cadernos da oficina social
8 Multiplicadores Comunitรกrios de Cidadania
Rio de Janeiro 2001
M 961
Multiplicadores comunitários de cidadania. — Rio de Janeiro : Oficina Social, Centro de Tecnologia, Trabalho e Cidadania, 2001. 92 p. : il. ; 19 cm. — (Cadernos da Oficina Social ; 8. ISSN 1518-4242). Inclui bibliografias. 1. Serviço Social. 2. Cidadania. 3. Ação Social. I. Série. CDU 361
Edição Oficina Social Coordenação André Spitz, Gleyse Peiter Coordenação e Supervisão Geral do Projeto – Ibase Moema Miranda Assessoria Técnica – COEP Gleyse Peiter e Amélia Medeiros Autoria Parte 1 – Caio Márcio Silveira Parte 2 – Janett Ramirez Placencia, Adélia Maria Koff e Ely Schultz Pereira – Novamerica Pesquisa documental – Novamerica Parte 2 – Ely Schultz Pereira Supervisão Técnico Pedagógica – Novamerica Parte 1– Vera Maria Candau, Janett Ramirez Placencia e Adélia Maria Koff Parte 2 – Vera Maria Candau Produção Executiva – Novamerica Adélia Maria Koff Projeto Gráfico e Programação Visual Original – Novamerica IFA Editoração Eletrônica Adaptação do projeto gráfico para esta edição e capa Ednéa Pinheiro da Silva Foto capa J. R. Ripper O Projeto Multiplicadores é resultado de uma parceria Ibase, Finep e Coep.
A reprodução dos artigos é permitida, desde que citada a fonte. Centro de Tecnologia, Trabalho e Cidadania – Oficina Social Centro de Tecnologia, Bloco I - 2000 MT-05 COPPE/UFRJ Ilha do Fundão – 21945-970 Rio de Janeiro-RJ Telefax: (21) 562-8074 www.coepbrasil.org.br oficinasocial@coppetec.coppe.ufrj.br
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Mensagem da Direção A idéia de um projeto tendo como objetivo central o desenvolvimento de uma proposta metodológica de capacitação e de orientação para a ação cidadã teve origem no COEP, em 1995. Foi fruto do número significativo de iniciativas de combate à exclusão social realizadas, na época, através do COEP e dos inúmeros Comitês de Ação da Cidadania existentes no âmbito das entidades associadas. Essas experiências, de caráter inovador, envolviam pessoas que queriam participar, de fazer acontecer , mas que nem sempre tinham a formação e o conhecimento necessários para a implementação, da maneira mais eficaz, de ações na área social. Assim, essas questões começaram a ser amplamente debatidas por um grupo de participantes do COEP. Nessas discussões, salienta-se a presença de Betinho um dos maiores incentivadores deste projeto. Em 1998, numa reunião do Conselho Deliberativo do COEP, os dirigentes das associadas aprovaram uma Resolução de apoio ao projeto Multiplicadores Comunitários de Cidadania de criação de uma metodologia de ação social transformando o mesmo em meta do COEP. Com essa Resolução, conseguiu-se o apoio da Finep entidade associada, que mais uma vez deu uma demonstração de seu compromisso com a Rede e de outro importante parceiro, o Ibase - a casa de Betinho, de onde surgiram as inúmeras discussões que deram origem a esta iniciativa. Uma das particularidades deste projeto é que, embora as idéias tenham surgido em 1995, somente 06 anos depois, em 2001, o trabalho encontra-se concluído. É um tempo longo, mas revela todo um processo de articulação que se faz necessário dentro do COEP e com outras instituições, com ações que às vezes avançam lentamente, mas produzem resultados importantes. A história dessa iniciativa incorpora, assim, a própria história do COEP, onde um grupo de pessoas se reúne, discute um plano e desenvolve um trabalho. Ela evidencia várias facetas da Rede: o aspecto da articulação, a importância das parcerias e, também, a transformação de uma idéia em ação um projeto. O projeto Multiplicadores Comunitários de Cidadania constituiu, possivelmente, um dos embriões de toda uma linha de trabalho que surgiu e se desenvolveu, ainda mais, com a instituição da Oficina Social em 1998 - a preocupação com a criação de metodologias, com a replicação dos projetos e com a capacitação das pessoas mentoras e executoras dessas ações. O material metodológico resultante deste Projeto está reunido no volume 8 dos Cadernos e no vídeo 19 das Imagens da Oficina Social, com o título Multiplicadores Comunitários de Cidadania . Esperamos que este kit da cidadania , possa se constituir em um importante instrumento de apoio a todos aqueles que atuam ou desejam atuar na implementação de ações voltadas para o combate à fome e à miséria. Queremos registrar, finalmente, nosso reconhecimento à Finep que, por sua sensibilidade quanto à relevância do projeto viabilizou a implantação de mais essa iniciativa do COEP e ao Ibase, com uma longa história de compartilhamento de um caminho comum. Este último, através da coordenação de Moema Miranda, soube, de maneira especial, desenvolver o Projeto Multiplicadores Comunitários de Cidadania junto a seus parceiros - o Caio Márcio Silveira, a equipe da Novamerica e tantos outros profissionais que colaboraram para a concretização deste trabalho. Agradecimentos especiais à grande animadora desta iniciativa, Gleyse Peiter do COEP, que escreveu a primeira versão da proposta encaminhada ao Ibase, depois convertida no projeto que ora se transforma em realidade. Queremos expressar, também, nossos agradecimentos à Maria Lúcia Almeida, Superintendente da Finep, e ao Candido Grzybowsky, diretor geral do Ibase importantes fomentadores do projeto, e que, com sua experiência e conhecimento enriquecem a Página Livre do volume 8 dos Cadernos da Oficina Social.
André Spitz
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Precisamos nos reencontrar com as questões básicas da humanidade. Reencontrar com aqueles valores que constituem o valor humano, o sentido de nossa existência humana.
Foto: arquivo IBASE
Betinho (1993) durante palestra no lançamento da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.
Sumário
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Página Livre
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Apresentação
Parte I: Ações Cidadãs – Conceitos e Princípios 13
A Reconstrução do Conceito da Cidadania
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Aspectos da Cultura Política Brasileira
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Hipóteses sobre a Ação da Cidadania
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A Construção de Sujeitos como Questão-Chave
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Sociedade Civil e Esfera Pública
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A Questão das Parcerias
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Articulação em Redes
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O Campo dos Experimentos e Inovações
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Elementos de Análise dos Experimentos
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O DLIS como um Novo Campo de Experimentação
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O Caráter Estratégico do Desenvolvimento Local
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Integração, Intersetorialidade e Invocação Institucional
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Socioprodutividade e Sustentabilidade
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A Título de Síntese do Documento-Base
Parte II: Desenvolvimento de Comunidades – Guia para a Ação 53
Introdução
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Por que este Trabalho?
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Para que tanto Esforço?
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Como Desenvolver as Ações Cidadãs?
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Iniciativa e Contatos Preliminares
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Estudo Prévio e Seleção da Localidade para Atuação
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Contato com a(s) Comunidade(s)
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Preparação e Realização de Debate
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Capacitação dos Atores Sociais
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Elaboração de Diagnóstico Local
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Estabelecimento da Agenda Local
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Busca de Parcerias
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Execução das Ações
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Acompanhamento e Avaliação
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Quadro-síntese Metodológico
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Uma Janela Aberta ao Futuro: Criando e Recriando Novas Ações Cidadães
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Referências
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Página Livre
A Finep e o Projeto Multiplicadores Maria Lúcia de Almeida* O desenvolvimento de metodologias de gestão social se constitui em uma das prioridades de ação da FINEP, na sua função de promover o desenvolvimento científico, tecnológico e da inovação no país. Nesse sentido, o Brasil tem se constituído, nos últimos anos, em um vasto campo de experiências desse tipo, em particular através do movimento da Ação da Cidadania e dos muitos comitês que se formaram no seu âmbito. A FINEP participa desde o início de um desses comitês, o Comitê de Entidades no Combate à Fome e pela Vida/COEP, tendo vivenciado intensamente todo esse movimento, dando sua contribuição e enriquecendo sua ação na área social a partir das experiências observadas. Já a parceria da FINEP com o IBASE, que vem de longa data, mostrou-se mais uma vez extremamente produtiva. O projeto Multiplicadores Comunitários de Cidadania, que contou com o apoio financeiro da FINEP, se insere nesse contexto e tem por objetivo colocar à disposição do público em geral informações que permitam a reaplicação das experiências desenvolvidas ao longo desses anos. Através de um conjunto de instrumentos, como o vídeo e as publicações Conceitos e Princípios e Guia para Ação, espera-se que quem se envolver na implementação de ações sociais possa dispor de material que auxilie e agilize os trabalhos de intervenção. Acredita-se que esse instrumental venha contribuir para multiplicar e aperfeiçoar as ações que buscam dar conta dos graves problemas sociais verificados, para a redução das desigualdades e para a inclusão de parcelas crescentes da população nos benefícios oferecidos pela sociedade.
* Superintendente da Área de Instituições de Pesquisa e Empresas Emergentes da Finep.
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O Ibase e o Projeto Multiplicadores Cândido Grzybowski* O Ibase assumiu a responsabilidade de levar adiante o Projeto Multiplicadores por ver nele uma possibilidade a mais de concretizar a sua própria estratégia institucional. A intervenção político-cultural do Ibase tem como eixo a cidadania em ação. Cidadania como consciência social de direitos e responsabilidades, fundada numa ética ativa em torno dos princípios de liberdade, igualdade, diversidade, solidariedade e participação. Acreditamos que quem faz a diferença e qualifica os processos de desenvolvimento de uma sociedade concreta são os diferentes sujeitos sociais coletivos, conscientes de sua cidadania. O Projeto Multiplicadores visa exatamente ser um elemento metodológico de apoio na prática cidadã, particularmente junto a grupos e comunidades em situação de pobreza e exclusão social. O Brasil é, hoje, uma grande laboratório de experiência de cidadania participativa, de cidadãs e cidadãos que tomam a iniciativa e fazem acontecer. Particularmente com a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, tendo o Betinho como grande animador e expressão pública de uma gigantesca campanha cívica, multiplicaram-se as experiências e redes de cidadania. Aqui cabe lembrar as iniciativas das órgãos e empresas públicas, em especial de seus comitês de funcionários, que viram na Campanha da Fome - como a Ação da Cidadania também era conhecida - uma enorme possibilidade de exercício de cidadania e reconstrução de sua primordial função a serviço do público. O COEP é a expressão da ativa rede que se forjou a partir de então. Faltava fazer uma valorização de tais experiências, resgatar a pedagogia de ação cidadã em gestação a partir delas. O Projeto Multiplicadores é uma reflexão teórico-conceitual e metodológica deste aprendizado prático, a partir dos exemplos concretos, das iniciativas. O Ibase se aliou a Caio Márcio Silveira e à competente equipe feminina da Nova América para executar a tarefa de sistematização, sob a coordenação de Moema Miranda, responsável, no Ibase, pelo conjunto de projetos de Participação e Desenvolvimento Local Sustentável. A elas e a ele somos muito gratos. Nunca é demais lembrar que o Ibase sozinho, sem a colaboração dos profissionais que deram o melhor de si e sem a parceria com COEP e FINEP, não teria tido condições de levar a termos tão importante e oportuno projeto. * Diretor Geral do Ibase.
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Apresentação O presente volume da série Cadernos da Oficina Social concretiza os resultados do Projeto Multiplicadores Comunitários de Cidadania . A publicação está estruturada em duas partes: Parte 1: Ações Cidadãs: Conceitos e Princípios
Este documento procura rediscutir conceitos que no caso brasileiro vêm sendo fortemente acionados desde o início dos anos 90, sob as mais variadas motivações, significados e usos. O núcleo de referência é constituído pelas chamadas ações cidadãs , entendidas como iniciativas que, tendo como preocupação o enfrentamento da exclusão social, tomam como valor a participação ativa das comunidades locais, envolvendo ação direta, parcerias e intervenção em novos espaços públicos.
cidadania direitos econômicos, sociais e culturais exclusão social solidariedade cultura política formação de sujeitos sociedade civil e esfera pública parcerias articulação em redes local ou lugar protagonismo endógeno integração e intersetorialidade socioprodutividade sustentabilidade
Foto: João Ripper
As principais noções aqui trabalhadas são:
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A idéia, portanto, é apresentar os fundamentos que deverão nortear as ações cidadãs. São conceitos, princípios, cuja compreensão e/ou utilização ajudam a construir um trabalho consistente, crítico voltado para a eliminação da exclusão social, para a transformação da vida de muitos brasileiros e brasileiras. Parte 2 – Desenvolvimento de Comunidades: Guia para a Ação
Este documento é o resultado de pesquisa e tem por finalidade oferecer informações, isto é, orientações de caráter metodológico, que possam contribuir para a implementação de ações cidadãs. Trata-se, em outras palavras, de uma sugestão de guia para a ação. Vale ressaltar que o trabalho apresentado , foi realizado utilizando-se dos seguintes mecanismos: Análise de documentos, disponibilizados pelo Ibase e pelo COEP, contendo, principalmente, o registro de projetos e/ou experiências vivenciadas no contexto da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Entrevistas com representantes/atores responsáveis por alguns dos projetos analisados. É importante destacar que procurou-se analisar e interpretar cada um dos princípios, procedimentos e passos metodológicos subjacentes à descrição de cada projeto, bem como os elementos mais significativos presentes no relato de cada entrevistado. Cabe enfatizar também que essas análises e interpretações estão iluminadas pela experiências vividas pela equipe no cotidiano de trabalhos educativos junto a diversas comunidades locais.
ações cidadãs
Parte I Conceitos e princípios
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A Reconstrução do Conceito da Cidadania Como pontos de referência, na reconstrução do conceito de cidadania, particularmente no contexto brasileiro, três aspectos são aqui articulados: a) a revitalização e ampliação da temática dos direitos ; b) a identificação da centralidade do enfrentamento da exclusão social e c) a reinvenção da solidariedade como valor-prática.
De que vale o direito à vida sem o provimento de condições mínimas de uma
Indivisibilidade dos direitos Pode-se dizer que é somente na última década que se consolida uma visão holística e integral dos direitos. Como já foi dito: todos experimentamos a indivisibilidade dos direitos humanos no cotidiano de nossas vidas [...] De que vale o direito à vida sem o provimento de condições mínimas de uma existência digna?... De que vale o direito à liberdade de expressão sem o acesso à instrução e à educação básica? ... De que valem os direitos políticos sem o direito ao trabalho? (TRINDADE, 1996).
existência digna?[...] De que vale o direito à liberdade de expressão sem o acesso à instrução e à educação básica? [...] De que valem os direitos políticos sem o direito ao trabalho?” (TRINDADE, 1996).
Juntamente com o princípio da indivisibilidade (por oposição à compartimentação e ao tratamento diferenciado), assume um papel decisivo a incorporação dos chamados direitos econômicos, sociais e culturais (DESC). Interligam-se assim, aos direitos civis e políticos, o direito à alimentação, à moradia, à educação e ao trabalho. Conexamente, formula-se a idéia do direito ao desenvolvimento, que alguns consideram a expressão mais elevada da liberdade de construir outras vias e saídas para superar os contextos de desigualdade (BOCAYUVA, 1998).
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Exclusão social A revitalização e ampliação da temática dos direitos está ligada à mutação da cidadania, de simples petição de princípios para se tornar um eixo éticopolítico na prática dos atores sociais. Insere-se com ênfase, nesse processo, a temática da exclusão, como expressão das desigualdades no acesso a condições elementares de vida, ao conhecimento e ao mundo do trabalho. No período atual, pode-se falar em uma nova exclusão , relacionada à desconstrução de filiações e laços sociais e, particularmente, ao estreitamento das possibilidades de acesso a oportunidades de trabalho. Pode-se afirmar que a exclusão como desvinculação é um dos efeitos mais fortes das novas desigualdades associadas ao processo de reestruturação produtiva, que se traduz no trânsito do subalterno para o descartável . Neste contexto, mais adequado do que supor o fim do trabalho é abordar a questão da exclusão do trabalho, como ponto crítico nas metaformoses em curso. Nas ações e estratégias de reversão dos processos de exclusão, cabe a distinção entre o que poderia se chamar de inclusão subordinada e inclusão como processo emancipatório este aqui entendido menos no sentido negativo (libertar-se de alguma força opressiva ou restritiva) mas no sentido positivo de empoderamento (empowerment). Ou seja, ao invés da tentativa de reconstrução de uma cidadania regulada, a emersão de sujeitos de direitos (em consonância com a idéia do direito a ter direitos ) agrega um significado adicional à proposição de universalização da cidadania (todos os direitos para todos).
Solidariedade A idéia de universalização da cidadania, por sua vez, mais do que extensão dos direitos a todos, passa a significar também a responsabilização de todos pela efetivação desses direitos. Recupera-se aqui a noção de solidariedade , associada à idéia de compromisso e responsabilidade social. A solidariedade, como valor ético-político, vai na contracorrente da cultura da indiferença e do mote de levar vantagem . Mais do que isto, destaca-se
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a junção entre noções tradicionalmente separadas inclusive nas ciências sociais como cidadania e solidariedade (PALMEIRA, 1999). Neste sentido, pode-se afirmar que a própria noção de ação cidadã não se constrói sem incorporar e resignificar o valor-prática trazido pela idéia de solidariedade. O vínculo solidariedade-cidadania pode relacionar-se, por fim, a uma desprivatização da solidariedade (que, assim, passa a transcender a reciprocidade presente nas relações primárias entre indivíduos, famílias, vizinhanças e grupos de referência direta). Portanto, sugerimos que a reconstrução do conceito de cidadania está fortemente contextualizada no atual período de crise e reestruturação, que lança no debate político a discussão de alternativas de desenvolvimento entrelaçada com a questão-chave da exclusão social. Sua incorporação por parte de múltiplas forças sociais ganha densidade ético-política e prática, resignificando a solidariedade à luz da temática dos direitos e apontando para formas não subordinadas de inclusão social.
A reconstrução do conceito de cidadania está fortemente contextualizada no atual período de crise e reestruturação, que lança no debate político a discussão de alternativas de desenvolvimento entrelaçada com a questãochave da exclusão social.
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Aspectos da Cultura Política Brasileira Entende-se aqui cultura política não como o imaginário sobre temas políticos (o que a sociedade ou seus diversos grupos pensam e formulam quando tematizados diante da política), mas como a dimensão da cultura brasileira em que valores e símbolos não necessariamente políticos são projetados sobre o domínio dos temas públicos. Portanto, como conjunto de valores, práticas e relações sociais associados a estruturas simbólicas instaladas na nossa cultura (SOARES, 1998). No caso brasileiro, alguns elementos culturais podem ser considerados típicos: a cultura do privilégio associada ao você sabe com quem está falando? (DA MATTA, 1978), o chamado fisiologismo ou mesmo a corrupção institucionalizada como face negativa do jeitinho brasileiro (BARBOSA, 1992) e o paternalismo associado a relações de favor e clientela (gerando as mais variadas modalidades de clientelismo e neoclientelismo). Vale também destacar a hipótese e a análise de Luis Eduardo Soares (1998) sobre a categoria eles . Teríamos como característica uma cultura política polarizada por esta categoria, como chave de discursos, atitudes e práticas. Trata-se de uma expressão com que os brasileiros frequentemente se referem a uma responsabilidade difusa por ações e decisões que escapam ao controle do enuciador e de seus interlocutores (SOARES, 1998). Eles são sujeitos de decisões e processos superiores às pessoas comuns, são poderosos, promovem processos que afetam a vida dos interlocutores ou de todos. Soares (1998) mostra ainda que a presença desta categoria não é contraditória com o aplauso ao líder (por exemplo, o chefe do executivo). O ceticismo não vira niilismo, vale para o plural difuso mas salva individualida-
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des heróicas [...] ambos os lados da moeda são importantes e mutuamente significativos, em nossa cultura política.
Outra face da categoria em questão: o locutor se desqualifica a si próprio como sujeito moral e ator político. Trata-se de uma matriz que afirma a impossibilidade do locutor e seus interlocutores se constituírem como sujeitos.
Foto: João Ripper
A reflexão em torno da categoria eles joga uma luz a mais na questão da passividade. Trata-se de um mecanismo que opera orientando e reduzindo o horizonte de escolhas. Enfim, uma reação ante a experiência social da exclusão da cidadania (SOARES, 1998).
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Hipóteses sobre a Ação da Cidadania Face às questões aqui em jogo, tomamos como referência o movimento social reconhecidamente de maior amplitude na nossa história contemporânea: a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida (ou a Campanha contra a Fome , ou ainda, a Campanha do Betinho ).
A Ação da Cidadania pode ser vista como um “marco
Assumimos o argumento de que a Ação da Cidadania pode ser vista como um marco fundamental em nossa história política recente, sem cuja compreensão é impossível descrever adequadamente a sociedade civil contemporânea brasileira e o estágio atual de nossa cultura política (SOARES, 1998).
fundamental em nossa
A campanha não se passou imune a críticas e acusações, tais como: a) o caráter moralista e messiânico; b) o assistencialismo caritativo (a distinção entre solidariedade e paternalismo seria um simples casuísmo conceitual ); c) o fato de trabalhar sobre sintomas e não sobre causas estruturais; d) o voluntarismo e o populismo (por oposição à construção de arranjos institucionais, saldos organizativos mais sólidos, compromissos mais permanentes).
brasileira e o estágio atual
história política recente, sem cuja compreensão é impossível descrever adequadamente a sociedade civil contemporânea de nossa cultura política” (SOARES, 1998).
A partir de outros parâmetros e bases de referência, sugere-se interpretar aquele processo para além das oposições entre emergencial x estrutural, sintomas x causas, assistência x política. Mais precisamente, articulando a questão da cidadania democrática com a questão da cultura política brasileira. Uma primeira percepção corresponde à identificação da campanha como um território de encontros : entre a linguagem política e a linguagem moral, entre a lógica da racionalidade moderna e a das culturas tradicionais e populares, entre os móveis da cidadania e da solidariedade.
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Mais do que propiciadora de elos entre pessoas que nunca haviam se relacionado, mais do que impulso a sacudir fronteiras e separações entre cidadãos e nãocidadãos, a campanha teria posto em marcha novas dinâmicas indutoras da constituição de sujeitos sociais e políticos.
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Outro aspecto corresponde à identificação da campanha como um território de afirmação : a idéia da ação cidadã como assunção cooperativa de responsabilidades, abandono da passividade e da indiferença, reconhecimento de que ou a cidadania será para todos ou ninguém será cidadão . Porém, o ponto focal, aqui reforçado, é mais audacioso: a campanha, como espaço simbólico, pôs em marcha valores perturbadores, porque desestabilizadores de pressupostos e estruturas simbólicas profundamente instalados na nossa cultura . Ou ainda: a campanha apontava e dramatizava uma revolução em nossa cultura política: a superposição entre o indivíduo anônimo do povo e o sujeito da vontade política (SOARES, 1998). Nesse sentido, mais do que produtora e operadora de uma visão de cidadania, mais do que propiciadora de elos entre pessoas que nunca haviam se relacionado, mais do que impulso a sacudir fronteiras e separações entre cidadãos e não-cidadãos, a campanha teria posto em marcha novas dinâmicas indutoras da constituição de sujeitos sociais e políticos.
A Construção de Sujeitos como Questão-Chave A questão da formação de sujeitos liga-se aqui à própria questão da cidadania. O exercício da cidadania na campanha foi uma aventura de reinvenção de seu significado ... A campanha funcionou como espaço para a retomada da iniciativa histórica da cidadania, deslocando o Estado de sua centralidade. E essa, me parece, é a fonte dos mais graves mal-entendidos: quando a campanha afirmava a iniciativa cidadã, deslocando-a para a sociedade, não negava as responsabilidades sociais do Estado (SOARES, 1998).
Negava uma tradição de transferência, de não intervenção direta e de derrotismo, como profecia que se autocumpre. Valoriza-se aqui a ação social no sentido inverso da referência apassivadora aos culpados pelos nossos males ( eles ). Questiona-se uma tradição que vê o domínio público como abrigo de um outro em relação ao qual não há interlocução possível. Neste sentido, a idéia da autoconstrução de sujeitos pode ser vista como elemento transformador face à cultura política cristalizada, onde a categoria eles ocupa um lugar simbólico decisivo. Já no ano 2000, é fácil dizer que a campanha em questão perdeu fôlego e os problemas que a suscitaram (a começar pela própria fome) continuam presentes. Novas conjunturas se delinearam e outras questões ganharam o espaço da mídia e do espetáculo. Isto não demonstraria que houve uma derrota e que a campanha foi um equívoco? Ou, ao menos, todo esse processo não seria expressão dos aspectos subjetivos que fazem da sociedade brasileira um terreno tão contraditório e volúvel para políticas de solidariedade ativa e envolvimento cooperativo no combate a desigualdade estrutural? (BOCAYUVA, 1999).
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Como a esfera pública pode se constituir como extensão da cidadania, e não apenas como o “Outro”, aquele ser não interlocutável que oscila entre o “predadorameaçador” e o “salvador-paternal”.
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É evidente que a Ação da Cidadania se foi revolucionária na cultura política brasileira, como aqui reafirmado não completou uma transformação no sentido de triunfar sobre formas crônicas e tradicionais que se tornariam então passadas. O que está em foco é que, em todo esse processo, pode ser identificado algo de estrutural . Pode-se dizer, sobretudo, que ali foram gestados novos recursos para uma necessidade e uma tarefa permanentemente recolocada (SOARES, 1998). A combinação entre uma cultura de direitos como eixo ético-político e um processo de multiplicação capilar de sujeitos mostra uma enorme potencialidade. A campanha em questão é exemplar, mas evidentemente este processo a ultrapassa. Importante é identificar como podem se materializar na cena pública novos agentes, iniciativas e valores que na lógica predominante estariam fora de seus domínios. Ou seja, como a esfera pública pode se constituir como extensão da cidadania, e não apenas como o Outro , aquele ser não interlocutável que oscila entre o predadorameaçador e o salvador-paternal .
Sociedade Civil e Esfera Pública No caso brasileiro, é marcante e sintomática a presença crescente de análises, idéias e proposições onde a noção de sociedade civil é recuperada e acionada, sobretudo a partir da década de 90. Neste ambiente, tende a predominar o uso da noção de sociedade civil como referência a processos, mecanismos e instituições que se constituem desde a sociedade, fora do sistema estatal strictu sensu, com móveis outros que não os do mercado. Na experiência brasileira, desde o período militar e mais amplamente depois, identifica-se um adensamento da sociedade civil. Isto se expressa na emergência de grupos, movimentos, organizações, como uma constelação de atores, formatos e focos temáticos que, estimulados ou não por grandes processos catalizadores (como foi a Ação da Cidadania), indicam uma ampliação da base associativa por si só, por menor que seja face ao potencial imaginado ou quando comparada a outros países. Agrega-se nesta associação de significados à noção de sociedade civil o que pode se chamar de esfera pública , esfera caracterizada por elementos constitutivos como visibilidade social, controle social, confrontação e pactuação (WANDERLEY, 1999). Considerando a esfera pública como o espaço em que se define o interesse público, pode-se pensar num conceito em que este interesse público não surja da anulação de interesses particulares, mas seja um terreno de disputa em constante redefinição (BAIERLE, 1996).
Neste sentido, é o processo de extensão da cidadania como valor-prática, como cidadania ativa que redesenha o público como um domínio mais amplo do que o estatal . Quando se fala em radicalização democrática é mais do que isto, mas é também isto, pela referência a um sentido de transformação que tende a abalar as fronteiras entre sociedade civil e estado. Pode ser lida assim a
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formulação de Betinho de que se somar com a sociedade, acreditar na sociedade, apostar na sociedade nós vamos conseguir até mesmo reconstruir o Estado brasileiro (SOUZA, 1993). Se somar com a sociedade, acreditar na sociedade, apostar na sociedade nós vamos conseguir até mesmo reconstruir o Estado brasileiro.
Betinho
Há uma outra questão, que é a percepção de que o Estado é necessário mas não é suficiente , particularmente tendo em vista a magnitude dos problemas sociais a enfrentar, por exemplo no caso brasileiro. O reconhecimento da necessidade e da insuficiência do Estado deve ser visto não apenas por sua capacidade de operar, mas como dimensão da própria questão democrática. Particularmente na medida em que esta incorpora razões de sociedade , isto é, transforma os olhares da sociedade (distintos por natureza da ótica de qualquer Estado) em poderes da sociedade, poderes de formular, intervir e realizar no terreno público. Neste sentido, o monopólio do Estado sobre o público é essencialmente não democrático. Pode-se mesmo dizer que compartilhar com a Sociedade Civil as tarefas de desenvolvimento social, incorporar as visões e as razões da sociedade nos assuntos antes reservados aos governos, significa aumentar a possibilidade e a capacidade das populações influírem nas decisões públicas empoderar as comunidades, distribuir e democratizar o poder (FRANCO, 2000).
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A Questão das Parcerias Cabe aqui uma discussão mínima sobre a questão das parcerias , em particular a chamada parceria estado-sociedade civil , linguagem que, na trajetória brasileira recente, foi posta em circulação, em grande parte, pela Ação da Cidadania. Remete, porém, ao contexto mais amplo do processo de democratização, na etapa que se instaura particularmente a partir dos anos 90 no Brasil. Como recuperar a questão da parceria na diversidade de seus usos, face ao tema da relação estado-sociedade?
É interessante analisar os
Pode-se sugerir que o controle social das políticas públicas aponta como desdobramento do próprio exercício democrático a questão da co-responsabilidade. Ou seja: uma atuação das instâncias da sociedade no sentido de formular, interferir, acompanhar e também contribuir na viabilização de políticas públicas.
ampliação da capacidade de
processos de constituição de parcerias considerando a iniciativa de cada parceiro (e não a subordinação vertical), a associação autonomiainterdependência, a
Os processos concretos, contudo, são permeados de diferenciais nos padrões de relação instituídos. De um ângulo geral, parece pertinente estabelecer uma diferenciação básica entre as parcerias como uma das variantes de privatização do estado, e inversamente, como elemento de um processo de ampliação da esfera pública (FRANCO, 1998).
co-evolução dos parceiros e fatores de consistência e densidade que podem ser indicativos de sustentabilidade
Além da privatização empresarial ou corporativa, é possível identificar como o clientelismo esta outra forma de privatização pode ganhar uma roupagem contemporânea, renascido sob o discurso da parceria. Isto se expressa na relação entre partes a partir de uma razão meramente instrumental (por exemplo, via recrutamento pelo Estado de recursos humanos ou mão-de-obra nas organizações da sociedade civil) que, quando adquire o significado de instituinte central de relações, não traz em si o caráter de ampliação da esfera pública, tendendo muitas vezes ao inverso sua redução ou enfraquecimento.
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Sob outra ótica e outras práticas a questão da execução de programas e projetos, ou da prestação de serviços (por exemplo na relação entre Ongs e Estado), pode subordinar-se às questões de pactuação de prioridades, co-formulação e controle social. Isto significa introduzir a questão das parcerias na temática do aprofundamento da democracia e da expansão da subjetividade pública. É interessante analisar os processos de constituição de parcerias considerando a ampliação da capacidade de iniciativa de cada parceiro (e não a subordinação vertical), a associação autonomia-interdependência, a co-evolução dos parceiros e fatores de consistência e densidade que podem ser indicativos de sustentabilidade Sugere-se ainda, na composição de um quadro de análise e interpretação, associar a questão das parcerias a diferentes referenciais de cultura política, considerando que é ali que a questão ganha substância, tomando como pano de fundo um ciclo histórico que, no caso brasileiro, inicia-se após a Constituição de 1988, quando entram em cena novos mecanismos de relacionamento estado-sociedade, como os conselhos. Por força do próprio processo democrático, a dimensão associativa e autônoma da sociedade vem sendo lançada a constituir-se como uma dimensão pública, o que exige também a rediscussão de suas relações com a esfera estatal. Esta exigência tem como um de seus desdobramentos necessários a perspectiva de mudança do marco legal referente à relação entre as organizações da sociedade civil e o estado.
Foto: João Ripper
Porém, também aqui, a questão essencial é a relação política entre construção de parcerias e ampliação efetiva da esfera pública, por distinção às formas meramente instrumentais ou geradoras de relações de dependência e clientela.
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Articulação em Redes
A questão das parcerias tem como um dos seus desaguadouros o encontro com a temática das redes. Também no contexto brasileiro, a vocalização da idéia de rede é crescente, vinda de atores das mais distintas naturezas (de alguns setores governamentais, do universo empresarial e das organizações da sociedade civil). Conceitualmente, o que se pode entender por redes, como morfologia social? Partindo da formulação de Castells (2000): Rede é um conjunto de nós interconectados. Nó é o ponto no qual uma curva se entrecorta. Concretamente, o que um nó é depende do tipo de redes concretas de que estamos falando . Podemos agregar além da idéia de nós em sua ampla plasticidade cinco outros elementos de definição do conceito de rede. Em primeiro lugar, a diversidade: De fato, uma pluralidade de componentes realmente divergentes só pode manter-se coerente em uma rede. Nenhum outro esquema cadeia, pirâmide, árvore, círculo, eixo consegue conter uma verdadeira diversidade funcionando como um todo (KELLY, 1995).
Em segundo lugar, os laços de realimentação entre seus componentes, como se todos fossem agentes e re-agentes, a ponto de perder sentido a idéia de origem e destino, emissão e recepção. Em terceiro lugar, a característica de sistema aberto e dinâmico, como uma malha de múltiplos fios, que pode se espalhar indefinidamente para todos os lados sem que nenhum dos seus nós possa ser considerado principal ou central (WHITAKER, 1994).
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Em quarto lugar, a convivência entre o estruturado e o não estruturado, que se associa à noção de flexibilidade: a lógica de redes é necessária para estruturar o não-estruturado, porém preservando a flexibilidade, pois o não-estruturado é a força motriz da inovação na atividade humana (CASTELLS, 2000).
Em quinto lugar, o diferencial que representa a inserção ou não em redes:
Nos processos sociais, pode-se dizer que “os elos básicos – os fios – que dão consistência a
a distância entre dois pontos (ou duas posições sociais) é menor se ambos os pontos forem nós de uma mesma rede. A inclusão/exclusão em redes e a arquitetura das relações entre as redes configuram os processos e funções predominantes em nossas sociedades (CASTELLS, 2000).
Nos processos sociais, pode-se dizer que os elos básicos os fios que dão consistência a uma rede são as informações que transitam pelos canais que interligam seus integrantes (WHITAKER, 1994).
uma rede são as “informações” que transitam pelos canais que interligam seus integrantes” (Whitaker, 1994).
A circulação de informações supõe algum tipo de suporte sistemático auditivo, gráfico, escrito etc e hoje parece natural identificar no desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação esta base material. Mas rede não é igual a tecnologia de rede. Ou seja, organizações em rede não são produtos da tecnologia, embora se expressem nos moldes tecnológicos que historicamente vão sendo desenhados. Estamos falando de redes socialmente construídas, no atual contexto de mutações e disputa de alternativas. Há redes e redes: diferentes modalidades, diferentes móveis, diferentes impactos efetivos e potenciais. No contexto deste documento, vale perguntar como se vincula a temática das redes à questão da sociedade civil e da esfera pública. Na ótica da inclusão social, do fortalecimento emancipatório (empowerment), da construção de sujeitos e esferas públicas de novo tipo, a produção de fluxos comunicativos consistentes impõe-se como necessidade. Vale pensar em que medida uma lógica de redes ancorada sobre bases sociais efetivas estimula mudanças em padrões culturais já amplamente instalados e introjetados. Sugere-se que há um potencial reeducativo nas formas de reciprocidade aberta, cooperação e solidariedade que ali podem se de-
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senvolver diferenciando-se da cultura do guardar para si e do levar vantagem (WHITAKER, 1994). A articulação em rede pode ser fator de desinstalação de culturas políticas tradicionalmente dominantes, não apenas o patrimonialismo e o clientelismo, por exemplo, mas também o hegemonismo, mesmo quando este se contrapõe aos sistemas de dominação mais solidamente instituídos ou ao modelo socioeconômico vigente. Vale ainda considerar em que sentido as ações sociais anti-exclusão, associadas à participação direta e à emergência de novos sujeitos, podem adensarse através de novos espaços de conectividade. Esta questão remete ao potencial indutivo que a articulação em rede pode assumir do ponto de vista da mudança cultural, no sair de si da miríade de experimentos e ações cidadãs que continuam a proliferar.
Na ótica da inclusão social, do fortalecimento emancipatório (empowerment), da construção de sujeitos e esferas públicas de novo tipo, a produção de fluxos comunicativos consistentes impõe-se como necessidade.
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Como esta temática pode irromper e ganhar sentido, considerando todo o acúmulo de esforços, tentativas e exemplos que vêm brotando sobretudo no último decênio, no caso brasileiro? Pois sob a ótica da reversão da exclusão e do esboço de alternativas de transformação são estas experiências, impulsionadas por atores múltiplos e difusos, que vêm alentando o cenário e trazendo, das ações realizadas, novas interrogações e possibilidades sobre as ações a realizar.
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O Campo dos Experimentos e Inovações Pode-se identificar um campo vasto e diferenciado de experimentos relacionados à inclusão social, que veio a se expandir nas diversas regiões do país. Já desde alguns anos antes, mas sobretudo a partir de meados da década de 90, presencia-se um florescimento de práticas localizadas, um experimentalismo difuso no interior do qual surgem focos demonstrativos, em campos estratégicos das políticas públicas. Retomando o veio da Ação da Cidadania, já se identificavam reiteradas iniciativas, nos vários espaços da campanha, por desdobrar as novas relações em parcerias permanentes, através de atividades que tivessem continuidade (LANDIM, 1998). Ao longo desse processo, destaca-se a crescente mutação da ação social em projetos sociais , tendência mais ampla que se expressa também na trajetória das Ongs e em ações impulsionadas por administrações municipais, marcadamente nesta última década. Em todo esse ambiente, programas e projetos são constituídos a partir de diferentes eixos, tendo em comum a questão social . Mais diretamente inspirada e originada pela Ação da Cidadania, insere-se como elemento desse processo a formação desde 1993 do COEP Comitê de Entidades Públicas no Combate à Fome e pela Vida, arranjo institucional que se consolidou e veio a se ampliar pelos estados e pelo setor privado, num processo que continua a se desenvolver. Partindo da idéia básica de transformar o estatal em público , este movimento vem envolvendo duas frentes básicas: (1) mudanças nos procedimentos e práticas gerenciais compatíveis com o princípio da responsabilidade social (tentativas de abertura como mercado para produtos e serviços de micro e pequenas empresas, estímulo a ações sociais por parte dos funcionários, reversão da ociosidade e do desperdício em benefício social), e principalmente, (2) desencadeamento de inúmeros projetos na área social, sob um enfoque de
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promoção da cidadania. O social (o combate à exclusão, à pobreza) aparece como dimensão que permeia este conjunto amplo e difuso de iniciativas. Mas as ações os projetos trazem geralmente um foco ou um ponto de partida setorial: saúde e nutrição, educação, trabalho e renda, infra-estrutura e moradia. Ou, combinadamente, trabalham com segmentos específicos (a partir de critérios etários, de gênero, étnicos etc).
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Duas características podem ser destacadas no transcorrer desta multiplicidade de experimentos. Em primeiro lugar, a tendência a deslocar ou ampliar o foco da segurança alimentar e outras ações de caráter mais emergencial para iniciativas que se pretendem de promoção social (e não apenas ou essencialmente de proteção social). Em segundo lugar, a ênfase que se procura imprimir na característica inovadora dos projetos, principalmente naquelas iniciativas que surgem fora dos macroprogramas de governo, eventualmente entremeando-se a estes na sua implementação.
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Elementos de Análise dos Experimentos Do ponto de vista do registro e da avaliação dos experimentos, a despeito de sua ampla diversidade, pode-se sugerir alguns elementos de análise, sob forma sintética:
Articulação com diagnósticos e demandas Identificação de problemas e potencialidades locais; utilização de bases de informação existentes ou construídas; mecanismos de vocalização e incorporação de demandas.
Identificação e qualificação das parcerias institucionais Natureza dos agentes envolvidos e respectivos papéis; presença de mecanismos instrumentais (terceirização, subordinação, relações de clientela) e mecanismos de ampliação de espaços públicos; elementos de pactuação, elaboração conjunta e acompanhamento e controle; fatores de sustentação (bases de cooperação e graus de extensividade, heterogeneidade e capilaridade no elenco de parceiros).
Inovação institucional e criação de novos espaços de interlocução Produção de articulações intra-estatais e estado-sociedade; natureza dos arranjos institucionais (fechados ou abertos/flexíveis); modalidades de formatos acionados ou construídos (consórcios, câmaras, fóruns, conselhos); incorporação de atores sem interlocução anterior em projetos de políticas públicas.
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Participação direta da população interessada na condução das ações Características da população envolvida, quanto à exclusão ou vulnerabilidade social; identificação dos tipos de envolvimento (beneficiários, clientes, protagonistas); relação entre participação e controle social.
Flexibilidade de metodologias e interatividade cultural Adequação de códigos e métodos à realidade local; incorporação de práticas e identidades locais; compartilhamento de motivações e saberes; encontro do organizado/institucionalizado com o desorganizado/não institucionalizado (SPITZ, 1999).
Graus de intersetorialidade Temas e dimensões presentes no desenho das ações, em seus diferentes momentos; existência de formatos institucionais facilitadores de ações intersetoriais; atratividade para agregar novas dimensões na sua trajetória.
Características de gestão empreendedora na implementação Reconhecimento e superação de obstáculos de percurso; capacidade de produzir e desencadear inovações.
Acesso a oportunidades e serviços Desbloqueio ou abertura de canais para exercício de direitos econômicos, sociais e culturais; adequação demanda-oferta; facilitação do acesso a novos serviços; maior mobilidade espacial/comunicacional.
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Ampliação de recursos locais Desenvolvimento de potencialidades e oportunidades locais; diversidade do meio sociocultural e ambiental envolvido; explicitação de motivações locais diferenciadas.
Potencial de nucleação Capacidade de agregar novos atores, iniciativas e projetos; capacidade de desencadear ações inesperadas e confluentes.
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O DLIS como um Novo Campo de Experimentação É crescente o número de atores que trabalha com a hipótese de que estaríamos no limiar de uma transição das iniciativas pontuais, fragmentadas, com forte acento setorial ainda que não estritamente monossetoriais para uma perspectiva de ação local integrada e mesmo de desenvolvimento local. São diversos e combinados os percursos que chegam à temática do desenvolvimento local, tais como: as ações cidadãs e os projetos demonstrativos focalizados, as iniciativas de fomento ao emprendedorismo popular, os movimentos ambientais e sócio-ambientais, os exercícios de inovação nos parâmetros de gestão municipal, as tentativas de articulação de macroprogramas governamentais. Na trajetória brasileira recente, como fruto de uma construção coletiva a partir de diferentes visões ( ação local , desenvolvimento econômico local , agenda 21 local , entre outras) chegou-se à formulação de uma noção referencial abrangente, o desenvolvimento local integrado e sustentável (DLIS).
Ainda que a noção de DLIS tenha se espraiado como um vendaval – sobretudo institucionalmente – continuam múltiplos os caminhos que vêm sendo trilhados onde esta referência está presente, na atual etapa de experimentação.
Ainda que a noção de DLIS tenha se espraiado como um vendaval sobretudo institucionalmente continuam múltiplos os caminhos que vêm sendo trilhados onde esta referência está presente, na atual etapa de experimentação. Há hoje em curso uma gama policêntrica de iniciativas que assumem de algum modo uma perspectiva de desenvolvimento local, iniciativas diversificadas em sua natureza e geralmente embrionárias. E há também metodologias mais sistematizadas, em diferentes estágios de consolidação, que constituem matrizes ou referências, uma vez que estão presentes em conjuntos de experiências, que se desenvolvem simultanteamente em dife-
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rentes lugares. São os casos da metodologia Gespar, da estratégia Comunidade Ativa e das Agendas 21 locais. Envolvendo esses dois conjuntos, e naturalmente mais intensa nas metodologias e modelos de gestão sistematizados, está presente a idéia de intencionalidade no desencadeamento de processos de desenvolvimento local. Neste sentido, trata-se de um processo pensado, planejado, promovido ou induzido (FRANCO, 2000). A Agenda 21 insiste que o desenvolvimento sustentável só acontecerá se for explicitamente planejado (KRANZ, 1999). O campo DLIS , na sua expressão institucional hoje no Brasil, é predominantemente um complexo de métodos e fundamentos voltados para o desencadeamento de processos: as metodologias se definem como de indução ou apoio . Na própria intencionalidade que as caracteriza, sua implementação não é em si o desenvolvimento local, mas um fator impulsionador, um fator visto como necessário. Outros fatores decisivos seriam os elementos endógenos, as forças sociais passíveis de emergir, ao gerar novos vínculos e caminhos, desde as bases locais.
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O Caráter Estratégico do Desenvolvimento Local A questão do desenvolvimento local pode ser vista como uma resposta que, tendo sua emergência associada a um contexto de globalização, reestruturação produtiva e crise do padrão de desenvolvimento, insere-se no âmago das disputas em torno de alternativas e caminhos, o que lhe dá um caráter estrutural ou universal. O contexto de reestruturação e crise de padrão de desenvolvimento, ao mesmo tempo em que desvincula, fragmenta e exclui, gera novas possibilidades de construção endógena, como resistência ativa e construção de novos sujeitos e vínculos a partir das brechas do local. Mesmo que vista desde cima a partir das redes globais e corporativas pareça ficcional e ilusória, a idéia de desenvolvimento local ganha sua mais densa substância quando associada à construção de alternativas e à disputa em torno de paradigmas (BOCAYUVA, 2000). Associação que supõe que as dinâmicas geradoras de desigualdade e exclusão não podem ser desconstruídas pelo alto, ou substituídas por outros sistemas de fluxos apartados dos lugares. Terreno de reconstrução de identidades e vínculos, de gestação de esferas públicas que expressem a diversidade e capilaridade da vida social, o local se configura como um campo de resposta necessário e insubstituível.
O contexto de reestruturação e crise de padrão de desenvolvimento, ao mesmo tempo em que desvincula, fragmenta e exclui, gera novas possibilidades de construção endógena, como resistência ativa e construção de novos sujeitos e vínculos a partir das brechas do local.
Diante de novas exigências, novos caminhos. Neste sentido a hipótese do desenvolvimento local assume o caráter de estratégia contra-hegemônica face à globalização excludente (FRANCO, 1998) e, mais do que isto, instaura a possibilidade de intervenção de novos atores e protagonistas no processo de desenvolvimento, apontando no sentido de uma outra globalização . O local como alavanca significa uma reconstituição de direitos e recomposição de práticas e relações, que se afasta da paralisia crítica diante de
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uma dominação global e se distingue dos movimentos de fuga para trás (as utopias regressivas em torno dos macrossujeitos como uma classe social redentora ou o retorno a modelos estadocêntricos). Nesta perspectiva, aponta-se para o sentido estratégico da questão do desenvolvimento local, e também para a capacidade de identificar elementos de universalidade, nas expressões locais e nas realizações experimentais.
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Integração, Intersetorialidade e Inovação Institucional A construção de novos espaços e compromissos públicos requer não apenas um envolvimento político e institucional amplo, mas sobretudo que as organizações da base da sociedade se expressem como fatores de reconstrução de poderes locais, o que envolve confrontação e pactuação. Quanto aos temas: as agendas locais explicitamente formuladas ou não tendem a instaurar fluxos de demandas e iniciativas que envolvem diversos temas incidentes sobre as possibilidades de inclusão social e desenvolvimento local. Às desigualdades quanto ao acesso ao mundo do trabalho, agregam-se e associam-se outras desigualdades de acesso: às condições elementares de vida (água, alimento, abrigo, afeto) e às condições de aprendizagem e conhecimento (educação e capacitação em seu sentido mais abrangente). Além das desigualdades relacionadas a discriminações socioculturais (sobretudo de gênero e étnicas). Como isto pode se traduzir em intencionalidades e meios, senão partindo da necessidade do desbloqueio dos limites setoriais, dento e fora dos corpos de governo?
A construção de novos espaços e compromissos públicos requer não apenas um envolvimento político e institucional amplo, mas sobretudo que as organizações da base da sociedade se expressem como fatores de reconstrução de poderes locais, o que envolve confrontação e pactuação.
Vem sendo salientado o hiato entre a necessidade e o desejo de desenvolver ações intersetoriais e a dificuldade encontrada para criar formatos viáveis para a sua execução em termos de políticas e desenhos organizacionais e gerenciais (CAMAROTTI; SPINK, 1999).
Como esta necessidade vem se expressando, na reflexão e nos experimentos? É perceptível o caminho prático da intersetorialidade progressiva: novas demandas, novas lacunas, novos e diferentes parceiros para supri-las. Como ações ou projetos que se ampliam, que pedem mais encadeamentos em seu próprio processo.
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Por outro lado, a hipótese da intersetorialidade como um ponto de partida vem se tornando igualmente presente. Os seja, constituem-se novas institucionalidades plurais como os fóruns e câmaras de desenvolvimento local como espaços de planejamento e implementação integrada de políticas e ações multissetoriais. Ainda nesses casos, a emergência destas institucionalidades nunca é um marco zero ou ponto de partida literal. Tende a haver, como condição, algum acúmulo, alguma modalidade de organização e articulação, uma base associativa, enfim, que se apresenta como o diferencial, alicerce capaz de conferir legitimidade e densidade aos processos de desenvolvimento local.
É fundamental que sejam geradas as condições políticas e pedagógicas para que o desenvolvimento local seja um desejo elaborado e não um disfarce.
Vale distinguir iniciativas convergentes de diferentes setores, porém em grande medida justapostas, da ação constituída a partir de problemas que requerem soluções ou caminhos integrados. Ou seja, ações baseadas na população e nas suas condições peculiares de organização (BUSS, 1999). Já do ponto de vista institucional, pode-se dizer que a questão fundamental da intersetorialidade é a ruptura das barreiras comunicacionais que impedem o diálogo entre diferentes setores, através de um código comunicacional comum (BUSS, 1999). De todo modo, é fundamental que sejam geradas as condições políticas e pedagógicas para que o desenvolvimento local seja um desejo elaborado e não um disfarce. Isto só pode se desenrolar em ambientes de confrontação e pactuação, espaços ampliados desconfinados ao mesmo tempo da fragmentação intra-estatal e da separação estado-sociedade. A criação de novas institucionalidades transetoriais é um elemento desses processos, uma vez criadas condições sociopolíticas locais. Dificilmente uma lógica desta natureza será induzida pela simples construção de novos formatos ou engenharias institucionais. Porém, a inovação institucional ou criação de novas institucionalidades tende a ser inerente a um processo que possa ser caracterizado como indutor de desenvolvimento local. Isto supõe a percepção de um domínio comum de interesse público, a disposição dos atores e mais do que isto sua mobilização. Tendo como base fundamental e necessária esta multiplicidade de forças sociais existen-
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tes, a questão da intersetorialidade ganha novo significado ao articular-se com a idéia de território e controle social.
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O caminho para a intersetorialidade parece ser o enfoque territorial, conduzindo os diversos elementos para dentro de um contexto onde o controle social é possível (CAMAROTTI; SPINK, 1999).
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Socioprodutividade e Sustentabilidade A ênfase na questão da socioprodutividade diferencia-se aqui do paradigma produtivista, alicerçado na esfera da produção de bens materiais. Na verdade, situa-se no contexto da crise da produtividade em seu sentido industrialista. Este deslocamento se identifica também com um processo de socialização das condições de produção, no sentido de seu espraiamento potencial no território, para além das unidades econômicas fechadas. Neste sentido, podese dizer que o desenvolvimento endógeno passa pela territorialização do trabalho, através do tecido social e cooperativo. A isto associa-se um deslocamento mais amplo: não é mais a inserção produtiva que legitima a cidadania e universaliza os direitos, mas esta última que torna possível a inserção produtiva (COCCO, 1999). A noção de socioprodutividade, tal como aqui utilizada, envolve portanto elementos extra-econômicos, algo que se passa no terreno da cultura e dos direitos, da possibilidade de novos vínculos, do encontro de vontades e saberes que conforma um tecido social cooperativo. Por fim, a noção de socioprodutividade pode ser ligada diretamente aos temas do desenvolvimento e da sustentabilidade, ou ao tema do desenvolvimento sustentável. A combinação de elementos como os mencionados encontra correspondência com uma alternativa de desenvolvimento humano que parte do contexto de crise e deslocamento do padrão industrialista e vai além da visão economicista, incorporando uma perspectiva multidimensional onde se interligam os aspectos de riqueza, conhecimento e poder, como elementos inseparáveis na reconstrução social do território, entendido como locus necessário de inclusão e transformação social.
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Apontar para um padrão alternativo de desenvolvimento significa também o desafio da ultrapassagem das linhas divisórias entre os que estão capacitados a promover ou a participar ativamente em uma dinâmica ininterrupta de inovação e aprendizado, e aqueles que foram, ou tendem a ser, deslocados e marginalizados pelas transformações na base técnico-produtiva (ALBAGLI; LASTRES, 1999).
A noção de sustentabilidade, assim como a de desenvolvimento, vem sendo crescentemente enfatizada em seus aspectos multidimensionais. Neste sentido, fala-se em sustentabilidade ampliada: político-institucional (democracia participativa, ampliação da esfera pública), socioeconomica (equidade, inclusão social, novos padrões de produção-circulação-consumo), ambiental (conservação, biodiversidade) e cultural (sociodiversidade). Com que significados podemos pensar o “sustentável” como algo mais que um adjetivo ou verniz, isto é, como substância identificável em processos sociais efetivos?
No contexto em que nos movemos, é possível observar que o fato de ser introduzida nos discursos de diferentes tipos de atores não quer dizer que a idéia geral de sustentabilidade, como uma nova síntese, esteja já incorporada, do ponto de vista teórico e prático, às formas de pensar e agir na sociedade (FRANCO, ALMEIDA e DE PAULA, 1998). Com que significados podemos pensar o sustentável como algo mais que um adjetivo ou verniz, isto é, como substância identificável em processos sociais efetivos? Quatro nexos valem aqui ser acentuados no adensamento deste conceito: com a questão da capacitação, da transformação social, da endogeneização e da organização em redes. Um primeiro aspecto é a centralidade ascendente da educação e da capacitação, entendidas não principalmente como repasse de conhecimentos, mas como despertar de possibilidades criativas. Menos como instrumentalização, mais como formação de sujeitos capazes de participar ativamente dos fluxos comunicacionais e materiais que afetam suas vidas e seu lugares. Neste sentido, e no contexto que se abre, educação/capacitação e sustentabilidade são indissociáveis. Quanto ao segundo nexo mencionado, é interessante ultrapassar uma visão continuísta da sustentabilidade, entendida como preservação de algo que já existe, ou como sobrevivência de práticas após um período de infil-
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tração de estímulos (na forma, por exemplo, de um programa ou projeto que se instale desde fora em algum lugar). Pois constituir padrões sustentáveis significa constituir outros padrões, também como resposta à insustentabilidade que se manifesta na exclusão social e no esgotamento ambiental. Significa, a partir das tensões estratégicas que hoje se constituem, gerar vínculos orgânicos entre excluídos, vulneráveis e semi-incluídos, assim como entre aqueles que percebem o campo movediço da incerteza quanto à duração de sua inserção (BOCAYUVA, 1998). Outro nexo a destacar corresponde à relação entre o sustentável e o endógeno. O potencial de autocriação e autogeração supõe a diversidade, a interdependência, o movimento das forças vivas de cada lugar. Envolvendo e expressando as capilaridades (e não apenas as instâncias tradicionais de poder local ), a sustentabilidade depende do protagonismo das bases da sociedade, onde efetivamente reside o endógeno.
O nexo entre sustentabilidade e organizacão em rede ganha evidência no contexto histórico concreto de reestruturação e
Por fim, questão central é a identificação entre sustentabilidade e organização em rede. Sustentabilidade diz respeito, também e principalmente, a um padrão de organização de um sistema que se mantém ao longo do tempo em virtude de ter adquirido certas características que lhe conferem capacidades autocriativas (FRANCO, 2000).
Que características seriam estas? Sistemas complexos organizados em rede teriam como características combinadas a interdependência (relações não lineares entre os membros, envolvendo múltiplos laços de realimentação), a reciclagem (o caráter cíclico, a evitação de falhas de realimentação, o resíduo como insumo e portanto não mais resíduo), a parceria (aqui no sentido amplo de cooperação e coevolução), a diversidade (a diferença na natureza e nos impulsos dos membros) e a flexibilidade (o caráter aberto, dinâmico, suscetível a rearranjos e à inovação) (CAPRA, 1997).
deslocamento de paradigmas, que cria as condições de interligação entre as questões da cidadania, do acesso ao conhecimento e da reconstrução do mundo do trabalho.
O nexo entre sustentabilidade e organizacão em rede ganha evidência no contexto histórico concreto de reestruturação e deslocamento de paradigmas, que cria as condições de interligação entre as questões da cidadania, do acesso ao conhecimento e da reconstrução do mundo do trabalho.
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A temática anti-exclusão funde-se aqui com a questão da disputa dos fluxos enquanto direito de acesso e possibilidade de criação como via de aprendizagem, construção de sujeitos (na sua diversidade e interdependência) e intervenção direta desde onde estão as pessoas e a vida de cada lugar, e não principalmente dos vetores verticais, mesmo que pretensamente alternativos face aos modelos e mecanismos dominantes.
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Mas os lugares não se resolvem sozinhos: O local como necessário e insubstituível não quer dizer, seguramente, o local como suficiente. Maior acesso ao fluxo de bens, serviços e informações significa também estar conectado com espaços mais amplos. O endógeno não se desenvolve dissociado do exógeno.
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A Título de Síntese do Documento-Base Na trajetória deste documento, partimos da retomada da noção de cidadania em seu potencial crítico-transformador, onde se articulam a questão dos direitos econômicos, sociais e culturais, a problemática anti-exclusão e a resignificação da solidariedade. A partir desta base de referência, e tomando o caso emblemático da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, foram salientados alguns aspectos crônicos da cultura política brasileira e a irrupção de dinâmicas transformadoras em relação a pressupostos e estruturas simbólicas que caracterizam essa cultura. Como questão-chave, destacamos a formação de novos sujeitos sociais, o que se liga à ampliação da esfera pública como extensão da cidadania. A questão das parcerias e da articulação em redes foram abordadas nos seus vínculos com esta temática orientadora. A seguir, percorremos sucintamente o universo experimental que vem marcando sobretudo o último decênio, no Brasil. Identifica-se um florescimento de práticas e projetos impulsionados por atores das mais diversas naturezas, onde se combinam elementos de um experimentalismo difuso com focos demonstrativos em campos estratégicos de políticas públicas. Por fim, trabalhamos com a hipótese de que estaríamos no limiar de uma transição (naturalmente não linear ou em bloco) das iniciativas pontuais, fragmentadas, com forte acento setorial ainda que não estritamente monossetoriais para uma perspectiva de ação local integrada e mesmo de desenvolvimento local. Há questões estratégicas que atualizam o tema do desenvolvimento local, considerando as mutações em curso mundialmente e sua expressão no
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...as dinâmicas geradoras de
contexto periférico e brasileiro em particular. Sugerimos que as dinâmicas geradoras de desigualdade e exclusão não podem ser desconstruídas pelo alto, ou substituídas por outros sistemas de fluxos apartados dos lugares. Desta hipótese advém uma das forças básicas da idéia de desenvolvimento local.
desigualdade e exclusão não podem ser desconstruídas pelo alto, ou substituídas por outros sistemas de fluxos apartados dos lugares. Desta hipótese advém uma das forças básicas da idéia de desenvolvimento local.
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Como ressalva, não se pretende considerar o desenvolvimento local como um desaguadouro de tudo : não cabe vender ilusões, considerando que não há fórmulas ou soluções capazes por si só de reverter a autopoiesis perversa da exclusão (SOARES, 2000). Porém, da reflexão exposta neste documento, sobressaem noções referenciais que vêm impulsionando a prática e o horizonte de diferentes atores: a questão das esferas públicas ampliadas, a perspectiva de inclusão social não-subordinada, a revitalização do local em seus nexos com as dinâmicas globais e, finalmente, a articulação entre socioprodutividade e sustentabilidade, sob uma ótica transformadora, onde a questão-chave da exclusão se vincula com a discussão de alternativas de desenvolvimento.
desenvolvimento de comunidades
Parte II Guia para a Ação
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Introdução Ao se falar das atuais iniciativas voltadas para a superação das terríveis injustiças e desigualdades que permeiam a sociedade brasileira, não podemos deixar de ressaltar o importante papel do Movimento da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida nem de um de seus principais inspiradores, Herbert de Souza, o Betinho. Um lutador, lutando ele mesmo quotidianamente contra a própria morte, voltou-se para a defesa da vida de todos os brasileiros. Uma vida melhor, mais plena, mais digna. Na abertura do caminho e no rastro do Movimento de Ação da Cidadania, muitas instituições e iniciativas estão trabalhando com objetivos semelhantes ou complementares e trabalhando juntas, somando ao invés de dispersar. Mais uma vez tendo Betinho como inspirador, pois este era um homem que somava, que acolhia, que respeitava. Seria exaustiva a lista de tais instituições e iniciativas mas sentimo-nos talvez autorizados, pelo significado e representatividade, a citar como exemplo: o Comitê de Entidades no Combate à Fome e pela Vida (COEP), cuja linha de atuação expressa bem o compromisso com os objetivos que faziam parte da utopia de Betinho. Ou de seu sonho? Ou de uma realidade possível?
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Uma empresa pública é aquela que trabalha pela nação, que trabalha por todos os habitantes de um país, e que faz os compromissos éticos fundamentais para erradicar a miséria de milhões e milhões de brasileiros e brasileiras.
Foto: arquivo IBASE
Betinho, 1995, durante palestra proferida em Furnas.
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Por que este Trabalho? O Brasil é um país de paradoxos. O mais escandaloso e cruel deles é talvez o fato de que um país que se encontra entre as dez maiores potências econômicas mundiais, está na altura do 70º lugar quando a referência são as condições de vida da população. É um país perverso para o seu povo, país da exclusão de grande parcela da população dos direitos mais básicos de cidadãos e de humanidade. Temos cerca de 30 milhões de pessoas na miséria com fome, sem moradia, sem saúde, sem emprego e renda, sem acesso à educação excluídas da vida e da cidadania. Temos ainda um enorme contingente da população que vive na pobreza, sem oportunidades e com carências de todo o tipo. O mínimo que se pode dizer dessa situação é que é profundamente injusta, vergonhosa e perigosa. O intrincado tecido que constrói uma sociedade pode ser esgarçado até o rompimento diante de tais pressões, além da dificuldade ética de convivência com uma situação tão grosseiramente injusta e cruel. Trata-se, portanto, de um grande problema que é de todos, pois todos somos partes desse tecido social. Quem pode viver plenamente satisfeito em uma sociedade como a nossa? Todos nós temos uma responsabilidade ética e concreta na redução dessas desigualdades, na construção de um país melhor para todos. Sem afetar o plano das consciências o mundo não se modifica, a transformação não acontece em profundidade e, por esta razão, há necessidade
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de uma renovação ética e cultural que valorize o Bem Comum e o Público (como um espaço de todos para todos). Daí a mudança necessária na postura das instituições estatais e públicas e também das empresas privadas, no que tange a sua responsabilidade na construção de um país melhor para todos.
Foto: João Ripper
Uma postura cidadã, em que os valores éticos sejam fortalecidos e um compromisso solidário com a melhoria da qualidade de vida da população seja estabelecido. Uma postura pró-ativa de desenvolvimento de ações sociais participativas que resgatem a cidadania de nosso povo inclusive dentro da própria instituição.
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Para que tanto Esforço? Os esforços do Movimento de Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida e de tantos outros movimentos e instituições que se voltam para a área social têm objetivos geralmente comuns, podendo, muitas vezes, apresentar diferenças quanto aos princípios e estratégias de suas ações. De modo geral os objetivos são: Disseminar o conceito de cidadania; Estimular a participação/ações participativas; Melhorar a qualidade de vida da população; Desenvolver na população um novo posicionamento social, psicológico e cultural o ser mais cidadão. Para atingir tais objetivos, os projetos estão centrados em geração de emprego e renda, educação, além de terem um forte componente humanista e solidário que, muitas vezes, é de caráter assistencial. Os princípios que orientam/norteiam as ações desenvolvidas podem ser assim descritos:
A valorização do sujeito, enquanto protagonista do processo de construção de sua própria história e de transformação da sociedade. O respeito à construção/ação coletiva, o que significa a participação ativa de diferentes segmentos e agentes sociais, envolvendo desde gru-
Foto: João Ripper
O resgate da cidadania, na perspectiva de que todos tenham acessos a todos os direitos humanos no cotidiano de suas vidas, o que implica a superação da exclusão social e, consequentemente, a conquista da equidade. Em outras palavras, a idéia é caminhar no sentido da justiça social.
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pos organizados (instituições, associações, cooperativas, entidades diversas) até indivíduos que podem, isoladamente, assumir diferentes compromissos para a realização das ações. A ênfase em ações de impacto para a transformação das comunidades, com a adequada apropriação das inovações conquistadas nos diferentes campos da vida. A valorização do local como o espaço próprio e específico para a realização de ações, visando o desenvolvimento econômico, social e cultural da população. A busca de um desenvolvimento sustentável (que perdure e não comprometa o futuro do planeta e da humanidade). Sistematizando: as ações cidadãs são aquelas que buscam melhorar a qualidade de vida das populações, no que se refere à saúde, alimentação, moradia, educação, entre outras necessidades e direitos, de modo que as pessoas vivam com dignidade, valorizando-se como participantes, reconhecendose como sujeitos construtores de uma sociedade mais justa e feliz. As ações cidadãs são, portanto, aquelas onde os sujeitos promovem a sua própria cidadania, tornam-se solidários, ativos, protagonistas de uma sociedade que se movimenta para eliminar, as desigualdades nela existentes. Daí a extrema importância do modo de conduzir o processo, pois só um trabalho gerado e desenvolvido com ampla e verdadeira participação das várias instâncias da sociedade pode atingir o que se busca. Estrategicamente, o Movimento de Ação da Cidadania se propõe a atuar de modo descentralizado, estimulando a autonomia e a pluralidade. “As diferenças ideológicas, partidárias e políticas não podem impedir que nos unamos para erradicar a indigência. Por isso esse movimento é suprapartidário, supra-ideológico. Ele é ético”.
Betinho, 1993, durante lançamento da Ação da Cidadania.
Comitês ou Conselhos Locais são considerados espaços privilegiados de convivência democrática e ao mesmo tempo podem constituir a base exe-
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cutiva que implementa as ações locais. Estas devem ser concretas e responder, inicialmente, a problemas emergenciais, para, em seguida, buscar soluções mais estruturais. Outro aspecto estratégico importante é o das parcerias, que permitem a adição de ampla gama de recursos de toda a natureza aos projetos, ao mesmo tempo que estimulam a participação de todos. Finalmente, é importante a existência de órgãos que centralizem e distribuam as informações, divulgando a proposta e estimulando a sua multiplicação nos níveis nacional, estadual e local. Em última análise, o que as várias organizações/propostas que estão voltadas para a ação cidadã buscam atingir é o desenvolvimento local, integrado e sustentável das comunidades brasileiras. Trata-se de promover ações locais integrando todos os setores e forças comunitárias, para suprir as necessidades mais imediatas da comunidade e, ao mesmo tempo, garantir que as novas condições de vida conquistadas não comprometam o seu futuro social e ambiental. Busca-se, então, desenvolver um processo que vá: despertando agentes locais; desenvolvendo potencialidades comunitárias específicas; criando núcleos locais de desenvolvimento; fomentando novos intercâmbios com outras comunidades; buscando a inovação e a melhoria da qualidade de vida de toda a população. Um processo com tais características só pode ser desenvolvido localmente, voltado para os interesses e aspirações das comunidades específicas envolvidas e com a participação ativa da população e exige, muitas vezes, a participação de assessores e agentes locais, capacitados para estimular e orientar seu desenvolvimento.
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“A variedade de programas responde à variedade de carências. Cada grupo ou organização descobre a sua vocação e enfrenta o problema que a realidade lhe coloca”.
Márcio Moreira Alves, jornalista.
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Como Desenvolver as Ações Cidadãs? Procura-se aqui desenvolver, como sugestão, uma espécie de roteiro metodológico para a implementação de ações cidadãs, a partir da sistematização de diversas experiências desenvolvidas pelo Comitê de Entidades no Combate à Fome, e pela Vida (COEP), em parceria com várias instituições. Foram estabelecidos passos ou etapas, cuja seqüência não é rígida e que devem ser adequados a cada caso: nem esgotam, nem são todos aplicáveis em todas as situações. Alguns aspectos, no entanto, são essenciais, como a participação das comunidades em todas as etapas - sem participação comunitária não há desenvolvimento sustentável. Outro aspecto, cuja importância precisa ser destacada, é a presença na comunidade, desde o início do projeto, de assessores e de agentes locais. Os assessores são pessoas que podem ajudar a deflagrar o processo de ação. Sua colaboração pode ser utilizada para organizar as reuniões, orientar as discussões e sistematizá-las de modo a obter resultados e conclusões, ao mesmo tempo que pode estimular a participação de outras pessoas da própria comunidade no sentido de passarem a conduzir todo o processo. A atuação desses assessores deve, portanto, provocar o surgimento ou o aperfeiçoamento de agentes locais , membros da comunidade que podem assumir a coordenação das ações, mobilizando continuamente a população, na busca da promoção e da autonomia da comunidade.
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A seguir, as etapas desse trabalho.
3 Contato com a comunidade
4 Preparação e Realização de Debate
2 Estudo Prévio e Seleção da Localidade para Atuação
1 Iniciativa e Contatos Preliminares
5 Capacitação dos Atores sociais
ações cidadãs
6 Elaboração de Diagnóstico Local
7 Estabelecimento da Agenda Local 10 Acompanhamento e Avaliação
9 Execução das Ações
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8 Busca de parcerias
Iniciativa e Contatos Preliminares Diante de um problema identificado em uma ou mesmo em várias localidades é preciso que haja uma iniciativa, um impulso inicial para buscar a sua solução. Esse primeiro passo pode acontecer em diferentes instâncias. A iniciativa pode ser da própria comunidade , de grupos comunitários que vivem a situação-problema e lutam para solucioná-la, agindo em mutirão, buscando o apoio do poder público local e/ou de instituições com as quais tenha a oportunidade de entrar em contato. Muitas vezes, a iniciativa parte de uma instituição ou empresa que se mobiliza como um todo , em vários casos, utilizando o seu saber, o seu próprio potencial técnico, para enfrentar problemas graves, ajudando a comunidade a buscar alternativas para revertê-los, procurando formas de equacioná-los. É comum que um grupo institucional se mobilize em torno de um problema, cuja resposta pode estar vinculada à sua especialidade profissional ou à área de atuação de sua empresa, até mesmo porque é mais fácil ter e viabilizar idéias quanto às possíveis soluções.
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Projeto Cooperativa de Trabalhadores Autônomos
Tudo começou com a tomada de consciência de um grupo de funcionários da uma Instituição localizada numa região, cuja vizinhança era constituída de comunidades muito pobres, apresentando vários problemas ambientais econômicos e sociais: fome, miséria, elevado nível de desemprego, emprego de baixa remuneração, violência, graves problemas de saúde, falta de saneamento e ambiente profundamente degradado. A idéia era juntar forças, promover a troca entre dois campos do saber – o científico e o popular. Assim, iniciouse um grande movimento de mobilização dos moradores, dos presidentes de associações locais, para juntos com a Instituição buscarem uma saída para a situação vigente. Após um processo amplamente participativo, surgiu a idéia da criação de uma cooperativa mista de trabalho, de produção e prestadora de serviço, pronta para atuar em uma ampla gama de atividades de apoio, gerando renda para seus cooperados. Nesse contexto, a Instituição pode ajudar a comunidade, apoiando-a sempre que
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ela necessitava de seus conhecimentos ou recursos.
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Outras vezes, a iniciativa parte de um único indivíduo , que pode ser integrante de uma instituição ou empresa (como no caso de muitos que hoje fazem parte do COEP), que sensibilizado por um problema concreto, desenvolve uma ação mobilizadora dentro de sua instituição, busca apoio inicial, podendo envolver vários setores e níveis, estabelecendo compromissos para solucioná-lo.
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Projeto para Atendimento a uma Região de Seca no Interior do Brasil
Uma funcionária de uma empresa que atendia à região castigada pela seca, sensibilizou-se com a situação dramática da população. Mobilizou outros funcionários da empresa, criando uma equipe para arrecadar e distribuir alimentos nas comunidades. Ao entrar em contato com a Prefeitura e visitar os locais a equipe constatou a real situação das comunidades – distribuir alimentos era muito pouco. Nasceu daí um projeto mais amplo de apoio a essas comunidades para descobrirem novas formas de trabalho e de geração de renda, levando a melhores condições de vida. Hoje, com a participação de outras instituições especializadas nos assuntos pertinentes à vocação e possibilidades da região, já se começa a desenvolver atividades de pequena indústria e comercialização dos produtos. Tudo porque, alguém se sensibilizou, tomou iniciativas, mobilizou outras pessoas e lançaram-se ao trabalho.
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Com freqüência, é difícil mobilizar as pessoas para agir em torno de uma situação ou causa que nos sensibilizou, pois as pessoas são diferentes e se envolvem, na maioria das vezes, quando seus sentimentos particulares são tocados. Por outro lado, algumas situações extremas ou dramáticas podem tocar, sensibilizar, de alguma maneira, várias pessoas. Por isso, a mobilização de um grupo ou até de toda uma instituição ou empresa exige, de um modo geral, a realização de exposições/debates em torno do problema, a utilização de recursos de divulgação e, principalmente, visitas ao local em questão nada como ver de perto o problema, conversar com as pessoas que o vivem para se tornar solidário. De qualquer modo, as palavras-chave aqui são sensibilização e mobilização . É assim que tudo começa. A capacidade de se indignar, de
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se escandalizar diante de qualquer forma de violência, privação ou humilhação deve ser provocada, estimulada, partilhada e é preciso criar espaços onde esta capacidade seja expressa, impulsionando à ação.
Estudo Prévio e Seleção da Localidade para Atuação
Tal estudo deve utilizar os dados existentes em relação a essas comunidades (censos, pesquisas, levantamentos realizados por instituições e pela Prefeitura), além do próprio conhecimento que as pessoas envolvidas tenham da área.
Foto: João Ripper
Antes de tudo, até mesmo para fundamentar a seleção de locais para a atuação é importante o desenvolvimento de um estudo prévio sobre as comunidades onde existe o problema ou há a intenção, a possibilidade de desenvolver o trabalho.
Informações preliminares como: população, número de famílias, atividade(s) econômica(s), condições de sobrevivência, escolaridade, condições sanitárias, atendimento de saúde, moradia, recursos investidos na área, lideranças locais, possibilidades de desenvolvimento etc. são fundamentais desde o início do trabalho e antes mesmo de se chegar à comunidade com qualquer proposta. Quem desenvolve tal estudo é geralmente a instituição e/ou as pessoas que tomaram a iniciativa e se propõem a desencadear o processo. Há casos em que é possível contratar uma equipe técnica especializada neste tipo de pesquisa. É a partir desse estudo inicial que muitas decisões preliminares podem ser tomadas, como por exemplo: qual o tipo de ação a desenvolver, onde, em que área ou abrangência, quais os primeiros passos e parcerias iniciais mais indicadas, entre outras. É também a partir dele que são levantados os problemas mais evidentes que poderão ser ratificados e analisados junto com a comunidade.
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Vale enfatizar que, quando a idéia de desenvolver as ações cidadãs parte de pessoas que integram uma instituição ou dela como um todo, este estudo é essencial. Só assim é possível ter um primeiro diagnóstico dos problemas mais significativos, fazer uma previsão das localidades que podem ser atingidas, com que abrangência e com que ações, em função dos recursos inicialmente disponíveis. Pode-se ainda ter uma visão, pelo menos geral, de como a instituição poderia ajudar, apoiar todo o trabalho.
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Projeto Comunitário para Beneficiamento da Produção Rural
Era preciso melhorar o beneficiamento da produção de pequenos produtores rurais, que tinham renda muito baixa e muitas dificuldades de sobrevivência digna. O projeto visava garantir um espaço Comunitário, onde esse beneficiamento pudesse ser mais rentável, melhorando a qualidade de vida das famílias envolvidas. O projeto foi desenvolvido com a coordenação de empresa estatal, em parceria com várias instituições (nacionais e internacionais) Diante das inúmeras localidades com o mesmo problema e da limitação inicial de recursos (físicos, financeiros e humanos), além da falta de experiência prévia em tal tipo de trabalho, a empresa coordenadora fez uma seleção das comunidades que seriam beneficiadas pelo projeto. Usou para isso alguns critérios por ela estabelecidos e que garantiriam, até certo ponto, os investimentos a serem feitos, tais como: • Existência de produtores rurais formalmente associados; • Existência de produção familiar de alimentos básicos; • Existência de locais adequados e outros . Ao ser selecionado, a comunidade se comprometia a entrar com a mão-de-obra necessária à implantação do projeto. A união de forças está funcionando. Muitos produtores rurais, em várias comunidades, levam hoje uma vida melhor pela geração de emprego e renda e pela mobilização das comunidades em perseguição a seus objetivos.
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A partir do desenvolvimento das ações, da agregação de novas parcerias e de solicitações de outras comunidades, a abrangência, a área de trabalho pode e deve ser, progressivamente, ampliada. Várias outras localidades podem ser envolvidas.
Contato com a(s) Comunidade(s) Este é um momento crucial para o futuro desenvolvimento das ações, que exige muito respeito, tato, confiança no potencial das pessoas, trabalhando juntos com objetivos comuns e habilidade no relacionamento humano. Destaca-se aqui o papel dos assessores - pessoas que devem estar preparadas para ajudar nesta tarefa. Geralmente, os primeiros contatos são feitos por meio de entrevistas. Todas as representações da comunidade devem ser ouvidas: os poderes locais constituídos (Prefeitura, Secretarias do Município, Câmara de Vereadores), os representantes das instituições públicas, das empresas privadas, das organizações da sociedade civil e das organizações comunitárias existentes na área. Quanto mais lideranças forem contatadas e envolvidas, melhor. Já aqui, deve-se fazer uma divulgação da natureza dos problemas a serem discutidos, chamando as pessoas à participação. Em conjunto com as lideranças locais e demais entidades, pode-se usar a imprensa escrita e falada, cartazes, panfletos, alto-falantes, a divulgação face-a-face, etc. Neste momento o objetivo é apresentar o problema e expressar a disposição para colaborar na sua solução. É importante ainda ouvir a opinião das lideranças em relação ao assunto. Também é possível começar a estabelecer algumas novas parcerias , que vão ser sedimentadas mais tarde, no decorrer do processo. Esta é, principalmente, a fase do diálogo , que implica respeito, responsabilidades, determinação, compromisso e envolvimento com objetivos. Diálogo significativo que reconhece a pluralidade e diversidade das comunidades e que visa promover a integração de todos na realização das ações.
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Cabe, portanto, enfatizar a importância da participação ativa do maior número possível de pessoas e lideranças no processo de desenvolvimento local, que só é possível se houver envolvimento verdadeiro de amplas e diversas camadas da população local trata-se de uma construção coletiva , em que todos têm papéis importantes em todas as etapas do processo. Vale ressaltar também que, nesta etapa, é essencial iniciar o processo de identificação, valorização e socialização de saberes e práticas construídas pela própria comunidade que oferecem elementos positivos para o desenvolvimento local.
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Projeto de Construção de um Futuro Melhor para os Jovens
Ciente do risco social que correm os jovens sem estudo ou trabalho, um grupo de funcionários de uma empresa de computação resolveu oferecer seus serviços, criando uma alternativa de educação associada à profissionalização de jovens na faixa de 13 a 17 anos. A abordagem da comunidade foi cuidadosa. Era preciso conscientizar e mobilizar seus membros para uma ação preventiva, impedindo que adolescente fossem obrigados a trabalhar em atividades injustas ou marginais. Muitas conversas, muitas reuniões, um diálogo intenso para dar origem às oficinas de informática. E os resultados foram tão significativos que hoje, através de diferentes parcerias, em diferentes regiões do país, tal experiência se multiplicou, criando condições para a construção de uma nação cidadã, através da adoção de estratégias de erradicação do trabalho juvenil perigoso e exploratório.
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Preparação e Realização de Debates A partir dos primeiros contatos, já é possível começar a organizar espaços de discussão , verdadeiros fóruns de debate , com a coordenação de uma ou várias das instituições e/ou grupos para garantir, desde o início, o envolvimento de muitas pessoas em todo o processo de trabalho. São nesses momentos que a comunidade se reúne para discutir, efetivamente, os seus problemas. Quanto mais ampla a participação, e mais debatidas as questões, melhor.
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Nessa reunião (ou reuniões) é apresentado o estudo prévio sobre a localidade. Trata-se de um ponto de partida para a discussão dos problemas motivo inicial de toda a mobilização. A atuação dos assessores e dos agentes locais deve estar voltada para que o grupo analise e aperfeiçoe os estudos iniciais, chegando a um diagnóstico da situação , onde novos problemas podem e devem ser apontados. Às vezes, é necessária a realização de mais pesquisas de caráter participativo, de modo que se tenha um diagnóstico ainda mais profundo de toda a situação. Vale lembrar que as comunidades são plurais também no que diz respeito às suas necessidades e interesses. Um aspecto a ressaltar na realização dos debates é que os agentes responsáveis pelo seu desenvolvimento devem chegar, ao final de cada reunião, a uma síntese conjunta do que foi discutido e decidido. Esta pode ser consolidada em um pequeno documento que servirá de base para as próximas reuniões e/ou ações. Muitas vezes, isto é facilitado se os agentes dispõem de um instrumental simples, com os principais aspectos a serem registrados e posteriormente sistematizados, no caso da realização de várias reuniões. Durante as reuniões deve-se dar espaço para confrontos de idéias, trocas de opiniões e experiências . Os eventuais conflitos e/ou tensões devem ser considerados como inerentes a um processo, a um movimento de construção democrática. É também durante os fóruns que pode ser organizado o Conselho ou Comitê , com a participação do governo local e da sociedade civil, integrando as lideranças locais, as pessoas interessadas da localidade e as organizações já existentes na comunidade. Podem ser incorporados profissionais eventuais, cuja participação técnica seja importante para concretizar o trabalho. O Conselho ou Comitê tende a se tornar um órgão executivo que ajuda, portanto, a viabilizar diferentes projetos e ações cidadãs. Com o tempo, à medida que o projeto se torna mais complexo, o Conselho ou Comitê pode organizar a sua própria equipe técnica, com profissionais cedidos pelas instituições, voluntários ou contratados, dependendo dos recursos financeiros disponíveis.
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Projeto Comunitário de Melhoria da Alimentação Básica e Renda Complementar
O projeto visa a alimentação básica para famílias carentes e uma renda complementar, por meio da criação de animais leiteiros, e foi desenvolvido em região de semi-árido. Contou com inúmeros parceiros, desde a Paróquia local até empresas governamentais especializadas (Agropecuária), instituições internacionais, Prefeituras, empresas governamentais ou privadas de financiamento, líderes comunitários etc. O projeto de transferência e difusão de tecnologia para a agricultura familiar iniciou-se com um diagnóstico agro-sócio-econômico das propriedades necessitadas. O segundo passo, da maior importância, foi a realização de um Fórum institucional, onde foram discutidos os diagnósticos, as prioridades e definidas as ações – foi o momento do planejamento. A partir daí foi estabelecida uma Rede de Difusores por município (com membros das famílias participantes), que foram os primeiros capacitados na área de produção animal, gestão, nutrição, processamento de leite e carne, etc. Num segundo momento, os próprios produtores foram capacitados. Hoje o projeto vem se ampliando, com a criação dos abatedouros municipais ou comunitários, e continua se aperfeiçoando com pesquisa de mercado e possibilidade de implantação de processos agro-industriais. Foram feitas capacitações em cortes de carcaças, conservação e armazenagem da pele, fabricação de embutidos e de queijos e doces de leite.
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Capacitação dos Atores Sociais Num país com graves carências educacionais como o nosso, o simples fato de capacitar as pessoas da comunidade, em vários níveis e com vários conteúdos imprescindíveis à realização das ações cidadãs, já é um passo importante para a modificação de suas condições de vida.
Foto: João Ripper
Na verdade, estamos falando, em primeiro lugar, de uma capacitação que tem como objetivo maior preparar as pessoas para colocarem um projeto de desenvolvimento em marcha, cujo pano de fundo são as ações cidadãs tal como já foram definidas anteriormente. Trata-se aqui de desenvolver um processo educativo no sentido de preparar todos os participantes das ações e especialmente as lideranças para atu-
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arem melhor, criarem novas alternativas de ação e tornarem a comunidade cada vez mais autônoma na busca do seu desenvolvimento. Nos momentos de capacitação encontram-se, de um lado, aspirações e necessidades individuais e coletivas e, de outro, conceitos, métodos e técnicas que podem ajudar a tornar as pessoas mais sensíveis para os problemas da comunidade e mais preparadas para o encaminhamento das melhores soluções. Os sujeitos a serem capacitados são lideres, empresários, agentes comunitários, participantes das organizações comunitárias e ONGS, lideranças de todo tipo e a população ligada, de alguma forma, ao projeto de ação. Os temas vão desde temas gerais como elementos para uma pesquisa participativa, gestão, planejamento, acompanhamento e avaliação até assuntos específicos, estreitamente ligados à natureza da ação e dependem dos projetos e das necessidades surgidas. Esta amplitude de temas é importante para que as ações sejam efetivas e resultados concretos sejam alcançados. Cabe ainda lembrar que os momentos de capacitação são também oportunidades de troca de informações, de valorização e apropriação de saberes e práticas presentes na comunidade, de estabelecimento de relações mais próximas, de união dos participantes. A idéia é viver, nesta etapa, um processo educativo que estimule a prática dialógica, participativa e democrática, que seja sustentada durante todo o processo de desenvolvimento das ações locais.
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Projeto de Construção de Casas Populares
Trata-se de uma proposta de propiciar a famílias carentes condições básicas de sobrevivência, identidade perante a sociedade e também resgatar a sua dignidade, através de moradia digna. É um trabalho em mutirão, no qual as famílias constróem suas casas. A idéia partiu de um engenheiro e se desenvolveu pela adesão de órgãos públicos, comunidade, igreja, Prefeitura, iniciativa privada, líderes comunitários. A Igreja Matriz é o ponto referencial para a mobilização de equipes que são treinadas e equipadas para trabalhar tanto em demolições como na reciclagem do material e na construção das casas. Estas equipes são capacitadas e acompanhadas em seu trabalho por técnicos em engenharia civil e estagiários em engenharia.
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As famílias são cadastradas, selecionadas e, em reunião, interessam-se pelo projeto e se comprometem a trabalhar até a conclusão da última casa do grupo, geralmente de 10 famílias. O material recolhido é cadastrado e reciclado, e um projeto elaborado para cada casa. Muitas casas já foram construídas, as condições de vida dessas famílias melhoraram, sua dignidade foi em parte resgatada até pela percepção de que são capazes, de que a união faz a força, além da capacitação em técnicas que podem vir a ser uma profissão.
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Essas capacitações podem ser realizadas: pelos próprios recursos humanos locais, isto é, pessoas da comunidade que conheçam determinado assunto, pelos especialistas ligados a parceiros institucionais (o mais comum) e, ainda, por técnicos especializados, especialmente contratados. O importante é que esse processo de capacitação não tenha fim cada tema gerando novas necessidades de capacitação, cada grupo capacitando outros grupos, pois o aperfeiçoamento progressivo não deve terminar nunca.
Elaboração de Diagnóstico Local Conhecer profundamente a comunidade onde o trabalho vai ser realizado é essencial para que as ações sejam respostas verdadeiras às necessidades e interesses de todos. Por isso, o diagnóstico da situação local é um instrumento básico para nortear o processo de planejamento das ações cidadãs. Tal diagnóstico vai sendo construído desde o primeiro momento, quer dizer, desde o estudo prévio sobre a localidade. Estudo que é analisado, complementado e até revisto ao longo dos fóruns de debate e que pode ser enriquecido e aperfeiçoado por outras pesquisas participativas planejadas e coordenadas pelo grupo executivo local - Conselho ou Comitê. É importante que o diagnóstico seja sistematizado em um mapa da situação e amplamente discutido durante reunião, com a maior participação possível das lideranças e da população envolvida. Quanto mais participativo o diagnóstico, mais oportunidades de envolvimento real da população nas ações, mais estas passam a ser da comunidade, por ela desenvolvidas e gerenciadas.
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O diagnóstico é fundamental, pois além de permitir conhecer, de modo claro e objetivo, o contexto local, vai ajudar a definir as prioridades de ação, verificar os recursos disponíveis, identificar os limites e possibilidades e definir as parcerias, entre outros elementos essenciais ao planejamento do trabalho. Cabe ressaltar que, ao longo de todo o processo, o diagnóstico precisa ser revisto e atualizado, já que a realidade é dinâmica e vai mudando, inclusive, como resultado das ações que vão sendo implementadas.
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Projeto Caranguejo no Litoral do Brasil
Para orientar o planejamento e a realização das ações, visando a melhoria da qualidade de vida dos catadores de caranguejo foi feito um diagnóstico local. O estudo em questão priorizava a compreensão da relação entre as atividades dos catadores e o meio ambiente, objetivando: • Caraterizar o perfil sócio-econômico dos catadores de caranguejo; • Definir o funcionamento do ecossistema do manguezal; • Escolher, após o diagnóstico, a área onde seria realizado o projeto piloto. Para a concretização do estudo foram feitas visitas preliminares a várias comunidades, aplicados questionários e realizadas diferentes entrevistas, cujos dados consubstanciaram o diagnóstico da situação local. Foi possível, desse modo, identificar a estrutura familiar dos catadores, as características de suas casas, o nível de escolaridade, as atividades que desenvolviam antes de serem catadores, a maneira como realizavam a atividade de catação, a natureza da produção, as formas de comercialização, as principais necessidades dos catadores, os impactos ambientais, e as alternativas para a preservação do ambiente natural.
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Estabelecimento da Agenda Local Esta é a etapa de planejamento das ações cidadãs , que devem responder ao diagnóstico formulado, buscando solucionar os problemas percebidos e constatados. É fundamental que o planejamento seja, realmente, participativo, isto é, todas as forças da comunidade, suas lideranças e população devem participar deste momento em que se traçam as ações a serem desenvolvidas. Por isso, o planejamento deve ser realizado, pelo menos em suas linhas maiores, em reunião(ões) muito bem preparada(s), com apoio de materiais como quadros, esquemas, folhas grandes de papel para registro das sugestões, etc.
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De modo geral, a primeira tarefa é definir, a partir do diagnóstico, as prioridades de ação, para evitar a dispersão de esforços e a fragmentação excessiva das ações. É importante garantir a viabilidade das ações/projetos desde o início. Isto é necessário até mesmo para manter o pessoal engajado, mobilizado, comprometido. Listadas as ações prioritárias para atender às necessidades da comunidade, elas devem ser ordenadas e, então, identificados e buscados os recursos humanos, físicos e financeiros necessários para desenvolvê-las. É hora de designar responsáveis pela implementação de cada uma delas e estabelecer um cronograma de execução das atividades. O detalhamento desse planejamento, bem como a sua sistematização final ficam, geralmente, a cargo da equipe técnica que apoia o projeto e/ou do Comitê ou Conselho.
Foto: João Ripper
Vale ressaltar aqui três pontos importantes:
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é, muitas vezes, estratégico iniciar o processo para o desenvolvimento local por um projeto-gerador, uma espécie de projeto prioritário que demande ações concretas e que tenha boas oportunidades de sucesso. Este projeto pode ser um desencadeador de ações futuras mais complexas e de desenvolvimento mais amplo da comunidade.
a agenda local, assim como o diagnóstico, deve ser discutida em vários níveis, com cada grupo das pequenas localidades envolvidas, inclusive, com as várias associações existentes ou em formação que não participaram da(s) reunião(ões) mais ampla(s).
a descontinuidade administrativa e/ou de financiamento podem ser sérios entraves ao desenvolvimento do processo por esta razão o planejamento deve prever tais circunstâncias. A maneira de garantir, até certo ponto a continuidade do projeto, é procurar estabelecer acordos formais (assinatura de convênios) com os parceiros.
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Projeto de Melhoria de Qualidade de Vida através do Manejo Pesqueiro Adequado
Trata-se de uma proposta de desenvolvimento que busca um manejo adequado de açudes, com ênfase para um sistema pesqueiro eficiente e de baixo custo, alcançado com a participação ativa das comunidades usuárias. Os objetivos a atingir são a redução da pesca predatória (sustentabilidade), aumento da produção de peixes com estabelecimento de um sistema de controle dessa produção, criação de uma metodologia de peixamento dos açudes, criação de empreendimentos paralelos e de Associações de Comunidades Pesqueiras (co-gestão de reservatórios públicos) e melhoria da qualidade de vida da população envolvida com resgate de sua cidadania. Os parceiros são instituições governamentais de vários níveis e as comunidades envolvidas. Neste projeto foram essenciais as reuniões com representantes comunitários para: • reflexão sobre a ação humana nos ecossistemas; • diagnóstico da área e planejamento. A partir daí, as reuniões e propostas passaram a ser discutidas nas comunidades, distribuídas em folhetos, até se chegar a um planejamento participativo das ações. Foram firmados, em Congressos de Pescadores, os Acordos de Pesca; nas escolas da área foi desenvolvido um trabalho de Educação Ambiental; agentes locais foram capacitados – professores, lideranças comunitárias; ações de combate às pragas foram desenvolvidas, em mutirão; cursos visando a melhoria da organização associativa dos participantes foram realizados; estudos sobre o peixamento adequado dos açudes vem sendo realizados. Os resultados são evidentes – melhoria de qualidade de vida dos pescadores e a conquista progressiva de sua cidadania. O caminho percorrido foi a participação ativa das comunidades usuárias no planejamento, na realização das ações e na sua avaliação.
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Busca de parcerias Eis aqui um aspecto da maior importância no desenvolvimento do processo. As parcerias são fundamentais em todos os momentos, em vários níveis e as necessidades/possibilidades de novas parcerias nunca se esgotam. Por meio das parcerias somam-se recursos de toda a natureza (financeiros, físicos, técnicos, humanos), sem falar do apoio psicológico que o envolvimento de muitas instituições/pessoas pode trazer aos diretamente envolvidos no problema.
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A cada nova etapa do processo do início até a realização propriamente dita das ações diferentes parcerias devem ser agregadas , trazendo novas forças e recursos ao projeto e garantindo, muitas vezes, a sua continuidade. As várias experiências de trabalho têm mostrado como é precioso, para o desenvolvimento do processo pretendido, o trabalho conjunto do poder público local, instituições públicas e privadas, sociedade civil (as ONGs, por exemplo), organizações e lideranças comunitárias todos juntos constituem uma força viva e impulsionadora que pode levar á frente ações ousadas, inovadoras e mais cidadãs.
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Projeto de Assentamento de Pequenos Agricultores
Nessa área da localidade nada existia. Como assentar aí, na terra disponível, tantas famílias? Só com o esforço conjunto de inúmeras instituições públicas e privadas. A Prefeitura começou, abrindo estradas, tornando a área viável para o assentamento. Outras instituições providenciaram o que era de sua alçada – água (poço) e luz. Programas de crédito governamentais entraram com os financiamentos enquanto empresas privadas colaboraram com o fornecimento de insumos e de tecnologia (agroindustrialização). Foi promovida a organização social dos produtores (o que deflagrou o processo) enquanto outra organização cuidava especificamente das parcerias institucionais que viabilizaram o trabalho. Hoje o assentamento tem Centro Comunitário, escolas, uma agroindústria em pleno funcionamento, geração de emprego e renda, e pretende expandir suas atividades. Uma vida melhor para todos os envolvidos.
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Com a Agenda Local elaborada, o Conselho ou Comitê, agora de posse da definição de propostas concretas de ação, deve buscar novas parcerias e consolidar as já acordadas como instituições, que possam colaborar com apoio financeiro, técnico e/ou com a capacitação dos atores sociais, entre outros. Isto vai facilitar e viabilizar a execução das ações. Por outro lado, é também o momento de buscar novamente uma integração com ações governamentais de vários níveis, Nacional, Estadual, Municipal, que aportem ao projeto recursos e estímulo, criando uma sinergia fortalecedora do processo em desenvolvimento.
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Execução das ações
Quem age é a própria população envolvida, estimulada e orientada pelos agentes (externos e locais), já capacitados para exercer este papel. De modo geral, cabe ao Conselho ou Comitê coordenar as atividades, com a ajuda das instituições envolvidas (parceiros) e do poder público local. Este é um ponto delicado, pois é importante que haja uma coordenação do trabalho que não limite a participação das lideranças, da população e das instituições envolvidas e, ao mesmo tempo, procure integrar as inúmeras forças e interesses existentes na comunidade em torno dos objetivos comuns.
Foto: João Ripper
O que vai orientar o desencadeamento das ações é a Agenda Local, que também deve ser reajustada, atualizada à medida que as atividades são desenvolvidas e aparecem novas necessidades.
Durante o desenvolvimento das ações, são essenciais as reuniões de avaliação e replanejamento, em todos os níveis, porque é a partir delas que podem ser feitas algumas alterações nas atividades previstas na Agenda Local e, muitas vezes, mudanças mais profundas, de orientação geral do projeto. É importante ter em mente que, ao longo da execução das ações, o tempo todo, estamos aprendendo. Trata-se de aprender fazendo , de se educar na própria ação . Cabe ao Conselho marcar tais reuniões, promover o preparo dos agentes que vão realizá-las e sistematizar e divulgar seus resultados. A divulgação de todo o desenvolvimento do trabalho é de suma importância. Quanto mais o processo em andamento e seus resultados forem visíveis na comunidade, melhor: mais pessoas vão se envolver, mais credibilidade será obtida e isto dá mais força e confiança a todos. Para isso, devem ser usados todos os recursos disponíveis na comunidade -imprensa, rádio, panfletos, cartazes, relatórios, reuniões, visitas aos locais onde se desenvolvem as ações, etc.
Acompanhamento e avaliação Acompanhar o que está acontecendo e avaliar se os objetivos estão sendo atingidos é tarefa de todos. As comunidades, as lideranças, os agentes, as instituições parceiras e o Conselho ou Comitê fazem isso muitas
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vezes, mas é importante que haja uma sistematização desses processos para que o planejamento seja reorientado, a cada passo, em direção aos objetivos e, até mesmo, estes sejam revistos, quando necessário. Evidentemente, cabe ao Conselho coordenar essas atividades, organizando equipes de acompanhamento e avaliação, criando instrumentais para isso, etc. Avalia-se o processo desenvolvido para corrigi-lo, para verificar seus resultados imediatos e, a longo prazo, analisar os impacto das ações na população. Cumpridas todas essas etapas está desencadeado um processo, cujas ações voltam-se para a melhoria da qualidade de vida da população local, de modo geral, a partir de projetos com finalidades bem concretas e que podem ser atingidas a curto prazo. E depois? Para que se chegue realmente a um processo de desenvolvimento local é essencial que haja uma realimentação constante do processo , novas necessidades surjam e sejam incorporadas ao planejamento. Assim, um projeto que se inicia com algumas ações bem objetivas desenvolve-se como numa espiral: levantando novas ações; aumentando a amplitude dessas ações; aperfeiçoando-as; atingindo novos níveis de organização das comunidades; buscando objetivos cada vez mais amplos e abrangentes; tornando as comunidades cada vez mais autônomas. A idéia básica é ir criando, ao longo dos trabalhos, uma rede de projetos e ações que permitam que a comunidade tenha um papel ativo, participando de forma autônoma, crítica e criativa, na construção de seu próprio desenvolvimento.
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Projeto de Melhoria da Qualidade de Vida de Populações por meio da Atividade Artesanal
O enfoque é a capacitação de grupos de artesãos, voltada para o trabalho participativo e inserção no sistema de produção, mercado de trabalho e de consumo. O objetivo é encontrar alternativas econômicas para a melhoria de vida de populações no limiar da sobrevivência. Os artesãos foram reunidos em núcleos de produção informal, em vários municípios, tendo sido capacitados inicialmente em cestaria e trançado, rendas e bordado, cerâmica e costura. A metodologia foi de aprendizagem em serviço, já com produção de peças que rendam uma remuneração ao artesão. Feita uma primeira avaliação, os maiores problemas encontrados, além da própria produção das peças, foram os de comercialização e capacidade gerencial. Assim, a capacitação voltou-se também para a área de gestão, além da área técnica (produção). Finalmente, apoiados em novas avaliações e dificuldades surgidas, os artesãos decidiram criar uma cooperativa de produção que pudesse garantir a comercialização dos produtos e gerida por eles mesmos. A cooperativa é hoje uma empresa que coordena os artesãos, é responsável pela capacitação deles e administra o processo de produção. Os parceiros para o desenvolvimento do projeto foram órgãos federais e estaduais e organizações não governamentais, que hoje, por conta da autonomia que as comunidades adquiriram com sua cooperativa, já colaboram apenas quando é necessário.
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Quadro Síntese Metodológico
ETAPAS
CARACTERÍSTICAS
1 Iniciativa e contatos preliminares
Quem começa a ação: A própria comunidade Indivíduos ou grupos de instituições ou empresas
2 Estudo prévio e seleção da localidade para atuação
Como conhecer a comunidade e estudar seus problemas: Levantamento e análise dos dados existentes, geralmente desenvolvido por instituições O estudo pode ir sendo ampliado progressivamente O objetivo é a seleção das localidades onde se vai trabalhar
3 Contato com a comunidade
Como são os primeiros contatos com a comunidade: Participação dos assessores Realização de entrevistas com as lideranças locais Convocação dos diferentes grupos da comunidade Apresentação e discussão inicial dos problemas
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4 Preparação e realização de debate
Para quê as reuniões: Apresentação do estudo prévio da localidade e sua discussão Esboço do diagnóstico da situação Organização do órgão executivo (Conselho ou Comitê)
5 Capacitação dos atores sociais
Como fazer: Em todos os níveis: lideranças, empresários, representantes de diferentes organizações, agentes comunitários, população em geral Trabalhando temas de acordo com: a necessidade, estudo do meio, gestão, planejamento, avaliação, assuntos técnicos específicos.
6 Elaboração de Diagnóstico Local
Como fazer o mapa da situação local: Partir do estudo prévio Realizado de modo participativo durante as reuniões de debate Pode ser complementado por pesquisas participativas
7 Estabelecimento da Agenda Local
Quais as suas características: Planejamento conjunto das ações a serem desenvolvidas Realizada em reuniões, de modo participativo Responde ao diagnóstico e propõe soluções (ações) Estabelece prioridades, ações e recursos necessários Sistematização e redação final geralmente realizada por equipe técnica (Conselho ou Comitê).
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8 Busca de parcerias Em que momentos: A colaboração deve ser mobilizada desde o início dos trabalhos A partir do planejamento, agregar novas parcerias que apoiem o projeto Como as parcerias podem dar apoio: Com recursos financeiros, físicos, técnicos e/ou humanos Na capacitação dos atores sociais Na integração com ações governamentais
9 Execução das ações
O que é necessário observar: Estar orientada pela Agenda Local Fazer avaliação e replanejamento constantes e participativos Contar sempre com o estímulo e a orientação dos agentes Contar com a intensa participação da comunidade
10 Acompanhamento e avaliação
Quais as suas características: Tem a função de reorientar o planejamento É tarefa de todos os envolvidos no projeto Deve ser contínua e progressiva para a realimentação mais ampla do processo.
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Uma Janela Aberta ao Futuro: Criando e Recriando Novas Ações Cidadãs
O movimento da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e Pela Vida somado a outros movimentos contribuíram para fazer dos anos 90 a década das lutas cívicas pela cidadania. Em especial, o ano de 1993, passará à história como o ano do nascimento de uma nova consciência política e da importância da cidadania. Podemos reafirmar que Herbert de Souza, o Betinho, é daqueles homens que teve a difícil arte de fazer com que a força de suas utopias, sonhos, idéias e forma de viver ultrapassassem sua própria pessoa e se tornassem aspirações e práticas para qualquer cidadão ou cidadã do Brasil ou de qualquer lugar do planeta. É um legado que continua fazendo história toda vez que novas ações cidadãs são criadas, recriadas, geradas... Analisando a conjuntura atual, cada vez se torna mais evidente que vivemos num país estruturalmente excludente e que os grupos de poder econômico e político estimulam o processo de acumulação e concentração de capital nas mãos de alguns e o progressivo empobrecimento de muitos.
Diante dessa situação muitos grupos da sociedade civil buscam alternativas viáveis de futuro e, através de propostas e realizações concretas, tentam propiciar um modelo novo de sociedade que renove e resignifique as teorias e as práticas sociais. Urge portanto, continuar dinamizando as discussões sobre cidadania, articulada às questões de direitos humanos e democracia. Mesmo complexas e
Foto: João Ripper
As previsões de futuro apontam para um período de crise generalizada e de mudanças profundas.
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difíceis, elas manifestam uma vontade persistente de encontrar novas utopias, novas metas, novas realizações. Estas aspirações buscam no fundo uma cidadania não só em referência ao Estado mas uma cidadania voltada para a sociedade como lugar privilegiado de criação de relações mais democráticas, de experiências que contribuam para um desenvolvimento integral e mais humano . Nesse sentido, continuamos sendo testemunhas que, inúmeras ações cidadãs geradas no país e que se situam dentro dessa orientação, buscam empoderar os cidadãos, através da participação de todos, favorecendo processos democráticos. Foto: João Ripper
A conquista deste tipo de cidadania leva a uma cidadania plena para todos e na qual os cidadãos sejam conscientes do poder que eles têm, tanto por ser sujeitos de direitos , como pelo exercício de suas responsabilidades como cidadãos de uma democracia participativa. Postula que cada cidadão não somente possui poder, como o exerce através de sua participação no espaço público. É através dessas ações que os indivíduos podem tornar-se sujeitos e atores capazes de interferir e intervir nos distintos níveis de transformação social. Ações cidadãs assim concebidas possibilitam a autorealização dos indivíduos na medida que conseguem participar significativamente nas decisões que afetam à comunidade em que vivem, assim como, articular o bem da comunidade com o bem individual. Aprende-se a ser capaz de optar por interesses coletivos .
Foto: João Ripper
Desta forma, tornam-se práticas alternativas as práticas estimuladas pela lógica do mercado, que converte os cidadãos em consumidores e a cidadania é reduzida à capacidade de empreendimento e consumo, e aos interesses privados. Nessa perspectiva, encontram-se as experiências que serviram de base para o desenvolvimento deste trabalho. Elas podem nos convidar a pensar nas sementes de esperança de uma outra sociedade... de uma outra geração de
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futuros jovens, de futuros adultos com um jeito de ser mais humano , ou seja, que além de ter a capacidade de sonhar, de aspirar e de esperar tenham também o vigor novo de querer mudar e recusar tudo o que é desumano.
As ações cidadãs não têm receita pronta mesmo que ao longo deste trabalho tenhamos tentado esboçar, a partir de diferentes experiências, um guia de ação. Se considerarmos que ação é por em movimento, idéias, sentimentos, gestos concretos, convicções, crenças...ela pode, portanto, desencadear processos educativos que favoreçam o exercício da cidadania e gerem estilos de vida mais democráticos. O mais importante é começar fazendo .
Foto: João Ripper
Essas experiências convidam para a ação capaz de gerar cidadania. Uma ação que nasce no locus da vida cotidiana de uma comunidade e que desencadeia processos educativos de uma cidadania em ação.
As ações cidadãs se gestam no locus de uma comunidade que exerce sua cidadania participando ativamente como organizações da sociedade civil. Seus membros passam a definir-se, a reconhecer-se mutuamente, a decidir e agir em conjunto. Trata-se de articular indignação-compromisso; iniciativa-risco; comunidade-indivíduo; interesse pessoal-interesse coletivo; criatividade-realismo; ousadia-vigilância; força-fraqueza; igualdade-diferença, trabalho pessoaltrabalho em equipe; assessorias-parcerias-agentes comunitários .
É no desenvolvimento das ações cidadãs que se apresenta o desafio de transformar-se, transformando . Pois, o cotidiano torna-se lugar político de atuação e cria-se uma prática nova a partir da consciência de interesses e vontades próprias. Esta convicção que surge da prática do dia a dia conduz permanentemente para a ação transformadora.
Foto: João Ripper
Desta forma, elas instigam a apostar num desenvolvimento que tenha como centro de interesse o ser humano e as formas de convivência estejam sustentadas em vínculos gerados por gestos concretos de solidariedade que inspirem a ação política transformadora.
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Através dessas ações é possível conhecer as gestões burocráticas e, em muitos casos, sua ineficácia. É possível aprender o que significa entrar em relação com diferentes instâncias de poder político. A dismitificação da autoridade e do conhecimento formal ajuda a reconhecer e a valorizar a força do grupo e o conhecimento que gera sua própria prática. Desta forma, as ações procuram contribuir para uma democracia que ultrapasse as instâncias do poder institucionalizado, favorecendo uma cultura política e social mais democrática. Aprende-se também que não é fácil atingir os objetivos fixados. Por isso mesmo, são necessárias assessorias e parcerias para ajudar a viabilizar a realização das ações . Torna-se um desafio gerar redes de cidadania unindo forças com outros e maximizando os recursos. Esta teia de relações pode ser a fonte de melhores resultados. Tradicionalmente tem se valorizado a educação formal ou escolarizada como a única capaz de formar cidadãos. A capacidade para participar e agir na sociedade estava fundamentalmente referida ao domínio do saber sistematizado e socialmente reconhecido, transmitido pela escola. Todavia, as múltiplas experiências de ações cidadãs geradas no país pelos movimentos sociais, organizações e grupos da sociedade civil nos levam a afirmar que o espaço no qual são desenvolvidas essas ações pode se constituir numa escola de cidadania . Isto porque a cidadania constrói-se como um processo interno, no interior da prática social em desenvolvimento, como fruto do acúmulo das experiências construídas. Essas experiências podem transformar os grupos, as comunidades em interlocutores da sociedade civil frente ao Estado, construindo assim um espaço autônomo e democrático de organização, de formação de identidades e relações de solidariedade.
Foto: João Ripper
É na prática que se aprende a ser cidadão. É na prática que se constrói esse caráter educativo. Apesar das limitações encontradas, nas diferentes experiências, para obter resultados na solução dos problemas comunitários, elas são, assim
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mesmo, experiências que podem gerar processos de educar na e para a cidadania. A cidadania não se constrói através de intervenções externas, de programas e agentes que outorgam e preparam para o exercício da cidadania. Pelo contrário, ela se constrói como um processo que se dá no interior da prática social e política dos grupos sociais. Neste sentido, as ações cidadãs geradas por tantos grupos, comunidades, empresas, movimentos são verdadeiros agentes de uma prática educativa que conduz ao aprendizado de ser cidadão. Na medida que essas ações cidadãs sejam inspiradoras de novas ações cidadãs, tornam-se expressão visível de uma cidadania desde baixo , que vem sendo construída e mantém viva a certeza de que o mundo está sendo , segundo Paulo Freire. Que a história é uma possibilidade e não está predeterminada, que nada está acabado, que tudo está se fazendo e refazendo. Que mudar o ritmo perverso dos acontecimentos é possível se as pessoas são capazes de intervir na realidade não para adaptar-se, mas sim para transformá-la. Desta forma, se estaria procurando construir uma cidadania com ações cidadãs que não só tornem possível, para todos e todas os/as brasileiras/ os, a experiência vital e real o direito a ter direitos , mas como uma estratégia política de afirmação da democracia.
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Foto: arquivo IBASE
se somar com a sociedade, acreditar na sociedade, apostar na sociedade n贸s vamos conseguir at茅 mesmo reconstruir o Estado brasileiro Betinho
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Números anteriores dos Cadernos da Oficina Social Caderno 1 Compromisso Social: um novo desafio para as organizações Caderno 2 Projetos Inovadores da Oficina Social Caderno 3 Desenvolvimento Local Caderno 4 Prêmio Mobilização - Edição especial Caderno 5 Desenvolvimento Local: práticas inovadoras Caderno 6 Construindo Cidadania em Comunidades de Baixa Renda: da idéia à ação Caderno 7 Agricultura familiar e o desafio da sustentabilidade
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