Brasil

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Capa: Berserk. Editoração eletrônica: E. Reuss


SUMÁRIO GRANDES NAVEGAÇÕES ..................... 10 Por Vítor Maciel Gonçalves O relato de um dia na escola interior revela minúcias sobre país. O quão prejudicial desenfreada das riquezas de descoberta?

de um menino do as origens de seu é a exploração uma nova terra

O CAVALEIRO DE OLHOS A MARELOS 20 Por Luiz Mariano O real é invisível à História. E se o maior guerreiro for um brasileiro? Se os países são invenções, por que não acreditar nos mitos?

A BATALHA DOS RISCA-FACAS ........... 30 Por Roniel Felipe Um menino abestado, uma beata polêmica, um sanfoneiro afinado e um guitarrista com cabelo black power. Em Parari, um pedaço de nada em algum canto do Nordeste, eles são os quatro cavaleiros de um apocalipse mambembe.

PEDRAS QUE CANTAM ........................ 48 Por V. E. Simeoni Retratos são como pequenos fragmentos de memórias eternizados em tinta, lembranças que Gusminha gostaria de compartilhar antes de partir.


AMEAÇA FANTASMA ........................... 99 Por Fabiano dos Santos Araújo Todos em toda parte tentam se esconder, para de alguma forma se manterem à salvo. Mas ninguém pode escapar deles.

TERRA OBSCENA .............................. 103 Por E. Reuss As portas deste lugar serão fechadas quando o último de seus internos morrer. Até lá, César pretende escutá-los.

O PESO DO MARTELO MARCIANO .... 143 Por Rosca J. R. Tudor Justo agir ou reto pensar? A Lei contra o Cidadão. Quando uma velha história brasileira ainda é atual em pleno Séc. XXIII.

A TRAÇA ............................................ 162 Por Alef Em São Paulo bibliotecas morrem. Filó, uma traça, vê seu ambiente se deteriorando como a literatura em um país.

ENTRE EM CONTATO ........................ 168


PREFÁCIO 22 de abril de 1500. Na escola aprendemos que nesse dia o Brasil foi descoberto. Mas como descobririam algo que ainda não estava ali? O Brasil precisou ser inventado. Não porque nada existia aqui, mas porque outra coisa tomaria seu lugar. Aqui foi terra de matança e epidemias em povos que aqui viviam, alguns ainda vivem. Foi também terra de tomar da Natureza todas suas riquezas, algumas ainda restam a serem tomadas, talvez preservadas. Pessoas vieram movidas pela ganância, esperança ou pelas correntes do navio negreiro. Pessoas o amam e o odeiam, algumas o deixam, mas outras insistem. É difícil definir o que é ser brasileiro. Alguns poetas transformaram o Brasil em uma aquarela, da qual a realidade destaca o vermelho, de sangue e de paixão. Não importa a cor discutida, ela existe aqui. Somos todos e ninguém. Rezamos para Meca, Buda e todos os Orixás, mas podemos também não rezar para ninguém. Então o que compartilhamos? O que nos torna o mesmo povo? Talvez seja o Tempo. O Tempo que quando passado se transforma na mesma História e no futuro guarde as mesmas


esperanças, independente do caminho que cada trilhe para chegar lá. Para a 5ª edição da Mostra EcOS escolhemos o tema “Brasil”. Embora todos os temas escolhidos para as edições anteriores abordarem questões potencialmente pessoais, não tivemos nenhuma que obrigou todos seus participantes a escreverem olhando para o espelho. Cada conto é um pedaço de nosso povo sob a visão do seu autor. Nunca poderíamos falar sobre tudo o que significa ser brasileiro e nem temos tal pretensão. Apenas deixamos aqui nossas visões sobre o que vimos em nossos espelhos e janelas. Nossas visões do Inferno, mas também do Paraíso e de toda uma terra que conquistou o direito de simplesmente existir, sem ter que justificar essa existência.

Rosca J. R. Tudor



CONTO 1

GRANDES NAVEGAÇÕES Vítor Maciel Gonçalves

A

manhã pacata e ensolarada na escola Sociedade do Aprendiz teve o silêncio interrompido pelo toque do sino que marcava o fim do intervalo e início do segundo período de aula. Em meio à desenfreada manada barulhenta de estudantes que voltavam às suas respectivas salas, estava um único que demonstrava autêntica vontade de o fazer, de semblante franzino, cabelos castanhos e olhar encantador.


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Esse é o garoto sobre o qual será relatado o porvir. O relógio marcava nove e quarenta quando a professora, de nome Janaina, entrou na sala quatrocentos e três para ministrar a disciplina de história, favorita de Moacir Cairu, aluno do terceiro período do ensino fundamental. O ano, para que haja uma compreensão mais transparente dos fatos aqui relatados, era dois mil e dezesseis passados do nascimento de Jesus Cristo, e a data de importância nacional. Hoje, há quinhentos e dezesseis anos, o país de Moacir fora descoberto. A professora, além de amar sua disciplina, claro, tendo em vista que não era daquelas que simplesmente trabalha pelo dinheiro e vive vida medíocre de lamentações em constante desgosto pela profissão, tinha paixão inegável por romances e, por capricho do seu ser e não necessariamente por exigências da grade curricular, solicitara na aula passada aos alunos da sala quatrocentos e três que escrevessem um conto, com embasamento histórico, sobre a descoberta do país em que nasceram e, que provavelmente, viveriam e morreriam. Aqui alguns indivíduos mais criteriosos podem achar presunçosa a ideia do que foi há pouco dito, de que ninguém ali conheceria ou poria os pés em terras longínquas, que não respirariam ares além daquele que estavam ali respirando, mas, caso vissem o grau Grandes Navegações – Vítor Maciel Gonçalves


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extremo de pobreza e miséria em que alunos, instituição, professora, cidade e país se encontram, pensariam duas vezes antes de questionála. “Professora, posso ler meu conto hoje”, perguntou Moacir, “Você só me dá orgulhos, sempre voluntário, quem dera fosse meu filho, leia” respondeu a professora. Em meio a risadas e deboches, o pequeno menino prodígio levantou do seu lugar, horizontalmente localizado na terceira fileira de carteiras, se contadas da esquerda para a direita e não da direita para a esquerda, pois nesse caso seria a quarta, o que permite concluir que a sala em questão é composta por sete filas, e em termos de orientação vertical, seu lugar era o primeiríssimo. Apesar de existirem estereótipos que classificam jovens que gostam de estudar e ainda sentam na primeira carteira como antissociais, esse não era o caso de Moacir, que tinha amigos até demais. O pobrezinho, figurativa e literalmente, era afetado simplesmente por problemas de vista, sendo míope e astigmata, e as economias que estava juntando eram ainda insuficientes para que pudesse ir no oftalmologista e muito menos comprar um par de óculos. Subiu ao tablado, sentindo-se como um prefeito ou presidente prestes a dar um discurso importante, e começou a contar sua história, não tão acertada em relação ao que realmente ocorreu Grandes Navegações – Vítor Maciel Gonçalves


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por ali no passado, visto que se embasa principalmente no sentimento romântico de um mero aluno do terceiro ano, que, apesar de muito inteligente, era apenas uma criança sonhadora, mas ainda suficientemente fidedigna do descobrimento de seu país. “Hoje completam-se setenta e oito dias que o indivíduo, capitão do navio que em breve descobriria novas terras, está em alto mar. Olhava o oceano sendo sobrevoado por algumas gaivotas dançantes encostado no mastro central, quando se lembrou da esposa e filhos que deixara para trás com um misto de alegria e tristeza, já que apesar de estar perseguindo seus sonhos, estava longe dos seus entes queridos. Ele já estava, pois, começando a ficar realmente desolado pela aparente demora, ‘Quanto tempo é preciso para chegar do outro lado mesmo?’, perguntou ele ao navegador do navio, homem de intelecto inquestionável e grande conhecedor da arte de navegação, tendo mesmo estudado em conceituadas universidades para adquirir tal capacitação, ‘Segundo relatos de outros aventureiros que tiveram sucesso na empreitada de cruzar o Atlântico, especialmente Cristóvão Colombo, sessenta dias, ou dois meses, como preferir’, disse o estudioso. O capitão, mesmo ruim em matemática, aprendera bem a

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subtrair e somar, sentindo mesmo dificuldades em dividir e multiplicar e, assim, percebeu instantaneamente que dezoito dias por demais haviam passado e sua impaciência, portanto, era justificável. A tarde passou lentamente com o barulho constante e ao mesmo tempo apaziguador do mar sobre o casco da embarcação e, quando o sol dormiu, esvaiu-se, o capitão retirou-se para sua cabine pessoal e pôs-se também a dormir. Ele sonhava com a mulher amada quando precisamente às cinco e quarenta e dois da manhã foi acordado ao som de ‘Terra à vista’. Após mais algumas horas, que se fazem necessárias para os preparativos daqueles que acabam de aportar em um local desconhecido, com o dia já totalmente amanhecido e o navio devidamente ancorado há algumas centenas de metros da costa da nova terra, as proas dos botes exploradores começaram uma a uma a tocar a praia deserta, que diferentemente do seu país de origem, aqui era rochosa, escura e desprovida de muita areia. O clima era ameno e o sol não tão quente quanto em casa. À primeira vista, o local era desabitado e a vegetação observável completamente diferente do conhecido, com algumas flores se destacando em cores marcantes que variavam do amarelo até o violeta em meio a árvores cujas folhas eram

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pequenas e de aspecto pontudo. Montaram algumas barracas que serviriam como uma espécie de quartel general, com alimentos, ferramentas, armas, munição, mapas a escrever e diversos outros utensílios. Passado não muito tempo, começou-se a ouvir trotes e tambores e aos poucos algumas dezenas de seres bípedes que estavam a pé, ou montados em seres quadrúpedes desconhecidos até então, começaram a aparecer no horizonte. Assim que chegaram mais perto, notou-se que estavam todos, ou nus, ou pintados, ou cobertos por pelugens tão fartas e tão negras que o capitão começou a se questionar sobre quais tipos de feras poderiam ser encontradas nessas terras, além daquelas que já os observavam. O navegador foi chamado para que tentasse comunicação, mas fracassou. Todos os idiomas os quais ele dominava, precisamente quinze, se mostraram falhos na tentativa de fala com os habitantes dessa terra fria, rochosa e desconhecida. Além da língua completamente inusitada, os selvagens se mostraram extremamente agressivos. Enquanto o navegador, que vinha acompanhado do capitão, tentava criar um diálogo, um deles, totalmente nu, de pele branca como a neve, olhos azuis como duas safiras e cabelos cor-deouro, portando um cajado de madeira, se adian-

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tou e começou a gritar e gesticular provocativamente. O capitão, que tinha personalidade autoritária e explosiva, acompanhada de pavio por demasiado curto, ordenou para que fossem sacadas as armas de fogo. Não estava ali para conhecer ninguém e muito menos aturar provocações. Estava lá para explorar, pilhar riquezas e, como era um bom amante, encontrar também uma pedra preciosa radiante para que pudesse fazer um novo colar para a esposa. O povo local não teve chance alguma contra os tiros e a pólvora. Estavam munidos de nada mais que machados e lanças primitivos os pobres coitados. Morreram todos, sem que nenhuma fatalidade sofresse a tripulação do navio recém-chegado. Passadas duas semanas de exploração, em um dia que amanheceu frio e cinzento, com alguns escravos e animais nunca antes vistos, como aqueles nos quais alguns dos selvagens montavam no dia da chegada, cujo nome futuro seria um que conhecemos bem hoje, cavalo, em jaulas, um pouco de ouro, pedras preciosas de cores variadas como o arco-íris, incluindo um rubi perfeitamente modelado e roubado de uma aldeia de selvagens que daria um belo colar para a mulher do capitão, e um tanto de madeira de árvores da região a bordo, a tripulação retornou

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para casa e ficou denotado e marcado na história, assim, que Pedro Alvares Cabral foi o descobridor de Portugal.” Aplausos verdadeiramente entusiasmados por parte de Janaina puderam ser ouvidos ao término da apresentação, e nem tanto por parte dos colegas, enquanto o garoto descia do tablado e retornava à sua cadeira, com ar triunfante. “Excelente história Moacir. Apesar de sangrenta, ficou bem construída. Deveria mostrá-la também para a Iracema, que com certeza elogiaria seu texto tanto quanto eu. Gostei dos apelidos dados por você tanto para o descobridor da Europa, Joacir Sol-Nascente, como Cristóvão Colombo, quanto para o descobridor de nosso país, Portugal, Tupã Cara-Pintada, como Pedro Alvares Cabral. Bastante criativos”. O sino soou novamente e a aula de história acabou. Janaina retirou-se e os alunos da sala quatrocentos e três rezaram, como era de costume no período entre aulas, com exceção daquele que acabara de ler o conto perante a turma, que além de ser ateu convicto e compactual das ciências empíricas e não da religião, estava completamente distraído pelo sucesso de sua apresentação prévia, sorrindo de forma contagiante, mesmo que com uns dentes a menos perdidos pela falta de escovação. A reza tinha como alvo pedido de benção a Tupã e, terminada a oração, começaram a se preparar Grandes Navegações – Vítor Maciel Gonçalves


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para a próxima aula, que seria justamente com a professora Iracema, de língua brasileira. Ao fim do dia letivo, Moacir Cairu voltou para casa e, ao adentrar a porta da cozinha, que também era quarto e banheiro, visto que a construção tinha cômodo único, encontrou o pai sentado em uma cadeira, consertando a ponta da mesa. “Pai, hoje descobri que tenho um sonho. Quero estudar em uma universidade e também ser presidente da república. Quero que nossa história possa se alterar de sofrimento e exploração, para uma nação mais desenvolvida. Menos gente passando fome...”, o pai, achando que o filho tinha enlouquecido, que estava falando asneiras, respondeu, “Deixa disso filho, que sonho absurdo, volta teu foco ao trabalho, vai ser padeiro, assim como teu pai. E não adianta chorar, é assim e ponto”. Abre-se um parênteses aqui com o intuito de se discorrer sobre as injustiças e as peculiaridades da realidade do mundo, pois mesmo tendo por certeza que o jovem garoto prodígio, conhecedor de vocábulos inimagináveis para alguém de tão pouca idade, tornar-se-ia um homem de inteligência notável se tivesse os estudos superiores e oportunidades que alguns outros privilegiados têm de sobra, a realidade impede que assim o faça, seja pela falta de dinheiro, que não sobra nem para os óculos, seja pela falta de empreendorismo intelectual da Grandes Navegações – Vítor Maciel Gonçalves


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família Cairu, que desacredita na importância do estudo superior para atingir o sucesso. Dos males o menor, Moacir cresceu e virou um padeiro honrado, mesmo que medíocre, e ao menos as vontades do pai foram atendidas. Deve-se reiterar, ainda, que o ano na verdade era cinco mil cento e trinta e quatro passados do ano de nascimento do deus Tupã, da mitologia indígena folclórica brasileira, e não dois mil e dezesseis, visão ultrapassada que alguns cristãos, uma pequena minoria no mundo, ainda gostam de apregoar. Com as grandes navegações, o Brasil colonizou quase toda a Europa e hoje em dia boa parte do continente tem a língua brasileira como materna. Portugal, nome esse adquirido como homenagem a uma árvore bastante comum no Portugal-colônia, o pau-Portugal, é um desses países. O relato aqui apresentado do aluno, professora e escola portugueses foi traduzido, portanto, do brasileiro para o português, para que seja distribuído em regiões de Portugal que ainda se comunicam nesse dialeto quase extinto e um tanto quanto esquisito.

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CONTO 2

O CAVALEIRO DE OLHOS AMARELOS Luiz Mariano

Depois de exterminada a última nação indígena E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias Caetano Veloso

C

onta-se que o engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, nas suas horas largas antes de se arremeter ao encontro de moinhos, castelos e donzelas encantadas, devorava livros de cavalaria como fino manjar. Perdia-se nos pântanos de romances de terras


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distantes, reis e rainhas, gigantes, relatos de aventureiros, entre outros exemplares que povoavam sua entulhada livraria. Dentre as muitas obras que tinha despendido suas horas de ócio, uma delas tinha o valoroso cavaleiro se admirado muito. Tratava-se de um pequeno livrete intitulado “O cavaleiro de olhos amarelos”, onde narrava a seguinte história: “Havia muitos livros e fatos mui bem narrados, com as historietas mais impressionantes narradas por mui grandes escritores; mas nenhuma, valha-me Deus, como aquela que se desvendava nas próximas páginas. Num reino muito distante, onde se plantando tudo dá, certo rei tinha determinado conquistar mais um pedaço de terra para sua coleção de descaminhos. Testemunha disso era este humilde viajante que vos escreve, longe da terra natal, a saudosa Espanha, terra abençoada de Deus. Pois bem, esse rei, que decerto não era rei coisa nenhuma, pois não usava nem cetro nem coroa, tinha apesar disso muitos súditos, um enxame sem par de guerreiros, todos muito robustos. Este comandante tinha juntado ao seu domínio uma penca de governadores, de vários lugares adjacentes, reunindo os poderosos numa algazarra

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multicolorida de homens com penachos e apetrechos que lembravam vagamente nossas roupas. Pois o chefe tinha convocado todos para participarem de uma escaramuça tranquila, já que a aldeia visada não tinha mais que 100 guerreiros, e o trajeto era espaçoso e amplo. Carregavam lanças, machados, arcos, alguns poucos tinham arcabuzes. Havia até mesmo alguns espanhóis entre aqueles homens estranhos, aventureiros em busca de algo que nem mesmo sabiam direito. O que todos se perguntavam, mas ninguém dizia abertamente, era porque juntar tantos estandartes, ou melhor, plumas, para tão reduzido inimigo. A hipótese mais plausível, aventada por González, um ganancioso espanhol, era que seria uma manifestação de poder para impressionar as gentes dos arredores. E era realmente impressionante aquela multidão incontável de batalhões das mais diversas tribos. Muitos deles não falavam a mesma língua. Existiam os tupinambás, que exibiam seus tacapes coloridos enquanto arrogantemente desfilavam entre os próximos; Os aimorés, selvagens entre os selvagens, aterrorizavam só de olharem com seus rostos frios. Os espanhóis bebiam e mediam forças com outros europeus que era difícil de se identificar de onde eram; sabia-se apenas que não eram bugres. Espadas de aço eram roubadas

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e acampamentos inteiros viravam de pernas pro ar na luta por reavê-las. E assim a insólita aglomeração de homens de armas caminhava aos poucos. A não ser os pouquíssimos que marchavam a cavalo, animais velozes, dos quais os selvagens tinham medo. Tiaraçu, o chefe dos chefes, não compartilhava do temor de seus companheiros pelos nossos amigos de quatro patas. A impressão era a de um homem rijo, de compleições firmes, cicatrizado, rico em histórias e ambição. Ele queria construir um império, parecia-me, e era muito temido pelos demais. Eu concordava com González sobre o propósito desse ataque, mas parecia que Tiaraçu enxergava longe, como dizia ele para mim: “Estes dois olhos, Hernandez, foram roubados de um gavião pelas minhas próprias mãos. Posso ver o que acontece a dez morros de distância”. Ele sabia que as tribos vizinhas se desesperariam com um exército imenso como esse era, e rapidamente fariam tratos sem papel, já que eles não conheciam este material, entregando virgens como moeda de troca para evitar dispendiosos combates, enviariam guerreiros para a messe, e assim Tiaraçu engordava o tamanho da tropa, que agora tinha voltado a se locomover. Era tarde. As florestas estavam distantes, só campinas, mato rasteiro. Um bom lugar para

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uma batalha, como aquela que participei em Portugal. Ao longe, macacos sibilavam, e um vento acariciava nossos corpos encalorados. E então eu vi. Vi um índio, a uns cem metros de distância. Cavalgava com muita dificuldade num cavalo velho, devagar. Dispensou o animal quando estava mais perto e começou a caminhar, o bicho tomando outro rumo. Ele vinha calmamente, solitário. Tinha físico de guerreiro, embora fosse magro e baixo. Trazia uma tanga na cintura, desenhos estranhos no peito, nos ombros. Dispunha de algo como faixas nos pés e nas mãos, portava um tacape estranho. Da cabeça projetava-se uma longa cabeleira cinza que descia até os joelhos, farfalhando na brisa; ele foi chegando mais perto. Não parecia tão velho quanto os cabelos sugeriam. Como era de suspeitar, não possuía armadura. Os olhos eram amarelos, o que dava um contraste exótico entre a cor da pele e os mesmos. Agora ele tinha parado e falou em guarani carregado, com voz forte: - Meu nome é Râni Magé. Voltem de onde vocês vieram, ou irão morrer todos aqui mesmo. Houve uma pausa. Tiaraçu foi o primeiro a se manifestar, dando uma sonora gargalhada, seguido pelos que estavam à volta. O estranho não se perturbou. Tiaraçu, depois de um tempo,

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ordenou a um de seus guerreiros para acabar com o infortúnio, e um deles sacou da lança, sopesou-a e lançou com uma precisão feroz em direção ao homem solitário, mas este se desviou como um gato silvestre e começou a andar para frente. Não estava perto, mas já não estava longe, então o mesmo homem que tinha arremessado a lança foi ao seu encontro. Sacou duas machadinhas e investiu com fúria súbita em direção ao guerreiro inimigo, mas este se agachou, deslocando-se para o lado e desferiu uma bordoada tão forte que deixou o atacante desacordado. Quando alguns já preparavam as flechas, Râni correu em direção ao centro da fileira e, girando à direita e à esquerda, desferia golpes, desviava-se dos ataques inimigos, pulava para trás, pegava uma arma caída no chão, atirava contra nós. Tiaraçu, não muito distante dali, irritou-se, mandando seus melhores combatentes cercarem o destemido Râni, que urrava como um tigre ensandecido, enquanto lutava como um demônio. Alguns espanhóis, estupefatos, foram em direção ao combate, ao mesmo tempo em que alguns bugres atiravam flechas na esperança de acertarem o endiabrado Râni, que estocava, lutava e matava, já vermelho, usando um espanhol aterrorizado como escudo ante as flechas, que zumbiam cortando o ar.

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Os guerreiros convocados por Tiaraçu, os melhores do exército, não conseguiram cercar o selvagem inimigo, pois os que tinham êxito em se aproximar eram rapidamente desbaratados e os outros, vendo o cenário e o ator tão perto, desistiam da empreitada. Tiaraçu se mordia de raiva. Como? Um homem? Como era possível? Uma hora ele se cansaria, pensou. Então deu a ordem: - Todos os que tem armas, todos os desgraçados que estão aqui, cerquem esse miserável! Não deixem ele escapar, não tenham medo! Ele vai se cansar! Cerquem o maldito! A montanha de homens correu em direção ao local, e eu simplesmente fui levado pelo êxtase da batalha, aliás, uma curiosíssima batalha entre um exército e um homem só. E lá estava ele, Râni, como um redemoinho, se desvencilhando de um ao mesmo tempo que investia em outros. Ele ria, não, gargalhava. “Estão gostando de dançar? E então? Vocês só sabem fazer isso?” e se arremessava em três índios ao mesmo tempo, alguns já morrendo de medo, outros empurrados pelos companheiros, e uma multidão de mortos, dezenas de corpos. Vi Râni bem de perto, e ele estava ferido, demonstrando sinais de cansaço, e, num momento em que estava de costas para mim e parecia ter escorregado, ataquei. Eu tinha uma espada feita de aço da mais alta qualidade, e

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minha roupa resistia à maioria das flechas lançadas de longa distância. Era bom com a espada, e girei a lâmina de forma que ele tivesse pouca possibilidade de escapar do golpe, e quando investi ele estava no chão, tendo se desviado enquanto rapidamente se levantava neutralizando meu ataque simplesmente segurando minha mão que brandia a espada. Olhei para seus olhos amarelos bem vivos enquanto sacava minha adaga e ele moveu sua cabeça e atingiu em cheio meu nariz com uma cabeçada tão forte que não vi nada durante algum tempo. Caí no chão, tonto, enquanto aos poucos voltava a ver, e via-o tendo se distanciado um pouco, já nessa altura usando a minha espada contra um escudo de madeira de um dos tupinambás que, tão rápido quanto eu, foi colocado momentaneamente para fora de combate. Então Tiaraçu, com seu grande tacape de guerra, apresentou-se no meio de todos, e gritou: “Râni Magé!” e quando parecia que ia dizer mais alguma coisa, voou para trás acertado por uma lança do seu rival que, nem bem tinha feito isso, continuava cortando, rindo, cantando e dançando. Aquele, eu sabia agora, não era um homem. Era algo diferente, algum demônio saído sabe-se lá de onde, e parece que os gentios também

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perceberam isso, porque começaram repentinamente a correr de puro desespero. Alguns ainda tentavam, em vão, domar a força da natureza que tinha surgido naquela planície. A última lembrança que tenho daquela tarde é um monte de bugres vindo em minha direção e eu ser devidamente pisoteado por guerreiros amedrontados em fuga. Acordei muitas horas depois. Já era manhã do outro dia. O campo estava cheio de feridos, mortos e desacordados, um fedor tremendo e eu agradecendo por estar vivo. Olhei em volta e lembrei do dia anterior, num susto. Nenhum sinal de Râni. Tiaraçu estava morto. Morria com ele sua confederação de selvagens. Um problema a menos para Portugal e Espanha, pensei. Mas eu não teria mais nada a ver com isso. Voltaria para minha terra, a saudosa Granada, longe daqui. Eu tinha visto o demônio de perto, a morte de olhos amarelos, e tinha sobrevivido. Ao menos a história, eu posso contar. O que vi, sei que vi, que vivi.” Muitas e muitas histórias leria ainda o destemido Dom Quixote, aliás Alonso Quijano, antes de começar sua empreitada em sua busca aventuresca. Algumas o encantavam pela nobreza de suas linhas, como a história do gigante Golias

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enfrentando e pequeno Davi; Outras, como “Orlando furioso” e as poderosas narrativas do heroico cavaleiro Amadis de Gaula encantaramno tanto que, a crer num certo escritor espanhol, resolveu que desbravaria o mundo à procura de perigos que exercitassem sua coragem, como os que tinha explorado nos tais livros de fantasia. Mas foi essa história miúda, de terras longínquas e homens vermelhos, que, ao chegar defronte a hora a que todos os mortais estão destinados, Quixotes e Sanchos, lembrou-se o fidalgo daquele pequeno livrete, e daquela estranha batalha entre dez mil e apenas um homem. E pensou que talvez estivesse sendo observado por dois olhos amarelos.

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CONTO 3

A BATALHA DOS RISCA-FACAS Roniel Felipe

“V

enha comemorar a virada do ano no Tilico’s American Bar. Incrível show com Wal da Sanfona, o tatu-bola do agreste e seu famoso acordeom que chora mais que homem chifrudo com dor de cotovelo. Se achegue para prestigiar o grande mito do xaxado, cujo sucesso ecoa até as bandas do Recôncavo Baiano. No intervalo do espetáculo haverá sorteio de panelas de pressão, garrafas de caninha e


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um burrico noviço. É a partir de zero hora. Traga sua família. E pode até trazer a inhaca da sua sogra. Réveillon com estilo é no Tilico’s" — anunciava a gravação reproduzida por um altofalante, posicionado estrategicamente na traseira de uma carroça. O veículo puxado com o esforço hercúleo de um burro velho, que estava longe de ter a força do animal anunciado no reclame (que possuía um cômico efeito de eco na última palavra), fazia um bafafá danado na principal avenida de Parari, pequena cidade paraibana, dotada da mais pura quietude. Essa seria uma cena comum, visto que se tratava de uma tradição para os pararienses, acostumados a ter como única opção de festa de virada de ano a bodega do Tilico, onde o rala-coxa comia solto até mesmo após o raiar do sol do primeiro dia de janeiro. Ao cidadão pacato não chegado ao mexe-mexe, não restavam muitas opções de lazer. A primeira era passar o réveillon em casa, provavelmente duelando com a palha de aço que enfeitava as antenas de TV em busca de um sinal decente, o que era bastante complicado em Parari no meio da década de 1990. Aliás, a caixa da diversão era uma realidade para apenas três famílias pararienses, sendo que uma delas, a do prefeito Lindomar dos Anjos, o

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popular Lindão, estava ausente naquele fim de ano. O gerente de Parari e sua parentela haviam viajado para Salvador. Quem também não era chegado na bagunça costumava rumar para a Paróquia de São José do Parari, a igreja da cidade, onde cristãos se reuniam para rezar terços diversos. Havia o dos homens, das mulheres e até mesmo os terços das crianças e, apesar da distinção das rezas, o clamor ecoava em uníssono por dias chuvosos. A chuva era raridade por aquelas bandas. Manter-se desmazelado em casa era a última opção, mas, desta vez, para o abalo de Tilico, que reinava absoluto como o promotor-mor de festas de Parari, um concorrente no mundo do show business havia dado as caras, alvoroçando a calma realidade daquele povoado habituado a navegar os mares do marasmo. "Réveillon é no Clube das Delícias, onde tudo tem um gosto especial. Venha começar o ano com o pé direito. Quem chegar antes da meianoite ganha uma dose da branquinha. É por conta da casa. Mulheres lindas, ambiente familiar. Show da virada com Raymundo 'The Ray' Aguiar, o Jimi Hendrix do agreste, o nego que toca guitarra com a língua, aquele que botou o sete peles para correr. Sensacional apresentação de forrock, a última sensação nas paradas musi-

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cais de todo o nordeste" — respondia do lado oposto o alto-falante postado sobre outra carroça publicitária, esta puxada por um jeguezinho descarnado, que marchava lentamente em sentido contrário ao puxado pelo burrinho acinzentado. Além da inédita dupla opção de lazer, o outro assunto que não saía da boca dos habitantes da cidade — que não chegavam a sete centenas —, era a profecia de Dona Sebastiana. Próxima dos três dígitos de idade, a velhota parecia ter sido banhada em leite de bezerro durante sua longínqua infância, já que a "Vó Tiana de Deus", como era conhecida, possuía uma vivacidade fora do comum. Mirrada e com dificuldades para andar, a anciã, que os sarristas de Parari diziam ter tido um caloroso caso de amor com Matusalém, pulava da cama bem cedo. Sua rotina era simplória e não diferia da vida dos seus conterrâneos. Ela levava as mãos envelhecidas a uma bacia de alumínio (também demarcada pelo tempo) e molhava o rosto. Enquanto olhava para si no espelho e aceitava as marcas da vida, Vó Tiana escovava suas longas madeixas embranquecidas antes de vestirse de preto. Em seguida, com uma cópia do Velho Testamento debaixo do braço, caminhava até a

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praça onde passava o dia a aplicar sermões apocalípticos. Até mesmo os passarinhos, que se escondiam do escaldante sol nordestino nos arvoredos que também serviam de consolo para os bebuns da cidade, pareciam acostumados com a gritaria da velha. Desta vez, ela havia encucado que o mundo iria acabar naquele 31 de dezembro de 1995, opinião que, como não poderia deixar de ser, chegou aos quatro cantos de Parari com a colaboração das beatas que viam Sebastiana de Deus como um exemplo a ser seguido. ''É hojeeeeee que o mundo acaba. Eu viiiiiiii. Um anjo me avisou que hoje as trevas vão tomar conta de Parariiiiiiiii. Há de haver muito gemido, os maxilares vão tremer feito vara verde e os dentes vão bater mais que tamanco de quenga no chão infecto desses estabelecimentos pecaminosos. Se arrependam de seus pecados, pararienses. Venham para a casa de Deus enquanto a porta estiver aberta. A fúria do Pai vai varrer a imundície e dizimar a pouca vergonha que impera em Parariiiiiiii''. E, ignorando o calor e mudando uma frase ou outra durante horas, Sebastiana mantinha-se fiel às suas convicções, berrando e alertando os demais moradores sobre o suposto dia do juízo final que estava bem próximo. O povo, de tão

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acostumado com as pregações matinais de Tiana, simplesmente a ignorava. Até os cães sarnentos, que acompanhados de moscas descansavam sob as árvores da praça, direcionavam à idosa olhares de puro descrédito. Como Parari era uma caixinha de fósforo, a Paróquia se localizava coladinha ao Tilico’s American Bar, que raramente estava vazio. Ali sempre havia uma alma alegre disposta a enfiar alguns trocados na máquina jukebox e selecionar clássicos do cancioneiro nordestino, mas era aos finais de semana que o bicho pegava. Era o louvor de um lado e a trinca zabumba, triângulo e sanfona do outro. Sons que, embora distintos, ecoavam pelas mal iluminadas ruas do município. Era no Tilico’s American que os autointitulados cabras-machos se encontravam. Lá, além de encherem a cara, caíam na gandaia e nos braços das mulheres da vida, profissionais do sexo odiadas pelas beatas lideradas pela velha Tiana, mestra na arte do linchamento moral. Essa complicada relação entre o baixo clero e a alta cúpula da vadiagem da cidade jamais foi boa, e complicou de vez quando Tilico, o orgulhoso proprietário do american bar mais famoso daquele fim de mundo — mesmo porque era único até então — teve um entrevero com Tuim. O antigo sócio era seu amigo inseparável desde

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criança. Juntos, eram conhecidos como os reis do cajueiros, tamanha a habilidade de colherem o fruto. A briga quase foi resolvida na base da peixeira, mas como se tratavam de dois homens de negócio, a situação foi solucionada de forma cordial. Cada um foi para o seu lado. A divisão de bens deu a Tuim o espaço onde funcionava um antigo depósito de bebidas, localizado a poucas passadas do Tilico’s Bar (os bares eram separados pela igreja da cidade). E foi lá que o baixinho que adorava cultivar longas costeletas, por alguns meses, na surdina, montou a estrutura do Clube das Delícias. Com a última noite do ano e da história da Terra se aproximando, os boêmios — que não entravam na igreja por acreditarem que iriam queimar assim que passassem pela porta do templo por culpa de seus pecados —, mantinham distância dos devotos, que se fechavam em casa e punham-se a orar desde os primeiros sinais de trégua do pai sol à chegada da mãe lua. Dentre os pararienses alheios às polêmicas que tomavam conta da cidade, estava Bezerrão. O moleque raquítico e mal desenhado fora batizado com as águas sagradas da igreja da paróquia como José Raimundo da Silva, mas ainda assim o chamavam de Bezerrão porque, após

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muita resistência, largou a teta da mãe aos 10 anos de idade. Seu pai, que havia deixado aquelas terras serenas em um pau--de-arara com destino a São Paulo, tornou-se figura ilegível no mundo, sumiu de vez. As más línguas afirmavam que o homem não havia aguentado conviver com as manias de Francelina, aquela que deu de mamar a Zé Raimundo até o danado criar buço e pelo no saco. Bezerrão tinha 14 anos e vivia livre como um beija-flor. Com a ausência da genitora, que passava parte dos seus dias em João Pessoa, onde trabalhava como empregada doméstica na residência de uma família muito bem de vida, o moleque dormia na casa de um tio. Seu tutor era um velho carcomido e doente que jazia com as costas no estrado da cama, apenas esperando a visita da morte — que demorava tanto para dar cabo dos anciões, que diziam que a caveira que carrega a foice do fim dos dias estava a viajar de jegue para Parari. As mesmas línguas que maldiziam os pais de Bezerrão também comentavam que a criança era um bicho abestado, que não batia bem das ideias. O falatório ganhou força pela cidade quando perceberam que o moleque, que evitava a escola como o diabo foge da cruz, passava o dia todo olhando para o céu, como se esperasse a

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chegada de algum extraterrestre ou a chuva que teimava em não cair. Alguns diziam que o menino era surdo e mudo, quando, na realidade, Bezerrão era realmente calado, quieto. Ignorava até mesmo as outras crianças. Seus dentes malcuidados só eram vistos em duas ocasiões: quando abria a boca para encher o pandu de porcarias ou quando a ventania úmida trazia alívio ao município e aos seus moradores. O menino mudava a feição e saía correndo pela cidade empunhando uma capucheta fabricada com páginas de jornais antigos, que o tio esforçava-se para ler enquanto a lenta morte não batia à sua porta. Para Bezerrão, o horário não importava, até porque nem conhecia números. De dia ou de noite. Se houvesse um sopro a dar vida à mambembe pipa, lá estava tentando fazer o pedaço de papel alçar voo. Com suas pernas longas e joviais, ele cruzava os limites da cidade em questão de minutos. Sem lenço e sem documento, brincava de filho do vento. E como ventava naquela noite de 31 de dezembro! Se a brisa intensa preocupava as beatas, tementes de que o conteúdo sob suas anáguas fosse marotamente revelado, os homens de Parari, animados com o clima de festança que já imperava no ar da cidade — já estavam a beber desde o meio-dia —

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queriam ver o circo pegar fogo. Quando o sino da paróquia onde se encontrava a imagem de Nossa Senhora dos Milagres badalou por onze vezes seguidas, o front da batalha dos risca-facas já estava definido. O roliço e bigodudo Wal da Sanfona carregava no colo o seu companheiro acordeom no Tilico’s Bar. Lá, o sujeito que vestia uma camisa estampada que ornava com a calça impecavelmente branca e uma bota de bico fino de couro de jacaré, dedilhava carinhosamente o instrumento que realmente parecia chorar. O burburinho já havia se iniciado, assim como uma pequena fila para adentrar o bar, que tinha um único ponto de acesso. A iluminação avermelhada esquentava ainda mais o ambiente e a festança já era quase realidade. Enquanto isso, Tilico mantinha-se à porta de seu estabelecimento, só de butuca no movimento do bar rival, separado pela igreja. Tuim repetia o gesto do ex-sócio e agora adversário do ramo do entretenimento familiar. Raymundo "The Ray" Aguiar havia acabado de desembarcar pomposamente de sua Variant pintada de preto e adesivada no vidro traseiro com os dizeres "nave mãe". Ray cumprimentou Tuim com a canhota, já que na direita carregava sua famosa guitarra, que descansava em um case

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cheio de adesivos e fotos de voluptuosas mulheres. Dentro do Delícias já havia algumas dezenas de pessoas esperando o músico que, além do vistoso cabelo black power, tinha uma fita amarelo-manga amarrada à saliente testa. Um macacão branco apertado, que denunciava a má forma física de Ray, e uma botina de roceiro completavam o chamativo visual do negro alto da barba falha. Os que permaneciam do outro lado da rua, ainda sem escolher onde iriam estar quando a zero hora chegasse, mantiveram-se enfeitiçados pelo carisma dos músicos que abrilhantavam aquela promissora noite. Enquanto consideravam o que lhes seria melhor, a porta da igreja foi aberta estrondosamente. Fazendo o alarde costumeiro, Sebastiana de Deus avisou que a hora da verdade estava bem próxima. O vendaval que se fazia cada vez mais intenso fez com que a voz rouca da velha sacristã fosse ampliada, mas, como de costume, ninguém lhe deu bola. Irritada com a descrença alheia, a Vó Tiana olhou para a lua, que estava cheia e vistosa e se escondia por trás de espessas nuvens acinzentadas. Como um lobo-guará, a anciã uivou. "Logo vocês vão pedir por perdão, mas não haverá clemência". Com força descomunal para

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uma mulher de 93 anos, ela bateu as portas do santuário com gosto. Tilico e Tuim, que haviam crescido em Parari e estavam acostumados com os sermões de Tiana, olhavam todo aquele teatro com desprezo. Acreditavam que se o mundo fosse acabar, que as pessoas dele se despedissem em seus respectivos bares. Era uma questão pessoal. Tamanho era o peso do rancor que carregavam, que nem mesmo as cantigas de positividade que escapavam pelas frestas da entrada da igreja eram capazes de diluir o mal que desejavam um ao outro. A amizade do passado havia sido enterrada. Enquanto se estranhavam fixamente, como estátuas inimigas congeladas pelo tempo e condenadas a passar a eternidade se encarando, Bezerrão, em êxtase com as condições climáticas, corria alegre da vida. O tempo estava mudando rápido e raios iluminavam o céu de Parari, mas o menino sorria como nunca sorriu em toda sua simplória existência. Sua capucheta estava a voar alto como nunca havia voado. A cada descarga elétrica seguida de um ruidoso trovão, Bezerrão gargalhava intensamente e os seus olhos escuros brilhavam. Delirante, corria de um lado para o outro, rápido como um calango do cerrado. A rua, assim como toda Parari, era o seu reino, já que o duelo dos bailes

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risca-facas havia começado, atraindo os gatos pingados indecisos. Ainda não era meia-noite, mas Wal, acompanhando de uma linda cabocla no triângulo e um negro cheio de gingado na zabumba, acariciou seu acordeom e, com um xaxado de levantar até defunto, acendeu o estopim da festança. Havia sido dada a largada para o amassa mamão. O primeiro pipoco da batalha foi disparado. O guitarrista famoso pelo forrock, grande atração do Clube das Delícias, não ficou atrás. Ray, o Jimi Hendrix do agreste, inflamou o ambiente com seus acordes certeiros, acompanhado pelas habilidosas mãos de um tecladista. E quem ali estava se assanhou com o som dançante e as luzes néon multicoloridas. Faltavam cinco minutos para um novo ano e ninguém queria saber se o mundo estava acabando ou não. Ignoravam a contagem e caíam na farra. Uns bebiam, outros dançavam e, no calor do momento, todos transpiravam. Corpos se entrelaçavam nos cantinhos escuros. Nem mesmo o vento frio que estranhamente chegou à cidade seria capaz de apagar aquela ardência de sorrisos e lascívia que tomava conta do ambiente.

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Quando o relógio da paróquia marcou a chegada de um novo ano, Parari estava do jeito que o diabo gosta. As beatas, fervorosamente subiram o volume de suas vozes e o mesmo aconteceu com as caixas de som dos botecos. O sino da igreja também entrou na disputa, gerando uma poluição sonora sem igual na pequena cidade. Após a décima segunda badalada do sino, repentinamente, Parari apagou. Tanto a guitarra de Ray quanto a sanfona de Wal ficaram mudas, silenciadas. O único som que se ouvia, além do cricrilar dos grilos, era a voz das religiosas que oravam cada vez mais alto e clamavam pelo perdão divinal. Os casais envoltos se afastaram, tornaramse estranhos uns aos outros. A única luz que chegava até os bares era a dos clarões relampejantes. Nessa hora, alguns foliões passaram a fazer o sinal da cruz e, baixinho, acompanhavam o coro religioso que vinha da igreja e chegava até os botequins. E quando um raio certeiro atingiu a árvore que ficava do outro lado da rua dos bares, o temor tomou conta de todos os festeiros que estavam no Tilico’s e no Delícias. Não houve quem não ficou arrepiado com a cena. Foi o momento de, pela primeira vez em suas vidas, darem crédito às profecias da Vó Tiana de Deus.

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A tão desejada chuva havia enfim chegado, mas em forma de tempestade. Um outro clarão, seguido de um estouro enorme, fez com que o desespero e o arrependimento tomassem conta daquelas almas folionas. Shirley Mclaren, a mais famosa das prostitutas da cidade, foi a primeira a se arrepender de seus pecados e saiu em disparada até a igreja. Ignorou o vestido vermelho que havia comprado especialmente para a virada do ano e foi para a rua. A maquiagem dos olhos borrados pelos pesados pingos de chuva transformou complemente seu rosto. Lacrimejando, socava a porta do templo implorando por ajuda. "Tiaaaaana. Tiaaaaana. Eu me arrependo diante do meu Senhor. Me perdoa Tiaaaaaaaaaninha". Em poucos minutos, os dois bares estavam completamente esvaziados. Uma pequena multidão batia e forçava a porta da igreja. Uma choradeira danada tomou conta do ambiente. Todos ali, espremidos, aflitos e angustiados implorando pelo perdão, por uma nova chance. Tilico e Tuim, que há pouco demonstravam se odiar, se abraçavam e choravam como irmãos que há muito haviam se perdido um do outro pelos caminhos da vida. Wal clamava por Padre Ciço e Ray sacudia a vistosa cabeleira e entoava um blues em homenagem ao outro Rei que

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supostamente estava a chegar. A epifania se fazia completa com bêbados arremessando garrafas de cachaça para longe, jurando que nunca mais iriam pingar uma gota d’água ardente na goela. Até mesmo Moacyr Manquitola, um aleijado que vivia a pedir dinheiro para os cidadãos de Parari, desvencilhou-se das suas muletas e saiu correndo em círculos pela rua. Talvez fosse milagre, embora tardio. Do lado de dentro, as beatas mantinham a vigília quando Vó Tiana olhou para a imagem de Nossa Senhora dos Milagres. Naquele momento, em que o tempo parecia paralisado, o coração que batia em compassos incertos recebeu um sopro de compaixão. "Vá, minha filha. Ajudai os seus irmãos aflitos" foi a frase que Sebastiana jurava de pés juntos ter ouvido da santa. Ela foi até a porta da igreja e escutou os murmúrios, o ranger de dentes e sentiu o aroma do arrependimento. Até quem não sabia rezar, como o seu Brasilino, que dizia que iria para o inferno por ter enfiado a peixeira no bucho de um cabra que desonrou sua filha, passou a fazer suas preces. Com as portas abertas, todos adentraram o templo e prontamente se ajoelharam com as mãos direcionadas para o céu. A comoção tomou conta da igreja e, lá fora, a chuva torrencial

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parecia não ter fim. A cada estrondo, um arrependimento. E assim se deu a mais longa madrugada da história de Parari. Com o fim da tempestade, veio a bonança. Sebastiana, como pastora de um novo rebanho, abriu a porta do templo, que recebia pelas frestas os raios de sol do que ela acreditava ser um novo mundo, mas não era. A cidade estava lá, mais quieta do que nunca, deserta. Os bares, obviamente vazios, melancólicos. Ninguém se atreveu a falar. Estavam estarrecidos, era como se estivessem acordando de um sonho. Ao olhar para o fim da rua, Sebastiana, que estranhamente passou a enxergar melhor após supostamente ter dialogado com a santa, avistou um corpo caído. Seguida de perto como Moisés foi seguido pelo seu povo na travessia do Mar Vermelho, a passos curtos, a velha caminhou até o seu campo de visão estar perfeito. Era o corpo de Bezerrão, que ainda segurava o latão onde enrolava a linha de sua estimada pipa. A capucheta parecia descansar após o voo mais alto de sua trajetória. Estava ali, paradinha, quieta, estacionada no poste que era ligado à caixa de energia que levava luz aos pararienses. Mesmo inerte e sem vida, o Bezerrão tinha no rosto aquele sorriso que lhe era característico.

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Aquele jeito de bobo alegre que se sentia livre e feliz enquanto cruzava Parari de ponta a ponta, acompanhado da pipa feita com o jornal do velho tio. Todos deram as mãos. As putas e as beatas, os brancos e os pretos, os festeiros e os recatados. Juntos, puros e impuros rezaram e velaram o corpo do José Raimundo da Silva, que foi enterrado ao lado da estrada de terra que dá acesso à pacata Parari. Até mesmo o ausente pai de Bezerrão apareceu para dar adeus ao filho. Desde então, ninguém mais tocou no assunto, nunca mais se falou da batalha dos riscafacas. Mas quando Lindomar Lindão, o prefeito de Parari, voltou de viagem, não entendeu a placa de boas vindas da cidade que claramente havia sido alterada. O "Bem-vindo a Pariri" deu lugar ao "Bem-vindo a Bom Menino da Capucheta", o moleque que de santo não tinha nada, mas mostrou que, na hora do aperto e diante da força da mãe natureza, da ira de Deus ou do desconhecido, somos um grãozinho de areia diante da imensidão do sertão.!

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CONTO 4

PEDRAS QUE CANTAM V. E. Simeoni

E

u sei o quanto você adora esse retrato, então pensei que seria o presente perfeito de despedida. Talvez seja meio fúnebre pensar assim, mas sejamos sinceros, ninguém é eterno. Deixo também esse bilhete para que você leia quando tiver idade o suficiente para entender, até lá eu não estarei mais aqui. Quando me lembro dos dias em que eu era o garoto de calças curtas da moldura, não consigo


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deixar de sentir uma pontinha de saudade. Principalmente da moça que aparece ao meu lado, minha irmã Clara. Mas não é sobre isso que quero falar, na verdade quero te contar sobre o homem que pintou esse retrato. Mesmo nos dias de hoje o sangue me gela cada vez que penso nele... Minha história começa no verão de 1926, época que marcava o início do Festival do Cacau na cidadezinha de Novo Horizonte. Festas assim atraem muitos forasteiros que chegam com suas carteiras gordas e nenhuma noção de como a banda toca por esses lados. Era com isso que eu contava quando fui ao porto, afinal, quem não quer uma alma caridosa que indique os melhores lugares ou quem sabe dê uma ajudinha com a bagagem? Naquela época me chamavam de trombadinha, hoje eu seria um guia turístico. Assim que a chalana ancorou, marinheiros posicionaram uma rampa para que os passageiros desembarcassem. A primeira a descer foi uma freira de bochechas rosadas e logo uma fila se formou atrás dela. Enquanto eu cuidava da minha vida, um cara que parecia ser o imediato começou a gritar com os marinheiros e, mais rápido do que uma fagulha consegue queimar uma carga de pólvora, eles montaram outra

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rampa pela qual saíram uma dúzia de carregadores com malas e caixotes. Bem menos apressado, um homem de ombros largos e chapéu de vaqueiro foi o último a desembarcar pela rampa improvisada. Ele trocou duas palavras com um dos carregadores e acendeu um cigarro. Quem quer que fosse, devia ser alguém importante, só alguém importante causaria tanta comoção. “Ocê perdeu alguma coisa pivete?”, rosnou ao perceber que estava sendo observado. Como não gosto de abusar da boa vontade dos outros, principalmente de quem tem o dobro do meu tamanho, dei um sorriso amarelo e tratei de sumir de vista. É claro que ninguém se orgulha de ter de sair com o rabo entre as pernas, mas tinha outra coisa me incomodando. Algo naquele sujeito era estranhamente familiar, só não sabia o quê. Fiquei tão perdido nos meus pensamentos que mal notei o idiota parado no meio do caminho até esbarrar nele e cair de bunda no chão. “Oah...” ele girou a cabeça surpreso. “Tudo bem aí?” O terno engomadinho e cabelo loiro cautelosamente penteado para trás praticamente gritavam “almofadinha da cidade grande”. “Desculpa senhor...”

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“Você precisa ter cuidado”, me ajudou a levantar. “Juro que nem te vi chegando.” Ele carregava uma maleta pequena com as bordas gastas, foi aí que lembrei que não tinha ganhando nenhum trocado ainda. O tal sujeito não parecia grande coisa, mas quando a Dona Sorte te estende a mão é melhor não se desfazer dela. “Não querendo ser intrometido, mas o senhor veio na chalana, não é?” Ele fez que sim com a cabeça. “Já tem onde ficar?” “Bem, um dos passageiros recomendou um Hotel chamado Bamerindus”, ele coçou a cabeça. “Por que a pergunta?” “Ah você não vai querer ficar lá, a comida é ruim e os quartos são caros”, mentira. “Sem falar que a dona é uma velha rabugenta”, essa parte era verdade. “Hum... Sério?” “Sério! Por que você não fica na Três Corações? É uma das melhores hospedarias da cidade e fica bem pertinho daqui. Aposto que o senhor está cansado, se quiser eu posso carregar a sua mala e te mostrar o caminho.”

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Ele me encarou por um tempo e então abriu um sorriso, às vezes é fácil demais. “Muita gentileza a sua.” Gentileza uma ova, estendi a mão para receber minha gorjeta. Ele pegou a minha mão e apertou num cumprimento animado. Admito que fiquei sem graça, qual era o problema dele? Insisti estendendo a mão livre. “Temos um acordo?” “Onde estou com a cabeça?” Parece que ele finalmente entendeu, pois sacou a carteira e dela tirou uma nota de mil réis, quase pude ouvir os sinos celestiais tocando. “A propósito, meu nome é Fagner.” “Todo mundo me chama de Gusminha”, peguei a maleta dele, não pesava quase nada. “É por aqui.” Seguimos em direção ao nosso destino pela rua principal onde se concentrava a maior parte do comércio de Novo Horizonte. Quando digo comércio, me refiro a um barbeiro, três lojinhas de bugigangas e a mercearia do velho Fiorello. Apesar disso, meu novo amigo parecia realmente fascinado com a paisagem. “Sua primeira vez em Novo Horizonte?”, perguntei. “Ah sim, essa cidade lembra bastante o vilarejo onde cresci.” Pedras que Cantam – V. E. Simeoni


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O velho Fiorello varria a calçada com a ajuda da filha caçula quando cumprimentou com um singelo “taaarde”. “Engraçado como o povo daqui é amistoso”, observou com interesse. “Um sorriso abre mais portas que uma cara amarrada, pelo menos é o que a minha irmã diz.” “Ela tem razão, na capital de onde eu venho, ninguém parece ter mais tempo pra isso. Fazer o que se esse é o preço do progresso.” Para falar a verdade não entendi muito bem essa última parte, mas achei melhor ficar quieto para não parecer estúpido. Conforme nos afastávamos do centro, as ruas foram se estreitando e nosso destino já começava a dar as caras. “O senhor veio pelo festival?” “Acho que ouvi os outros passageiros comentando alguma coisa, parece divertido.” Como prometido, o que a Três Corações tinha de simples na aparência, compensava no preço e conforto. Com um muro de tijolos a vista e uma larga varanda onde os hóspedes se reuniam para jogar conversa fora ou fumar um cigarro, aposto que você adoraria. “Pode apostar, a cidade inteira vai estar lá, basta seguir o barulho naquela direção”, apontei para rua que levava a praça. “Não tem como errar.” Pedras que Cantam – V. E. Simeoni


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“Vou tentar dar uma passada se der tempo”, ele pegou a maleta de volta. “Obrigado.” “Eu que agradeço.” Clara e eu morávamos em um sobradinho modesto no final do bairro João Leite. Sabe como é, um teto pequeno com alguns buracos ainda é melhor que teto nenhum. Ao entrar pela porta notei um bilhete e uma fatia de pão com manteiga em cima da mesa da cozinha: “Tem roupas limpas em cima da sua cama. Estarei te esperando perto da fonte. PS: Não se esqueça de trancar a casa.” – Clara. Todos os anos Clara costumava preparar doces para vender no dia do Festival. Cocadas brancas, pamonhas e maçãs carameladas, ela enchia uma cesta e não voltava para casa até a cesta estar vazia. Eu sempre ia junto e adorava, afinal, era o único jeito de ficar na rua até tarde sem levar bronca. Apesar do cansaço estar me puxando pelas canelas, eu me sentia agitado demais. Aquela noite prometia muito, mais do que eu poderia imaginar. Acabei cochilando um pouco, a lua estava alta no céu quando tranquei a casa e saí. A cada passo do caminho mais e mais pessoas surgiam Pedras que Cantam – V. E. Simeoni


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indo na mesma direção, não estava exagerando ao dizer que a cidade inteira estaria lá. Na praça o entusiasmo era contagiante, forró caipira dava o tom e o povo correspondia arrastando os pés em um baile pra lá de animado. Comida a vontade, gincanas e um bingo valendo uma novilha, não é à toa que essa era uma das melhores épocas do ano. Depois de uma parada rápida para comprar pipoca, atravessei a praça e fui direto para a fonte onde o bilhete disse que minha irmã estaria. De longe já dava para vê-la, vestido florido com um avental rosa, ela segurava uma cesta feita de vime. Mas algo não parecia certo, cada passo em direção a ela só aumentava minha certeza disso. Clara olhava fixamente para frente e estava pálida como um lençol. O motivo? Bem, ele estava encostado em um poste com um cigarro na boca e o mesmo chapéu de vaqueiro que usara naquela tarde. “Tudo bem aí?” Perguntei. Nada, era como se ela nem tivesse escutado. O sujeito de chapéu agora me observava e sorria, mesmo hoje é difícil de explicar, mas é como se ele estivesse escondendo alguma coisa atrás daquele sorriso, algo que me deixava inquieto. “Ei!”, puxei-a pelo cotovelo, isso fez com que ela se virasse aturdida. “Clara?”

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“Ah Gusminha...” suor escoria por sua testa. “Você demorou.” Meus olhos voltaram para o sujeito de chapéu, contudo ele havia desaparecido como se nem tivesse estado lá. Por um momento fiquei esperando, acho que queria ter certeza de que ele não voltaria. “O que foi isso?” Perguntei. “Desculpa, me distrai um pouco.” “Não... Tô falando do homem, aquele esquisito com chapéu.” “Ah ele...” fez uma pausa. “É só um freguês malcriado, nada demais.” “Mas...” “Olha só para você, tá todo torto”, ela se curvou para ajeitar a gola da minha camisa, seu cabelo ondulado descia em uma longa trança que quase tocava o chão. “Assim é melhor. Você se lembrou de trancar a casa?” Assenti meio ressabiado. Sabe, se você conhece alguém a vida inteira é mais fácil dizer quando esse alguém está mentindo, certo? Hum... quem sabe era só coisa da minha cabeça. “A dona Olga me pediu pra dar uma passada na barraca dela pra deixar uma dúzia de pamonhas quando tivesse tempo”, ela me deu a mão. “Vamos?”

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Nós andamos até o outro lado da praça como se nada tivesse acontecido. Lá ficavam as barraquinhas de guloseimas, uma do lado da outra, elas formavam um semicírculo com mesas distribuídas no centro. Dona Olga costumava montar sua barraca de tortas no canto direito, onde a velha enxerida cuidava da vida de todo mundo. Nesse meio tempo o conjunto que tocava na festa fez uma pausa, o que deu a oportunidade ao Frei Jaime de subir no palco para lembrar os presentes que ainda dava para comprar uma cartela do bingo da novilha. “Nossa! Minhas costas estão me matando.” Clara tocou a coluna e fez uma careta quando nós chegamos. “Quer que eu carregue a cesta?” “Não precisa, depois que eu terminar aqui a gente pode ir dar uma volta na roda gigante”, ela deu uma risadinha. “Isso é, se você acha que não vai vomitar dessa vez.” “Ha ha, engraçadinha.” Sei o que você está pensando, mas o que posso fazer? Nunca fui fã de alturas e uma coisa era certa, esse ano a roda-gigante era bem maior. Adornada por luzes coloridas que juntas formavam o desenho de uma estrela, dava para ver a cidade inteira lá de cima.

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“Bacana, né?”, disse uma voz familiar do meu lado. “Eu já andei umas três vezes.” Do nada o Sr. Fagner estava plantado do meu lado, sua atenção estava dividida entre admirar a rodagigante e o cachorro quente na mão dele. “Sr. Fagner, então você veio. O que tá achando da festa?” “Muito boa, principalmente a comida”, ele deu uma mordida no sanduíche. “A propósito, quem é a moça?” “Me chamo Clara, sou a irmã do Gusminha, prazer.” “Isaque van Fagner, o prazer é meu” os dois se cumprimentaram. “Ele já tinha me falado da senhorita, mas esqueceu de dizer que era tão bonita.” “Ah, obrigada” ela forçou um sorriso sem jeito. “O Sr. Fagner chegou da capital hoje de tarde na chalana”, comentei. “Verdade? E que ventos bons o trazem a Novo Horizonte?” Clara anuiu. “Se é que posso perguntar.” “Pode sim, foi até bom, pois eu preciso de ajuda”, ele tirou uma foto um tanto judiada do paletó, nela um soldado de expressão severa batia continência. “Ele atende pelo nome de Oscar Batista, alguns de vocês conhece?” Pedras que Cantam – V. E. Simeoni


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Dei de ombros. “Essa fotografia é uma das poucas coisas que mamãe me deixou quando morreu. O recruta da foto... Acho que é meu pai. Não lembro muito bem dele e mamãe não gostava que eu perguntasse, acho que é porque ele abandou a gente... Sei lá, agora que ele é a única família que tenho, gostaria de pelo menos saber se está vivo ou morto.” Eu podia imaginar como ele se sentia, também nunca tive um pai, minha irmã era a única família que eu conhecia. “Tenho a impressão de que eu já vi esse homem antes, se o cabelo fosse um pouco mais ralo...” Clara ponderou um instante e deslizou os dedos pela bochecha. “Até que lembra bastante um cacheiro viajante que o povo daqui chama de Cadeirada.” “Ohmessa, será?! E aonde eu encontro esse tal de Cadeirada?!” “Não faço ideia... Desculpa. Ele aparece todo mês, vende o que tem pra vender e vai embora sem avisar.” Ela devolveu a foto. “Hum...” ele se encolheu e encarou os próprios pés. “Não fique assim, faz pouco tempo desde a última vez que ele apareceu, logo ele volta e o você pode ter certeza.” Pedras que Cantam – V. E. Simeoni


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“Isso também te dá uma desculpa pra ficar mais alguns dias, se o senhor for atrás dele é perigoso os dois se desencontrarem”, emendei. “Tem razão, seria melhor se...” A conversa seguiu e para dizer a verdade, não lembro muito bem o que eles disseram, pois não importava. Quando o homem de chapéu emergiu no meio da multidão acompanhado por três capangas, nada disso importava. Discretos como uma brisa eles se aproximaram e tão matreiros como lobos, eles nos cercaram. Sem fazer cerimônia, ele foi até a minha irmã passando na frente do Fagner que parecia ainda não ter se dado conta da situação. “Que agradável surpresa, Suzete”, disse o homem de chapéu, Fagner até abriu a boca para protestar, porém foi prontamente ignorado. “Não me chame assim... Você tá bêbado.” “Desde quando algo assim te incomoda?” “É melhor você ir embora...” “E pensar que quando meu véio mi mandou pra cá eu quase dei o balão nele”, ele a agarrou pela cintura e a puxou com aspereza para perto de si. “Quem diria que eu ia achar minha polaquinha preferida nesse fim de mundo?” “Heitor...” ela tentava afastá-lo sem muito sucesso. “Isso foi há muito tempo, as coisas são diferentes agora...Não quero problemas.” Pedras que Cantam – V. E. Simeoni


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Para mim já era o bastante, nenhum imbecil tratava minha irmã daquele jeito. “Tira esses cascos de cima dela agora ufff...” um dos homens dele me agarrou, minhas pernas ficaram se debatendo no ar, não dava para me soltar. A cena deixou Clara aflita, ela soltou a cesta que caiu espalhando os doces pelo chão e veio correndo em meu socorro, porém Heitor atravessou seu caminho de novo. “Quem é o guri? Seu filho?” “Não importa, solta ele!” “Olha só! Essa onça tem unha.” A frase foi acompanhada por uma risada que lembrara o grunhir de um porco. “Num precisa disso se ocê sabe o que eu quero.” “Pois vai ficar querendo, saí da minha frente!” “Dá o fora caipira idiota!” Gritei. “Cala a boca Gusminha!” Clara rosnou. Heitor se manteve firme conforme a tensão aumentava, mas ele parecia estar se divertindo. Foram poucas as vezes que vi minha irmã reagir daquele jeito, seus olhos faiscavam. “Escuta bem, eu saí dessa vida pra nunca mais voltar e prefiro cair morta do que deixar você me tocar outra vez, satisfeito? Agora sai da minha frente!”

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Tais palavras atingiram Heitor com a força de uma pedrada nas costas, o sorriso sarcástico abandou seu rosto para dar espaço a uma careta carregada de fúria. Seus capangas se entreolharam, assombrados com o que sabiam que estava por vir. Primeiro o silêncio, depois a resposta chegou na forma de um punho fechado que atingiu Clara a fazendo tombar de uma só vez como se ela fosse feita de palha. “Clara!” “Num sô homi de aceita esse tipo de disfeita, eu tenho brio! Sua piranha!” A confusão atraiu o interesse dos curiosos que ali passavam, rostos conhecidos que eu via quase todo santo dia, porém ninguém tentou nos ajudar. Com passadas reticentes e uma cabeça baixa, Fagner foi até o homem de chapéu. Se essa era a nossa melhor chance... Ah Deus... após limpar o suor da testa, ele disse alguma coisa, mas foi tão baixinho que nem o próprio Heitor entendeu. “O quê?!” Heitor rosnou. O Sr. Fagner repetiu o-que-quer-que-tenhasido, mas foi como tentar apagar a chama da fúria de Heitor com gasolina. No instante seguinte, quando o relógio pareceu parar, um estampido do revólver ecoou entre os suspiros de espanto da multidão que assistia ao espetáculo. Quando eu

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abri meus olhos novamente, Fagner estava caído se retorcendo segurando um dos pés, seu sapato de pelica ganhara tons de vermelho escuro. Uma pequena nuvem de fumaça saia do cano do revólver que Heitor segurava. “Olha o que ocê ganha por tentar banca o valente”, não satisfeito, ele suspendeu o forasteiro pelo colarinho. “Não... Por favor... Eu...” O que aconteceu em seguida foi de revirar o estômago, imagine que a coronha do revolver fosse um martelo e o rosto de Fagner fosse um prego. “Ninguém...” Pow. “disfaz...” Pow. “da minha...” Pow. “pessoa...” Pow. A cada golpe o lado esquerdo da face de Fagner foi se deformando até se tornar uma massa inchada banhada a sangue. Aquele calvário só teve fim quando Heitor sentiu o cano de uma winchester lhe tocar a nuca. “Senhô delegado... Meu pai não vai gosta nem um poco disso.” “É só por causa do apreço que tenho pelo seu pai que não meto uma bala na sua cabeça agora mesmo. Agora solta o rapaz.” Quando o delegado finalmente decidiu dar o ar da graça, ele trouxe consigo meia dúzia de

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soldados armados e ansiosos por um pouco de ação, mesmo Heitor tinha que admitir a derrota. “Sabe como é, foi só um mar entendido”, disse ele ao obedecer. “Aposto que sim.” O delegado deu um sinal que fez os soldados trabalharem, um deles foi checar Fagner enquanto o resto tratou de colocar Heitor e seus comparsas em algemas. Eu bem que gostaria de ter o gostinho de ver aquele maldito sendo jogado no fundo de gaiola, mas haviam coisas mais urgentes. Assim que o soldado me livrou do gorila que me segurava, corri o mais rápido que pude até minha irmã. Frei Jaime, um sacerdote de fala mansa e rosto finos, a segurava nos braços. “Não precisa chorar meu filho, ela só tá dormindo.” “Não t-tô chorando”, eu negava, minha voz trêmula não. “Muito bom, você é um menino corajoso, não é? Eu e o soldado Brasil vamos levar esses dois até a minha casa pra que eu possa cuidar deles, tem alguém que pode ficar com você?” Fiz que não. “Então seja bonzinho e pega a cesta da sua irmã, você vem junto com a gente.” Se tem uma coisa que eu odiava em ser criança é que ninguém te leva a sério. Pedras que Cantam – V. E. Simeoni


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“Pode subir agora meu filho”, chamou o Frei do alto da escadaria. Finalmente, estava agoniado de tanto esperar. Diferente de mim, o soldado Brasil era a serenidade em pessoa, tão sereno que bastou se ajeitar em uma das poltronas do Frei para adormecer como uma pedra. Subi as escadarias e a cada degrau ficava mais difícil imaginar o Frei morando num casarão daquele tamanho sozinho, o recinto era enorme. Pelo que ouvi falar o antigo proprietário, Padre Mathias, teve que voltar às pressas para a Itália por questões familiares e por lá acabou ficando. Como a casa estava vazia pareceu natural o Frei morar nela. Após um longo corredor carregado com imagens de santos e quadros estranhos cheguei até o quarto de hóspedes que havia se transformado em uma enfermaria improvisada. Clara repousava em uma das quatro camas do cômodo. Mesmo com o olho roxo, ela parecia bem. “Gusminha!”, me envolveu num abraço apertado. “Nunca pensei que as coisas fossem chegar a isso... Desculpa...” Nada falei, pois não sabia o que dizer, só estava feliz por ela estar bem. Minha alegria só durou até o Frei abrir a boca.

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“Você teve sorte minha filha, o seu amigo nem tanto...” A duas camas de distância jazia o Sr. Fagner ou pelo menos o que sobrou dele. O pé direito completamente enfaixado ao mesmo tempo em que dois terços da cabeça estavam envoltos em bandagens, ele fazia um som desagradável que lembrava uma vespa zunindo quando respirava. “Ele perdeu dois dedos do pé e bem... Foi uma senhora surra, acho que ele pode ficar cego de um olho. Se existem outros danos só o tempo dirá, eu dei algo pra dor que vai fazer ele dormir um pouco.” “Ah não... Pobre coitado...” Lágrimas começaram a brotar pelo rosto de Clara. “É minha culpa... Eu...” “A culpa é daquele maldito! Não sua!” Interrompi. “Shhh olha o tom filho”, murmurou o Frei. “Mas afinal, o que aconteceu na praça?” Clara baixou os olhos, sua boca abria, contudo as palavras morriam antes que ela pudesse dizê-las. “Calma filha”, o Frei tocou o ombro dela. “Quer que eu peça pro Gusminha sair do quarto?” “Não... Ele conhece a história, pelo menos quase tudo...” ela olhou para mim com tristeza. “No outono em que eu fiz quinze anos, a tuberculose levou minha mãe e o senhor sabe... Quando

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não se tem ninguém e a fome aperta de um jeito que... Q-que faz o desespero parecer um buraco sem fim, a gente acaba fazendo qualquer coisa. Eu caí na vida... os primeiros dias foram os mais difíceis...” ela respirou fundo. “Na casa onde eu trabalha haviam várias mulheres com histórias parecidas, uma delas tinha um garotinho que vivia agarrado na sua saia, esse era o Gusminha. Eu costumava cuidar dele quando sua mãe estava ocupada. Passados alguns meses conheci o Heitor Amaro e fiquei encantada por ele. Quem não ficaria?” Uma risada nervosa. “Bonito, rústico e rico, todas as meninas queriam ele, mas ele só tinha olhos pra mim. Ingênua, eu sonhava que talvez ele seria minha saída pra longe daquela vida. O problema é que ninguém consegue esconder a verdadeira face por muito tempo e não demorou muito pra eu descobrir que Heitor era problema. Sempre que ele bebia ficava violento e ele sempre tava bebendo. Não demorou pra eu começar a ficar com medo dele, tanto medo que eu comecei a inventar desculpas pra ficar longe dele. Às vezes dava certo, às vezes não. Numa noite fingi que estava passando mal e outra garota chamada Rosana tomou meu lugar, essa foi a última vez que vi ela respirando. No outro dia a encontraram num pasto com a garganta cortada...” “E foi ele mesmo?” Questionou o Frei. Pedras que Cantam – V. E. Simeoni


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“Tenho pra mim que foi... Mas sabe como é, a vida de uma puta não vale o suficiente pra incomodar o filho do fazendeiro mais rico da região. Por volta da mesma época a mãe do Gusminha foi embora com um marinheiro com quem tava tendo um caso, deixando ele pra trás.” Ao ouvir essa parte o Frei me encarou, a empatia dele era quase insuportável. “Eu tinha ficado muito apegada a ele pra deixar que o mandassem pra um orfanato, então enrolei o Gusminha num cobertor, juntei minhas economias e fugi escondida num vagão de cacau. Se não fosse pelo medo do Heitor, eu nunca teria tido coragem pra isso.” Um silêncio desagradável pairou no quarto, não se ouvia nada além daquela respiração com som de vespa. “Sete anos depois e eu achando que seria diferente, como fui burra...” “Acabou querida, ele está preso agora.” O Frei foi até a porta. “Por que vocês dois não descansam um pouco?” “O senhor tem razão, vai ficar tudo bem.” Ela abriu um sorriso. “Obrigada Frei.” Lembra quando eu disse que é mais fácil saber se alguém está mentindo, quando você conhece esse alguém a vida inteira? Ela estava mentindo.

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Todo aquele papo me deixou um gosto amargo na boca, eu precisava fazer algo e precisava ser depressa. Passava das três da madrugada quando saí de fininho do quarto e desci a escadaria. Lá embaixo Soldado Brasil hibernava. Um fiapo de saliva brilhante pendia no canto da boca. Como a porta da frente estrava trancada, tive que sair pela janela da cozinha e pular o muro. Fazia um frio danado de madrugada e não havia quase nenhuma alma na rua, mesmo assim as luzes do Festival ainda brilhavam com a força de brasas numa fogueira prestes a apagar. Como a maioria da guarda estava ocupada com outras coisas, chegar em casa foi fácil. Depois de passar pelo portãozinho de madeira lascada, o velho cajueiro me esperava no fundo do quintal. Para minha sorte, Clara tinha o hábito de esquecer a caixa de ferramentas do lado de fora. Com uma pá em mãos comecei a cavar em volta do cajueiro, estava lá em algum lugar, tinha certeza que... Tick. A ponta estreita da pá bateu em alguma coisa, é isso! Usei as mãos mesmo para terminar o serviço, apesar do frio eu suava sem parar. Desenterrei uma caixinha de madeira do tamanho de um porta joias, dentro dela, enrolada em um pano escuro estava uma garrucha de dois canos com uma caixa de balas. A garrucha per-

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tencera ao antigo dono da casa até ele usá-la para enfiar uma bala na própria cachola. Clara queria jogá-la fora, mas eu a convenci do contrário, nunca se sabe, né? Pano de volta na caixa, caixa de volta no buraco, buraco devidamente tampado. Tudo certo... “Péssima ideia garoto, essa arma vai estourar na sua mão antes do primeiro tiro.” O susto foi tão grande que devo ter gritado feito uma menininha (sem falar na mancha úmida na ceroula). Quis correr, mas minhas pernas não ajudavam. Aquela figura sinistra mancando parecia o bobalhão que eu conhecera na tarde anterior, mas ainda assim tinha algo diferente no Sr. Fagner. Ele se apoiava numa bengala e a atadura na cabeça ficara meio frouxa mostrando de relance o que estava por baixo... Cristo... “Me dá a arma”, ele estendeu a mão. Foi nessa hora que o instinto de preservação falou mais alto, levantei num pulo pronto pra fugir, contudo, antes que eu pudesse dar o primeiro passo, algo me acertou nas pernas e me fez girar no ar caindo de cara no chão. “Parece que você não prestou nenhuma atenção na história da sua irmã, você acha que ela merece ficar de luto por sua causa?” Ele se curvava para pegar a garrucha do chão. “Diga-

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mos que você mate o Heitor. E depois? O pai daquele merda não deixaria barato de jeito nenhum, quem protegeria a Clara com você na prisão?” Nada disso poderia estar acontecendo, como é possível? Ele não deveria nem estar se aguentando em pé. Peguei um punhado de terra e arremessei na direção dos olhos dele, eu não tinha tempo para sermões. Jogar sujo não adiantou de nada, bastou que eu me levantasse para ver meu mundo girar outra vez até atingir o solo. “Peguei essa bengala nas coisas do Frei, ela é feita de mogno, dói pra caramba” Zap! A primeira lambada quase me fez vomitar. “Se você é cego pra realidade, é surdo pra bons conselhos.” Tentei levantar novamente e outra explosão de dor me acertou. “Larga mão de ser teimoso!” Ele se preparava para mais quando eu gritei: “Por que você não fez nada?!” Bradei numa raiva frustrada. “É complicado...” Fagner abaixou a bengala e sentou do meu lado. “Não posso chamar atenção se quiser resolver o assunto que me trouxe até aqui. Fui pego com a guarda baixa, não posso me expor mais. Sinto muito.” Outra vez ele falava de um jeito que não dava para entender e eu estava cansado demais para tentar, me limitei a baixar a cabeça e chorar

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baixinho. Ele me olhou com uma expressão monótona, coçou a cabeça e disse: “Existem mil maneiras de destruir um homem sem necessariamente matá-lo, se feito direito, ele nem vai saber que foi você.” Respirou fundo, o som anasalado sumira. “Eu posso te ajudar a resolver seu problema, mas vai ter que ser do meu jeito.” Limpei o rosto e me sentei. “Como?” “Eu ainda não sei.” “E se eu recusar?” “Posso quebrar suas pernas agora e você pode me agradecer depois.” Apesar de soar casual, ele também soava bem sério. “Fechado?” “F-fechado...” Na manhã seguinte acordei com o Frei me chamando para o desjejum, não lembrava como havia voltado noite passada, o que me fez pensar por um instante que tudo não passara de um sonho. Lógico, até uma dor lancinante nas costas dizer o contrário. Tirando o Frei e eu, o quarto estava vazio e as camas arrumadas. Que diabos... “Errr... Frei e o Sr. Fagner?” Perguntei enquanto arrumava a cama.

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“Saiu bem cedo com o soldado Brasil, eu disse a ele que seria melhor que ficasse de molho, mas ele insistiu em ir”, o Frei coçou a cabeça. “Fiquei surpreso com tanta disposição... levando em consideração o que aconteceu...” Na cozinha Clara nos esperava com bolo, café fresco e pão com geleia, uma pena estar sem apetite. Depois do café e de muitos “Deus te abençoe” e “obrigado de coração”, o Frei foi para igreja cuidar do seu rebanho e nós fomos para casa. Cochichos e olhares curiosos nos acompanharam durante todo o caminho. “Não liga pra eles, logo aparece outro mexerico pro povo se preocupar. A vida continua e as contas não esperam”, filosofou Clara. Foi pensando nisso que ela passou a manhã preparando mais uma leva de doces a fim de vender para os viajantes no porto, sem falar na encomenda da Dona Olga que ainda precisava ser entregue. Como o bar da velha ficava mais perto, essa seria a primeira parada. Nós saímos, cada um carregando uma cesta cheia e quinze minutos depois estávamos cortando caminho pela praça. Funcionários da prefeitura limpavam a bagunça deixada pela festa enquanto outros desmontavam a roda gigante. “Tudo bem com você Gusminha?” “Hã?...Sim, por quê?”

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“Você não disse quase nada desde ontem.” Pensei em uma boa desculpa, mas minha cabeça parecia tão nublada quanto uma tarde de Outono. Para ser sincero eu oscilava, queria contar para ela... “Ei! Gusminha!” Meu dilema foi interrompido quando ouvi a voz do Fagner, ele agitava o braço nos chamando. Sentado em um dos bancos de granito, em seu colo repousava um desses cadernos de capa de couro que desenhistas costumam usar. “Bom dia!” Arriscou um sorriso, mas tudo que conseguiu foi uma careta. Não deve ser fácil sorrir depois que sua cara é amaciada como um bife velho. “Bom dia, fico tão contente que esteja bem” Clara se curvou. “Preciso agradecer por...” “Por favor deixa disso”, interrompeu num tom afável. “O que passou, passou.” “Sabe...é que eu gostaria...” ela insistiu. “Hum que cheiro é esse?” Clara olhou para mim confusa, eu dei os ombros. “São sonhos, quer um?” Ela tirou um da cesta. “Humm...” os olhos dele brilharam de um jeito infantil, após a primeira mordida eles fecharam numa expressão de contento. “São como pedacinhos de felicidade cobertos de açúcar.” Pedras que Cantam – V. E. Simeoni


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Goaibada escorria pelas laterais de sua boca, Clara desatou a rir. “O senhor gosta de bolos?” ela passou os dedos pelo cabelo em um gesto distraído. “Modéstia à parte, faço um bolo com calda de chocolate que é uma delícia, posso trazer amanhã se quiser.” Esse era o jeito de ela insistir em agradecer. “Isso seria adorável. Se importa se eu roubar o Gusminha um pouquinho?” “Claro, não é Gusminha?” Balancei a cabeça, ao que parece ela não desconfiava de nada. Clara fez uma mesura e seguiu seu caminho, me sentei no banco e observei-a enquanto se distanciava. “Por que você se faz de idiota?” Perguntei. Em vez de ficar ofendido, ele achou a pergunta engraçada. “Imagine um galinheiro, agora imagine que o dono desse galinheiro esqueceu de trancar o portão e um pato perdido acaba se esgueirando para dentro. O que as galinhas vão fazer?” “Nada... eu acho...” “E se em vez de um pato for uma raposa?” “Elas vão fazer um escândalo danado, vão ficar apavoradas.” “Tá aí sua resposta, pode me chamar de De la Vega.” Soava como se estive se divertindo.

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“Quem?” “Não importa.” “Hum... ainda não explica o porquê de você estar ajudando a gente...” “Sei lá, quem sabe a história da sua irmã tenha me comovido ou talvez eu não tenha nada melhor pra fazer até o Cadeirada dar as caras.” “Isso me faz pensar, essa conversa de tentar encontrar seu pai é balela, não é?” “Garoto esperto.” “Por que você quer achar o Cadeirada então?” “Se ele é quem estou pensando, nós temos negócios inacabados.” “Você pretende matar ele?” “Já te disseram que você pergunta demais?” O dia estava abafado, naquele verão quase todos os dias eram assim, sem nenhuma chuva os pastos estavam começando amarelar. Um dos caras que ajeitava as coisas na praça xingava a mãe de alguém por ter que trabalhar de ressaca. “Você já ouviu falar de pedras que cantam?” “Cantam?”, questionei. “Nas terras altas dos pampas, o vento sopra com tanta força que corta até as pedras, esse som dá impressão de que elas estão cantando. Não importa se dia ou noite, a melodia nunca para.”

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“Por que está me falando isso?” “Por nada”, fechou o caderno. “Heitor foi solto hoje de manhã.” “Jesus Cristo...” Uma sensação nauseante tomou conta do meu estômago e subiu até a garganta. “Fique em paz”, ele meu um tapinha no meu ombro. “Pelo que ouvi, o delegado não ficou muito contente com isso. Acho que nem o Heitor é idiota o suficiente pra fazer besteira tão cedo.” “Como pode ter certeza?!” “Não tenho.” Seus olhos me estudaram por um minuto que mais pareceu uma hora. “Seja paciente, me dê alguns dias e terei um plano.” “Como se eu tivesse escolha”, não escondi a amargura. “Você tirou minha garrucha, lembra?” Clara saiu do bar e foi me esperar na esquina, essa era a deixa para terminar a conversa. Antes que eu me retirasse, ele exortou: “Não faça nenhuma burrice.” Eu tinha só onze anos, isso era pedir demais. Os dias continuaram num marasmo bemvindo, nenhum sinal do Heitor ou de seus capangas. Quanto ao Fagner, podia-se dizer que ele andou ocupado. Dando uma volta pela cidade,

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não era difícil vê-lo por aí sentado em algum canto com seu caderno aberto, desenhando. Fosse uma garotinha pulando amarelinha ou um casal de mãos dadas caminhando pela rua, ele registrava tudo com um traço minuciosamente grafitado, como fotografias feitas à mão. Não dava para entender o que tinha de tão especial no dia a dia de uma cidade como Novo Horizonte. Se não estava desenhando, ele estava na praça jogando dominó com os velhos que ali ficavam ou na barbearia do seu Tomaz batendo papo. Nem preciso dizer que minha paciência estava se acabando... As coisas continuaram nesse ritmo até que em uma certa tarde, eu voltava tranquilamente para casa após um dia carregando bagagem quando um ruído de cascos trepidando ressoou pela rua. Mal tive tempo para me virar, foi tão rápido que pude sentir a brisa tentando acompanhar o cavalo depois que ele disparou rua acima passando a dois palmos de mim. Mais um pouco e eu seria um saco ossos quebrados no meio da calçada. Heitor puxou as rédeas com tanta selvageria que o cavalo se retorceu. Ele me encarou e sorriu, o mesmo sorriso desdenhoso de antes. O maldito tocou as esporas no cavalo e sumiu de vista tão veloz como se o mundo estivesse acabando atrás dele. Eu sabia que Clara estava fazendo um bico como faxineira na casa de Pedras que Cantam – V. E. Simeoni


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uma conhecida, logo estava segura. Pelo visto, o tempo de ser paciente havia passado, já era hora de tomar providências e foi isso o que fiz. Bem como imaginava, Fagner estava num banco da praça rabiscando alguma coisa no caderno de desenhos. Em meio a arfadas contei-lhe o ocorrido, ele ouviu tudo com uma expressão impassível. “Você teve sorte”, disse por fim. “Sorte?! Eu quase morri!” “Sente-se, quero te mostrar uma coisa.” Não havia ninguém por perto, então ele fez aquela cara de essa bengala é feita de mogno. “Por favor...”. Acabei obedecendo a contragosto, após folhear o caderno, ele me mostrou um desenho onde soldado Brasil aparecia dormindo encostado em um poste. Na parte inferior direita da página existia uma única palavra. “Noturno”. “Sabia que ele vive com sono porque seu filho recém-nascido não o deixa dormir?” Ele explicou. “A única hora em que dá para ele cochilar é durante sua ronda.” Outra página, outro desenho. Nesse, a filha do velho Fiorello aparecia nadando com um rapaz no rio, o título? “Borbulhas de amor”. “O pai pensa que ela está na casa de uma amiga aprendendo bordado.”

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O próximo era da mulher do delegado trocando um olhar capcioso com um cocheiro enquanto esse a ajudava a descer da carruagem. Esse se chamava “Deslizes”. “A única coisa que eu entendi é que você tem um péssimo gosto pra nomes”, me queixei. “Quem sabe um dia, o nome Fagner vai ser conhecido por causa dessas obras”, riu com vontade. “Com certeza...” “Agora preste atenção”, ele apontou ao fundo da imagem onde dava para ver Heitor saindo da igreja. “E daí?” Virou a página, nela o Frei recebia duas senhoras na porta de sua casa, Heitor esperava na esquina com um cigarro na boca. Na página seguinte várias pessoas apareciam dançando e se divertindo, sem dúvida o Festival. Pelo ângulo do desenho, parecia que fora feito de um local alto. Roda gigante? No meio de tanta gente, dava para ver claramente o Frei e Heitor conversando afastados do resto. “Você não acha que...” “Nós vamos descobrir hoje à noite.”

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Ainda não dava para acreditar que o Frei, um dos homens mais bondosos que eu conhecia, poderia ter alguma coisa a ver com um cara como o Heitor. Acontece que meu julgamento andara me deixando na mão ultimamente, logo, se existia a possibilidade... Horas antes, Fagner havia enviado um telegrama falso a igreja, nele ele pedia com urgência a presença do Frei em uma chácara nos arredores da cidade. O motivo? Dar extrema unção a um dos empregados que sofrera um acidente e estava nas últimas. Nós teríamos tempo o suficiente para entrar em sua casa, procurar por pistas e sair antes de ele voltar. Clara chegara tão exausta em casa que foi direto para cama depois de um banho, esperei um pouco e saí de fininho. Me encontrei com o Fagner em frente à fonte e de lá nos deslocamos para a casa do Frei. Como não poderia deixar de ser, o portão da frente estava trancado, mas em compensação o muro era coberto por trepadeiras, o que facilitava e muito a escalada. Sem enrolar me pus a subir, quando estava quase no topo eu escutei um “Psiu!”, olhei para baixo e percebi que Fagner estava parado na mesma posição, ele apontou para o pé enfaixado e isso explicou o resto. Fiz um sinal para que esperasse e pulei para o outro lado. Agora, se eu fosse o Frei, onde eu esconderia a chave reserva? Procurei debaixo do tapete, Pedras que Cantam – V. E. Simeoni


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nos vasos de flores e até entre as pedras do jardim, nada. Foi aí que notei uma cabaça pendurada numa das arvores, pelo formato lembrava bastante uma casinha de Jogão de Barro. Achei! “Bom trabalho”, ele disse ao fechar o portão. Dentro da casa, Fagner ficou encarregado do primeiro andar e eu do segundo. O dilema agora era encontrar algo que eu não tinha a menor ideia do que pudesse ser. Seria fácil se houvesse alguma coisa fora do normal, porém toda casa estava arrumada tão despretensiosamente que era quase como encontrar uma uva numa cesta de jabuticabas. Comecei pelo quarto de hóspedes, procurei em todos os cantos possíveis e nada encontrei. O banheiro do outro lado do corredor tinha quase o tamanho da minha sala. Tirando o fato de haver uma dúzia de frascos de óleo de peroba no armário, o resultado foi o mesmo. Só faltava a porta no final do corredor, provavelmente o quarto do Frei. Cheirando a naftalina, o aposento tinha uma cama de casal com dossel, um armário de quatro portas e um criado mudo com uma bíblia e um abajur. Depois de uma batida minuciosa em cada centímetro do aposento, acabei me dando por vencido. Não achara nada até agora porque não havia nada para achar. Ao que tudo indicava, invadir a casa do Frei não foi uma ideia tão boa. Me dirigi até o

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abajur para apagar a luz antes de sair, nesse momento percebi uma extremidade de um pedaço de papel saindo de dentro da bíblia. Como a curiosidade fala mais alto, abri o bom livro... e acabei tendo que engolir meu ceticismo a seco. Apesar de parecer uma bíblia por fora, seu interior era tão oco quanto o de um baú. A maior surpresa veio por conta do que estava lá dentro, pelo menos quinze fotos de mulheres diferentes, todas... bem à vontade, charutos com um cheiro esquisito e um pacote cheio de um pó branco que lembrava talco. “Querido Jorge, pra você não se esquecer de mim. Ass: Patrine”, diziam as letras arredondadas atrás da foto. Esse tal de Jorge deveria ser muito popular entre as damas, pois cada foto tinha uma mensagem parecida. De qualquer forma não tinha certeza se era isso que precisava, mas era o que eu tinha, juntei o que descobri nos bolsos e o resto carreguei nas mãos. O próximo passo seria encontrar meu comparsa para darmos o fora dali. Contudo, nem sempre a vida é do jeito que queremos, não é? Quando eu estava no meio das escadas, a pesada porta da sala se abriu e a luzes se acenderam. De repente lá estava o Frei olhando para mim, seus olhos saltando das órbitas. “Ah merda...”

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“Filho, o que...” Ele ficou mudo ao perceber que eu segurava o pacote com o pó branco, por um minuto inteiro seu cérebro deve ter tentado digerir o que seus olhos enxergavam, lentamente ele trancou a porta atrás de si. “S-sabe eu esqueci minha...” balbuciei. “Não era pra você ter visto isso...”, deu um passo na minha direção, eu recuei. A fala mansa deu lugar a uma voz oscilante. “Não deveria...”, mais um passo. “Assim o senhor tá me assustando...” Eu deveria correr lá para cima ou deveria forçar minha passagem por ele? Nenhuma das duas opções soava inteligente. “É melhor eu ir...” “Agora é tarde meu filho...”, ele tirou alguma coisa da manga da batina. Um clic e a imagem do meu rosto perplexo refletia na lâmina do canivete. “Ah que se dane”, pensei comigo e num impulso achei que poderia pular da escada e fugir, eu só não contava que o medo me faria perder o equilíbrio. Acabei rolando escada abaixo até chegar aos pés do Frei, ele levantou o canivete pronto para... Um assovio agudo ressoou quebrando a concentração do Frei, ele voltou abruptamente na direção da copa e... Zap! Só para levar uma bengalada no meio da testa que o fez cair duro.

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“Shhh”, Fagner pôs o dedo na frente dos lábios. “Tudo bem aí?” Murmurei uma confirmação. “Ótimo, me ajuda a carregá-lo.” Ah, como eu queria ter ficado em casa... Nós o levamos até o porão, um ambiente mal iluminado de teto baixo. Muitas caixas e outras velharias juntavam poeira lá embaixo e o porão inteiro estava impregnado com o cheiro pungente do mofo. Fagner amarrou o Frei em uma poltrona sem estofado que fora há muito esquecida lá embaixo. Não demorou para que ele despertasse e se desse conta de sua atual situação. “Vocês não podem fazer isso, eu sou um sacerdote...”, disse ele com um semblante confuso. “Parece que as vezes você esquece disso, não é Jorge?” Fagner andava de um lado pro outro do porão examinando as fotos. “Isso é meu...” “Não mente pra mim!” Fagner avançou sobre o Frei e o agarrou pelo pescoço, sua fala rascante ricocheteou nas paredes do porão e voltou mais ameaçadora. O Frei se encolheu, merda... até eu me encolhi. “P-por favor não contem a ninguém, se contarem... Vai ser o meu fim... A c-carne é fraca...” Pedras que Cantam – V. E. Simeoni


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“Fraca a ponto de matar um garoto pra esconder sua sujeira?” Fagner disse. O Frei voltou os olhos para mim, eu desviei o olhar. “Um verme como você envergonha qualquer coração sincero que já vestiu uma batina.” “E-eu ajudei vocês antes! Fala pra ele Gusminha!” “Nos ajudou? Eu acho que só estava protegendo seu amigo Heitor?” Ao ouvir esse nome, o rosto do Frei perdeu qualquer cor. “Veja bem, enquanto meu parceiro aqui descobria sobre sua outra vida, eu acabei encontrando algo bem interessante no seu escritório, reconhece essa assinatura?” Ele tirou uma folha de papel do bolso e a segurou diante do rosto do Frei, pela expressão do sacerdote, a resposta era sim. “Por que você tem tantos recibos assinados pelo Heitor?” “Você não entende... Se eu disser ele me mata...” Essa não era a resposta que Fagner queria ouvir, ele respirou fundo e disse: “Gusminha”, obedeci entregando-lhe o canivete, ele apertou o botão e a lâmina saltou pra fora. “No começo você vai me implorar pra parar. Se mesmo assim não abrir o bico, no final você vai implorar pra morrer.”

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Começou pelo dedo indicador, a lâmina foi introduzida entre a unha e a carne, aos poucos ela forçou seu caminho sem nenhuma pressa e só parou quando a unha foi arrancada por completo. No começo, o Frei até tentou resistir, porém não demorou a espernear como uma criança. O próximo foi o polegar. Eu me encolhi num canto e tapei os ouvidos, Deus... os gritos eram demais para mim, parecia que nunca iriam parar. Queria me livrar do Heitor mais do que tudo, mas não desse jeito... não precisa chegar a isso. É difícil dizer o quanto durou, só sei que pareceu uma eternidade. “Você ainda tem quinze dedos se contarmos os pés, ainda não lembra de nada?”, perguntou Fagner. Qualquer brio que o Frei tinha escorreu pelas frestas da poltrona formando uma poça debaixo dela, ele se tornara apenas uma sombra. “O p-pai dele... Heitor vai roubar o pai ddele...” O Frei nos contou que havia solicitado uma permissão especial do Bispo para viajar mensalmente até a capital a fim de visitar a mãe, no entanto ele esquecera de avisar ao Bispo que a pobre senhora já estava morta. Cada ocasião dessas era usada para cair na gandaia, pura e simples. Foi em uma dessas viagens que ele

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conheceu Heitor e os dois se tornaram “amigos”. Heitor fora enviado para Novo Horizonte pelo pai para cuidar de um negócio que envolvia a compra de vagões carregados de cacau e uma quantia substancial de dinheiro. Claro que Heitor não deixaria de tirar proveito da situação. Ele sabia que o ópio havia sido proibido há poucos meses e agora estava sendo vendido a preço de ouro. O plano era usar o dinheiro do pai para comprar a droga de uns chineses que ele conhecia e depois revender nos círculos boêmios da capital. No final, ele garfaria um bom lucro e ainda sobraria o suficiente para comprar o cacau do pai. O velho nunca saberia. Só faltava arrumar um jeito de desviar o dinheiro sem levantar suspeitas, para isso ele precisava de alguém que tivesse talento com números para falsificar os recibos e o livrocaixa, é aí que o Frei entrava. Segundo o Frei, tudo estava quase pronto, ele viajaria de barco até uma vila de pescadores nos arredores de Novo Horizonte com a desculpa de celebrar uma missa. Na verdade, ele se encontraria com os chineses em uma ilhota qualquer e compraria o ópio. Os homens de Heitor iriam acompanhá-lo para garantir a segurança. Após terminar, o Frei se debulhou em mais lágrimas até que Fagner o calou com um bordoada.

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Não sei o que deu em mim, caí de joelhos e não pude segurar mais o jantar. Coloquei tudo para fora lá mesmo, a sensação era terrível. “Guri, é melhor você ir pra casa, vou ficar aqui de olho no Frei”, Fagner se encostou na parede e cruzou os braços. “Não precisa se preocupar, ele não vai contar a ninguém. Você já fez o suficiente, daqui pra frente eu cuido do resto.” “O que você vai fazer?” “Bem”, com ar sério. “Preciso bolar um jeito discreto de entrar no barco do Frei, acho que não vai ser difícil convencê-lo a me ajudar. Depois vou garantir que esse dinheiro nunca mais volte pra mãos de Heitor.” Ele ficou esperando uma objeção, porém nada falei. Para ser sincero fiquei aliviado. Pensei que nunca mais dormiria depois daquela noite, cada vez que fechava os olhos eu ouvia os gritos de desespero do Frei. Mal sabia eu que cedo ou tarde, o sono me arrebataria como um ladrão. “Gusminha! Corre aqui fora!”, podia ouvir a voz da minha irmã, parecia distante. “Gusminha!” Acordei caindo da cama, ela chamou de novo e foi quando constatei que aquilo não era um sonho. Fui para fora de casa ainda de pijama

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para encontrá-la recolhendo as roupas do varal. “Rápido, me ajuda se não vai molhar tudo!” Nuvens escuras preenchiam o céu seguidas por uma ventania que uivava sem descanso, uma tempestade estava a caminho. Clara ficou sem entender quando virei as costas e saí correndo em direção à rua sem dizer nada. Cheguei na igreja só para encontrar as portas fechadas, isso não era bom, não naquele dia. Não dava para desistir ainda, quem sabe ainda existia uma chance. Meus temores se confirmaram no momento em que coloquei os pés no porto, eles já haviam zarpado. Alguns pescadores lutavam para amarrar seus barcos a fim de que esses não fossem arrastados pela correnteza, outros discutiam se era certo ou não ir atrás dos menos sortudos que ainda estavam no meio daquelas ondas furiosas. Eu não podia fazer nada além de torcer para que o barco do Fagner não tivesse sido pego pela tempestade. Uma coisa era certa, o rio não gosta de covardes, pelo contrário, ele prefere os corajosos, pois esses pertencem a ele. Ao cair da noite, a tempestade se dissipou e o céu se abriu expondo uma lua dourada. Durante o resto da semana o delegado contou com a ajuda de pescadores na busca por desaparecidos. Infelizmente, não encontraram nenhum sinal do Frei ou de seu barco e a cidade inteira chorou a

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perda do sacerdote. Ah, se eles soubessem da verdade. Ninguém parece ter sentido mais a tragédia do que Heitor. Ele, que nunca fora estranho a bebida, passou a se afogar nela. Brigas com qualquer um e noites dormindo ao relento se tornaram parte de sua rotina, aos poucos ele passou de um forasteiro mal encarado a um bêbado inconveniente. Mesmo sem seus capangas, ninguém tinha coragem para se meter com ele. Fagner provavelmente estava no fundo do rio e eu estava sozinho agora, cabia a mim vigiar Heitor. Vê-lo naquela decadência e frustração crescentes só alimentou a certeza de que não demoraria muito para que seu pai descobrisse sobre o roubo. Era questão de dar tempo ao tempo e tudo terminaria bem, certo? Às vezes o problema da esperança é que ela nos deixa descuidados e cada descuido tem seu preço. Lembro que era uma terça-feira quando Dona Olga apareceu me procurando. “Senta aqui Gusminha, é sobre sua irmã...”, seu tom irregular deixava claro que alguma coisa estava errada. Dona Olga tinha ido a minha casa acompanhada pelo esposo afim de buscar um bolo de aniversário. O fato da porta da frente estar escancarada não a preocupou muito, afinal estamos numa cidade pequena. Porém, quando

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ela ouviu um grito vindo de dentro da casa seguido pelo som de vidro se quebrando um arrepio lhe subiu pela espinha. Seu marido mandou que esperasse do lado de fora enquanto ele checava a casa, mas ela ficou atônita e não aguentou esperar. Dentro da casa haviam sinais de luta, ela chamou pelo marido que respondeu da cozinha. Lá eles encontraram Clara envolta em uma poça de sangue, uma faca cravada na altura do rim. Ao que tudo indicava, o agressor deve ter fugido quando Clara gritou. O marido de Dona Olga servira no exército e por isso foi capaz de estancar o sangramento. Dona Olga me levou até sua casa onde Clara estava sendo cuidada. Senti um aperto no peito como nunca havia sentido antes ao vê-la deitada naquela cama pálida como se estivesse morta. Eu até tentei ser forte, meus olhos se encheram d´agua, mas Dona Olga me abraçou e não deu mais para segurar. “Shh calma... ela é forte, você vai ver”, apesar das palavras gentis, faltava convicção na voz dela. Aquela noite pedi a Deus que não tirasse minha irmã de mim e que me perdoasse pelo que estava prestes a fazer. Quase duas da madrugada quando Heitor foi o último a deixar o último boteco da rua baixa.

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Em teoria não havia ninguém na rua naquele horário, somente a guarda, e quando eu digo guarda me refiro ao soldado Brasil e sua impecável habilidade de dormir em pé. Heitor cambaleou até a praça onde encontrou um banco que ele usou como cama. Junto às sombras o segui e lá eu esperei pacientemente para ter certeza que não acordaria. Tirei a navalha do bolso da calça... minhas mãos tremiam sem parar. Mesmo depois de tudo que ele fez... achei que ficaria feliz em vêlo se arrastando na sarjeta, porém felicidade era a última coisa que eu sentia naquele momento... Do jeito que as coisas estavam, tirar a vida dele soava mais como um favor do que como punição. Afinal, por que eu estava pensando nessas bobagens? Não dava para voltar atrás agora, tinha chegado longe demais pra isso... “Derramar sangue é uma coisa perigosa garoto”, uma mão pousou no meu ombro. “Você pode acabar gostando.” Pode parecer loucura... droga... até eu achei que estava alucinando. Fagner surgiu como uma assombração, sem atadura ou cicatriz, seu rosto estava perfeito como no dia em que nos conhecemos. Não consegui dizer nada e muito menos me mover, fiquei petrificado. Ele se limitou a abrir um sorriso franco, pegou a navalha do chão e foi até Heitor. O que ele

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fez em seguida foi no mínimo curioso. Sem se preocupar com cortesias, virou Heitor de modo que ficasse com as ancas para cima e lhe baixou as calças. Usando as duas mãos, rasgou a ceroula do homem de um lado ao outro deixando seu traseiro exposto. Sei o que você deve estar pensando agora, mas espere eu terminar. Fagner tirou um ovo do bolso e usou a ponta da navalha para abrir um pequeno orifício na casca, aos poucos pequenas gotas de clara caíram sobre o traseiro de Heitor. “Acabou”, foi a única coisa que ele disse antes de começar a caminhar na minha direção. Não compreendi o que acabara de acontecer e para ser sincero me sentia cansado demais para tentar. Daí para frente minhas memórias ficaram nubladas, não me lembro de ter voltado à casa de Dona Olga, só do dia seguinte. Existem várias versões do que aconteceu, a que eu mais gosto é aquela onde Heitor acorda com o Sol batendo no rosto. Pela careta que ele faz, a ressaca deve estar de explodir os miolos. Nessa hora ele escuta os murmúrios, sem falar em algumas risadinhas abafadas, de pelo menos uma dúzia de olhos o observando. “Ocês perderam alguma...” a frase termina na metade, sua mão desce até a parte de baixo

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das coisas, ele sente algo úmido e pegajoso. Alguém na multidão desata a rir e logo um couro de gargalhadas toma conta da multidão. O rosto de Heitor perde a cor, as ideias parecem se ligar com dificuldade na sua cabeça, mas quando isso enfim acontece, ele levanta num pulo subindo as calças. “Parem de rir deu!!!”, ele grita levantando o punho, as pessoas não se importam e os risos só aumentam. “Parem de rir...”, a voz quase não sai. Sem saber o que fazer quando não consegue intimidar, Heitor sai de cena rapidamente. Não se falava em outra coisa por toda Nova Horizonte, as pessoas apontavam e riam dele pelas costas. A humilhação foi tanta que ele teve de deixar a cidade. Alguns dizem que seu pai o deserdou após descobrir sobre o roubo e Heitor terminou com uma garrafa de uísque vazia e uma corda no pescoço. Outros dizem que ele entrou para a Legião Estrangeira. A única coisa que eu sei é que nunca mais o vimos, o que para mim estava ótimo. Os ferimentos de Clara ainda precisavam de semanas para cicatrizar, apesar disso, aos poucos a vida foi voltando ao normal. Dona Olga passava pelo menos uma vez por dia em casa para ver como as coisas estavam e eu continuei fazendo o que eu podia para levantar algum dinheiro,

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afinal, as contas não esperam. Certo dia, ao ir para casa almoçar, encontrei Dona Olga me esperando na cozinha. “Aquele homem esquisito acabou de sair daqui?”, disse sem esconder a desconfiança. “Quem?” “O de nome engraçado.” “Fagner?!” “Esse mesmo, ele visitou sua irmã agora a pouco e foi embora. Não sei por quê, mas não fui com a cara dele...”, ela dizia isso, mas no fundo estava adorando a fofoca. Sem estender muito a conversa, agradeci a preocupação dela e dei uma desculpa para poder subir logo as escadas. No quarto de Clara, a encontrei sentada na cama admirando, quase que hipnotizada, um quadro sobre o colchão. Esse retrato era diferente dos demais, fora pintado com tinta e pincel numa tela de verdade, a moldura tinha detalhes cor-debronze que lembravam ramos de um jardim. Na tela estávamos eu e minha irmã sorrindo, era quase como se olhar no espelho. “Gusminha”, disse ela com um sorriso distraído. “Viu que lindo? Foi o Sr. Fagner que pintou.” “É bonito mesmo.” “Mal acreditei quando ele disse que era um presente. Sabia que ele encontrou o pai?” Pedras que Cantam – V. E. Simeoni


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“Poxa...” “Pelo visto era o Cadeirada mesmo. Dá para acreditar? Nossa, fiquei tão feliz por ele!” “Ah eu também...”, no meio de tantos problemas, tinha até me esquecido disso. Nem quero imaginar que fim levou o pobre Cadeirada. “Só não entendi o porquê desse nome.” “Deixa eu ver”, no cantinho da tela estava escrito “Pedras que cantam”. Sabe o que era mais surpreendente? Eu entendi o que ele queria dizer e, quando isso aconteceu, não consegui evitar que meu coração oscilasse. “Você tá chorando? O que foi?” “Não é nada”, limpei os olhos com a manga da camisa. “Vou deixar você descansando, a gente se vê de noite.” “Gusminha...” Antes que eu pudesse sair ela disse: “Ele deixou um pacote pra você.” “Pacote?”, franzi o cenho. “Isso, tá no seu quarto.” O tal pacote, feito de papel pardo e amarrado com barbante, tinha o tamanho de um caixa de sapatos. Junto dele havia um bilhete que dizia “Use sua parte com sabedoria, parceiro. Boa sorte e a gente se vê – ASS: Isaque van Fagner”. Sem delongas abri o embrulho e quase tive que me

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segurar para não cair para trás. Maços e maços de dinheiro empilhados, havia mais ali do que eu já tinha visto a vida inteira. O dinheiro que Heitor roubara de seu pai? Não tinha outra explicação... Um sorriso tomou conta dos meus lábios e de repente estava no chão rindo sem parar, uma gargalhada de fazer a barriga doer.

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CONTO 5

AMEAÇA FANTASMA Fabiano dos Santos Araújo

N

inguém sabe ao certo como as coisas eram no começo, afinal, nunca deram atenção de verdade a eles. Talvez eles tivessem no passado alguma forma, cor, peso, quem sabe até mesmo produzissem som. Mas hoje isso talvez seja irrelevante. Quanta irresponsabilidade, quanta irresponsabilidade... Mas mesmo assim ninguém parece se preocupar com isso. Nossos vizinhos parecem


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mais alarmados, e eu diria também levemente desesperados, em comparação à todo o pessoal daqui. Com exceção de alguns poucos, eles parecem anestesiados. E isso não começou agora. E é por isso que estamos nesta situação. Se tivessem atenção, atenção de verdade, talvez fosse diferente agora. Mas apenas os atingidos é que acordavam, só eles é que pareciam se mexer. Mas mesmo assim, mesmo tendo sido atingidos, dentre estes infelizes, muitos ainda voltavam à letargia. Muitos retornavam ao seu sono de quase morte. Não sei realmente como isso é possível, mas acho que mesmo depois do ataque e do mal trazido como consequência, eles acabaram se acostumando e por isso estamos vivendo esta situação. Quem se manteve ileso, não se importa, e dentre os que sofreram as consequências, há aqueles que parecem seguir da mesma forma que os ilesos... Não sei bem como as coisas chegaram ao ponto atual, às vezes escuto uns falando que isso é castigo por não terem cuidado enquanto era tempo, enquanto a ameaça não era tão grande. Eles vêm em silêncio, invisíveis. Ninguém sabe de onde vêm. Ninguém sabe a sua forma, peso ou cor. Comentam que eles estão em toda

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parte e que podem ser identificados facilmente. Mas a verdade é que desconhecemos quem sabe como fazer isso. Com suas armas e estratégias sofisticadas, eles chegam até os desavisados e iniciam o seu ataque. São tão precisos e talentosos em sua arte maligna, chegam incógnitos, atacam sem que a vítima se dê conta e se vão da mesma forma enigmática e silenciosa que surgiram. Um exército que não deixa rastros, mas que tem uma marca própria. Um comprovante inegável e único de seu ataque exato e cruel, cada uma das vítimas é marcada para que se lembrem do ataque. Não há endereço, condição financeira, idade ou barreiras que os detenham. Não há como se esconder por muito tempo... Todos em toda parte, há todo momento, são vítimas em potencial. Tiram pouco das vítimas, mas o que deixam em troca pelo que tomam, é um fardo quase impossível de carregar. Infelizmente muitas das vítimas deste exército acabam sucumbindo ao peso de seus fardos. E a cada nova onda de ataques eles têm trazido novos presentes para deixar a suas vítimas. Por vezes mais leves, por vezes mais pesados. Mas agora, com novas formas de fazer as pobres vítimas sofrerem.

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E a cada vez trazendo um aviso que eles poderiam piorar da próxima vez, ninguém parecia ouvir, ninguém parecia querer ouvir. O maldito exército de vampiros ronda por toda parte. Invisíveis e letais como somente eles são capazes de ser. Os pobres tolos destas terras, mesmo sabendo dos ataques iminentes e das consequências destes, parecem preparar o terreno para o exército que chegará. Os vizinhos estão com medo. Eles estão desesperados com a sua nova arma secreta. Mas por aqui, existe sim o temor, agora que o mau está se instalando, agora que ataques definitivos atingem os pobrezinhos. O exército de vampiros está nos rondando. Estão nos espreitando nas sombras, talvez tenham as suas cores, e por isso eles são invisíveis para todos nós. Eles estão chegando para nos atacar e atingir os pobrezinhos. Meu Deus, se não tivéssemos dormido tanto, dormido por tanto tempo. Se ao menos tivéssemos reagido aos primeiros ataques, o que será de nós? O que será dos pobrezinhos?

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CONTO 6

TERRA OBSCENA E. Reuss

M

aurício Borges, em intervalo no pátio da ala masculina. Hospital Colônia Santana, São José, SC. Janeiro de 1985. Não, o que eu tô te dizendo aqui é que nunca houve penetração, me entende? Só queria me sentir no controle. Eu não sei quem poderia te falar uma coisa dessas, que meu problema era passar o dia inteiro trancado no quarto fazendo…


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Amor. A verdade é que eu tive uma infância silenciosa… reprimida, talvez? É um momento especial na vida de um menino. Principalmente o momento da descoberta… E você entende o que é ter isso reprimido, assim, por quem você ama? Sabe o que é ver seu pai vestindo a lingerie rendada da sua falecida mãe? Sabe o que é ver seu pai vestido para ter relações, mas do mesmo jeito que sua mãe se vestiria para ter relações? Você tá me entendendo? Porque eu acho muito difícil… Pergunta. [Inaudível] Não, não, é isso mesmo que você ouviu. Aqueles sons noturnos de repente começaram a fazer sentido e a minha imaginação infantil completava a escuridão do quarto com aquelas imagens doentias, imagens envolvendo dois homens, um deles do meu próprio sangue curvado sobre a antiga penteadeira da minha mãe. Logo, entrei num caminho de isolamento do qual nunca mais saí. Cheguei aos dezoito anos falando duas ou três frases por semana. Qualquer tipo de interação me fazia sentir como se eu estivesse perdendo o controle, me entende? Larguei os estudos e comecei a trabalhar no IML. Os mortos me pareciam muito mais compreensivos. Eles faziam eu me sentir totalmente no controle, tanto do meu corpo quanto do deles. As mulheres

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continuavam perfeitas, inclusive internamente. Compartilhávamos a preferência pelo silêncio. Todo mundo lá acaba se acostumando com a ausência de som, de modo que no prazer acabávamos deixando escapar os sons mais instintivos… Mais selvagens, tá me entendendo? Pergunta. Exatamente! [Risos] Perturbação do sossego público, diz a sentença que me trouxe pra cá. A gota d’água lá em casa foi a Júlia. Fazíamos um amor puro e selvagem, sempre sob o meu controle, me entende? Eu ficava imerso no silêncio por dias e ali, no êxtase sexual, eu não percebia que os sons que eu emitia perturbavam o sono alheio. Mas isso é motivo para ser abandonado? Para ser tratado como louco? Pergunta. Por um tempo, até achei que ele havia aprendido a aceitar minha felicidade. Fazíamos o nosso amor sonoro de sempre e meu pai parecia não se importar. Ilusão… Maldita ilusão de que eu possuía algum controle sobre minha vida! Ele não podia aceitar minha felicidade. Ouvi as batidas na porta do meu quarto e pedi que Júlia se escondesse, mas onde? Tive que improvisar e… Juro. Juro por tudo. Aquele foi o momento mais feliz da minha vida. Pela primeira vez vi no olhar furioso do meu pai o amor que ele sentia

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por mim, enquanto ele me dizia que não ia aceitar mais um retardado na nossa família. Chorei enquanto ele abaixava minhas calças. As palmadas doíam, mas não chorava por causa da dor. Chorava por causa da libertação. Percebi que tudo o que eu sempre quis era ser controlado e manipulado como uma criança… E então ouvimos os gritos e meu pai correu para a janela. Vi ele empalidecer ao olhar para a rua. O que foi pai?! Eu perguntei, chorando. Caminhei com as calças abaixadas até a janela e vi alguns pedestres acudindo uma senhora desmaiada, enquanto um grupo aterrorizado de dez ou quinze pessoas olhava pra janela do meu quarto. Hipócritas, todos eles. Agora meu pai olhava pra mim também, e eu só conseguia dizer “O QUE FOI?!”. Odiava ser julgado daquela forma. Então puxei o lençol que eu havia amarrado no pescoço de Júlia, mas o corpo dela ficou preso no parapeito da janela. Todos me olhavam, paralisados. [Chorando]. E eu… eu perguntava O QUE FOI?! O QUE FOI?! De repente a sutura da autópsia estourou e o intestino de Júlia ficou pendurado. Mais alguns pedestres gritaram e um carteiro foi atingido na cabeça pelas tripas. A imagem foi impactante? Talvez. Mas lá estava eu, sendo julgado por causa do amor. [Silêncio]

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E sabe o que eu fiz? E disso eu tenho orgulho… Porque mesmo sem calças e sendo julgado como um criminoso, eu tive a audácia… a coragem de virar pro meu pai e dizer… com todo o autocontrole que anos de isolamento meditativo me permitiram cultivar… dizer: Pai, eu te odeio seu velho traíra chupador de pica do caralho.

César Augusto, vulgo “Doutor”. Tomando café à margem da Rua Engelberto Koerich, nas dependências do Hospital Colônia Santana, São José, SC. Janeiro de 1992. [Som do trânsito em horário de pico] Me trouxeram pra cá numa Kombi da prefeitura e me trancaram no banheiro da recepção. Arrancaram minhas roupas e tudo o que eu carregava comigo, menos o gravador. Me enfiaram numas roupas que deviam ser de alguma criança que morreu na época da enchente e ali mesmo começaram a me tratar com umas gotas, que ninguém sabia o que era. Foi nessa época em que começaram a colocar os pacientes da Colônia em uns ônibus e a devolver eles pro interior. Eram deixados nas casas de pessoas que nem se lembravam mais deles. Eu sempre fui um dos

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rejeitados. A última vez que tentaram me levar pra casa, tua mãe gritou tanto com o médico que ele escreveu na minha ficha que eu não tinha familiares vivos. Vocês me olhavam pela janela do quarto, lembra? Tu e tua irmã… Nunca chorei tanto como naquele dia. A mãe sempre foi uma puta. Shhh… Tá gravando. O que? Não posso falar palavrão? E a “integridade” da pesquisa? Velho hipócrita… [Risada] Ela teve os motivos dela, você era nova demais pra entender. Ainda não entendo. Ninguém fala sobre isso. A mãe e a Talita só querem distância, literalmente. Cada vez parece que se mudam pra mais longe, como se isso aqui fosse motivo de vergonha. Tu tinha que ver o jeito que a mãe olhou pra mim quando eu disse que ia te ajudar a terminar a pesquisa… Ela fez uma cara de nojo e disse que isso era ‘coisa de demente’. [Risada] Eu disse pra ela que tu precisava disso. Mas falando sério? Eu não sei o que tu quer tanto entender com isso. Sempre falando do propósito desses coitados como se de alguma forma tua vida fosse fazer sentido. Mas fica difícil te ajudar se nem eu que sou tua filha sei o que tu tanto procura. Terra Obscena – E. Reuss


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Por que isso é importante? Saber o que eu procuro? Porque sim! Se é assim, te digo o que eu disse pra todos que me perguntaram a mesma coisa. Disse que queria ouvir aquelas histórias que não são mais contadas. As histórias daquelas cidadezinhas que conseguiam enterrar a maioria de suas crianças sem derramar uma lágrima. Aquela história que produz mais loucos do que filhos. Eu falava que queria entender aqueles que abandonaram suas famílias e foram atraídos pelos campos, pelos trilhos ou por alguma promessa otimista enterrada na própria merda em que eles viviam e que só eles enxergavam. Acabavam encontrando a loucura no caminho e vindo pra cá. Se eu entendesse o propósito deles, eu dizia, eu poderia descobrir o meu. Mas vou te contar uma coisa… Se você ouvir com atenção, filha, vai ver que essas fitas são sobre coisas muito mais pessoais. São sobre eu e tua mãe. Sobre aquele demônio que dava veneno pra gente e sobre aqueles que passaram a vida inteira trabalhando no mesmo lugar em que morreriam asfixiados. As fitas são sobre todos nós. [Silêncio] Muito esclarecedor, pai. [Pausa para intervenção médica]

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Genina Barcelos. Lavando pratos na cozinha do Hospital Colônia Santana, São José - SC. Agosto de 1986. É isso que eu começo dizendo pra eles. Conto essas histórias da minha infância enquanto a gente bebe vodca. Um ou outro sempre me oferece comida, mas eu nunca como. Não suporto essa friturada nojenta, comida industrializada e congelada. Quem sabe o que ele trituram ali no meio? Nós meninas temos que cuidar da alimentação, não adianta. Então a maioria me olha desse jeito, enquanto eu bebo a vodca sem parar e cruzo e descruzo as pernas pra fazer a saia plissada levantar um pouquinho. Eu vejo o desejo nos olhos deles, aqueles olhos vermelhos de álcool e de tesão. Então sempre tem aquele comentário vazio do tipo: tu não faz o tipo de guria que bebe destilado, he, he. Aí eu peço desculpa, né, e digo que a vodca me faz lembrar de umas coisas horríveis e que é só bebendo que eu consigo esquecer. Eles adoram o sofrimento dos outros, por isso eles pedem pra eu continuar... pra eu me abrir… e o discurso é sempre esse: a vodca me faz lembrar da risada do meu pai, jogando truco e bebendo com meu tio Rói. Quase toda noite, eu passava por eles e meu tio falava: “Tu não devia

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usá essas sainha curtinha, linda. Vai deixá os menino do bairro louco”. E meu pai, quando ouvia isso, batia o copo de vodca na mesa, rindo como um retardado. E era sempre vodca. Meu tio sorria pra mim, do mesmo jeito que ele sorria às vezes na porta do meu quarto, enquanto eu me maquiava ou cuidava dos meus hamsters... Uma mãe e uma penca de filhotes que eu tinha. Um dia, sorrindo daquele jeito filho-da-puta, ele me disse que se eu ficasse um tempo sem dar comida pra eles, a mãe ia começar a devorar os filhotes, só para que eles não morressem de fome. Instinto materno, ele sussurrava no meu ouvido, enquanto esfregava a mão na minha barriga. Eu tive que parar de dar comida pra eles, sabe? Era curiosidade, mas também era outra coisa. Eu sempre fui assim submissa. E meu tio começou a ir todas as noites no meu quarto, depois que meu pai já estava bêbado demais pra perceber que ele havia saído, pra passar a mão em mim e ficar olhando pros bichos. Numa noite dessas, enquanto o tio Rói ainda drogava meu pai na sala, eu comecei a ouvir uns gritinhos e fui até a gaiola. Vi a mãe devorando um filhote, roendo o pescoço enquanto ele se debatia, jogando serragem pra todo canto, e eu não conseguia fazer nada. Tudo era muito selvagem. Os gritos ficaram cada vez mais altos, e cada vez mais humanos. Horrível... Então ouvi meu tio dizendo que eu não devia mexer com a Terra Obscena – E. Reuss


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natureza, o som do zíper sendo aberto, aquele negócio quente roçando na minha nuca, enquanto ele falava pra eu ficar quietinha, pra não apanhar do papai… Horrível. Mas aí… eu não chamava meu pai de papai, né? Ele não gostava de ser chamado assim. Engraçado como naquele momento aquilo pareceu importante. Quando eu ouvi aquilo, eu tive certeza que tava sozinha... Papai, quem? Ele provavelmente faria a mesma coisa que eu fiz com aqueles ratinhos. Ficaria olhando o Tio Rói me comer com aquela cara de desprezo dele... E não é da dor que eu me lembro, porque eu já tava meio acostumada com aquilo. O pior foi sentir o abandono e sentir aquela baba de vodca escorrendo no meu cabelo, no meu pescoço, enquanto ele me beijava. Depois daquela noite, ele começou a me pedir um beijo de boa noite sempre que me via. E meu pai falava vem cá, beija teu tio. Eu me aproximava e ele me pegava pela cintura e me colocava no colo, e eu podia sentir que ele tava com tesão, e toda aquela dor insuportável voltava na hora e meu reflexo era chorar… E é aqui que o filho da puta se revela. [Risada] Alguns se silenciam, outros balançam a cabeça e juntam as mãos como se fossem padres, os mais viados começam a chorar. Aí nesse caso eu tenho que chorar também, né, santa mãe de

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Deus! Mas quando o cara me escorrega a mão pelo colo e dá pra ver que ele tá gostando, sabe, daquilo. Do sofrimento… Aí eu deixo ele me consolar e a gente se beija de um jeito tão apaixonado que parece que ele vai me engolir. Então eu digo me come e a gente corre pro banheiro ou pra um beco qualquer. E eu caía de joelhos na frente deles e abria as calças, sempre com lágrimas nos olhos. E todos sempre seguravam minha cabeça com força, e eu não me importava. Só precisava de um centímetro, menos até, e a lâmina do meu canivete fazia o resto. Minha boca se enchia de sangue e eu deixava o jato de sangue arterial lavar o meu rosto. Eles olhavam pro céu e depois pro caralho decepado na minha boca e era questão de segundos até eles caírem no chão, todos. Alguns já entravam em choque, outros ficavam conscientes, mas nunca gritavam. E eu sempre tirava o pau da boca e insistia em conversar com eles. Batia no rosto deles assim, “Ô! Viadinho! Tu toma alguma droga? Otário”. A maioria não respondia e ficavam ali, deitados sem sexo numa poça de sangue. Então eu procurava as marcas de agulha, as feridas no nariz e os sinais de DSTs antes de botar o pau na boca de novo… Porque nesse mundinho de drogados e de sexo livre, nós meninas temos que cuidar da alimentação, né? Não adianta.

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Vilmar Martins, sala de estudos bíblicos do Hospital Colônia Santana. O entrevistado relatou fatos tão contraditórios de sua própria vida que este estudo não conseguiu atestar a veracidade de qualquer versão de sua biografia. Fevereiro de 1985.

Carta de Manoel Agostinho à César Augusto. Hospital Colônia Santana, São José, SC. 21 de novembro de 1985. Prezado Dr. César Augusto, suspeito que suas energias estão plenamente depositadas na pesquisa que você conduz com maestria. Entretanto, espero contar com o seu conhecimento da natureza humana e com a sua generosidade para desvendar o mistério em torno da minha condição. Como você bem sabe, sou gago. Tenho a disfunção desde os meus nove anos, época em que minha avózinha percebeu o problema. Lembro muito bem daquela palavra, que ao final dos três minutos que levei para pronunciá-la havia se tornado um conjunto de no mínimo trinte e cinco sílabas precedido por um som nasal parecido com “hummm” que perdurou por um minuto e meio. Era um pronome comum e inofensivo, mas que

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hoje prefiro omitir tanto oral quanto graficamente, dado o nível destrutivo do meu trauma. Lembro principalmente da expressão de aversão da minha avózinha e dos meus familiares, que esperavam minha resposta para saciar seus interesses inexplicáveis e doentios em contabilizar potenciais parceiros sexuais das crianças da família. Depois que minha avózinha morreu, não tinha mais quem pudesse falar por mim, então fui revistado, preso e sentenciado para a Colônia antes mesmo que eu pudesse dizer meu primeiro nome. Tenho certeza de que você se lembra como eram as coisas por aqui naquela época. Não sei se consigo me abrir por meio de uma carta dessa forma, mas se não o fizer, o farei como? Confio no senhor e sinto que essa talvez seja a última chance que tenho de me abrir e talvez encontrar consolo. Durante minha adolescência, enquanto ainda morava com minha avózinha, descobri que a solidão podia ser prazerosa. Por conta do preconceito, vivi durante anos uma rotina de silêncio e autoêxtase sexual com a ajuda de catálogos de produtos voltados para o mercado feminino. Consequentemente, desenvolvi um tipo de fobia social que me impossibilitava de construir relações íntimas com indivíduos do sexo oposto. Por isso, a solução do mistério em torno da minha disfemia permaneceu oculta até os meus quarenta e quatro anos, quando passei Terra Obscena – E. Reuss


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por minha primeira conjunção carnal. Foi num momento de puro prazer sexual que senti o impulso de gritar palavras que sequer deveriam ser proferidas por almas cristãs, muito menos serem registradas com tinta em uma carta com apelo psiquiátrico. Para a minha surpresa, Dr. Augusto, vi que estava curado! Pelo menos até atingir o clímax. Quando decidi que era hora de agradecer minha parceira e fazer a devida compensação monetária, percebi que a gagueira havia voltado. Deus, pensei, por que você me devolve a fala para logo depois tirar ela de mim novamente? Comecei a chorar desconsoladamente e minha parceira deixou o quarto com profissionalismo e discrição exemplares. De repente, tudo começou a fazer sentido. Agarrei o primeiro livro que encontrei, O Estrangeiro de Camus, e tratei de me estimular manualmente. Assim que estava devidamente excitado, comecei a ler a primeira página e, para o meu espanto, as palavras soaram com um ritmo e leveza que eu nunca havia ouvido antes. Então eu entendi: o autoerotismo é e sempre foi a cura para a minha disfunção. Como você pode ver, até nisso fui amaldiçoado. Deus me revelou o remédio, mas o remédio é tão repulsivo que não posso usá-lo para o meu bem. Tanto a doença quanto a cura me tornam inapto a viver em sociedade. Por isso pergunto, doutor, o que farei para me libertar Terra Obscena – E. Reuss


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dessas amarras impostas por uma sociedade preconceituosa e reprimida sexualmente? Temo que eu seja o único homem que sofra dessa condição e, por isso, me sinto cada vez mais sozinho. Gostaria de dizer muito mais, mas acabarei manchando a tinta dessa carta com as lágrimas que descem pelo meu rosto em enxurradas dignas das torrentes do nosso Rio Imaruí. Talvez numa próxima carta? O seu Manoel Agostinho, vulgo Gaguinho. Hospital Colônia Santana.

César Augusto, vulgo “Doutor”. Tomando café à margem da Rua Engelberto Koerich, nas dependências do Hospital Colônia Santana, São José, SC. Janeiro de 1992. [Continuação] Olha em volta, filha. Todo mundo aqui é igual. O confinamento acabou, então aqui temos essa fração do Brasil esquecida pela própria família, pessoas que um dia foram deixadas aqui para tratar a epilepsia ou o alcoolismo e que simplesmente esqueceram… Esqueceram de tudo, dos seus nomes e dos lugares em que viviam antes de serem entulhados. Mas algumas histórias ainda vivem, em algumas dessas men-

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tes destruídas pelos choques ou pela insulina. Hoje, os diretores esperam todos morrerem pra fecharem as portas, e enquanto eu não morrer, eu vou passar meus dias escutando histórias que podem muito bem nunca terem acontecido e chorando por elas. E filha… Não é porque nunca aconteceram que elas não podem deixar um homem louco. Até um sonho pode enlouquecer um homem, sabe? Já vi acontecer… É? Vixe, e nem tô falando de sonhos não realizados. Esses são piores ainda. Esse homem era um professor de ensino fundamental e sonhava toda noite com um caminho de pedras na orla da praia e com as filhas que ele nunca teve. E toda noite o professor aparecia na casa do melhor amigo, Roberto, um hipocondríaco de meia-idade sem cabelos que vivia com sua filha de oito anos, também sem cabelos. [Pausa para pequeno gole ruidoso de café] Viviam apenas os dois ali, trancados numa casa de três cômodos. O professor dava aulas pra filha de Roberto, que não ia à escola e nunca saíra de casa desde que a mãe morreu num salão de beleza. Ninguém espera morrer fazendo um penteado, e acho que foi isso que piorou o estado psicológico de Roberto. Ele deixou de ser um hipocondríaco autocentrado. Agora ele se consi-

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derava um inimigo da morte. Enquanto ele mesmo não se deixasse levar por ela, Roberto iria impedir o acaso e qualquer situação em que a morte pudesse se manifestar. Raspou suas cabeças, dele e da filha, para evitar qualquer tipo de acidente envolvendo cigarros e latas de laquê. Trancou sua filha em casa, jogou fora utensílios domésticos perigosos, isolou todas as tomadas e as instalou no teto, destruiu ventiladores e trancou o fogão na garagem. E você sabe o que acontece com o medo quando ele é alimentado, não sabe? Roberto agora teme não só a sua morte, mas a morte subsequente de tudo aquilo que ele construiu. Todo aquele universo de proteção e acolhimento. Enquanto isso, o professor sonhava. Ele andava num caminho de pedras como aqueles da Tainha, sabe? A noite estava clara e o pé dele se prendia entre duas pedras maiores e ele não conseguia sair. Era obrigado a passar a noite toda olhando para o horizonte enquanto esperava o sol aparecer, mas ele nunca aparecia. Então ele se lembrava que estava num lugar onde era sempre noite e fazia ahhh como se aquela vida na terra onde existia dia tivesse sido um sonho bobo. Quando acordou, foi pra casa do amigo, pegou sua filha no colo e a colocou no banco de trás do carro. Primeira vez em seus oito anos que ela

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saia de casa. Durante todo o trajeto ela ficou na janela, admirando o mundo, até uma saída na rodovia que ele pareceu pegar como se já conhecesse o caminho para o lugar dos seus sonhos. Pisaram na areia e ela descobriu que o mar tinha cheiro e fazia barulho. Aquele barulho que deixa até quem o conhece meio desnorteado, sabe? Selvagem, ensurdecedor… Você imagina a sobrecarga psíquica que representa uma descoberta desse tipo? Ela precisou correr, tentando assimilar tudo aquilo a sua volta. Correu pela areia, hesitou diante do mar agitado e molhou os pés, riu de alegria, subiu nas pedras, encontrou um siri mas não encostou - ela não era ignorante correu e tropeçou nas pedras. Ele percebeu que alguma coisa tava errada. A liberdade era pra ser aquilo? Ele se aproximou e ficou um bom tempo vendo o sangue escorrer por entre as pedras e se misturar à água do mar. Levou ela pra casa e mostrou a menina morta para a mulher. Enquanto ela chorava, ele virou as costas e foi embora. [Pausa para intervenção médica]

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José Vitorino, alimentando grupo de cães em frente ao Hospital Colônia Santana, São José, SC. Março de 1985. [Som de mastigação] Não, não… Muito obrigado. Não quer mesmo? Olha rapaz, o cheirinho… Sabor “carne de panela”… Tem certeza? Tenho. Então tá, né. Tu que sabe. Heh. [Mastigação] Quantos cachorros você tem? Hum… Aqui, agora? uns vinte cinco… Mas no total mesmo uns sessenta, setenta. Algum motivo para andar com eles? Gosto da companhia, sabe, me sinto seguro. Cachorro não te trai, só come tua comida, é isso que eu sempre digo. Heh. Isso tem alguma relação com seus hábitos alimentares? Tem sim… Ô se tem… Gosto de contar a história, mas o povo não acredita. Minha família me trata como louco por causa disso, sabe como é. Mas larguei a bebida por causa deles. Eles são meus amigos e salvaram minha vida. Claro, não tomo banho e vivo na rua, tem isso, né? Naquela época, eu não andava sem um garrafão de vinho

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do lado. Deixava no chão da caminhonete da Celesc e ia matando a sede enquanto meus colegas subiam na escada. Dirigia o dia inteiro, então tu imagina o estrago. Heh. Aquilo começou a me destruir, sabe como é a bebida, né? E o ponto alto da coisa toda foi quando eu entrei com a caminhonete e tudo dentro de uma casa que ficava num nível mais baixo do que a estrada, sabe? Entrei pelo telhado e estacionei a caminhonete em cima da mesa de jantar. A casa tava cheia de gente fazendo festa. Era aniversário de alguém lá e a mesa tava cheia. Só deu tempo de ouvir a gritaria e o que sobrou do telhado caiu em cima de todo mundo. Só ficou a parte de alvenaria em pé, um banheirinho e uma cozinha. Quando a poeira baixou vi alguém saindo do banheiro, uma moça linda, de uns vinte e poucos anos, loirinha, e, sem mentira, aquilo foi amor à primeira vista. Eu estacionei a caminhonete em cima da família dela. Um pneu tava em cima da cabeça da vózinha dela e só tinha sobrado os cachorros, juro por Deus, mas ela não conseguia tirar os olhos de mim. Aí fui preso, né. Fiquei dois meses na cadeia, só. Quando saí, ela tava me esperando com os dois cachorros e uma garrafa de vinho. Catarina o nome dela. A coisa mais linda que eu já vi. Dois meses depois… Capeta. Capeta, senta lá seu cagão… Não liga não, ele vive esfregando a bunda nas coisas… Dois meses Terra Obscena – E. Reuss


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e a gente comprou uma casinha na beira da estrada. E de vez em quando eu chamava os parceiros pra jogar uma canastrinha lá em casa e pedia pra mulher preparar uma lasanha que ela fazia que meu Deus do céu. Os caras chegavam e era o maior alvoroço com a cachorrada. E quando chegava a comida a cachorrada ficava louca. O Dante até pulava em cima da mesa, às vezes. O Dante era um, Cecília a outra. Mas aí eu comecei a notar uma coisa estranha. Os caras ficavam meio sem jeito quando eu perguntava se eles não iam comer a lasanha, porque eles ficavam uns dez minutos sem encostar no prato. E eles só comiam quando eu saía da sala. Um dia disse que tava indo dar uma mijada e fiquei espiando os caras e vi eles dando a comida pra cachorrada… Filho da puta! O sangue subiu, sabe como é. Ninguém recusa um prato de lasanha assim na minha casa. Daí eles chegaram e me chamaram pra perto deles e disseram ô zézo, ninguém aqui come a comida da tua muié. Não é só a gente que percebe que ela quer te envenenar, zézo. Aí tu imagina o baque que foi pra mim aquela revelação, né, porque eu tava apaixonado pela minha Nina. Mandei todo mundo pra puta que pariu. Mas aquilo não acabou assim. Aquilo me deixou pensativo, sabe como é? Paranóico, como diz o outro… Comecei a achar que a comida tava envenenada mesmo. E comecei a emagrecer Terra Obscena – E. Reuss


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porque no fim eu não comia mais nada em casa e voltei pra cachaça. Foi aí que comecei a pegar a ração dos cachorros. Era só a Nina virar as costas e lá ia a lasanha pro Dante e pra Cecília. Foi uma troca justa pra eles, né, porque era um banquete todo dia… [Risada] Bom, pelo menos até o dia em que encontrei a Cecília e o Dante duros numa poça de mijo na frente de casa, com a boca ainda suja de minestra. Depois disso nunca mais comi comida de gente e pra mim tá sendo bem normal até. Heh.

Carta de César Augusto à Manoel Agostinho. Hospital Colônia Santana, São José, SC. 23 de novembro de 1985. Caro Senhor Manoel: Que benefícios o estudo da natureza humana poderia trazer ao homem da ciência se, no momento em que seu conhecimento se fizesse necessário, ele não pudesse aplicá-lo sobre as dores dos aflitos? De qualquer forma, agradeço seu respeito e consideração pelo meu trabalho, principalmente no que tange o tempo que me é exigido, o qual, de fato, deve ser despendido de forma racional e Terra Obscena – E. Reuss


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eficiente. Terminat hora diem; terminat auctor opus. Por isso mesmo, diante do seu relato, descobri-me calculando mentalmente o tempo necessário para que o seu monólogo fosse proferido na vida real. Se o pronome em questão, que omito aqui por questão de respeito, levou três minutos para ser pronunciado, essa conversa teria durado aproximadamente 30 horas até o momento. Quanto a sua sublime avózinha, que Deus a tenha, compartilho de sua admiração por ela e por qualquer pessoa que não tema a cólera da repressão social. Gostaria de dizer o mesmo de qualquer um dos membros de minha família, que não só teceram comentários negativos sobre a minha estadia aqui nesta excelente instituição, como também cultivaram inimizades dignas de atos de vingança e/ou bruxaria. E como prova da falta de caráter e empatia dessas víboras, costumo citar o fato de que hoje todos podem ser encontrados numa mesma capela de três por três no cemitério municipal em caixotes de pinus não tratado para rápida decomposição, com exceção dos meus pais, que não desfrutaram do luxo de um funeral digno e, portanto, tiveram seus corpos dilacerados por estudantes abastados e risonhos da faculdade de medicina da Fucri e depois incinerados em tonéis de latão da Polícia Federal ao lado de toneladas de psicotrópicos. Terra Obscena – E. Reuss


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Agora, devo pedir que o senhor perdoe minha ousadia em oferecer análises psicológicas a partir de uma mera correspondência, mas admito que o seu relato me soa vagamente familiar. Venho observando, numa frequência que simplesmente não pode ser ignorada, uma certa correlação entre sexualidade e alguns transtornos mentais dos pacientes da Colônia Santana. No entanto, sinto que não posso esclarecer as causas de sua disfemia. Mas, meu caro Gaguinho, digo o seguinte em relação a raridade de sua disfunção: Nunca suponha que você esteja sozinho nesse mundo de loucos. Isso apenas fortalece a energia destruidora do seu isolamento. Onde habitam homens, habitam, ipso facto, depressivos, viciados em drogas, epilépticos, psicóticos, bulímicos, agorafóbicos, esquizóides, paranóicos, amnésicos, piromaníacos, disparêunicos, masoquistas, Ad infinitum, pois Deus sabe que tudo é considerado loucura hoje em dia. Por isso não suponha, Gaguinho, que o homem por trás do balcão nos correios não está manejando seu membro no momento em que você pede para ele despachar uma correspondência. Não suponha que o padre que insiste em proferir a homilia com as mãos sob a batina não está contrariando uma de suas virtudes teologais para manter a palavra de Deus livre de intervenções fonoaudiólogas. Não suponha que nós, os outros, Terra Obscena – E. Reuss


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somos livres de qualquer mania. Primeiro, Nosce te ipsum, ou melhor, como já dizia o grande Alexander Pope, Know, then, thyself, presume not God to scan; The proper study of mankind is Man. Respeitosamente, de seu mais novo amigo, César Augusto. Hospital Colônia Santana, quarto nº 37. P.S. Não seria cordial de minha parte omitir um convite para que você faça uma visita ao meu quarto ou a minha mesa no horário do intervalo. Me sentiria honrado com sua presença e, caso o senhor não se sinta confortável expondo sua disfemia abertamente, saiba que, de minha parte, não haverá julgamentos ou recriminações. Suas mãos nem sequer serão percebidas.

César Augusto, vulgo “Doutor”. Tomando café à margem da Rua Engelberto Koerich, nas dependências do Hospital Colônia Santana, São José, SC. Janeiro de 1992. [Continuação] E então o professor caminhou até chegar numa praia qualquer e continuou caminhando, seguindo a orla em direção ao sul e às vezes desviando por cima de morros com mata fechada, Terra Obscena – E. Reuss


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sobrevivendo a base de frutas e peixes que ele conseguia de alguns pescadores. Nos sonhos ele continuava esperando por algo que ele não sabia o que era. O pé continuava preso entre as pedras e a noite continuava lançando sombras que mais se parecem com rasgos na própria matéria dos sonhos. A diferença é que agora ele vê suas filhas deitadas sobre as pedras. Milhares de filhas que nunca nasceram espalhadas pelo litoral. Elas dizem que sempre estiveram lá ao lado dele e que o levarão para casa, mas a maré está começando a subir e ele sabe que não sobrará nada para ser lembrado. Quando acorda, ele anda como se estivesse à procura de alguma coisa, e quando alguém pergunta o que é, ele ignora e pede uma moeda… Até que alguém dá, e esse alguém é exatamente quem ele procurava. O problema é que ele já não lembra mais dos rostos e o homem de chapéu de palha na sua frente estende um punhado de moedas e pergunta se pode pagar um café. É claro que ele aceita. [Pausa para gole ruidoso de café] O homem o observa enquanto ele devora uma coxinha e diz que o procurou por toda parte e não sorri. Quando o desconhecido tira o chapéu, o professor já está chorando e agora ele reconhece o homem na sua frente melhor que a si mesmo. Era Roberto. O professor então vai embora, mas

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Roberto o segue à distância pelo outro lado da rua, e quando ele acorda Roberto ainda está lá, deitado num ponto de táxi de olhos abertos. No final desse mesmo dia e dos dias que se seguem ele sente a presença de Roberto em qualquer lugar que vá, caminhando em silêncio às suas costas como se fosse uma maldição ou um espírito mergulhado nas trevas com a única intenção de cumprir uma promessa. Um dia Roberto dorme. E quando acorda, o professor de sua filha está chorando ao seu lado. Tudo que ele queria dizer para Roberto era que amou sua filha e que se arrependia, mas não sabia se Roberto estava entendendo, porque as palavras que saiam de sua boca eram atropeladas pelos soluços… e então Roberto segura sua cabeça com as mãos, assim… [Pausa] E diz que agradece por tudo. Agradece por ele ter levado ela embora. Diz que não conseguia mais tolerar o medo. Mas Roberto não o chama pelo nome. Ele o chama de Morte, e diz: Morte, não precisa chorar. A alma dela é nossa responsabilidade agora… E é muito mais fácil tomar conta daquilo que não pode morrer, amigo. [Pausa para gole de café] Por isso eu digo que todos tem a mesma escolha: conformidade ou insanidade. Eles fizeram

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a escolha deles. Então eles são vistos dentro das mesmas latas de lixo, compartilhando os mesmos cobertores, se lavando no chafariz da Praça do Congresso, caminhando um ao lado do outro como amigos de infância. Ignoram os olhares, porque é isso que todos eles fazem. Passam em meio a um corredor de faróis vermelhos ouvindo ao som de seus rádios, retalhos de uma mesma programação que os loucos conseguem ouvir se lançando pra fora de centenas de carros indo pro mesmo lugar. [Risada] Percebe? Ali, eles enxergam a discrepância entre eles e o resto mundo. Eles estão isolados dentro do próprio isolamento. E é nesse isolamento que eles encontram a liberdade. [PAUSA para convulsão seguida de fonospasmo. Intervenção médica. Aplicação intravenosa de insulina. Enfermeira aplica pano úmido para conter salivação excessiva. Gravador cai no chão.] [Enfermeira] De novo, Seu Augusto? O que aconteceu com ele?! É normal, moça… Ele tava te contando sobre o sonho? [Silêncio; Respiração ofegante.]

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Ele conta pra todo mundo. Judite, traz o rosinha aqui pra mim… Todo mundo? Seu Augusto, é aquele que tu gosta… [Silêncio] É moça, todo mundo que ele entrevista.

“Carequinha”, nome verdadeiro desconhecido, Hospital Colônia Santana, São José, SC. Pendente por conta da insistência do entrevistado em exibir seu órgão genital ao pesquisador. Setembro de 1985.

“Elaine” Zheng, entrevistada por César Augusto em viagem organizada pelo Hospital Colônia Santana para reintegrar internos à sociedade. Nova Veneza, SC. Abril de 1985 Senhora Zheng? [Silêncio] Senhora… Gostaria de fazer umas perguntas… […]

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Ouvi falar que podia te encontrar aqui e queria saber um pouco sobre… Sobre essa sua relação. Com os orelhões. [Ficha cai no coletor; Silêncio] Coisa rápida… […] [Toque do telefone] Você vai atender? […] [Em voz baixa] Ela continua sem fazer contato visual. [Toque do telefone] De costas, a largura de seu quadril ultrapassa a abóboda laranja do telefone público. [T. do T.] É uma mulher encorpada, sem dúvidas… […] [T.T] Vou atender o telefone aqui, tá? Alou? [Cantando] Alô, alô, responde, quem gosta de você de verdade? Oi? [Risada histérica] Senhora Zheng? [Bufadas intensas de alguém tentando recuperar o fôlego; Tilintar de fichas metálicas] É você? Quem é essa? Eu consigo te ouvir daqui desse lado… e nem estou com o telefone no ouvido. O nome é Elaine, meu querido… Terra Obscena – E. Reuss


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Ótimo! Você pode falar um minuto? Até três. Melhor ainda… Já se foi meio, pra falar a verdade. Ouvi falar que você passa muito tempo aqui. Muito mesmo. Tá vendo aqui, no casco? [silêncio] O que significa? Jiá, casa. Quando perguntam onde eu moro eu digo 3338245 e eles perguntam se esse é o CEP e eu digo que é meu orelhão. Não tenho vergonha. Já tentaram me expulsar daqui e também já fui presa. Mas depois que um advogado me disse que enquanto eu tivesse ficha e fizesse ligação quando os homem aparecesse, era só eu ficar aqui encolhida dentro do orelhão que ninguém podia me incomodar… Invasão de privacidade, diz ele. Ó, ouviu o clique? Hein? Um minuto já… Você acha que eu falo demais? Isso é porque minhas conversas duram sempre três minutos. Você não pode usar mais fichas? Não, não, quando faço uma ligação não gasto mais de uma. Apesar de eu ter bastante ficha, né. [Tilintar de fichas metálicas] Tá ouvindo? Tô guardando pra encontrar o corpo do meu marido. Cada ficha é preciosa. Eu já atravessei quase todo o país com elas. Se você já atendeu uma ligação de orelhão, é bem provável que a gente já Terra Obscena – E. Reuss


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tenha conversado antes. Elói, era o nome dele. Fui eu mesma que avisei que ele tinha morrido, vê se pode. [Risos] Um dia atendi o telefone e só ouvi o eco da minha voz, sabe como é? Mas não desisti, fiquei ouvindo minha própria voz por dois minutos. Repetindo Quem é, Fala alguma coisa, e coisa e tal, até que resolvi perguntar: Elói? E a voz me respondeu Ele não tá aqui, não, Elaine. Gelei, meu filho. Gelei e comecei a chorar. Eu sabia que era eu mesma ali do outro lado e que eu não ia gastar mais de uma ficha naquela ligação. Velha sovina. Perguntei onde ele tava e eu respondi que Elói tinha morrido mas que ninguém apareceu pra buscar o corpo. Ele tava apodrecendo numa vala no interior. Interior de onde? E a voz me disse que ele tava apodrecendo bem em baixo do meu nariz, e não lá em São Paulo como eu pensava. E…? E eu pedi pra ela me dizer onde ele tava. Ela me perguntou o que seria da gente se eu encontrasse nosso marido? Como assim? Foi o que eu perguntei, mas aí a ficha caiu e eu fiquei sozinha. Eu sabia que minha voz não queria que eu desistisse, mas ela me deixou sozinha… Esperando. Quando o telefone toca eu tô sempre aqui. Eu atendo com o coração dispa-

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rado, toda vez… Nunca mais ouvi uma voz conhecida. É sempre alguém procurando alguém que mora por aí, mas nunca se referem a um lugar conhecido. Sempre bairros estranhos como Alicerce ou Argentina de cidades que eu nunca ouvi falar… Acho que são cidades fantasmas, se você quer saber. É estranho como essas vozes sempre são suspeitas, não é mesmo? Alguns até conversam, e eu percebo que tão procurando alguém também. Eu ouço a solidão na voz deles. E é por isso que conversamos até eu me lembrar que tô esperando uma ligação importante… Digo que tenho que desligar e eles fazem de conta que não se importam, mas aí eu ouço só a respiração deles por um segundo… aquela pausa de um segundo que é um silêncio pequeno mas na verdade esconde um silêncio triste e ainda maior, que eu conheço muito bem. Então desligo e espero. Espera pela ligação… O que mais eu posso fazer? Hein? Pra nós, pessoas como eu e você, filho, o mundo é isso aqui… é essa linha de telefone que une gente procurando gente, gente esperando na linha como se fosse na corda bamba, só esperando ser engolido pela escuridão de uma ficha que cai ou da maré que sobe. [Clique metálico; Linha fica muda]

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Zeferino Coutinho, entrevistado por César Augusto em viagem organizada pelo Hospital Colônia Santana para reintegrar internos à sociedade. Siderópolis, SC. Abril de 1985. Você tem aí toda essa região morta aqui ao redor, né? Essa coisa que depois do carvão nunca voltou a ser verde. Eu era perfurador na época, e o carvão ficava amontoado nesses campos aí. Anos depois, quando já tinha passado essa febre do carvão, várias famílias tentaram plantar, mas não conseguiram. O solo ficou ácido por causa da drenagem. A pirita oxida e destrói tudo. Agora é isso aí que você tá vendo. Parece a lua, não parece? [Som de passos sobre pedras] Pergunta. [Inaudível] O Seu Tonho trabalhou comigo na época da mina Amália, você tinha que ver ele com os dinamites. Chamavam ele de Seu Tocha, porque ele sempre conseguia atear fogo nas bananas, mesmo quando o ar lá embaixo tava tão viciado que nem dava pra acender faísca. Diziam que ele acendia com os dentes. Mas ele começou a usar dinamite a sério mesmo em 63, 64, por aí… Pergunta.

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Não fez muita coisa não. Teve morte, sim. Ele explodiu um pedaço da Marion, mas isso já nos anos 70. Pergunta. [Risada] Marion não é gente não. É um demônio. Um demônio de aço de 60 metros de largura. Ela que comeu toda a terra aqui. Tá vendo essas crateras? Pergunta. Última vez que vi ele foi uns anos atrás. Cortaram o subsídio e o carvão passou a ser importado. As terras aqui se encheram de gente desempregada. E não é qualquer tipo de gente desempregada não. É mineiro desempregado. Sabe a diferença? É gente sofrida. Tá vendo aqui? Embaixo do olho? Isso aqui é rocha… Rocha da mina que tá aqui desde 78, enfiada aqui. Isso aqui é o toco de um dedo que o Seu Tonho cortou pra mim. Por isso eu consegui largar a mina antes, nem todo mundo tem essa sorte. Pneumoconiose, já ouviu falar? Aqui se espalha que nem gripe. Você sabe que tá no meio de mineiro quando ouve essa tosse que parece que sai da boca junto com o próprio eco, sabe? E depois tem a morte. Na época das vilas que a carbonífera construiu era enterro de criança e adulto em fila indiana, jovem, por causa da água, diziam… Pergunta.

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[Tosse] No dia que ele foi mandado embora, ele se aproximou de mim com a mão estendida e com aquele sorriso dele, sabe? Nenhum dente da frente. Carregava nas costas uma mochila velha. Ele não disse nada, só tirou a mochila das costas e me mostrou uns quinze quilos de dinamite enfiado ali. Eu perguntei o que que ele queria com aquilo. Ele só disse que ia dar fogo e ficou repetindo aquilo. Não sei como que ele tá agora, mas ali eu vi que o Seu Tonho não era mais ele mesmo, me entende? Depois vi ele seguindo o trilho junto com uma tropa de mineiro demitido, e eu sabia que pelo menos metade deles não iam parar na cidade. Eu sabia que eles continuariam seguindo os trilhos e se afastando cada vez mais da mina, sem nem olhar pra trás. Alguns morreram porque, no fim, era embaixo da terra que eles queriam ficar, né? [Risos; Tosse] Quando se passa muito tempo lá embaixo você sente que começa a se atrair pelas coisas erradas, sabe? Depois de um tempo tu nem olha mais pra cara da Santa Bárbara… e não é porque a fé acaba… O mineiro simplesmente esquece o que ele queria pedir desde o começo. Seu Tonho só aguentou mesmo porque ele queria muito dar fogo em alguém…

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Pergunta. Não sei, não, pode ter sido algum patrão que ferrou com ele na época do golpe militar. Vingança. Ou nem isso, Seu Tonho é esperto… Alguns procuram a própria morte e a maioria acaba encontrando. Os mais espertos desviam o caminho dela… Da morte. E o Seu Tonho é o filho da puta mais esperto que eu e o diabo já vimos lá embaixo. [Risada nostálgica].

Maria Juliana Darós, almoçando no refeitório do Hospital Colônia Santana, São José, SC. Pendente. Gravação fonográfica apreendida em operação de busca e apreensão da Polícia Federal. Aguardando liberação das provas. Outubro de 1985.

César Augusto, vulgo “Doutor”. Pátio da ala masculina, sob a “sombrinha”, Hospital Colônia Santana, São José, SC. Janeiro de 1992. Filha, como eu posso te culpar por ter ido embora? Mesmo durante a convulsão, eu só conseguia pensar em te pedir perdão. Verdade. Aqueles ataques estão cada vez mais comuns. Se Terra Obscena – E. Reuss


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tornaram diários e agora até parece que não consigo viver sem eles. Uma pessoa da minha idade não devia viver com esse tipo de preocupação. A verdade é que chega uma hora em que eu preciso me abrir. É minha doença. Preciso vomitar essas histórias, como se elas pedissem para serem contadas. Às vezes eu penso que é a minha forma de provar que aquilo realmente aconteceu, a história do professor e suas filhas e de todo o resto. Isso ou é apenas a mente de um velho que vive no passado. Patético, não é? Não vou esconder a verdade de você. Nem sei se você vai ouvir essa fita. Hoje é sábado e você não está aqui. Então posso supor que você fez o mesmo que os outros? O mesmo que a sua mãe? Não te culpo, isso aqui não é para todos. Por isso menti durante todos esses anos... Eu não podia deixar que vocês soubessem o que eu fiz com a filha dele, sabe? Mas mesmo correndo o risco de te afastar mais ainda, não vou esconder o fato de que todos os dias eu esperei que Roberto surgisse por trás das grades do jardim. E ele sempre aparecia, sujo e perdido, todos os dias esperando que eu mudasse de ideia e voltasse lá pra fora. E quando eu conto a história, de repente vejo ele sumindo por trás das árvores, e é aí que começam os ataques. Não entendo

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porque, sinto esse medo paralisante de… de ficar sozinho. E depois que você foi embora, ele apareceu mais uma vez por trás da grade, mas sinalizando histericamente com as mãos e com os braços. Os sinais não faziam sentido, mas era óbvio que ele queria dizer alguma coisa. Eu disse que não entendia, gritando, mas ele não conseguia me ouvir por causa do trânsito. Foi quando ele me chamou com os braços que eu percebi que eu havia perdido o interesse. Aquela não era mais a minha vida. Apenas acenei pra ele, exausto, e disse que não podia ou que não queria, não sei. Ele não me ouviu mas pareceu entender o gesto, pois ficou alguns segundos parado, encarando todo aquele espaço vazio entre nós depois das grades. Eu pertenço a esse lugar agora, disse pra mim mesmo. Chorei aquela noite, não por ele, mas por todos os caras das minhas fitas que não conseguiram encontrar o que procuravam. Choro pelo país inteiro, que se move por inércia na direção do buraco. Choro pelas filhas que eu perdi, incluindo você, e pelo brilho no rosto do pai de Carol percebo que ele também chora. E então me recolho ao silêncio, ao anonimato dos loucos e ao medo… que talvez seja o medo dos diretores do centro. O medo de que talvez a morte não possa morrer. [Silêncio; Ruído - manuseio do gravador; Trânsito] Terra Obscena – E. Reuss


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Mas a gente tá aqui pai… Do teu lado. Sempre estivemos. [Pausa] Filha? [Pausa] Pode desligar agora. Nós vamos te levar pra casa.

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CONTO 7

Rosca J. R. Tudor

O PESO DO MARTELO MARCIANO Por: Fernand Pêcheur Publicado em 06/02/2216

Introdução

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esde minha tenra infância, quando mudei da pobre Europa para o Brasil, sempre tive dificuldade em me adaptar à vida no último dos grandes impérios. Meu amor por toda pluralidade e oportunidades que essas terras oferecem contrasta com como a nação mais avançada do universo consegue ser tão medieval em toda a raiz de seu pensamento. Quanto pode ser perigoso juntar alguns fatores culturais tão atrasados com tal gigantismo.


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Escrever críticas sobre esse povo sempre me foi complicado, pois tenho uma eterna dívida de gratidão por ser tão bem recebido e sempre tratado como um dos seus. Por esse motivo tomo cuidado para não deixar meus caprichos críticos carecerem de respeito ou, de alguma maneira, agredirem. Não sou também adepto à Política das Alfinetadas. Explico: Como jornalista e cronista acho uma imensa pobreza de caráter profissional qualquer prática sensacionalista. Expor casos apenas pela necessidade de satisfazer a fome coletiva por desgraça é uma postura profissional que nunca adotei. Um caso merece reportagem quando transmite algo que faz as pessoas pensarem além dos fatos mais óbvios. É muito difícil encontrar casos que atinjam tais critérios e desafiador os transformar em conteúdo digno de leitura. Até hoje pouco me arrisquei nesse sentido, pois minha filosofia de trabalho sempre priorizou a qualidade sobre a quantidade, a não ser por meus incontáveis textos sobre gatos (ninguém se cansa de tanta fofura) e mais um ou outro artigo de simples curiosidade despretensiosa. Viajando para todos os planetas, luas e estações espaciais onde o Brasil clamou território me deparei com várias situações que variaram de curiosas a intrigantes e uma em especial chamou minha atenção. O Peso do Martelo Marciano – Rosca J. R. Tudor


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Foi um caso no pequeno povoado marciano chamado Simiópolis. Um próspero ponto comercial localizado entre as fronteiras do Império do Brasil e territórios livres, muito conhecido por ter o maior zoológico especializado em símios de todo Sistema Solar, e inspiração para seu nome. A Constituição Imperial, como todos sabemos, dá liberdade para que cada região tenha suas próprias leis, de modo que atenda às necessidades específicas de lugares diferenciados. Por mais que algumas leis causem estranheza em visitantes elas costumam existir por algum bom motivo e não cabe a mim as questionar. Sendo assim, sempre fujo dos pedidos de escrever sobre qualquer coisa a elas relacionada. Mas e se o questionamento não partisse de mim e sim da própria comunidade?

Um pouquinho de História Com o fim da Grande Guerra de Libertação, em 20 de março de 2202, a última grande nação a manter toda sua unidade territorial foi o Império do Brasil. O Império passou a guerra inteira mantendo sua condição de neutralidade, porém muitos dos novos territórios independentes temiam que as forças militares brasileiras

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usassem esse momento para ampliar suas fronteiras. Isso nunca ocorreu, como a Historiografia moderna prova, mas o medo era legítimo. A única maneira encontrada por esses novos povos para lutarem contra um império foi instigando levantes regionais e executando ataques terroristas. Desde o Século XX o governo brasileiro passou a desencorajar a posse de armas de fogo por sua população. Foi um processo gradual e controverso estendido por mais de século, que hoje é plenamente consumado, pelo bem ou pelo mal, e ninguém mais discute. Inquestionavelmente o governo brasileiro se tornou muito eficiente tanto em desarmar sua população quanto em evitar que qualquer arma entre em seu território, a não ser com agentes autorizados. Nesse contexto foram criadas leis bastante severas sobre uso e regulamentação de qualquer artefato que possa ser usado como arma, desde simples facas de cozinha até ferramentas industriais. As leis foram bem aplicadas e isso pode explicar como o território brasileiro registra os menores índices criminais de todo universo.

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Crime e punição Em 27 de setembro de 2215 a justiça de Simiópolis condenou o mecânico e armeiro Joaquim Ramalho a sua pena máxima, o exílio, por modificar ilegalmente uma ferramenta. Uma serra de plasma teve sua potência e foco da lâmina aumentados. Seguindo determinação legal Joaquim foi levado apenas com a roupa do corpo até os portões da cidade, de onde foi obrigado a caminhar sob a mira dos agentes governamentais até fora dos limites do território brasileiro.

O Caso do Município de Simiópolis contra Joaquim Ramalho No dia 11 de fevereiro de 2214 Joaquim entrou com pedido para modificar e usar sua serra de plasma para a demolição do antigo presídio municipal. A necessidade de derrubar tal edificação surgiu quando suas fundações começaram a colapsar, o que fez a antiga construção se inclinar sobre uma área residencial. A alegação feita por Joaquim sobre a necessidade da modificação foi que o edifício possuía paredes muito grossas e resistentes e que, assim sendo, O Peso do Martelo Marciano – Rosca J. R. Tudor


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“uma lâmina com 60 cm e potência de 2,03 megajoules é extremamente necessária para cortar a fibra de diamante” e que “não temos recursos para trazer de outro lugar uma ferramenta adequada”. Uma via do requerimento foi enviada para cada um dos cinco delegados de Simiópolis e dois deles assinaram, assim validando o pedido. É nesse ponto que o caso ganha suas primeiras intrigas. Durante a primeira audiência o réu foi acusado de modificar a ferramenta ilegalmente e isso foi o motivo para decretarem seu exílio. Joaquim pediu então a abertura de seu correio eletrônico para mostrar a cópia do requerimento assim como as assinaturas digitais dos delegados. É digno de nota o fato de que Simiópolis tem uma grande rotatividade de delegados. Apesar de alguns estarem no cargo há mais de década a maioria permanece apenas alguns anos, quando muito. Apenas um dos dois delegados que assinaram a carta ainda continuavam na função e esse estava de férias nos dias do julgamento e condenação, enquanto a outra delegada mudara para a Terra há alguns meses. Não seria de se estranhar que, mesmo nos dias de hoje, um documento fosse extraviado ou integrantes de uma mesma

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agência falhassem na comunicação. O estranho foi o delegado Filipe Marcondes insistir sistematicamente em acusar Joaquim de mentir perante a corte e só permitiu a abertura do correio eletrônico do réu após os populares presentes insistentemente pedirem.

Sociedade simiopoliense Simiópolis é uma cidade pequena com pouco mais de 10.000 habitantes, sendo que desses apenas 1.500 residem permanentemente. A maioria das 10.000 pessoas trabalha com comércio ou pesquisa e, por isso, passa a maior parte do tempo fora da cidade. As outras 1.500 incluem pessoas que trabalham com prestação de serviços, o que inclui mecânicos, armeiros e delegados. Não é, então, difícil entender que esse núcleo de 1.500 pessoas tenha uma convivência muito próxima e algumas histórias juntos. Explico algumas delas:

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O caso de Filipe Marcondes contra Joaquim Ramalho No ano de 2204 Joaquim emitiu algumas opiniões duras a respeito da qualidade dos produtos e serviços da empresa de entretenimento eletrônico da qual Filipe era um dos acionistas. A discussão seguiu por canais eletrônicos de maneira acalorada. “Mas foi tudo impessoal”, me explicou uma fonte anônima. Segundo consta nos autos, Filipe se descontrolou fazendo uma clara ameaça de morte contra Joaquim. “Naquela época a cidade era bem menor e foi fácil eventualmente nos encontrarmos e resolvermos civilizadamente... mas assim mesmo demorei para perdoar o episódio. De minha parte isso é passado. Nas palavras dele também, então vou confiar”, declarou Joaquim durante uma entrevista ao jornal local no dia de sua audiência. “Fiquei muito feliz de saber que tudo está resolvido e nenhuma mágoa restou. É extremamente difícil ser o delegado responsável por chefiar todo o caso de exílio. Hoje é um dia muito duro, mas a lei tem que ser cumprida”, declarou Filipe em outra entrevista no mesmo dia. “O Filipe é um covarde. É o que dá colocar acionista de fábrica de brinquedo para ser delegado”, declarou um dos companheiros, anônimo,

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de Joaquim em sua empresa. “Se ele não estava cultivando essa vingança há anos então foi covarde de exilar um homem bom, útil para nossa comunidade, usando de uma lei distorcida que, nesse caso, puniu um crime sem vítima”, segundo Abílio Schartz, dono da empresa rival. Na mais cética das hipóteses podemos apenas tomar as palavras das partes e usá-las como referência. Mas, infelizmente, outros depoimentos confrontam essa postura e Filipe não é o único delegado que teve algum problema pessoal com Joaquim

Joaquim Ramalho contra Eduard Soto De todos os casos pessoais entre o condenado e delegados esse é, com certeza, o mais intrigante. Eduard é um dos delegados a mais tempo na função, assumindo-a ao final de 2202. A convivência entre ambos era muito boa no começo. Mesmo que Joaquim, durante seus primeiros anos em Simiópolis, não fosse um cidadão exemplar, também nunca teve problemas sérios com ninguém. Uma bebedeira aqui, um bate-boca ali, um ato obsceno acolá, algumas horas ou dias na detenção e tudo era resolvido.

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“Simiópolis era uma cidade muito pequena em 2202. Não chegávamos nem perto de ter 1.000 habitantes e ficava fácil lidar com as pessoas”, explicou o delegado Uéber Varine, atual delegado a mais tempo no cargo, tendo assumido em 2201, quando Simiópolis ainda tinha o status de povoado. “Nunca fui amigo pessoal dele, apenas nos dávamos bem e tínhamos um pouco de afinidade. Na época ele (Joaquim) se dava bem com a maioria do pessoal e tinha muitos amigos pessoais, incluindo alguns delegados”, também comentou Uéber. No ano de 2205 Joaquim e Eduard tiveram uma discussão muito acalorada. A partir desse momento foi muito raro ver um dos dois terem qualquer tipo de interação direta. Testemunhas dizem que foi acerca de questões administrativas, mas algumas testemunhas dizem haver muito mais que isso. “Foi problema com mulher”, relatou um exdelegado que preferiu permanecer anônimo. “Eduard por muitos anos se relacionou com uma garota de uma cidade próxima. Eles namoraram por anos, parece que iam casar, mas um deles desistiu e o relacionamento acabou. Algum tempo depois, em viagem a essa cidade, Joaquim teve um caso com a garota e ela aparentemente foi um pouco barulhenta sobre isso. Joaquim jurou de pé

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junto que não sabia quem era a moça, e eu acredito, mas Eduard não gostou nada disso”, concluiu a mesma fonte. Intrigas a parte, é difícil imaginar que uma discussão administrativa, por mais acalorada que seja, cause uma mágoa tão grande que, mesmo depois de dez anos, não possa ser superada. Existem registros que mostram diversas tentativas públicas por parte de Joaquim em reestabelecer uma boa convivência entre eles. O próprio declarou sequer lembrar exatamente o motivo da discussão. Fontes afirmam que Joaquim nunca foi um homem fácil de lidar. “Ele não é um homem avesso a aceitar opinião alheia ou pedir desculpas e buscar reparação quando está errado, mas existe a necessidade de esforço da outra parte”, comentou um sorridente Victor Vandum, companheiro de Joaquim em diversos projetos comunitários.

O dia do julgamento O mais difícil ao escrever essa matéria foi colher opiniões. Simiópolis é uma típica cidade pequena de área fronteiriça. Ela tem seu bom punhado de grupos, alguns são mais moderados, mas a maioria carrega opiniões fortes demais

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sobre um ou outro assunto. Não importa qual a discussão, em Simiópolis ela gerará dois grupos dominantes de opiniões totalmente contrárias. Algumas discussões dividem totalmente a cidade, a ponto de algumas pessoas simplesmente não olharem umas para as caras das outras. Joaquim não foi um assunto diferente, encontrei tantas pessoas que o adoram quanto o odeiam. Poucas no meio termo. “Em toda minha vida nessa cidade eu nunca vi tanta gente vir a uma audiência. O que mais me espantou foi como tantos grupos que se odeiam conseguiram concordar em defender esse homem. Acho que só ele para unir toda a cidade”, declarou o entusiasmado Theo Konrad, segurança de uma mineradora local, e que disse nunca ter sido amigo pessoal de Joaquim, tendo uma convivência mínima. Demais populares declararam que a parte mais intensa do julgamento foi quando cinco exdelegados, incluindo Miguel Pettrus, cofundador de Simiópolis e primeiro delegado da cidade, intercederam em defesa de Joaquim. “Sou defensor de uma linha de conduta diferente por parte da Justiça”, disse Miguel, “não acredito em cláusulas pétreas, prefiro leis referenciais. No meu entendimento, nenhuma delas deveria se sobrepor ao velho e sábio bom senso”, concluindo, “Joaquim tem um histórico exemplar,

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nunca prejudicou a comunidade de qualquer maneira e mesmo esse episódio não constitui dolo a qualquer pessoa. Mais coração e menos fígado, senhores”. Essa declaração foi forte o bastante para fazer a corte entrar em recesso. O exdelegado posteriormente se retratou, pois, sua moral na cidade é tão grande que, mesmo depois de anos afastado do cargo e morando em outro planeta, muitos cidadãos ainda tomam suas palavras com mais autoridade que as dos atuais delegados em exercício. Provavelmente a retratação foi para não causar algum incidente administrativo, mas assim mesmo ele apenas se desculpou por interceder, não pelo que disse. Também é importante dizer que, segundo os próprios ex-delegados, todos se manifestaram por livre e espontânea vontade e não por Joaquim ter apelado à amizade os convocando para sua defesa. É importante salientar que um desses exdelegados, Daniel Emérito, declarou nunca ter sido amigo de Joaquim Ramalho, “quando eu era delegado ele nunca poupou críticas contra meu trabalho, algumas muito injustas e até mesmo pesadas, questionando minha própria competência em ser delegado. Mas não tenho nada contra ele, só o acho um cara muito chato”.

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O Julgamento Em sua defesa, Joaquim afirmou que a serra de plasma modificada foi usada com as novas especificações apenas para a demolição do antigo presídio e, posteriormente, duas outras obras. Segundo os delegados, após reformularem a acusação inicial, o crime foi usá-la nessas outras obras sem autorização. Joaquim atestou: “Não uso essa ferramenta com muita frequência. As duas obras que fiz posteriormente foram emergenciais, e a usei também em um projeto dentro de minha própria oficina. Assim mesmo não é como se vocês (os delegados) não soubessem que ela é minha e não existe crime que eu pudesse cometer com ela passando impune. Pior, se eu quisesse prejudicar alguém simplesmente usaria uma arma de verdade já que também é minha profissão as fabricar e prestar sua assistência. A maioria das armas que vocês usam ou fabriquei ou prestei manutenção”. “Essa é uma ferramenta muito cara e eu não tinha condições de comprar outra. O serviço para o qual a prefeitura me contratou na delegacia cobriu as modificações iniciais na serra, mas não a compra de outra nova. “

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Os delegados insistiram na linha de que “lei é lei e você não deveria ter usado essa ferramenta”, ou “a lei existe por um bom motivo”. Essa foi uma linha que não condeno, apenas questiono, mas um dos delegados usou o espaço destinado ao julgamento de um homem para fazer piadas de puro escárnio barato, coisa que eu não esperava vinda de um oficial da lei e que pode dizer muito sobre a postura de tais oficiais perante o caso. No geral, toda a tônica da acusação foi racional. Existe uma lei criada por motivos totalmente legítimos. O exilado infringiu a lei e, provavelmente, poderia evitar a maioria dos problemas com mais transparência perante as entidades legais. Porém o contingente de delegados é muito pequeno. A recomendação geral da União é que cada cidade tenha um delegado para cada 3.000 habitantes. Em uma cidade brasileira com 10.000 habitantes localizada na Terra ou região menos hostil de Marte o contingente de 4 delegados excederia qualquer demanda, mas em Simiópolis, por ser região fronteiriça e pela natureza de seus principais negócios, esse contingente parece não ser o suficiente. Quando questionei várias pessoas sobre Joaquim não ter buscado a constante regulamentação de sua ferramenta, todos entrevistados foram unânimes em dizer que “os oficiais da lei estão sobrecarreO Peso do Martelo Marciano – Rosca J. R. Tudor


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gados e mal conseguem lidar com todas as denúncias, imagine cuidar de burocracia relacionada a uma ferramenta”. Eu ignoraria essa argumentação caso não tivesse visto a dificuldade dos delegados atuais ao lidarem com a existência do requerimento de modificação original. Posso ser inexperiente com burocracia, mas não precisa ser nenhum engenheiro de leis para entender que em Simiópolis existem deficiências. O que quero transmitir nessa matéria é que estamos em 2216 e ainda existem lugares onde Lei e Justiça não são sinônimos. Estudando a História do Brasil em qualquer época desde sua fundação, nunca faltaram casos como os de Joaquim Ramalho. Delegados, como os de hoje, são uma criação do Sec. XXII quando forças policiais e tribunais antigos se tornaram obsoletos e a tecnologia permitiu que segurança e execução legal fossem feitas por bem menos pessoas. Delegados podem fazer o serviço de centenas ou milhares dos antigos tipos, de maneira muito mais rápida e eficiente. Ainda assim me pergunto: O que deu errado em Simiópolis com Joaquim Ramalho? A população clamou pela absolvição do condenado, ou que, pelo menos, uma pena menos rigorosa e não definitiva fosse aplicada apenas pelo crime

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de não atualizar a licença da serra. Alguns dos próprios delegados alegaram “ser difícil aplicar essa condenação”. E, o principal, é que ninguém pode dizer que foi prejudicado de qualquer maneira pelas ações de Joaquim. Pior, quantas pessoas deixaram de se beneficiar dos serviços de Joaquim? E se ele não modificasse sua serra de plasma e deixasse o presídio cair em cima das residências? E se ele não atendesse as duas emergências? E se negasse a fazer os serviços em sua oficina que necessitavam da ferramenta em questão? Não temos nenhuma vítima, mas, assim mesmo, uma punição? Minha única conclusão remete diretamente à época de nossas Capitanias Hereditárias. Naquela época existia o ditado “manda quem pode e obedece quem tem juízo”. Não é o caso de escolhermos quais leis obedecer, mas em como enquadrar certos casos dentro de algumas delas. Toda lei possui sua razão para existir e é obrigação de qualquer oficial saber discernir quando a legislação sai de sincronia com a justiça. Eu não digo que essa lei deva deixar de existir, mas quando se pune alguém, ainda mais de maneira tão pesada, só pela existência da lei, é porque algo deixou de funcionar.

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E Joaquim? Ladrões, vândalos, assassinos e toda corja que vive do dolo alheio recebe penas bem menores ou menos humilhantes, pois mesmo que trancafiados ainda fazem parte da comunidade e, quando suas penas expiram, simplesmente são reintegrados. Um homem que não cometeu nenhum dolo é simplesmente privado de viver entre seus iguais. Quem prejudicou mais a sociedade: O crime ou a punição? Fui atrás do paradeiro de Joaquim e encontrei-o vivendo num pequeno vilarejo independente. Seu depoimento foi bem curto, mas acho que dirá mais que toda minha matéria. Assim sendo, encerro com ele: “Em Simiópolis eu sou um fora da lei, aqui um homem livre. Em ambos os lugares faço exatamente a mesma coisa, que é viver dignamente e não foder a vida alheia. Como em um lugar isso me dá liberdade e noutro punição? Não reclamo de minha vida, só não gostei de deixar tantas coisas, pessoas e minha história naquela comunidade para trás. Minha vida continua boa porque continuo fazendo a coisa certa. O Peso do Martelo Marciano – Rosca J. R. Tudor


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Mas, sabe o que realmente achei engraçado nisso tudo? O portão da cidade... o que fecharam atrás de mim... um monte de peças dele foi construído por mim, na minha oficina. A cidade inteira está cheia de coisas que eu construí. Não quero de volta, que façam bom proveito, porque fiz de coração, para durar. Durarão mais que qualquer mal que eu tenha feito”.

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CONTO 8

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mundo era gigante visto lá de baixo, com formas e tamanhos desproporcionais. Filomena andava tranquilamente pelos becos, vielas e ruas de São Paulo. Seu lugar predileto era a biblioteca Mário de Andrade, considerava seu habitat. Conhecia cada centímetro daquele local que dizia ser o céu das traças. Comida a vontade e de qualidade, e ainda um lugar quentinho para digeri-la.


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Em uma manhã nebulosa de um sábado qualquer, Filomena saiu escondida de uma luminária desligada do hall da biblioteca e seguiu discretamente ao local onde ficavam os livros. No caminho acabou se perguntando porque a biblioteca era pouco frequentada. Via poucos humanos ali. – Será que eles são loucos? – Pensou ela. Ao chegar a 50 metros do tesouro de Filomena, ouviu-se uma conversa: – Se continuar assim, teremos que fechar. Está vendo esse movimento? – É verdade, mas aqui é assim mesmo. Filomena espiava discretamente para que não fosse percebida e, consequentemente, morta. Conhecia histórias de traças que foram dominadas pela curiosidade e se mostraram aos humanos, que com suas mãos gigantes e pesadas descerem um belo tabefe nelas. Essas histórias eram comuns, tanto que um parente de Filomena havia morrido há algumas semanas dessa mesma forma. A traça ficou pensativa com a conversa das duas senhoras que passavam no corredor, mas seguiu em direção ao seu mundo mágico.

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Virando à direita, passou pela pequena fresta de uma porta que estava sendo pouco a pouco comida por cupins e entrou com maestria no seu paraíso. Seus olhos brilharam, sua respiração ficou fraca e as sensações se intensificaram. Filomena foi com sede ao pote como se fosse uma criança em uma barraca de algodão-doce. Correu seus olhos com cautela pelas lombadas dos livros, tentando escolher suas próximas vítimas. Condenou praticamente uma estante inteira, que serviria para alimentá-la durante alguns anos. Sem pudor, sem misericórdia e com o olhar sedento de um assassino, Filomena começou a devorar seu tesouro sagrado. Após algumas horas, a tracinha, com olhar satisfeito, foi até um canto úmido próximo ao banheiro feminino para descansar de sua digestão. Quando deu por si, estava ouvindo uma conversa de humanos: – Mais um livro danificado Dani. – Mas espera, esse não é aquele que fizeram resenha em um jornal? – Que nada! Esse é um daqueles, nem fará falta. E as duas saíram com olhares resignados rumo ao salão próximo. Após a conversa, Filomena começou a se sentir satisfeita em saber que estava fazendo um trabalho agradável para os humanos e se sentiu importante.

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— Olha só e depois ainda querem nos matar. – Pensou a traça esfomeada. O tempo passa e não perdoa. O movimento da biblioteca, que já era baixo até aquele momento, diminuiu por completo. O governador de São Paulo queria que o espaço sumisse, e que construíssem um novo empreendimento naquele local. As conversas dos bibliotecários eram desanimadoras. A tracinha Filomena nessa época já estava idosa, mas, ainda assim, consumia seus livros e se sentia no direito de julgar o que uma pessoa poderia ler ou não. Filomena, em um dos seus passeios pela biblioteca, se escondeu em um sofá desgastado pelo tempo e ouviu a conversa de duas senhoras que falavam sobre como seria bom um shopping nesse local horrível e desorganizado. Acreditavam que bibliotecas não serviam mais para nada e que a tecnologia estava aqui para provar isso. Estarrecida, a tracinha saiu furtivamente e foi para a rua dar um de seus passeios filosóficos. O pensamento não saia da cabeça do pobre inseto por achar que o seu paraíso seria substituído por um local barulhento, consumista e inabitável do ponto de vista de uma traça. O tempo passava e a tristeza a consumia como um câncer. Até que seu amigo Frederico, mais conhecido como Fred Lesmeludo,

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uma lesma que segundo amigos mais próximos de Filomena teria o dobro de idade de uma cigarra adulta, apareceu. Com seu olhar de criança levada, Fred perguntou o que tanto deixava sua amiga triste. Filomena explicou a situação para seu amigo, que ouviu quieto. Após ouvir toda a explanação, Lesmeludo endireitou seus óculos e começou a falar: – Filó, calma! Eu sei que é difícil entender essa situação. Mas saiba que tudo tem um fim, mesmo um local como a biblioteca. Eu sei que lá é seu paraíso e sei também que você adora punir os livros e seus autores. – Mas... E agora o que fazer? – Oras, o que você sabe fazer de melhor! Com um sorriso franco, Fred se despediu de sua amiga e seguiu seu caminho como o vento o dele. Os meses passaram e como era esperado a biblioteca foi fechada. Filó se sentiu ressentida por seu pequeno lugar predileto ser fechado. A equipe de bibliotecários acabou por descobrir que diversos livros de filosofia estavam danificados e logo perceberam que eram o resultado do abandono mais o desuso, aliado às traças. Filó assistiu atentamente à implosão do seu lugar preferido. Virou as costas e seguiu em frente até um próximo paraíso.

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E N TRE E M C O N TA T O Alef a.dosantos.medrado@gmail.com E. Reuss e.reuss@outlook.com Fabiano dos Santos Araújo fabiano.sa@gmail.com Luiz Mariano biruts@hotmail.com Roniel Felipe ronielfelipe@gmail.com Rosca J. R. Tudor originalroscatudor@gmail.com Vítor Maciel Gonçalves vitormg93@gmail.com V. E. Simeoni ve.simeoni@hotmail.com


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