrando-o, senta-se e com mãos e unhas, esculpe uma coisa de sombra – um paralelipípedo quadrangular, que num dos topos converge para um vértice afiado, e no outro é encimado por uma pequena pega vertical e cilíndrica. Em cada uma das faces do paralelipípedo o Viajante grava os seguintes sinais:
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נגהש
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Finda a labuta, o Viajante pega no dreidl (porque é um dreidl) e com o polegar e o indicador na pega cilíndrica, fá-lo girar sob o fosso onde estivera o grande calhau. E larga o pião de sombra, fazendo cair e centrifugar-se no abismo, até que, na queda estupidamente longa, o pião já não é sempre um pião, mas um cometa que de vez em quando é um pião, que se perde e se encontra.
ACONTECEU UM GRANDE MILAGRE ALI.
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THE BLIND WANDERER text by Filipe Felizardo
ilustrations by Carlos Gaspar
Translation
p 4.
It is when the Sun sets itself upon a weary orbit – and both ice and sea are only illuminated by the light which is spat by the flanks of the world. / Silence is property of intervals – in the flutter of an eyelid or in the arse of the world, we are in the interval of things; hence, and sound not propagating in emptiness, ice cleaves, mute, and the Maelstrom swallows all, but dryly.
p 8.
“The cavitation of a celestial body, it being planet or moon, reveals us a curiously de-dramatized spectacle; apart from unwrapping itself with a sleepy slowness, the absence of sound makes it seem almost pretence.” / The Wanderer dislocates seated on a camel made of Shadow. They have travelled for a long time, in the weariness of the voices which have told the stories of unfolding horizons, of the commerce of counterfeits in the desert, of conversations with monsters and deluded pilgrimages. / On the dorse of these iniquities, the Wanderer may have convinced the camel that thirst is sated in penumbra. / [It must have been when the Wanderer, near some city buried in sand, having commanded the camel to stop, wielded the grain of sand and waited for the Moon to decrypt it in Pearl – hence, a lie of Light (which is the Light concealed in the Oyster) entered the eye of the camel. From then on, the camel knew itself made of the shadow which, pregnant, flanks things – and then, in shadow, he gave his back to the Wanderer and dove between the grains of sand; and wandered til here] Now, more than Never, beyond the rim of the Eye-World, where things stop and whirl in escape from themselves, the Wanderer and the Camel of Shadow halt. As someone who gets lost or ignores his destiny and his provenance. / The Camel of Shadow kneels and the Wanderer descends from his back. Giddy and useless, the bactrian mount centrifugues in an aurora, and the Wanderer becomes alone, resting on his staff. / The eyes of the Wanderer are white as pearls. Translucent, they transport the lucidity of one who sleeps with his eyes open. / The Wanderer now walks, groping the floor of ice with the staff, now this way, now to another.
p 12. Amidst that half time, the Wanderer stops, rests his staff, lifts his tunic, squats and, effortlessly, shits. From the celestial hole explode ocular globes – a pair of them. The excretion terminating, the Wanderer feels the ground around the staff; touching it, he gets up and walks in circles, worthily, like a man lost, until he halts, lies down, and, breathing deeply and rhytmically – still, and here, in some Forever, exhibiting the vitreous hoar of his eyes.
p 14.
FINITE INTERVAL INSIDE AN INFINITE INTERVAL, BUT BUT BIGGER THAN THE LATTER.
By magic or by science, but guaranteedly by inconvenience, the excreted eyes put themselves to motion. With gravity and circumstance, they orbited over the iced ground until they got to the ocular cavities of the Wanderer. These, now iridescent and pupillated, kept open honoring the translucent sleep of their bearer.
p 15.
END OF THE INFINITE INTERVAL, SMALLER THAN THE OTHER WHICH CONTAINS IT.
The Wanderer wakes up – moreover, he gets up. With help from his staff, resumes that or some other walk. And thus proceeds. / It is in the unveiling of this disorientation – that of the blind progress towards an hyperbolic horizon – that the Wanderer, lagged participant of the Unseemly, strikes his nuzzle on a big stone. / It is the monument of Shadow which is centered on the polar Labyrinth, the great stone that fends and decapitates the world.
p 16. [“There was a secret. Lev Abalkin was just a part of it. And I immediately perceived why His Excelency
wanted me. There should be people who knew the secret, but weren’t able to do the search. There were a lot of people who could do the search as well as I, and maybe better, but His Excelency understood that the search, sooner or later, would take to mistery, and it was important that the person would have the tact to stop in time. But, even that the search brought the mistery to surface, it was important that His Excelency trusted the man as he trusted himself. / And the mistery of Lev Abalkin was also a mistery of identity! It was really bad. The darkest and profoundest secret of all – one must not know of its existence. The simplest example is intelligence about an incurable disease. A more complex example is the secret of an action initiated involuntarily that starts a chain of consequences, such as happened a long time ago with Oedipus King. Well, Your Excelency, you made the right choice. I don’t like secrets. In our times and in our planet, all secrets seem vile. I admit most of them are sensational and able to awe the imagination, but, personally, I never liked to be submerged in them and I like even less to drown innocent bystanders in them. Most of us, at COMCON-2, feel the same about that and, probably, that is why there are so few leaks of intelligence. But my distaste of secrets is obviously larger than usual. I even try not to ever use the phrase «to reveal a secret». Usually I say «unearth a secret», and I feel like a night worker in sanitation, one of those who customarily dig up dung. / Like now, for example.” Arkady & Boris Strugatsky, in Beetle in the Anthill, 1979.
p 18. And so, a cataclysm occurs. From the great stone, cracked by the strike of the Wanderer’s nose, an infinity
of smaller pebbles was released – apparently, equal to the giant of their provenance. The Wanderer felt the waste happening, and then bent to feel the ground in search of a smaller stone. Finding it, he sits and with hands and nails, sculpts a thing of shadow – a quadrangular parallelepiped, which in one of the tops converges to a sharp vertex, and in the other is topped by a small vertical and cylindrical handle. In each of the parallelepiped’s faces the Wanderer imprints the following signs:
p 20. Toil ended, the Wanderer, picks up the dreidl (because it is a dreidl) and with his thumb and index gra
bbing the cylindrical handle, makes it spin across the pit where once was the great stone. And he drops the shadow whipping top, making it fall and centrifugue it self in the abyss, until, in its stupidly long fall, the whipping top is not always a whipping top, but a comet that once in a while is a whipping top, which loses and finds itself. A GREAT MIRACLE HAPPENED THERE
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4. I don’t know if you can watch... 5. I’ll turn my sight away. 6. NO! 7. I’m already a grown-up!
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1.Well? 2.Wait.
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2. I didn’t remember it was like this. 3. And now? Does it take much longer?
4. Poor thing... 5. What? / 6. Hmm? Nothing, nothing. 7. Well? Let´s keep on! 8. Come on! 9. I want to draw more!
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4. sighted 5. Look, 6. I 7. sore- 8. getting 9. am
1. Wait 2. Let me see if everything is alright. 3. Quick. It is getting dark.
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1. Alright, you can come down! 2. What? - You-can-co-me-do-wn!! 3. Ah, cool! 4. Phew! How is it?
1. Like it? 2. Wwoooooowww! 3. See this here?
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1. Hmm, yes. 2. Guess what it is! 3. Oh, easy. Those are...is... hmm...
1. Don’t tell me you don’t know! 2. Of course I do! 3. It’s the... the mountains.
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1. NO! 2. The mountains are over here. 3. Oh. Of course they are. Indeed. Sorry.
1. Here is an apple, can´t you see? 2. You’re right, I’m sorry. My sight is all wound up. 3. So, here’s a cow – beg your pardon - a manta-ray?
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´
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1. YES! 2. See? 3. I like your drawings a lot. Show me the older ones, go on.
1. For real? 2. Yes. - Cool! 3. Remember this one?
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1. And this? And this? And this one? 2. And this one? And this? And this one? And this? 3. And... - Eh. You’re all sleepy, Albino?
1. Yes... 2. I’m already dreaming! - Oh yes? 3. Yes. With the pretty things I saw today...
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2. The pretty things... Shit 3. This can’t go on.
2. Good morning! What are you doing? 3. Hmm? Look... I have to tell you the truth.
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translation on page 57*
10. Golly, not now... 12. Ow! 13. With less than a lot of thirst, at the arse of the world. 14. I am a son of a nauseated globe. My flesh is a distant aurora. 15. Made of the dream shadow of lost men, who were gods, and now sleep in the interior of earths.
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1. I understand your wrath 3. but – I will OW! 5. help you. 9. I cannot relieve you. Like you, I walk in circles, and I do not see the world of the living. I am a man. I traffic blindness and the collapse of things.
A luz perturba os mortos. Não só: em si, a Luz-Vista é um cadáver das possibilidades do mundo. Contudo, o mundo pode contar sempre com alguém para que seja apercebido o Imparecer - a cinematografia sonâmbula que é a cega centrifugação das coisas. Cada versão do mundo comporta um Tolo. Compete-lhe uma espécie de transladação do Visto para [depois de escavar o excremento; depois de enjoar o tempo e os astros; depois de embalar os deuses em sonho; depois de se petrificar numa torre de iniquidades prévias ao tempo; depois de saber o que vê a avestruz e o que anima o camelo] espiar o Invisto. Light upsets the dead. Not only: in itself, Seen Light is a cadaver of the possibilities of the world. Though, the world can always count with someone to perceive the Unseemly – the somnambulist cinematography that is the blind centrifugation of things. Each version of the world bears a Fool. He is responsible for a kind of translocation of the Seen to [after digging the excrement; after nauseating time and the celestial bodies; after cradling the gods in dream; after petrifying himself in a tower of iniquities previous to time; after knowing what the ostrich sees and what animates the camel] spying the Unseen.