MORFEMA | FRONTEIRA(S)
MORFEMA
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revista de ensaios sobre o espaço
FRONTEIRA(S)
A fronteira: do objectivo e do abstracto, do desenho e da imaginação, da liberdade e da imposição, do que é arquitectura e do que deixa de o ser. A sua prática vive no centro de tamanhas indefinições; a acção desenrola-se dentro e fora das linhas que delimitam este labirinto: o que é estar dentro, o que é estar fora? Os limites, fronteiras conceptuais que esticam o imaginário, expandem e contraem os raios de acção, as intenções de quem solidifica barreiras, de quem compõe o mundo através de divisões que filtram pessoas, espaços, luz. A escolha entre divisão e continuidade carece de constante reformulação, de um processo curiosa e ironicamente infinito.
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MORFEMA FRONTEIRA(S)
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WELCOME TO US | MEXICO BORDER Catarina Leal
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ARQUITECTURA MODERNA COMO FRONTEIRA Miguel Roque
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CALIFORNIA DREAMIN’ Rui Aristides
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O PODER DOS LIMITES Rui Santos
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FRONTEIRA: PONTO DE CONTACTO Paulo Afonso
Fronteira Mexico-Estados Unidos 4
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WELCOME TO
US - MEXICO BORDER
Catarina Bota Leal
As ultimas décadas ficaram assinaladas por uma série de rasgos
definitivos que cada vez mais intensos, continuam a desenhar novas geografias globais. As forças da globalização, o auge das tecnologias e o alcance e influência dos meios de comunicação, são apontados como os principais responsáveis pela intensificação da mobilidade geográfica transnacional que se descreveu sobretudo pela sua multidireccionalidade e heterogeneidade. Desde então imagens, pessoas, serviços e bens passaram a atravessar continentes e oceanos, modificando geografias, culturas, políticas e economias. Esta imagem de fluxos que atravessam continentes e oceanos tem vindo a desenhar uma nova “fronteira mundial”, correspondente a um novo equador, onde se localiza o mais contestado limiar critico da actual geografia sócio-política global. Porém se neste fluxo o movimento Sul-Norte é descrito por correntes ilegais de indivíduos à procura do mundo prometido, como se de uma inversa colonização se tratasse, a deslocação Norte-Sul é, por sua vez desenhada pela redistribuição de novos centros de manufactura e produção, onde as grandes potências procuram o mercado da mão-de-obra barata, com baixos custos de impostos e taxas de exportação, leis ambientais mais flexíveis, sindicatos mais fracos, legislação trabalhista e fiscal mais dóceis. Todas as fotografias apresentadas neste artigo foram cedidas ao autor por Teddy Cruz, professor associado de Cultura Pública e Urbanismo do Departamento de Artes Visuais da Universidade da Califórnia, San Diego. Foi reconhecido internacionalmente pelas suas investigações urbanas em torno da fronteira Tijuana – San Diego, onde trabalhou com a ONG – Casa Familiar
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A fronteira entre o México e os Estados Unidos resulta num óptimo exemplo onde facilmente se podem visualizar tais mudanças de uma forma brutal e radical. Esta região situada entre os dois países é designada por “Third Space” e é formada por catorze cidades gémeas que coabitam diariamente com suas contrapartes, dando origem a autênticas cidades-região transnacionais. São zonas comprimidas por conflitos e problemas iminentes, com vivências e particularidades distintas dos respectivos países que, por sua vez, têm delas uma leitura imprecisa, resultante de um olhar distante. Tijuana, enquanto cidade fronteiriça e, simultaneamente, como parte da cidade gémea que constrói com San Diego é um exemplo exímio de cidade que se encontra imersa na dinâmica de cidade aduaneira. Com efeito, e como consequência óbvia da sua localização geográfica, obedece simultaneamente a outra dinâmica intrínseca à ideia de megapolis global que constrói até Los Angeles, e que lhe obrigou a adquirir um carácter distinto das restantes cidades de fronteira, assim como de todas as cidades do México. A reflexão que aqui proponho tem por base a análise desta região transnacional de permanente troca cultural, económica e social e onde a tradicional noção de fronteira se esbate e redefine. De que forma esta barreira física se tornou essencial à cidade de Tijuana que vive a realidade diária de um muro que a vigia e a interroga? De que forma esta fronteira surge como elemento essencial e construtor da sua realidade urbana e habitacional? Questões que me inspiraram a empreender uma viagem à fronteira México-Estados Unidos a qual se veio a revelar essencial no encontro das suas respostas.
Por vezes, a definição do termo fronteira é elaborada dentro de
uma linha estática de puro cariz geopolítico, como as formulações que constam em dicionários e enciclopédias que, em parte, continuam a basear-se na concepção clássica estabelecida em 1897 pelo geógrafo alemão Friedrich Ratzel1 . Definição que considera a fronteira como mera linha geográfica que separa dois territórios distintos, sujeitos a duas soberanias distintas, que proveria protecção, assim como a possibilidade de intercâmbio com o mundo exterior, 1
Friedrich Ratzel (1844-1904) é considerado por muitos o fundador da geografia humana moderna, é também o responsável pelo estabelecimento da geografia política como disciplina. 6
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para ser cruzada legalmente ou para ser violada, mas nunca negociável ou flexível. Evidentemente, esta ideia de fronteira, enquanto simples referência geopolítica, e como delimitação marginal e periférica de um Estado-Nação, tem vindo a ser abandonada. Questiona-se agora a sua importância como nova zona de negociações transnacionais, que deixa de ser vista como um lugar estático e que veio a perder contornos de “fronteira linear” para se assumir como “fronteira zona”, de interacções complexas, quotidianas e dinâmicas. Estabelecida pelo tratado de Guadalupe-Hidalgo2, a fronteira entre o México e os Estados Unidos foi alvo de constantes mutações ao longo da história que acabaram por se refletir nas próprias relações mantidas entre os dois países. Na verdade, as permanentes cambiantes de regulamentações e políticas públicas que cada estado adoptou, e adapta, foram fundamentais à construção identitária desta região. Em 1994, com a intenção de uma cooperação bilateral e um contacto confortável entre as duas partes, foi implementado o tratado de livre comércio3. Este acordo que previa fomentar a economia e conseguir um desenvolvimento regional fronteiriço foi ao longo dos anos, tomando contornos controversos, com implicações que se revelaram desfavoráveis sobretudo para o México. Se por um lado esta cooperação veio oferecer possibilidades de emprego, o seu excesso veio, por outro lado, transformar estas cidades em autênticas cidades industriais, sem qualquer tipo de planeamento urbano. O 11 de Setembro de 2001, data que marcou a historia mundial, teve consequências directas no controle aduaneiro norte-americano, no qual a fronteira com o México não foi excepção. Com efeito, o governo Americano começou por desenhar o projecto para uma fortificação ainda mais resistente que, consequentemente, ampliou as “distâncias” que separam hoje os dois países. O muro, que até aí se desenhava bastante indefinido, foi substituído por aquele que imediatamente foi considerado como um dos maiores instrumentos de vigilância da história. 2
O Tratado de Guadalupe-Hidalgo foi o tratado de paz que pôs fim à Guerra entre o México e os Estados-Unidos da América (1846-1848). 3 O Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (North American Free Trade Agreement) ou NAFTA é um tratado envolvendo Canadá, México e Estados Unidos da América numa atmosfera de livre comércio, com custo reduzido para troca de mercadorias entre os três países. O NAFTA entrou em vigor em Janeiro de 1994. 7
Trata-se de um muro de 555 Km construído em colunas de betão estrategicamente espaçadas, ligados por redes metálicas, ou até mesmo estruturas de ferro, coroadas por um cerco electrificado. Este sistema de vigilância sem precedentes veio a possibilitar o máximo de vigilância com um mínimo de reforços humanos. Todavia, o forte controlo dos últimos anos, cuja intenção é a de impermeabilizar a fronteira, continua a ser insuficiente para fazer cessar o desejo de passar para o lado de lá.
Fronteira Mexico-Estados Unidos número de mortos
Quando se evoca o centro de uma cidade da América Latina,
as imagens são atraentes; a das imponentes fachadas dos antigos bairros coloniais, da praça maior, dos palácios e igrejas. No entanto, Tijuana não é uma dessas cidades de origem colonial, apesar do seu plano de fundação, que data de 1889, conter ainda alguns rasgos dessa organização urbana. Na origem desse plano “utópico” para a cidade, está na verdade o “boom” económico que marcou os finais do Século XIX e inícios do Século XX, possibilitado pelas novas estratégia governamental de aceder à atracção de capitais norte-americanos. 8
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A primeira grande oportunidade de atracção a esses capitais surge no momento em que se “oferece” o proibido, ou seja, aquando do ano de 1919, data que assinala a aplicação da “Lei Seca” nos Estados Unidos, que consistiu na proibição do consumo de álcool e jogos de azar. Os anos imediatos à aplicação desta lei vieram a marcar a “época de ouro” da cidade de Tijuana, que rapidamente se organizou de forma a brindar os seus novos visitantes, que recorriam a ela para cessar seus prazeres. O crescimento acelerado, de um rancho a uma cidade, não permitiu de forma alguma agarrar o plano de fundação. Na realidade, foi uma das esquinas centrais, e mais próxima da linha internacional, que veio a conferir maior importância e dinamismo. De facto, a necessidade de oferecer novas actividades, bens e serviços aos visitantes foi a responsável pela criação da primeira centralidade da cidade, que ainda hoje dá uso à denominação de “centralidade turística transnacional”. De forma inconsciente, e sem se aperceber das dimensões desta aposta, Tijuana vê nesta época desenhar-se em traços largos a sua identidade, de “cidade proibida”, “cidade de perdição” de tentações e vícios. Paralelamente, surgem então os primeiros sinais de precariedade do tecido urbano que lhe estavam fatalmente destinados. Com o objectivo de limpar a imagem da cidade e controlar o seu crescimento insustentável, entraram em vigor novos decretos de lei, iniciativas que foram orquestradas pelo governo federal, estatal e municipal. A abolição dos jogos do azar, a abertura do comércio livre4, a criação do programa Braceros 5 e a implementação do programa de industrialização e remodelação urbana, contribuíram de uma forma positiva para o crescimento de novos serviços, comércio e indústrias. Através destas novas políticas, ficaram então criadas condições e incentivos ao desenvolvimento de novos pólos de absorção de capital. 4
Esta medida permitiu a importação de mercadorias sem pagamento de impostos, sempre que consumidas dentro dos limites estabelecidos. Permitindo desta forma o florescimento do comércio, que sem duvida foi o pilar que susteve o novo bastião económico da zona fronteiriça. 5 A entrada dos Estados Unidos na segunda guerra mundial no ano de 1941, e o estabelecimento do porto de San Diego como principal porto de operações, deu origem em 1942, ao programa Braceros com o objectivo de sustentar a produtividade económica e militar dos Estados Unidos, promovendo, por sua vez, a entrada de muitos mexicanos no país vizinho.
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Em 1965, na medida em que a abertura do comércio livre se mostrou insuficiente e como resposta ao fim do programa Braceros, foi necessária uma adaptação das economias nacionais a uma nova fase do capitalismo mundial. Desta feita, tendo em vista atingir o espectro global, o governo federal desenhou o programa de industrialização da fronteira (PIF). O objectivo foi criar novos postos de trabalho de forma a reencaminhar a mão-de-obra que vinha das zonas rurais do interior do México e deportada dos Estados-Unidos. A indústria maquiladora6 terá sido o projecto de maior alcance, tendo-se afirmado enquanto modelo industrial que o governo mexicano impulsionou para superar a crise dos anos 90. Se por um lado foi benéfico para a cidade como nova fonte de receitas, por outro veio a surtir como um chamariz, que provocou de imediato uma atracção redobrada de imigrantes até à cidade. Deste modo, passou de uma cidade de escala pedestre altamente concentrada com um máximo de 4km de raio, durante a década de 50, para uma metrópole expandida mais ou menos concêntrica, onde o limite externo passou a alcançar os 9 km a Sul e a Este e mais de 12 km a Sudeste, já nos anos 90. Na mesma altura, a população aumentou de 747.381 habitantes em 1990 para 1.210.820 no ano de 2000, o que representava um ritmo de crescimento que rondava os 4.8%. Actualmente, a população é de cerca de 1.600.000 habitantes, que habitam numa superfície de 1.239.49 km2. Prevê-se que, em 2025, os habitantes do município cheguem aos 4 milhões de habitantes7. Estes números e percentagens vieram a reflectir-se de imediato na extensão e expressão territorial de Tijuana, circunstâncias que lhe conferiram o estatuto de grande metrópole fronteiriça.
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A indústria maquiladora é um conjunto de unidades fabris de múltiplos ramos industriais. Estas são normalmente propriedade de estrangeiros, ou por eles controladas ou subcontratadas que transformam ou montam componentes estrangeiras. Os produtos fabricados estão livres de impostos e beneficiam de um regime especial de tarifas e de isenções fiscais, estes são impreterivelmente destinados ao consumo externo. 7 ALEGRÍA, Tito, Desarrollo Urbano en la Frontera México-Estados Unidos, Consejo Nacional para la Cultura, 1992;
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O crescimento extraordinário da cidade e a incapacidade de resposta por parte dos organismos governamentais à falta de emprego, habitação e infraestruturas, provocou a formação de um número significativo de pobres e marginais que se estenderam por toda a periferia da cidade ampliando-a a limites imprevistos. Os habitantes viram-se confrontados e entregues ao caos urbano que ainda hoje cresce de mão dadas com a cidade.
11 Condomínios privados
O tecido urbano de Tijuana é hoje caracterizado por espaços cada
vez mais difusos e desintegrados, assinalados por sérias debilidades. Na sua maioria, a cidade cresceu por baixo das leis da oferta e da procura, sem um plano preciso para uma evolução integraldo território. Desta forma, a sua periferia estende-se segundo um modelo insular, que originou uma cada vez maior descontinuidade do tecido urbano, amplificou a segregação social e promoveu a fragmentação urbana, assim como a privatização do espaço público. Tudo isto é, grosso modo, justificado pela incapacidade do governo de adquirir o poder de planear e regular o desenvolvimento urbano quando se confronta com a voracidade das empresas imobiliárias que não tomam em conta as condições de habitabilidade geradas, funcionando, portanto, à margem do ordenamento do território. O aparecimento acelerado da sub-urbanização mediante a industrialização, obrigou à construção por parte do governo de infra-estruturas urgentes e equipamentos básicos necessários à sua fixação, sem qualquer tipo de preocupação ordenadora dos usos do solo.
Este tipo de urbanismo tende a transformar radicalmente o cená-
rio urbano, pelo facto de possibilitar a “invasão” do território por parte dos interesses do mercado imobiliário em aliança com grupos de poder local. Não se trata de uma proposta focada, sem consequências para o tecido urbano, nem tão pouco um reflexo do bom desenvolvimento da indústria construtiva, pelo contrário, são cada vez mais evidentes e visíveis os seus efeitos nefastos. A principal oferta por parte destas empresas de construção tem sido os condomínios privados, cercados de muros e ligados a sistemas de vigilância que identificam e definem os seus perímetros, barreiras à integração urbana que reduzem de forma drástica a sua permeabilidade. Estas intervenções urbanas localizaram-se na sua maioria na periferia da cidade e são construídas sem qualquer tipo de conexão à cidade, sob a forma de pretensiosas mini-cidades, que acabam invariavelmente por sofrer da sua limitada auto-subsistência. A par destes condomínios periféricos de grande escala, outros de pequena escala considerados de luxo vieram a ser construídos, nomeadamente em zonas intersticiais à cidade, ocupando vazios urbanos e promovendo a sua densificação.
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A habitação “social” surge como uma das poucas oportunidades dadas aos mais desfavorecidos. Contudo, na prática, esta ideia veio a converter-se num negócio privado de grande rentabilidade. Na verdade, os promotores imobiliários atraem os compradores de rendas baixas e médias à compra de habitações ao estilo californiano, que exportam sob o pretexto de representarem um símbolo arquitectónico de riqueza e progresso. Com efeito, e em diversas ocasiões, as vivendas suburbanas das periferias de San Diego são desmontadas in loco e reconstruídas em Tijuana. Uma vez na cidade Mexicana, os “bungalows” montam-se, normalmente, sobre estruturas de aço que desta forma permitem ampliar o espaço disponível, nomeadamente utilizado de forma a desenvolver distintos negócios de família.
Bungalow Californiano reconstruído sobre estrutura metálica
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A par destas realidades de habitação, outras se constroem de forma ainda mais precária, a partir do intercâmbio entre San Diego e Tijuana. Todos os materiais residuais, de possível reutilização para a construção atravessam a fronteira para se transformarem em casas no lado mexicano. Portas de garagem, paletes, caixilhos de janelas, lonas, satisfazem de forma pouco exigente as necessidades dos Tijuanenses. Desta forma, o lixo deixa de ser objecto inerte para se converter em componentes funcionais de um sistema plenamente operativo.
Habitação ilegal
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A imagem de um muro fronteiriço que separa dois países de forma tão violenta, contraria o tão apregoado mundo da era da globalização que se diz sem fronteiras, onde as distancias entre países é cada vez menor. De facto, várias circunstâncias permitiram que diferentes nações se tenham vindo a aproximar entre si, através de relações financeiras e comerciais, do desenvolvimento crescente de uma tecnologia capaz de produzir meios de comunicação mais eficazes e rápidos, proporcionando uma maior densificação de trocas e experiências que, por sua vez, contribuíram para a intensificação de encontros e parcerias transnacionais. Com efeito, e apesar de se estarem a criar novas geografias, os muros de betão, chapa metálica e arame farpado ainda existem. São eles que nos fazem parar e esperar e, por vezes, ficar de um dos lados.
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Escultura da MĂŁo Aberta, o sĂmbolo do homem novo, livre e fraterno. 16
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ARQUITECTURA MODERNA COMO FRONTEIRA : CHANDIGARH IDEOLÓGICO Miguel Roque
Chandigarh é a cidade-capital do estado indiano do Punjab. A
sua história remonta ao ano 1947 e à separação índo-paquistanesa após o fim da colonização britânica, em que se formaram dois países: a sul a Índia, de maioria hindu e o Paquistão a noroeste, de maioria muçulmana. A capital do novo estado Paquistanês do Punjab, Lahore, era à época a capital do estado do Punjab que foi dividido entre os dois novos países. O estado indiano resolveu por isso fazer uma nova cidade capital para o estado do Punjab a pensar na afirmação de uma sociedade nova, moderna, progressista, que pudesse contribuir para a afirmação do estado indiano junto de uma fronteira problemática, onde ainda actualmente existem recorrentes episódios de tensão política e militar.
Todas as fotografias apresentadas neste artigo são da autoria do seu autor.
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Para desenhar a nova cidade-capital o então primeiro-ministro
indiano Nehru chama Albert Mayer, arquitecto e urbanista Americano - a quem já tinha encomendado o projecto de desenvolvimento rural de Etawah - e Maciej Nowicki, arquitecto Polaco que participara na reconstrução de Cracóvia depois da segunda guerra mundial. Numa das deslocações à Índia, o avião onde seguia Nowicki despenha-se e como consequência da morte do polaco, Albert Mayer decide abandonar o projecto. Nehru lembra-se então de Le Corbusier1 para planear a nova Capital. O plano de Le Corbusier recupera algumas premissas do de Mayer e Nowicki - que propunham uma espécie de cidade-jardim - densificando-o e regularizando a sua malha. O resultado é uma cidade encravada no sopé dos Himalaias, dividida em sectores (ou bairros) auto-suficientes, numa malha de estradas hierarquizadas segundo 7 perfis distintos em função dos tipos de tráfego. No topo Nordeste da malha estão instalados os edifícios administrativos da capital e um lago artificial que os articula com a cidade civil. Cada sector, de 800x1200m, tem capacidade para albergar 3000 a 20000 pessoas e é dotado de serviços públicos e comércio de proximidade no contacto com o espaço público. Um dos sectores centrais da malha, o sector 17, é o centro cívico da cidade e contém o comércio e os serviços centrais, como a estação central rodoviária, o cinema ou o maior hotel. O plano pressupõe uma grande flexibilidade em relação à materialização dos sectores, o que permitiu aos arquitectos sucedâneos melhor adaptar a cidade ao seu tempo. Ainda hoje os arquitectos locais continuam a erguer construções que respeitam o plano, no entanto, durante os primeiros tempos, Le Corbusier confia os projectos aos seus colaboradores de longa data Pierre Jeanneret, Jane Drew e Maxwell Fry. Para si reserva o desenho dos edifícios do capitólio, a imagem de marca de Chandigarh. 1
Se por um lado esta escolha se deve aos projectos que desde 1950 Le Corbusier vinha realizando para uma das famílias mais poderosas da Índia em Ahmedabad, por outro deve-se ao facto de Le Corbusier ter desenvolvido nas décadas anteriores um conjunto de utopias urbanas como o Plan Voisin para París (1925) e o Plan Obus para Alger (1932) que se compatibilizavam com o ideal de modernização ambicionado por Nehru para a Índia. 18
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Secretariado, a máquina de trabalhar Palácio da Justiça com cores do vale do M’zab
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O programa definido para albergar o poder político do Punjab
previa um secretariado, um parlamento, um palácio da justiça e a residência oficial do governador. A isto LC acrescenta uma escultura de uma mão aberta que pretende consagrar a cidade ao homem novo, fraterno e de espirito aberto, a utopia de uma sociedade moderna que tenta contrapor-se ao estado conservador que então se formava do outro lado da fronteira.
Cúpula do Parlamento ou a plasticidade do betão
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A Oeste deste complexo, o secretariado é desenhado como uma máquina de trabalhar, prosseguindo a reflexão sobre a cidade-máquina que por esta altura estava a testar na Unidade de Habitação de Marselha. (1947-1953). No centro do capitólio, o parlamento e a residência do governador (não construída) recuperam o tema da planta livre e levam o betão armado ao limite das suas possibilidades plásticas. O palácio da justiça, a Este, encerra uma enorme praça que articula o lago artificial com as diversas cotas dos restantes edifícios.
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Com este projecto Le Corbusier sintetiza as suas investigações sobre as várias escalas da cidade, reconhecendo o tempo longo dos edifícios administrativos e o tempo mais curto da cidade do quotidiano, que necessita de maior flexibilidade perante a imponderabilidade do seu ciclo de vida. No entanto a utopia de um homem moderno nunca se chegou a materializar plenamente e esta cidade demonstra desfasamentos entre a modernidade que pretendia servir e a realidade indiana que a habita. O que terá levado Neru a sonhar com uma cidade-capital moderna foi a sua convicção do poder do planeamento urbano e da arquitectura como veículos de ideais, capazes de manifestarem a superioridade da nação indiana em confronto com o Paquistão. Apesar das contradições apontadas, o pensamento moderno serviu este propósito ao afirmar uma outra ideia de cidade e com ela uma outra ideia de sociedade para quem olha para Chandigarh a partir do outro lado da fronteira.
Pormenor de uma galeria de acesso ao Parlamento
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Pormenor dos brise-soleil do Palรกcio da Justiรงa
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California Dreamin’ Rui Aristídes
No espaço construído o que é que não é uma fronteira? Que
forma entre as várias conjugadas num modo programático? Que material entre os vários que são transformados para dar corpo a uma acção? Que parte do complexo processo de fazer aparecer uma elaborada extensão do nosso corpo em colectivo? Ao percorrer ou desenhar um espaço, o que é que não involve a identificação e reformulação de fronteiras? Será que por serem fronteiras maioritariamente praticadas na habitude e na banalidade do dia-a-dia, se tornam invisíveis? O que é que na actividade de conceber, desenhar, construir espaço não é re-fabricar fronteiras? Estas são todas questões grandes demais, dado que a resposta mais imediata é: sim, em tudo isso se dá a recriação de fronteiras, o que torna difícil distinguir entre o que faz e não faz fronteira no processo de desenhar e viver do espaço. Então de que forma podem todas estas questões transformar-se em problemas mais manuseáveis, feitas palpáveis, mais perto da mão? Em vez de transferir o complexo nó para uma questão conceptual menor, mais fechada ou figurada, tornando acessível uma resposta feita verdadeira com rochosos padrões de racionalidade, proponho pôr de parte a questão conceptual e suas ramificações. Pondo de parte o bloco de notas, as resmas de livros, o uso da ajuda digital, vamos antes para uma ficção concreta, fisicamente traduzível, através da qual temos acesso a uma experiência original na construção de qualquer arquitecto, pelo menos português. Todas as imagens apresentadas neste artigo são da autoria do seu autor.
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A arte da fronteira Uma mesa e um banco, não importa de que qualidade e desenho, um rolo de esquisso ou algumas folhas de papel vegetal e um lápis, caneta ou pincel, pouco importa a matéria transformada para registar. Sentamo-nos à mesa, face a uma folha branca com limites bem definidos, empunhando numa das mãos uma linha recta que regista e mancha. Aí estamos nesta pré-realidade, aparece um pedido de forma, é preciso desenhar algo que dê sentido e função a um conjunto de vontades e linhas de força. Situação habitual, assim fomos ensinados na escola, temos então que desenhar um projecto de arquitectura. Artificialmente, vamos pôr de lado todas as fronteiras que vêm de fora da folha de papel à nossa frente: a personalidade do cliente, a necessidade de captar o seu interesse, o terreno e a envolvente, o primeiro orçamento, as leis urbanas em efeito, as imagens necessárias à instituição do projecto através da câmara municipal. Por outras palavras, vamos voltar à escola e ao simples enunciado do professor e ao estirador em que pousámos a folha de papel. Não partimos para o exercício despidos. Além do que já trazíamos de simplesmente viver espacialmente, somos informados pelo professor de que existem processos base no fazer emergir de um projecto: existem linhas de referência e acção, perímetros que fazem de contentores de acção que, depois, se deve compor com um sentido, seguindo uma certa lógica; que há também percursos, a luz, o proteger da chuva e do frio, bem como do sol em demasiada, há direcções e tempos do dia e da noite. É toda uma biologia mecânica. O esquisso começa. Traçam-se linhas mestres, primeiro rectas, depois vão sendo intersectadas com outras, talvez com algumas curvas. A mão simula percursos de imaginários pés, ventos, a direcção do sol a bater numa superfície ainda na forja. Desenham-se uns círculos para posicionar conjuntos de acções que virão a acontecer. A planta começa a ganhar expressão, já tem uma síntese de paredes que encostam, dirigem e fazem assentar. Mais trabalho, mais riscos (riscados e arriscados), é preciso passar para a fachada, talvez o corte. Contam-se medidas e intersecções, surgem os telhados. Passado algum tempo aquela folha de papel à nossa frente guarda uma casa, um centro cultural, um bloco habitacional, uma praça. Talvez uma casa. Volta o professor e todo o processo tem agora de ser representado, por explicações e demonstrações, nas linhas em
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que foi marcado, como se dá conta de um crime, razões, actos, justificações, efeitos. Procedem-se as correcções e re-questionamentos, os sentidos da experiência em vista, o significado das abstractas riscas escuras em claro papel. Será que esta linha faz sentido? E esta proporção de vazios, não será melhor arranjar de outra forma? E a altura deste compartimento e seu encontro com o exterior? Sentido, proporção, encontro, diálogos mútuos e difíceis de juntar. Aqui, em conversa com o professor ou colegas, ensina-se um específico conhecimento e prática de fazer fronteiras. É uma arte com a qual se faz distinguir arquitectos de outros fazedores de fronteiras espaciais, como os engenheiros. Tudo o que já foi riscado no papel até então eram muitas fronteiras, sem dúvida: a sala de estar tem esta dimensão, tem uma janela virada para ali, as pessoas entram nela por aqui e a ver aquilo. Todas as linhas juntas já fazem um universo específico, um mundo, poder-se-á dizer, de limites. Mas depois, em conversa, abre-se o elemento que distingue estes de outros riscos, com a pergunta: Qual é o sentido que junta estas formas? Que diálogo as faz corresponder entre elas e com um todo? Se o aluno responder que as quatro linhas que fazem a sala foram traçadas daquela forma porque assim dizia um manual de medidas funcionais que consultou na biblioteca, ou se responder que a porta de entrada tanto podia estar ali como acolá, ou ainda que o telhado inclinado é mais “giro,” então espera-o, com bastante certeza, um longo sermão. Nada disso faz sentido entre si. Se a sala foi desenhada segundo um manual de medidas, então, no mínimo, todos os outros elementos deviam seguir o mesmo manual, em prol da coerência. Coerência. Mas o manual não ensina, não dá sentido às várias escolhas que se tem para colocar a porta de entrada, no máximo informa proclividades. Então não, não faz sentido usar o manual como a cola que junta o todo. Aqui e acolá, como condições de infinita variação, muito menos. E “giro” é a cara do meu gato quando está com sede. Nada disto pega, nada disto é arquitectura, ou melhor, faz a arte do arquitecto. O salto dá-se quando a um conjunto de limites, que podemos considerar banais – como o limite de propriedade, entre interior e exterior, entre porta e parede, luz e sombra -, se exige um sentido como um todo. Isto é, aquele grupo de linhas que deu bastante trabalho a juntar numa folha de papel deve anunciar, articular, traduzir uma direcção. E não individualmente, cada linha puxando o papel para o seu lado, mas como se fossem uma comunidade pacificada entre
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si, unida por um ideal, disciplinada para um rumo histórico. Ou seja, o oposto de uma democracia pós-moderna ou pós os grandes projectos políticos totalitários da modernidade (como o comunismo, fascismo e nazismo), invés, uma espécie de tribo pré-moderna, una, coerente e prenhe de sentido. E esta tribo, mantendo-me no imaginário da metáfora Ocidentalista, deve seguir um tambor específico, que marca o ritmo e o caminho do percurso do todo, o seu sentido. É este tambor que tentam ensinar a tocar na escola de arquitectura. Este tambor é o pegar nas fronteiras já instituídas na realidade e torná-las mais, mais que algo dado, partindo para, projectando para a frente. Involve a acção, como alguns antigos mestres não se cansam de dizer, de transformar o banal e o anónimo em significativo. Como? “Dando-lhe um sentido.” Como, se as banais fronteiras já possuem os seus sentidos? “Dando-lhes um outro sentido, um sentido inesperado, que pode abrir uma outra experiência.” Mas como e porquê? “Se voltarmos ao esquisso à nossa frente já lá está tudo ou quase tudo. E repara, falamos apenas de um esquisso, quão tanto mais haveria para dizer se falássemos de todos os outros momentos para fazer aparecer um novo espaço. No esquisso: porque é que desenhei a entrada e corredor de distribuição da casa desta forma, podem perguntar. Porque a pessoa chega à casa vinda de uma rua densa e barulhenta, por isso a entrada recua em relação à rua para criar um momento de transferência do barulho para a intimidade do lar. Intimidade esta que tem a ver com o silêncio, por isso mal entramos na casa, por uma porta pequena e pouco pretenciosa, damos com um corredor limpo de elementos decorativos, apenas com uma pequena estante onde pendurar casacos e pousar chaves, estante esta que se fixa a uma parede cega que divide a entrada e o seu corredor, do resto da casa. Mas esta parede não fecha totalmente o corredor, como se se tratasse de uma saída de emergência, termina um pouco antes do tecto, deixando uma frincha tensa entre o elemento vertical e o horizontal, de maneira a deixar passar a luz, o som e o cheiro que vem da sala de estar e cozinha que fica do outro lado. Assim, chegamos a casa através de um corte abrupto, mas suficientemente generoso para nos deixar antever o prazer da sala de estar, mas apenas subtilmente, pelos ecos do som e o filtrado derrame da luz.” O tambor do arquitecto passa por saber tocar esta música. Construir telhados para proteger da chuva, paredes para proteger do
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frio, portas para entrar e camas para deitar, isso todos ou quase todos sabem conjurar. Saber fazer essas fronteiras cantar uma música orquestrada segundo uma narrativa, um efeito uno com um conjunto especifico de pequenas e minúsculas epifanias corporais, no entanto, é outra coisa. Para isso talvez se tenha que estudar. É por isso que a arquitectos paga-se, quando se paga, para deslumbrar e não apenas para refazer o banal. Mesmo os clientes mais fechados, direcionados para a resolução rápida, técnica, para um resultado “sem brincadeiras,” esperam em parte ser deslumbrados, contraditos, mesmo que apenas para baterem com a mão na mesa. Há uma espécie de magia que tem de ser conjurada com um projecto de arquitectura. Mesmo nos trabalhos considerados menores, normalmente os associados a menor criatividade individual, há como que um passe de magia. Por exemplo: o licenciamento pós-construção, tão comum e necessário à paisagem urbana portuguesa. Engane-se o arquitecto que acreditar que o que está a fazer é uma simples burocracia. No fundo, o que está a produzir é uma recuperação ideal de algo que já existe para que possa ser institucionalizado como parte da realidade fiscal. Mas para efectuar esta recuperação tem que capturar o existente em linhas e riscos, tem que fazer esse real existir enquanto representação pré-ordenada. É uma tarefa automática, basta abrir o autocad, ou qualquer outro software CAD, e passar dados para rectas. Mas nesta tarefa automática e a maior parte das vezes sem fazer ideia, transforma-se um concreto em ficção. Porque razões será necessário fazer ficções de coisas concretas? Pois há muitas, nomeadamente políticas ou que dizem respeito a como nos arrumamos continuamente em conjuntos. Apesar disso, é neste passe de bola para uma ficção atacante que encontramos a arte da fronteira própria ao arquitecto. Trata-se de uma arte de expandir e contrair fronteiras banais para o efeito de uma ficção, isto é, para a conjuração da realidade de ficções mais poderosas que a realidade encontrada. Por isso, muitos projectos de arquitectura começam com a origem de uma história, um chamamento dos agentes chamados de condicionantes, seguido do organizar destes agentes num grupo ordenado e pronto a executar, e depois a lenta construção das linhas articulando-os de “outras” formas, afinações progressivamente, chamando alguns agentes a falarem mais que outros, cozendo as relações, fazendo a comunidade de limites que, chegando ao fim, se quer perceptível no poder da sua ficção.
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É preciso salvaguardar, como talvez já tenha ficado sugerido, que ficção não é aqui utilizada no sentido de mentira, ilusão, representação enganosa ou irreal. Pelo contrário, ficções são bem reais e prenhes de efeitos e linhagens concretas, pouco têm de irreal. Basta pensar em mega ficções, como nação ou modernidade, duas ficções bem dolorosas na pele do planeta1. Podem parecer imateriais e dificeis de agarrar, para quem agarra uma pedra e espera o mesmo tacto de ficções – o que é que uma pedra tem em comum com a nação ou a modernidade? -, mas são tudo menos irreais. Antes pelo contrário, são mais que realidade. E é este mais que realidade que também gera os mal-entendidos com a arte de fazer fronteiras da arquitectura. Para começar há aquele mal-entendido imediato e primário do arquitecto enquanto construtor excêntrico: “eu pedi-lhe uma garagem e ele fez-me uma plataforma de aterragem de veículos voadores.” Um mal-entendido que advém principalmente no contacto com pessoas que acreditam piamente que o arquitecto é um engenheiro com outro nome. Depois há os vários mal-entendidos à volta dos limites de acção e responsibilidade entre os vários profissionais e não-profissionais envolvidos no fazer aparecer de um novo espaço. Este é tão clássico quanto o anterior, antevendo a comum disputa entre engenheiros/ as e arquitectos/as. Cada um/a confrontando o/a outro/a com a ficção historicamente construída da competência da profissão: “foi a culpa do arquitecto que não sabe construir”; “foi a culpa do engenheiro que não soube interpretar os desenhos e as intenções de 1
Não estou a dizer que estas ficções são reprováveis, ou que é possível torná-las menos eficazes, menos concretas. Muito menos estou a dizer que se as tirássemos da frente poderíamos, por fim, aceder a uma essência humana que todos partilhamos e haveria paz no mundo! Ficções não são ilusões colocadas sobre uma realidade “em bruto”, mas a articulação de realidades em movimento em algo para além da sua momentãnea fixação em coisas estáveis e bem-delimitadas. São uma espécie de ser que coloca em movimento envolvências e, ao mesmo tempo, divisões. Por exemplo: a ficção da nação tem efeitos simultaneamente enriquecedores (envolventes) para a experiência colectiva e individual, concedendo uma noção de identidade especialmente forte e fisicamente bem delimitada, e limitadores (divisores) relativamente, por exemplo, a possibilidades de negociação política (como no actual momento europeu, em que ao mesmo tempo que as instituições financeiras e bancárias puxam para maiores poderes supranacionais, quase federativos, as nações, através dos seus oficiais interlocutores políticos, puxam para o problema da soberania e autonomia nacional, tanto à esquerda, como à direita) ou de inclusão de mais identidades e possibilidades dentro da unidade política nacional. 30
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projecto.” A estes mal-entendidos aparentemente mais simples, poder-se-iam juntar muitos outros em torno do fenómeno da construção, nos quais o caso é sempre o mesmo: ficções a tentarem criar o seu corpo de ouvintes e leitores, os seus fãs, definindo as suas fronteiras, impondo-as a outras ficções, seguindo-se lutas e polémicas. Mas os mal-entendidos que me interessam de momento são mais específicos e internos, relativos ao acto em si de arquitectar, o pensar fronteiras reais que são mais que a realidade. Voltando ao esquisso e ao seu autor: porque é que na entrada da casa, intimidade é feita corresponder a silêncio e segregação sensorial? “Porque é uma experiência sensorial que faz sentido quando colocada entre a rua e interior da domesticidade, quando chego a casa gosto e acho que faz sentido, sentir um corte com a realidade que trazíamos às costas.” Mas que sentido é esse? Para onde nos está a mandar? “Pois não tenho a certeza, mas está relacionado com proporcionar uma vida melhor, a vida daquela pessoa que vem da rua e entra em casa. O sentido pode, então, ser esse, embora não exclusivamente, o de “equilibrar” a vida desse/a caminhante.” Melhorar em que sentido e porque é que “melhorar” corresponde a “equilibrar”? Repara, voltamos ao sentido, ao destino para o qual se projecta o caminhante. Porque é que achaste que um espaço de silêncio entre mundo e interioridade melhoraria a vida de alguém? E, já agora, quem é que fez essa fronteira entre mundo exterior e interior? “Bom, claramente não fui eu mas, estou claramente a enriquecer essa fronteira, não é apenas uma porta ou um muro, uma pele que se atravessa. Neste esquisso é um ambiente com corpo e área no qual temos que emergir, do qual emergimos. Se essa espacialidade de silêncio melhora a vida, pois de facto, não sei, mas o equilibrio que procura entre uma experiência exterior e uma interior, fazendo uma e outra passar por uma “tradução,” creio ser melhor e, como tal, melhorar, a simples fronteira entre interior da casa e rua de cidade. Além disso qualquer experiência mais rica do que simplesmente passar por uma porta melhora este acto de passar, não? Se isto tem um destino, é capaz de ter, mas eu não lhe dei um, talvez o caminhante lhe dê o seu ou, então, talvez nunca seja mais do que uma passagem que desliga de coisas, barulhos e cheiros. O meu trabalho acabou com a planta desse espaço, a vida da sua ficção está além deste esquisso, depois dele, aliás, tem a sua própria vida. Eis aqui, neste produzir e largar da ficção na realidade, talvez a
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fronteira mais rica e contestada que a arquitectura pode oferecer. Fronteira esta que se faz rica porque é composta e recomposta sucessivamente de várias outras fronteiras. Nestes diálogos bem concretos de limites surgem os problemas. “O edifício não foi pensado para ser usado assim, por isso não se venham queixar.” “Deram cabo do projecto.” “O meu plano urbano para Paris tinha óptimas intenções, apesar de propor a demolição completa do centro histórico,…, não tenho culpa que as pessoas não estejam preparadas para ser mais emancipadas e produtivas.” “Claro que rejeitei o pedido de licenciamento, fez a casa como calhou, onde lhe calhou, sem seguir plano algum, e agora quer ter direitos.” Não há paz, não há sítio para pousar a régua no chão, com calma e satisfação, e dizer é isto que devemos obedecer, respeitar, cumprir. As ficções de fronteiras que os arquitectos/as põem no mundo tem este problema, são demasiado públicas, demasiado vividas, partilhadas e refeitas, sobrepostas a muitas outras fronteiras e suas ficções. Podemos ser contratados/as para deslumbrar, fazer a realidade mais que realidade, e com materiais de grande perenidade, resistência e força, mas a ficção que isto origina, o projecto, é tão forte quanto frágil. Um clássico paradoxo, a sua força é simultaneamente a sua fragilidade, pois a pedra quebra e corrói e os corpos podem não querer saber da ficção que conta, pois têm as suas. Pior ainda, esta ficção, a que nasce incrustada com o edifício, pode ser alterada ao ponto de nunca ter existido, um rufar de tambor escoado por paredes surdas. Mas enquanto a pedra não quebra e mesmo depois de quebrar, com o auxílio de historiadores e arqueólogos, a ficção do projecto transporta uma força difícil de medir, vasta quanto os corpos que conduz e ex-tende, os eventos que segrega, a luz que filtra e endurece, os símbolos e outras ficções que chama a si. Caminhar em espaço organizado vem com a caução, dita por alguém em tempos: “Cuidado onde pisas, pois podes pisar nos meus sonhos.” E nos dos outros também. Estamos continuamente a pisar sonhos de alguém e não metaforicamente, mas com os pés, através de meias e sapatos: agora piso o sonho de higiene e civilidade, à Europa do Norte, que esteve na feitoria deste passeio de prefabricado de cimento; agora piso o degrau de mármore que me faz entrar num centro comercial que sonhou voltar a juntar as pessoas num “mercado,” depois da violência modernista dos primeiros shopping malls; agora piso a carpete que sonhou ser um cinema anglófilo e ritualista. E é sempre
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possível continuar o percurso, lembrar e refazer os sonhos ao mesmo tempo colectivos e íntimos, alguns mais claros, até violentos, outros escondidos, esquecidos. Em todos estes e nas fronteiras que desejam fazer viver, há a presença e contínua articulação de uma ficção especialmente forte, e especialmente cara a arquitectos/as, aliás, essencial para o acto de fazer mais que realidade. Pois é o tal elemento que anima um destino, a ficção que dá vida ao sentido, colocando-o em marcha, e que o nosso estudante de arquitectura não conseguiu identificar na sua entrada silenciosa: o plano, o conjunto de todos, o colectivo espacial, a cidade. Sim, a cidade também é uma ficção e das mais poderosas. Se ao caminhar podemos ir tentando falar com múltiplas ficções que em tempos foram sonhadas e escritas em matéria, é quase impossível evitar aquelas que as foram compondo juntas: as ficções de cidades. E há tantas e sonhadas de forma tão diferente. É a estas que o/a arquitecto/a recorre automaticamente por vezes, reflectidamente outras, mas sempre para dar sentido a uma escolha de material, número de pisos, expressão de janelas e revestimento, escala, silêncio ou ruído. Esta relação entre o fazer mais que realidade e uma ficção de cidade tem muito que se lhe diga, mas por agora e para acabar, gostaria apenas de desenvolver um breve e incompleto exercício. Um exercício relativo não a todas as ficções de cidade ou a uma espécie de tipologia 0 de ficção de cidade, mas ao invés relativo a uma ficção automática. As mais persistentes e enganosas, pois nunca falam “direito,” mas também porque são as mais usadas e continuadas através de variadas reproduções e reinserções. Qual a ficção de cidade? Vamos imaginar que estamos todos onde eu estou: sentado numa esplanada na parte central da cidade de Aveiro, de um lado o antigo mercado do peixe, do outro o canal, ladeado de casas estreitas, baixas e densas. Vamos então fazer o esforço de capturar toda a cidade na nossa imaginação e desenvolver uma conversa ligeira do género: ”Eu acho que Aveiro é mais assim e assado, enquanto o Porto é mais frito e requentado, etc…” Por outras palavras, o que poderia ser uma conversa perfeitamente banal de comparação de cidades e do que consideramos serem as suas qualidades e defeitos. Então, poderá suceder o seguinte: se pensarmos em Aveiro como
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uma cidade portuguesa, vamos tentar atribuir-lhe as características da nossa ideia de uma cidade portuguesa, e contra essa ideia medir os seus aspectos. Podemos ter esta, entre várias ideias de cidade portuguesa: as cidades portuguesa são antigas, muito antigas, como a Europa, por isso têm todas ou quase todas uma parte medieval, por vezes muralhas, e depois vão crescendo daí. Têm todas um centro, onde historicamente se fixava tudo, o poder, a reprodução, a produção, a cultura, as igrejas, edifícios de estado, bancos, casas comerciais, estava tudo aí. Uma boa cidade portuguesa mantem este centro. Para além disto, as cidades portuguesas tiveram historicamente limites muito bem definidos, pois era tudo controlado pela coroa, os nobres, o clero, e depois banqueiros e amigos, em esquemas de governo feudais ou pseudo-feudais. O resultado é que a cidade portuguesa emerge em ideia, e também concretamente, como muito bem definida formalmente, delimitada. Por isso não é incomum pensar o que aconteceu a nível urbano com o 25 de Abril, o crescimento exponencial, em altura e extensão, o aparecimento de súburbios, como coisas estrangeiras: os “bacamartes” de apartamentos e centros comerciais dos anos 80 como símbolos de uma ganância capitalista internacional, conduzida muitas vezes a uma América fantasmagórica, também responsável por tudo aquilo a que, extravasando um perímetro urbano “tradicional,” chamamos de súburbio. Visto desta perspectiva, Aveiro não é uma boa cidade portuguesa: não tem muralha, embora tenha tido em tempos, nem um centro medieval identificável, aliás o centro da cidade é um tanto vago, espalhado entre várias estradas e praças, novas e velhas. A cidade estende-se de uma forma aparentemente ilógica, seguindo muitos planos parciais mas, visivelmente sem um sentido que une, feita de uma malandragem ganânciosa e sofredora daquela doença da modernidade a que se chama individualismo. Há uma avenida central mas está bastante abandonada, aliás, a vida da cidade parece passar-se mais intensamente noutros sítios que o seu imaginário e formalizado centro. Como cidade portuguesa é muito solta, muito misturada, um tanto vazia de vida de rua, pouco coerente, fugaz e feita de ritmos e movimentos que colocam a vida noutros sítios que não “um” centro. Recentemente, no entanto, e muito graças à reapropriação liberal dos moliceiros para fins comerciais, nomeadamente turisticos, Aveiro passou a ter de novo um espaço central que parece ser de facto um centro, um vivido centro.
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A parte crucial do exercício surge aqui. Vamos então imaginar que Aveiro não é uma cidade portuguesa, ou não queria ser. Em vez disso, vamos pensá-la como uma cidade fundada no século XIX na Califórnia, USA. As cidades lá não têm os mesmos limites que as de cá, são principalmente crescimentos a partir de uma grelha cartesiana, rigidamente estabelecida, re-feita consoante vontades privadas e aos ritmos flutuantes do que chama Economia. Não têm um centro, mas vários e a vida de rua é difícil de capturar numa forma urbana específica e bem delimitada, ao contrário do que acontece numa praça medieval. Se escutarmos uma das suas mais poderosas ficções, directamente de Thomas Jefferson, um dos seus “pais,” então este esquema para juntar seres humanos numa unidade a que ele não chamou cidade, mas sim aglomerado, vila e colectivo, tinha o seguinte sonho: instaurar uma sociedade igualitária de homens livres ligados à terra, ou seja, à produção agrícola. Era uma ideia feita em crítica às cidades da costa leste, onde o crime, pecado e outros perigos sociais andavam a crescer no final do século XVIII, juntamente com o império comercial americano. Jefferson, esse “pai” fundador, fez então a grelha representar a possibilidade de criar uma sociedade de iguais proprietários, de raiz, cada um no seu terreno, todos igualmente dimensionados e distribuídos na vasta e produtiva paisagem. E também por estas linhas se fizeram cidades sem aparentes limites formais, conduzindo o individual e o colectivo numa política de fronteira especificamente liberal, republicana e expansiva. Pois se agora nos virarmos para Aveiro e pensarmos que se chama Avery e se localiza algures entre San Jose e Sacramento, então deixa de ser uma diluída cidade portuguesa para passar a ser uma interessante cidade californiana, com centro histórico e tudo, com uma escala muito amigável, com pouco trânsito e bastante gente a andar na rua. O que surpreende então, não é o facto de se estender aparentemente sem regra, mas sim o de se concentrar aparentemente sem regra. Mais importante, no entanto, se estivermos na Califórnia estando em Aveiro, então começa a fazer outro sentido o centro da cidade ter pouca vida e esta, por sua vez, se encontrar nos limites que consideraríamos dignos a uma cidade portuguesa. Ao lado da circular, atrás dos centros comerciais, por longas estradas que se abrem para campos agrícolas, ladeados de casas de um e dois pisos, cada uma na sua propriedade. Aí, ao fim da tarde, observa-se uma hora de ponta particularmente animada e, com a
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qual, o centro de Aveiro não parece rivalizar. Aqui não há centros, há linhas de movimento e ocupação, as pessoas vão-se encontrando ao longo dessas linhas, feitas mais produtivas pelo carro e bicicleta. Aliás, o que com autoridade moral chamaríamos de subúrbios seriam, invés, densos núcleos habitacionais, distribuídos pela paisagem de tal forma que se torna possível manter grandes áreas verdes entre construções. O que saltaria à vista era a fraca qualidade da infraestrutura, nem as estradas obedecem a uma grelha, nem esta grelha torta e cheia de interrupções carrega tudo o que se considera confortos modernos. Mas é de facto uma paisagem feita de agricultores modernos que se calhar combatem há muito por uma espécie de igualdade e liberdade como aquela falada por Jefferson. Isto se estivéssemos na California. Qual destas duas ficções de cidade existe mais em Aveiro? A resposta não interessa tanto quanto a pergunta pois o que faz, entre outras coisas, é precipitar uma discussão do género: então afinal juntou-se esta gente toda desta maneira para que destino, com que sentido? Para uma sociedade pseudo-feudal ou uma de agricultores livres e iguais? Liberal e expansiva ou contraída e austera? Claro que nada é tão simples, mas o revisitar e aprender com ficções de cidade traz esta vantagem, esquecida quando se usa ficções automaticamente: ajudar a questionar o sentido do colectivo. E se se questiona o sentido do colectivo, questiona-se também o sentido das formas que lhe dão sentido. E, esperançosamente, ajuda-se a melhor perceber o sentido de esquissar uma entrada silenciosa, uma tal passagem entre cidade e casa. Por outras palavras, talvez ajude a melhor conhecer que fronteiras fazemos e queremos fazer mais que realidade, tendo em conta que são feitas de ficções radicalmente colectivas.
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Em cima Planta da cidade quando contida entre a auto-estrada, frente às salinas, e aos caminhos de ferro. A suas vastas dependências agrícolas apenas marcadas por uma e outra aldeia bem delimitadas. O construído emergindo da natureza.
Em baixo Planta da cidade actual, com as salinas, auto-estrada, caminhos de ferro, estrada nacional limitando o perímetro urbano e depois vastas construções de baixa densidade extendendo-se para o interior, e uma grande zona industrial a norte. Relações híbridas entre construído e natureza, bem como entre centro e periferia.
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“But in deciding the relative distances of the various objects, he has discovered rhythms, rhythms apparent to the eye and clear in their relations with one another. And these rhythms are at the very root of human activities. They resound in man by a human inevitability, the same fine inevitability which causes the tracing out of the Golden Section by children, old men, savages and the learned. (…) For all this things – axes, circles, right angles – are geometrical Truths, and give results that our eye can measure and recognize; whereas otherwise there would be only chance, irregularity and capriciousness. Geometry is the language of man.” Le Corbusier in Towards a New Architecture
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o podER dos lImITEs Rui Santos
Origem
Vácuo. Não há nada. Não há linhas, nem há pontos, não há
matéria, não há referenciais, não há fronteiras. Movermo-nos no vazio é impossível, pois não há nada que nos movamos de ou para. O círculo representa o ser supremo, o potencial estável, inalterável, a derradeira expressão de unidade, plenitude e integridade: a nenhum ponto da sua superfície é dada maior ou menor importância, todos os pontos são igualmente acessíveis desde o ponto de origem. A unidade, por si, é inalterável.
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De um segundo círculo, de igual diâmetro a partir de qualquer dos infinitos pontos do primeiro, origina o que se denomina de Vescica Piscis. A origem. Toda a relação começa aqui. Da estabilidade da unidade à cinética da dualidade, deus e deuza, masculino e feminino, reside neste acto, num referencial da simbologia Humana, o
Vescica Piscis
flor da vida
padrão Genesis
símbolo da Cristianismo
toro
Fig. 1
DNA / Luz
ventre do Universo, a criação através da divisão, a base de um vasto conhecimento da geometria e, consequentemente, da matemática, raízes quadradas de 2,3 e 5, onde residem conceitos de infinito, apenas expressos por números irracionais, a representação de várias religiões, a estrutura de dupla hélice do dna, etc. Dos pontos de intersecção prolona-se a mesma lógica e obtém-se o que se denomina de “flor da vida” ou “padrão Genesis”. Este símbolo é a essência que contém todas relações geométricas, matemáticas, musicais, o número pi, a sequência de Fibonacci, base matemática para a proporção de ouro, padrões de composição de átomos e galáxias, a base de toda a estrutura que compõe a realidade. Deste padrão nasce também o denominado cubo de Metatrone, que nele inclui todos os sólidos Platónicos, caracterizados pela sua regularidade e simetria, de tal modo que: todas as faces são polígonos regulares iguais; todos os vértices estão em contacto com Fig.1 Evolução do Padrão Génesis a partir de um ponto no espaço. Génese dos sólidos platónicos. © Frederic Bartl, CC BY-ND 3.0
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o mesmo número de faces e arestas; todas as arestas têm o mesmo comprimento; os ângulos das arestas que compõem cada face são exactamente iguais entre si; todos se inscrevem exactamente dentro de uma esfera.
“The bedrock on which (particle) dynamics has been derived is the geometrical structure of individual configurations of the Universe.” 1 Padrão, frequência, matéria. Actualmente, vários ramos da Ciência Moderna admitem a ligação entre estes padrões e as Leis da Física, Física Quântica, Física Molecular, ainda que estes sejam uma representação bi ou tri-dimensional da complexidade pluri-dimensional que é a realidade. Algumas experiências mostram-nos a directa relação entre frequência e matéria, como por exemplo as experiências do físico e músico alemão Ernst Chladni (1756-1827), que através duma placa metálica consegue provar a directa relação entre as frequências de vibração e a produção de padrões geométricos; ou ainda 1
BARBOUR, Julian em Quantum Field Theory and Gravity: Conceptual and Mathematical Advances in the Search for a Unified Framework, Springer, Basel, 2012, p. 275
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as experiências do Japonês Masaru Emoto (1943-2014), onde a projecção de sentimentos positivos ou negativos influenciaria directamente a organização molecular da água.
Fig.3
Fig.2
Fig.4
A verdade é que encontramos latente na Natureza estes princípios fundamentais de composição, do microcosmos ao macrocosmos, da espiral de DNA à casca de um caracol, da proporção do nosso corpo à composição de Galáxias.
Fig.5
Fig.2 Tabela VIII em E.F.F. Chladni, “Die Akustik” , Leipzig 1802. Fig.3/4 Pesquisa de Dr. Masaru Emoto, onde a figura 3 e 4 revelam o estado de solidificação da água exposta a sentimentos positivos e negativos. © Office Masaru Emoto, LLC
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Geometria em Arquitectura Apesar da Grécia Antiga, com nomes como Pitágoras, Arquimedes, Platão entre outros, ser conhecida pelo uso deste conhecimento, os vestígios do seu domínio milhares de anos antes, em impérios como, por exemplo, o Egípcio, são bastante aparentes. A Geometria permitiu a conexão directa com as Leis inalteráveis, os princípios omnipresentes que regem o Universo, em busca do belo e do sagrado na composição artística, numa tentativa de transcendência do mundano. Tal como na Música identificamos a relação entre as notas pela comparação das suas frequências vibracionais, também essa relação de proporcionalidade que (des)compõe a Arquitectura interage com o nossso sistema de percepção. As linhas que traçamos, tal como as notas que escolhemos, vão-se assumir como as fronteiras de composição da arte em questão. O nosso inato sentido de proporcionalidade diz-nos quando um objecto é harmonioso. Esta consciência espacial, esta ressonância entre o sistema biológico e os padrões de composição influencia directamente a nossa resposta, a ressonância ou dissonância com aquilo que nos é remoto. Assim acharam, ao longo da História, nomes como o arquitecto romano Vitrúvio, onde no seu tratado De Architectura, um dos maiores legados do período greco-romano para a Arquitectura, nos diz: “A composição (...) assenta na comensurabilidade(simetria), a cujo princípio os arquitectos deverão submeter-se com muita diligência.(...) a natureza de tal modo compôs o corpo humano que o rosto, desde o queixo até ao alto da testa e à raiz dos cabelos corresponde à sua décima parte.” E ainda “de modo semelhante, sem dúvida, os membros dos edifícios sagrados devem ter em cada uma das partes uma correspondência de medida muito conformemente, na globalidade, ao conjunto da magnitude total. Portanto, se a natureza compôs o corpo do homem, de modo a que os membros correspondam proporcionalmente à figura global, parece que foi por causa disso que os Antigos estabeleceram que também nos Fig.5 Relação entre uma concha e o número Φ. figura original de © Gyorgy Doczi, The Power of Limits, Editorial Troquel 1996. Fig.6 O número Φ nas pirâmides de Gizé, Egipto.
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Fig.6
acabamentos das obras houvesse uma perfeita execução de medida na correspondência de cada um dos membros com o aspecto geral da estrutura.” 2
Fig.7
Ao longo da História, até se desenvolverem outros sistemas de medição derivados, dominaram as medidas antropométricas, como o côvado, (da ponta do dedo médio ao cotovelo), palmo, ou a mão, medidas baseadas no corpo humano, as quais foram utilizadas como referência em várias artes (o côvado era também utilizado, por exemplo, na navegação3), incluindo a Arquitectura. Este sistema de dimensionamento pressuponha que os limites estipulados para o edificado tivessem uma relação directa de escala com o ser humano, tornando a Arquitectura como uma extensão do próprio corpo, mediando a relação Homem/Natureza, interior/exterior duma forma consistente e intemporal. 2
Vitrúvio, Tratado de Arquitectura, tradução do Latim por M. Justino Maciel, Lisboa 2006, pp. 109 e 110. 3 A arte de navegar de Manoel Pimentel: as edições de 1699 e 1712, Lisboa 1712 Fig.7 Arco de Triunfo de Constantino, em Roma; figura original de © Gyorgy Doczi, The Power of Limits, Editorial Troquel 1996. 44
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Também o Renascimento se definiu como uma época fortemente inspirada pelas fronteiras que definem o sagrado, onde a proporção de ouro (1:1.618...) residia latente na composição da maior parte da produção artística da época, de onde se destacaram nomes como Fillipo Brunelleschi (1377-1446), Michelangelo Buonarroti (1475-1564), Donato Bramante (1444-1514) ou Leonardo da Vinci (1452-1519) com o icónico exemplo do Homem Vitruviano, entre outros.
Fig.9
Fig.8
Mais perto dos dias de hoje, o uso deste conhecimento verifica-se em arquitectos como Mies van der Rohe (1886-1969), com exemplos como a casa Farnsworth ou a Barcelona Chair, Josep Lluis Sert (1902-1983), com o exemplo da Fundação Juan Miró em Barcelona, Alfred Neumann (1900-1968) com a sua publicação de L’Humanisation de l’espace: Le system mΦ (1956), onde propõe a sua interpretação geral de linhas regulatórias, considerando a secção de ouro como o melhor instrumento de síntese para o efeito, ou Charles-Edouard Jeanneret-Gris (Le Corbusier), que baseia grande parte da sua obra nas proporções divinas, generando inclusivamente um sistema denominado de Modulor, a sua versão moderna do Homem Vitruviano, vastamente utilizado como referência no seu trabalho. Fig.8 Le Modulor por Le Corbusier; imagem de www.flickr.com / CC BY 2.0 Fig.9 O Homem Vitruviano de Leonardo Da Vinci e a constante do número Φ nas suas relações de proporção; figura original de © Gyorgy Doczi, The Power of Limits, Editorial Troquel 1996.
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O Modulor
consiste num sistema de proporções desenvolvido por Le Corbusier, cujas dimensões se baseiam no corpo humano (e, consequentemente, na proporção divina), onde um indivíduo imaginário servia como ponto de partida e referencial de medição dos seus projectos. Este sistema foi frequentemente utilizado ao longo da sua obra e conduziu-o a um processo de desenho fortemente simbólico que lhe permitiu não só representar a sobrevivência e renovação dos valores éticos e morais da Antiguidade, como lhe permitiu apresentar-se ele próprio como a ligação entre passado, presente e futuro, como escreve, em carta em 1930: “Se apenas soubesses a felicidade que experiencio quando posso genuinamente dizer: as minhas ideias revolucionárias estão na história através dos Tempos e dos Continentes” 5. Esta tentativa de elevar a Arquitectura a um plano Eterno e Universal e, consequentemente, ultrapassando fronteiras políticas e ideológicas, foi de facto recebida deste modo pela época, como o mostram algumas publicações, como a de Émilie LeFranc, com o sugestivo título: Des pharaons a Le Corbusier: Esquisse d’une histoire de l’architecture. (Dos Faraós a Le Corbusier: Esquisso de uma história da arquitectura.) Perceber e explorar a aplicação destes padrões abriu-lhe novas visões, permitindo a ponte entre categorias que de outra forma talvez não se revelassem, tais como habitação social + monumentalidade: a casa comum podia ser embuída com a monumentalidade de um templo. Le Corbusier repetidamente se referiu à casa como templo, como escreve em Mise au Point: “Durante 50 anos tenho estudado todo o homem, mulher e criança. Uma preocupação temme inquietado compulsivamente: introduzir na casa o sentido do sagrado; fazer da casa o templo da família. Desse momento para a frente, tudo mudou. Um cêntimetro cúbico de habitação valia ouro, representava a possível felicidade. Com tal ideia de dimensão e propósito, hoje pode-se construir um templo que vá de encontro 4
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Le Modulor, essai sur une mesure harmonique à l’échelle humaine, applicable universellement à l’architecture et à la mécanique, Bologne 1950 5 Charles-Edouard Jeanneret, citado em Brooks, Le Corbusier’s Formative Years, p.171 6 Le Corbusier, The Final Testament of Père Corbu: a Translation and Interpretation of Mise au Point by Zaknic (New Haven, CT: Yale University Press, 1991), p. 91, tradução livre)
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às necessidades familiares, mesmo ao lado das catedrais”6, ou ainda, no não publicado Fonds du sac, “dediquei quarenta anos da minha vida a estudar a habitação. Trouxe o Templo de volta à família, de volta à casa. Reestabeleci as condições da natureza nas vidas humanas.” 7 A fronteira certa “Símbolos não interagem com a mente da mesma maneira que textos: eles geram pensamento e, como o campo do pensamento é infinito, eles nunca sugerem tudo. Se defendemos o simbolismo, é porque o reconhecemos como o mais poderoso estimulante do pensamento autónomo, que advém de cada um. Os filósofos que se gastam com palavras ensurdecem-nos com a sua conversa, e longe de nos fazerem pensar livremente, tendem a converter-nos aos seus sistemas. A superioridade dos símbolos consiste no silêncio que os previne de proclamar o que quer que seja, ao mesmo tempo que despertam a reflexão... Mas a pessoa que é levada à meditação pelo simbolismo não mais se afasta dela, pois a imagética faz com que a mente trabalhe incansavelmente. Uma primeira ideia/ conceito que despertou espontâneamente dará lugar a outra, que levará a uma terceira, e assim consequentemente, em ininterrupta geração.” 8 “Is it not true that most architects to-day have forgotten that great architecture is rooted in the very beginnings of humanity and that it is a direct function of human instinct?” 9
Criar arquitectura significa criar limites. Desenhar a linha que
representa a parede revela-se, na prática, fronteira. Não existe, portanto, Arquitectura sem fronteira, o que significa que a arte reside sempre na escolha da mesma. A sua justificação é também questionável, dada a subjectividade intrínseca à prática da mesma, as experiências e referenciais do arquitecto, os propósitos que motivam a génese da obra, os clientes e as relações de liberdade/imposição. Numa actualidade onde a prática da Arquitectura se revela muitas vezes fruto de caprichos, modas, espectacularidade desprovida de 7
Fond du Sac, Fondation Le Corbusier, A3-7), tradução livre Jean Stern in William, ou la confession d’un enfant d’un demi-siècle, tradução livre 9 Le Corbusier in Towards a New Architecture, London 1931, p. 72 8
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essência, muitas vezes generando confusão e exacerbado sensacionalismo ao invés de dialogar duma forma simbiótica com o seu utilizador, numa actualidade onde as sinergias que ditam a fronteira são muitas vezes desfocadas e incertas, onde leis, clientes, economia, arquitectos e outros apêndices da obra em si se amalgamam conflituosamente, em detrimento da produção duma arquitectura que seja extensão e catalizador da humanidade, surgem questões como: Existe uma fronteira certa? Existe um sítio ideal onde traçar a linha? Há garantias contra a arbitrariedade? Se há, como nos vão apontando os vários saberes, uma relação directa entre frequência e matéria, que é o mesmo que dizer, frequência e forma, se é realmente verdade que existe uma teoria do campo unificado, como a defendida por Albert Einstein, a qual tem vindo a ser cada vez mais uma realidade10, ou seja, se estamos constante e directamente expostos e fortemente sujeitos às influências geradas pelos padrões que nos rodeiam, estará uma oportunidade de sintonia entre humanidade e realidade latente nos motivos intrínsecos a este simbolismo, cuja ciência da geometria parece constatar mais até que representar? Não podemos certamente obliterar a multitude de propósitos da Arquitectura. Ela serve o desejo de quem a quer ver construída, seja esse o propósito dum simples abrigo, a casa de uma família, o templo sagrado de uma civilização. É importante então definir o conjunto de propósitos da civilização que usa a Arquitectura como instrumento, não só representativo mas também catalisador da direcção que ela quer assumir. Mas se cada pedaço de criação emergir das Leis omnipresentes, se toda a oportunidade de construir considerar esta representação/ recriação, em ser uma parte de um todo, talvez a exteriorização humana em matéria, neste caso em Arquitectura, possa existir duma maneira que sugere diariamente as suas origens e o seu propósito duma forma clara e consistente, ao invés de originar empilhamentos confusos e desorientadores. A industrialização da arquitectura levou consequentemente a uma especialização dos saberes inerentes à construção, e é muito provavelmente culpada nesta dissociação, de tal modo que o re-
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https://www.theguardian.com/science/2016/feb/11/gravitational-waves-discovery-hailed-as-breakthrough-of-the-century
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sultado sejam obras fragmentadas onde se perde esta relação entre o todo e as suas partes, onde se perde a noção holística de arquitecto que Vitrúvio defendia: “Passam além do ofício de arquitecto, tornando-se matemáticos, aqueles a quem a natureza atribuiu inteligência, agudeza de espírito e memória, de modo a poderem ter um conhecimento profundo de geometria, astronomia, música e outras ciências. Eles poderão facilmente argumentar acerca daquelas disciplinas, porque estão armados com os dardos de muitos saberes.” 11 Na Geometria, a infinitude só existe perante o traço de uma fronteira certa, única, que não pode existir em nenhum outro sítio para que se verifique essa condição; a infinitude reside, curiosamente, na exactitude de uma linha. E na Arquitectura?
“I feel inseparable from the idea of proportioning, and both my mind and my hand continue to deal with it. In architecture, regulating lines; painting as well. You can acquire such mastery in this plastic mathematics that you are freed from having to make calculations and diagrams; your hand automatically performs them. It is the task of our modern world to dispose of arbitrary metric measurements in construction and replace them with the remarkable resources of numbers, and in particular the fruitful and inexhaustible golden section.” 12
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Vitrúvio, Tratado de Arquitectura, tradução do Latim por M. Justino Maciel, Lisboa 2006, p. 36 12 Le Corbusier, (1948). L’architecture et l’esprit mathématique In: Le Lionnais, 1ª ed. Les grands courants de la pensée mathématique. Paris: Cahiers du Sud.
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F R PO NTO N T E I R A
DE
CONTACTO
Paulo Afonso
À partida para este artigo, o ponto mais pertinente prendeu-se
(e como o próprio motivo desta publicação indica) com o significado de fronteira, do qual decorreria a procura da pertinência do artigo. Comumente a palavra define o limite entre dois estados, sendo que, no entanto, a definição mais correcta seja a zona de território imediata à raia que separa duas nações, ou seja, representa mais que uma linha limítrofe que demarca um país, uma faixa de território em torno desse limite. Convém ainda sinalizar que a fronteira se refere a algo físico, enquanto que já “limite” é um conceito imaginário. Por último, a palavra fronteira vem do latim frons, que significa fronte, fachada, ou simplesmente frente. Se bem que possamos também usar a palavra “fronteira” como limite, cingindo-nos à etimologia da mesma parece-nos mais correcto (e sendo o propósito desta publicação inferir sobre questões espaciais mais que linguísticas ou filosóficas) entender que vamos falar de fronteira enquanto espaço físico. No entanto, é objecto deste artigo desvirtuar, se assim o podemos chamar, o conceito da palavra para falarmos de fronteira não só enquanto esse limite que marca dois países, mas mais que tudo como um limite que marca dois espaços. Decorrendo sobre várias escalas e efeitos e tratamentos que nascem da geração de uma fronteira, entendemos a fronteira como esse espaço que se encontra no limiar entre dois espaços, que marca dois
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lados distintos. Mas interessa-nos entender essas fronteiras não só como espaços de demarcação e separação, mas também como espaços de conexão e muitas vezes interdependência, assumindo que o simples acto de “criar” uma fronteira ocasiona um acto espacial de transformação territorial. Este conceito dual de separação / conexão pode ser verificado em alguns casos específicos. Falando de fronteiras físicas entre países, podemos verificar que enquanto fronteiras como a da Coreia do Norte e Coreia do Sul, ou entre Israel e Palestina, em ambos casos fronteiras fortificadas e exclusivas, são espaços de separação, enquanto que a tripla fronteira França – Suíça – Alemanha onde os 3 países administram uma área comum, incluindo um aeroporto, existe além da demarcação territorial e política uma clara conexão e espaço de sobreposição às três nações. Estes exemplos são especialmente focados no livro “Hyperborder”, de Fernando Romero, no qual analisa a fronteira EUA – México, e onde nos indica certos pontos de conexão num espaço altamente dividido, ao qual chama um estado de interdependência: as cidades irmãs (14 cidades fronteiriças que partilham os mesmos problemas, tais como poluição, doença, fornecimento de água, etc.), a dependência laboral estado-unidense da mão de obra ilegal mexicana, o turismo, etc., encontrando certas relações no território dos dois lados da fronteira e assumindo o espaço de fronteira como uma temática em si mesma.
As fronteiras são um espaço geralmente conotado com a ideia de
separação. De facto, durante o último século, esse fenómeno temse acentuado quer na sua vertente física, mas também social (fronteira entre classes, povos, crenças, etc.), fenómeno que se verifica com a construção de muros que, mais do que uma separação física, carregam um significado muitas vezes mais profundo, e denotam uma separação ideológica, física, social, política ou religiosa. Muitas destas fronteiras são novas fronteiras, tornando físico algo que não o é, por um lado, pelo outro exacerbando as fronteiras físicas já existentes e conotando-as de novos significados, como é o caso dos muros e cercas construídas nos países europeus como resposta ao fluxo de migrantes refugiados de países em convulsão. “Os muros têm uma relação duradoura tanto com a liberdade do medo como com a submissão a uma outra vontade. Depois de 1945, os muros adquiriram uma determinação sem precedentes
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para dividir. Espalham-se como um incêndio florestal, de Belém à Palestina, dos tabuleiros da Caxemira às aldeias de Chipre, desde a península coreana até às ruas de Belfast. Quando a Guerra Fria terminou, foi-nos dito para aguardar pelo seu desmantelamento. Em vez disso, estão a aumentar de tamanho, são mais impenetráveis, mais compridos. Saltam de um continente para o próximo. São globalizantes. Da Cisjordânia ao Kosovo, dos condomínios fechados do Egipto para os da Califórnia, desde os campos de morte da velha Etiópia para as fronteiras dos EUA e do México, uma parede serpenteante e sem emendas, surge, tanto física como emocionalmente, na superfície do planeta. O seu especto paira sobre nós.” Yanis Varoufakis / Danae Stratou – The Globalizing Wall Importa ressalvar, neste trabalho de Varoufakis e Stratou, que o objecto de separação neste caso não é somente algo físico. Um muro é algo intransponível, através do qual não há qualquer tipo de interação possível, ao contrário das cercas, cuja permeabilidade acaba por transformar-se muitas vezes num importante ponto de contacto entre duas realidades físicas distintas. No filme “The Boy in the Striped Pajamas”, John Boyne retrata excepcionalmente essa relação através de uma história na qual duas crianças, Bruno, um alemão filho de um oficial Nazi, e Shmuel, um judeu prisioneiro, desenvolvem uma relação de amizade através de uma cerca. Os muros, no entanto, tornam qualquer possibilidade de interação impossível. Devido a essa situação extrema, muitos desses muros são hoje usados como telas e espaços de divulgação e cidadania, alertando na maioria das vezes para a realidade que aquele muro cria fisicamente assim como para a realidade que levou à criação desse mesmo muro. No entanto, os espaços envolventes desses muros são na sua generalidade espaços inertes, fúteis e inócuos, arriscando-se a tornar-se em não lugares, não por serem lugares transitórios, mas sim por serem espaços sem significação, espaços proibidos e proibitivos. Se bem que essas fronteiras crescentes tendam a ser espaços de exclusão, as fronteiras tendem, em muitos casos, a ser espaços de contacto ao invés de separação. A criação, muitas vezes artificial ou humana, de dois espaços contíguos com distintas significações, resulta na maior parte das vezes no nascimento ou desenvolvimento de novos espaços e o exponenciar de relações entre o “lado de lá” e
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“lado de cá”. Talvez o exemplo mais premente deste facto seja o facto dos entrepostos comerciais, locais de troca situados na maioria (senão mesmo em todos) dos casos em pontos de fronteira. Hoje em dia, existem ainda uma grande maioria de cidades ou assentamentos urbanos localizados na fronteira cuja própria existência deriva do facto da existência da troca e intercâmbio que acontece pelo simples facto da existência de uma fronteira. Obviamente que não queremos cingir este facto às fronteiras entre países. As praças de mercado encontravam-se, tradicionalmente, na fronteira entre a cidade consolidada e a envolvente mais rural, ou mesmo entre duas partes da cidade distintas (basta lembrarmo-nos dos arrabaldes e judiarias). Tais intercâmbios não são sempre legais ou legitimados, mas o facto de a fronteira existir implica a existência desses pontos de contacto. Aparte a interação existente, o conceito de fronteira acaba muitas vezes por criar uma identidade comum aos dois lados da fronteira. Essa identidade e a interacção proporcionada reflectem-se nitidamente no espaço físico e construído. Assim, as fronteiras tendem a ser muitas vezes espaços de contacto mais do que espaços de separação. E é talvez essa dualidade que marca exactamente o definir de fronteira, ou pelo menos as suas consequências do ponto de vista espacial e, intrinsecamente, social. Um espaço separador que agrega, que torna único e comum, que evidencia e demarca. A natureza da fronteira, tal como Janus, é olhar sempre para os dois lados.
Além da fronteira entre espaços de larga escala, como países, ci-
dades, distritos, bairros, etc., há uma escala bem diferente quando falamos de espaços de pequena escala, mais especialmente à escala do edifício. É esta fronteira e a maneira como a trabalhamos que fazem sentido referir-nos a certos conceitos e relações, como por exemplo interior/exterior. Esta relação espacial entre dois espaços é, na sua maioria, desenvolvida através de muros. Coincidentemente, ou talvez não, acabamos esta crónica com o mesmo objecto com que a iniciamos. Com o muro. No entanto, na arquitectura, os muros são trabalhados de outra maneira, sendo espaços de separação, mas também de integração, ou de relações ténues ou francas, através do tratamento da sua materialidade ou da inclusão de elementos mais ou menos permeáveis como janelas e portas. Lembro-me perfeitamente, ainda jovem, de me deparar com a
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janela da Igreja de Marco de Canaveses, do Siza. Geralmente as igrejas são espaços contemplativos, e a sua relação com o exterior, quando falamos de janelas, é tradicionalmente para efeitos de entrada de luz. As paredes de uma igreja representam a fronteira entre o sagrado e o mundano, entre o espírito e o mundo. Quando vamos à igreja do Marco, e nos sentamos, olhamos para o lado e vemos na janela rasgada horizontalmente todo o mundo que há lá fora. Contemplamos, num momento de elevação espiritual, a sacralidade do mundo em que habitamos, a relação entre deus e o homem, olhamos lá para fora como se olhássemos para dentro. E o tratamento dessa fronteira muda indubitavelmente, quanto mais não seja na nossa consciência, o espaço lá fora e o espaço cá dentro.
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Editor: Rui Santos Textos: Miguel Roque, Paulo Afonso, Rui Aristides, Catarina Leal, Rui Santos. MORFEMA Nยบ3 FRONTEIRA(S) | ABRIL 2016 ISSN 2183-7694 geral.morfema@gmail.com