REVISTA MORFEMA

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revista de ensaios sobre o espaço

e s c o l aS

A escola é onde aprendemos, é o que aprendemos, é como aprendemos. Pode ser física ou mental. Escola como espaço, sentido ou estilo, como tradição e inovação, como cultura e sociedade, o saber e o fazer, aprender e ensinar. A escola pressupõe educação e estudo, contém saberes e conhecimentos, é feita de lugares e estilos, é continuidade e ruptura, concordância e contradição, análise e método, correr, sentir, olhar, parar, pensar, viver. A escola é a nossa maneira de ser, de pensar e de existir, é a maneira como somos com os outros e para os outros, todos num só, diferentes e iguais ao mesmo tempo. A escola é tudo e somos todos.



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Onde estão as crianças? Paula Del-Rio

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Para um espaço de aprendizagem democrático Gonçalo Canto Moniz

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Colégio das Artes – A quadratura do ensino Luis Gomes

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Escolas improváveis Rui Aristides

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(Lost) in translation Paulo Afonso

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Escolas em Moçambique - Evolução com o clima e com o Homem Zara Ferreira A escola pública na transformação da cidade moderna Carolina Ferreira

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ONDE ESTÃO AS CRIANÇAS?

Paula Del-Rio

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ropomos ao leitor acompanhar-nos num experimento, uma coisa simples, um passeio à volta de casa. Para a experiência ter sucesso e se transformar numa aventura temos de cumprir uma única exigência de total importância: pretender sermos crianças. Se estiver disposto a correr este pequeno risco, vai precisar dos olhos bem abertos, mais ou menos a um metro do chão, de ativar a sua curiosidade, e de muita vontade de brincar e encontrar, claro, outros miúdos. Advertimos que uma vez preparado, colocado e disposto, assume o risco de ser pequeno, e ver o mundo como pequeno, tenha cuidado! Primeiro terá que sair de casa. Se tem a sorte de poder sair a pé este exercício será, sem dúvida, mais agradável. Como não é o nosso caso, pode seguir-nos imaginariamente e entrar no carro. Chegamos em menos de três minutos a um espaço para crianças. Estamos em Coimbra, é sábado, meio-dia, a temperatura é agradável e própria de um tranquilo dia de outono, faz sol apesar de ser já novembro. Aparentemente somos os primeiros a chegar hoje a este parque infantil, está deserto. Encontramo-nos num perfeito espaço para crianças, povoado por estruturas classificadas por idades com aparatos para a diversão perfeitamente adaptados às capacidades motoras estabelecidas para cada tamanho de criança. Tem baloiços, escorregas, plataformas que rodam, um barco, uma casita... um sem fim de coisas que os adultos pensam serem o que as crianças desejam para brincar. Para o nosso metro de altura uma placa indica qual a zona adequada, e cada máquina demonstra ter um uso preciso. O escorrega, perfeitamente adaptado ao nosso tamanho para deslizarmos sem grande velocidade, um baloiço, também perfeitamente calculado para balançarmos, um sobe-e-desce, um roda que gira... Tudo é perfeito, exatamente o que necessitamos. Sabemos a ação relacionada com cada objeto, e adquirimos uma noção clara das capacidades físicas que uma criança do nosso tamanho deve dominar. A única atividade livre que se nos oferece é correr. O pavimento está amortecido, como todos os objetos para o nosso divertimento, sabemo-lo, estamos num espaço seguro, precisamente o que necessitamos. 4


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Porém, se a nossa natureza curiosa – lembre-se que estamos a brincar a pretender ser um pouco crianças – nos faz levantar a vista, descobrimos que estamos subtilmente rodeados. Um murete da altura dos nossos olhos, camuflado atrás de uma sebe perfeitamente cortada delimita o nosso espaço seguro. Entendêmo-lo facilmente, mais além da sebe/muro, tudo o que está do outro lado já não é seguro, não é para nós, é perigoso. Ainda curiosos podemos empoleirar-nos num banco, ou subir ao escorrega para descobrir que este espaço para crianças está rodeado por um grande estacionamento. Os edifícios de apartamentos que fecham o horizonte parecem agradáveis, ainda que quase não há passeios que conectem o parque com eles, estão efetivamente longe. Com o tempo vão chegando mais crianças, seis mais ou menos, todos, como nós, vêm de carro aproveitando a comodidade de ter tanta disponibilidade de espaço para estacionar, muito apreciada pelos adultos. Todos, como nós, aprendem a interiorizar a mensagem deste parque magnífico, cuja manutenção é sem dúvida caríssima: dentro destes muros é o nosso espaço, fora, mais além da pequena cancela equipada com um cadeado que alguém fecha pela noite, não. Espaços para crianças Como sucede com os parques infantis, de facto poderíamos ter feito este experimento anterior numa escola, mas estão fechadas. Aparentemente nós – todos – somos também perigosos e não devemos penetrar nesse espaço seguro. As escolas, com os seus pátios fechados com muros funcionam como ilhas na cidade. Outro pretendido oasis de segurança no magma perigoso do espaço público, que não é senão um reflexo de uma forma de marginalização por idade. Durante os dias laborais a sociedade permite-se esquecer as crianças, que confina nesses espaços singulares com estrutura de pan-ótico: o mínimo número de vigilantes para o maior número possível de crianças. Como muito em alguma rua ouvem-se os gritos que vêm de algum pátio de recreio. Pelo demais, silêncio e invisibilidade ou, de novo, marginalização. Como, além disso, as ruas não são para crianças, a rotina dominante para elas é uma sucessão de espaços seguros: casa-carro-escola-carro-casa, interrompida às vezes por uma visita ao parque infantil ou a atividades extraescolares. Todo este processo sucede imbuído na atividade da cidade, mas escondido dos nossos olhos, de costas aos processos produtivos, invisível, convertendo as crianças em cidadãos de segunda. As divisões que fazemos da sociedade, neste caso por idade, produzem-se também a outros níveis. Temos lugares para os anciãos, para os incapacitados,

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para os inativos, para as mulheres... No fundo, uma série de sistemas de segregar com tal potencia que adquiriu forma física: espaços. Esta segregação sócio-espacial não só traduz a aceitação de múltiplas formas de discriminação, mostra também uma grave despreocupação pelo espaço público, cada vez mais acentuada no mundo individualista em que vivemos. A classificação de espaços em função de critérios de segregação social é também horária e programada, o que os converte, fora de horas de uso em espaços de marginalidade - podemos evocar aqui os clássicos junkies de parque infantil, apropriadamente mal iluminado pela noite. A pergunta que naturalmente nos vem à cabeça é, para quem é a cidade então? A cidade está adaptada e supre os requisitos dos cidadãos de primeira: os que votam, pagam impostos e têm capacidade de compra e consumo: os adultos com emprego. A este grupo uniu-se recentemente outro, igualmente rentável: o dos turistas, cuja influência e vontade de investimento estão confinadas aos centros históricos e à cidade com “encanto”. Como pouco a pouco esta parte da cidade se vai negando aos habitantes do dia a dia, não resulta relevante para o caso que nos ocupa. Segurança, Medo, Dependência A prevalência de diferentes formas de medo coletivo é um dos temas constantes entre os autores que estudaram as caraterísticas das sociedades ocidentais pós-modernas. Os medos identificados analisam-se em busca da sua origem, e das consequências que a sua aceitação tem para os indivíduos. Para mencionar apenas alguns relatos relevantes, em 1947 Fromm encontrava um medo generalizado à liberdade, que responsabilizava pelo triunfo dos fascismos na Europa. Já no início deste século Sennet defendia que o medo à incerteza está na origem dos problemas de identidade, de pertença à comunidade e da construção do relato do eu, da consciência de pequenez e irrelevância ante um mundo avassalador. Nos relatos sobre a contemporaneidade são constantes as advertências sobre os efeitos do medo na autoestima, visíveis em forma de estatísticas de depressão, ansiedade e outras doenças psicológicas dos adultos, cada vez mais associados também às crianças. Se esta cultura do medo se promove desde há mais de 50 anos, as consequências nos dias de hoje são claramente percetíveis. Assistimos a uma espécie de negócio do medo, cujo principal altifalante é a televisão, empenhada

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em convencer-nos de que nos encontramos rodeados de perigo. Os episódios e as desgraças, os roubos e os assaltos saltam ao primeiro plano constantemente, fazendo da exceção a regra, convencendo-nos de que estamos em constante risco. E esta falácia é especialmente dolorosa na nossa segura e tranquila Europa. Pedagogias Recapitulando, neste breve passeio pelas mensagens que transmitimos às crianças na sua vida quotidiana, até agora deixámos-lhes claro que a cidade que construímos e em que vivemos não é segura, que de facto deviam temê-la e que quase tudo, mais além dos recintos “para eles”, devia dar-lhes medo. Esse medo é o sentimento dominante que utilizamos para mantê-los seguros, medo a tudo e todos, aos estranhos, ao desconhecido. Mantemos a sensação de estar a fazer o correto, protegendo-os do dano ou da ferida, mas também os protegemos da surpresa, castigando e castrando a sua curiosidade, porque para manter a segurança usamos e fomentamos uma profunda dependência de nós, os adultos. Obrigamos as crianças a viver supervisionadas de forma que todas as decisões dependam de um adulto. Assumindo que não estão qualificadas para tomá-las, estamos a desvinculá-los de qualquer tipo de responsabilidade. E como estamos a falar de crianças, que se encontram em idade de crescimento, estas mensagens instalam-se no fundo da sua perceção do mundo. A tríade medo-dependência-irresponsabilidade é, de forma camuflada, a base sobre a que cimentamos a relação da infância com o mundo. Um crítico feroz deste ideário educativo é o pedagogo italiano Francesco Tonucci, que dedicou os últimos 50 anos a denunciar a perversidade destas mensagens para as crianças, através de livros e desenhos em que põe em evidência a sua persistência: na escola, em casa, na publicidade, nos brinquedos, na televisão... Em fim, na cabeça dos adultos. Segundo este ilustrador e pedagogo, o que se está a produzir vai muito mais além da separação do espaço público e da marginalização da infância: tem efeitos psicológicos na formação da criança, no futuro cidadão que vai ser, na sua relação com a sociedade e, sobre tudo, no desenvolvimento da sua autoestima. Porquê? Se observarmos os adultos que admiramos ou apreciamos, cuja integração na sociedade é mais eficiente, e que constituem os modelos de êxito, que coisas têm em comum? Tratam-se de pessoas valentes mais do que prudentes, sociais mais do que solitárias, aventureiras, empreendedoras, com segurança em si mesmas... Esta forma de estar no mundo muito dificilmente se sustenta sobre o medo ou sobre a marginalização, a desconfiança ou a insegurança, a falta de

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responsabilidade sobre a qual se constrói a educação precoce. Estamos no fundo a alimentar uma contradição: impondo um modelo baseado no curto prazo: manter as crianças seguras; e a arruinar ou a negar as suas consequências a longo prazo. O caminho para a escola São muitos os pedagogos e psicólogos infantis que apoiam esta visão, assim como encontraremos outros que defendem a contrária, a utilidade do medo na educação. Porém, a menção de Tonucci não é casual, o seu ponto de vista com que vimos concordando até agora deriva o foco para a questão com que começámos, em que os arquitetos têm algo que opinar: a relação com o espaço, especialmente o espaço público. Tonucci teve uma ideia, física, espacial, mais além do trabalho dos pais e professores e das teorias pedagógicas. Propôs uma pequena mudança na cidade a partir de uma mudança na rotina das crianças, que teve um grande êxito em diferentes lugares do mundo: que as crianças vão sozinhas para a escola. Sozinhos, andando e sozinhos, em grupos e sem adultos. Desde o ponto de vista dos pais pode parecer uma loucura arriscada: enviá-los sem supervisão, vulneráveis aos perigos da cidade. Pelo contrário, desde a visão da cidade pode parecer uma operação mínima: as ruas já lá estão, que diferença pressupõe que as percorram as crianças? Vamos aprofundar um pouco os efeitos tanto sociais como espaciais deste projeto, para tentar entender como desde ambos os pontos de vista se trata de uma proposta com uma capacidade importante para alterar a ordem das coisas. Tonucci começou este programa na sua cidade natal, Fano, em Itália, com uma população de aproximadamente 60.000 habitantes, há 30 anos. A ideia original baseava-se em dois princípios fundamentais: primeiro, dar às crianças sozinhas a responsabilidade e a possibilidade de cuidar umas dos outras, de se sentirem seguras por si mesmas e desenvolverem a sua autonomia. A segunda, uma firme crença de que numa sociedade em que as crianças são visíveis e tuteladas por todos, necessariamente aumenta a segurança. Que se a diversidade aberta das crianças é aceite, também o serão todas as diversidades. Que o esforço de todos e a presença das pessoas na rua afugenta a criminalidade porque esgota o seu espaço, o crime desenvolve-se em espaços vazios, em meios solitários. Desde que o programa foi implementado em 1991, nenhum participante sofreu um acidente, nem um rapto ou sinal de violência, enquanto que no mesmo tempo houve 9 acidentes de automóvel que levavam crianças à escola.

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Isto apoia a teoria de Tonucci de que o carro, e por extensão a casa, são os lugares mais perigosos para as crianças; as estatísticas de internamento nos hospitais também a avalam. Que um programa deste tipo tenha êxito numa pequena cidade italiana, na nossa segura Europa, provavelmente não nos surpreende. Porém, durante este tempo o programa foi-se alargando, até construir uma rede mundial de “cidades para crianças”. Primeiro por Itália, depois principalmente pela América do Sul. O caminho seguro para a escola desenvolveu-se com êxito em Buenos Aires, no bairro Almirante Brown, como resposta a um aumento da criminalidade ante o qual tanto os esforços policiais como a instalação de câmaras nas ruas não estavam a dar resultados. A criminalidade desceu 50% pelo que o projeto se começou a aplicar noutras zonas de Buenos Aires. Assim seguiram outros países até formar hoje um conjunto de mais de 200 cidades de Itália, Espanha, Argentina, Uruguai, Colômbia, México, Peru, Chile e mais recentemente Líbano e Turquia, uma extensa rede que trabalha na adaptação desta ideia às suas condições particulares. Mas, em que consiste? O que se faz? A que chamamos a adaptação da cidade? Aqui começa a questão para a arquitetura e o projeto urbano. A implementação original deste projeto consistia na criação dos meios suficientes para que as crianças pudessem sair sozinhas de casa, sem a supervisão de um adulto, para percorrer o caminho até à escola. Para isso, em primeiro lugar, avisam-se os vizinhos de que vão andar crianças sozinhas na rua, desenvolve-se um código de autocolantes coloridos em comércios que participam, identificando os lugares em que se pode pedir um copo de água ou usar a casa de banho. Por último, voluntários e reformados supervisionam os cruzamentos em que pode haver algum perigo para controlar o trânsito e evitar acidentes. Às crianças explica-se que se há algum problema podem pedir ajuda ao primeiro adulto que virem. Sim, ao primeiro, com o objetivo de evitar a marginalização de pessoas pelo seu aspeto, entendendo que qualquer um está disposto a ajudá-los. Além da questão social, esta perspetiva traz mudanças para o projeto do espaço público. Os primeiros que nos vêm à cabeça: passeios mais largos, redução da velocidade do trânsito, depois, melhoria de visibilidade nos cruzamentos ou uma colocação inteligente das passadeiras, bancos em que se possa descansar...e nada de muros. O terreno do projeto abre-se à possibilidade de espaços multiusos, sem programar, abertos à criatividade, em que a criança pode propor o jogo, em que o espaço do jogo seja contínuo, repensando a necessidade de estar confinado. Se efetivamente a delimitação estrita dos espaços não é necessária, esta integração ou incorporação do espaço com crianças (e já não espaço para

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crianças) pode transportar-se também à escola. Podemos colocar-nos, como arquitetos, em posição de questionar a necessidade de que as escolas sejam recintos fechados, e que tenham de acontecer de costas para a cidade, que tenham de estar marginalizadas. Abre-se aqui uma via para pensar o projeto dos espaços onde estão as crianças mais além da escola, pensando a presença da escola na cidade, o espaço que a envolve, o espaço de jogo incorporado nas atividades cidadãs, em que talvez não seja necessário manter a presença dos limites ou o confinamento dos pátios, e esses limites se difundam por serem desnecessários. O projeto da escola passaria a ser parte integrante do espaço público que é toda a cidade. Talvez pudéssemos deixar de pensar que as crianças são tontas e os adultos perigosos e abusadores, que as crianças são incómodas e não as queremos ouvir, ou que a sociedade é um fracasso até ao ponto de só assumir uma franja de idade, a mais autossuficiente, a nossa. Epílogo Contei isto a uma amiga, mãe de um menino pequeno. Respondeu-me que estava a descrever um sonho, que o perigo é REAL, que roubam crianças e abusam delas, que jamais exporia o seu filho a uma loucura semelhante. Pensei nesse menino de quatro anos sentado em casa, vendo mansamente a televisão, a salvo. Talvez a minha amiga seja a pessoa mais perigosa para essa criança.

REFRÊNCIAS Bibliografia: Fromm, Erich. El Miedo a La Libertad. Nueva Biblioteca Erich Fromm. Barcelona: Paidós, 2008. 1947. Sennett, Richard. La Corrosión Del Carácter. Barcelona: Anagrama, 2006. 2000. Tonucci, Francesco. La Ciudad De Los Niños. Comunidad Educativa. Barcelona: Graó, 1996. 1991. Mais informação: Projeto Internacional do Conselho Nacional de Investigação do Instituo das Ciências e a Tecnologia do Conhecimento de Roma: http://www.lacittadeibambini.org/ Publicação da Direção Geral de Meio Ambiente da Comissão Europeia: A cidade, as crianças e a mobilidade: http://www.ccub.org/kids_on_the_move_es.pdf

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para um espaço de aprendizagem democrático a transformação de escolas do Estado Novo Gonçalo Canto Moniz

O

s edifícios escolares foram maioritariamente construídos em Portugal ao longo do século XX, especialmente durante a vigência do Estado Novo (1933-1974). Neste sentido, a intervenção nas escolas primárias e secundárias pelo actual regime democrático coloca uma questão central: como transformar os espaços construídos por um regime autoritário em espaços que promovam uma aprendizagem democrática? Este artigo apresenta e discute uma investigação realizada pelos estudantes de Arquitectura da Universidade de Coimbra com o objectivo de transformar um edifício escolar construído em 1955, num espaço democrático, integrando metodologias de projecto participativas (Woolner, 2014). Assim, serão desenvolvidos quatro tópicos: primeiro, a origem da educação democrática em Portugal, nomeadamente as ideias de António Sérgio produzidas nas décadas de 1910 e 1920; segundo, a construção massiva de edifícios escolares pelo Estado Novo entre 1926 e 1974 no quadro de uma educação autoritária; terceiro, o problema da integração desses edifícios no regime democrático a partir de 1974; quarto, as propostas desenvolvidas pelos estudantes de Arquitectura para transformar os espaços autoritários em espaços democráticos. 1. António Sérgio: educação cívica O debate internacional sobre a democratização da educação inicia-se ainda no final do século XIX com um conjunto de pedagogos que reivindicam uma educação centrada no aluno. A pedagogia moderna e progressista desenvolvida pelo pedagogo americano John Dewey (1859-1952) tem repercussão internacional e os seus livros estão de imediato acessíveis na Europa, particularmente Education and Democracy, publicado em 1916. Em Portugal, um dos primeiros pedagogos a citar Dewey foi António Sérgio (1883-1969) que havia estudado no Institut Jean-Jacques Rousseau em Paris entre 1914 e 1916, onde teve contacto com os ideais da Escola Nova e com os seus fundadores, Édouard Claparède e Adolphe Ferrière. Em Paris, Sérgio 12


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aproximou-se de Dewey e de Maria Montessori (Nóvoa & Hameline, 1990), focando-se na relação entre o professor e o estudante, considerando este último como um agente activo no processo de aprendizagem. Em 1915, escreveu sobre a educação cívica e dois anos mais tarde sobre o autogoverno, clamando pelo papel social do estudante. Explorou ainda a ideia de um “ensino pelo trabalho”, realçando as capacidades técnicas e para os problemas reais da sociedade. Devido às suas ideias foi convidado para Ministro da Instrução Pública em 1920, mas o regime republicano revelou-se demasiado instável para implementar reformas progressistas. Algumas escolas foram construídas antes do golpe militar de 1926 e antes da instauração do Estado Novo, principalmente alguns liceus nacionais, onde a ginástica e os laboratórios científicos representavam os sinais de uma frágil educação moderna. Com a instauração do Estado Novo, Sérgio teve de sair de Portugal e continuou a sua luta por uma educação democrática no estrangeiro. 2. A produção de espaços de aprendizagem Portugueses: da ditadura à democracia Portugal começou a construção de escolas no final do séc. XIX com as reformas liberais que seguiram os modelos franceses. Os projectos-tipo construídos para escolas primárias e os projectos-especiais para alguns liceus pretendiam promover uma educação que combinasse a abordagem humanística com a científica (Moniz, 2007). O regime republicano implementado em 1910 consolidou os planos iniciados em 1905 para a construção de liceus nas capitais de distrito, com programas complexos, onde os espaços para a educação, para os laboratórios científicos, para os museus e para o cinema ganharam especial destaque na composição arquitectónica e programática. Estes espaços, informados pela pedagogia moderna, criaram condições para uma alteração das práticas e discursos, que, no entanto, ficaria limitada, quase exclusivamente, ao Porto e Lisboa, com os projectos dos arquitectos Ventura Terra e Rosendo Carvalheira para Lisboa e do arquitecto José Marques da Silva para o Porto. Nas escolas primárias o processo é paralelo, mas distinto porque desde cedo se opta pela construção em todo o território nacional de projectos-tipo. Num primeiro momento, para as Escolas Conde Ferreira e, num segundo momento, para as Escolas do “Sininho”, como foi denominado o projecto do arquitecto Adães Bermudes (Beja & Serra, 1990). A partir de 1926, quando a Ditadura Militar pôs fim ao regime republicano, iniciou-se um novo paradigma com a construção de espaços para a educação primária, secundária e universitária. O foco deixa de estar no estudante e passa

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para o Estado. A educação torna-se parte da propaganda do regime com o objectivo de educar o povo e criar uma elite. O curriculum e os espaços escolares eram racionais e formais sem qualquer possibilidade de experimentação e tudo deveria ser controlado pelo regime, pelo reitor e pelo professor. Os projectos de arquitectura foram desenvolvidos em gabinetes do Estado, associados à DGEMN, onde todos os pormenores eram parte de um sistema que consolidava a imagem do Estado Novo. Com estes objectivos, o Estado Novo construiu uma rede de equipamentos para a educação dos cidadãos, desde as escolas primárias até às universidades. Estes edifícios eram desenhados de acordo com os planos de educação emanados das reformas dos diferentes períodos do regime controlado por António Oliveira Salazar (1932-1969) e por Marcelo Caetano (1969-1974). Ao longo deste período, o regime mudou e os espaços de educação também, integrando novas ideias, propostas pedagógicas e movimentos arquitectónicos. Os primeiros anos do regime permitiram ainda uma abertura às ideias modernas, no entanto, a partir de 1939, com a eclosão da Segunda Guerra, o fascismo tornou-se dominante e a sua arquitectura adoptou um estilo clássico, uma imagem monumental e uma organização rígida. A escola era concebida como um palácio ou como uma casa rural e a pedagogia era controlada pela Mocidade Portuguesa, uma organização paramilitar para estudantes dos 7 aos 14 anos. As primeiras experiências começaram na década de 1950, por iniciativa dos municípios, que tinham alguma autonomia e com a integração de Portugal, pela mão do ministro Leite Pinto, no Projecto Regional do Mediterrâneo promovido pela OCDE cujo objectivo era introduzir novas práticas educativas nos países desta região da Europa. A atenção dos arquitectos dos gabinetes do Estado virou-se, então, para a experiência inglesa de escolas comunitárias construídas com sistemas prefabricados. A organização das escolas primárias, secundárias e até das universitárias passou a adoptar os modelos pavilhonares, que promoviam a flexibilidade e a fácil implementação em qualquer terreno. Pode afirmar-se que estas escolas, construídas no final da década de 1960 e no início da década de 1970, foram o primeiro passo em direcção a um regime democrático. A partir de 1974, as escolas continuaram a educar a juventude sob orientações democráticas, mas em espaços concebidos para uma educação autoritária. Paradoxalmente, as novas escolas promovidas pelo regime democrático seguiram os sistemas pavilhonares, o que permitiu construir muitas salas de aulas embora sem qualidade arquitectónica, urbana ou pedagógica. Ou seja, o objectivo era apenas responder à massificação da educação. Hoje, Portugal enfrenta um desafio interessante: como renovar escolas produzidas pelo Estado Novo, entre as décadas de 1930 e 1960, considerando

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os seus ideais arquitectónicos e as suas práticas educativas. O que podemos fazer para transformar este paradigma autoritário num paradigma democrático? 3. Escolas do Estado Novo para um Portugal democrático Este cenário apenas se alterou no século XXI com a municipalização das instalações do ensino primário e com a oportunidade criada, em 2007, pelo Programa de Modernização das Escolas Secundárias (Parque Escolar), apoiado por políticas e fundos Europeus. A sua implementação permitiu transformar 105 escolas em 4 anos, seguindo objectivos específicos e orientações já discutidas (Moniz, 2012), analisadas (Veloso, Marques, & Duarte, 2014) e avaliadas (Blyth, Almeida, Forrester, Gorey, & Hostens, 2012). Os objectivos deste programa foram referenciados, mais uma vez, na experiência inglesa, nomeadamente no programa Building Schools for the Future (BSF), que funcionou entre 2005 e 2010. Neste sentido, foram identificadas três abordagens: renovar e modernizar os edifícios escolares; abrir as escolas à comunidade; e criar sistemas de gestão eficientes e efectivos dos edifícios escolares. Apesar da construção de projectos de arquitectura interessantes, alguns dos quais premiados pela OCDE e por instituições do campo da arquitectura, muitos destes projectos não reconheceram a comunidade onde se inseriam nem o património escolar em que intervinham. O principal problema residiu na abordagem à complexidade da escola, mormente a complexidade arquitectónica e pedagógica, mas também social e urbana. Fruto do contexto político, o processo de projecto enfrentou limitações que tornaram o diálogo e o envolvimento com os actores sociais difícil e pouco produtivo. Para além disso, apesar do programa ter procurado construir espaços de aprendizagem para uma educação focada nos alunos, conforme o postulado por Dewey e Sérgio, ainda predomina uma resistência efectiva à transformação das práticas, principalmente dentro da sala de aula (Ó, 2003). Apesar de as escolas terem hoje, de um modo geral, uma outra relação com a comunidade, pensamos que ainda se poderiam desenvolver mecanismos espaciais que permitam, de facto, abrir a escola à comunidade. Esta condição só será atingida quando se derrubarem os “muros” que separam a escola do espaço público, o que implica um forte envolvimento da comunidade escolar no processo de projecto.

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4. Transformação da Escola Primária da Rua do Sol para reabilitar a cidade do Porto Para ilustrar outras possibilidades e cenários que possam responder às futuras exigências educativas, iremos apresentar e analisar a investigação desenvolvida pelos estudantes de Atelier de Projecto 1C, do 4º ano, do Mestrado Integrado em Arquitectura da Universidade de Coimbra em colaboração com as disciplinas de Geografia, Antropologia e Construção. Esta investigação pretende contribuir para a revisão do papel dos equipamentos escolares na cidade e debruçar-se sobre a sua reabilitação através da transformação de uma estrutura pré-existente, dialogando com a comunidade escolar, mantendo a função pedagógica e preservando o complexo existente. O caso de estudo escolhido para esta investigação foi a Escola Primária da Rua do Sol construída na década de 1950 para fazer face ao desenvolvimento urbano, que desde o séc. XIX densificava a zona oriental da cidade. A escola foi projectada pelo arquitecto Fernando Barbosa para 600 estudantes, com 16 salas de aulas, dois pátios e uma cantina. No entanto, actualmente a escola tem apenas 100 estudantes, algumas das salas de aula foram ocupadas por instituições cívicas e um jardim-de-infância foi instalado no piso térreo, ocupando 6 salas de aula.

01-02. Fernando Barbosa, Escola Primária da Rua do Sol, Porto, Portugal, 1953, desenhos de projecto. © Arquivo Histórico do Porto | 03. Fernando Barbosa, Escola Primária da Rua do Sol, Porto, Portugal, 1953, vista a partir da Rua do Sol. © Gonçalo Canto Moniz

O esvaziamento da escola deve-se ao fenómeno de desertificação do centro do Porto provocado pela saída da população para a periferia na década de 1980 em busca de melhores condições de habitabilidade. Neste período, a cidade do Porto perdeu quase metade da sua população e os espaços urbanos ficaram votados ao abandono.

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Nas últimas décadas, o Porto tem tentado inverter a desertificação a que a cidade foi sujeita. O investimento feito no âmbito do evento Porto Capital Europeia da Cultura, em 2001, permitiu a construção de uma rede de metro ligeiro e a renovação de espaço público das principais áreas do centro da cidade. Estes factores transformaram a relação dos cidadãos com a cidade e desde então as pessoas estão a regressar ao centro e a reconstruir casas, criando novas actividades económicas e sociais. Para apoiar esta população, consideramos que a Escola Primária da Rua do Sol poderia tornar-se num centro educativo para estudantes dos 3 aos 18 anos, cobrindo todos os níveis escolares. A transformação da escola deveria ainda reabilitar o espaço envolvente, abrindo as suas valências à comunidade e actuando como um motor de regeneração social e urbana. Para fazê-lo, os estudantes de Arquitectura, por um lado, estudaram referências arquitectónicas teóricas e práticas e, por outro, convidaram os actores sociais - alunos, professores, auxiliares - a participar no processo de reflexão e concepção. Devido à complexidade do problema, propusemos que o projecto de arquitectura fosse explorado através de um método que combinasse a análise arquitectónica com análises sociais, urbanas e construtivas. A ideia passou por introduzir outras ferramentas que possam dotar os futuros arquitectos de outra perspectiva do papel do arquitecto – não apenas o de desenhar belos edifícios, mas também integrar as pessoas e a história no processo de desenho. 4.1. Referências teóricas: da aprendizagem pela experiência à aprendizagem com a cidade Os projectos dos estudantes de Arquitectura integraram um conjunto de referências que permitiram fundamentar as suas propostas de transformação, tanto dos espaços como da pedagogia. Por um lado, os estudantes assimilaram as ideias dos pedagogos John Dewey e António Sérgio, considerando os espaços de aprendizagem como facilitadores de uma educação através da experimentação (Dewey, 1916). De facto, Dewey havia em 1899 fixado um conjunto de esquemas que representavam a sua ideia de escola, nomeadamente do Laboratory School, e que deveriam dar corpo ao projecto de arquitectura do Elementary School Laboratory da Universidade de Chicago, publicado no capítulo “Waste in Education” no livro School and Society (Dewey, 1900). Os esquemas de Dewey procuravam promover a relação da escola com o mundo real, ou seja, com a casa, com a natureza, com as empresas e com a universidade. Assim, no primeiro piso, a biblioteca, no centro, deveria relacionar-se com a loja, as indústrias têxteis, com a sala de jantar e a cozinha. No segundo piso, o museu, como espaço de experimentação, deveria interagir com os laboratório de química e de física, com o laboratório de biologia, com os

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04. John Dewey, Escolas Laboratório. © Dewey, 1990, p. 87, 95, 101

espaço de arte e de música (Wirth & Bewig, 1968, p. 81). Com este objectivo, os projectos dos estudantes exploram os espaços informais da escola, locais de aprendizagem mútua através da experimentação em que os alunos não são apenas o único foco, mas também o principal actor, permitindo-os utilizar o espaço como uma ferramenta no seu processo de aprendizagem, partilhando os seus interesses, necessidades e sonhos, mantendo sempre um diálogo com a sociedade e a cidade. Por outro lado, o tema “transformar a escola, reabilitar a cidade” relaciona-se com a proposta de Herman Hertzberger (2008), School as a City. De acordo com Hertzberger, a escola deve ser pensada como uma pequena cidade que permita um entendimento dos espaços de aprendizagem sob um sistema de ruas, pátios, praças e casas. A distinção entre espaços – abertos e fechados, públicos e privados, individuais e colectivos – estabelece qualidades, responsabilidades e hierarquias e essas relações são essenciais para fornecer a estrutura na qual os estudantes integram a sua individualidade na comunidade. Hertzberger considera ainda a escola como uma cidade ideal. Tentando encontrar soluções que dêem forma a este desafio, o professor e arquitecto holandês desenvolveu o conceito tipológico de Learning Street. Este conceito parte da ideia de que a escola deve ser organizada como um complexo de tipologias urbanas como ruas e praças, que criam espaços associados a diferentes momentos de aprendizagem. As Learning Streets articulam ainda as várias áreas funcionais da escola, fomentando a proximidade entre os estudantes, os programas educativos e a comunidade escolar. De facto, School as a City e Learning Street são conceitos arquitectónicos que promovem novas práticas educativas e espaciais tendo em vista os desafios da escola contemporânea como um espaço de aprendizagem inclusivo e democrático. 4.2. Referências práticas: a experiência inglesa As referências práticas chegaram aos estudantes de Arquitectura através de livros, como os conhecidos exemplos das escolas Montessori, ou as experiências

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mais recentes na Dinamarca, como a escola de Orestad (3XN architects), ou no Japão, como o jardim-de-infância Fuji (TezukaArchitects), em que a informalidade e a flexibilidade são a principal lição. Foi ainda realizada uma visita de estudo a Londres para visitar as experiências modernas da década 1950 e as suas recentes transformações, nomeadamente a escola Hallfield (Denys Lasdun, 1952) transformada pela dupla de arquitectos Caruso e St. John (20012005) e a escola Burntwood (Leslie Martin, 1950s) reconstruída recentemente pelos arquitectos Allford, Hall, Monagahn and Morris Architects (2009-2014), no âmbito do programa BSF. Nestas escolas foi possível discutir os critérios de intervenção e os resultados da integração de novos espaços associados a novas práticas pedagógicas. Na escola de Hallfield foi criada uma sala de aula com cozinha, seguindo a proposta de Dewey, enquanto na escola de Burntwood as salas de aulas se abrem para os corredores, permitindo criar novos espaços para novas experiências pedagógicas.

05-06. Denys Lasdun, Halfield School, Londres, 1952 (Ampliação, Caruso St. John, 2001-2005), visita de estudo a Londres em Fevereiro de 2016. © Gonçalo Canto Moniz

07-08. Leslie Martin, Burntwood School, Londres, 1950s, (Reabilitação, Allford, Hall, Monagahn and Morris Architects, 20092014), visita de estudo a Londres em Fevereiro de 2016. © Gonçalo Canto Moniz

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Estas referências práticas, apreendidas directa e indirectamente, construíram um conjunto de modelos, que alimentaram tanto as opções de projecto, como a reflexão crítica em torno dessas mesmas opções. 4.3. Actores sociais: métodos participativos Para enfrentar o problema da transformação de um espaço com uma forte identidade, como uma escola, os estudantes desenvolveram um processo participativo na cadeira de Atelier de Projecto em articulação com a cadeira de Geografia, Suportes Físicos para a Arquitectura e Urbanismo (1º semestre) e com a cadeira de Antropologia, Cultura e Arquitectura (2º semestre) reconhecendo a estreita relação que a escola tem com o seu contexto urbano e com a comunidade que a rodeia. Num primeiro momento, foi organizada uma actividade entre os estudantes de Arquitectura e os alunos da escola para compreender a sua relação com

09-10. Projecto Escola da Rua do Sol, actividades sobre a história urbana e maquete urbana. © Gonçalo Canto Moniz

a cidade e com o espaço arquitectónico e pedagógico. Em grupos, foram desenvolvidas 5 actividades – história, cidade, pedagogia, edifício, vivência – onde os alunos eram convidados a falar acerca da história da cidade, da utilização de espaços públicos, do caminho entre a casa e a escola ou das suas actividades

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nos diferentes espaços da escola. Em paralelo, foram organizadas várias reuniões com os professores, a direcção e os funcionários da escola que se revelaram importantes para a compreensão da sua perspectiva. Num segundo momento, os estudantes de Arquitectura regressaram à escola no início do 2º semestre com a professora de Antropologia para discutir as suas perspectivas com os alunos e confrontá-los com novas ideias arquitectónicas. Esta visita seguiu os passos do “site specific focus group” (Duarte, Veloso, Marques, & Sebastião, 2015), onde os alunos da escola primária realizaram uma visita guiada aos espaços da escola aos estudantes de Arquitectura, o que promoveu a construção de um discurso sobre a sua própria escola. Esta metodologia não resolveu todos os dilemas arquitectónicos, mas deu aos estudantes uma noção mais alargada da complexidade dos espaços de aprendizagem e estabeleceu um diálogo estruturado entre o arquitecto e o utilizador, que é particularmente relevante na transformação dos edifícios escolares.

11-12. Projecto Escola da Rua do Sol, Espaços públicos e actividades de aprendizagem e Grupo Focal.

4.4. Resultados: a construção de um espaço de aprendizagem democrático No contexto académico, a investigação através do projecto permite atingir resultados não só através da análise e da reflexão, mas também através da síntese, nomeadamente da proposta arquitectónica. No caso presente, foi possível apresentar 20 propostas de 20 estudantes de Arquitectura para o mesmo objecto de estudo, mas explorando premissas diversificadas. Assim, escolhemos ideias

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dos vários projectos que permitem expor a transformação da escola, através de três conceitos que evocam o carácter democrático – comunidade, adaptabilidade e inclusividade. a) Espaços de aprendizagem comunitários (“Educação Cívica” de António Sérgio) Um dos principais problemas identificados na análise foi a relação do edifício com a cidade, sobretudo com o desenvolvimento urbano e comunitário. À primeira visita a escola está instalada num edifício desconectado do sistema urbano, particularmente do centro histórico, da cidade moderna e da frente ribeirinha. A sua população integra elementos de diversas nacionalidades, como resultado da migração dos últimos anos para a cidade do Porto. Assim, os projectos dos estudantes apresentaram propostas para a criação de atravessamentos que pudessem relacionar a escola com as principais centralidades A School as a Small City and a City a Big School.da área urbana: Passeio das Fontainhas (grupo A e B), Rua do Sol – Fontainhas (grupo C), Towards a democratic Learning Space Camélias – Fontainhas (grupo D), Rua Alexandre Herculano Corticeira Communitarian Learning Spaces (Civic Education,- A. Sérgio) (grupo E).

Projecto Escola da Rua do Sol, Novos percursos. © Gonçalo Canto Moniz NEW URBAN 13. PATHS

Estes atravessamentos tornaram-se conectores da escola com o contexto urbano e social, definindo uma relação estratégica para o desenvolvimento das propostas, tendo em vista as “fronteiras físicas do espaço escolar”, os “espaços para uso público da Escola”, as “formas de partilhar o espaço com a comunidade circundante” e a “percepção da escola pela comunidade”. Se hoje a escola está apenas relacionada com a Rua do Sol, com esta nova abordagem outras entradas podem ser abertas de acordo com diferentes utilizadores (estudantes mais novos,

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estudantes mais velhos, funcionários, pais ou outros). Estas entradas tentaram pôr em causa a fronteira entre a escola e o espaço público. O muro e a porta deram lugar a rampas, escadas, praças ou caminhos cobertos, tendo em vista a criação de espaços de transição, onde actividades informais podem acontecer. A ideia de uma escola fechada à cidade foi também discutida e algumas propostas fragmentaram as instalações escolares pela envolvente, promovendo a interacção da escola com os bairros circundantes. A relação da escola com a comunidade não deve ser apenas formal ou física. As propostas exploraram a possibilidade de se considerar a escola não apenas como um centro educativo, mas também um centro comunitário, onde a educação cívica, proclamada por António Sérgio, tem a mesma importância que a pedagógica. Esta abertura da escola ao mundo real está também referenciada na Escola Laboratório proposta por Dewey em 1900.

14. Projecto Escola da Rua do Sol, Entradas: os percursos urbanos tornam-se percursos da escola. © Lucia Escrigas | 15. Projecto Escola da Rua do Sol, Escola fragmentada com a área desportiva no bairro da Corticeira, perto do rio. © Carlos Fraga.

b) Espaços de aprendizagem adaptáveis (flexíveis) (“Learning Street” de Herman Hertzberger) A Escola Primária do Sol foi construída de acordo com o sistema tradicional – corredores e baterias de salas de aula. Este esquema permite o controlo dos alunos e foca a pedagogia na relação directa com o professor, com uma organização hierárquica do espaço de aprendizagem. Deste modo, o espaço escolar é fundamentalmente monofuncional, sendo constituído por salas de

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Sala de Aula 1/50 Atelier de Projecto_1C | Pedro Simões | 2009117233 | Ano Lectivo 2015_2016

16. Projecto Escola da Rua do Sol, A Sala de Aula como espaço de aprendizagem flexível. © Pedro Simões

aulas para ensinar, um átrio para entrar, um pátio para brincar, corredores para conectar e uma cantina para alimentar. Apesar da escola ter funcionado durante 60 anos, os estudantes de Arquitectura tentaram explorar a possibilidade de transformar todos os espaços da escola em espaços de aprendizagem formal e informal, promovendo o autogoverno, a autonomia, a iniciativa e a experimentação. Para apoiar essas actividades, as propostas desenharam espaços que se pudessem adaptar facilmente aos alunos e assim a rigidez do edifício moderno dos anos 1950 deu lugar à flexibilidade da vida contemporânea, onde o processo de aprendizagem é partilhado pelo professor e pelo aluno. Tal adaptabilidade pode também ser a resposta para a abertura da escola a outros utilizadores que ali eventualmente encontram espaço para as suas actividades, criando condições para uma escola mais sustentável. Seguindo as ideias e projectos de Hertzberger, mas também as experiências inglesas e dinamarquesas, os projectos reinventaram as relações entre espaços, como os corredores e as salas de aula, mas também as relações com os pátios, bibliotecas, auditórios e cantinas que exploram a relação interior-exterior. Assim, as conexões entre espaços deixam de ser corredores estreitos para serem Learning Streets, assim como o pátio se transformou num Learning Square, conforme postulado por Hertzberger.

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c) Espaços de aprendizagem inclusivos (Democracia e Educação de John Dewey) A Escola Primária do Sol resulta de uma regressão da arquitectura moderna Portuguesa da época. Depois das experiências modernistas dos anos 1920 e 1930, o Estado Novo incentivou uma arquitectura clássica que evocasse os dias gloriosos da cultura Portuguesa dos séculos XVI, XVII e XVIII . Os arquitectos modernos deram um passo atrás nas suas ideias e começaram a desenhar edifícios com elementos do passado; coberturas com telha, cornijas, pilastras e colunas eram de novo incluídas nas fachadas, assim como a organização clássica do espaço, através da simetria e rigidez. Os alunos da escola consideram este sistema, por

17. Projecto Escola da Rua do Sol, praças de aprendizagem, onde os pátios se transformam no centro da escola. © Tereza Sykorova

18. Escola pavilionar, o edifício existente torna-se um grande corredor e as salas de aula são no pátio. © Jessica Martins

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um lado, institucional, porque reconheciam a escola como um edifício público e, por outro lado, acolhedor, porque transmite uma relação empática e confortável com os utilizadores. A maioria dos projectos propostos pelos estudantes de Arquitectura manteve o edifício existente, como uma memória a preservar, e desenhou novos edifícios, procurando um diálogo amigável entre a arquitectura e as pessoas, ou por outras palavras, com uma arquitectura mais humanista, que considera a escala, a luz, a textura, a natureza, etc. Ainda assim, alguns projectos consideraram que seria importante transformar a estrutura existente noutro edifício, demolindo algumas partes para criar outras composições e linguagens. 4.5. O papel social do arquitecto Este exercício académico pretende que o estudante de Arquitectura desenvolva metodologias e ferramentas que lhe permitam intervir conscientemente em estruturas arquitectónicas e urbanas existentes, enquadradas por contextos e vivências que sofreram transformações ao longo dos tempos. Este é um dos desafios mais concretos para o arquitecto contemporâneo, num momento em que as cidades deixaram de crescer e estão fundamentalmente a renovar os seus

19-20. Projecto Escola da Rua do Sol, entradas para o pátio através de diferentes ruas; articulações entre os pátios. © Luísa Gonçalves

21-22. Projecto Escola da Rua do Sol, Abrindo os pátios à cidade e à paisagem. © Rui Cardoso

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espaços físicos e sociais, a sua história e a sua memória. (img.19) Assim, o problema da reabilitação, do restauro ou do reuso, associados ao problema permanente da democratização dos espaços implica uma mudança dos métodos de ensino e principalmente dos métodos de projecto. Tal como já se evocava na década de 1960, o arquitecto deve repensar a sua atitude perante os problemas da sociedade considerando o seu papel social em paralelo com o seu papel artístico e técnico (Moniz, 2008; Bandeirinha, Allegretti, & Moniz, 2010). Esta atitude tem reflexo no processo de projecto, nomeadamente na análise dos problemas, mas também na construção dos problemas, que pode incluir as comunidades que usam os espaços na caracterização das estratégias de intervenção, na definição dos programas e até na materialização dos espaços.

23. Projecto Escola da Rua do Sol, A cidade como espaço de aprendizagem. © Lucia Escrigas

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Logo, o grande desafio que se coloca aos arquitectos é a articulação entre os processos de diálogo e os processos de projecto. Assim, a democratização dos espaços escolares implica a democratização da sua relação com a cidade e a democratização do próprio processo de projecto, onde a escola é projectada de facto com todos os actores sociais, ou seja School Design Together (Woolner, 2014).

24. Projecto Escola da Rua do Sol, Grupo de Alunos da Escola e de Estudantes de Arquitectura © Gonçalo Canto Moniz

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Bibliografia Bandeirinha, J. A., Allegretti, G., & Moniz, G. C. (2010). Debate social e construção do território. Revista Crítica de Ciências Sociais, (91), 5–8. Beja, F. & Serra, J. (1990). Muitos Anos de Escolas. Lisboa: Ministério da Educação, Direcção Geral de Administração Escolar Blyth, A., Almeida, R., Forrester, D., Gorey, A., & Hostens, G. (2012). Modernising Secondary School Buildings in Portugal. Paris: Organisation for Economic Co-operation and Development. Retrieved from http://www.oecd-ilibrary.org/content/book/9789264128774-en Dewey, J. (1900). The waste of education, in The Education and Society. Being three lectures. Chicago: The University of Chicago Press Dewey, J. (1916). Democracy and education: an introduction to the philosophy of education. New York: The Macmillan Company. Duarte, A., Veloso, L., Marques, J., & Sebastião, J. (2015). Site-specific focus groups: analysing learning spaces in situ. International Journal of Social Research Methodology, 18(4), 381–398. http://doi.org/10.1080/136455 79.2014.910743 Hertzberger, H. (2008). Space and learning : lessons in architecture 3. Rotterdam: 010 Publishers. Moniz, G. C. (2007). Arquitectura e Instrução. O Projecto Moderno do Liceu, 1836-1936. Coimbra: e|d|arq Moniz, G. C. (2008). The Portuguese ‘May 68’: Politics, Education and Architecture. European Journal of American Studies, (Vol 3, No 2). http://doi.org/10.4000/ejas.7253 Moniz, G. C. (2012). Intervenção sobre o Espaço Liceal Moderno: Problemas, Estratégias e Respostas. Anuário Do Património, (1), 172–179. Nóvoa, A., & Hameline. (1990). Autobiografia Inédita de António Sérgio - Escrita aos 32 anos no Livre d’Or do Instituto Jean-Jacques Rousseau (Genève). RCCS, (29), 141–177. Ó, J. R. do (2003). O Governo de Si Mesmo: Modernidade pedagógica e encenações disciplinares do aluno liceal (último quartel do século XIX- meados do século XX). Lisboa: Educa Sérgio, A. (1915). Educação Cívica, Porto: Renascença Portuguesa, imp. Veloso, L., Marques, J. S., & Duarte, A. (2014). Changing education through learning spaces: impacts of the Portuguese school buildings’ renovation programme. Cambridge Journal of Education, 44(3), 401–423. http:// doi.org/10.1080/0305764X.2014.921280 Wirth, A. G., & Bewig, C. (1968). John Dewey on School Architecture, Journal of Aesthetic Education, 2: 79-86. Woolner, P. (2014). School Design Together. New York: Routledge.

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Colégio das Artes a quadratura do ensino

Luís Gomes

- do provérbio africano, “...é preciso uma tribo para educar uma criança” José Pacheco, Escola da Ponte 30


Colégio das Artes • luis gomes

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escolas improváveis

Rui Aristides

E

ste artigo é um relato de projecto e obra. Não concerne uma escola em si mas, um pequeno compartimento exterior que, de entre as suas apropriações, foi um laboratório pedagógico para dois arquitectos recémlicenciados e uma sala de aula para ínumeros miúdos. Trata-se de um pequeno anexo para o centro local da associação humanitária Alizeta-Onlus, activa na aldeia de Toécé no Burkina Faso. Foi desenhado e construído em duas semanas em Agosto de 2007. Ainda lá está como improvável e activa escola. Os arquitectos recém-licenciados foram o Ricardo Ibrahim e eu, e a sala de aula foram e são jovens de várias idades de Toécé. Escola tem neste artigo vários significados, ou melhor, é um conjunto de interrogações. Foi o que surgiu de um desenho mínimo para um espaço e programa igualmente mínimos. Foi também um processo de iniciação professional de dois jovens arquitectos, através dos corpos dobrados de Toécé. Este artigo troca palavras entre estas duas noções de escola: uma escola reduzida aos seus mínimos; uma iniciação transportada por extremos. Como tal, pretende sugerir elementos para: o que aprenderam dois arquitectos recémlicenciados com um projecto que queria corrigir a miséria? E que práticas de aula pode a arquitectura ajudar a promover? Localizar Toécé O Burkina Faso surgiu como estado soberano autónomo em 1960, na altura designado por républica do Upper Volta. A sua autonomia resultou do longo e atribulado processo de libertação do mundo sul do poder militar de nós, brancos. Não nós portugueses que mantivemos as nossas colónias até 1976. A recém criada républica africana no limite do Sahel, rodeada pelo Mali, Niger, Nigéria, Benin, Togo, Ghana e Costa do Marfim, fora “abandonada” pelos Franceses.

Artigo revisto por Ricardo Ibrahim. Todas as fotografias são da autoria de Ricardo Ibrahim, excepto onde indicado.

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O governo de libertação, acusado de corrupção e neo-colonialismo Francês, seria deposto logo após, nomeadamente em 1966 por um golpe militar apoiado pela maioria da população. O exército manteve um governo militar até 1970. Aprovou então uma constituição que estabeleceu um período de passagem para governo civil parlamentar, no entanto, o exército continuou em poder até ao final da década de 1980. Endividado e a viver uma grave crise alimentar, durante a década de 1970, o país manteve-se pacificado pela mão firme do exército e o apoio da minoritária classe média, bem como através do apoio directo de França e da Costa do Marfim. Com uma nova seca no Sahel no início da década a fome e o descontentamento cresceram, apesar de uma breve recuperação agrícola por volta de 1975. Esta situação forçou, primeiro, uma revisão constitucional em 1977 e, alguns anos mais tarde, um golpe de estado. Em 1980, uma facção do exército dirigida pelo colonel Saye Zerbo tomou o governo. O colonel estabeleceu um regime supraparlamentar de transição, prometendo a devolução do poder civil quando o país estabilizasse. Lutas internas entre a facção moderada do colonel e militares de extrema esquerda, encabeçados pelo capitão Thomas Sankara, fizeram da estabilidade um sonho distante. Em 1983, Thomas Sankara e a facção dos militares de extrema esquerda tomaram o poder. Foi então que se baptizou a república do Upper Volta de Burkina Faso, e os voltans como burkinabés ou aquelas/es que caminham de cabeça erguida. A partir de Sankara, o Upper Volta desejou-se a “pátria dos homens honestos,” significado literal de Burkina Faso, composto de várias linguas regionais. Apelidado de “Che Guevara” africano, Sankara avançou com um ambicioso programa político que envolveu, na sua base: a autosuficiência alimentar e económica, a educação nacional universal e a modernização da saúde, transportes e habitação. Seguindo uma linha marxista anti-imperialista, inspirada pela Cuba de Fidel Castro, o governo militar de Sankara redistribuiu terras por pequenos proprietários, construiu uma rede nacional de escolas primárias e rejeitou grande parte das ajudas económicas internacionais, nomeadamente por minarem a resolução do burkinabé. Por outro lado, enquanto fortificava os seus poderes presidenciais, Sankara promoveu maior equidade de género, tentou castrar o poder local dos chefes tribais, nomeadamente o direito de tributo e escravatura, enquanto ao mesmo tempo sonhava em reflorestar o país. Era e é crucial combater o peso das secas num país quase inteiramente suportado na agrícultura de pequena escala e muito pouco protegida. Com o avançar dos anos, o seu regime tornou-se mais violento e despótico, utilizando comissões de defesa da revolução como forma de placar disputas internas que, supostamente, atrasavam o desenvolvimento nacional. As relações com países vizinhos deterioraram-se ao mesmo ritmo em que a classe média se afastava do regime. Em 1987, Sankara

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morre às mãos de um novo golpe de estado, desta vez perpetrado pelo seu companheiro de armas e futuro presidente até 2014, Blaise Compaoré. Esta sinopse de uma recente nação moderna serve para enquadrar três forças enformantes do território burkinabé. Primeira, uma perseverante crise de representação política desde 1960, alimentada pelo despotismo de vários governos militares e a presença de profundos conflitos étnicos, classistas e de género. Segunda, o predomínio económico da agricultura de pequena escala para consumo interno e exportação, bem como o predomínio de longas secas sazonais, perpetuando a fragilidade desta economia. Esta produz uma paisagem extensa de ruralidade áspera, vincada por longos períodos de fome e precaridade, seguindo os ritmos das secas do Sahel e a ausência de alternativas de vida. Terceira, a vontade de ser burkinabé, isto é, a vontade de se ser mulher e homem do país “de homens honestos.” Se intersectarmos estas forças 70km a sul de Ouagadougou, capital do país, e pela N5, encontramos Toécé. Uma pequena aldeia com a sua presidente de câmara, o médico, um grupo de freiras, o seu chefe de tribo e seu primogénito, a sua associação humanitária. Todos espalhados esparsamente sobre uma terra seca de poucas sombras, cravada de modestos campos pontuados por casas de terra, tijolo e betão, e repleta de gente honesta e curvada pela enchada.

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Ir a “África” África é um continente enorme, rico e, de forma engenheira, mantido sob uma neblina de mistério mas, para o Ricardo e eu em 2007, era principalmente o portal para um planeta não-europeu. Ao acabar o curso de arquitectura alimentámos projectos de conhecer o mundo capitalista nas suas feições mais agressivas e desiguais. A vontade de o fazer partindo para sul já vinha de trás mas, entre as tertúlias informais pelos corredores e esplanadas de Coimbra, foi o destino final de algures na África subsariana que começou a ocupar a imaginação. As nossas parcas poupanças, de dois brancos de classe-média, eram projectadas numa viagem por Marrocos, Senegal, Togo, puxando a cuspe um ilustre Renault 5 por desertos e falésias. O destino final foi-nos dado por um amigo comum. Andrea Sonino, veneziano que na altura trabalhava há anos com a Alizeta, deunos a palavra Burkina Faso. Acabou por resultar com celeridade e informalidade que nesse verão de 2007 iríamos para Toécé, directamente e poupando o corajoso Renault 5 da viagem da sua vida. Fomos colaborar com a associação humanitária Alizeta, como recém formados arquitectos à procura de sentidos práticos.1 A associação surgiu em 2004, no seguimento de uma viagem ao Mali de Marinella D’Amico. O seu guia foi o Monsieur Congo, um empreendedor burkinabé, natural de Toécé. Movida pela pobreza que observara, bem como pelo diálogo com M. Congo, Marinella acordou formar uma associação de apoio local centrada em Toécé. Em 2004, Marinella e Congo mandaram erigir um edifício sede para a associação que ficou conhecido como o Siége, num terreno a este do mercado local, um pouco afastado da aldeia e virado para uma vasta planície. Em 2006 a associação desenvolveu o seu primeiro grande projecto em Toécé, o CREN (Centro di Recupero ed Educazione Nutrizionale), que tinha e tem como principal objectivo a redução da mortalidade infantil nos primeiros meses e anos, nomeadamente pela educação das jovens mães relativamente às necessidades alimentares dos recém nascidos. Isto resultou num edifício novo perto da estrada principal, a N5, inteiramente financiado pelo Rotary Club de Roma e ao lado do consultório do médico local. Paralelamente, desde 2004 a associação dedicou-se a financiar e construir poços, instalar painéis solares nos poucos edifícios públicos e a desenvolver hortas comunitárias agregadas ao CREN e ao Siége. Entre as várias iniciativas de melhoramento, a associação também apoiou a produção de certos produtos locais, como a manteiga de carité, a qual era vendida em Roma. Simultaneamente promoveu formação escolar suplementar, nomeadamente de Francês, Inglês e Matemática, dada por jovens voluntárias/os italianas/os que, uma vez por ano, 1

Ver http://www.alizeta.org/

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© www.alizeta.org/progetti/cren

normalmente em Maio ou Agosto, passavam um mês em Toécé. O Ricardo e eu integrámos uma destas equipas de jovens voluntários. A equipa era composta por uma dúzia e meia de italianas e italianos de várias áreas disciplinares mas, maioritariamente, estudantes ou recém-graduados, como por exemplo nós de arquitectura, ou o Andrea Sonino e o Andrea Modigliani de direito. Ficámos todos instalados no Siége. Em planta, o edifício é um rectângulo divido em dois: uma zona comum com cozinha, cadeiras e estantes, tomando metade da área do rectângulo; e os quartos e casas-de-banho, divididos por género, tomando a outra metade. As paredes são de tijolo de cimento e terra, com pilares de cimento grosseiro, no interior pintadas a amarelo pálido, no exterior a ocre. O telhado de duas águas é de chapas de alumínio, extravasando as paredes em cerca de 1,5m. Com um plinto de cimento de 20cm de altura a todo o redor do edíficio e marcado por

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pilares também ocres, a intervalos regulares, o telhado forma uma galeria exterior coberta em torno do corpo central. Para a água fez-se um poço e um pequeno depósito de 100 litros. Os confortos eram, no máximo, espartanos mas mais que suficientes. Por outro lado, o telhado de alumínio e a fraca ventilação, apesar da elevada altura de pé-direito, garantiam o desconforto ambiental que advém de um clima extremamente quente e seco. Tínhamos pouco tempo para nos ambientarmos, pois só estaríamos lá por volta de um mês. Mal chegámos tivemos uma reunião acerca do que havia para fazer, apresentações e intenções, falar com alguns dos toécés mais envolvidos com a associação e depois, no dia seguinte, partiu-se para o trabalho. Pelo menos a primeira semana é impossível de descrever. Entre conhecer as pessoas de Toécé, reaprender a falar Francês, perceber como mexer o corpo e gerir as suas energias, conhecer os sítios, as distâncias, as hierarquias básicas do território, as suas faltas e pobrezas, como nos dirigir-mos a estes elementos, perceber o nosso papel naquele curto espaço de tempo. Breves eram os momentos em que o pensamento sossegava. Nessa primeira semana foram várias as obras executadas: abrir uma vala para levar água ao consultório do médico, construir um poço, fazer a planta do terreno do Siége, orçamentar e coordenar a construção da sua vedação, entre outras obras. Tudo em processo entre idas à capital para comprar materiais de construção, reuniões com o médico ou o filho de um dos chefes locais e conhecer as pessoas de Toécé. Fazíamos, falávamos, discutíamos, aguentávamos o calor enquanto nos questionávamos o que estávamos realmente ali a fazer e qual era o papel da nossa profissão neste extremado local. Algumas das noites foram ricas insónias de discussões, animadas entre os voluntários. Que me lembre ninguém tinha certezas. Um hangar Para o fim da primeira semana, a Marinella, após uma reunião colectiva, veio falar comigo e com o Ricardo para nos pedir o projecto de um novo espaço para o Siége. A ideia era criar mais e melhor lugar para algumas das actividades da associação, como reuniões e aulas. Tudo se passava naquela metade do rectângulo onde cozinha, móveis, materiais escolares, reuniões várias e aulas faziam uma sala comum. Marinella queria ter um outro espaço próximo deste que permitisse criar um filtro entre as várias actividades, nomeadamente entre reuniões e aulas. Por um lado, a contínua visita de toécés à sala comum tinha o efeito de perturbar reuniões de trabalho em processo. Por outro, as aulas de Francês, Inglês e Matemárica, promovidas pela associação como suplementos educativos para miúdos de várias idades, processavam-se em torno da galeria do Siége. A maioria

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das vezes, devido à dimensão das aulas, metade dos alunos estava no cimento e outra metade na terra, ou então estavam todos na terra. O novo espaço devia acomodar estas aulas que ganhavam forma entre a galeria e a terra, bem como colocar os toécés que chegavam ao Siége, ao longo do dia, numa espécie de antecâmara.

Para além disto, Marinella avançou que podia ser algo como um hangar. Alguns dos edifícios, nomeadamente os de cariz público como o consultório do médico, o CREN, a câmara, possuem uma espécie de alpendre maciço de bancos embutidos e normalmente contíguo com o corpo do edifício que serve. Estes alpendres, maioritariamente de cimento, servem de espaços de espera e estar, frescos e abertos mas, com limites bem definidos entre interior e exterior. Os toécés chamavam-lhes hangares. Usávamos estes espaços para reuniões de trabalho e conversas. Eram temperados numa paisagem pesada para o corpo, e enquanto eram abertos para tudo o que se passava à sua volta, promoviam a sensação de se estar ligeiramente à parte. Para além disto também promoviam o ambiente de preâmbulo. Talvez por esta combinação de experiências, os hangares ocupavam uma posição desejada nos hábitos espaciais dos membros da associação. Literalmente traduzido, o hangar é um abrigo. Optámos pois por fazer um abrigo.

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Ao partir de Portugal só nos lembrámos que poderíamos vir a fazer projectos de arquitectura ao ponto de empacotarmos um maço de papel de esquisso na mala. Não nos lembrámos, habituados como estávamos a fazer projectos em computadores, que também precisaríamos de canetas e lápis especificos, bem como de essenciais réguas e esquadros. Esferográficas, marcadores e lápis velhos, usados pelos miúdos e vindouros de depósitos humanitários europeus, tiveram de servir, bem como pequenas réguas de 15cm com desenhos de póneis e barbies brancas. Primeiro, acercámo-nos da área do Siége à procura de uma implantação. Selecionámos o lado poente, pois abria-se para uma paisagem de atracção bucólica, sem casas, apenas árvores, campos e pôr-de-sol. Começámos a esquissar algumas hipóteses de hangar, ao mesmo tempo que conduziamos conversas informais com os outros membros da associação, em que procurámos melhor perceber o que fazer. Primeiro com os Andreas, o Sonino e o Modigliani, e o Alvise Gennaro, com quem nos tínhamos tornado próximos, pois constituíamos a equipa de construções. Depois seguiram-se breves conversas com outros membros italianos e toécés da equipa. Os italianos falavam-nos da necessidade de sombra e frescura, bem como das possíveis mais valias de um segundo espaço de reuniões, de aulas ou simplesmente de estar. Os toécés falaram-nos de um sítio onde pudessem chegar, sentar, entablar conversa, enquanto esperavam por alguma reunião ou enquanto faziam alguma reunião. Mas também nos falavam da importância de fazer algo bonito, trés jolie, isto é, simultaneamente bonito, alegre e eficaz. Nesse primeiro dia de conversas e auscultações, acabámos a discutir umas linhas gerais que de pouco claro e decidido tinham tudo mas, uma ideia central emergiu: o criar de uma relação específica com o Siége e o enquadrar a paisagem circundante. O Siége é um edíficio fechado sobre si cuja galeria externa, devido à altura do telhado, pouco protege e abraça aquele que chega e passa. Os campos em torno são vastos e horizontais, pontuados por ninhos de árvores frondosas aqui e acolá, e varridos a intensos clarões de luz e calor. Todo o peso do céu numa terra plana e gasta. Ao segundo dia de projecto sentámo-nos ao pôr-de-sol, ao lado do Siége, com o esquisso, a régua da barbie e um lápis velho afiado a canivete, e afincamos um desenho geométrico rigoroso do novo hangar, plantas, cortes, alçados e uma perspectiva axonométrica. Enquanto finalizávamos o desenho e calculávamos materiais, erámos rodeados de questões por miúdos, bem como pelos membros toécés da associação. Com estes últimos tomávamos algum tempo para expor o desenho e suas ideias. Como era possível fazer um desenho tão jolie, diziam-nos. A axonometria dava o projecto a entender, no entanto, fez falta uma maquete, teria permitido disputas espaciais mais ricas. Alinhámos o hangar com uma das entradas da sala comum do Siége, ligado a

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este através de um embasamento de cimento da mesma altura do da sua galeria de 20 cm de altura. Desta forma, os pisos seriam contínuos, a ligação directa assegurada pelos pés. Disposemos o hangar de forma enviesada relativamente ao Siége. Optámos por implantá-lo num ângulo obtuso de maneira a ficar orientado para a planície de campos e árvores, utilizando o corpo do hangar para enquadrar esta como se de uma fotografia se tratasse. Desenhámos uma forma rectangular, com os lados menores na direcção do Siége e pôr-de-sol, e os maiores para a aldeia, de um lado, e a planície, do outro. Desenhámos os limites do corpo com seis pilares de cimento à face, com dois muros laterais de tijolo de cimento e terra. Estes muros cobrem os lados maiores com pouco mais de um metro de altura e fazem de costas de assentos de tijolo e cimento embutidos, os quais acompanham os muros na sua extensão. Os lados menores do hangar ficam descobertos, deixando ver a silhueta do hangar. Desenhámos uma estrutura simples de vigotas de madeira para o telhado, suportada pelos seis pilares de cimento e inclinada em direcção ao pôr-do-sol, o pé-direito mais alto virado ao Siége. Esta inclinação do telhado servia principalmente para realçar o enquadramento da planície frente ao Siége. Queríamos uma cobertura em madeira ou tijolo cozido. Qualquer destas soluções era demasiado dispendiosa. Fizêmo-la em chapa de alumínio, infelizmente uma cobertura muito usada no Burkina Faso, entre muitos outros países africanos. Os membros da associação gostaram da ideia e no dia seguinte estávamos a tratar de chamar um empreiteiro, o Monsieur Salaam. Dentro de pouco tempo veríamos os tijolos de cimento e terra, feitos no local com uma forma de madeira. Enquanto estes secavam, Salaam, com a ajuda de mais dois toécés e do grupo das construções, composto por Andrea Sonino, Modigliani e Alvise Gennaro, escavaram as fundações dos seis pilares. A planta e dimensões do edifício foram marcadas a fio pelo Ricardo e eu. O ritmo de construção pareceu extremamente lento, apesar do edifício ficar completo numa semana e meia. Por causa do calor perto do meio-dia já não se fazia mais nada, o esforço físico era doseado. O Ricardo e eu ainda participámos

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na fase inicial da construção, quando se fizeram as bases dos pilares e as correcções de medidas. Após esta fase, no entanto, gradualmente distanciámonos da construção em si. Lá estávamos no estaleiro, mesmo ao lado do sítio onde dormíamos sob a rede mosquiteira, bem cedo pela manhã e passávamos grande parte desta a observar o processo, a fazer correções e a colocar questões. Rapidamente surgiram pequenas frustrações, pelo ritmo de trabalho, por nem sempre percebermos como Salaam organizava o agendamento construtivo, por uma ou outra falta ocasional de um ou vários trabalhadores. A frustação também era precipitada pela sensação de que pouco se estava a passar. Nós com tão pouco tempo para fazermos alguma diferença em Toécé e parecia que nada fazíamos acontecer, que nada acontecia. A construção pareceu uma longa espera, quente e seca. Na realidade, muito se passou. Nomeadamente a obra foi realizada em pouco mais de uma semana, com uma estrutura de trabalho montada de um dia para outro, com pouca preparação e igualmente pouca coordenação. O Salaam, homem erguido e honesto, como burkinabé que faz questão de ser, tínha-nos prometido que a obra ficaria feita antes de partirmos e assim foi. A poucos dias de partirmos o cimento tinha secado, os pilares e faces externas dos dois muros assumiam a cor que viriam a ter durante bastante tempo. O interior dos muros, os assentos de cimento e o piso eram polidos com pó de cimento, pristinamente. Um processo de certa beleza, uma dança de espátula na mão realizada pelo mãodireita do Salaam. O hangar ficou cinzento escuro e fresco, recebendo-nos pela manhã, antes de chegarem os miúdos e as reuniões. A Marinella ficou satisfeita. Tal como muitos outros que observaram os desenhos e aos poucos viam a construção, tinha havido dúvidas relativamente à proximidade entre o hangar e o Siége, aquele ângulo obtuso, a continuidade da galeria e a tensão entre telhados de alumínio. Após,

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no entanto, esta contiguidade e tensão ofereceu-se a alegres elogios. Durante os poucos dias que ainda lá ficámos vivemos intensamente aquele novo espaço. Já tinha sido ricamente animado de encontros e reuniões durante os poucos dias que era usado. Inclusivamente serviu para lá dormirmos, montando as camas entre os bancos e pregando as redes mosquiteiras na estrutura de madeira. O Ricardo e eu partimos para Portugal iluminados pelos elogios dos voluntários e dos toécés, satisfeitos de termos visto aquele projecto a nascer à nossa frente, com tanto detalhe e atenção. Voltar teve outro gosto para dois recém-licenciados em arquitectura, no entanto, ficámos sem saber ao certo para que usos e acontecimentos tínhamos construído aquele abrigo. Que tinha sido bastante usado por nós, os voluntários, é claro, mas que usos teria pelos toécés que habitam aquele território mais do que um mês por ano? Isto não soubemos, nem nos questionámos, mas ficou guardada a dúvida, a remoer ao de leve: aquele edifício veio ajudar em algo? Possibilitou qualquer coisa nova? O que é que afinal fomos lá fazer?

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O retorno da obra Nem sempre é possível voltar a uma obra e observar como se reproduziu no cruzamento com muitas outras vidas. Por uma fortuita combinação de vontades, no ano seguinte consegui voltar a Toécé para mais uma temporada de obras de melhoramento. Por uma igualmente fortuita combinação, o Ricardo não se pode juntar a mim. Voltar ao Burkina Faso e especificamente a Toécé foi, como banalmente se customa dizer, especial. O calor ao sair do pequeno avião vindo de Casablanca era também um calor que corria memórias e expectativas. Desta vez, ao chegar a Ouagadougou, foi tudo fácil. “Bon soir, j’ai besoin d’un visa,” “Ça va, un moment.” Doze francos e dois minutos mais tarde, tinha um visto com um sorriso, quase oferecido. Pouco mais tarde estava reunido com o Andrea Sonino, o Pierre e o M. Congo. Para minha surpresa uma das primeiras notícias que me deram foi a de que o hangar era um sucesso, ou seja, era muito usado. Como é que algo tão pequeno, tão despido e pobre podia suscitar tal coisa? Ao chegar a Toécé e depois de mais reencontros calorosos, observei o hangar em funcionamento. A sua forma e textura estava como há um ano atrás, o calor e o uso pouco as alteraram. A sua continuidade com a sala comum do Siége percorria-se de forma muito natural. Esta relação foi bem sucedida. À tarde enchia-se de miúdos de várias idades que iam aprender línguas e Matemática, entre outras coisas. De manhã estes tinham que ajudar a família no campo e nem todos estavam dispensados de trabalhos para vir ás aulas. Apesar disto, à tarde, muitos abarrotavam o pequeno hangar. Sentavam-se em bancos toscos de madeira colocados entre os bancos embutidos de cimento, nestes últimos e nos parapeitos dos muros. O quadro móvel de argila era normalmente colocado no limite exterior do hangar, a tapar a vista para a planície. Ao fim da tarde acabavam as aulas mas muitos miúdos lá ficavam a brincar, a esticar-se no cimento, a chamar a atenção dos brancos. Ao mesmo tempo corriam algumas reuniões de trabalho entre membros da associação. Fumavam-se cigarros, estendia-se o corpo face ao vindouro pôr-do-sol. De noite, éramos nós, os voluntários, que enchíamos o hangar com conversas, histórias e jogos. Esse ano não o utilizámos para dormir. Por mais desprovido e pequeno que fosse, o hangar era muito apreciado e disponível para apropriações. Satisfação e um sentido de missão cumprida ocupou-me durante algum tempo. O hangar fora o primeiro projecto e obra de dois recém-licencidados arquitectos. O Ricardo e eu já tínhamos trabalhado para outros arquitectos, ou seja, já tínhamos desenhado outros projectos e obras mas, esta, foi a primeira em que todo o peso da consequência estava connosco. E este peso era bom, deu satisfação e causa para afirmação profissional, especialmente após observar a sua vida. Se o tirássemos de Toéce, no entanto, e o colocássemos num contexto

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urbano Europeu, por exemplo, este já não seria o caso. Tanta riqueza de vida não resultou propriamente de algo tão esquético como o nosso hangar. De facto, o seu espaço é demasiado pequeno para o tamanho das aulas, de tal maneira que, através da ajuda de cadeiras e mesas improvisadas, várias partes da galeria do Siége continuaram a ser usadas como pequenas e informais salas de aula. O hangar mal contém os miúdos com vontade de aprender. Por outro lado, o uso descontraído do espaço, miúdos sentados de várias formas e posições possiveis, não tem a ver com o seu formato aberto, genérico e rigido. Pelo contrário, relaciona-se com o facto dos educadores voluntários não castigarem formas de estar que, em contextos formais de educação, poderiam ser condenadas. O que se passava, por exemplo, nas salas de aula da escola primária pública de Toécé. Com salas pequenas e a abarrotar de dezenas de alunos, os professores toécés exerciam uma disciplina severa. Isto diz-nos tanto da limitação desta obra relativamente a uma necessidade demasiado real - educação básica de qualidade para todos no Burkina Faso - bem como dos elementos básicos através dos quais se pode fazer uma educação: um professor, uns livros em terceira-mão, alguns lápis e papel usado, bancos e mesas improvisadas, e uma sombra. Quando há vontade de aprender e de ensinar, qualquer espaço, mesmo o mais mínimo, pode servir o ensino, a aprendizagem, a discussão e debate, elementos que, como Sankara reconhecera, desempenham um papel absolutamente significativo na real melhoria de vida das populações.

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Infelizmente, apesar de uma rede contida mas nacional de escolas primárias, o Burkina Faso mantem uma elevada taxa de analfabetismo e desistência escolar. A associação, nem que fosse por uma unha, vinha ajudar a corrigir esta situação. O nosso hangar veio ajudar esta correção. Aonde quase tudo falta, no entanto, os poucos intrumentos disponíveis emergem com uma forte presença, e é por esta razão que o mínimo espacial praticado pelo hangar, a sua pobreza, nudez e contenção, emergiu com uma grande riqueza. Esta é também a sua grande limitação. Mais que o facto de não prever um uso suficiente para o tamanho das aulas, o hangar não foi projectado por nós para uma educação especifíca. Não tentámos perceber quais os padrões de educação em efeito no Burkina Faso, nem se a associação tinha ou queria praticar uma filosofia especifica de educação. Não articulámos uma ideia do que esta educação suplementar queria ser e promover. Não criámos uma discussão acerca deste assunto: o que queria a associação como política educativa? Que formatos de aula seguiam, queriam e podiam seguir? Qual a filosofia de educação, se principalmente baseada em manuais ou numa tradução etnográfica dos seus conteúdos? Não nos preocupámos com nenhuma destas questões, invés preocupámo-nos em encontrar um formato de espaço que pudesse pertencer formalmente à paisagem construída de Toécé. Por esta razão, mas também pelo facto de não termos acesso à internet, não investigámos modelos de espaços escolares. Se o tivéssemos feito, podíamos ter percebido que talvez um espaço hexagonal fosse mais indicado para uma prática menos linear e hierárquica de aula. Ou que um espaço redondo seria um desafio, ou ainda que um espaço trapézoidal permitiria um melhor aproveitamento para um esquema de quadro e professor ao fundo. Qualquer uma destas hipóteses, entre outras, permitiria discutir que prática educativa estava em questão, como se relacionava com as práticas existentes no país, o que implicaria da associação e sua organização. Mesmo que isto não viesse a acontecer, o ter experimentado com outros formatos espaciais permitiria promover outras práticas de aulas, isto é, predisporia os voluntários e alunos a organizarem-se de formas mais inesperadas. Nenhum destes elementos torna o hangar e seu projecto menos do que é e quis ser. Pelo contrário, a riqueza do seu uso fala de como se tornou muito mais do que o Ricardo e eu previmos. Tornou-se, de facto, um espaço de encontro e partilha, suficientemente distanciado do centro de decisões da associação e com agradáveis condições ambientais – a sombra, a planície, o pôr-de-sol, o contacto directo e simples. Falhou, no entanto, o objectivo de criar um espaço de aulas potenciador, isto é, abrindo outras opções de prática. Nesse verão em que voltei ao Burkina, uma árvore no limite da propriedade da associação e um piso horizontal, feito de terra avermelhada, foi talvez melhor sala de aula que o hangar. Mais flexível, mais livre, com regras acordadas entre palavras de partilha

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e tradução, e não com a dureza do cimento. É preciso salvaguardar que com isto não quero sugerir que qualquer forma arquitectónica com o objectivo de criar espaço de aula ali, teria falhado à partida, que bastam os livros usados, os voluntários e uma sombra e já se faz uma escola. Infelizmente, estes são os únicos elementos que fazem escolas em muitas situações de privação. Pelo contrário, pretendo sugerir que o nosso projecto falhou uma missão maior que passava por discutir que tipo e práticas de educação promover em Toécé, e que espaço as poderia ajudar. Bem como a questão na sua base: qual o papel da associação naquela paisagem e o conjunto de relações espaciais que melhor o promovem. O hangar não nos ajudou a responder a esta questão mas, ajudou a manter e reproduzi-la. Gostaríamos de acreditar que o nosso pequeno contributo serviu também para ajudar às melhorias de educação e debate da população toécé. Se os toécés realmente nos necessitavam para alcançar tais feitos ou que implicações mais profundas têm as contribuições ocidentais nos seus sistemas educativos, de valores e de exemplos para as populações e as crianças locais, ficou em aberto numa discussão maior do papel dos brancos no mundo que tínhamos colonizado. Ao voltar para Portugal, as memórias do projecto transportavam esta questão e não creio ter surgido uma resposta definitiva, no entanto, a experiência em Toécé deu-nos coordenadas específicas e várias lições. Quando para lá viajámos a primeira vez levávamos na nossa bagagem a ideia, de filiação marxista, de que a caridade reduz o poder emancipatório das populações. Por outras palavras, que a caridade ocidental, na forma de ONGs e projectos de cooperação, muito peca por não permitir medidas de fundo e, em vez disso, mantem uma certa situação de dependência. Apesar de exprimir várias situações concretas e reais limites ao desenvolvimento, isto não nos dava sentido: já que aqui estamos, já que decidimos vir, o que fazer para melhorar nem que seja um pouco a vida desta gente que tem muito menos que nós. Estas questões ocuparam-nos bastante enquanto em Toécé e dividiam membros da associação. No fim da temporada, Toécé ajudou a formar a resposta: as macro limitações da caridade branca não devem limitar as vontades e efeitos que movem os projectos desenvolvidos no terreno. Não íamos mudar a relação entre o mundo branco e preto por um hangar, mas podíamos tentar melhorar formas de educação e promover a relação entre os toécés e a associação. Como disse anteriormente, não sei se conseguimos promover estes objectivos mas, muito aprendemos no processo. Que a obra, apesar de ter um começo claro, não tem exactamente um fim determinado – ela não acabou exactamente poucos dias antes de partirmos para Portugal, continuou muito após, não só como um espaço de aulas em Toécé, mas também como uma ponte entre vidas e prioridades diferentes. Que a procura de formas é um processo que deve ser mais complexo que a procura de tipologias – formas pré-estabelecidas não asseguram

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pertença, confiança, igualdade, nem promovem práticas automáticamente. Que uma situação regida por mínimos, de alimentação, saúde, bem-estar, possibilidades, nunca deve ser encarada através de mínimos se o que se deseja é tranformá-la. Que um projecto de arquitectura é de facto muito mais que a concepção de um bom ambiente mas, também e pelo menos, o enquadrar de processos em movimento. Que também cabe ao arquitecto saber discutir ou pelo menos aproximar a discussão destes processos. Que uma escola não é feita de mínimos, apesar de podermos reduzir a aprendizagem de matérias básicas a um simples diálogo entre professor, livro e aluno. E, por fim, que actuar em situações de grande pobreza não deve justificar a pobreza de soluções e projectos. Estas são lições apenas para mim, enquanto arquitecto que retorna à obra que o hangar, enquanto ponte, permite. Faltou e falta saber que lições tiraram os toécés do pequeno hangar. É preciso voltar, sempre voltar.

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(LOST) IN TRANSLATION projectos educativos na selva peruana

Paulo do Vale Afonso

1. Prólogo A premissa é sem dúvida interessante: um arquitecto português e uma arquitecta italiana, por vezes com a colaboração de arquitectos espanhóis, respondem a um encargo de um alemão para desenvolver o projecto de uma escola numa comunidade nativa na selva peruana financiados por uma ONG inglesa! Decorrente desse encargo, foram desenvolvidos no total quatro projectos de educação (dos quais se apresentarão os 3 mais representativos), ao longo de 3 anos. Todas as fotografias são da autoria de Paulo Afonso e Marta Maccaglia, excepto onde indicado.

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Este artigo pretende mostrar e apresentar estes projectos e contar um pouco a sua história desde o ponto de vista do arquitecto, neste caso eu. Será escusado dizer que estes projectos marcaram definitivamente a minha carreira enquanto arquitecto e a mim mesmo enquanto pessoa. Ao invés de contar uma história pessoal da minha relação com eles, que quer pela experiência pessoal do seu contexto quer pela especificidade e riqueza social e antropológica desse mesmo contexto, se tornaria uma história interessante e diferente, optei pela sua história mais analítica e não-sentimental. Ao discorrer um pouco sobre aquilo que, do ponto de vista da disciplina da arquitectura, aprendi e creio ser importante tanto neste tipo de projectos como transportável para o exercício da profissão em geral, distanciei-me dessa “relação” sem dúvida intensa que com eles mantive e tentei apresenta-los resumidamente assim como as questões que dele derivam. Uma crónica ao invés de um romance, que talvez fique para outra altura…

Como ponto de partida e de contacto entre todos eles, a identidade. Todos os projectos que foram desenvolvidos e serão apresentados neste artigo são marcados por questões de identidade. Primeiro, da deslocalização da arquitectura: a equipa de arquitectos trabalhou num espaço contextualmente muito diferente daquele do qual são culturalmente descendentes, um reflexo de um mundo globalizado, mas que, neste caso, e ao invés de uma arquitectura “globalizada” (como acontece muitas vezes, quiçá maioritariamente, na mobilidade de recursos humanos), fez sentido uma arquitectura que lida directamente com questões identitárias e contextuais muito próprias e marcadamente locais. A segunda questão identitária prende-se já com este facto: a especificidade muito própria dos contextos nos quais se trabalhou, que apesar de relativamente similares a nível físico, são diferentes a nível cultural, e, por sua vez, a relação não somente com a identidade do usuário, mas também dos restantes actores locais que intervêm no processo. Por último: a identidade dos projectos, que são diferentes e têm diferentes abordagens e personas, ou imaginários projectuais. Estas nuances identitárias fizeram com que, além do seu scope formal, estes projectos tenham sido parte de um intercâmbio que, tal como cada linha desenhada ou tijolo assente, fazem parte da génese e história de cada um deles e de todos em geral na definição daquilo que são e daquilo que procuram ser e alcançar. Os projectos têm sempre várias histórias. Histórias de gente, de quem faz e para

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quem é feito, histórias de traços e desenhos, de escolas de pensamento e escolas de arquitectura, maneiras de ver e fazer. Neste(s) caso(s) específico(s), e uma vez que tratamos de projectos educativos em contextos muito particulares no chamado “sul global”, há vários temas/tópicos com os quais se podem relacionar: a questão da educação e da arquitectura educativa; a questão da “arquitectura social”, que poderia, por seu lado, levar-nos a reflectir sobre a questão da migração actual de uma nova geração de jovens arquitectos num contexto ao mesmo tempo de mobilidade global e vicissitudes locais, assim como a abertura de novos contextos de intervenção; a questão meramente projectual e, por equivalência, também a da escola de arquitectura; a temática dos processos participativos; a questão da (por vezes difícil e adaptativa) construção dos projectos e experiência de obra; etc. Podia-se, por outro lado, apostar numa mera exposição dos projectos de um modo convencional, com a memória descritiva e os desenhos e fotos do projecto final. Não sendo de todo esta última hipótese aquela que se quer expor nestas páginas, todas as questões anteriormente mencionadas são indissociáveis dos projectos em si mesmos, quer na sua concepção quer na reflexão que deles fazemos antes e durante o processo, quer ainda como quando são finalmente construídos e operacionais. Especialmente neste artigo, em que falaremos de vários projectos ao longo de alguns anos, e nos quais o nosso processo de aprendizagem e evolução enquanto arquitectos também é um factor a apontar, num contexto de conhecimento bidireccional entre nós e todos aqueles que, de uma ou outra maneira, são parte dos projectos. Se bem que pudéssemos derivar para uma panóplia de ensaios com estas questões transversais, optaremos por contar a história, ou algumas histórias, destes projectos, histórias essas que acabam por tocar todos os temas apontados anteriormente, talvez não respondendo (nem querendo responder) a todas elas, mas aproveitando para focar e (re)pensar alguns dos aspectos pertinentes na sua génese e no seu desenvolvimento, fruto de um trabalho contínuo, de intercâmbio e aprendizagem. Nesse sentido, abordarse-ão questões transversais aos vários projectos apresentados, contextualizando e reflectindo sobre os mesmos quer no seu aspecto formal, quer programático e metodológico, e até mesmo filosófico. Podemos dizer que a estratégia subjacente aos projectos está maioritariamente assente naquilo que podemos chamar a estratégia dos 3 p’s: programa, processo e projecto. Uma reflexão profunda sobre o programa, não apenas no seu sentido estrito ligado ao programa base, mas também ao seu programa estendido enquanto projecto de carácter público, especialmente neste contexto tão particular, no qual o projecto tem a capacidade de ir além do seu programa específico; o processo, que devido ao seu contexto sui generis, é um dos pontos chave quer à concepção

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do projecto quer à sua própria materialização e consequente vida após o processo de instauração; por último, o projecto enquanto resposta formal e física às suas próprias problemáticas assim como o “resumo” das duas antes citadas. Estes três aspectos são fundamentais, na sua interdependência, para a consecução e boa resposta dos mesmos. Após a conclusão dos projectos, a sua monitorização continua a ser feita1, acompanhando os primeiros anos de evolução e, eventualmente, respondendo a problemas que surjam, auxiliando a apropriação que a comunidade faz dos edifícios, o que é vital em contextos de informalidade e subdesenvolvimento2. 2. A premissa O convite para apresentar o projecto de uma escola secundária na comunidade nativa de Chuquibambilla surge através de um convite por parte de Bastian Fuelles, commercial manager da empresa de café Prodelsur (subsidiária da empresa Volcafé, que por sua vez faz paerte do conglomerado ED&F Man), que se propõe a apresentar esse mesmo projecto à Costa Foundation, uma ONG inglesa cujo objectivo consiste em “ajudar comunidades produtoras de café a crescer através da educação”3. Esta ONG está em constante comunicação com empresas produtoras e exportadoras de café, que são encorajadas a apresentar projectos para financiamento. Desenvolvendo projectos na América do Sul, África e Ásia, foi a primeira vez que algum projecto proposto foi feito com a participação de arquitectos. A principal problemática do projecto prendia-se com o facto de que o orçamento, destinado tanto à construcção como equipamento da escola, era extremamente limitado e tinha um montante fixo não negociável, e como objectivo atingir uma quantidade específica de crianças estipulado pelo sponsor. De referir que o problema advém maiormente do Peru, principalmente o interior e as zonas mais afastadas dos grandes centros, terem um grande nível de informalidade e de corrupção, e dos custos serem muitas vezes variáveis e difíceis de calcular devido a factores como a falta de pessoal qualificado ou mesmo o clima (como exemplo, a primeira abordagem ao projecto pressuponha uma área um pouco maior da que que figura no projecto final, à qual o construtor nos dava um preço por metro quadrado cerca de 3 vezes inferior àquele que se verificou Neste caso, é de salientar o trabalho efectuado pela arq. Marta Maccaglia com a ONG Asociación Semillas (www.semillasperu.com), que além de continuar a trabalhar nesses contextos, dá seguimento e apoio aos projectos que foram desenvolvidos e se apresentam neste ensaio. 2 Em muitos casos, em países da América do Sul, a discussão sobre políticas urbanas em assentamentos humanos ou novas áreas urbanizáveis inclui a necessidade de gabinetes de apoio, maioritariamente para instrução no processo de autoconstrução de habitação própria. 3 www.costafoundation.com/about/ (tradução do autor). 1

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na realidade). Além disso, o montante definido é calculado na sua generalidade, um pouco em abstracto, de acordo com o número de crianças que deve atingir e no cômputo geral do orçamento anual da fundação para todos os projectos construídos em todo o mundo, pressupondo maioritariamente a construção de espaços de aula (não contemplando outros espaços, à excepção de uma sala de informática e instalações sanitárias), acrescendo neste caso o desejo e necessidade de contemplar no projecto uma residência estudantil (a localização da escola nesta precisa comunidade tem como um dos factores decisivos, entre outros, a sua proximidade a outras localidades que deveria servir). O projecto foi então apresentado, aprovado e construído, com resultados que agradaram bastante os financiadores, quer pelo objecto construído quer pelo processo e empenho demonstrado pelos vários intervenientes. Como resultado, foi-nos proposto desenvolver outro projecto semelhante, que se levou a cabo no ano seguinte na comunidade de Santa Elena. Entretanto, e sabendo do interesse da empresa em construir mais dois projectos de pequena escala em duas outras comunidades, propusemo-nos a colaborar também nestes projectos, a saber, um pequeno jardim de infância na comunidade de Los Angeles del Éden e uma cantina escolar na Comunidade Nativa de Mazaronkiari. 3. O contexto O contexto destes projectos é o seu ponto de partida, quer a nível físico quer social/identitário, quer a nível nacional quer local. O Peru é um país bastante diverso, tanto física como socialmente. Fisicamente, o território é dividido em três ecossistemas principais: a costa, a serra e a selva, tendo sofrido uma migração bastante acentuada no último século do interior (serra e selva) para o litoral, principalmente para a capital Lima4, devido a vários factores como a procura de melhores condições de vida ou a fuga ao terrorismo levado a cabo maioritariamente nas zonas rurais pelo grupo armado Sendero Luminoso, entre outros. Apenas 9% da população tem um rendimento mensal superior a 895 USD, sendo que 70% da população tem um rendimento mensal inferior a 300 USD. No plano educacional, o Peru ocupa o último lugar nos testes PISA nas principais competências (matemática, leitura e ciências). O ensino privado ocupa uma grande parte do sistema educativo, sendo este o de melhor qualidade; no entanto a mensalidade nos principais colégios privados da cidade de Lima ultrapassa os 1000 USD. A população que habitava na costa em 2010 era mais de 60% do total nacional, contrastando com os cerca de 30% em 1940. Ao mesmo tempo, em 1940 a população rural era de 64.6%, passando para 26% em 2010. Estima-se que mais de 30% da população habite na capital, aproximadamente 10.000.000 de pessoas.

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Os projectos desenvolvidos têm lugar na província de Satipo, na região de Junin. Esta região, denominada selva alta (entre os 400 e 1000 metros de altitude), possui um clima cálido húmido e chuvoso, com temperaturas entre os 16º e 32º e uma humidade relativa entre os 50% e 80%. Apesar da distância entre Satipo e Lima ser de “apenas” 440km, o tempo de viagem é de cerca de 10 horas (estando ainda sujeitos a esperas prolongados por fenómenos metereológicos ocasionais como derrocadas na época de chuvas ou o congelamento da estrada na zona dos andes), piorando significativamente à medida que se entra mais para o interior, com estradas não asfaltadas na sua maioria (situação que, no entanto, tem vindo a mudar nos últimos anos nos principais centros povoados, excepto no acesso a comunidades mais isoladas), levando a que distâncias de apenas 35km levem cerca de uma hora ou mais a serem percorridas. A dificuldade e o transporte dispendioso, quer de pessoas quer de materiais, é um factor bastante problemático e que influencia de maneira significativa o andamento e custo dos projectos (as dificuldades de transporte podem encarecer os preços até 200% comparativamente ao preço nos centros mais desenvolvidos e acessíveis). As comunidades com as quais trabalhamos são bastante isoladas, e dedicamse maioritariamente à agricultura (quer para consumo próprio quer para venda, casos do café ou do ananás), à caça e pesca, dividindo-se em duas categorias: comunidades nativas5 e comunidades de colonos6. As problemáticas com as quais nos deparamos são, em geral, o abandono histórico da zona rural, a

Comunidades que têm origem em grupos tribais da selva e proximidades de selva, constituídas por conjuntos de famílias vinculadas pelos seguintes elementos principais: idioma ou dialecto, caracteres culturais e sociais, posse e usufruto comum e permanente de um mesmo território, com assentamento nucleado ou disperso. 6 Muitas das comunidades e cidades existentes na selva foram formados por grupos de povoadores originários de outros territórios, como a serra, ou mesmo de outros países. Como exemplo, a cidade de Satipo (cujo nome provém do vocábulo Aisatipoki de origem ashaninca, dialecto e raça nativa da região, que significa “os que chegam”), capital da região, teve como primeiro colono o alemão Augusto Hilser, em 1898. 5

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Comunidades de Chuquibambilla, Los Angeles del Éden e Santa Elena.

crise económica cafeteira (sendo o café umas das principais produções agrícolas da zona, tendo substituído com o tempo, em muitas das zonas, o cultivo da folha de coca, tem sofrido alguns reveses nos últimos tempos com pragas que afectam a sua produção, como a roya, e, por conseguinte, a subsistência das pessoas que a ele se dedicam), a intervenção assistencialista, a informalidade, a falta de pessoal local qualificado, o desajuste nos dados oficiais das Instituições Educativas Rurais, a desconfiança inicial, e o receio com o actor externo (em particular nas comunidades nativas). No que respeita à educação, as principais problemáticas são a baixa qualidade educativa, o atraso e abandono escolar, a existência de infra-estrutura precária e não adapta, a gravidez adolescente, a desnutrição infantil, o trabalho infantil e adolescente, docentes desmotivados e/ou com preparação insuficiente. Todos estes problemas contribuem a que a educação nas zonas rurais seja bastante precária e, em muitas casos, inexistente. As instituições educativas são formadas, na maioria dos casos, por iniciativa dos próprios habitantes. Quando atingem um certo número de crianças, é proposto ao Ministério de Educação a criação de uma instituição educativa. Com o tempo, desejavelmente, o Estado acaba por construir um espaço escolar para a instituição educativa criada, sendo que até lá, ela funciona em espaços existentes da comunidade ou criados pela mesma para o efeito. Estes espaços não possuem, na maioria dos casos, as condições necessárias e desejáveis para o ensino.

Escola em Chuquibambilla antes do projecto. (fotografias cortesia de Prodelsur S.A.).

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4. O espaço da arquitectura (ou o processo) Para além da arquitectura Mais que apenas um projectista, cabe ao arquitecto ser um agente de diálogo no processo quer de preparação, quer de projecto, quer de construção e implementação do projecto. Primeiramente, cabe ser o interlocutor junto dos parceiros locais (que propõem o projecto) e os sponsors, estes dois sendo os “clientes”. Depois, é importante serem o ponto de interacção com a comunidade, o beneficiário, visto que este tipo de projectos têm um alcance e especificidade complexos na sua prossecução, como veremos adiante. Assumem-se ainda, como é normal na profissão, como coordenadores entre estas figuras enumeradas anteriormente e os restantes agentes da construção (engenheiros, construtores, autoridades, etc.). Por último, mas não menos importante, o arquitecto assumese como um elemento chave não só na parte projectual, mas maioritariamente no acompanhamento da obra, visto estarmos a trabalhar em contextos bastante informais e, na sua maioria, com mão de obra pouco qualificada, e nas quais o orçamento tem que ser rigorosamente cumprido (uma vez que se tratam de doações com montante fechado), num contexto no qual os factores económicos são muitas vezes variáveis e a informalidade e corrupção são factores a ter em conta, como já mencionamos. Cabe ao arquitecto ser o ponto de contacto com a comunidade, que como veremos mais adiante, é parte integrante do projecto e na maioria dos casos é parte integrante da construção. Assim, o arquitecto assume-se como o verdadeiro coordenador de todo o projecto nas suas variadas vertentes. Além disso, são várias as situações na qual o projecto se tem que adaptar a condicionantes específicas, inclusive durante a obra, sendo para isso fundamental quer o trabalho realizado junto da comunidade (e em todo o contexto geral) a nível projectual, quer o acompanhamento do projecto em obra para definir certos aspectos da sua implementação e materialidade, tomando as opções necessárias ao longo de todo o processo. Uma arquitectura de cooperação Este tipo de projectos implica um processo particular no que concerne quer à sua concepção, quer à sua implementação / construção e posterior operacionalidade. Devido às especificidades contextuais do mesmo, este tipo de projectos implica uma relação constante com o usuário, principalmente a nível da implementação do projecto. Nos últimos tempos, o termo “arquitectura social” tem voltado à discussão em torno da disciplina. Em grande parte, o regresso deste tema à agenda tem a ver com algumas questões transversais do nosso tempo

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e com uma certa democratização crescente da arquitectura, tradicionalmente ligada ao poder e à inovação tecnológica, e que abarca hoje em dia (e cada vez mais) novos campos, contextos, agendas e práticas. Ao nível da sociedade em geral verificamos hoje um certo esvaziamento da preocupação social e humana decorrente do advento da sociedade capitalista, maioritariamente individualista e consumista, aliada a cenários de pobreza social colectiva e pessoal (como por exemplo, o caso dos refugiados ou das favelas e assentamentos humanos que possuem, muitas vezes, pouca urbanidade e difíceis condições de higiene e segurança), aos quais acedemos devido a uma globalização que molda a criação de novos contextos e cenários, tais como a abertura de novos espaços de intervenção, a facilidade de mobilidade mundial, o êxodo urbano que gera um rápido e contínuo crescimento das urbes) não acompanhado, em muitos casos, pelo seu planeamento), etc. De facto, pode-se argumentar que toda a arquitectura é social, pois ela é fruto de uma relação com a sociedade e actua sobre e com a mesma, e o termo já serviu de reflexão e de base na arquitectura em várias ocasiões, como no advento da era moderna ou nos anos 1960. Mas o alargamento do âmbito da sua intervenção, até muitas vezes como contraponto ao seu exercício mais tradicional, associada ao poder (hoje em dia, o capital) e inovação tecnológica7, potenciado por factores como os que mencionamos acima, leva-nos a repensar a disciplina sobre um ponto de vista mais próximo das comunidades e dos problemas que elas enfrentam e como objecto de intervenção também nesse sentido, o que contribui para relançar o debate sobre uma arquitectura social. Em todo o caso, e além de ser evidente a preocupação e o âmbito social por detrás destes projectos, nomeadamente por serem projectos de carácter público e com um programa mais abrangente que aquele inicialmente proposto, como veremos mais adiante, um termo que usamos que reflecte o trabalho que desenvolvemos é o de arquitectura de cooperação8, o que implica um processo de diálogo e uma operação colectiva de colaboração de maneira a atingir um objectivo comum. Este tipo de entendimento permite-nos englobar dentro do pensamento e processo de trabalho os vários factores inerentes às condicionantes específicas do projecto, tais como a relação entre as distintas pessoas que o constituem (financiadores, parceiros, comunidade, construtores, etc.), a adequabilidade do projecto ao seu contexto específico, quer físico quer social/ cultural, e a sobrevivência do projecto no tempo. A colaboração e diálogo entre as partes é essencial para a prossecução destes projectos e, sem esses factores, os Podemos assumir como arquitecturas tradicionais contemporâneas aquelas que tratam directamente com a arquitectura nos sentidos referidos e no seu sentido mais “disciplinar”, casos de práticas como Zaha Hadid, Frank Gehry, etc. Segundo Piaget, a cooperação implica uma “superação da perspectiva egocêntrica do indivíduo”, baseando-se na reciprocidade, e pode ser entendida como uma interacção entre indivíduos que se relacionam de forma não-hierárquica de maneira a atingir um objectivo comum (colectivo).

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projectos seriam mais pobres na sua concepção e, definitivamente, não chegariam a converter-se em obras. Dessa forma, os projectos são elaborados e executados através de um processo participativo, onde a comunidade faz efectivamente parte do processo. Tal facto não implica um processo de desenho bottom up, mas sim um envolvimento e aproximação à comunidade desde o início até ao final da obra, e até posteriormente quando é feito o acompanhamento do projecto após a sua conclusão. A participação do usuário leva a factores decisivos na consecução do projecto. Primeiro (e tal factor é essencialmente importante nas comunidades nativas, habituadas a desapontamentos históricos às mãos do homem branco), é criada uma relação de confiança entre a comunidade e a equipa de projecto, que é importante para estabelecer laços sem os quais se torna difícil lidar com os diferentes problemas e inquietações que vão surgindo, ao mesmo tempo que se assume com esta relação a condição inequívoca de que o projecto a realizar é um projecto para a comunidade e, como tal, eles podem e devem ser parte do processo, sendo que um dos objectivos mais evidentes é criar um sentimento de pertença entre os residentes e, ao mesmo tempo, inspirar um processo de trabalho permanente no seu entorno. Também nesse sentido, a inclusão de mão de obra local permite a transmissão de conhecimento através da experiência in situ, factor que implica que o objectivo do projecto no seu todo é abrangente e permite também educar e criar novos conhecimentos e potencialidades nas comunidades, tornando-se deste modo como um projecto de desenvolvimento e capacitação através da implementação do projecto de arquitectura.

Escola de Chuquibambilla (processo)

Neste sentido, é objectivo do projecto e do processo participativo o empoderamento (do inglês empowerment) da comunidade. O termo significa a obtenção ou reforço do poder, e permite incentivar e aumentar a autonomia dos indivíduos ou comunidades nas suas tomadas de decisão e permitindo-lhes representar os seus próprios interesses em seu próprio benefício, um processo de reforço de poder e identidade sobre as suas próprias vidas: “Empowerment

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is viewed as a process: the mechanism by which people, organizations, and communities gain mastery over their lives”9. Este processo de empoderamento é vital, pois é através dele que as comunidades atingem um verdadeiro desenvolvimento e auto-conscientização das suas capacidades e, como tal, é o meio primordial para a verdadeira sustentabilidade do projecto, nas suas mais diversas vertentes (física, social, económica, funcional, etc.), permitindo que a comunidade que dele usufrui seja a última responsável por ele e que ele se possa tornar, no tempo, como um edifício verdadeiramente público e comunitário.

5. O espaço programático e educativo (ou o programa) A definição do programa é o ponto de partida para a idealização dos projectos. Pensar a arquitectura implica pensar o programa, neste caso específico em duas vertentes basilares: o programa enquanto edifício público, imprescindível no contexto particular no qual se insere e como oportunidade única, e o programa na sua vertente educativa. Em ambos casos, a constatação e análise do contexto físico e social é de suma importância. Assim, devemos pensar no programa além do programa. Primeiro, há que entender o que significa a oportunidade de desenvolver o projecto neste contexto específico e aquilo que ele pode aportar de acordo às condições do mesmo (tamanho, orçamento, etc.). Para este tipo de contextos, convém ter em conta que este é, porventura, o único edifício de construção qualificada que existirá na comunidade. Como tal, a oportunidade de se converter 9

Rappaport, J. (1984). Studies in empowerment: Introduction to the issue. “Prevention in Human Services,” 3, 1–7.

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num edifício verdadeiramente público e que contribua para o desenvolvimento da comunidade mais que ser apenas um espaço educativo é evidente. Neste sentido, a extensão do programa assegura a sua longevidade e pertinência. Entendendo que a sua escala limita a sua função nesse sentido, a essência desse mesmo espaço mantém-se, no entanto, inalterável. O maior ou menor papel que o edifício pode ter nessa valência pública acaba por determinar, eventualmente, o verdadeiro papel que ele pode assumir como edifício público e comunitário, também na sua escala educativa. A questão educativa e de pensarmos um programa educativo tem também a ver, em certa medida, com o que significa educação neste tipo de comunidades. A educação pressupõe desenvolvimento pessoal e comunitário, e ao pensarmos nesse desenvolvimento inferimos que a escola implica ensinar-nos a ser indivíduos dentro da nossa própria comunidade, assim como no contacto com as outras. A educação é feita de aprendizagem e intercâmbio, e os edifícios educacionais devem permitir essas valências. Assim, o programa é pensado como contentor de espaços educativos, mas também de espaços de lazer, de reunião, de inovação e de tradições e, deste modo, diversificar e ampliar o seu uso no tempo e espaço e para aqueles que dele podem usufruir. A questão do espaço educativo que se desenha ou projecta tem muito, senão tudo, a ver com a questão de como entendemos a educação e a arquitectura. Por um lado, e não obstante da implementação de um espaço educativo estar directamente relacionado com o programa ou método de ensino que nele se aplica (na generalidade dos casos, o modelo educativo ainda tem por base o sistema de educação tradicional e convencional), a arquitectura pode e deve ser um factor de diferenciação e entender-se de que modo pode ser um valor acrescentado ao ensino em determinado contexto. Deste modo, ao invés de criarmos contentores de aulas, podemos criar, nas palavras de Mazzanti, “ambientes de aprendizagem”. Segundo ele, “desenhar ambientes de aprendizagem é reconhecer que se a arquitectura é o “terceiro professor” e o ambiente um elemento integral da experiência educativa (..) os arquitectos não fazemos só objectos e formas, mas podemos desenvolver habilidades adicionais para propiciar novos comportamentos. Mais que um contentor, a arquitectura pode ser, em si mesma, um mecanismo de aprendizagem: um instrumento com o potencial para redefinir como aprendemos”. Nesse sentido, é possível pensarmos na arquitectura dos espaços educativos como “sistemas abertos e adaptativos (…) capazes de adaptar-se às mais diversas situações (...) e que define o seu valor justamente nessa capacidade de câmbio”, percebendo que “quando a arquitectura é capaz de multiplicar as suas funções de maneira que estende os tempos de uso e número de usuários previstos inicialmente contribui à sustentabilidade

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social”, desenvolvendo um conjunto de características que “multiplicam as possibilidade de câmbio e adaptação, revalorizam o investimento público e abrem novas formas de uso dos ambientes de aprendizagem desde o jogo”, jogo este pensado como “parte essencial da aprendizagem” de maneira a “propiciar novos comportamentos, acontecimentos e interacções”, e procurando “desdobrar as capacidades criativas do usuário”, pois “o valor do jogo e da anomalia radica na construção de momentos de interacção capazes de detonar relações humanas diferentes às típicas de um espaço funcional”, o que nos leva a reflexionar sobre uma noção de “vazio sem programa onde aprendemos a ser comunidade”. Através da experiência com o ambiente uma criança pode aprender, ressalvando a função do pátio que “responde não só a uma função imediata de criar áreas abertas, mas sim a uma disposição do ambiente baseado na aprendizagem desde a experiência”. Resumindo, “arquitectura escolar que actua ao mesmo tempo que contém, e da criação de ambientes de aprendizagem multissensoriais que apelam à experiência e à multiplicidade. Uma arquitectura, em definitivo, que se define pelo que faz e não por como parece”. 10 Aparte o contexto específico no qual Mazzanti opera (o desse “sul global”), e no qual nós também actuamos nestes projectos, os conceitos que defende são bastante actuais numa altura em que mais que conhecimentos formatados, pré-concebidos e genéricos são cada vez mais preteridos a favor de outros tipos de capacidades como por exemplo o desenvolvimento de capacidades de aprendizagem e inovação (tais como criatividade e inovação pensamento crítico, comunicação e colaboração), capacidade de iniciativa e de responsabilidade, capacidades sociais e culturais, ou capacidades tecnológicas, informativas e de comunicação, entre outras. Dessa maneira, o programa de um espaço educativo deve ir mais além que o próprio programa, entendido neste caso como a “sala de aula”. Assim, os modelos de espaços educativos devem privilegiar a criação de espaços e sistemas que possam gerar capacidades de socialização e aprendizagem de outras capacidades, mesmo quando estas não estão no programa. Talvez o facto de este “sul global” possuir, em alguns casos e contextos, situações difíceis quer do ponto vista físico, social e político possa dar azo a que também os modelos educativos e os espaços educativos sejam mais flexíveis e adequados às condições sobre os quais operam. Nestes casos específicos, interessou-nos principalmente repensar o programa requerido pelo cliente (neste caso, o patrocinador) de acordo à especificidade do usuário. A educação, nestes contextos, implica, numa análise directa, dotar os G. Mazzanti y J. Salcedo: “Diseño y pedagogia. Nuevos ambientes escolares” in Arquitectura Viva 185.6/2016 For Children, pps. 13-17 10

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alunos (e todas as pessoas dentro da comunidade que desejem potenciar a sua educação) de capacidades não só de resposta ao programa curricular (no sentido de prosseguir os estudos) mas sim também de resposta ao ambiente no qual se desenvolvem, permitindo que os indivíduos possam adquirir faculdades para atingir certos propósitos ou resolver problemas que lidam directamente com a sua experiência de vida imediata11. Desse modo, espaços que permitam aprender a lidar com actividades tradicionais e que, na possibilidade de dinamizar essa aprendizagem, lhes possa facultar opções de desenvolvimento educacional e superior nessas valências (como por exemplo, na agronomia, pecuária ou até no ensino). Dessa maneira, o indivíduo pode ter a possibilidade de adquirir conhecimentos em vários campos relacionados com o seu modo de vida, como o artesanato, a agronomia, o cultivo de espécies e animais, etc., assim como capacidades de socialização, inovação e relação com o “mundo exterior”. Um facto importante é também poder conectar os alunos com as suas próprias tradições e comunidade, potenciando espaços de convívio e de actividades comunitárias. Deste modo, a aprendizagem torna-se de facto relevante para que uma pessoa possa ser um elemento útil na sociedade, num sentido recíproco de aprendizagem e intervenção. 6. O espaço projectual (ou o projecto) Os três projectos apresentados têm contextos e programas distintos na sua similaridade. Enquanto que a Escola em Chuquibambilla e a Escola em Santa Elena têm o mesmo programa, o seu contexto físico imediato e social são diferentes (como já vimos, uma é localizada numa comunidade nativa e a outra numa de colonos); da mesma maneira, tanto Chuquibambilla como Mazaronkiari são comunidades nativas, apesar de os programas e a escala serem distintos. Como tal, os projectos acabam por assumir diferentes abordagens formais e uma diferente identidade ou, como eu gosto de lhes chamar, diferentes imaginários. Chuquibambilla e Mazaronkiari, enquanto projectos em comunidades nativas, possuem uma identidade formal muito próxima da sua identidade contextual, com referentes tipológicos próximos daqueles que o habitam. Já em Santa Elena, o facto de se tratar de uma comunidade de colonos e, como tal, mais ligada a uma ideia de progresso com referentes mais ocidentais12, leva-nos a pensar Na maioria dos casos, os alunos não transitam do ensino secundário para o ensino superior. Nestas comunidades, a ideia de progresso implica construções de tijolo e betão, pois são esses os referentes que possuem, ao mesmo tempo que associam os materiais locais a uma construção precária e temporária. Um dos desafios de introduzir materiais locais nas obras passa também pelo facto de educar as populações de que o uso destes materiais é também ele nobre e que se podem atingir resultados satisfatórios, além de que é positivo adquirir capacidade de trabalho nesses mesmos materiais locais, também por questões de sustentabilidade ecológica, económica, social, etc. 11 12

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Comunidades de Chuquibambilla, Mazaronkiari e Santa Elena.

o projecto de outro ponto de vista formal. Assim, os projectos acabam por relacionar-se também com imaginário idealizado das próprias comunidades no qual se inserem. A situação física e a sua escala também nos permitem pensá-los, de forma abstracta, como imaginários conceptuais, quase à semelhança dos relatos idílicos de Marco Polo a Kublai Khan. Chuquibambilla remete-nos para a ideia de comunidade ou comunhão, inserido numa comunidade relativamente compacta feita de pequenas cabanas. Mazaronkiari é uma comunidade em muito similar a Chuquibambilla, mas mais populosa e, portanto, mais desenvolvida, na qual o projecto é apenas mais uma cabana, não sendo de todo excepcional na sua escala e quase uma “surpresa ao virar da esquina”. Já Santa Elena, que se insere numa comunidade dispersa que se estende por entre a densa vegetação, surge como um ícone perdido, que imaginamos na sua singularidade como ruína daqui a milhares de anos como as ruínas de Yaxchilan em Chiapas, México, ou Angkor, no Cambodja. Cada projecto é uma resposta formal quer ao encargo, quer à sua contextualização específica, e, obviamente, correspondem também a uma ideia conceptual e projectual dos arquitectos. No entanto, um dos pontos comuns a todos eles é a sua relação com o exterior. Todos eles são edifícios que, de uma maneira ou de outra, e através de distintos modos, se relacionam fortemente com o exterior e o seu entorno. Isto porque as comunidades na qual se inserem, principalmente as nativas, têm uma relação especial com a natureza e as próprias condições climáticas favorecem a vivência dos espaços exteriores, sem contar com a qualidade destes para a educação cívica e vida comunitária. Deste modo, todos os projectos colocam em evidência e assumem o valor acrescentado destes espaços de vivência, colocando em relação tanto física como visual o espaço interior e exterior. Essa mesma relação reforça o sentido de edifício público através da inter-conectividade entre os espaços e as pessoas, relação essa que pode ser vista quer no pátio de Chuquibambilla e nos seus “corredores”, no espreitar tímido e curioso para o interior do espaço em Mazaronkiari, ou na relação interior exterior que se gera por entre o brise-soleil de Santa Elena. Esta relação com o exterior é plasmada na criação deste tipo de espaços

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(sistemas) abertos (maioritariamente exteriores, pelos motivos que se indicam acima) e, num certo ponto, quase informais, que assumem grande protagonismo e são os principais geradores de espaço e vivências. São, sem qualquer dúvida, um dos pontos mais essenciais destes projectos a nível formal, não esquecendo todos os outros factores, todos eles extremamente importantes no seu conjunto. A materialidade assente nessa duplicidade quase antagónica austera e plástica, aliando materiais e métodos de construção locais e modernos que se traduzem em mais valias quer físicas quer sociais, como vimos, e que permite a durabilidade do projecto e sua fácil manutenção. Os sistemas climáticos passivos, reduzindo o consumo de energia ao mínimo e permitindo uma boa vivência dos espaços a nível de conforto térmico e lumínico. A optimização de recursos como o reuso de águas, ou o re-aproveitamento de material escolar como cadeiras ou mesas. Ou ainda o uso de adornos criados pelos alunos, ou o simples acto de semear plantas e árvores, pequenos gestos e pormenores que fazem a uma grande diferença, entre tantos outros.

Espaço Multifuncional em Mazaronkiari

7. Epílogo Perceber o sentido e as potencialidades que estes edifícios podem assumir, sem serem impositivos ou anónimos e conseguirem ser espaços de referência, diferentes na sua inclusão, e tentar, através de um exercício formal, criar espaços de

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Escola de Chuquibambilla. © Yayo Lopez

aprendizagem e cidadania que permitam e privilegiem uma experiência espacial próxima do habitar e tentando distanciar-se de um espaço de aprendizagem austero, monótono e estanque, permite que estes edifícios se assumam como catalisadores de um desenvolvimento pessoal e colectivo, dinamizadores do desenvolvimento das próprias comunidades como elementos de agregação colectiva e impulsionadores de transformação e consciencialização pessoal, social e espacial, numa clara relação de integração urbana e projecção arquitectónica, analisando e re-imaginando referentes espaciais e projectando espaço e cidadania. Perceber aquilo que a arquitectura pode aportar, onde ainda é um elemento diferenciador no espaço no qual se insere, um back to basics despojado de artifícios, um edifício que se tenta ser um pouco mais que aquilo que lhe é pedido, sem a pretensão de o ser, pensar e imaginar processos mais que somente desenhos e formas, procurar humildemente, às vezes um pouco ingenuamente, fazer a diferença, por mais pequena que seja na realidade, mas enorme dentro de nós e, acima de tudo, aprender muito! Porque foram os nossos primeiros projectos e porque também nós crescemos ao pensá-los e ao fazê-los, sabendo que íamos provavelmente errar, mas esperando acertar na maioria das vezes. Porque a arquitectura também vive disso, desse evoluir, dessa aprendizagem eterna e experimentação, tentando ir mais além, fazer diferente, fazer mais. Perceber que os edifícios não acabam quando se assenta a última pedra, mas é aí que começam a viver, com vida própria, e com aqueles que os habitam. 64


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Durante o tempo que fizemos estes projectos, aprendemos muito. Vimos muito, e vivemos muito. Como arquitectos, e como pessoas. Porque tivemos a oportunidade de dar algo muito importante a alguém: a possibilidade de acesso a educação e, ao mesmo tempo, mais e melhor qualidade de vida. Criar um pano de fundo simples e honesto e tentar dar o máximo a quem, na maior parte das vezes, tão pouco tem. Tentamos, e esperamos que agora e no futuro, pelo menos parte dos nossos objectivos e, porque não dizê-lo, dos nossos sonhos enquanto arquitectos se possam transformar na realidade daqueles que vivam aqueles espaços para, mais do que no passado, viverem melhor e mais felizes. “Communities are not just buildings. Communitie are made of people and ethos and spirit and culture. If you want to rebuild a place well, you have to understand those cultural anchors.” (Eric Cesal)

Escola de Chuquibambilla.

Todos os projectos apresentados neste artigo são da autoria de Paulo Afonso e Marta Maccaglia (Chuquibambilla e Santa Elena têm a colaboração de Ignacio Bosch e Borja Bosch, e Mazaronkiari a colaboração de Carlos Ramos), e foram realizados entre 2012 e 2015, com construção a cargo de Javier Garcia e equipa e das comunidades locais. Os projectos foram financiados por Costa Foundation, Volcafe Foundation e ED&F MAN ChariCo, com a cooperação de Procesadora del Sur S.A. Bibliografia G. Mazzanti y J. Salcedo: “Diseño y pedagogia. Nuevos ambientes escolares” in Arquitectura Viva 185.6/2016 For Children

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ESCOLA EM CHUQUIBAMBILLA

comunidade nativa de chuquibambilla, satipo, peru (2013)

Mais que um lugar de ensino, a escola é o único lugar de uso público na comunidade, o que a converteu, ao longo dos anos num lugar de desenvolvimento e intercâmbio para toda a comunidade. Sempre vivo, o colégio transforma-se num espaço onde pais, alunos e professores estudam e se recreiam.

tradições: aulas ao ar livre, workshops de arte, cerâmica artesanato, agronomía, pecuária, agricultura, etc. Os espaços são conectados por um percurso sombreado que se assume como um espaço efectivo de encontro e de uso, cconvertendo-se numa extensão do programa. O colégio é um edificio no qual os limites entre interior e exterior se desvanecem para criar um espacio público conectado com o seu entorno. A inclusão de mão-de-obra local permitiu a transferência de conhecimento através da experiência in situ,. O envolvimento directo da comunidade e dos professores permitiu gerar bases fortes para a sustentabilidade do projecto.

O programa é distribuído em três módulos escolares e um módulo residencial em redor de um pátio central. O projecto conta com um âmplio programa exterior. Através de um sistema de pátios cobertos e ao ar livre de várias escalas se dispõem espaços dedicados a diversas actividades que conectam os alunos com a natureza e suas

fotografias © Paulo Afonso e Marta Maccaglia

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PÁTIO

FRAGMENTAÇÃO

PROGRAMA e CONEXÕES

criar um pátio central como gerador do espaço, com todo o programa a seu redor

gerar espaços de recreio entre as aulas e favorecer a circulação do vento e a relação (visual e física) com a sua envolvente

aparte o programa base requerido (interior) decidiu-se agregar um extenso programa exterior gerando diversas conexões

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planta

1. pátio 2. entrada principal 3. sala de aula 4. sala de informática 5. biblioteca 6. pátio 7. pátio coberto 8. sala dos professores 9. administração 10. residência 11. forno para cerâmica 12. tanque de água 13. criação de animais 14. instalações sanitárias

1. áreas verdes 2. beirais alongados para sombreamento e protecção das chuvas 3. paineis solares 4. tecto com grande inclinação para fácil escoamento das águas da chuva 5. ventilação cruzada 6. mais altura para ar mais fresco

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AULA MULTIFUNCIONAL EM MAZARONKIARI

comunidade nativa de mazaronkiari, satipo, peru (2014)

Aquando da idealização do projecto em 2013, o programa requerido era o de uma cantina para a escola primária, que na altura possuía 30 alunos. Em 2014, o número de alunos era já de 120. Dada a nova situação, propôs-se a construção de um espaço multifuncional que servisse além da referida cantina, também como espaço de aulas, de reunião, ou como auditório. A proposta arquitectónica consiste num espaçoso salão onde as actividades citadas podem ser desenvolvidas e uma cozinha feita de tijolos artesanais no lado norte, sobre um piso de cimento.

através de um sistema de painéis de madeira que podem ser abertos ou fechados consoante as necessidades. A alternância destes com painéis brise-soleil permite a iluminação natural e indirecta do espaço, assim como a circulação e constante renovação do ar. Uma característica sui generis do espaço é o efeito de visibilidade invertida. Enquanto que geralmente os edificios consistem num espaço interior desde o qual se vislumbra o exterior através de aberturas, neste caso as crianças e adulto, aguçados pela curiosidade, assomamse e olham curiosamente para o interior, tornando-se participantes na vivência interior do espaço, como se o espaço fosse uma praça pública.

A flexibilidade do espaço é principalmente assegurada

fotografias © Paulo Afonso, Marta Maccaglia e Miguel Gomez Petit

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CANTINA

aula

auditorio

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espaÇo multiusoS

Entrada Aula Multifuncional Cozinha Lava-mãos para crianças Mesas retrácteis

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planta

corte

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asSEmbleIa


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ESCOLA EM SANTA ELENA

santa elena, satipo, peru (2015)

a fruição do espaço livre e uma pequena pegada, com o programa organizado e conectado através de um eixo central, e com um grande pátio no centro do projecto.

Com capacidade para 250 alunos num futuro próximo, a Escola de Santa Elena tem como objectivo brindar uma educação moderna aliada ao conhecimento tradicional, estabelecendo este edificio como um próspero chamariz para toda a comunidade.

Desde o acesso norte visualiza-se a entrada no extremo sul, e vice-versa, o eixo do corredor atravesssa ovolume permitindo apreciar a extensão longitudinal da construcção numa alternância de luzes e mudanças de aura dos diferetnes espaços, gerando um percurso visual de múltiplos contrastes e texturas.

O uso de materiais simples e locais num desenho novo e contemporâneo cria um sentimento de orgulho e desenvolvimento numa comunidade usualmente esquecida. Um edificio compacto e responsável acentua

fotografias © Marta Maccaglia

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1. programa

1 2. volumetria 2

3. adaptação à topografia

3 ESTRADA

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4. adaptação a condicionantes

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ACESSO

PATIO EXTERIOR

ACESSO

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VISTAS

esquema de implantação ENCLOSURE/PROTECTION VIEW

RESISTENT

1. cobertura de fibrocimeno 2. vigas de madeira 3. parede de tijolos artesanais com aparelhamento palomero 4. parede de tijolos artesanais 5. estructura de betão armado 6. brise-soleil de madeira

RESISTENT

planta 1. sala de aula 2. sala de informática 3. laboratório 4. biblioteca 5. sala de professores 6. sala de espera 7. administração 8. wc professores 9. arrecadação 10. enfermaria 11. hall de entrada 12. pátio coberto 13. campo de jogos 14. área de reflorestação

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Escolas em Moçambique – a evolução com o Clima e com o Homem O programa de Fernando Mesquita (1955-1975)1 Zara Ferreira

Todos os dias, nos meus primeiros meses de escola, saía da palhota do meu pai com o meu irmão, descia a ladeira com os músculos das pernas retesados para não cair. Foi assim apenas por alguns dias porque, com a prática, passámos a descer a correr, sem nos importarmos com a cacimba que nos molhava. Passávamos ao longo do arenoso caminho dos bois, atravessávamos, em seguida, o pântano onde o nevoeiro era mais denso. Tínhamos de tirar as sapatilhas para não as molharmos nos charcos que as chuvas deixavam, e não as sujarmos com o matope que ficava no carreiro que tínhamos de seguir dentre os mavungu e o caniço do pântano, tínhamos de saltar de um mcoma, raíz de mavungu, para outro quando isto nos podia salvar de mergulhar numa poça mais profunda de água ou de lama preta. Nos dias mais frios, os dentes batiam com vibração e cadência rápidas dos maxilares. Era normal. Não ligávamos a mínima importância. Não sabíamos que não estávamos agasalhados o suficiente. Nunca o tínhamos estado. O que sabíamos é que fazia frio e muita cacimba, caminhávamos, depois, pela estrada principal, alteada de saibro no meio da planície ligando o ‘Ntavene’ à cidade baixa. A maior parte das vezes, quando não passava o comboio, preferíamos andar ao longo da linha férrea. Estaríamos mais protegidos do perigo de sermos atropelados pelos carros ou de sermos molhados com água vermelha de saibro, caso um carro, em velocidade, entrasse num charco e a espalhasse pelos lados. Quando chegávamos à escola, ou um pouco antes, encontrávamos já lá os nossos colegas brancos que não tiritavam de frio porque levavam camisolas bem quentes que até lhes cobriam os pescoços. Nós também, nessa altura, não sentíamos tanto frio. Tínhamos andado tanto que o esforço de marchar e de correr nos aquecia.2 Este artigo resulta da minha dissertação de mestrado O MODERNO E O CLIMA NA ÁFRICA LUSÓFONA. Arquitectura escolar em Moçambique: o programa de Fernando Mesquita (1955-1975), orientada pela Prof. Ana Tostões (IST-UTL) e pela Prof. Maria Manuel Oliveira (EA-UM), no Instituto Superior Técnico, realizada no âmbito do Projecto financiado pela FCT EWV_Visões cruzadas dos mundos: arquitectura moderna na África Lusófona (1943-1974) vista através da experiência Brasileira iniciada a partir dos anos 30 (PTDC/AUR-AQI/103229/2008). 2 Joaquim Chissano - Vidas, Lugares e Tempos. Lisboa: Texto Editores, 2011, p. 81-82. Joaquim Chissano foi o sucessor de Samora Machel na presidência da República de Moçambique e o primeiro aluno negro a matricular-se no Liceu Salazar, em 1951. 1

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programa de Fernando Mesquita (1916, Vila Real-1990s, Maputo) surge, nos anos 50, da necessidade de construção de edifícios escolares, em larga escala e num curto período de tempo, por todo o território moçambicano, para diversos tipos de ensino. A execução rápida e o mínimo custo por unidade escolar eram exigências básicas. Por outro lado, o ensino em Moçambique estava simultânea e continuamente a ser definido. Face à incerteza do programa funcional e da dimensão da população escolar, um dos interesses primários a ter em conta na concepção arquitectónica dos edifícios escolares terá sido a capacidade de adaptação a futuras utilizações, considerando principalmente a ampliação. Paralelamente a estas exigências, será na resposta às condições climáticas que residirá a chave do desenvolvimento conceptual deste programa arquitectónico. 1. Contexto histórico “Constitui o principal atributo da nação portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar os domínios ultramarinos e civilizar as populações indígenas que neles habitam, bem como exercer a influência moral que lhes é atribuída pelo Padroado do Oriente.” 3 A história da arquitectura do Movimento Moderno em Moçambique é também a de Portugal; é a história de uma arquitectura que viveu um regime ditatorial. À semelhança do que se passou noutros países, o fascismo europeu encontrou repercussões em Portugal: em 1926 um grupo de generais portugueses encabeçou o golpe de estado que viria a derrubar o governo republicano para dar lugar ao Estado Novo que, após a aprovação da nova Constituição em 1933, vigorou em Portugal durante 41 anos consecutivos.4 Com o “Acto Colonial”, a “Lei da Reforma Administrativa Ultramarina” e as “Cartas Orgânicas”, este ano marca decisivamente o desejo da “missão civilizadora em África” do regime: os territórios ultramarinos são transformados numa “entidade legal única com a própria metrópole, parte do Estado Português.”5 Dessa “missão civilizadora” fará naturalmente parte integrante a importância atribuída à educação. Ao longo de todo o regime, foram introduzidas reformas significativas no sistema educativo português6 que promoveram o aumento Decreto nº 18:570 de 8 de Julho de 1930. Diário do Governo, nº 156, Série I. Fernando Rosas; J.M. Brandão de Brito (dir.) – Dicionário de História do Estado Novo. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. Malyn Newitt (trad. Lucília Rodrigues e Maria Georgina Segurado) – História de Moçambique. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1997, p. 393. 6 Alexandra Alegre – Arquitectura Escolar. O Edifício Liceu em Portugal (1882-1978). Dissertação para obtenção do Grau de Doutor em Arquitectura. Lisboa: IST-UTL, 2009. 3

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gradual da população escolar e da construção escolar. Apesar de as sucessivas reformas do Ensino terem sido semelhantes na metrópole e em Moçambique, os edifícios escolares construídos nos dois lugares não partilharam, na maioria dos casos, dos mesmos profissionais. Todavia, em ambos, o conteúdo do discurso arquitectónico foi, num primeiro momento, semelhante. Estávamos nos anos 30 e em regime ditatorial: foi com base na patente criação de mitos com recurso à História para conferir legitimidade ao regime7 que a arquitectura do Movimento Moderno conheceu Portugal. Com base numa política que privilegiava as obras públicas8 “enquanto expressão simbólica de um Estado que (…) precisava de se afirmar”9, a arquitectura estava subordinada ao poder, na demanda da representação do novo regime. Com uma aproximação ao moderno meramente formal, começou por assumir um protagonismo simbólico representado numa linguagem nacionalista e monumental. 1.1. De Lisboa para Lourenço Marques – o Liceu Nacional Salazar “[...] mármores nacionais expressamente vindos da Mãe-Pátria para enriquecer o mais belo, maior e melhor estabelecimento de ensino secundário do Império Português”.10 O Liceu Nacional Salazar (actual Escola Secundária Josina Machel) foi o primeiro grande liceu erguido em Lourenço Marques (actual Maputo), capital de Moçambique. Construído entre 1945 e 1952, o projecto foi desenvolvido em 1939, em Lisboa, Portugal, pelo arquitecto José Costa e Silva (1911-), funcionário da Junta das Construções para o Ensino Técnico e Secundário (JCETS). A expressão de monumentalidade é evidente na escala e no rigor de simetria compositiva do edifício, tendo sido considerado, nos anos 50, “a mais vasta e imponente construção para o ensino liceal, não só das Províncias Ultramarinas portuguesas, como de todo o território nacional. E [era] de crer que [fosse] das maiores do Mundo”11. Para se compreender o poder evocativo do regime representado neste Liceu, especialmente proclamado no patrono que lhe deu o nome – António de Oliveira Salazar12 – e a sua capacidade de representação da almejada ideia de progresso, leia-se a descrição entusiasmada de um periódico datado do seu momento inaugural: Cf. Malyn Newitt – op cit, p. 390. Ana Tostões – “Ministério das Obras Públicas” in Fernando Rosas; J.M. Brandão de Brito – op cit, vol. II, p. 585-598. Ana Tostões – “Monumentalidade, Obras Públicas e Afirmação da Arquitectura do Movimento Moderno: o Protagonismo da DGEMN na Construção dos Grandes Equipamentos Nacionais”. Caminhos do Património. 1999, p. 133. 10 Liceu Salazar de Lourenço Marques. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1954, p. 8. 11 Boletim Geral do Ultramar, nº 345, vol. XXIX, 1954, p. 16. 12 Presidente do Conselho de Ministros entre 1932 e 1968, figura central do Estado Novo. 7 8 9

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Quando há oito anos vimos lançar os fundamentos do edifício que hoje se ergue majestoso quase sobre a baía, pensámos que alguma coisa de grande havia de surgir, digna de uma cidade que a merece. Ampla entrada, amplo pátio, no meio do qual a estátua do patrono do Liceu Salazar, solene no seu trajo de catedrático, dá ao ambiente uma majestade igual à que envolve toda a sua figura de homem da Nação. Em toda a volta pátios de recreio com campos de jogos feitos e apetrechados a preceito. Escadarias de mármore, corredores, campaínhas, telefones, relógios. Um dédalo que se há-de tornar familiar a professores e alunos. Respira-se um ar de limpeza; entra a luz a jorros; parece que estamos na rua. E as salas sucedem-se claras, arejadas […]. Extensa área coberta, vastos corpos do edifício, salões de festas, salões de jogos, ginásios, salões de estar, biblioteca, piscina com dimensões olímpicas, balneários ricos de mármores, aparelhagem de ar condicionado, de filtragem de água, de projecção de filmes, cenários para teatro, camarins, maquinaria própria para trabalhos manuais, tudo quanto de moderno se pode encontrar – garantia segura de que o Estado pensa na educação da sua juventude, no futuro dos filhos dos seus cidadãos.13 A monumentalidade como instrumento de propaganda do Estado Novo pode ser lida ao longo dos seus 9.201 m2 de área coberta distribuídos pelos seus 29.000 m2 de recinto, organizados com base numa rigorosa simetria axial, ainda ligada ao sistema das Beaux-Arts. Porém, esta obra marca um momento de viragem que não pode ser ignorado na história da construção escolar nas colónias africanas. A comparação com o projecto que o mesmo autor elabora três anos antes (1936) para o Liceu Nacional de Luanda (ou Liceu Nacional Salvador Correia, actualmente Escola Mutu Ya Kevela) torna óbvia a distinção. No projecto de Luanda, o arquitecto argumenta que a procura de uma arquitectura que respondesse simultaneamente à evocação dos valores nacionais e às exigências de adaptação ao clima de Luanda foi resolvida com base em soluções dentro dos moldes oferecidos pela arquitectura alentejana e inspiradas nas edificações conventuais, permitindo enquadrar esta construção na atitude preconizada na metrópole durante os “duros anos 40”, em que o “acento […] monumentalista se aproximava de um vocabulário historicista e pitoresco, de uma narrativa classicizante […] defendida como nacional”14. O autor afirma que “a conveniência de dar à construção um carácter que evocasse a Mãe-Pátria levou a que se tenha posto deliberadamente de parte as normas arquitecturais modernas.”15 No Liceu Nacional Salazar, esse discurso conservador é substituído para dar lugar “à técnica da construção da época em toda a sua exuberância”.16 O betão armado assumiu o seu potencial ténico e estético, contribuindo para “Inauguração do Liceu Salazar”, Boletim Geral do Ultramar, nº 329, vol. XXVIII, 1952, p. 148-150. Ana Tostões - “Arquitectura Moderna Portuguesa: os Três Modos” in Ana Tostões (coord.) – Arquitectura Moderna Portuguesa 19201970. Lisboa: IPPAR, 2004, p. 118. 15 José Costa e Silva – Projecto do Liceu Nacional Salvador Correia: Memória Descritiva e Justificativa, p. 2. 16 Idem, p. 20. 13 14

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um resultado totalmente inovador, nas construções escolares da colónia, pela escala e pela racionalidade construtiva, reduzida quase exclusivamente à essencialidade dos seus elementos estruturais. A utilização dos novos materiais de construção aliada à cumplicidade do discurso vai tornar óbvia a identificação deste tipo de construção com a modernidade crescente. Mais do que isso, marca finalmente o início de um discurso que articula directamente a concepção arquitectónica com as condicionantes locais impostas pelo clima: a arquitectura escolar moderna em Moçambique, voltando-se para o exterior, vai, a partir deste momento, conceber os espaços, e em particular as salas de aula, em compartimentos únicos entre fachadas opostas em contacto directo com o exterior. Nelas vão-se abrir grandes vãos, permitindo a ventilação natural permanente e a entrada de uma iluminação bilateral. Estes vão estar permanentemente protegidos pelas enormes galerias de circulação exteriores cobertas que asseguram o acesso, o sombreamento constante e a defesa das chuvas. A construção elevada a 1m do solo para combater a humidade por ele transmitida e a concepção da cobertura, agora plana, conjugada com o declive necessário ao escoamento das águas, em betão armado e com uma caixa-de-ar intermédia totalmente ventilada, são também particularidades que exemplificam a adaptação da construção ao clima tropical patente nesta escola. O compromisso entre uma monumentalidade estimada pelo regime e a inovação de uma linguagem arquitectónica baseada nos princípios do Movimento Moderno é patente na contradição dos sentimentos que se nutrem na época por aquela “imponente massa de cimento e ferro”17: Ao ver estes centos de crianças, eu evoco uma tarde de há treze anos, quando da visita do saudoso Presidente da República, o Marechal Óscar de Fragoso Carmona. Numa parada de ginástica que então se realizou, S. Ex.ª, apontando para as crianças que nela tomavam parte – metade, talvez, em número, das que estão dentro desta sala – dizia ao Excelentíssimo ministro das Colónias de então: «A nossa maior responsabilidade e a nossa segura garantia!». Hoje, dentro do cumprimento das imposições dessa responsa¬bilidade, inaugura-se esta casa que, como disse V. Ex.ª – continuou o Sr. governador-geral, dirigindo-se ao Sr. Dr. Luís Moreira de Almeida – , será discutível sob vários aspectos, a começar pelo arquitectónico, mas é inegável ser uma instalação grandiosa para o Liceu de Salazar.18

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Liceu Salazar de Lourenço Marques. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1954, p. 7. “Ainda a Inauguração do Liceu Salazar”. Boletim Geral do Ultramar, nº 329, vol. XXVIII, 1952, p. 108-109.

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01. José Costa e Silva, Liceu Nacional Salvador Correia, Luanda, Angola, 1936. © http://www.sanzalangola.com/galeria/album24/1_Liceu_Nacional_Salvador_Correia_anos_50 | 02. José Costa e Silva, Liceu Nacional Salazar, Maputo, Moçambique, 1939. © http://delagoabayworld.wordpress.com/category/historia/josina-machelhistoria/

03. José Costa e Silva, Liceu Nacional Salazar, Maputo, Moçambique, 1939. Fotografia de 1960. © Orlando Branquinho, http:// delagoabayworld.wordpress.com/2012/04/21/estudantes-no-liceu-salazaranos-1960 | 04. José Costa e Silva, Liceu Nacional Salazar, Maputo, Moçambique, 1939 © Arquivo EWV, Ana Tostões, 2010

1.2. De Lourenço Marques para Moçambique – as escolas primárias “A escola deve ser um complemento da habitação. Sem criar descontinuidade no quadro habitual da criança, deve prepará-la para um mundo novo e, às vezes, em plena evolução. Por tal motivo deve proporcionar-lhe um conforto e espaços em correlação com a forma da habitação e do seu grau de evolução”.19 Enquanto, durante os anos 50, os edifícios escolares destinados ao ensino liceal e profissional em Moçambique, continuavam a chegar da metrópole por

Artur Gonçalves (trad.) – “Carta das Construções Escolares”. Binário: Arquitectura, Construção e Equipamento, nº 77, 1965, p. 506. 19

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via do Gabinete de Urbanização do Ultramar20, os projectos destinados ao ensino primário começaram a ser pensados, directamente em território Moçambicano, no contexto dos Serviços Técnicos de Obras Públicas de Moçambique, sediados em Lourenço Marques. Distantes da influência directa do poder central, os resultados não poderiam ser mais distintos, e disso é exemplo o projecto de João Aires para a Escola Primária Completa da Manga (1952), em que a monumentalidade e a reprodução de tradicionalismos metropolitanos foram substituídas pela expressão da arquitectura moderna, significativa da época, do lugar e do programa específico que lhe dá origem. Da época no uso dos materiais e métodos de construção modernos expressos numa linguagem e espacialidade que lhe são directamente cúmplices; do lugar na resposta directa aos condicionalismos climáticos; do programa na construção de uma escala directamente proporcional aos seus utilizadores que anula por completo a monumentalidade. Inserida num quarteirão de forma quadrangular e de topografia plana, a Escola Primária Completa da Manga é formada por dois volumes paralelos de larguras semelhantes e comprimentos distintos, unidos por uma galeria de circulação coberta assente sobre pilotis, que os articula perpendicularmente. O volume mais longo, com dois pisos, alberga no piso superior quatro salas de aula e no piso inferior os serviços administrativos e um refeitório. As funções existentes entre a entrada da escola e a galeria de circulação coberta que une os dois volumes é, no piso térreo, acompanhada por um espaço exterior coberto, que funciona como átrio de recepção e de recreio. O volume menor, de apenas um piso, é constituído por duas salas de aula, com a possibilidade de ser ampliado com mais duas salas de aula. Sob uma métrica de 3m que modela o espaço, em planta e em corte, o ritmo constante dos elementos estruturais, visivelmente assumidos, inclinados relativamente ao plano vertical das fachadas norte, contribuem para a protecção solar eficiente, através de uma expressão plástica em equilíbrio com as coberturas assimetricamente inclinadas. O acesso vertical entre os dois pisos é assumido volumetrica e plasticamente, diferenciando-se pela cobertura plana e pelos revestimento de pedra, articulado com paineis cerâmicos perfurados. Estrutura, arquitectura e resposta ao clima funcionam como um todo integrado, contribuindo para a equilíbrio do espaço: os pilares salientes formam brise-soleil nas fachadas a sul; a galeria de circulação coberta assente sobre pilotis é não apenas um percurso sombreado, mas também um recreio e um ginásio ao ar GUC (1944-1951); GUU (1951-1957). Organismo oficial, sediado em Lisboa, que reunia em si a responsabilidade da prática projectual de arquitectura e urbanismo promovida pelo Estado para o território colonial. Maior protagonista na construção de edifícios destinados ao ensino liceal e profissional em Moçambique, durante este período. Ver Ana Vaz Milheiro – “Edifícios Educacionais nos Trópicos: o Trabalho do Gabinete de Urbanização Colonial na Antiga África Portuguesa”. 11th International Docomomo Conference Living in the Urban Modernity, 2010. 20

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livre; os painéis perfurados animam as fachadas, privilegiando a presença da luz ao mesmo tempo que protegem da radiação solar o percurso interior das crianças nos espaços: começam-se a sentir os primeiros passos na plena exploração do ideário moderno nas construções escolares moçambicanas.

05-06. João Aires, Escola Primária da Manga, Beira, Moçambique. © Arquivo EWV, Maria Manuel Oliveira, 2012

2. O programa de Fernando Mesquita (1955-1975) “Procurou-se honestamente, sem sofismas nem artifícios – fáceis ou não – modelar em espaço, construção, vegetação e luz, as soluções funcionais para problemas humanos do indivíduo e do grupo ao nível do espírito e da fisiologia. Pensando na criança, no adolescente e no adulto, procurou-se criar um ambiente estimulante para uma actividade que não pode resultar a não ser em atitude descontraída de corpo e espírito, tanto por parte do aluno como do professor. Tentouse – mais ambiciosamente ainda – evitar o êxito seguro através do maneirismo, e recurso à moda, mesmo passageira, que é sem dúvida a arma mas fácil do Arquitecto”.21 2.1. Da escola primária à escola técnica “O projecto teve o interesse primário de assegurar à escola a maior maleabilidade na futura utilização, alteração, ampliação ou adaptação de modo a reduzir os riscos de desactualização e permitir fazer face à rapidez com que evolui este tipo de ensino, a população escolar e até a frequência.” 22 Fernando Mesquit – Escola Técnica Elementar de Lourenço Marques. Projecto – Memória Descritiva. Lourenço Marques: DSOPT, 1961, p. 39. 22 Fernando Mesquita – op cit, p. 2. 21

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De um modo geral e a nível internacional, as investigações relativas à concepção dos edifícios de ensino, nos anos 50, começaram a ser predominantemente da responsabilidade da Comissão de Construções Escolares, criada em 1951. Numa altura em que as equipas responsáveis pelo desenvolvimento dos edifícios escolares começaram a complexificar-se e a integrar também técnicos da área da educação, esta associação foi o resultado do trabalho conjunto da União Internacional dos Arquitectos e da UNESCO. Desta comissão, presidida por Alfred Roth, resultou um primeiro relatório em 1954. Salientando a urgência do incremento de edifícios escolares face a um aumento previsto da população escolar, defendia que este deveria ter por base princípios racionalistas de concepção e construção. De um congresso da União Internacional dos Arquitectos, decorrido em 1959, em Rabat, resultou a Carta das Construções Escolares (CCE), elaborada pela mesma comissão. Documento de foro internacional, estabelecia os princípiosbase a que os edifícios de ensino deveriam obedecer, ainda que adaptáveis às condicionantes específicas de cada país. Considerados como válidos para a situação moçambicana, justificaram de imediato a revisão de toda a problemática escolar em território Moçambicano e serviram de base à elaboração de novos programas e normas neles inspirados. Assim, de acordo com a política escolar definida e uma planificação prévia de cobertura escolar, foi no seio da Secção de Estudos e Projectos dos Serviços de Obras Públicas de Lourenço Marques que, a meio dos anos 50, Fernando Mesquita (1916, Vila Real-1990s, Maputo) começou a desenvolver, com Rute Bota (1932, Loulé) e Cardoso Alves (?), os primeiros projectos de escolas que rapidamente assumiriam proporções desmedidas, quer em termos de aplicação territorial, quer na evolução conceptual, programática e arquitectónica de um programa escolar que não parou de se desenvolver até aos anos 70. O resultado desta produção traduz-se num extenso e variado conjunto de projectos-tipo escolares, adaptáveis a diferentes exigências que variam consoante o nível etário e o tipo de ensino a que se destinam, de acordo com uma clara evolução tipológica que elege a sala de aula como a unidade básica da sua organização espacial: The most concentrated and sustained work of a school takes place in classrooms and the architect’s job is to take such work not only possible, but enjoyable, since there is little education without pleasure23. Executados por todo o território, tanto urbano como rural, e inquestionavelmente caracterizados por uma exacerbada racionalidade, economia e eficácia funcional, a sua implementação em larga escala assume um protagonismo muito acentuado em todo o território Moçambicano. 23

Maxwell Fry; Jane Drew – Tropical Architecture in the Dry and Humid Zones. London: BT Batsford, 1964, p. 161.

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O projecto-base deste programa é a “Escola com Uma Sala de Aula”, com origem em 1955. Esta, de planta sensivelmente quadrada – forma que julgavam sobrevalorizar as relações entre a classe – tem uma área aproximada de 50m2, organizados para uma classe de 36 alunos, destinada ao ensino em classe. Esta escola apresenta o primeiro indício da configuração espacial que será comum a todas as escolas de Mesquita: a organização dos diferentes núcleos funcionais em pavilhões autónomos, articulados por uma galeria coberta de circulação principal que lhes será sempre transversal. Embora com o evoluir das funções programáticas dos programas escolares esta venha a assumir-se, nas escolas de ensino secundário, como apenas de circulação e distribuição, nas escolas primárias ela constitui também uma charneira comum que abriga as funções não pedagógicas: os serviços comuns e administrativos. Esta ideia é imediatamente verificável na “Escola com Quatro Salas de Aula”, que apenas com o acrescento de três salas lado a lado face à “Escola com Uma Sala de Aula”, torna explícita a organização pavilhonar que está na génese de todos os projectos. É um conceito simples: uma implantação em L, dividida em dois pavilhões que abrigam funções distintas – um destinado à unidade pedagógica e outro aos serviços administrativos – ligados por uma galeria coberta de circulação. A unidade pedagógica é constituída pelas salas de aula e respectivas instalações sanitárias, fisicamente distanciadas, e os serviços administrativos por um gabinete comum aos professores e ao director. Os espaços comuns são formados pelo refeitório e pelo sistema de circulação coberto que serve simultaneamente de recreio, cumprindo-se o princípio de que os espaços comuns deveriam ser o centro vivo da escola: as classes e os seus anexos deveriam ser agrupados em torno daquele centro, constituindo unidades secundárias diferenciadas. Destinada a agregados populacionais já com algum grau de desenvolvimento (vila ou cidade), este tipo de construção escolar, ainda que necessariamente do tipo económico, incluía o abastecimento de água e de energia eléctrica e apresentava já algumas melhorias a nível construtivo, relativamente às escolas construídas em meio rural, nomeadamente no uso de betão simples na execução das fundações e dos pavimentos. Não excedendo as quatro salas de aula, a capacidade destas escolas respeitava os princípios da CCE que defendia que “até aproximadamente aos oito anos, a escola deve[ria] ser uma verdadeira extensão do ambiente familiar e o primeiro contacto com uma comunidade progressivamente mais extensa”. Por outro lado, a evolução entre a “Escola com Uma Sala de Aula” e a “Escola com Quatro Salas de Aula” revela já a capacidade que programa tinha para ir agregando ampliações, com base no incremento de salas de aula, em função das necessidades ou dos recursos existentes.

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07. Escola com 4 Salas de Aula (projecto-tipo: vila ou cidade, 1954-1964). © Rute Bota – Relatório: Situação das Escolas Primárias em Moçambique no Último Decénio. Direcção Geral de Obras Públicas e Comunicação do Ministério do Ultramar, 1971

A “Escola com Quatro Salas de Aula” localizada em Pemba, hoje “Escola Secundária 16 de Junho” - constitui um conjunto de duas destas escolas, provavelmente cada uma delas destinada, na sua origem, a alunos de sexos distintos. Apesar da educação mista ser admitida em Moçambique, a maior parte das escolas administrava o ensino separado por sexos.

08. Escola com 4 Salas de Aula, Pemba. © MOPH, processo nº 2571. Fotografia: Arquivo EWV, Maria Manuel Oliveira, 2012.

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09. Escola com 4 Salas de Aula, Pemba. © Arquivo EWV, Maria Manuel Oliveira, 2012

À semelhança deste caso, a conjugação duplicada deste tipo escolar num único edifício viria a dar origem à “Escola com Oito Salas de Aula”, a melhor preparada para o ensino misto. A separação dos sexos conduz a uma tipologia constituída por dois pavilhões independentes, de quatro salas de aula, simétricos em relação à galeria coberta de circulação principal, à qual estão conectados perpendicularmente por galerias de acesso às salas que diminuem de perfil à medida que se afastam daquele eixo. Este pormenor que pode confundir-se com um capricho formal justifica-se pelo facto de no espaço enquadrado pelo encontro das três galerias se situar o recreio coberto, destinado às funções de convívio e da prática da educação física. Com uma complexidade programática superior à dos modelos mesquitanos com menos salas de aula, continua a ser ao longo da galeria de circulação principal que se localizam as funções complementares à educativa.

10. Escola Primária Completa de Macatuane, Beira. © Arquivo EWV, Maria Manuel Oliveira, 2012. | 11. Escola Primária de Nampula. © Arquivo EWV, Maria Manuel Oliveira, 2012.

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12. Fernando Mesquita, Escola com 4 Salas de Aula (projecto-tipo: vila ou cidade, 1954-1964).© Rute Bota – Relatório: Situação das Escolas Primárias em Moçambique no Último Decénio. Direcção Geral de Obras Públicas e Comunicação do Ministério do Ultramar, 1971.

Em nenhum outro projecto o recreio se lê tanto como o centro vivo da escola. A partir dele se distribui a unidade educativa repartida em dois corpos de quatro salas de aula, junto a ele se encontram as instalações sanitárias, o gabinete médico que remata o conjunto formado pelos serviços administrativos e o refeitório, que apresentando também a função de sala de reuniões festivas assume em pleno a função de espaço comum em complementaridade com o recreio. Também a nível construtivo esta escola se distingue das outras, através da exploração das potencialidades plásticas do betão armado, expressas nas clareza das ossaturas que definem o conjunto das coberturas e paredes inclinadas e sistema de coberturas planas assentes sobre pilotis. Os brise-soleil são coincidentes com os próprios pilares da estrutura, que através de um ressalto da fachada, são manipulados de maneira a que os grandes envidraçados estejam devidamente

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protegidos, quando virados a sul. Como contrafortes, a sua largura aumenta à medida que se aproximam da base, variando entre os 80 e os 100 cm. A solução de uma só água nestas escolas permite concentrar o escoamento das águas para o lado oposto ao da circulação dos utilizadores. A ampla caixa-de-ar permite um eficiente isolamento sonoro nas salas de aula em períodos de chuva. Ao contrário dos restantes projectos-tipo, projectados com vista à possível ampliação, a “Escola com Oito Salas de Aula” foi concebida enquanto obra encerrada: estruturada também de acordo com o módulo dimensional sala de aula, tanto o sistema estrutural da cobertura inclinada como a organização em planta – com destaque para a concepção da galeria afunilada – não permite futuras ampliações. Seguia-se o princípio da Carta das Construções Escolares (1959) de que as escolas deveriam reflectir a escala dos seus utilizadores, pelo que no caso das primárias não deveriam possuir mais do que um piso e 8 salas era a medida considerada máxima. Quer visitando o território e os arquivos históricos, quer recorrendo ao auxílio do Google Earth, facilmente se constatará que foi este um dos projectos que mais repercussões teve na infra-estruturação escolar do território urbano de Moçambique: das localidades mais reduzidas como Chimoio à grande capital Maputo, podemos constatar a existência deste modelo. Para além de a “Escola Primária de Nampula” (1960), a “Escola Primária de Vila Pery” (1960), a “Escola Primária Completa de Macatuane”, na Beira e a “Escola Primária de Quelimane” são alguns exemplos dessa concretização.

13. Implantações várias da Escola com 8 Salas de Aula. © Google Earth.

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No início dos anos 50, com a reforma do ensino técnico-profissional, em 1947, são então criadas a “Escola Industrial e Comercial da Beira” (1956) – projecto do Gabinete de Urbanização do Ultramar – e as “Escolas Técnicas” de Nampula (1959), Quelimane (1960), Inhambane (1960), e Lourenço Marques (1961), projectadas no quadro do programa de Fernando Mesquita. Se nas escolas primárias do programa mesquitano, a sala de aula era considerada o elemento base da evolução tipológica, as escolas técnicas desenvolveram-se a partir do conjunto de salas de aula a que chamamos pavilhão. Estes, integrando as diferentes necessidades programáticas, distribuem-se como núcleos funcionais autónomos, ao longo da galeria de circulação principal que os articula perpendicularmente. As três escolas técnicas construídas apresentam a mais clara organização do programa escolar de Fernando Mesquita. Todas elas, atravessando praticamente a totalidade do lote onde se inserem e com o rigor da orientação norte-sul, afluem com a sua galeria coberta até à via pública. Ao contrário das escolas primárias, a galeria principal apresenta-se totalmente livre de obstáculos, assumindo na sua plenitude a sua função distribuidora e uma continuidade visual absoluta. Ao longo dela distribui-se criteriosamente o programa, em pavilhões perpendicularmente autónomos, continuadamente ligados a ela por galerias cobertas de circulação. Este sistema é resultado de duas questões de importância primordial. Por um lado, constituindo um meio de protecção seguro contra os efeitos da radiação solar, dos ventos e da chuva, é o resultado directo de uma concepção arquitectónica que tem como principal princípio responder de modo eficiente aos desafios colocados a nível do desempenho climático. Por outro lado, permite simultaneamente, com uma racionalidade e funcionalidade rigorosas, a economia dos percursos.

14. Escola Técnica de Quelimane. © MOPH, processo nº 2619. Arquivo EWV, Maria Manuel Oliveira, 2012. | 15. Liceu Gago Coutinho, Nampula. © Arquivo EWV, Ana Tostões, 2010. | 16. Escola Técnica de Quelimane. © Arquivo EWV, Ana Tostões.

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Escolas em Moçambique • ZARA FERREIRA

14. Escola Técnica de Quelimane. © MOPH, processo nº 2619. Arquivo EWV, Maria Manuel Oliveira, 2012.

À galeria de circulação principal conectam-se perpendicularmente três pavilhões de cada lado: de um lado, dois pavilhões de ensino em classe e um pavilhão que integra a Mocidade Portuguesa e o ginásio; do outro lado, dois pavilhões destinados ao ensino experiment e um pavilhão que inclui todo o sector administrativo. A encabeçar a galeria, no topo norte, estão o canto coral e a cantina da escola. A construção em piso único é mantida em todo o programa à excepção dos pavilhões destinados às salas de aula de ensino em classe que, por necessidades de dimensionamento, atingem os dois ou três pisos. Estes corpos são constituídos por seis salas de aula e instalações sanitárias para ambos os sexos junto aos núcleos de acesso vertical que se encontram sempre na extremidade dos pavilhões. De um só piso e de dimensões mais generosas, os pavilhões de ensino experimental, por vezes intitulados de laboratórios ou oficinas, estavam destinados aos trabalhos manuais, ao desenho, lavores ou outras actividades. Com a volatilidade que marcava o ensino e o programa a que cada escola se destinava, estes pavilhões foram expressamente projectados com vista a satisfazerem toda a possível variedade de utilizações e frequências que o futuro delas pudesse exigir, tendo sido dimensionadas para o tipo de apetrechamento que exigisse mais espaço. Variando entre as três e as quatro salas por pavilhão, as escolas analisadas possuem entre um a três blocos destinados a esta função, sendo o conjunto formado por duas unidades de três salas, a situação mais comum, como é o caso da Escola Técnica de Quelimane.

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17. Escola Técnica de Nampula. Corte de um pavilhão de ensino em classe. © MOPH, processo nº 2615. Arquivo EWV, Maria Manuel Oliveira, 2012 | 19. Escola Técnica Elementar de Lourenço Marques. Corte de uma sala de aula de ensino experimental. © MOPH, processo nº 2667. Arquivo EWV, Maria Manuel Oliveira, 2012.

17. Escola Técnica de Nampula. Corte de um pavilhão de ensino em classe. © MOPH, processo nº 2615. Arquivo EWV, Maria Manuel Oliveira, 2012 | 19. Escola Técnica Elementar de Lourenço Marques. Corte de uma sala de aula de ensino experimental. © MOPH, processo nº 2667. Arquivo EWV, Maria Manuel Oliveira, 2012.

O programa continua a desenvolver-se: a Escola Técnica Elementar de Lourenço Marques (1961) – também conhecida por Escola Técnica Elementar Governador Joaquim Araújo, e actualmente designada Escola Secundária Estrela Vermelha – é o projecto de maior dimensão e complexidade programática da produção mesquitana. Contrariamente à linearidade e à horizontalidade que as restantes escolas apresentam, a Escola Técnica Elementar de Lourenço Marques estrutura-se sobre uma grelha ortogonal de circulação que, assente num terreno com declive acentuado, assume uma organização em vários níveis. Esta diferença na implantação permitiu a criação de uma maior variedade de espaços exteriores, adquirindo uma diversidade não atingida em nenhuma outra escola, na sua maioria construídas em superfícies planas. Exuberantemente envolvida de variadíssimas espécies vegetais, é exemplar no contributo da vegetação na retenção da poluição, da poeira, do ruído e da visibilidade para o exterior. Nesta escola o pavilhão destinado à função administrativa complexificase, ao ser inserida num pavilhão que adquire as mesmas características de 98


Escolas em Moçambique • ZARA FERREIRA

dimensionamento e distribuição dos pavilhões destinados à função educativa, e numa posição previlegiada que encabeça as duas galerias de circulação, ao invés do pavilhão de dimensões reduzidas, commumente projectado numa posição periférica. Para além das funções administrativas, este núcleo apresenta nesta escola também a existência de uma biblioteca e de um museu, de necessária integração directa com a comunidade estudantil, e por isso numa posição de charneira entre interior e exterior da escola e marcando a sua entrada. O sector desportivo é constituído pelo ginásio que, mais uma vez, se distingue nesta escola pela galeria de acesso que adquire a função de varanda para o público assistir aos espectáculos de ginástica ao ar livre, que em continuidade com as salas de ginástica, possam decorrer sobre o relvado. De resto, a educação física assume um papel muito significativo, visível na percentagem de espaços exteriores destinados à sua prática que, de um modo autónomo dos restantes espaços lectivos, se distribuem pelo espaço disponível.

21. Escola Técnica Elementar de Lourenço Marques. © MOPH, processo nº 2667. Arquivo EWV, Maria Manuel Oliveira, 2012. | 22. Escola Técnica Elementar de Lourenço Marques. © Arquivo EWV, Maria Manuel Oliveira, 2012. 1

2

3

4

1. Escola Primária com 1 Sala de Aula 2. Escola Primária com 4 Salas de Aula 3. Escola Primária com 8 Salas de Aula 4. Escola Técnica de Nampula 5. Escola Técnica Elementar de Lourenço Marques

5

Salas de ensino em classe Salas de ensino experimental Outras actividades (mocidade, cantina, canto coral) Sector administrativo Sector desportivo

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2.3. O clima em Moçambique ou o zinco tap-tap de cacimba no chão24 “Em sentido figurativo poderia apresentar-se como arquétipo de habitação dos climas quentes e húmidos a árvore de copa frondosa: dá sombra, permite a ampla ventilação; absorve, mas elimina, a radiação solar” 25. Maxwell Fry (1899-1987) e Jane Drew (1911-1996) caracterizarem o clima de praticamente todo o território Moçambicano como “clima de monção: Inverno quente e seco e Verão quente e húmido.”26 Sendo a estação quente e húmida a que importa conhecer para compreender a concepção do edifício escolar uma vez que coincide com o período lectivo, este clima pode ser resumidamente caracterizado por “um sol ardente que alterna com chuvas torrenciais, trazendo para a vida um ciclo interminável de vegetação maciça, superando o homem com o vigor do seu crescimento, acompanhada por uma vida de insectos e parasitas mais mortal que os enormes animais da tão conhecida selva.”27 Os principais desafios que são colocados à criação arquitectónica, nessas condições, são a promoção da protecção da radiação solar e da chuva e a potencialização ao máximo da movimentação do ar como combate aos malefícios da humidade. Nesse sentido a concepção da sala de aula em compartimento único entre fachadas opostas em contacto com o exterior, em conjugação com a implantação das construções, terá sido o princípio base do desempenho climático destas escolas. A implantação adequada surge essencialmente da conjugação de dois factores: a defesa da radiação solar sobre as paredes e os vãos, permitindo simultaneamente o aproveitamento da luz natural, e a estimulação da ventilação natural no interior dos espaços, a par com a defesa da chuva na circulação exterior dos utilizadores. O maior desempenho da protecção solar exige uma implantação longitudinal, em que as fachadas de maior desenvolvimento estejam orientadas no sentido este-oeste, de modo a proteger do Sol as suas duas maiores paredes. O rigor dessa orientação é verificável na maioria das escolas de Fernando Mesquita, sendo que em caso de excepção se orientam mais para o sentido este, uma vez que o Sol da manhã é menos nocivo. Complementarmente à implantação, os vãos das fachadas norte – onde os raios incidem a maior parte do dia e verticalmente “Ao Meu Belo Pai Ex-emigrante” de José Craveirinha (http://www.jornaldepoesia.jor.br/cravei05.html). Ruy Gomes – O Problema do Conforto Térmico em Climas Tropicais e Subtropicais. Lisboa: LNEC, 1967, p. 44. Maxwell Fry; Jane Drew – Tropical Architecture in the Dry and Humid Zones. London: BT Batsford, 1964, p. 36-37. 27 Idem. 24 25 26

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Escolas em Moçambique • ZARA FERREIRA

– assumem proporções reduzidas e encontram-se devidamente protegidos por dispositivos de sombreamento horizontal; as galerias de circulação coberta que acompanham rigorosamente os pavilhões a norte, e as próprias coberturas, desempenham na perfeição a função de sombreamento, durante todo o ano.

24-25. Escola Primária de Quelimane. © Arquivo EWV, Catarina Delgado, 2012.

A ventilação cruzada, essencial à renovação do ar do interior das salas de aula, é garantida pela inexistência de obstáculos à sua livre circulação. Totalmente abertas entre fachadas opostas, com vãos em contacto directo com o exterior, mesmo uma brisa pouco significativa de 0.45 m/s permitirá renovar o volume de ar cinco vezes por minuto, expulsando os micróbios. Mais uma vez será a correcta implantaçao da escola que será determinante na garantia desse fenómeno, ao posicionar as fachadas com os vãos de maior dimensão virados para a direcção de onde vêm os ventos predominantes. Esta será consequentemente a condição ideal para a protecção das chuvas, uma vez que os vãos de maior dimensão se encontram na fachada oposta à da galeria de circulação coberta, garantindo a circulação protegida dos utilizadores em dias de chuva. Tanto a ventilação como a iluminação natural são ainda beneficiadas com o recuso às janelas beta, um tipo de caixilharia constituído por um sistema de persianas de vidro orientáveis. Permitindo simultaneamente a orientação da luz natural e da direcção do ar para o nível dos utilizadores e do plano de trabalho, garante a ventilação natural permanente da sala de aula, mesmo sob a acção das chuvas. As salas foram concebidas para estar completa e permanentemente abertas a maior parte do tempo: as janelas beta, ao longo de grandes vãos, substituem o hermetismo do caixilho tradicional, permitindo a franca circulação do ar, essencial ao combate da humidade, não apenas para o conforto dos utilizadores, mas também para o impedimento da criação de patologias e a consequente destruição dos materiais. Como uma pequena membrana, este sistema retira às paredes a sua relevância, permitindo encerrar o espaço sem bloquear a entrada

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MORFEMA | ESCOLAS

do ar. Assumindo a versatilidade de responder às diversas situações que possam surgir, desempenha um sistema integrado e conjugado dos diversos factores: iluminação, ventilação e visibilidade para o exterior.

26-28. Liceu de Quelimane. © Arquivo EWV, Ana Tostões, 2012.

A amenização das temperaturas e o controle da direcção dos ventos do exterior para o interior dos espaços é ainda devidamente influenciada pela presença exuberante de vegetação diversa na envolvente dos edifícios.

29. Escola com 4 Salas de Aula, Pemba. © Arquivo EWV, Maria Manuel Oliveira, 2012

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Escolas em Moçambique • ZARA FERREIRA

Porém, nem sempre os dois elementos vitais da criação arquitectónica em regiões tropicais – o Sol e os Ventos – podem estar em consonância na definição de uma orientação perfeita. A situação de compromisso entre insolação e circulação permanente do ar dá origem a duas abordagens distintas na implantação das escolas de Fernando Mesquita. As escolas das cidades de Nampula e de Quelimane representam o paradigma das duas situações: enquanto nas escolas de Quelimane (em que os ventos predominantes vêm do sul) a circulação do ar e a protecção solar são factores articulados perfeitamente, nas escolas de Nampula (em que os ventos dominantes vêm do norte) apenas a circulação do ar (e a protecção das chuvas) desempenham a sua função com rigor. QUADRO SINÓPTICO: IMPLANTAÇÃO, SOMBREAMENTO E VENTILAÇÃO

QUADRO SINÓPTICO: IMPLANTAÇÃO, SOMBREAMENTO E VENTILAÇÃO

QUELIMANE

NAMPULA

V

Projecção dos raios solares horizontalmente

17H;

21 MAI

20 OUT 10H/14H; 23 FEV 10H/14H 10H/14H 22 DEZ 10H/14H /17H; 21 MAR 10H/14H 20 OU /17H T 17H O 10 ; 23 H/1 FEV 4H; 17H 16 AB R 10 H/1 JA 4H N 17 H; 22 JU N 10 H/1 4H

5

16 ABR

28 AGO

21 MAR

23 SET

23 FEV

20 OUT

21 JAN 22 DEZ

A

16 ABR 21 MAR 12

14

23 FEV

10

17

22 NOV 22 DEZ

21 JAN 22 DEZ

R

AB

11

22 JUN 17H

Z

JAN

X Projecção dos raios solares verticalmente

L

/ JU

Direcção dos ventos 11 predominantes

11

10

9

10

8 7 6 5 4 3 21

9

17 ESCOLA PRIMÁRIA DE QUELIMANE (-), (*)

Projecção dos raios solares horizontalmente

; 21

4H

28 AG

20 15 10

10

17H

5

H/1

L 10

21

9

R 17

AB

JAN

4

H;

16

24 JUL

3

V 17

H

H;

O 17

23 SET

JU

AG

2

NO

28

22 JUN 21 MAI

21 JAN 10H/14H;

21 JAN 22 DEZ

22 JUN 24 JUL

T

23 FEV

22 JUN 21 MAI

22

22 NOV 10H/14H;

22

21 MAR 10 B

21 JAN 22 DEZ

4H

H/1

10

OU

12 14 23 FEV 17 A

22 NOV 22 DEZ

N

16 ABR

21 MAR

23 SET 12 10 20 OUT

17

14 17 A

22 NOV 22 DEZ

8

DEZ

16 ABR

28 AGO

24 SET 20 OUT

21 JAN 10H/14H;

28 AGO

22 JUN 21 MAI

7

22

22 JUN 21 MAI

22 JUN 24 JUL

22 NOV 10H/14H;

22 JUN 24 JUL

6

22

5

Z

DE

H;

17

24

JU

28

O

AG

T OU

20 OUT 10H/14H; 23 FEV 10H/14H 22 DEZ 10H/14H 24 SE T 10H 20 OUT /14H/1 17H; 7H; 23 FEV 21 MA 17H 28 R 10H AG O 10 /14H/1 H; H/14 7H 24 H; 22 JU 16 L 10 NO V 17 ABR H/1 10H/ H; 4H 14H 21 ; 21 JA N 17 MAI H 10 H/1 4H

4

6 7 4H

H/1

10 AI

M

H;

17

R

AB

16

8

H

17

km/h

1

3

km/h

1 2

; 21

17H

24 JUL

MAI

5

10

17H

ABR

Projecção dos raios solares verticalmente

8 7 6 5 4 3 21

20 15 10

9

17H

22 JUN

Direcção dos ventos predominantes

X

Z

14 ESCOLA PRIMÁRIA DE NAMPULA (1960), (*) 10

Z V

11 V

9

10

8 7 6 X5 4 3 21

9 11

A

Corte X - Ventilação transversal e sombreamento da fachada 10Norte

9

B

11

Corte Z - Sombreamento 10 da fachada Sul

8 7 6 5 4 3 21

10

9

A

10 9

11

11 10

B

9

32 1

8 7 6

5

8 7 6

5

32 1

32 1

Corte Z - Sombreamento da fachada Norte

A

X

23 ESCOLA TÉCNICA DE NAMPULA (1959-1973), Fernando Mesquita V

10

8 7 6 5 4 3 21

9

Corte X - Ventilação transversal e sombreamento da fachada Norte

8 7 6 5 4 3 21

A

X

5

A

8 7 6 5 4 3 21

Z V

8 7 6

Z

Z

11 Z 10

9

X

X

X

9

Z

X

8 7 6 5 4 3 21 V

Corte V - Ventilação transversal e sombreamento da fachada A Norte B

Z X X

V

24 ESCOLA TÉCNICA DE QUELIMANE (1960), (*)

Z

V

Z 10

A

X

9

11

B

10

11

9

10 X X

8 7 6

9

V

V

8 7 6 5 4 3 21

10

10 Z

V

10

9

A

Corte V - Ventilação transversal e sombreamento A B da fachada Norte do pavilhão das salas de aula de ensino em classe A

A

B

9

A

8 7 6 5 4 3 21

8 7 6 5 4 3 21

9

5 4 3 21

5 4 3 21 A

911

11

Z

V

Z

8 7 6

10

8 7 6 5 4 3 21

Z

X

10

8 7 6

5 4 3 21 8 7 6

9

5 4 3 21

Corte V - Ventilação transversal e sombreamento da fachada Norte do pavilhão das salas de aula de ensino em classe

B

Corte Z - Sombreamento da fachada Sul do pavilhão das salas de aula de ensino em classe

A

A

Corte Z - Sombreamento da fachada Norte do pavilhão das salas de aula de ensino em classe 10

B

9 10 11 10

9

8

7

8

6

9

11

Corte X9- Ventilação transversal e sombreamento 10 da fachada Norte de uma sala de aula de ensino experimental

8 7 6 5 4321

9

10 Corte X - Ventilação transversal e sombreamento 9 8 7 6 5 4321 11 da fachada Norte de uma sala de aula de ensino experimental 10

9

6

5 4 3 2 1

10

11 10

7

9

8 7 6 5 4321

8

7

6

5 4 3 2 1

8

8 7 6 5 4321

115

7

6

5 4 3 2 1

118

Analisando todo o programa escolar construído de Fernando Mesquita, podemos constatar que em todos os casos em que foi necessária uma implantação de compromisso, o previlégio foi dado à direcção dos ventos e não à protecção solar. A situação periclitante em termos de protecção solar nas escolas de Nampula induz-nos a considerar que o conceito de Fernando Mesquita tenha sido desenvolvido para as situações em que os ventos vinham de sul e que em caso contrário, a opção tomada tenha sido inverter 180º o modelo, sem se proceder a adaptações a essa situação em termos de protecção solar, uma vez que os dispositivos de sombreamento horizontais deixam de servir a sua função em fachadas viradas a sul e os verticais nas fachadas orientadas a norte.

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5 4 3 2 1


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32. Escola Primária de Nampula. © Arquivo EWV, Maria Manuel Oliveira, 2012. | 33. Liceu Gago Coutinho, Nampula. © Arquivo EWV, Maria Manuel Oliveira, 2012.

Muitos são os estudos que dizem que, em situação de dúvida, em climas quentes e húmidos a ventilação deverá ser sempre o princípio privilegiado, em detrimento da insolação ideal. Tendo em conta que é a única forma de atenuar o desconforto provocado pela humidade excessiva, incrementada consideravelmente por estrarmos a lidar com salas de aula com uma elevada taxa de ocupação, não está em causa a importância primordial dada a este factor. A acrescentar a esse fenómeno, facilmente se compreende que a movimentação do ar constitua um processo determinante na prevenção da picada do insecto responsável por doenças como a malária. O que fica, no entanto, por desvendar é a ausência de explicação para que, tendo-se dado primazia a um factor – os ventos – se tenha negligenciado o outro – a protecção solar. Sem terem restado dúvidas quanto ao privilégio que Fernando Mesquita atribuiu à circulação do ar para a definição das condições de conforto das salas de aula, ficam, no entanto, em aberto, as questões acerca das razões que terão estado na origem da concepção do programa de Fernando Mesquita, nas cidades em que os ventos sopram de norte na estação quente. A concepção estrutural baseia-se naturalmente numa ossatura em betão armado, com todo o seu significado técnico e económico – com base num sistema cartesiano de pilar-viga, completado por lajes aligeiradas ou maciças formadas por elementos pré-fabricados. As galerias de circulação secundárias, formadas pela continuação dos pisos das salas de aula e suportadas por pórticos na continuação das paredes que marcam a separação entre aulas, tornam clara a leitura do sistema estrutural dos pavilhões de ensino em classe das escolas secundárias. O mesmo se verifica nas fachadas opostas, em que lajes e vigas se mostram para incorporarem os dispositivos de sombreamento, numa integração exemplar. A estrutura à vista permite em todos os casos uma leitura escrupulosa da ossatura das construções. 104


Escolas em Moçambique • ZARA FERREIRA

Em termos de construção é notória a fusão que o arquitecto faz entre uma resolução funcional e material moderna, cujos materiais e técnicas não lhe são renegadas, assente no uso do betão armado e no recurso à pré-fabricação, e a utilização de materiais e técnicas locais conjugadas até com preocupações de reutilização. Em ambos os casos as opções tomadas representam uma resposta exemplar às condições a que a estrutura e os materiais estão sujeitos: elevados valores e variações de temperatura, humidade e precipitação, conjugadas com as preocupações de conforto acústico e comportamento mecânico a que os materiais estão sujeitos no contexto de um edifício escolar. Com um desenho rigoroso e essencial, representativo do condicionado a uma construção de baixo custo, que se pretendia rápida, durável e adaptável a futuras exigências, a relação entre o Moderno e o clima patente neste singular legado arquitectónico não está apenas presente nas opções de desenho feito com o clima e com o lugar, mas também na hierarquia das intenções que o arquitecto assumiu em termos construtivos, formais e programáticos. “Nestas condições, pode afirmar-se que tudo foi projectado com a intenção de atingir um elevado nível de eficiência, conforto e satisfação pessoal dos usuários. Se tal não se conseguiu não foi por excessivo desejo de poupar mas somente porque para mais não deram as qualidades do Arquitecto.” 28

34-35. Escola Técnica Elementar de Lourenço Marques. © Arquivo EWV, Maria Manuel Oliveira, 2012.

28

Fernando Mesquita – op cit, p. 38

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A escola pública na transformação da cidade moderna

Carolina Ferreira

01. A escola a que temos direito (fotografia do autor)

A

escola a que temos direito é o lema de um mural, pintado em Portugal, na Festa do Avante de 2016, onde é exposta a preocupação com as escolas e o sistema de educação português. Os cidadãos manifestam-se genericamente por um ensino público, gratuito e de qualidade para todos. Apesar de genéricos, estes apelos refletem a necessidade de repensar a escola como uma instituição de ensino e aprendizagem que nos molda e organiza no território. Os modelos e quadros de referência tradicionais, que nos davam uma ancoragem ao mundo social e cultural, estão abalados e a precisar de ser repensados e criticados. A sociedade já não se reconhece nos espaços de ensino e aprendizagem existentes e, por isso, reclama por novos espaços que promovam formas de relação direcionadas para um bem-estar social. 108


A escola pública na transformação da cidade moderna • CAROLINA FERREIRA

Tal como a educação, a cidade contemporânea passa por um período de reorganização das estruturas herdadas pela cidade moderna. É o caso da rede escolar portuguesa, construída sobretudo durante o Estado Novo. Tal como os sistemas público de saúde e justiça, a educação configurou o espaço urbano e a cidade moderna. Os edifícios escolares constituíram-se como âncoras das novas áreas de expansão urbana, contribuindo para a construção da nova sociedade e de um novo homem prefigurados pelo regime ditatorial. Contudo, com a democracia, os efeitos do liberalismo e da globalização orientaram estas mesmas estruturas urbanas segundo novos temas (como o consumo, espectáculo, imagem) e dotaram a cidade contemporânea com novas centralidades e identidades. Este argumento é apoiado pela ideia do sociólogo Stuart Hall (1992 - 2006) onde defende que as identidades nacionais que, por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão a ser deslocadas e fragmentadas pelos processos de globalização e difusão do consumismo. Novas identidades híbridas, que fundem diferentes tradições culturais, estão agora a moldar o espaço contemporâneo. Nesta linha de ideias, defende-se neste ensaio que a transformação da escola e seus equipamentos tem o potencial de recriar centros e identidades na redefinição dos seus envolventes urbanos e, deste modo, absorver as identidades híbridas necessárias para a dinamização da cidade contemporânea. O problema da educação ligado à cidade foi recentemente aprofundado no panorama português, pelo Programa de Modernização do Parque Escolar Destinado ao Ensino Secundário, com a renovação de 105 escolas onde se propunha a abertura da escola à comunidade e o seu recentramento nos meios

02. Rede de equipamentos escolares do município de Coimbra, na actualidade. (Desenho de autor) | 03. Escolas renovadas pelo Programa de Modernização das Escolas Secundárias, na região centro de Portugal. (Desenho de autor)

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urbanos. Ainda assim, continuamos a perguntar: Que escola e que cidade queremos para o futuro? Nesta indefinição, cabe à arquitectura continuar a ensaiar novos cenários na renovação dos equipamentos escolares que acompanhem o debate sobre os novos modelo educativos no caminho para uma transformação e reorganização da sociedade. O propósito deste escrito é, assim, analisar a transformação da cidade moderna por via do tema da educação, com exemplos de algumas zonas urbanas e complexos escolares que sofreram transformações recentes. São eles: a Zona Escolar do Calhabé e Escola Secundária da Quinta das Flores, em Coimbra e a Escola Marques de Castilho em Águeda. 1. A Escola na Construção da Cidade Moderna. A rede pública de equipamentos escolares que conformam o território português actual, foi maioritariamente construída segundo as políticas e reformas ocorridas durante o período do Estado Novo. Deste modo, e ao longo de quase 50 anos, o estado pôs em prática as suas políticas sociais, alimentando uma identidade nacional unificada, centralizada e identificada simbolicamente também por estas estruturas de controlo e organização social e territorial. (Hall, 1992 - 2006) A cidade e a sociedade moderna desenvolveram-se neste quadro de conquistas sociais onde a educação foi um pilar para construção de um sistema público e democrático. O acesso à educação foi sendo gradualmente obrigatório e a base do desenvolvimento igualitário da sociedade. Por isso e, para fazer frente ao crescimento da população, a rede de equipamentos escolares foi aumentando e orientando o crescimento urbano em novas áreas de expansão. Os edifícios escolares obedeceram a projetos-tipo de arquitectura definidos pelo Ministério das Obras Públicas, a fim de responder de forma rápida e económica às necessidades de expansão territorial da rede escolar. Desta forma, a rede consolidou os tecidos urbanos que configuram a cidade contemporânea. A construção destas escolas foi, a seu tempo, configurando ruas, praças e bairros. Ainda durante a Primeira República e, seguindo os ideais liberais, as escolas eram integradas nos planos urbanos, construindo os limites dos quarteirões. Traziam, deste modo, a educação para zonas centrais da cidade moderna (Moniz, 2012). Durante o Estado Novo, a expansão urbana foi organizada através de Planos Gerais de Urbanização que tinham como base os novos equipamentos públicos (Moniz, 2007). Os planos urbanos eram desenhados segundos sistemas de grandes quarteirões, praças e avenidas, com o intuito de relacionar os programas

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04. Antão Almeida Garrett, Plano de Urbanização da Unidade Residencial do Calhabé, Coimbra, 1956 (Arquivo DGOTDU)

públicos (como a educação, o desporto, a saúde, a justiça) na estrutura da cidade. Além disso, era reservada uma área envolvente de protecção para estes equipamentos, acentuando o seu carácter monumental e construindo a imagem da identidade nacional de promoção do Estado Novo. Os equipamentos escolares foram assim uma ferramenta no planeamento da cidade, como é exemplo a zona escolar do Calhabé em Coimbra, proposta pelo urbanista Étienne de Gröer, em 1947 e redesenhada por Antão Almeida Garrett em 1956 (Moreira 2014). Inicialmente, este conjunto foi desenhado segundo o eixo - Liceu Feminino Dona Maria, praça Heróis do Ultramar e Estádio Municipal - e serviu de motor ao desenvolvimento urbano da cidade que se expandia para sudeste. Nas décadas seguintes, foi construída a Escola Técnica Avelar Brotero, de um lado da praça, e o Magistério Primário e respectiva escola anexa do outro. Em Águeda, o anteplano de urbanização de 1959, elaborado por Miguel Resende colocou a Escola Industrial e Comercial num extremo de uma avenida, onde depois de 1970, Pedro Ramalho clarificou o novo perfil de rua com a implantação da Câmara Municipal e a Praça do Município no extremo oposto ao da escola (Pimenta, 2011). Simbolicamente desenhou-se um sistema onde a

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05. Miguel Resende, Anteplano de Urbanização de Águeda, 1959 (Arquivo DGOTDU) | 06. Vista aérea da zona urbana da Escola Secundária Marques de Castilho, Águeda (Google Earth)

educação e o poder municipal representam dois pólos ligados pela avenida. Tanto a praça como a avenida vêm a assumir um papel fundamental para a integração da escola na vida urbana. Além de promoverem caminhos de ligação, conseguem agregar um conjunto de serviços e apoios que possibilitam a vivência dos espaços envolventes da escola. A ocupação do quarteirão urbano pelos edifícios escolares teve uma grande transformação durante este período, alterando também a forma de relação da escola com a cidade. Até às reformas do Estado Novo os edifícios escolares ocupavam quase a totalidade do quarteirão, definindo os seus limites. Evoluíram do modelo de edifício compacto e único dos colégios antigos. A partir dos planos e reformas iniciadas no final dos anos 30, a construção dos edifícios escolares partem de programas-tipo normalizados para serem implementados por todo o país. Gradualmente, o edifício único e compacto tende a repartir-se por blocos distintos. No caso dos programas-tipo de liceu e escola técnica de 1938 e 1947 respectivamente, existia sempre um bloco principal para salas de aulas, serviços administrativos e biblioteca; outro para laboratórios e/ou oficinas e ainda outro para refeitório, ginásio/salão de festas, como acesso pelo exterior abrindo o programa escolar à restante comunidade. A partir dos anos 50, estes edifícios adquirem maior leveza e transparência, com maiores áreas de superfície envidraçada e ausência de cantarias decorativas. Contudo, mantinham uma 112


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hierarquia volumétrica, onde o edifício principal construía uma frente para rua e, deste modo, assegurava uma forte relação com a cidade. Os complexos escolares tenderam a afastar-se dos limites do quarteirão em tipologias pavilhonares e a abandonar a hierarquização programática dos espaços arquitectónicos. Esta nova tipologia, com projetos-tipo dos anos 1960 e 1980, reflectia o pensamento de um novo modelo educativo, que reagia à rigidez e monumentalidade das escolas dos anos 1940. Propunha uma área de recreio aberto, livre de limites e formas rígidas, encorajando a liberdade dos alunos e promovendo espaços e escolas mais democráticas. As escolas pavilhonares foram construídas massivamente, nas periferias das cidades, fora dos limites urbanos, onde o valor dos terrenos era menos elevado. Deste modo, perderam-se as relações urbanas que colocavam a escola na vida da cidade, como nos planos urbanos anteriores (Moniz, Ferreira, 2016). É exemplo a Escola Secundária da Quinta das Flores, construída, nos anos 1980, numa zona periférica da cidade de Coimbra que foi absorvendo o alargamento do tecido urbano construído até agora. A escola distanciou-se da cidade e o pensamento nacionalista deu lugar ao pragmatismo das soluções rápidas, económicas para construir massivamente. 2. Da Crise da Educação à Crise da Cidade. Depois de 1974, o regime democrático continuou a expansão da rede escolar com a construção de escolas pavilhonares (dos ensinos primário e secundário) e de novos complexos universitários e politécnicos. Contudo, o processo de expansão urbana e crescimento da população escolar, foi contrariado. Actualmente, a população escolar está a diminuir e as cidades em processo de contracção e reorganização do existente. Como foi referido anteriormente, com o exemplo da Escola da Quinta das Flores em Coimbra, desde os anos 1980 até agora, as escolas construídas nas zonas periféricas foram absorvendo o crescimento urbano da cidade, integrando um tecido heterogéneo de áreas rurais, urbanas e comerciais e, intersectadas por vias de tráfego rodoviário, sem o carácter de rua urbana. Hoje, as consequências deste planeamentos da rede escolar são visíveis ao nível da organização territorial: um tecido segregado, com áreas dispersas, de difícil relacionamento entra eles (Moniz, Ferreira, 2016). A imagem das escolas de ensino primário e secundário ficou presa à ideia de um quarteirão gradeado, que controla as dinâmicas das relações da cidade com a comunidade. Apesar de todas as conquistas democráticas, os espaços escolares ainda se revelam como dispositivos disciplinares, demasiado hierárquicos, que

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constroem relações de poder desiguais (Michel Foucault, 1975) e dificultam a participação e o livre acesso, promovendo a dependência, o medo, a passividade e a apatia (Chomsky, 2014). A formalidade dos espaços de ensino e aprendizagem contribuem para este quadro, assim como a falta de envolvimento, participação e integração das comunidades escolares e urbanas. Este debate remonta ao período da Primeira República, impulsionado pelas ideias liberais. As questões do ensino foram levantadas, alterando a ideia de uma educação apenas para o clero e para a aristocracia. “O principal ideal liberal de educação é que a escola não deve estar a serviço de nenhuma classe, de nenhum privilégio de herança ou dinheiro, de nenhum credo religioso ou político. A escola deve estar ao serviço do indivíduo, em revelar e desenvolver em cada um, suas aptidões, talentos e vocação. A vocação é a realização individual para a construção do progresso geral” (Cunha 1980:34). Neste modelo liberal, as pessoas progridem pela sua própria experiência e iniciativa, adquirindo a capacidade de investigar, descobrir, criar, inovar e desafiar. Desta maneira, formam-se pessoas mais confiantes, independentes e participativas, em espaços onde professores, alunos e membros externos da comunidade escolar podem interagir. Em vez de controladas, as relações devem ser fomentadas e orientadas, porque nelas reside a capacidade de aprendizagem e crescimento humano e social. Os edifícios escolares e os modelos educativos actuais revelam-se, assim, cada vez mais desadequados às exigências e espectativas da sociedade contemporânea. Esta desadequação resulta, em muito, do distanciamento da escola com a cidade e vice-versa. A escola está desligada da vida urbana contemporânea. Por este motivo, a crise da educação é também a crise da cidade, porque pensar a educação é sobretudo pensar na forma como nos relacionamos. Assim, a renovação do espaço escolar deve refletir o caminho para a transformação e reorganização da sociedade, porque “we never educate directly, but indirectly by means of environment“ (Dewey, 1916/1944:19). 3. Transformação da Escola e Cidade Moderna O recente Programa de Modernização das Escolas Secundárias, suportado por políticas e fundos Europeus, retomou o debate sobre o futuro da educação e a cidade no contexto português. Criou uma oportunidade de reflexão sobre a concepção arquitectónica dos espaços de ensino/aprendizagem procurando, simultaneamente, dar forma à actualização de processos e métodos pedagógicos da escola pública e à reorganização e dinamização social e urbana. Criou também a oportunidade de pensar esta relação a partir do projecto de arquitectura,

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ensaiando possibilidades e cenários que possam responder positivamente às necessidades educacionais futuras. Este programa contribuiu ainda, para repensar o papel dos equipamentos escolares na cidade. Além de recuperar e modernizar os edifícios, um dos seus objectivos foi abrir a escola à comunidade, recentrando-a nos meios urbanos. Na cidade contemporânea, o quadro de referência deixou de ser a construção de uma identidade nacional e passou a ser uma identidade híbrida, capaz de absorver várias identidades globais (Hall, 1992/2006). Deste modo, os programas públicos (como a educação, a justiça, a saúde) que antes orientaram e consolidaram o desenho e o crescimento urbano das cidades, são agora englobados nas novas dinâmicas que alimentam a vida urbana contemporânea, tais como: o consumo, o espectáculo, a arte, o turismo, as marcas e a imagem. Impulsionado pelos efeitos da globalização e pelas novas tecnologias de informação e comunicação (como a internet), o espaço adquiriu novas características híbridas, tornando-se num conjunto indissociável de sistemas de objectos e sistemas de acções (Latour 1991; Santos 1999). Entender e promover as relações das pessoas com o espaço pode ser, assim, o desafio para lidar com a transformação do espaço moderno. 3.1. A Zona Escolar do Calhabé em Coimbra e a Escola Marques de Castilho em Águeda Voltando aos exemplos anteriores, a zona escolar do Calhabé em Coimbra sofreu um processo de transformação na cidade com a construção de novos equipamentos desportivos e comerciais. A praça Heróis do Ultramar, idealizada, nos anos 40, pelo urbanista Etienne De Göer, como um espaço fronteiro de reunião para os eventos do estádio municipal, foi sendo gradualmente transformada em parque de estacionamento e ocupada, recentemente, por um novo complexo de piscinas e um pavilhão multidesportos. Desta forma, libertou a área do antigo estádio municipal para a construção de um estádio de futebol, de um centro comercial e habitação. Este investimento foi despoletado, em 2003, pelo programa do Europeu de futebol, que construiu uma rede de novos estádios de futebol por todo o país. A lógica capitalista de construção e transformação urbana serve-se dos hábitos consumistas inerentes à economia urbana e ao apelo das diferentes identidades despoletadas pelos fenómenos do consumismo global. Se antes foi dada importância às construção de instituições culturais nacionais, como o sistema de educação, agora é consumo e o interesse capitalista que serve de motor à transformação da zona escolar do Calhabé. Contudo, este espaço continua a ser agregador do ensino primário, secundário e superior, reorientando a antiga Escola Técnica Avelar Brotero para o centro da praça, no

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recente processo de modernização do edificio. Em Águeda, a transformação do espaço urbano e da Escola Industrial e Comercial veio reforçar o carácter comercial da avenida que liga a escola à Praça do Município e ao edifício da Câmara Municipal. Além disso, o projecto de arquitectura de modernização da escola, orientou a nova entrada da escola pelo eixo da avenida, construindo um novo corpo edificado que faz a frente para uma nova praça. Nos dois casos é evidente que a rede de infraestruturas e serviços públicos continuam a caracterizar a cidade contemporânea e a ser um dos principais factores de identidade herdados da construção da cidade moderna (Munarin, Tosi, 2014). Além disso, é reconhecida a capacidade destas estruturas, idealizadas nos anos 1940, em agregar as identidades e culturas caracterizadoras da cidade contemporânea. São elas, a cultura do consumo, do espectáculo, do comércio e também da vivência do espaço público. 3.2. A Escola da Quinta das Flores e o Conservatório No processo de modernização da Escola da Quinta das Flores, o projecto transforma a tipologia pavilhonar com a construção de um edifício que limita e agrega os pavilhões antigos e reconstrói a frente da rua. Este projecto vem

07. José Paulo dos Santos, Planta de implantação da Escola Básica e Secundária Quinta das Flores Conservatório de Música de Coimbra. O cinza claro representa os edifícios existentes e o cinza escuro os edifícios a construir, 2008-2009 (PMEES - Parque Escolar)

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contrariar as ideias democráticas dos projetos-tipo dos anos 1960 e 1980 - de área aberta, livre de limites, com um sistema disperso de pavilhões afastados do limite do quarteirão urbano - e retoma a hierarquia volumétrica dos projetostipo, dos anos 1940, para as escolas técnicas, onde o edifício principal construía a frente da rua. Este novo edifício da escola alberga o ensino integrado da música e da dança nos pisos superiores e a biblioteca, refeitório, bar e sala de espectáculos no piso térreo. Deste modo, o edifício do Conservatório complementa o programa escolar com um equipamento aberto para a cidade. Através do programa da sala de espectáculos, alarga o tempo de utilização do edifício e abre o piso térreo para a utilização para utilização do público em geral, promovendo a relação com o espaço público e com a comunidade exterior. O sistema open-space e a transparência do piso térreo são características arquitectónicas deste edifício que fomentam formas de relação e aprendizagem informais da comunidade escolar. Além disso, estabelece uma relação franca com a rua e o passeio públicos. Propõe, desta forma, uma solução alternativa à frente gradeada da maior parte das escolas. Se a Escola da Quinta das Flores foi, em tempos, um limite periférico desagregado do espaço urbano, o Conservatório é hoje uma estrutura de dinamização que, pelo seu carácter social e cultural, contribui para a construção de novas centralidades e identidades de Coimbra. (Ferreira, Moniz, 2016)

08. Entrada do Conservatório (fotografia de autor)

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Editor: Paulo Afonso Ensaios: Carolina Ferreira, Gonรงalo Canto Moniz, Luis Gomes, Paula Del-Rio, Paulo Afonso, Rui Aristides, Zara Ferreira. MORFEMA Nยบ4 ESCOLAS | DEZEMBRO 2016 ISSN 2183-7694 geral.morfema@gmail.com

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