Revista Ecos nº 7

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ECOS 7



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Capa e Editoração eletrônica: E. Reuss


SUMÁRIO EDITORIAL ............................................................ 6 CARTA AOS MORADORES DE PEDRA VELHA ..... 8 QUEM TEM UM, NÃO TEM NENHUM .................. 22 A NATUREZA É MAIS SÁBIA QUE VOCÊ ............ 51 O ANO QUE ACABOU MAIS CEDO ..................... 65 ONDE ARDEM OS INOCENTES ........................... 87 SEGREDOS .......................................................... 115 DOMINÓ .............................................................. 144 RIO 2099 ............................................................... 148 JONAS ................................................................. 179 ENTRE EM CONTATO ........................................ 219


EDITORIAL

Por que escrevemos? Tá aí uma questão para a qual eu nunca dei muita bola antes, pelo menos até começar a escrever esse editorial. Quero dizer, quem perde tempo questionando aquilo que traz satisfação? Se esse é o seu caso, eu diria que agora seria um bom momento para começar a relaxar e a quem sabe aproveitar um pouco mais. Por que, então? Alguns podem dizer que é aquela onda de dopamina que invade seu cérebro depois de finalmente conseguir encaixar as palavras numa boa narrativa. Quem sabe é aquela massagem no ego quando outros leem seu manuscrito e se sentem tocados de alguma forma. Outros talvez falem que é aquele pequeno complexo de Deus que se esconde dentro de todo escritor, afinal, poder decidir quem vive e quem morre com um apertar de umas poucas teclas... já imaginou? Sendo sincero, acho que não existe uma resposta certa para esta pergunta. Qualquer um que já se propôs a sentar na frente de um monitor para escrever qualquer coisa que seja vai te dar uma resposta diferente. A verdade é que escrever é como pintar um quadro, cada pincelada é uma pequena parte da sua imaginação que acaba rabiscado numa tela. No final, você pode acabar com uma bela obra de arte nas mãos ou só um

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pedaço de tralha fazendo volume no lixo, tanto faz, o importante Ê que você se divirta no caminho. V. E. Simeoni

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CARTA AOS MORADORES DE PEDRA VELHA R o dr i g o Fer r eir a Pei x o to

O que descrevo aqui não passa de um devaneio, tenho certeza, ocorrido num profundo estado de loucura ou surto. Não ouso pedir crédito por nenhuma palavra escrita aqui. E apesar disso, mesmo que tenha sido a milhares de quilômetros da mais ínfima gota de lucidez, me lembro de quase tudo. Em um outono singularmente frio, eu havia me mudado para Pedra Velha, no interior do estado. Lá, as pessoas não são


CARTA AOS MORADORES DE PEDRA VELHA

tão apressadas nem tão rudes quanto na capital, não é preciso temer criminosos espreitando em cada esquina. A pequena cidade se situa em um terreno irregular que, por sua vez, localizada no topo de uma cadeia de montanhas baixas. Não existe nenhuma forma de acesso pelo ar, e a única estrada que leva até a cidade não suporta um carro. Em meio a essa agradabilíssima reclusão, eu encontrei o tempo e a paz necessárias para me dedicar ao meu tão sonhado livro. Além do clima confortável, o difícil acesso ao lugar me libertou das prisões cotidianas que carregamos em nossos bolsos. Celulares e internet são pequenos exemplos. Também fiz questão de alugar uma casa que contava com uma instalação elétrica precária e onde não houvesse, em hipótese alguma, um aparelho de TV. Foi difícil encontrar um lugar, dado o hábito incomum dessas pessoas de alugarem casas mobiliadas. Enfim, encontrei meu refúgio em um velho Casarão Colonial no centro da pequena cidade. Apesar do alto preço, valeu a pena. A construção era toda em madeira de lei, e segundo o proprietário, havia pertencido a uma personalidade ilustre da região. Já aposentado pela idade e com boas reservas de meu tempo como ilusionista, não necessito de um trabalho para me sustentar. Todas as manhãs eu me levantava ao nascer do sol para uma breve caminhada, enquanto o brilho dourado da esfera de fogo era refletido por milhares de gotas de orvalho nas ruas de Pedra Velha. Essa caminhada não se demorava 9


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muito, exceto nos dias em que eu parava para conversar com um ou outro morador, mas isso não era frequente. De volta na casa, eu preparava meu almoço. Feito isso, eu passava para a escrita. Da janela do meu quarto, eu tirava grande inspiração. Dali eu via a Praça Central por completo, com o famoso Obelisco no meio. Minha vista também alcançava as matas intocadas que circundavam toda a região. O vem e vai dos transeuntes era repetitivo, mas não irritante como o das grandes cidades. O som que vinha da rua não me irritava nem desconcentrava. Era o local perfeito para escrever. Depois de escrever por algumas horas, eu tirava o resto da tarde para ler. E não lia para passar o tempo. Lia porque cada parágrafo que eu devorava era introduzido em minha mente, como um transplante de ideias entre o autor e eu. No momento da leitura, eu via o que o autor viu, ouvia o que ele ouviu, sentia o que ele queria que eu sentisse. Geralmente essa interação acontecia com quase dois séculos de interferência, no caso das obras de Poe. Pouco mais de um século com Lovecraft, e o atraso era ainda menor com Stephen King e Neil Gaiman. Entretanto eu recebia estes efeitos da mesma maneira em todos os casos. Tendo tomado um banho e feito minha refeição, eu tirava a noite para minhas explorações habituais. A idade pode ter curvado meu corpo, mas minha curiosidade permaneceu intacta. Na primeira semana, conheci mais da metade de toda a 10


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cidade e só me faltaram poucos locais a visitar. Certo dia, uma forte chuva me impediu de explorar as ruas, então resolvi vasculhar a própria casa. Até então só conhecia por completo a cozinha, um dos banheiros, o quarto onde dormia e uma pequena sala com lareira. A primeira coisa, e também a mais fácil, foi vasculhar os demais cômodos do primeiro e do segundo andar. Encontrei mais três quartos, dois banheiros, uma copa, uma despensa vazia e nada além. Na cozinha encontrei uma escada que dava para um porão, mas não havia nada lá também. O cômodo mais interessante era, sem dúvida alguma, o sótão. De um alçapão no teto do corredor, descia uma escada retrátil. Um desafio, sem dúvida. Meus músculos já não tem muita vitalidade e meus ossos são mais frágeis que antes. Uma vez dentro do cômodo, eu não pude enxergar nada. Por sorte havia uma janela. Levantando a cortina, fiapos de luz se espalharam pelo lugar. Móveis cobertos por lençóis se amontoavam aos cantos. Não havia forro separando o telhado, coisa que vários morcegos descobriram antes de mim. Se eu estava sendo intrometido em bisbilhotar os pertences de outras pessoas, não me dava conta disso. Ou talvez minha curiosidade em desvendar os segredos que um lugar tão antigo poderia guardar era ainda maior. Ao descobrir os móveis encontrei um criado mudo faltando uma gaveta, algumas cadeiras quebradas, placas de vidro, e um pequeno baú trancado. 11


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A pior coisa que se pode fazer a uma mente curiosa é entregar a ela um embrulho e dizer: você não pode olhar! Imediatamente tentei forçar o cadeado. Minha consciência ainda dizendo que isso não me pertencia e que eu deveria deixar tudo onde estava. Inutilmente eu usei tudo o que estava ao meu alcance. Meu molho de chaves, pedaços de madeira e etc. Cansado e frustrado, mas ainda determinado, usei a cabeça. Reuni alguns lençóis do local e atirei na base da escada pela qual entrara. Do topo e com cuidado, deixei o pequeno baú cair e me espantei pela completa quietude de sua queda. Depois de descer, examinei o objeto. Embora ele fosse leve e pequeno a ponto de poder ser segurado com uma mão, o cadeado era bastante pesado e era impossivelmente desconfortável. Minha mente imaginativa chegou a pensar que o que havia ali era um objeto amaldiçoado que se recusava a sair de seu covil maligno. Levei-o até o quarto, onde poderia me sentar. Coloquei o baú sobre a cama e o observei melhor. Sua superfície era gravada com arabescos indefiníveis e o cadeado era de uma espécie que nunca tinha visto antes. Havia nele três buracos distintos. É óbvio que eu imaginei que havia três chaves, mas descartei essa hipótese pouco depois. Nos meus tempos no palco, cheguei a utilizar um artefato como este em muitos truques. Na minha época era chamado de Quebra Gazua, pois era virtualmente impossível de ser arrombado. A não ser que se soubesse o segredo. Em nenhum dos três buracos havia uma 12


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fechadura. Em cada um deles havia uma trava que iria pressionar e deformar qualquer objeto inserido ali quando este fosse retirado. O truque era pressionar a alça da trava para baixo, a trava do buraco do meio iria descer e a verdadeira fechadura se abriria a um simples toque de qualquer objeto pontiagudo. Todo esse esquema era o motivo para o cadeado ser tão pesado. Quem quer que tenha trancado algo ali, definitivamente não queria que fosse aberto, pois este tipo de baú sempre foi muito caro e dificílimo de encontrar. Com cuidado, destravei o cadeado e o retirei com um rangido metálico. O baú em si não possuía nenhuma tranca, mas os anos que passou fechado cobraram seu preço. Retirei alguns fios de teia de aranha da superfície desbotada. Finalmente abri. O que havia dentro dele superou qualquer expectativa que eu tivesse. De início achei que pudesse ser alguma joia de família, ou a chave de um cofre. Quem sabe até um espelho antigo ou algum outro objeto de colecionador? Em um devaneio mais romântico, pensei que podiam ser cartas de amores proibidos pela distância ou pelo tempo, mas não foi nada disso que encontrei ali. Olhando pela primeira vez, havia um objeto amorfo de textura escamosa e opaca em um tom semelhante ao rubro. Depois de observar melhor percebi do que se tratavam os contornos. Tinha uma forma humanoide em posição fetal. Dois braços mínimos com mãos de apenas três dedos entrelaçando pernas ínfimas que terminavam em patas grotescas. A 13


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cabeça, terrivelmente desproporcional era desprovida de pelo ou cabelo. Além de duas protuberâncias de olhos, havia mais duas pouco acima da testa, que terminavam em um estranho formato pontiagudo. Aquele estranho objeto despertou minha curiosidade de tal forma que me aproximei e olhei atentamente. O susto que levei quando aquilo abriu os olhos não poderia ter sido maior. Saltei de imediato da cama e num gesto involuntário e instintivo, lancei o baú com a coisa para longe. Ambos rodopiaram no ar e foram parar debaixo do guardaroupa. Trêmulo e sentindo a adrenalina aquecer meu peito, eu me abaixei e observei. Naquela escuridão, só consegui distinguir o contorno da criaturinha se levantando e espreguiçando-se, como se despertasse de um sono profundo. Seus olhos eram totalmente negros e apesar disso, brilhavam naquela escuridão como pérolas fosforescentes. Recuei novamente quando a criatura me notou e começou a cambalear em minha direção. Num surto quase infantil e usando boa parte de minhas forças, sentei-me na cômoda ao lado da cama, peguei o primeiro objeto ao meu alcance no intuito de me defender, mas para meu azar, eu havia pegado um espanador. A criatura emergiu da escuridão e ergueu os olhos para mim. Do ponto de vista dela, eu devia ser um gigante em sua montanha, erguendo um poderoso bastão emplumado em

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posição de ataque. Agitado e ainda assustado, permaneci sem me mover e a criatura fez a pior coisa que poderia ter feito. Absolutamente nada. Assim como eu, ela ficou imóvel, observando. Devemos ter passado alguns minutos nos avaliando quando eu comecei a sentir o corpo reclamar do esforço. Se você sobe na cômoda em um salto depois de seis décadas de existência, é provável que sinta alguns pares de dores pelo corpo. Então comecei a planejar uma fuga. Será que conseguiria pular em cima da cama e dali, correr até a porta? Não valia a pena arriscar já que eu não sabia se aquilo era rápido e o que poderia ocorrer caso ela me tocasse. O fato é que eu realmente fiquei assustado com aquela criatura que mal tinha o tamanho da minha mão. Eu a ameacei com o espanador, bradei e gritei com ela, mas ela não se mexeu. Desisti de minha tentativa de atemorizar a criatura e passei para a diplomacia. Questionei-a várias coisas, mas é claro que ela não sabia falar. Ela continuou me fitando, imóvel. Por fim, movido por uma última gota de adrenalina ou desespero, desci subitamente da cômoda e me lancei na cama, como havia planejado. Porém, não fiquei parado nem esperei ver a reação daquela pequena alucinação. Fiquei de pé sobre o colchão com pouco equilíbrio, observando cada canto de onde a criatura hedionda poderia surgir. Mas ela não apareceu. Na verdade, desapareceu. Não restava nenhuma evidência de que ela havia estado ali. Nada embaixo da cama nem próximo ao baú. Essa é a primeira 15


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prova de que tudo não passou de um severo devaneio estimulado por minha reclusão e pelas minhas leituras recentes. Apesar dessa certeza, resolvi que precisava de um descanso. O esforço físico e a tensão dessa situação pesaram meus ossos avelhantados e a fadiga foi semelhante a uma multiplicação do campo gravitacional da terra. Então me deitei e adormeci de imediato. Já na manhã seguinte, acordei com o sol invadindo a janela do quarto. A janela estava aberta e a brisa que entrava sacodia as cortinas. Envergonho-me ao dizer que aqueles dois tecidos brancos flutuantes me assustaram, mas dada a noite anterior, acredito que seja compreensível. O susto me fez recordar da criatura e isso acelerou meus batimentos em segundos. Fiz uma busca minuciosa em cada canto mínimo daquela casa e não encontrei nada. Apesar disso, o baú vazio caído embaixo do guarda-roupa me deixava inquieto. Era possível ter um sonho tão realista? Ou teria sido uma alucinação? Ignorando qual fosse à resposta, minha caminhada diária seria a solução. Um pouco de exercício para manter o sangue correndo. Depois de me preparar e vestir roupas leves, eu me deparei com um segundo problema. A única porta do casarão que dava para o exterior estava trancada. Até aqui tudo bem, pois sempre foi de meu costume trancar as portas e janelas antes do anoitecer. Um hábito urbano. O que eu não entendia é onde eu teria colocado a chave. 16


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Não tardou para que a visão da criatura me envolvesse em tensão. Teria ela me trancado aqui? Ou, na confusão da noite anterior, eu acabei perdendo a chave? Vasculhei todos os cômodos do casarão em todos os pontos possíveis, mas não havia chave alguma. Estupefato com aquela situação, eu me sentei e tentei me recompor. Havia duas possibilidades: ou havia alguma entidade diabólica liberta na residência, e esta estava se aproveitando da minha estadia para se divertir, ou eu estava ficando louco devido à reclusão total. Ambas as opções eram impressionantes, mas alguma força sobrenatural me levou a crer veementemente na primeira. Afinal, os loucos nunca sabem o quão loucos eles são. Trancado em casa e com suprimento para no máximo uma semana, comecei a me preparar para os dias que viriam. Tomado pelo medo, preparei várias armadilhas pela casa. Armadilhas essas, que em minha mente se tratavam do melhor artifício do qual eu dispunha. O olhar de outra pessoa sobre essas armadilhas iria perceber apenas vários círculos de sal semiescondidos por todos os cômodos da casa. Além disso, fiz questão de virar todos os espelhos da casa de forma que nenhum deles ficou visível. Todo o meu conhecimento sobre o sobrenatural se baseava nestes pequenos truques. Como se não bastassem esses atos peculiares, criei o hábito de verificar cada armadilha cinco vezes por dia. E assim, um, dois, três dias se passaram. Eu já não lia tanto, não escrevia nada. Sempre que cozinhava, acabava queimando alguma coisa 17


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porque me preocupava mais em vigiar os arredores do que em vigiar o fogão. Aparentemente, as poucas pessoas com as quais eu interagia rapidamente durante minhas caminhadas não sentiram minha falta. A única visita que recebi foi a do carteiro, embora eu estivesse dormindo enquanto a conta de água era passada por baixo da porta. No quarto dia de prisão domiciliar eu estava decidido a sair. Não havia encontrado nenhum sinal da criatura nesse tempo todo e minha teoria sobre demônios na casa estava enfraquecendo. De toda forma, eu fiz o que deveria ter feito no primeiro dia, mas que só me veio à mente naquele momento. Depois de fazer minha verificação diária nas armadilhas e perceber que foram inúteis, me dirigi até o quarto onde dormia. Meu intuito era ficar observando a rua pela janela. Quando alguém passasse, bastava pedir que arrombasse a porta ou que chamasse um chaveiro. A única coisa que passou foi o tempo. Aquilo era impossível. Ou seria uma grande conspiração? Minha mente se recusou a acreditar que em duas horas, nenhum ser vivo tenha passado pela praça principal do centro da cidade. Nem mesmo os cães, que habitam as ruas de todos os interiores. Cansado de esperar, tive uma ideia. Fui até o corredor e tentei remover a escada retrátil do alçapão, mas tive de desaparafusar a extremidade superior. Desci tremendo e a escada frouxa, apoiada na parede, tremeu em resposta. Não sei 18


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dizer qual foi à madeira usada naquela escada, mas sei que era pesada. Carreguei-a até o quarto. De volta à janela, fiz alguns cálculos para conferir se ela teria altura o suficiente para tocar o chão. Tinha, mas não alcançaria o nível da janela, ficando uns trinta ou quarenta centímetros abaixo. Aproveitando-me do instante de coragem, apoiei a escada de forma que ficasse firme na calçada e bem presa a parede. Passei uma perna cuidadosamente pelo umbral, e consegui me apoiar no primeiro degrau. Então me abaixei e passei pela janela. Os pés e as mãos vacilando. Quando estava totalmente apoiado na escada, eu teria de me virar com a face para a parede, pois olhar diretamente para baixo não me faria bem. No momento em que consegui essa façanha, tive um susto e quase caí. Sentado no umbral da janela, o pequeno diabinho me observava. As perninhas cruzadas, as mãos apoiadas em um joelho. No rosto, um meio sorriso. O demônio me olhava fixamente. Segurei-me com a maior firmeza possível na escada. E novamente fiquei paralisado. Havia alguma coisa naqueles olhos, naquela cabeça enorme que fazia cada músculo do meu corpo congelar. Mas dessa vez não ficamos nos encarando por muito tempo. A criatura se moveu. Levantou-se preguiçosamente, sem deixar de me fitar um único segundo. Andou de um lado para o outro no umbral da janela. Com um ar entediado, começou a descer pela parede, 19


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escalando-a como um lagarto. Infelizmente, quando me dei conta de qual era sua intenção, era demasiado tarde. A criatura chegou até onde uma parte da escada estava apoiada, e com força sobrenatural, empurrou-a junto comigo para o vazio. A única coisa que me lembro da queda é de ouvir uma gargalhada mínima e aguda dentro da minha cabeça. Acordei dois dias depois no quarto de um hospital. A enfermeira me disse que eu havia sido trazido por moradores. Eles me encontraram caído na varanda da casa pela manhã, desacordado. Havia quebrado uma clavícula e o úmero direito. Também sofri uma pancada forte no crânio, que resultou no coma. Apesar dos ferimentos, recebi alta já no terceiro dia depois de dar entrada ali. Não contei este relato para ninguém e agora o envio relutante. Se não fossem as insuportáveis perguntas que me vem sendo feitas desde o evento, esta carta jamais seria escrita. Agradeço aos moradores de Pedra Velha por sua amável hospitalidade. Peço desculpas pela saída súbita. Minha única forma de reparar tamanha falta de educação é fornecer-lhes este relato. Uma pequena história a ser acrescentada ao folclore local. Não citei meu nome aqui e espero que o mesmo seja feito por aí. Tentarei preservar o que resta de minha reputação escondendo este evento. Estou me dirigindo de volta ao caos urbano. Quando chegar a capital, minha primeira visita será a um psiquiatra. Ou psicólogo. Nunca soube a diferença e vou me permitir este erro. Para evitar constrangi20


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mentos, tratรก-lo-ei por doutor ou doutora. Sรณ depois dessa visita, saberei de fato o que ocorreu no Casarรฃo. Aos Moradores de Pedra Velha.

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QUEM TEM UM , NÃO TEM NENHUM Fa bi an o d os S an tos A ra ú jo

Mesmo com tudo o que aconteceu com seu filho, a cada dia que passa Marta se sente mais feliz por essa segunda chance que ela e o marido tiveram. Muitas coisas aconteceram naquele período difícil. Um simples pensamento sobre aquela época ainda era muito doloroso, por isso ela evitava pensar em todas as coisas que aconteceram com os três. Tudo aquilo ficara para trás, o dia que nascia era um dia para se comemorar, um dia para se lembrar e reafirmar tudo o que possibilitou que ela voltasse a ser feliz e hoje se sentisse grata por tudo o que aconteceu com o marido, com seu filho e com ela mesma.


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Aquela manhã começara bem mais cedo para ela, enquanto iniciava o seu dia pensava o que poderia fazer para a sua família, era um dia que não poderia passar em branco. Mais um mês se completaria naquela manhã... – Meu bem, está acordado? – Agora estou – disse o marido sorrindo. – Eu vou te levar no trabalho hoje. – Tá, mas e o seu trabalho? – Meu trabalho é aqui em casa. – Marta, já conversamos sobre isso... Vai repetir a mesma história? – Esqueceu da licença? – Vou levantar e arrumar as coisas, fica deitada um pouco mais... Ele abriu melhor os olhos e a viu deitada ao seu lado, mas já tinha a aparência de quem estava de pé há um bom tempo. –Bom humor de manhã, acordou mais cedo, está bem disposta e o café já está na mesa. Eu só espero que tenha deixado ele em paz, pelo menos até a hora que ele costuma acordar. – Vá se arrumar, não quero pegar trânsito. – Me espere na cozinha, já vou descer. Marta foi a até a cozinha enquanto o marido ia fazer as suas preces matinais. Cada um deles escolheu seguir um caminho 23


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na vida, mas jamais desrespeitaram as escolhas um do outro. Sempre que ela acordava primeiro e ele ia fazer suas preces matinais Marta saía do quarto. Ela sempre foi uma pessoa muito centrada e racional. Mas nos últimos tempos parecia que deixara de ser ela mesma. Por pouco ela conseguira recuperar sua maneira de ser, pensar e agir. Mas ele temia que no lugar do desespero que a tomara, estava nascendo uma obsessão pelo filho. Ela sempre fora uma das coisas mais importantes para ele. Agora mais do que nunca ela estava no topo da lista. Sofrer sozinho, por mais doloroso que fosse, era possível, não seria a sua primeira vez e ele tinha a quem se agarrar para conseguir lidar com isso. Mas ela não tinha nada além dela mesma. Era orgulhosa demais para buscar qualquer coisa diferente que pudesse ajudar naquele momento. E quase nunca isso é o suficiente... Vê-la sofrer e pouco fazer pra ajudar era a pior das dores. Tomaram café, conversaram um pouco e se prepararam para sair. – Vai indo pro carro, eu já to chegando lá. – Vou me lembrar disso da próxima vez que você me apressar pra sair...

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Pela janela ele a viu indo para o carro e o manobrando. Foi até a cozinha para deixar um recado para o filho. Mensagem de vídeo local 003049: Bom dia meu campeão! Hoje eu vou ter que sair mais cedo. Quando eu voltar do trabalho conversamos sobre o meu dia, pode ser? Sua mãe amanheceu animada hoje, acho que você está pensando o mesmo que eu... Medo! (risos) Vou sair agora antes que ela venha atrás de mim. Vou marcar essa mensagem pras nove da manhã, quero que esteja descansado, antes que sua mãe chegue com a tonelada de coisas que ela vai te falar. Fica com Deus, filho. - Fim da mensagem – Vai fazer o que durante o dia todo? – perguntou o marido ao entrar no carro. – Ainda não sei... Talvez eu pegue a primeira pessoa que eu ver passando depois que eu dobrar a esquina e tenha uma aventura com ela. Mas ainda não estou certa disso. – Tudo bem, desde que venha me buscar no horário, faça o que quiser – ambos riram, se beijaram e se despediram.

Marta sabia ao certo se podia ou não reclamar da sua situação atual, no fundo o que a incomodava não era algo que 25


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pudesse ser reclamado, era mais como se fosse um desejo, talvez uma saudade que gostaria de tirar do coração. Meses atrás ela pensava que teria ficado sem o meu filho, mas felizmente isso não aconteceu, comecei a experimentar essa sensação e por isso não queria ter que passar por tudo aquilo outra vez. Não, ela não suportaria. Não ter que pensar mais nisso foi um grande alívio. Em vez de acordar todos os dias e ter que pensar sobre como suportar cada dia, ela agora dedicava seus pensamentos a maneiras de fazer com que seus dias durem cada vez mais. Agora precisava que o tempo não tivesse mais limite para ela e para o filho. Hoje de manhã Marta acordou mais cedo. E foi uma das raras vezes que não precisou que nenhum tipo de dispositivo tivesse esse papel. Talvez por isso o marido tenha continuado dormindo. Ela sentia que faltava alguma coisa, queria fazer algo especial pro filho. Naquele dia completava mais um mês que seu filho retornara para casa. O local onde ele tinha que ficar ainda a incomodava, a casinha no fundo do quintal Quando o trouxeram novamente para casa, foi o único local em que ele poderia ficar, eram tantas exigências para tê-lo de volta, que seria até melhor dizer que era o único lugar onde ele caberia.

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Seu antigo quarto ficava no primeiro piso, seria muito complicado preparar tudo para a sua nova realidade e explicar a todos como as coisas teriam que seguir era algo que Marta não conseguiria suportar. Ter ele em sua casa quase como se fosse um segredo a incomoda demais. Por mais que isso fosse desaprovado por ela, a casinha era bem quieta e arejada, não tinha escadas, tinha uma boa instalação elétrica e ficava longe de qualquer tipo de barulho ou de curiosos Dentre tantas coisas que poderiam ser feitas para ele, uma em especial se sobressaiu na mente de Marta e ela tinha certeza que ele ia gostar. Nada poderia dar errado com algo tão simples e ele vai ficaria muito feliz com isso. – “Como foi bom ter acordado mais cedo hoje! Levei o meu marido ao trabalho e tirei o dia pra poder escolher tudo o que houvesse de melhor e mais fresco para preparar o jantar da minha família. Meu filho vai ficar tão satisfeito por ver o seu prato preferido à mesa.” – pensava Marta durante as compras. Ele sempre foi uma pessoa simples, tão diferente do que sua mãe acabou se tornando. Um dia, em uma visita a casa da mãe de Marta, foi servida no almoço uma torta de frango, a que ela fazia sempre tinha o recheio cremoso. Era uma das coisas mais simples que ela sabia fazer, mas acabou sendo uma das coisas que seu neto gostava mais. Era muito rápida e fácil de fazer e por isso seria uma surpresa tanto para o filho quanto para o marido. Cada ingredien27


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te foi escolhido com cuidado, os vegetais mais firmes e frescos, a melhor farinha e manteiga, os melhores pedaços de frango que estivessem à venda. Quase todos os dias quando ele chega do trabalho os dois ficam juntos no novo quarto do filho fazendo pesquisas na internet. Se não os chamasse para o jantar era impossível saber até que horas os dois ficariam de olhos colados naquela tela. Enquanto a torta estava no forno, Marta arrumava a cozinha, preparou a mesa e fez suco de laranja do jeito que o filho mais gostava. Retirou a torta do forno e como ela cheirava bem! Lembrou-se das tortas que sua mãe fazia e pela primeira vez conseguiu fazer igual as que ela fazia. Pela janela da cozinha viu a casinha no fundo do quintal e chamou os dois. Caminhou pela cozinha e viu seu marido vindo na sua direção quando passou pela porta dos fundos. Seguiu para a sala de jantar, mas tudo tinha acabado no momento em que o viu. Nada de magia, nostalgia, felicidade, sublimação... Nada. Ela entendera tudo, finalmente entendeu o que lhe foi falado no dia que trouxeram seu filho de volta – Meu bem, está onde? – perguntou o marido. – Na sala de jantar. Ela precisava comentar com alguém o que estava acontecendo, se não explodiria, mas como poderia comentar o que se 28


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passava em sua mente? Principalmente agora que o marido achava que ela estava se recuperando de todo o sofrimento que passou meses antes? Marta achava que ele só parecia forte por fora, e vê-la sofrendo o destruía por dentro pouco a pouco. – Torta de frango, meu bem? Que delí... Ela começa a chorar. – Está se sentindo bem? Para sua alegria e fuga da verdade, ao começar a chorar se descontrolou ao ponto de ficar sem voz. Ele se aproximou preocupado, Marta apenas estendeu a mão pedindo tempo para me recompor. Ele a respeitou, ele sempre a respeitava. Estava ficando preocupado, mas esperou que ela estivesse pronta. – Estou bem. A psicóloga falou que sempre que eu sentisse vontade de fazer algo para o Dudu eu devia fazer, ia ser muito bom, para poder me acostumar com a perda dele. – Mas ele está aqui em casa. Junto com nós dois. – Está, mas ela não pode saber disso, não é mesmo? E começou a soluçar novamente. Assim que se recuperei um pouco continuou: – Estou bem. Ainda não consigo lidar direito com as minhas emoções, estou reaprendendo junto com a psicóloga. Me emocionei com o dia de hoje... – mais uma lágrima rolou pelo seu rosto mas ela permaneceu firme, como se já tivesse chorado tudo o que precisava, ao menos era no que ela acreditava. 29


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– Mais um mês que temos ele de volta. Dizendo isso ele a abraçou e ela voltou a chorar, aproveitou as lágrimas para desabafar tudo o que estava lhe fazendo mal. Em seus braços sentia segurança, seu rosto estava no seu ombro e mais adiante estava a mesa de jantar, coberta com a sua melhor toalha, sobre ela a sua melhor louça e talheres e a torta no meio. Na ânsia de fazer algo para o filho se esqueceu o principal. Ele estava em casa junto com eles novamente, mas ele não podia aproveitar nada do que tinha na mesa. Queria que ele estivesse em todas as partes da casa e um dia ele ia conseguir isso, mas não agora. Estava confinado naquela casinha no fundo do quintal, uma máquina era a única coisa que o sustentava a vivo, a única coisa que permitia que eles se comunicassem... Um recorte no tempo – O papagaio mecânico. Mensagem de vídeo externa - Clínica Dr. Hermínio 010533: Bom dia Dona Marta. Sou eu, Jairo novamente. Por favor, desculpe por continuar incomodando com as ligações. Mas precisamos resolver aquela questão dos registros... Depois de... Desculpe novamente por ter que tocar nesse assunto. Depois que esse tipo 30


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de evento ocorre, temos três dias para enviar as informações finais para o governo. Como o seu caso é extremamente delicado, conseguimos mais alguns dias com as autoridades. Mas se não resolvermos esta questão em dois dias, o Ministério da Saúde junto com o da Justiça vão pessoalmente interferir no caso. Sei que está passando por grandes dificuldades neste momento e se não fosse pelo envolvimento do governo no caso(,) eu esperaria mais. Não quero que eles se envolvam nisso, vai ser muito mais doloroso e penoso pra você Marta... Desculpe, pra senhora. Aguardo sua resposta. - Fim da mensagem – Bom dia Bianca, onde encontro o Jairo? – disse Marta depois de olhar atentamente o crachá da moça – Um instante, dona Marta – Bianca passeia os dedos pelo teclado do computador enquanto seus olhos cruzam pelo monitor. – Por favor me acompanhe. – Basta me dizer onde ele está. – Ele está em um local onde apenas os funcionários tem acesso, por isso preciso acompanhar a senhora. – Se é um local tão restrito, por que vai me levar até lá. – Estou a par da sua situação. Fique tranquila, manteremos total sigilo. Marta assentiu e ambas seguiram pelos corredores da clínica. 31


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– Ele a aguarda nesta sala. Tenha um bom dia. – Obrigada. Antes que ela pudesse tocar na porta ela se abriu e Jairo estava atrás dela a cumprimentando. – Estava esperando a senhora, sente-se aqui. – O que eu preciso assinar para resolver isso de uma vez e sair daqui? – É um pouco mais complicado do que isso, Martha. Olhe em volta, estamos numa sala cheia de sujeira e bagunça, computadores velhos, peças soltas e grandes servidores zumbindo. Esse tipo de assunto é do tipo que se resolve no jurídico não é mesmo? – Se me chamou aqui pra brincar comigo vou sair daqui agora mesmo e procurar o Dr. Hermínio. – Não vai conseguir encontrar ele na sua sala, mas posso ligar pra ele e vocês podem ter uma vídeo conferencia agora mesmo. – Jairo retirou algumas peças de uma bancada e um grande tecido que cobria um grande espelho. – Mas não é isso que você quer. – Estou aqui pra isso. – Dr. Hermínio, tem uma de suas clientes querendo falar com o senhor. Imagens foram se formando no espelho que se converteu em um monitor gigante. No meio da tela uma imagem em três

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dimensões surgiu do médico e uma porção de gráficos e números pulsantes nas extremidades. – Bom dia Jairo, como tem passado. O que tem pra mim hoje? Ah, dona Marta, há quanto tempo! É bom ver a senhora novamente, como vai o nosso garoto o... – Congelar – disse Jairo. – Veio por isso, mas não é o que você quer. Tenho certeza. Ela ficou com os olhos brilhando pela primeira vez em dias. Estava séria desde que entrara na clínica, parecia e se portava como uma máquina, não como uma pessoa. Naquele momento os sentimentos que ela deixou trancados dentro de si começavam a dar os sinais de que ainda existiam por baixo de toda aquela austeridade e frieza. – Doutor, pode me trazer um registro em vídeo? Número 0115245. – Quer eu inicie ele agora? – disse o médico pelos altofalantes. – Por favor. Registro de vídeo privado – 0115245: – Jairo, isso não é o ponto final. NÃO PODE SER O FINAL. Não agora... – Ele ainda tem chances, tenha um pouco de fé...

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QUEM TEM UM, NÃO TEM NENHUM

– Ele está nas mãos dos melhores profissionais do país. E eu sei que as chances estão contra todos nós! Não me fale em fé, Jairo. Não quero saber de algo que é invisível, sem forma, que não pode ser medido, pesado ou tocado. Preciso de resultados, de certezas. – Eu trabalho com a parte tecnológica da empresa. Não sou médico. O que quer que eu faça por você. Esqueceu quem eu sou? O carinha da informática, o de óculos de fundo de garrafa porque não tinha grana pra lentes, quanto mais pra uma cirurgia... Quer que este cara te ajude? – Ele é o único que pode me ajudar agora. Nunca me esqueci das nossas conversas depois que todo mundo do grupo de cálculo dormia ou saia pra vadiar no campus. – Essas coisas não são possíveis ainda. – Faça serem, nunca cobrei nenhum dos favores que eu fiz na vida, caramba! Não se atreva a recusar. Eu te coloquei aqui, tudo o que tem hoje é graças a mim! – Eu nunca esqueci isso Marta... Vou agradecer a você pelo resto da minha vida. Mas não me peça coisas que são impossíveis de serem feitas. – Jairo... - Fim do registro – Acho que podemos parar por aí, Marta... – Você pensou melhor sobre essa conversa e quis me mostrar o que você já tinha pronto... E ainda quer que eu recuse depois que mostra exatamente o que eu pedi? 34


QUEM TEM UM, NÃO TEM NENHUM

– Não é isso que você quer, eu vou te mostrar. Jairo se aproximou da tela e abriu algumas opções e continuou: – Muitos homens dariam tudo para ter algo assim, mesmo que de forma virtual, ter os seus desafetos como empregados. Ter a pessoa que te maltratou por anos, em uma função servil, mesmo que confinado em uma tela, seria algo tentador, especialmente se soubessem o que ele sabe e o que ele faz. Mesmo para quem quer ter de volta a presença de alguém importante, funcionaria muito bem. Pense nas possibilidades... O Dr. Hermínio foi uma das pessoas mais importantes e queridas pra mim. Ele está aqui porque eu não quero que a minha mente perca a sua imagem. Quero me lembrar dele exatamente como era até o final. Isso aqui está muito longe do que me pediu... – É o Dr. Hermínio, quem pode dizer o contrário? Se fez isso com ele, o que pode fazer por mim? – Vou tirar a venda dos seus olhos, não me odeie por isso... – Jairo tocou na tela e a aparência do doutor foi mudando. – Ele pode ser o Dr. Hermínio, Bianca a secretária que te trouxe aqui, o seu marido, eu mesmo, ou até mesmo você. Ele nunca será nada além de um robô, uma imitação. Ele sabe das mesmas coisas que o doutor sabia. Ele consegue responder perguntas da mesma forma que ele faria. Mas ele nunca vai passar disso. Ele não pode aprender, evoluir, só tem as manias

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e defeitos que ele tinha. E é só. É um papagaio dentro da máquina. – É mais do que eu tenho agora... – Você vai aprender a lidar com isso, é a mulher mais forte que conheci. Deixa ele ir, Marta. Não quer isso pra você. Vai te matar aos poucos. Não me peça pra fazer isso outra vez, por favor, não para você. – Se não tem nada pra oferecer por que me chamou aqui? Outra vez me chama e me dá só desculpas... Antes sua desculpa era a falta de dinheiro, eu disse que não importava e você não aceitou, desistiu de nós. Agora é isso que tem pra me dizer? Não demore mais vinte e cinco anos pra me dar outra desculpa, não sei se vou durar até lá. Não sei se você vai durar até lá, estamos ficando velhos, meu bem. O brilho nos olhos de Marta conseguira resistir até aquele momento, agora não seria a austeridade e frieza que tomariam lugar em seus olhos, era hora de sair. – Você tem trabalho a fazer... Apesar de tudo, obrigado por mudar um pouco o foco da minha mente, nisso você é o mesmo rapaz que amei na faculdade... –Eu não sou um fabricante de autômatos... Mas sim, um criador de homúnculos... Fale com o seu marido e se ele aceitar essa loucura farei uma visita. Não tenho coragem de te deixar sozinha com essa escolha, não desta vez.

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Ele respirou fundo, estava desequilibrado, mal conseguia conter-se e suas mãos tremiam. Assim que conseguiu voltar a falar continuou: – Você está certa, vamos parar por aqui. Está certa também pela minha covardia. Mas eu tenho medo de não conseguir te ver novamente, mesmo se for daqui vinte e cinco anos. Eu vou esperar que me ligue nas condições que coloquei. Por favor, me deixe sozinho e desculpe por isso, por todos esses anos. Outro recorte no tempo– Fim de expediente. Cinco e quarenta, o relógio marcava. Mais vinte minutos e aquele dia comprido ia acabar. Que dia chato... A cidade quase toda sai de férias e quem tem que continuar trabalhando tem que suportar um dia em que cada segundo se arrasta mais do que o anterior. – “Mas que beleza! Só mais vinte minutos e eu caio fora daqui! Vou lançar logo o registro desses moleques aqui porque se ficarem pra amanhã...” – pensou César enquanto achava que os próximos vinte minutos seriam idênticos aos minutos finais do restante da semana. Era sexta-feira, sem chances de alguma coisa acontecer de última hora. Ele não poderia ter se iludido mais. Antes que terminasse esse pensamento a porta de sua sala foi aberta rapidamente com um golpe que a fez bater na parede. 37


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– Tá louco cara? Não tem ninguém morrendo aqui... Pra que tudo isso? – Depois que eu te passar isso, você vai ver que alguém tem tudo pra morrer hoje. Só acho que não vai ser uma pessoa só. – disse Juan jogando uma pilha de envelopes na mesa. – Que porra é essa agora? Juan olha a hora... Deixa isso pra segunda e ponto final. – Bem que eu queria... Tá lembrado do convênio novo que a Clínica fez com o governo? – Aquele da coleta de material da molecada da região. Sei... – seu rosto congelou por um instante enquanto sua mente entendia o que estava acontecendo. – Cara, todos os dias dessa semana eu perguntei quando ia chegar o material de coleta desse pessoal. Todo dia me responderam a mesma coisa. Não vai ter nada essa semana, o programa tá começando agora. Só deve ter lá pra terça da semana que vem... E agora você aparece com tudo isso no final do expediente de sexta? – O pior nem é isso. Atrasaram a coleta de material e saíram doidos pegando tudo no correr do dia de hoje... – O nosso pessoal não faz isso cara, nós temos procedimento... – outra vez a mente de César lhe mostrou o que estava de fato acontecendo, depois de coçar a cabeça e respirar fundo continuou: – Isso ai na mesa significa que se não fizer o lançamento dos dados e as amostras ainda hoje o material vai deteriorar até segunda... 38


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– Deixam os amadores fazer o serviço de profissionais e dá nisso... – Mas temos gente treinada pra isso. Não me diz pelo amor de Deus que usaram os profissionais que ficaram fora do treinamento... Juan deu de ombros se mantendo em silêncio. – Juan seguinte, – disse Cesar da forma mais calma que sua face vermelha lhe permitiu – Eu vou cuidar disso aqui agora, vou ser o miserável mais rápido e robótico que eu puder ser, deve ter uns vinte ou trinta pra dar entrada aqui. Me diz que o servidor não vai fechar às nove. É sério. NÃO DIGA ISSO. – O chefe achou que não ia ter demanda esse mês e como ele tá de férias...Mas relaxa. Eu vou ficar até mais tarde também. Vou pra sala ao lado catalogar e digitalizar as amostras. Mas vou ter que sair depois que eu terminar. – Tá, vai lá e vamos ver o que eu consigo por aqui... A pilha de envelopes na mesa foi transportada de um lado para outro, uma era a pilha do que precisava ser feito e a outra do que já estava pronto. Enquanto uma crescia a outra diminuía. Seis da tarde, sete da noite, oito e quarenta da noite. O celular de César toca, era uma mensagem de Juan. Faltava só o cadastro da família Borges e liberdade!

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– Aquele vagabundo já ta na gandaia e fica mandando mensagem... Depois que eu terminar aqui eu vejo, Juan. Relaxa aí, você pode e eu não. Vou terminar isso antes. Com o último cadastro terminado começou a juntar cada um deles com os dados das amostras. Demorava menos de dois minutos pra juntar tudo, e depois disso era só enviar pro servidor com uns oito ou doze minutos de vantagem, isso se não aparecesse nenhum erro. Mas não convinha pensar nesse tipo de coisa agora. Enquanto os dados eram juntados ele foi até a garrafa de café e verificou as mensagens no celular. – Uma mensagem e duas ligações. O que o Juan quer de tão urgente assim? Juanito:

Ei cara, esquecei de falar uma coisa. *esqueci. Se atendesse as ligações ajudava demais... Fica de olho no cadastro dos Borges. Presta atenção! A toupeira que fez registro, Mandou informações como se eles fossem bivitelinos. Eles são univitelinos. Entendeu? 40


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Não lança as duas amostras. Escolhe a com melhores dados e lança igual. Lembra que no caso de gêmeos univitelinos O material é idêntico não precisa lançar duas vezes a mesma coisa... Faz manualmente e não deixa por conta da escolha do servidor. Cuidado com isso o prazo ta acabando... Até segunda. Flw. Cesar correu até o computador mas já era tarde, as informações já haviam sido enviadas e o relatório de envio já estava na tela. Ele apenas verificou qual das amostras foi escolhida, ambas variavam menos de meio por cento e por isso foram mescladas. A única coisa que poderia ser feita agora era arrumar as suas coisas e rezar para que não aparecesse nenhum erro até segunda. – Pior que nem responder o Juan eu posso... O servidor desliga o wifi as nove também... Lá fora eu mando alguma coisa antes de entrar no carro. Estava muito frio naquela noite. Depois que César saiu do prédio seu único pensamento era entrar no carro ir para casa. JuliusCaesar:

Ei cara. Sai dessa farra! 41


QUEM TEM UM, NÃO TEM NENHUM

Juanito:

Conseguio? *Conseguiu? ¬¬ JuliusCaesar:

Claro que sim, ta pensseando o que? Eu sou demais. Mãos tains um coaisas Juanito:

Que p*&& é essa? Escreve direito animal. Maldito app que não deixa xingar... (҂`ロ´)凸 Tá pior do que o meu corretor... :D Ei... Para esse carro agora, seu doido! Tá querendo morrer... -_-‘ JuliusCaesar:

Relax Quase deixei o celular cair... Só isso. Kkkkkk Tem uma coisa pra te falar Tyaniauympoulobem 42


QUEM TEM UM, NÃO TEM NENHUM

Juanito:

Rapaz para esse carro. Segunda tu me fala isso. JuliusCaesar:

Escuta é serio. Tivemos um problema Vc me avisou 2-035u9we=08h Juanito:

Cara do céu para esse carro! JuliusCaesar:

Kkkkkkk Te peguei manezão Então Juanito:

Pohha seu idiota. Isso não se faz... O que tu ia falando mesmo? Ta brincando de novo né?

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Dessa vez eu não caio, já tem meia hora que não responde... Se continuar com essa gracinha eu só vou olhar amanhã. Vc tem umas brincadeiras bizarras sabia? Último recorte no tempo – Filho, como o dia foi cansativo... Não sabe como é bom estar com você agora. – Pa... Eu fico feliz que o Senhor se sinta bem comigo. – Por que ainda faz isso? Dudu ficou em silêncio fitando-o. – Por que tem tanto medo de se aproximar mais de mim? Não se preocupe com isso, eu não sou a sua mãe, também não sou seu pai e você não é meu filho. Me sinto bem em te chamar de filho. Mas qual é o problema com isso? – Eu pensei que... Eu quero deixar vocês bem, quero ser respeitoso. Quero ser como eu sempre fui... – Este é o maior erro de todos. Eu te admiro muito, a cada dia que passa sinto que gosto mais de você. Tudo isso pelo que você é e não pelo que tenta ser. Dudu o olhava fixamente, mas estava calado. Para alguém que sempre tinha respostas era algo estranho de ver.

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QUEM TEM UM, NÃO TEM NENHUM

– Não fique envergonhado. Isso só prova como você é único. Depois que o meu filho morreu você perdeu todos os parâmetros de comportamento que te fizeram chegar aqui. Depois disso é por sua conta, você sabe disso e porque não segue assim? Quanto mais você evoluir mais distante vai ficar dele. Não tente ser ele, seja você mesmo. Seja o melhor que puder ser. Cada dia que passa você fica mais e mais humano. Meu filho terminou a sua jornada na Terra, eu tenho ideia do que virá adiante para ele. Ele vai seguir o seu próprio caminho, siga o seu. Atrás da tela ele viu a imagem digitalizada de seu filho o olhando envergonhado, não por ter feito uma coisa errada, mas sim como ele sempre fazia quando alguém lhe agradecia ou felicitava por algo que tinha feito. Ele nunca ficou envergonhado por qualquer uma das coisas que ele fez na vida, ficava assim por achar que não era digno de tantas felicitações quando fazia algo bom de verdade. Principalmente quando era algo muito natural para ele. – Me chame pelo nome, me chame de pai, pode me chamar do que quiser, mas isso tem que ser porque você quer que seja assim. – Pai eu... – MENINOS, VENHAM COMER! ACABEI DE TIRAR UMA COISA BOA DO FORNO! – Obrigado filho... 45


QUEM TEM UM, NÃO TEM NENHUM

Marta via seu marido acenando na porta se despedindo do filho. E isso a fez lembrar do dia em que ele voltou para casa, Jairo não veio. Só vieram os técnicos fazer a instalação das máquinas que o manteriam vivo. A conversa sobre trazer o filho de volta para a casa deles juntamente com tudo o que isso implicaria, havia sido feita logo que ela o viu naquele mesmo dia. Marta não sabia como, mas ele aceitou essa loucura, na época ela não achava de forma alguma que era uma loucura, era sim, uma chance de recomeçar. Loucura ou não seu marido concordou sem pensar. Nunca soube se ele queria isso de verdade, ela sabia apenas que estava junto com um homem que fazia de tudo para que sua esposa se sentisse bem. Com o passar do tempo ele se acostumara com a situação do filho. E saber se ele estava de acordo no começo ou não, não fazia diferença. Jairo não quis vir naquele dia meses antes, talvez nunca eles mais se veriam outra vez. Ele mandou uma mensagem e junto com todas as explicações de uso ele mandou um trecho privado para que só eu pudesse ter acesso. Mensagem de vídeo Privada - 000032:

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Oi Marta. Desculpe não ter vindo... Acho que eu não preciso explicar mais vezes o motivo... Esse talvez seja o maior erro de toda a minha vida. Não sei se vou ser capaz de fazer algo assim mais uma vez. Mas... Sempre tem o mas, não é mesmo? Você está passando por um momento difícil como mãe. E acima disso eu fiquei diante do momento de maior sofrimento da mulher que eu mais amei na vida... Acho que vou deixar pra me arrepender mais tarde. Eu só fiz isso por ter certeza de que ele não ia ser igual a imitação do Dr. Hermínio. Você não poderia passar por esse tipo de situação, não é insistência minha, seria como ter uma boneca que fala sozinha, nada mais do que isso... O seu caso foi especial, por isso realizar o seu pedido foi possível. Antes de eu vir trabalhar aqui, os seus filhos nasceram em uma cidade de interior e os dados foram trazidos às pressas no final do expediente de uma sextafeira. Não sei o que houve, talvez por um erro no momento que foram salvar as informações dos seus filhos fez com que os dados se comportassem de forma diferente nos anos seguintes. Sei com certeza que César, o funcionário que deu entrada nos dados infelizmente morreu num acidente naquela sexta-feira. Jamais saberemos com certeza o que aconteceu. O importante é que o “clone” digital dos seus filhos despertou logo depois que informaram no sistema a morte do mais velho. Queria que os “clones” digitais fossem tão avançados como são hoje, tenho certeza que ele não morreria daquele mal. Desde então ele se observava em silêncio e cada vez que os dados do seu filho eram inseridos ele ia ficando cada vez mais parecido com o Dudu. Não sei exatamente quando ele assumiu consciência de si, mas acho que foi na última consulta que o seu filho fez, pouco antes do acidente fatal que 47


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ocorreu com ele. Ele conhece a sua condição, e não vê problema algum nisso, ele sabe quem você é e o que ocorreu com o seu filho e quer ficar junto de você pra te ajudar. É por isso, que estou mandando ele, é quase uma pessoa. Talvez ele seja até mais humano do que todos nós, bilhões de pessoas espalhadas pelo mundo... Saiba respeitar a condição dele, não crie expectativa pra não alimentar ilusões, por favor não faça isso. Talvez não me encontre mais na clínica... (...) Naquele momento, Marta não deu muita atenção ao que ele disse naquela mensagem, ele estava devolvendo o seu filho, o que mais havia pra se saber? A única exceção foi o fato de que nunca mais veria Jairo outra vez. Como era doloroso para ela perceber o óbvio. Seu filho estava consigo, mas não era mais ele. Marta se agarrou nisso com todas as forças que tinha, simplesmente não podia aceitar que ele estava a deixando. O seu irmão foi pela doença e Dudu... Ele estava lá na máquina e ela fingia não ver isso, era o seu filho que estava de volta outra vez, até mesmo o seu marido comprou essa ideia e estava tão próximo dele. Será que ele já percebera isso, ou ainda está apaixonado pela ideia perigosa de que não perderam o seu filho para a morte? Ela se questionava. 48


QUEM TEM UM, NÃO TEM NENHUM

E se ele estivesse ela poderia tomar isso dele? No fim das contas Marta se deu conta de uma coisa, todos os religiosos que vieram para o velório tinham razão: – Você deve deixar ele ir, é melhor para você e principalmente para ele... Como viver com uma verdade dolorosa que só apenas ela conhecia e não podia compartilhar com ninguém? Ela se ocupara tanto com suas dores e com o trabalho de se livrar delas, depois que teve seu filho de volta, que esqueceuse de saber o que o seu companheiro sentia de verdade. Se ele assim como ela, terias as mesmas questões e inseguranças que ela vira se descortinarem naquele momento. – “Hoje, vendo o meu marido se aproximar da cozinha me lembrei de uma porção de coisas e pensei em outras tantas. Junto com isso comecei a entender tudo. Finalmente consegui entender uma coisa que sempre ouvia quando os mais velhos falavam sobre seus filhos que haviam morrido”. – “Era sempre a mesma coisa, mas como eu era boba... Não conseguia entender algo tão simples assim”... A voz de sua avó ecoava em sua mente fazendo-a lembrar de uma das vezes que uma de suas vizinhas estava em visita, era a Dona Clara daquela vez, outra pessoa que fazia tanta falta nos momentos mais difíceis.

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QUEM TEM UM, NÃO TEM NENHUM

O que será que a sua avó, que fora tão importante em sua infância, pensaria de Marta, sabendo de tudo o que estava acontecendo? Era mais uma pessoa que ela achava conhecer, mas que na verdade não conhecia de fato... – Pois é Dona Clara, as coisas são assim mesmo... Sabemos isso antes do dia que eles chegam nas nossas vidas, depois desse dia, esquecemos.Dona Clara, já tem mais de trinta anos desde aquele dia. E não tem um dia que eu não me lembro dele. Criamos eles pro mundo, às vezes criamos eles pra Deus, mas não pra nós. Mas a senhora sabe como mãe é um bicho besta... O coração é sempre maior do que a razão... É como se diz: Quem tem dez, tem nove; Quem tem nove, tem oito; Quem tem oito, tem sete; (...) Enquanto o marido abraçava Marta ela repetiu baixinho as palavras de sua avó, não soube se ele ouviu ou se conseguiu entender... – Quem tem dois, tem um; Quem tem um, não tem nenhum.

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A NATUREZA É MAIS SÁBIA QUE VOCÊ L u iz M ar i an o

E não é que Rico estava certo? À procura da quintessência da música, partira eu para o centro do Brasil, Ouro Preto. Era 2008, 17 de setembro e teria o show de Milton Nascimento no Festival “Tudo é Jazz”, com músicos de várias partes do globo (incluindo-me, porém, na plateia), muita gente boa. Mas o show principal era o de Milton.


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Mas o que um alemão sexagenário, maestro, doutor em musicologia pela Universidade de Música e Artes Performáticas de Frankfurt, estaria fazendo tão longe de casa? Culpa de Ricardo, um jovem brasileiro, biólogo com especialidade em Dennet e Dawkins, dois eminentes pensadores que ele adorava citar, particularmente um de Dennet, se não me engano: “A natureza é mais sábia do que você”. Foi com essa frase que ele me provocou, quando nos conhecemos, num bar em Berlim. Nesse dia lá estava o tal Ricardo, tocando um violão pobre de técnica, cantando um pouco desafinado, mas com uma vivacidade visceral e franqueza poética que, mesmo cantando em português (na época eu não sabia uma palavra dessa língua), me chamou a atenção. Rico, como gostava de ser chamado, cursava doutorado em Berlim (dizia ele que seria “Phd em genes”), falava num alemão enrolado e tocava violão nas horas vagas. Quando, ao sentar na minha mesa, falei que era maestro e doutor em música, o que seria apenas uma troça qualquer acabou sendo uma conversa que ocupou toda a madrugada. -Então você é Phd em gênios... – Como? – Bach, Mozart, Beethoven. Você não é da Alemanha? – Ah sim, claro, claro. Meus parabéns, você usa acordes poucos convencionais, tríade diminuta com a sétima maior. De onde vieram essas ideias? – Como? Cara, nem sei o que é uma tríade diminuta. – Você não conhece teoria musical? 52


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– Não, sou autodidata. – Entendo. Mas como você conhece Bach, Mozart?... – Ah, os medalhões? Ah, eu escuto muita música né? Youtube, baixo, vou a shows... Música é uma paixão e tanto! – E quem seria o Darwin da música para você? – Olha cara, eu diria que é um cara da minha terra, mas não sei se você conhece... – Villa-Lobos? – Quê, o de charutão? Não, não. O cara da música é o Milton. Milton Nascimento. – John Milton, o poeta? Mas ele não é inglês? – Não, maestro, não. Milton Nascimento. Negão. Tá vivo ainda. – Maior que Bach, Mozart, Beethoven? – Maior. – Sei. Assim como você é um biólogo melhor que Dawkins, certo? – Velho... Qual o teu nome? – Wagner. – Pois veja bem Wagner, eu posso não saber nada de harmonia, teoria e o escambau a quatro. Mas uma coisa eu sei: o Miltola é o cara da música. Talvez seja um julgamento precipitado, estamos em 2008, ele nem morreu ainda, é verdade..., Mas te proponho: vamos fazer um... Um daqueles diálogos socráticos, onde o Platão punha Sócrates pra expor seus 53


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argumentos e o interlocutor participa fazendo perguntas curtas... Nesse caso específico farei o papel do Sócrates, e tu pode ser, digamos, Aristófanes, que é o preferido por aquele filósofo alemão de nome que nunca sei como pronunciar, o... – Nietzche! – Isso! Mas então, aceita o desafio? – Desafio aceito, caríssimo Sócrates! Mas me diga, o que te leva a tirar essa conclusão? – Olha cara, de tudo o que já escutei, de Debussy a música gregoriana, de Zeca Pagodinho a Los Hermanos... – Los quem? – Deixa pra lá. O fato é que esse maluco fez muita coisa, tudo muito bonito, e em muita quantidade. – Bem, Haydn fez mais de cem sinfonias... – Não tais entendendo. Ele fez canções, tem mais de quinhentas gravações dessas. Ele não escreve música, não compõe pra orquestra, mas o que ele fez com as canções dele foi conseguir unir uma coisa tão antiga, que é a cantoria, o cantar, com uma roupagem sinistra. Fica uma coisa grandiosa. Ouve sentinela e você vai entender. Sentinela (Milton e Fernando Brant) https://www.youtube.com/watch?v=pv2VBaoyE3U – Mas ele é de São Paulo? Rio de Janeiro? 54


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– Bem, ele nasceu no Rio, mas criou-se em Três Pontas. – Nunca ouvi falar. – É no interior de Minas Gerais, um estado do Brasil que não fica no litoral... – Entendi. – Mas como eu estava dizendo, o Milton consegue tocar no rádio, na novela, as “Canção da américa”, as “Maria, Maria”, o povo canta, toca em show isso, e se tu for ver cada uma tem coisa que não se ouve normalmente. – Então ele é um cantor? – Cantor, sim. Mas também compõe e toca um violão finíssimo, cara! – Violão e voz, como o João Gilberto? – Ah, você conhece o João Gilberto!! – Sim, sim. Um dos expoentes da Bossa Nova. Grande músico. – Pois então, João é lá da minha terrinha, minha saudosa Bahia... Mas o João, o João é diferente. O Milton bota pra tocar dez instrumentos, ao mesmo tempo. É uma coisa totalmente diferente. O Milton traz a mineiridade junto com ele, o som da roça pra música, e mistura com Beatles. É muito louco. – E fica bom? – Cara, no mínimo fica diferente. E muito original. Ele meio que fundou um movimento, o Clube da Esquina. – Não seria Tropicália? 55


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– Não, não, esse é do Gil e Caetano. Muito bom aliás. Mas esses dois você ainda consegue distinguir: isso é um samba elétrico, aquilo é um rock de violão. O Milton, não. Ele mistura tudo, e você não sabe onde começa uma coisa e termina outra. – Vira uma coisa nova. – Uma coisa nova. E ele traz uma coisa característica dos mineiros: ele é quietão, aí tu vê aquele cara tímido cantando pra cacete. Quer dizer, a gente tá acostumado, até com o padrão que a mídia mostra, com o negão sorridente, comedor. E o Milton não. Ele é arredio, meio sério. Já começa que ele é de Minas Gerais, do interior de lá. No Brasil é tudo voltado pro litoral. Também tem o fato de que algumas das músicas dele trazem uma herança da África, do navio negreiro, aquela melancolia, aquela saudade, dos reis que foram trazidos para o Brasil como escravos, como aquela, Pai grande (Milton Nascimento) https://www.youtube.com/watch?v=GjgDjX6ojug Me faz lembrar da escravidão que rolou no Brasil. Você sente a dor de muitas gerações, uma coisa posta na cara da gente. – Ele toca na ferida.

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– Exatamente! O Brasil é um país racista cara, velado, mas racista. – Mas continue a falar sobre esse Milton. – Então: as duas principais características da música dele são a fusão e a profundidade. Ele junta coisas que estavam separadas, pega o tanto dele e sai o que a gente escuta. Mas é uma fusão concentrada, parece uma coisa meio condensada, uma síntese, entende? – Mas ele também toca samba? – Ah, ele toca samba também, inclusive uma das melhores gravações de samba que eu já ouvi é aquela do cd Clube da Esquina: Me deixa em paz (Monsueto e Airton Amorim) https://www.youtube.com/watch?v=nBMNk-xG0w8 – Outro negócio é que ele junta refinamento, tu vê que é uma coisa bem acabada, com um sabor de multidão; tem umas faixas dele em que aparecem uns coros, bem bacana. – Quantos álbuns ele tem? – Quarenta. – Mas o estilo dele é qual? – Olha cara, eu diria que é o “gênero Milton”, porque ele mistura os continentes africano, americano e europeu, e aí sai aquilo. 57


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– Soa complexo. – Às vezes soa mesmo, mas em outras são músicas super simples, e aí ele surpreende pela ausência de complicação! Quer dizer, você pega o Tom Jobim, que é um monstro, mas o Tom sempre tem aquelas coisas cheias de tempero, cheias de som, que o Milton também tem, mas de repente o Milton faz, por exemplo, música só com uma voz! Ou ainda, usa guitarra distorcida, coisa que o Tom não fez. – Mas não precisa ter guitarra distorcida pra ser grande música. Beethoven não precisou. – Ah, com certeza não! O que estou querendo dizer é que ele vai em direção em alguns momentos àquela criança guardada dentro da gente, ou mesmo a uma coisa ancestral, e ao mesmo tempo faz uso de umas coisas modernosas. Ele não se prende. – Mas e o Chico Buarque? Isso só pra ficar na música popular brasileira... – Cara, o Chico diz num livro: “o Milton é muito mais músico que eu”. Engraçado, você diz “só pra ficar”... o Piazzola, o dos tangos argentinos lá, que não era fraco, era compositor da tal “música clássica”, não é? – Sim, sim. Gosto de “Café 1930”, bela composição dele. – Pois é. O Piazzolla ficou tão louco depois que ouviu o Milton que mudou o nome de uma música, chamada “Retrato de mí mismo”, pra “Retrato de Milton”. Realiza. 58


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– Incrível! – É... é o que to te falando. O Milton pegou o jazz, a música instrumental brasileira da época, o pop, a música clássica e deu no que deu. – Ele canta em português, certo? – Correto. Tem umas gravações dele em inglês, mas não gosto não, ele fala meio enrolado. Mas pra você ver, ele é um puta letrista, dá uma escuta nessa com letra dele: Sacramento (Nelson Ângelo e Milton Nascimento) https://www.youtube.com/watch?v=ec9kVMRWnkE – Ele canta, é um dos melhores cantores do mundo! Muito afinado, canta bem agudo totalmente relaxado... raro de se ouvir! e as letras por vezes falam dos que não tem voz, mulheres, crianças, negros, índios... tu vê que tem uma mensagem, além de tudo tem isso. – Mas só ele que compõe nos discos? – Na verdade todo o processo de criação, mesmo das gravações, tem base no trabalho de grupo; ainda que, segundo os encartes, a maioria dos álbuns tenha a “supervisão musical” do Milton, me parece uma coisa bem entre amigos, todos dando pitacos. – Que interessante!

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– Sim, sim, e esses amigos também, por sinal, são em geral excelentes músicos! Você tem o Toninho Horta, o Tiso, os jazzistas, além do Milton que é um virtuose na voz e toca um violão único. É um violão que batuca. Isso pra não falar da atenção que ele dá pra parte dos batuques... – Percussão? – Isso, muitas gravações dele tem um volume maior pros batuques, não é só acompanhamento, como nos outros músicos. É muito diferente do resto. Quando eu escuto “Maria três filhos” eu fico doido. Maria três filhos (Milton) https://www.youtube.com/watch?v=D8TYLqMkjZw – Outra coisa que me chama a atenção é como tudo parece se esconder sob o véu de “canção pop” – Como assim? – É que as músicas são como icebergs: num primeiro momento, você escuta e não percebe nada. Mas se você dá a devida atenção, e compara com o que já escutou antes, você percebe que tem uma coisa ali. Muita coisa, aliás. Eu demorei pra perceber. – Interessante.

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– Coisas como a independência que ele tem entre as mãos e a voz. Uma vez me falaram isso, e fui prestar atenção. Rapaz, é impressionante. – Estou curioso para escutar. – Olha cara, teve uma época que eu só gostava das músicas, era legal e só. Mas aí fui ouvindo de tudo um pouco; e quanto mais eu ouvia outras coisas, mais eu me surpreendia com o Milton. Era aonde eu encontrava mais intensidade emocional, mais inventividade, tudo num pequeno espaço de tempo e numa forma popular, que é a canção. – E ele vende? – Bem, ultimamente não tanto quanto os desgraçados dos padres cantores, mas ele vende bem, sim! Já tem mais trinta milhões de discos! – Ele deve ser bem conhecido no Brasil. – Cara, ele até é conhecido, mas essa faceta dele como um grande músico, como um xamã, não é tão conhecida não. O pessoal deixa passar despercebido. Sabe como é, a forma de escutar influi no que tu escuta... o momento, a atenção. Tem gente que acha que música é só lazer, etc. A música tem que perturbar também, confundir! – Não entendi quando você falou em “xamã”. Como assim? – Olha cara, é difícil de explicar... já começa que, diz ele, que quando compõe já vem com tudo pronto. E aí sai aquela 61


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coisa de louco, tudo muito diferente, muito bonito, muito original e muito forte. – Ele deve ser um músico intuitivo. – Ele é. Mas, é bom que se diga, e você está falando com um biólogo: a intuição é um processo mental! Ela vem do acúmulo de experiências, que somatizam-se desencadeando numa espécie de conhecimento “automático”. Com certeza essa intuição dele vem de muita escuta, muita prática e muito treino. Digo isso porque, frequentemente, esse termo, “intuitivo”, é usado de uma forma veladamente pejorativa. – Certo. Mas você não me explicou de onde vem isso de xamã. – É que a música do Milton, que por si só é uma piração total, carrega junto pro ouvido as capas, os encartes de cds, a performance de palco, a presença, a personalidade, a voz quando não está cantando, os causos que ele conta, as entrevistas, o depoimento dos músicos, a biografia dele, a iconografia... tudo isso entra junto no caldeirão, se avolumando, dialogando uma coisa com a outra. Você sabe, música não é só som, é a gente também. Quer dizer, quando eu escuto, eu tenho a minha história, as coisas que vivi e que escutei, e o que escuto vai ressoar de uma forma, em você em outra... ainda assim, vocês que sabem a teoria, podem tentar captar a parada. Agora, tem uma coisa na música do Milton que me sugere o transcendente. Veja bem, você está conversando com um entusiasta de Dawkins. Mas aí você escuta o final da música 62


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“os povos” e a impressão é que tem alguma coisa estranha aí. Algo como o medo que você sentiria ao passar por um cemitério indígena: você não acredita nas coisas, mas, né? Os povos (Milton e Márcio Borges) https://www.youtube.com/watch?v=DCMeQsE3xDU – Resumo da ópera: esse é o cara. – Olha... Ricardo, certo? Estou muito curioso com tudo o que você me disse. Mas me soa no mínimo difícil acreditar que tantas habilidades, em tão variados âmbitos da música, num grau tão alto e com esse alcance popular, estejam reunidas numa só pessoa. Com certeza, se existisse tal músico, com um nível assim e nessa quantidade, já seria muito mais conhecido. – Pode ser, pode ser... pode ser que eu esteja contando bobagem, pode ser, Wagner; no entanto, permita-me lembrar de uma frase de um filósofo da ciência, sobre a teoria da evolução: “A natureza é mais sábia do que você”. E lá estava eu, depois de muitos áudios e gravações escutadas, lembrando-me das palavras de Rico, sobre o grande músico de Três Pontas, agora realizando um show gratuito numa praça em Ouro Preto, Minas Gerais. Cheguei no meio da apresentação. Eis que, no meio de toda a algazarra, naquele lugar repleto de jovens, naquela plateia tão heterogênea, Milton inicia “a lua girou” 63


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A lua girou (folclore) https://www.youtube.com/watch?v=vF299Z0LBuQ E não é que Rico estava certo?

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O ANO QUE ACABOU MAIS CEDO E . R euss

O homem se chama Rogério e seus pés são engolidos por um véu esbranquiçado de areia e vento, que cobre as lajotas da rua sem calçada. Todas as casas estão com suas janelas fechadas. O silêncio é o silêncio do abandono. Meses atrás, famílias e comerciantes fizeram as malas e se deslocaram juntos para a cidade vizinha, como se aquilo fosse um fenômeno do instinto humano, a fuga desesperada do inverno. Mas a areia se recusa a ir embora. Em constante movimento, preenchendo rachaduras no concreto, os bolsos vazios e as bocas abertas dos coitados que ficavam para suportar o frio, ela paira sobre o balneário como uma névoa eterna.


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Rogério para em frente a uma casa de madeira construída sobre a areia da praia e bate na porta. A porta tem um buraco no lugar da fechadura e se abre quando ele bate uma segunda vez. Ele entra numa sala de estar e se depara com uma mulher idosa vestindo uma camiseta verde limão com os dizeres “Sou uma vencedora…” afundada numa poltrona de estampa floral. “Meu carro enguiçou e eu não tenho celular”, ele diz e a mulher fala para ele usar o telefone e ficar à vontade. Ele fala com alguém da cidade enquanto a senhora assiste a duas televisões ligadas em canais diferentes, o som delas se combinando numa língua estranha e indecifrável. Os olhos da mulher têm um ritmo próprio e alternam seu foco entre os aparelhos. “Muito tarde,” ele diz, “vocês não conseguem vir mais cedo?” Enquanto fala, Rogério usa os pés para empurrar areia para os vãos entre as tábuas de eucalipto do assoalho. “Tá bom. Aham. Entendo,” ele diz, “obrigado.” E desliga. Rogério caminha até a sala e para ao lado da poltrona em que a mulher está sentada. “Eles vão demorar um pouco, o guincho. A matriz é na cidade e eles tão atendendo um chamado” “Pode esperar aqui, se quiser”, ela diz. “Não, não, vou esperar no carro. Sem problemas, obrigado pelo telefone.” “Tem certeza? Nesse frio?” 66


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Ele olha pela janela e só consegue enxergar uma parede de areia cobrindo toda a visão do mar. Há frio naquela visão. “Pelo menos toma alguma coisa, pode ser?” Ela diz. “Coca ou uísque?” “Pode ser uma água.” Com dificuldade, ela se levanta da poltrona e caminha até a cozinha. Rogério lê o que está escrito atrás de sua camiseta e entende a piada: “Venci a anorexia”. “A senhora mora sozinha?” Ele diz. “Eu e o meu cachorro. Sou viúva. Tu é casado?” “Divorciado.” Quando retorna com o copo de água ela quer saber por que ele se divorciou. Suas perguntas insinuam que há intimidade entre eles. Seus olhos não se encontram em nenhum momento, os dela continuam fixados nas televisões a sua frente, mas dá para ver que ela tem um interesse genuíno por aquela história. Rogério não consegue lembrar dos detalhes. “Me lembro das brigas, claro.” Ele diz. Ela ri como se estivesse gritando, um grande e alegre suspiro. Aquilo faz Rogério relaxar e ele se senta num pequeno sofá cheio de areia em frente à TV. “Filhos?” Ela diz. “Um.” “Eu lembro das minhas brigas. Deus, aquele homem era violento, isso eu te digo. Quebramos muitos copos no nosso 67


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casamento. Mas o engraçado é que a gente nunca consegue lembrar do motivo delas, né? Das brigas.” “Talvez porque não vale a pena ficar lembrando disso.” Ela balança a cabeça para os lados, rindo daquelas memórias que se espalham pela casa como peças de decoração. “É como se elas fizessem parte da própria matéria do amor, não é?” Ela diz. “A gente tenta reduzir e humilhar o outro… tentando se convencer de que a gente não precisa de ninguém pra ser feliz. É tudo fachada. Tu só percebe do que essas brigas são feitas quando já é tarde demais e a morte te deixou sozinha, sabe?” Ele consegue sentir o amor dela pelo marido, quase como se o marido estivesse ali, sentado com eles, protegendo a esposa dos homens doentes lá fora, que suportavam o frio e a solidão. A mulher se concentra nas imagens e nos sons desconexos, mas dá para ver que ela também sente aquela presença. De repente, uma lembrança ressurge na mente de Rogério. É a explosão de um foguete com concha de dez centímetros. Uma bola incandescente cintila até o céu e cospe estrelas amarelas e verdes em todas as direções. Ele olha maravilhado para o alto, mesmo tendo perdido a conta de quantos foguetes como aquele ele já acendeu, e sente as sementes caindo em seu rosto. Ele ouve a risada da sua filha e sua voz o chamando. A filha estende a mão para o pai e ele enxerga uma pequena semente de ipomeia iluminada pelo rastro amarelo deixado pelo foguete. 68


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Então eram assim as coisas antes do divórcio? Antes das brigas? O homem pensa. E como ele poderia, naquele momento, imaginar que aquelas sementes seriam responsáveis por tanta destruição?

Sua filha tinha dez anos na época. A menina havia voltado da escola agitada e passara o dia inteiro ao lado dos pais. “O que será que ela quer?”, sua mulher dissera e Rogério deu de ombros, enquanto almoçava no quintal. Tinha sido um verão infernal, aquele. As ruas estavam cheias de famílias da cidade, esperando pela virada do ano. Seus carros faziam a terra vibrar e a areia de repente parou de se acumular sobre os móveis, como se a praia estivesse esperando pacientemente que os veranistas fossem embora para continuar seu avanço sobre a vida solitária daquelas famílias que moravam ali o ano inteiro. Naquele mesmo dia, a menina tomou coragem e contou aos pais a ideia que tivera para a feira de ciências da escola, que aconteceria no início do ano letivo. “A professora disse que a gente tem que recuperar a mata nativa da orla da praia…” A menina disse para o pai e a mãe sentados em cadeiras de praia no quintal. “Então a minha ideia é amarrar uns saquinhos de sementes nos foguetes do pai toda vez que ele for explodir um… E aí eles vão ajudar a espalhar essas sementes pela areia.” 69


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Rogério e a menina olharam ao mesmo tempo para a mãe. Eles sabiam que ela não suportava os fogos de artifício. Ela odiava o cheiro acre da pólvora e a forma como ela fazia suas narinas arderem. Cada estouro provocava nela uma descarga de adrenalina e fazia ela colocar a mão no peito, sentindo o coração acelerado, seu rosto se fechando numa expressão de desgosto e desamparo. O pai sabia que os fogos representavam toda a mediocridade a qual eles estavam destinados, vivendo naquele lugar abandonado e trabalhando apenas duas semanas por ano, a areia os lembrando constantemente que eles não eram bemvindos. Mas a mãe amava a filha deles, e por mais que ela temesse que a menina seguisse os passos do pai e vivesse sob a mesma maldição que eles abraçaram vinte anos antes, ela simplesmente não conseguia impor proibições. Por isso o pai não se surpreendeu quando viu ela sorrir e dizer que tinha as sementes perfeitas para isso. Ele viu a mãe se afastar com as costas arqueadas e sumir na escuridão do galpão que eles usavam como depósito, de onde ela ressurgiu minutos depois com os olhos vermelhos e com um pacote de sementes de ipomeia na mão. Naquela mesma noite, pai e filha admiraram a estrela de fogo colorindo o céu e sorriram com a visão da semente que sobrevivera à explosão.

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A mulher ao seu lado para de falar e começa a esvaziar uma lata de refrigerante no bebedouro do cachorro. Rogério olha para o animal mais obeso que ele já viu balançando o rabo e percebe que aquilo faz parte da rotina deles. “O que aconteceu aí?” Ela diz, olhando para a orelha esquerda de Rogério. Ele leva sua mão até a queimadura na lateral do seu rosto, que cobre parte da têmpora e segue até sua nuca. No lugar da orelha, Rogério tem apenas um relevo disforme de cartilagem e pele. A pele é enrugada e mais escura do que no resto do rosto, e ele esconde as queimaduras com a mão como se só tivesse se dado conta delas agora. “Fogos de artifício.” Ela faz uma careta de dor e estremece na poltrona. “Deve ter doído.” “Não senti na hora”, ele diz. “Aposto que acabou com a festa.” “A festa continuou, eu tava lá a trabalho.” “Não me diz?” “Aham.” “Tu trabalha com…” “Pirotecnia.” “Pirotecnia”, ela diz, olhando para a pele de sua cabeça onde nem o cabelo conseguia crescer. Rogério vira o rosto para uma das televisões, tentando esconder as queimaduras. 71


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“Não é seu, né?” Ela se contorce na poltrona e aponta para uma tela pendurada na parede às suas costas. É a pintura de uma bola de fogo colorida sobre uma paisagem em azul marinho. Ele se aproxima do quadro e distingue a orla de uma praia. As dunas e a crista das ondas são do mesmo azul claro e o resto é escuridão. Parada na areia, há uma forma nebulosa de um homem ou uma criança observando o céu. “É meu. Com certeza. Tá vendo as estrelas verdes em círculo se afastando da explosão inicial? Por aqui só eu faço isso.” Ele diz. “É lindo, nunca vi nada igual.” “É um tipo de crossette”, ele diz, olhando para a pintura. “A senhora que pintou?” “Eu que pintei, sim.” “As cores são perfeitas”. Isto soa mais como uma observação técnica do que como um elogio. Ele está pensando na proporção correta de Potássio e Bário necessária para gerar um verde tão vivo quando ela diz: “Tenho mais lá em cima”, e começa a andar em direção a cozinha. Rogério a segue através de uma porta que dá para a areia e eles sobem uma escada externa até uma sacada de onde é possível enxergar o mar. É aquela hora do dia em que o mar agitado já começa a perder suas cores e a se mesclar ao céu e à areia, a linha do horizonte perdendo sua definição e todas as

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coisas se tornando silhuetas negras contra o céu ainda iluminado. A mulher abre uma porta dupla de madeira e entra numa sala tomada pela escuridão. O cheiro enjoativo de tinta à óleo e maresia faz o homem parar na porta e respirar fundo uma última vez. A luz se acende e eles estão lá, dezenas de homens olhando para eles, cabeças em tons de marrom e olhos emitindo um fulgor próprio. Ele leva um tempo para perceber que são todos a mesma pessoa. As pinturas estão empilhadas no chão e apoiadas na parede. Algumas estão penduradas no alto, e exibem a mesma feição severa dos outros quadros. “É o meu marido”, ela diz. “Um dos melhores mecânicos da região. Com certeza ele resolveria o problema no teu carro.” O rosto nas pinturas parece desgastado, escurecido pelo tempo. O homem é idoso e está sentado de costas para a única janela do cômodo onde eles estão. Sua pele tem a textura da areia e é coberta por rugas, mas os olhos são vivos, joviais até, e dá para perceber que as pinturas são meras desculpas para que ela possa pintar aqueles olhos. “É assim que a gente conversa”, ela diz e começa a mexer nos pincéis e numa bisnaga de tinta no cavalete. Rogério não sabe o que dizer. “Toda noite eu venho aqui e começo a pintar. Ele aparece pra mim logo ali…” Ela aponta para um baú de madeira 73


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repousando logo abaixo da janela. Rogério olha para a nuca da mulher e não diz nada. Ela se vira para ele e continua a falar. “Não é como se ele falasse comigo, sabe? É mais uma imagem. Ele só aparece, os olhos brilhando. Ele adorava minhas pinturas… Às vezes ele ficava um final de semana inteiro olhando para uma pintura minha. Eu entregava meu quadro novo na sexta, quando ele chegava da oficina, e ele ficava naquele sofá lá embaixo, sentado, com o quadro apoiado na mesinha de centro. Ele não dizia nada, só ficava olhando pra pintura, coçando a barba. Na segunda eu acordava com o quadro pendurado em algum lugar da casa. Era engraçado aquele jeitão pensativo dele, como se fosse um intelectual num museu. Acho que ele me admirava por causa das minhas pinturas, mas ele nunca admitiu isso.” Ela começa a dar pinceladas leves na tela em branco enquanto fala sobre o marido e olha para algo que não está naquela sala. Rogério sente que está se intrometendo, invadindo um momento íntimo entre aquela senhora e o marido, e decide sair para a noite fria. Ele não consegue mais enxergar o mar, mas sente sua presença. O chão vibra com o atrito das ondas na areia da praia e ele pensa em como seria bom viver naquela vasta escuridão ao seu redor, embalado pelo mar e pelo som das ondas se quebrando.

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Ele pensa se seria possível viver sem a pólvora e cobre o nariz com a mão, e porque logo agora ele sente tanta falta do cheiro de enxofre?

Naqueles dias o cheiro impregnava suas roupas e ficava na pele por dias. O problema é que geralmente o odor insuportável de amônia se sobressaia aos odores mais agradáveis. Talvez ele fosse mais conhecido pelos cheiros do que pelos fogos, já que era comum alguma reação dar errado no pequeno galpão nos fundos da sua casa e ele precisar derrubar as portas a toda velocidade enquanto uma fumaça amarela tóxica e fedorenta infestava a vizinhança. Durante as férias de verão, pai e filha passaram muito tempo juntos trancados naquele galpão, enquanto a mãe fazia crochê ou lavava as roupas da família com uma expressão preocupada, atenta a qualquer barulho estranho que viesse dos fundos da casa. O pai montava suas conchas enquanto a filha enchia saquinhos de algodão com suas sementes e fazia suas perguntas. “Pra que serve isso, pai?” Ela perguntava. Rogério olhava para pequenos rótulos em garrafas de cor âmbar onde se liam fórmulas químicas complexas e falava num tom entusiasmado: “É com esses dois que eu faço estrelas brancas e cheias, com uma calda bonita como se fosse uma estrela cadente”, ou algo como “Esse aqui é o azul mais bonito que alguém já viu. É a 75


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cor mais difícil de se fazer, sabia?” E que filha não ficaria maravilhada com os segredos de um pai capaz de criar cores e constelações? No verão, o pai e a mãe passavam meses se deslocando pela cidade sem olhar na direção do mar. “Como pode um lugar mudar tanto por causa de um punhado de gente?” O pai disse para a mãe certa vez, enquanto ela lavava a louça. “Não é o lugar que muda,” ela disse, “é a gente.” Ele sabia o que ela queria dizer com aquilo. Na juventude deles, os dois tentaram se aproximar daquelas pessoas que viviam ali por apenas três meses e depois iam embora. O problema é que os veranistas não estavam ali pelas amizades. Para eles, aquele casal era apenas uma experiência, uma lembrança que sumiria assim que eles submergissem em suas rotinas urbanas e atribuladas. Por mais contraditório que parecesse, se aproximar daquelas pessoas era uma forma de aprofundar o isolamento deles, cada contato um distanciamento, as diferenças transparecendo na falta de interesse do casal pelo mar e na ausência daquele entusiasmo pelo qual são conhecidos os veranistas. Os engarrafamentos na última semana do ano pareciam coisas vivas. Buzinas revidavam outras buzinas em meio a gritaria generalizada como se fizessem parte da língua própria daquelas tripas intermináveis de veículos.

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Rogério usara mais de cem quilos de pólvora na fabricação de seus foguetes e armazenara tudo na barraca de água de coco perto de sua casa, que pertencia a um velho amigo. A barraca ficava fechada e a energia desligada durante os dois dias que antecediam o réveillon. Na véspera da virada os pais discutiam. Os gritos ultrapassavam as barreiras das portas e a menina os ouvia enquanto brincava no quarto. “Tu não vai levar minha filha pra lá.” A mãe disse. “Tua filha?” Rogério disse num tom sarcástico. A mãe parou por alguns segundos, a procura das palavras certas. Ela tinha o hábito de encobrir toda a verdade com uma camada de palavras atenuantes, mentiras que tinham a função de esconder a incapacidade da mãe de colocar em palavras sua infelicidade. O pai sabia que, por causa disso, aquelas discussões nunca acabariam. “Nossa filha não vai ficar no meio daquilo.” “Tem medo do que? Tu acha que eu vou botar fogo nela?” O pai disse e a mãe começou a chorar. “É perigoso...” “Não é dos fogos que tu tem medo, não é?” A mãe não respondeu. Momentos depois, intimidada pelo silêncio, ela disse: “Eu não quero isso pra ela…” “Isso o que?”

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“Isso.” Ela gritou e apontou para todos os cantos da cozinha. “Essa miséria. Ela tem que sair daqui…” Ela começou a chorar sentada na mesa da cozinha, com a mão direita sobre os olhos. Então eles ouviram a porta da frente bater. A mãe se levantou, enxugando o rosto, e foi até a janela. Ela viu a menina caminhar até a calçada e se sentar no meio fio. “Viu o que tu fez?” Rogério disse. A mãe sentiu náuseas e precisou sentar. Ele perguntou se ela estava bem, mas ela não respondeu. A mãe desejava a morte daquele homem que um dia ela havia amado. Rogério então começou a fazer listas de coisas ditas no passado, provas do ódio que sua mulher sentia por ele. Então ele expunha toda a verdade abertamente, de um jeito que a mulher não seria capaz. Rogério a chamou de egoísta e disse que se ela não tivesse fugido de casa e casado aos dezenove, ela poderia ter sido aquilo que ela tanto queria. Em vez disso, ela preferia impor à filha deles suas próprias aspirações, como se a menina fosse a última chance que ela tinha de ser feliz. “Egoísta e covarde”, ele disse finalmente. Momentos depois eles não conseguiam pensar em mais nada. Estavam exaustos. A mãe continuava sentada, com o olhar fixo em algo a sua frente, e o pai olhava pela janela. Ele enxergou a barraca de água de coco pela abertura nas dunas por onde os veranistas acessavam a praia. A luz estava acesa e o pai não conseguiu entender o motivo. Quando Rogério se 78


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deu conta do que estava acontecendo ele saiu correndo da cozinha. A mãe olhou para ele, assustada, enquanto ele derrubava as coisas que encontrava pelo caminho. Ele passou pela porta da casa e a deixou aberta. Rogério gritava o nome da filha enquanto corria pela rua. E então veio o primeiro estouro, e o pai sabia exatamente o que o provocara. Um clarão atravessou a janela da pequena barraca de madeira e pareceu se materializar a sua frente, pintando de vermelho a fumaça que antes não era visível. Ele corria pela areia agora e sentia raiva de si mesmo por não conseguir correr mais rápido. Ele passou por uma telha de barro na areia e viu que o telhado da barraca se abrira em alguns pontos. Ele ouvia o som do mar e do fogo e pensou em como eles eram parecidos, pois ele não conseguia diferenciálos. Rogério sentiu o calor que emanava da pequena construção e derrubou a porta dos fundos, que dava para a cozinha. Lá dentro tudo brilhava em cores que ele nunca havia visto. A fumaça queimava seus olhos e seus pulmões e ele não conseguia mais respirar. Algo então explodiu ao seu lado e ele foi jogado contra uma pilha de caixas de explosivos. Ele abriu os olhos e só conseguiu ouvir um zumbido agudo torturante. A lateral de sua cabeça ardia e quando Rogério encostou sua mão na orelha esquerda ele não conseguiu reconhecer nada do que ele tocava, apenas o calor gotejante do próprio sangue.

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Ele seguiu se arrastando pelo chão da cozinha, sabendo que não conseguiria se levantar se tentasse. O canto onde ficava o forno da lanchonete ardia em chamas e queimava o que sobrara das tortas de foguete que ele havia fabricado. Mais a frente ele enxergou um corpo deitado e reconheceu o tênis branco da filha, o shorts e a camiseta rasgada. Sua pele estava coberta por uma camada de cinzas e plástico derretido. Em alguns pontos, o sangue borbulhava para fora do corpo. Ele tocou o braço da filha e se assustou com o calor de sua pele. Só agora Rogério se deu conta de como sua filha era pequena. Ele sempre escolheu ignorar o fato de ela se parecer com crianças dois ou três anos mais novas que ela. A menina chorava por causa da sua aparência, tão longe da aparência que os outros achavam que ela devia ter. A imagem da fragilidade, fragilidade essa que Rogério sabia se tratar apenas de uma fachada, um disfarce para a mulher que emergiria dali se a mãe permitisse. Rogério se levantou, lutando contra a tontura e o zumbido nos ouvidos, e conseguiu pegar a filha no colo. Telhas caiam do teto sem forro em sua cabeça e ele sentia as ondas de choque dos foguetes explodindo ao seu lado. Ele saiu pela porta dos fundos para o vento gelado e girou, procurando o mar. Colocou os pés na água e desceu lentamente o corpo da filha. Ondas de vapor se levantarem do corpo da menina e a água revelou uma camada de bolhas na sua pele.

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Ele olhou para trás e viu o telhado da barraca explodir em dezenas de cores e jatos de luz branca. Ninguém para pedir ajuda, mas mesmo assim ele gritou. Ele não conseguia ouvir a própria voz, então tentou gritar mais forte. Ele olhou para a filha e viu que seus olhos estavam abertos, dois globos do branco mais puro que ele já vira surgindo sob a pele escurecida. O pai então gritou o nome da filha, e de alguma forma soube que aquela seria a última vez que ele veria seus olhos. Quando olhou para trás, o pai viu sua mulher parada entre as dunas que cercavam o acesso à praia, com as mãos sobre a boca e iluminada pelo fogo bruxuleante como se fosse uma visão, um espectro sumindo e reaparecendo na escuridão da praia. Famílias olhavam para o céu das janelas de suas casas, admirando os fogos no céu e alheios a tragédia que ocorria logo abaixo deles.

Rogério percebe que está passando frio ali fora e desce para o primeiro andar da casa. A mulher ainda está pintando lá em cima. Ele para no meio da sala e fica olhando para o cachorro deitado sobre um tapete. Uma carta de baralho faz taquetaquetaque na roda de uma bicicleta que passa na rua. Uma mosca tenta escapar do globo de plástico que encobre uma lâmpada no teto, enquanto o vento assovia ao passar por entre as frestas 81


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da parede de madeira. Cada som estranho faz o cachorro se retesar e levantar as orelhas. E como se o animal se desse conta da sua própria obesidade, ele logo abaixa as orelhas e deita a cabeça no tapete. O homem acha aquilo triste e pensa em como toda aquela situação se parece com algo que ocorreu há muito tempo, uma lembrança que ressurge num sonho ou num momento de alucinação febril. Ele ouve a porta dos fundos sendo aberta e, momentos depois, a voz da mulher: “Falta de educação a minha, né?” Ele olha para a mulher e vê que suas mãos e seu rosto estão sujos de tinta. “Eu não vim aqui pelo telefone.” Ele diz e franze a testa, estranhando as próprias palavras. “Eu sei”, ela diz. “Eu nem tenho carro.” “Eu sei.” Ela ri. “Eles nunca têm.” Rogério sorri para ela e agradece. Ele sai para a rua e caminha em direção a sua casa, parando no caminho para admirar os tapetes de ipomeias que cobriam as dunas nas margens da estrada.

Exatamente dois meses depois Rogério carrega uma bolsa de viagem cheia de foguetes e pega um ônibus para a cidade 82


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vizinha. Ele tem no bolso o papel com o endereço da sua ex esposa. Depois que eles se divorciaram, Rogério anotou o endereço de sua mulher naquele pequeno pedaço de papel antes de despachar suas coisas pelo correio e manteve o endereço fixado na porta da sua geladeira. Hoje ele decidira visitá-la, mesmo ela tendo pedido, três anos antes, para que ele nunca mais aparecesse na sua frente. A mulher não se importaria agora, não diante daquilo que ele tinha para dizer. Durante a viagem, ele pensa nas palavras exatas que poderia usar. Ele poderia começar falando sobre a senhora que conversava com o marido morto, mas tinha certeza que a mulher zombaria dele. Ele poderia pular para a noite em que acendeu o primeiro foguete e viu uma sombra se projetar na areia da praia e sumir de repente. E então ele contaria sobre o saquinho de sementes que ele amarrou no segundo foguete, e sobre como a sombra pareceu se projetar por mais tempo, esperando pelo fim da explosão. Descreveria com detalhes a silhueta que aparecera logo em seguida, quando ele soube exatamente o que ela desejava. Naquele momento, ele lembrara da admiração da filha pelos seus segredos, por aquelas pequenas fórmulas mágicas que explicavam como compostos de cobre e oxigênio reagiam juntos para formar aquela estrela azul no céu. E ele contaria para a esposa que a oferenda era exatamente aquela, pura pirotecnia e nada mais. Ao chegar na estação rodoviária, ele pega um táxi para a casa da ex-mulher. Ela mora em uma casa branca de dois 83


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andares em um bairro de classe alta. Ele vê crianças brincando na rua, jardins coloridos, calçadas impecáveis, nenhum pó, tudo o que ela sempre quis. Rogério toca a campainha, mas ninguém atende, então ele abre o portão e se senta nos degraus que sobem para uma varanda na frente da casa. Ele dorme e acorda minutos ou horas depois com o som do portão se fechando. A mulher está parada na sua frente, ofuscada pela luz do sol, mas ele consegue ver que ela está grávida. “O que tu quer?” A mulher pergunta e ele não sabe o que dizer. Por um momento Rogério esquece o que viera fazer ali. Quando se lembra, a única coisa que ele consegue dizer é: “Quem é o pai? Pela casa é alguém que teu pai aprovaria.” Ela manda ele se foder, o chama de ridículo, mas os xingamentos são vazios e ele tenta se levantar. “Eu vi nossa filha.” Ele diz e a mulher olha para o chão. Poderia ela ter se esquecido da filha deles assim tão rápido? O que Rogério não sabe é que a mulher sofre com aquela visita, a dor tão evidente no rosto do homem que olhá-lo faz ela relembrar o próprio sofrimento. Na época do acidente, com toda a necessidade de culpá-lo, ela se recusava a acreditar que aquele homem sentia o mesmo amor que ela pela filha. Mas agora, diante daquela vida que poderia ser reduzida a um rosto corroído pelo mar e a um amontoado de foguetes numa mala velha, ela se dá conta de que o marido sofrera esse tempo todo e se arrepende de tê-lo abandonado. 84


O ANO QUE ACABOU MAIS CEDO

Rogério vira as costas e caminha em direção a rua. Ele percebe que o muro na frente da casa está coberto por ramos de ipomeias. Ele olha para a mala e ri de como eles parecem patéticos oferecendo algo para alguém que não precisa de nada. “Tu foi ver ela?” Ela diz. “Ela quem?” “A mulher que falava com o marido morto.” Ela se senta nos degraus e olha para as próprias mãos. Rogério quer dizer que sim e falar sobre o mar agitado, que parecia mudo, fazendo reverências na escuridão toda vez que um foguete explodia no alto e a menina aparecia logo na sua frente. Ele quer falar sobre os grãos de pólvora e papel queimado que caiam e se misturavam a areia, com a matéria orgânica de milhares de ipomeias decompostas em dunas maiores que ele mesmo, finalmente sendo levadas pelo vento até se instalarem nos vãos do assoalho daquela velha que ensinara a eles como conversar com os mortos. Mas eles não falam sobre nada disso. Eles conversam sobre o passado, sobre aquelas coisas que eles fizeram juntos quando ainda se amavam. Avançam pelas épocas difíceis e se assustam ao perceberem que estão rindo delas como quem ri de tolices ditas por crianças. “Lembra aquela vez que eu te acordei com um rojão de 200 gramas?” A mulher diz e ri. 85


O ANO QUE ACABOU MAIS CEDO

Rogério se lembra da situação e se dobra para a frente numa gargalhada desengonçada de alguém que não está mais acostumado a rir. “Eu tava puta com alguma coisa, mas não lembro o que era”, ela diz e Rogério se senta na mala cheia de fogos de artifício, enxugando os olhos. “Foi alguma coisa que eu disse, será?” Ele diz, em meio a gargalhadas. Eles se lembram do estouro, do pai rolando na cama duas ou três vezes antes de cair no chão e da mulher parada na porta do quarto, atrás de uma nuvem de fumaça e areia. E como eles riem daquela coisa ridícula e desgovernada que foi o fim do casamento deles. Então a noite vem e eles ainda estão rindo, e por mais que eles tentem, nenhum dos dois consegue lembrar o que causara aquela briga.

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ONDE ARDEM OS INOCENTES PARTE I V . E. S im eon i

“Você não pode evitar pra sempre, filho,” as palavras do frade ainda flutuavam na minha mente quando o ônibus fez a última curva ao descer o morro. “Voltar pra casa vai te fazer bem.” Gostaria de poder acreditar nisso, mas a aflição é uma companheira íntima da dúvida e dúvidas eram tudo o que eu tinha.


ONDE ARDEM OS INOCENTES – PARTE I

Desde que me entendo por gente meu pai me ensinou que basta o incentivo certo e qualquer um pode fazer qualquer coisa, o problema é que no caso dele, esse incentivo normalmente vinha na forma de um punho fechado. Não que a maioria dos meus amigos não levasse uma surra de vez em quando, mas no meu caso era diferente, eu era filho do inspetor chefe da polícia rural e papa fazia questão que seus filhos fossem um exemplo dentro da comunidade. Ele estava disposto a nos fazer sangrar para garantir isso. Minha infância não foi exatamente feliz se você me perguntar. Assim que completei quinze anos decidi que já tinha perdido dentes demais, então acabei fazendo a única coisa que podia fazer... Reuni toda coragem que possuía, fui à paróquia mais próxima e convenci o padre que havia ouvido o chamado divino. Ele perguntou se eu tinha certeza e eu disse “amém”, Deus me perdoe, mas essa é a verdade. Mesmo hoje, me é incerto se ele acreditou em mim ou se sentiu pena. Seja como for, fui mandado para um mosteiro em Viena e lá eu fiquei nos últimos quatro anos. Repentinamente, o ônibus parou num solavanco, olhei pela janela para perceber que já era noite quando chegamos em Kiefer. Por mais que o uso da bengala compensasse a minha perna ruim, achei melhor aguardar o último passageiro desembarcar antes de seguir caminho, nunca gostei da ideia de ser inconveniente. 88


ONDE ARDEM OS INOCENTES – PARTE I

Kiefer era um vilarejo agrícola cercado por florestas de pinheiro que ficava ao sudeste da Baixa Áustria, um lugar simples que abrigava várias fazendinhas ligadas por ruas de terra batida. Grande parte dos habitantes vivia das suas lavouras ou trabalhavam na fábrica de vidro em Baden, gente que estava acostumada ao trabalho duro e a uma vida difícil. O ônibus me deixou em um ponto no final da rua principal onde não havia nada além de um comprido banco de granito com cobertura, a partir dali seria uma caminhada de uns vinte minutos até em casa. Tirando a minguada luz de um poste, era difícil de enxergar qualquer coisa além de um breu sem fim enquanto o vento agitava as árvores numa sinfonia inquietante. Mal tinha chegado e já estava começando a me arrepender de ter vindo. Não é que eu tivesse medo, quero dizer... Dá para imaginar como é, certo? “Boa noite.” Ouvi uma voz grave atrás de mim e no segundo seguinte, qualquer pensamento me foi varrido por uma sensação desagradável na nuca. Virei-me para dar de cara com algo que lembrava a silhueta de uma pessoa parada no escuro, uma figura grande e corpulenta. A parte racional do meu cérebro dizia que era só um Zé ninguém voltando para casa depois de um dia de trabalho puxado... Já a outra parte, ah essa fazia questão de me lembrar das histórias que eu ouvia na época da escola, relatos de assombra-

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ções que costumavam vagar por aí em noites sem lua em busca de uma alma azarada para lhes fazer companhia no além. Quem quer que fosse, ficou ali me encarando pelo que parecia uma vida, até que finalmente disse em alto e bom som. “Ely...”. Jesus amado! A coisa sabia meu nome... Num gesto automático apertei meu crucifixo contra o peito me segurando para não gritar. Então ele deu um passo adiante e mais um, aos poucos a luz do poste revelou um rosto que estava longe de ser uma assombração, mas ainda assim era bem familiar. “Garen é voc...” antes que eu pudesse terminar, um grandalhão saiu das sombras e me envolveu num abraço de tirar os pés do chão. “Bruder! Faz tanto tempo que quase nem te reconheci!” “Nossa você... Também mudou um bocado...”. O irmão caçula que eu me lembrava não passava um pivete mirrado de calças curtas e língua afiada, mas o rapaz que estava na minha frente era praticamente uma montanha de músculos com quase dois metros de altura, mal dava para acreditar. Quando ele finalmente me pôs no chão, o que me faltava em ar, sobrava em embaraço. “Você viu?” ele flexionou o braço fazendo as veias saltarem. “Todo dia eu dou um pulo na academia em Baden para afiar essas armas, a maioria dos meus amigos se exercita lá. Você precisa conhecer o pessoal, eles são incríveis.” Ele fitou a 90


ONDE ARDEM OS INOCENTES – PARTE I

minha mala que estava no chão. “Faz muito tempo que você chegou? Eu ia mandar um telegrama avisando que vinha te buscar, mas acabei achando melhor fazer surpresa.” “Ah, e que surpresa” disse ainda meio sem graça. “Cheguei agorinha pouco.” “Bom, é melhor a gente ir andando, temos muita conversa pra pôr em dia” ele pousou a mão sobre o meu ombro e abriu um sorriso. “Poxa nem acredito que você voltou.” É difícil explicar, mas por um instante pude me lembrar de que nem todas as lembranças de Kiefer eram ruins e as dúvidas pareceram não importar tanto assim. “Eu também Bruder, eu também.”

O cheiro adocicado de folhas de pinheiro pairava no ar úmido da noite enquanto nós continuávamos na direção de casa. No caminho passamos em frente ao gasthaus local que, como de costume, sempre ficava lotado durante as noites de sexta. Era para lá que os locais iam para beber, rir e quem sabe lá pelas primeiras horas da madrugada emendar uma cantoria animada. Com exceção de uma ou outra casa que ainda mantinha as lâmpadas acesas, o resto da vila era a mais pura bonança.

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Enquanto caminhávamos, Garen me contou sobre seus planos de deixar aquele fim de mundo para ir para a América que, segundo ele, era “o melhor lugar pra ser alguém”. Isso poderia até ser verdade ou talvez só um sonho ingênuo de um garoto que passou tempo demais no cinema, no final não importava, pois vivíamos em tempos estranhos. A Guerra Fria estava a todo vapor e a tensão entre os americanos e russos não dava indícios de que terminaria tão cedo. Pessoalmente, não me soava como uma ideia atraente, porém meu irmão parecia realmente apaixonado por ela, logo achei mais prudente guardar minha opinião para mim. O nosso destino era a penúltima propriedade no fim da rua, cercada por um muro de tijolos gastos, a casa possuía um ar rústico que ficava distribuído nos seus dois andares construídos em pedra e carvalho. Além do portão verde musgo, havia um passarela de cascalho que separava uma horta de tomates do barracão de ferramentas do meu pai. Garen seguiu na frente subindo os dois degraus que davam para a varanda, de frente com a porta ele apalpou o bolso da camisa, em seguida no bolso da calça, procurou na carteira e então me deu uma olhada de soslaio. “Você perdeu a chave, não é?” Indaguei. “Sabe como é né...” coçou a cabeça. “Acho que devo ter uma reserva no meu quarto.”

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“Que eu me lembre, seu quarto fica no segundo andar, como você... Ei?!” quando dei por mim, ele estava dando a volta na casa. “Só me dá um minuto!” Sentado na varanda, pus a bengala no colo e fechei os olhos, o frio e o cansaço começavam a levar o melhor sobre mim. Pow... pow... pow... dei um pulo quando ouvi o barulho seco vindo do barracão... Pow... pow... a cada batida a porta de madeira estremecia. Um homem de ombros largos trajando uniforme militar apareceu andando naquela direção, suas passadas eram severas, passadas que eu conhecia muito bem. Estava sonhando acordado? Não sei... Era como ver um filme no cinema, só que mais real... Meu pai tirou o cadeado da porta e a abriu num pontapé sem fazer nenhuma cerimônia. “Não papa! Não!” ouvi minha própria voz quando ele entrou no barracão e saiu de lá arrastando um garoto magrelo pelos cabelos, esse garoto era eu. Sem dizer uma palavra, papa puxou o garoto pelo cascalho até uma pilha de lenha que ficava atrás da casa, lá um machado fincado num toco de árvore aguardava pelos dois. “Você se acha muito engraçado?!” Rosnou o homem de uniforme. “Prometo que não faço mais... Papa... Por favor...” “Eu sou a porra do inspetor chefe dessa vila!” Seu rosto era um retrato vermelho de fúria, pingos de saliva saltavam a cada 93


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palavra. “Onde você acha que o meu nome fica quando o merdinha do meu filho tenta fugir de casa?!” O garoto nada disse, ele apenas tremia ao mesmo tempo em que uma poça úmida se formava ao seu redor. “Você nunca vai fugir moleque...” meu pai murmurou entre os dentes. Certas lembranças são como maldições que você é obrigado a carregar pelo resto da vida e aquela era a pior de todas, papa levantou o machado acima da cabeça com a parte cega da lâmina virada para baixo. Me faltou estômago para continuar olhando, mesmo assim pude ouvir o grito quando o machado me mudaria pelo resto da vida. “Ely?” Garen soava distante. “Você tá chorando?” “Não...” usei a manga da camisa para limpar o rosto, antes de ficar de pé dei uma última espiada no velho barracão, não havia nada lá. “Posso dormir no sofá?”. “Aqui ainda é sua casa, não precisa pedir.” Ele franziu o cenho. “Eu ajeitei um colchão no chão do meu quarto pra você.” “Deus te abençoe.” Forcei um sorriso e entrei pela porta. O interior da casa não havia mudado quase nada nos últimos anos, móveis feitos de carvalho enfeitavam a sala junto a quadros da família que ficavam em cima da lareira que se encarregava de fazer a calefação do ambiente. Meu irmão continuava imóvel junto à porta me olhando com uma cara de 94


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quem queria dizer alguma coisa, mas não tinha certeza se deveria. “Bruder?” disse por fim. “Conversei com herr Janz hoje cedo, ele falou que já tem comprador pra casa, mas como ainda faltava você para assinar a papelada, combinamos de fechar negócio só na próxima terça.” “Isso é bom...”. “Imagina o que papa diria se soubesse que a gente vai vender a casa, hein? Com certeza ficaria bem puto.” “Papa se foi Garen, ele não acha mais nada...”. “Hum, tem razão.” Diferente do resto da casa, podia se dizer que o quarto de Garen possuía uma personalidade própria. Pôsteres de atrizes como Jayne Mansfield e Linda Darnell cobriam as paredes de cima a baixo, sem falar nas muitas que eu desconhecia. Alteres dos mais variados pesos ficavam empilhados ordenadamente em um tipo de suporte de metal que ocupava boa parte do cômodo e uma pilha de revistas de musculação em cima da mesinha de cabeceira. Mala desfeita, pijama pronto, uma última prece antes de apagar o abajur e lá estava eu encarando o teto sem conseguir pegar no sono. Do quarto podia-se ouvir o badalar solene do relógio no corredor, rotina que se repetia hora após hora por uma noite que não parecia ter fim.

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“Ely? Você ainda tá acordado?” Aparentemente eu não era o único perdendo a batalha contra a insônia. “Hum”, murmurei. “Tem uma coisa que eu preciso te contar.” “Hum.” “Você se lembra do velho Wilmot?” “Aquele com os dentes de ouro? Lembro, por quê?” “Semana passada ele saiu de casa pra pescar no riacho como sempre fazia desde que ficou viúvo, o problema é que dessa vez ele não voltou mais. O delegado reuniu a maioria dos homens da vila para procurar pelo velho na floresta, nós logo encontrarmos alguma coisa.” Acendi o abajur para ver Garen sentado na cama olhando para o nada com uma expressão soturna no rosto. “Como assim nós? Você também?” Ele fez que sim com a cabeça. “Nunca tinha visto nada tão tenebroso assim nessa vida, era como se o próprio fogo infernal tivesse devorado o velho até não sobrar nada além de uma dentadura queimada em cima de uma pilha de cinzas, nem as arvores em volta escaparam.” Ele estremeceu “Tem gente que acha foi algum tipo de vingança, outros falam que foi obra de uma guarnição húngara, mas eu sei que eles tão errados”, fez breve pausa e então olhou para mim. “Foi o Offenmund...”

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Offenmund? Soava tão fantasioso como dizer que fora o bicho-papão... E pensando melhor, uma história daquelas só podia ser uma brincadeira de gosto duvidoso... Certo? Fiquei esperando ele cair na gargalhada, porém seus olhos continuaram firmes como mármore maciço. “Tá falando sério mesmo? Você sabe que se ouvirem falando esse tipo de coisa, vão achar que perdeu o juízo, não sabe?” “E quem disse que eu me importo com o que dizem? Sei bem o que vi e não fui o único, Tanbert e Ulrich também viram.” Disse com acidez. “Você não entende, também tinha uma trilha de pegadas lá! Eram fundas, maiores que as de um urso, impossível que fossem de um soldado húngaro ou de qualquer homem que fosse.” “Você ficou impressionado Garen, é só isso.” “Impressionado ou não, eu e os meus amigos vamos entrar na floresta amanhã pra pegar aquela coisa.” Desviou o olhar. “Estava me perguntando se deveria te contar, mas agora já foi.” A história do Offemund costumava ser uma das que mais apavorantes para qualquer que tenha crescido por estes lados, talvez seja por isso que a minha memória tenha guardado tão bem os detalhes. No meio da floresta que separa Baden de Kiefer existem as ruínas de um castelo que dizem ter pertencido a uma baronesa chamada Della, uma jovem viúva conhecida pela natureza obstinada e beleza sem igual. Reza a lenda que 97


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pretendentes de todos os cantos se amontavam nos portões do castelo, do mais nobre ao mais garboso, todos cobiçavam um lugar ao lado da baronesa. O que não sabiam é que para ela não importavam as paixões ou as poesias, não, a única coisa que preenchia seu coração era o amor incondicional pelo seu único filho. Assim o tempo passou, entre prata e babados, os dois viveram felizes dentro daquelas muralhas. Contudo, não há felicidade que seja feita para durar eternamente. Certo dia, durante um jogo de esconde-esconde, o entusiasmado garoto decidiu que teria de arrumar um esconderijo onde ninguém pudesse encontrá-lo e a cozinha do castelo soava como o lugar perfeito para começar. Mas existiam tantas opções, onde ele poderia se esconder? Talvez debaixo da mesa ou quem sabe dentro do armário, mas nenhum desses parecia bom o suficiente. Após matutar um bocado ele teve uma ideia, se esconderia dentro do enorme forno a lenha próximo à dispensa e assim o fez. Enquanto aguardava a brincadeira terminar, o menino viu a cozinheira andando pra lá e pra cá através de uma pequena fresta na porta do forno, mas não fez barulho algum, afinal não queria ser encontrado. De repente, o calor começou a aumentar e uma gota de suor lhe escorreu pelo rosto, ele tentou deixar o forno, mas a maldita porta emperrara. Não demorou muito para que o garoto entendesse o que estava prestes a lhe acontecer e, por 98


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mais que gritasse, ninguém podia ouvi-lo de dentro daquele monstro de ferro. Quando a cozinheira sentiu o cheiro de carne assada tomando conta da cozinha, já era tarde demais. Para a maioria das pessoas o luto é algo a ser aceito, mas não para a baronesa, ela não permitiria que algo tão trivial como a morte lhe roubasse o que lhe era mais precioso. Vários servos foram enviados mundo afora a procura de uma maneira de trazer seu filho de volta, uma busca que durou anos e custou quase toda sua fortuna, sem falar numa boa fatia de sua sanidade. Mas o que era um sonho delirante se mostrou possível. Através de um xamã himalaio ela tomou conhecimento de um antigo ritual necromante que prometia invocar uma entidade ancestral capaz de trazer os mortos de volta. Tal ritual exigia um sacrifício de sangue em uma noite de lua dourada e assim foi feito. Quando vidas se perderam e a terra se converteu num lamaçal escarlate, a profana entidade ganhou forma. Então, um trato fora firmado, a alma de uma mãe em troca de um novo sopro de vida para seu filho. Mal sabia a baronesa que a entidade pretendia cumprir sua parte do acordo, mas não do jeito que ela imaginava. O que foi trazido de volta à vida àquela noite só poderia ser descrito como medonho, como um gigante coberto por uma couraça de ferro com tachões pontiagudos que despontavam de seus ombros, a criatura profana tinha o rosto coberto por um tipo de mordaça gradeada que lembrava uma boca de forno onde labaredas esvoaçavam sem parar. 99


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Rapidamente o castelo foi envolvido pelas chamas e tudo o que restou foram ruínas. Ninguém sabe que fim levou a baronesa. Quanto ao Offenmund, dizem que ele continua pelas florestas austríacas mesmo nos dias de hoje e, se você ter a infelicidade de cruzar o caminho dele, é melhor correr ou ele vai queimar até o âmago da sua alma. “No que tá pensando?” Garen quebrou o silêncio. “Estou pensando em como é que vou fazer pra te acompanhar... Jesus!” Suspirei. “Alguém com um pouco de bom senso precisa evitar que você faça besteira.”

Acordei com o Sol batendo no meu rosto, ainda sonolento dei uma espiada no relógio da mesinha, os ponteiros marcavam sete horas. Só de pensar no dia miserável que me aguardava, eu perdia qualquer vontade de levantar da cama. Pode ser apenas um hábito de um pessimista nato, mas a perspectiva de dormir ao relento e ter que cagar no mato não eram nem um pouco animadoras. A cama de Garen estava feita e suas botas se foram, o cabeça oca deve ter levantado com as galinhas. Sem perder tempo com mais lamentações, me vesti e fui até a cozinha para preparar o desjejum. Enquanto o bule fervia, eu revirava os armários a procura de uma frigideira. “Ely?!” Era a voz do meu irmão vindo da sala. 100


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“Aqui!” Respondi sem desviar a atenção do armário. “Vou fazer uns ovos, você prefere o seu com a gema mole?”. “Ei! Tenho um presente pra você.” Mais desconfiado do que curioso, levantei a cabeça para defrontar-me com Garen de pé na porta da cozinha segurando um tipo de bastão de madeira. Enrolada em uma das extremidades, uma pequena corrente prateada presa a um pequeno objeto oval que lembrava uma moeda. “Errr... O que é isso?” Ele olhou para mim como se se aquela tivesse sido a pergunta mais estúpida que ele já ouvira, até que por fim disse: “É um cajado, oras! Pensa comigo, a bengala não serve pra caminhar na floresta, então te fiz um cajado. Tá vendo isso aqui?” apontou para a extremidade com a corrente. “É uma medalhinha de Santa Lúcia, serve pra dar sorte.” Ele me entregou o cajado, deslizei os dedos sobre a madeira até a medalhinha, era bem mais leve do que aparentava. “Poxa obrigado, de verdade.” “Nem precisa agradecer”, ele puxou uma cadeira. “É só caprichar no café.”

De estômago cheio, a hora seguinte foi usada para preparar duas mochilas com provisões para enfrentar a floresta. Com tudo pronto, a casa ficou para trás. Nós caminhávamos 101


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debaixo de um ameno céu azulado, talvez um bom presságio. Pouco antes da placa que marcava a saída norte da vila, os amigos de Garen esperavam à sombra de um velho damasqueiro. Duas figuras no mínimo extravagantes. O rapaz menor usava um bigode ralo e um cabelo lambido, seus braços eram grossos como toras, o que tornava a desproporcionalidade com as pernas finas de garça ainda maior. Já o sujeito de rosto quadrado encostado na árvore... Bom... Se meu irmão era uma montanha de músculos, ele era uma cordilheira inteira. “Salve pessoal!” Exclamou Garen. “Ely, esses são meus parceiros, o mãos de fada aqui se chama Tanbert”. “Nhocê não disse isso na únltima vez que ganhei no brãnço de ferro.” O brutamonte respondeu numa bem humorada voz anasalada. “Muito prazer”, ele tinha um aperto de mão firme. “E esse tampinha aqui é o Ulrich” “Tudo bem?” Tentei soar o mais simpático possível, porém o perna de garça se limitou a me medir de cima abaixo. “Quem é o frangote?” Disse por fim. “Sua mãe te ensinou mesmo a causar boa impressão, hein.” Garen fez uma careta. “É meu bruder, ele vem com a gente.” “Ahn-ahn... E será que ele dá conta?” “Com certeza, se brincar até melhor que você.” 102


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“Hum”, revirou os olhos. “Tomara mesmo, não estou aqui pra pajear marmanjo nenhum, se você trouxe ele então é problema seu.” “Sim mein general!” Garen fez uma continência debochada. “Tanto faz”, se baixou e pegou a bolsa que estava aos seus pés. “É melhor a gente ir andando, quero chegar à floresta antes da hora do almoço.” E lá se foi ele, sozinho pela estrada. Um silêncio desagradável se mesclava ao som das passadas de Ulrich que iam diminuindo à medida que ele se distanciava. Garen e Tanbert trocaram um rápido olhar que aparentava valer por uma conversa inteira, então voltaram sua atenção para mim. “Olha... Se vocês acharem melhor eu ir...” “Ah para com isso, o Ulrich é um idiota que adora fazer drama.” Garen me deu um tapinha nas costas. “Nhé isso aí! Nhão esquenta.” Cada um pegou seus pertences e não se tocou mais nesse assunto. A estrada que permaneceu vazia durante quase todo o percurso, tirando os ônibus que faziam rota por ali ou alguns caminhão que passava levantando nuvens de poeira, pouca gente se interessava em se aventuras por aqueles lados. O marasmo não parecia incomodar meus companheiros, que não paravam de tagarelar sobre um tipo de esporte chamado fisiculturismo. Pelo que entendi, os competidores tinham que esculpir seus músculos de um jeito cujo formato e volume se 103


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complementassem de forma simétrica. De acordo com Garen, “era muito mais que um esporte, era o ápice da busca pela perfeição física”. Pessoalmente, não entendo como um bando de fortões besuntados em óleo e fazendo poses engraçadas seja o “ápice” de qualquer coisa, mas o que eu sei? O que mais me impressionava em tudo isso estava longe de ser o assunto em si, mas sim a facilidade com que Tanbert conseguia nos entender mesmo sendo quase surdo. “Nhé fácil, é só prestar ãtenção nos lãbios”, se gabava. Já estávamos andando por quase duas horas quando o cume do morro começou a ficar visível, isso me deixava aliviado, pois minha mochila estava começando a ficar mais pesada a cada passo. Quando finalmente alcançamos Ulrich, ele estava sentado sobre uma pedra observando atentamente o caminho a sua frente. “Shhh”, fez um sinal ao perceber nossa aproximação. Do outro lado, onde o caminho se bifurcava, uma garotinha de cachos cheios e pele queimada de sol enchia uma cesta com cogumelos silvestres. Reparando um pouco melhor, havia alguma coisa errada com os olhos dela... Cobertos com um pedaço de trapo... Ela era cega. Alheia a nossa presença, a menina pegou sua cestinha na mão direita, uma vareta na esquerda e saiu perambulando pela estrada tão naturalmente como se conhecesse a posição de cada pedra a sua frente. O que aconteceu em seguida... é difícil de explicar, num segundo tudo estava bem, no seguinte um frio 104


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repentino tomou conta do ambiente. Nenhum dos outros pareceu ter notado o ar mais pesado, difícil de respirar. Fechei os olhos e enchi os pulmões, quando os abri novamente, o mundo ao meu redor tinha sido devorado por uma escuridão infinita, não restava nada, a não ser a menina cega... olhando diretamente para mim? Seus lábios não se mexiam, mas eu podia ouvir vozes estranhas sussurrando... Coisas incompreensíveis... Um idioma esquecido... Como se estivessem dentro da minha cabeça... “Ei Ely, ãcorda.” “Hã?” “O Garen tá te chamando.” “A menina cega... Pra onde ela foi?” “Hum, deve ter nhido por ali.” Tanbert apontou para a direção pela qual viemos. “Por quê?” “Nada...” “Cê tá bem? Pãrece que tá meio brãanco.” “Uhum”, me apoiei no cajado para ficar de pé. “Minha pressão deve ter baixado.” Seria mentira se dissesse que nunca fui arrebatado pela imaginação antes, mas nunca desse jeito. Não sei, talvez estive perdendo o juízo... A única coisa certa é que deveria guardar o que quer que estivesse acontecendo para mim, tudo o que eu menos precisava agora é que os outros ficassem me olhando esquisito. 105


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“As duas mocinhas aproveitaram o troca-troca?” “Cala a nhoca, Ulrich.” Sem dar trela ao aspirante a Zé graça, fui direto até o meu irmão, que esperava ajoelhado sobre a relva enquanto remexia sua mochila. “Queria falar comigo?” “Tenho uma coisa pra você.” Disse tirando um objeto enrolado em um guardanapo de dentro da mochila. “Ainda se lembra como se usa?” O formato e o jeito que se encaixava na mão eram bem familiares, não foi surpresa quando abri o guardanapo e descobri um revolver. “Hum, tem certeza que é uma boa ideia?” “A gente costumava praticar com as armas do pai do Tanbert depois do treino, ninguém vai atirar no próprio saco se é isso que te preocupa.” Fechou o zíper. “Queria ter trazido os rifles, mas eles são mais difíceis de esconder.” “Esse cheiro...” senti um aroma diferente vindo da arma. “O que é isso?” “Leite de rosas” ele falou como se fizesse todo sentido. “Na teoria é a única fraqueza do Offenmund, tem gente que fala que é água benta, na dúvida eu usei os dois.” Ah claro que isso explica tudo! Cheguei a abri a boca para dizer algo, mas no final me limitei a guardar o revolver

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no bolso e a língua dentro da boca. De que adiantaria? Bom Deus, e eu preocupado com a minha sanidade... Existiam dois trajetos possíveis a partir dali, continuar pela estrada significava chegar em Baden após um dia de caminhada, quem sabe menos. Ir pelo oeste, no entanto, nos levaria por um declive estreito até um oceano verde, que cobria boa parte das montanhas. Estava quase na hora do almoço quando o nosso grupo começou a descer, acho que a partir daí pode-se dizer que a caçada começava oficialmente. O plano era simples, abrir caminho mata adentro até o riacho onde foram encontrados os restos mortais do velho Wilmot. Uma vez no local, deveríamos procurar por rastros ou pistas. Se isso não desse certo, o plano B seria tentar as ruínas do antigo castelo da baronesa, afinal, “se o monstro tem um território, ele nheve ficar por perto, é assim com os lobos”, explicava Tanbert, onde ele ouviu isso, nunca vou saber. Acredito que a sua maneira, tudo não passava de uma grande aventura para ele. Tudo ia bem até que alguém na dianteira soltou um palavrão. No começo não entendi o motivo, mas logo precisei me segurar para não praguejar também. Havia uma fissura bem no meio da trilha, deveria ter pelo menos uns quatro metros de uma margem a outra. Contornar não era uma opção, só existia um jeito de continuar, uma ponte improvisada feita de tronco de pinheiro que só Deus sabe há quanto tempo estava lá. 107


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A discussão para saber quem seria o primeiro foi rápida, Ulrich se prontificou, afinal era uma chance perfeita para se exibir. Ele deixou a bolsa no chão, colocou um pé em cima do tronco e abriu os braços como se quisesse voar, dois passos tímidos foram o suficiente para que sentisse confiança o suficiente para fazer o resto parecer fácil. “Joguem as mochilas pra cá seu bando de frouxos!” Agitava os braços. Tanbert obedeceu arremessando os pertences de cada um até a margem oposta, onde Ulrich esperava para pegá-los, então sem fazer cerimonia, atravessou. “Tá com medo?” Garen perguntou. “Acho que medo seria um eufemismo.” “Eufe o quê?” “Quer dizer que eu estou quase me borrando...”. “Relaxa, eu já pensei em algo.” O tal “algo” consistia em amarrar uma corda em torno do meu peito e segurar na outra ponta, caso eu caísse, a única coisa ferida seria o meu orgulho. De qualquer jeito, qualquer coisa é melhor do que se espatifar feito uma abóbora no chão. “Sabe, tive a impressão de que você ficou mudo de repente desde que a gente desceu o morro.” Ele terminava de apertar os últimos nós. “Tudo bem?” “Ah, não é nada”, mentira. “É só impressão mesmo.”

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“Hum”, Garen ponderou brevemente, então deu ombros. “Pronto?” Fiz o sinal da cruz. “Pronto.” “A gente se encontra no outro lado bruder.” Foi a última coisa que ele disse antes de atravessar. Uma vez conheci um monge italiano que adorava filosofar sobre a vida, seu ditado preferido costumava ser “no paladar certo, mesmo o prato mais amargo pode ser saboroso.” Sinceramente, duvido que ele continue pensando assim depois de se esgueirar por cima de um maldito pedaço de madeira coberto de musgo. O cajado ia à frente e minhas pernas seguiam bambeando atrás, a única coisa que conseguia ouvir claramente eram as arfadas que saiam da minha própria boca. Confesso que por um momento acreditei que conseguiria, ah, quanta ingenuidade... Bastou um passo em falso e foi tudo o que a gravidade precisou para me arrastar pela fissura. Aconteceu tão rápido, só me lembro da pressão no peito quando a corda esticou e de balançar como um pêndulo até me chocar contra a parede, um líquido quente escorrendo pelo meu rosto. “A corta tá arrebentando! Puxa ele porra!” Alguém gritou lá em cima, mas foi inútil... Zap! A corda se partiu e eu caí.

“Ainda tô vivo...” suspirei. 109


ONDE ARDEM OS INOCENTES – PARTE I

Um céu alaranjado se escondia atrás das copas das árvores enquanto o vento sibilava numa brisa tranquila de fim de tarde, mal consigo descrever o quanto fiquei aliviado. Tentei levantar, a cabeça ainda latejava e tinha um pouco de sangue seco na minha testa, fora isso, o resto parecia em ordem. Engraçado... Numa primeira vista não havia percebido, mas prestando mais atenção, pinheiros e arbustos me cercavam por todas as direções, sem falar no estrilar dos grilos... Eu estava na floresta... Mas como? “Garen! Tanbert! Alguém?” Nenhuma alma por perto, o alívio de antes logo deu lugar para uma pontinha de desespero... Droga! Tinha que me manter calmo se quisesse encontrar os outros antes do anoitecer, Deus me livre ficar sozinho e perdido no escuro. Por sorte o cajado estava jogado não muito longe dali, ao lado de algumas... Pegadas? Levando em conta o tamanho e formato só poderiam ser de uma criança, sem falar que pareciam recentes, elas serpenteavam até sumir atrás de uma colina. Será que fui salvo por uma criança? Hum, eu acho que qualquer coisa soa melhor do que seguir por aí sem rumo, portanto resolvi segui-las, tomando cuidado para não perder o rastro. O engraçado é que, quanto mais acompanhava as marcas no chão, maior era a sensação de que tinha algo errado com aquelas pegadas, estavam crescendo... Foi quando alcancei o alto da colina e tive uma visão que fez meu sangue gelar. 110


ONDE ARDEM OS INOCENTES – PARTE I

Não dava para colocar em palavras, era como se... Como se uma força imparável tivesse esmagado tudo que estivesse a sua frente deixando para trás um corredor de troncos fumegantes e carcaças de animais carbonizadas. As pegadas continuavam em meio a devastação, tão grandes e pesadas que lembravam... Ah merda... A expressão de terror no rosto do meu irmão... Offenmund... “Por que está tremendo? A besta se foi.” Levei um susto tão grande que perdi o equilíbrio e cai com o traseiro no chão. Como um mal agouro, a garotinha cega surgiu do nada. “Como Diabos...” “Ely, sei que sentiu minha presença quando nossos caminhos se cruzaram antes.” Falava numa suave voz mansa. “Talvez seja um prefácio do que está por vir.” “Quem te contou meu nome? Quem é você?!” “O mensageiro não importa e sim a mensagem, logo escute com atenção. Essa floresta guarda segredos de um mal tão antigo que nenhum homem poderia compreender, um mal que despertou.” “E-eu...” minha boca estava seca. “Como assim? Você está falando do Offemund?” “Não... Ela representa uma ameaça muito maior...” murmurou antes de desaparecer numa lufada de vento, quando me dei conta, seu rosto estava tão próximo do meu que dava para sentir o cheiro de edelvais. Foi quando ela me mostrou. Atrás 111


ONDE ARDEM OS INOCENTES – PARTE I

daquele trapo que cobria os olhos dela, se escondiam dois abismos cuja revelação era tão vívida que era impossível não ser engolido por ela. Um labirinto de árvores sem fim se estendendo até onde a vista alcançava, penduradas nos galhos pelo pescoço como frutas... Mulheres prenhas... Tantas... Vermes se banqueteavam em seus cadáveres enquanto um sufocante cheiro de podridão envenenava a fé de qualquer pessoa sã. “A última vez que Ela despertou, foi-se exigido um sacrifício de sangue e a criatura que você chama de Offenmund nasceu.” “Ela quem? A entidade que enganou a baronesa?” sem me dar conta, lágrimas rolavam pelo meu rosto. “Meu Deus... O que isso tem a ver comigo?” “O que mais? Ela anseia por liberdade e precisa de mãos que escolham levar esse desejo adiante, um dos que estão no seu grupo tomará tal decisão.” “Impossível...” “A covardia do coxo, a vaidade do falastrão, o ímpeto do surdo e o remorso do filho... Assim como eu posso enxergar o que se esconde dentro do coração de cada um de vocês, a entidade também pode, um de vocês tomará a decisão e o resto perecerá. A não ser que...” pela primeira vez senti insegurança na voz dela. “O quê?! Fala! Se existe uma chance...”

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ONDE ARDEM OS INOCENTES – PARTE I

“...eu preciso saber!” meu coração martelava no peito com a força de um pistão. “Shhh, calma bruder.” Despertei em um tipo de acampamento no centro de uma clareira, Garen estava sentando ao meu lado enquanto Ulrich afiava uma faca em frente a fogueira. “Não... não! Para onde ela foi!? Eu preciso falar com ela...” “Ei, ei, vai devagar.” Garen se esforçava para demonstrar tranquilidade mesmo com o seu semblante dizendo o contrário. “A corda arrebentou e você caiu, lembra? Rapaz, eu quase morri do coração na hora quando a gente te achou lá embaixo, mal dá para acreditar que você saiu dessa sem nenhum osso quebrado, foi um milagre mesmo. Deve ser normal se sentir confuso depois disso.” “Confuso uma porra! Você não sabe o que eu vi!” Mal me reconhecia dizendo aquelas coisas. “Nós... Nós nos condenamos no minuto em que colocamos os pés nesse lugar amaldiçoado.” “Ah merda, deve ter sido a pancada na cabeça...” “Você não entende”, desatei a chorar. “Precisamos voltar... Se não a gente vai morrer...” “Ely...” Garen apertou os lábios até sumirem “Ulrich, chame o Tanbert, a gente precisa conversar.” “Ah não, nem vem! A gente não vai embora só porque o aleijado teve um pesadelo.” 113


ONDE ARDEM OS INOCENTES – PARTE I

“Ulrich, por favor...” “Eu vim aqui pra pegar o Offenmund e é isso que eu vou fazer! Se vocês medrosos querem ir embora, tanto faz! Fodase! Quando escreverem um livro sobre mim, pode apostar que eu vou fazer questão de contar como vocês fugiram feito um bando de bichinhas.” Aquelas palavras atingiram meu cérebro feito uma faísca num tonel de gasolina, como eu deixei isso passar? “O covarde, o impetuoso e você é o falastrão...” “Do que você me chamou?” Urich rosnou. “...Falta o remorso de um filho... Por que você sente remorso Garen?” Como num passe de mágica, a fogueira subitamente se apagou deixando o acampamento na mais profunda escuridão. De repente, um estrondo fez a terra tremer e todos ficaram em silêncio. Podia ouvir apenas o som das batidas aceleradas do meu coração, até elas serem abafadas pela trovoada febril de um rugido furioso.

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SEGREDOS M ar co s V. S . d e Mel o

“Meu médico disse que escrever me ajudaria a espantar os meus demônios. Começo a achar que uma arma seria mais eficiente.” César

I “Odeio a merda do meu nariz!”. Foi essa a primeira coisa que passou pela minha cabeça ao tocar o alarme do celular e me acordar de mais uma noite de sono extremamente mal dormida por conta da rinite. Era inverno e andei me expondo ao frio por algumas madrugadas enquanto dava umas voltas


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sem destino pela rua, tentando desanuviar um pouco a cabeça. Independente desta porcaria eu não conseguiria dormir mesmo. Não sei o que é dormir direito há tempos. O frasco de remédio ainda estava cheio. E que se dane. Cansei de me dopar. Chega de licença. Basta de escrever. Não vou mais fugir da realidade. O médico mesmo me disse que eu deveria enfrentar meus demônios, encará-los de frente. Olhei para o outro lado da cama. Nada além de um travesseiro vazio. Seis meses. Demoraram demais pra pegar esse infeliz. Finalmente eu vou olhar na cara dele. Difícil descrever a sensação. Não sabia o que sentir. Pensava em como seria minha reação enquanto me aprontava. Vesti minha farda, arrumei o coldre da minha arma, pinguei um pouco de soro no meu nariz, tomei um gole de café preto sem açúcar e saí. Enquanto dirigia, me vinha à cabeça o dia do nosso casamento. Amanda estava tão feliz... uma felicidade tão cândida e genuína que chegava a me emocionar. Desde que éramos pequenos ela sempre foi muito efusiva. De fato eu fui encantado por aquele sorriso desde o primeiro momento que a vi, quando ela se mudou para o bairro. O que sentia naquela época era uma coisa ingênua, pura, infantil, mas que com o tempo foi evoluindo e se tornou algo mais forte do que qualquer coisa que já havia experimentado. Era muito bom ver aquele rostinho radiante enquanto corríamos os três pela vizinhança, ela, o André e eu. Tantos planos, tantos sonhos... tudo interrompido tão abruptamente. 116


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Cheguei ao local onde o sujeito iria ser interrogado. Lembro que me impediram de entrar na sala. De que foram necessários três homens para me segurar. Do 1º Sargento André tentando me explicar que eu não poderia participar do interrogatório porque estava afastado, em tratamento psiquiátrico e tinha ligação direta com a vítima, enquanto eu me debatia no chão com os três em cima de mim. De como depois de verem que não teria como me dissuadirem eles me deixaram assistir pelo vidro, contanto que entrasse desarmado e alguém ficasse junto comigo para garantir que eu não faria nenhuma loucura. Recordo-me do André prestando-se a ficar do meu lado. Vem-me claramente a sensação de raiva e impotência quando vi a cara do desgraçado sentado lá. Osvaldo Farias de Muniz Cordeiro. Nunca vou me esquecer desse nome, nem das suas feições. Tinha cabelos castanhos e ralos, olhos caídos, algumas rugas e uma cicatriz que atravessava a sua bochecha direita. Era um corte fino e parecia recente. Provavelmente deve tê-la adquirido ao passar por algum arame farpado por aí. Os dados que foram levantados diziam que ele era de 10 de setembro de 1973, mas aparentava um pouco mais. Estava bem magro. Seu semblante abatido, porém calmo. Era incrível como podia apresentar tamanha serenidade com tantas provas cabais contra ele. Pensando bem, não havia mesmo motivo para se afligir. O jogo acabou. Acho que ele nem tinha mais energias para se desesperar. Devia até ser um alívio finalmente parar de fugir, de conviver diariamente com o medo, a para117


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noia, olhando para todo o lado constantemente, pronto para correr a qualquer momento, se escondendo como um rato, num mundo onde qualquer um pode ser o gato. Olhei nos olhos dele quando lhe disseram algo e apontaram pra mim de dentro da sala. Vi a surpresa e a palidez que seu rosto assumiu. Quando tudo acabou, me retiraram da sala antes de removê-lo. Sentia-me sem forças, um pouco tonto. Minhas mãos tremiam. Fui até a copa tomar uma água e me sentar. Estava lá, tentando digerir a situação quando o André chegou. – Você tá bem, mano? – Não. – Eu sei o quanto deve ser difícil pra você. – Não. Você não faz nem ideia. – César, ela também era minha amiga e eu estava lá no momento, presenciei tudo, peguei o outro, mas esse maldito me escapuliu, você sabe disso. Não consegui ser mais rápido e peço perdão a você por isso mais uma vez. Claro que não consigo mensurar a dor da sua perda, mas posso imaginar. O que eu senti naquele momento deve ter doído cem vezes mais em você. – Mil vezes mais. – Tudo bem. – Ele sentou ao meu lado e franziu o cenho – Agora me diz o que você pretendia entrando na sala de

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interrogatório estando de licença, em tratamento médico, armado e com o assassino da sua mulher lá dentro? – Não é óbvio? Pra olhar nos olhos dele. Queria perguntar, “por quê?” Saber de tudo o que aconteceu naquela noite, detalhe por detalhe. – E? – Ele sentiu que eu ainda não tinha dito tudo. – E meter uma bala na cabeça dele, igualzinho ele fez com a minha esposa, exatamente no mesmo ponto. – A frase me veio de dentro, estava carregada de raiva, mágoa, tristeza. O André me conhecia melhor do que ninguém. Até eu me casar com a Amanda, morávamos os três na mesma rua. Crescemos juntos, estudamos juntos, entramos na corporação juntos, exceto ela, que preferiu cursar gastronomia. Éramos como irmãos. Não tínhamos segredos. Acho que nem se quiséssemos. Ele sabia o que eu realmente pretendia. – Você ia fazer só a última parte, né? Vieram-me lágrimas aos olhos. Tentei me conter, mas não consegui. Chorei. Copiosamente. Ele me observava em silêncio enquanto eu soluçava. Levantou-se, fechou a porta do refeitório e voltou até onde eu estava. Tinha algo de sombrio no seu semblante. – Você realmente quer isso? – Não venha me dar sermão! Pra isso eu já passo na droga do psicólogo!

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– Presta atenção! – Seu tom foi ríspido – Eu perguntei se você realmente quer isso! Eu me surpreendi. Achei que não tínhamos segredos. Realmente me surpreendi. Mas assenti. II “Isso vai acabar hoje!”. Essa frase ecoava pela minha cabeça enquanto eu dirigia noite adentro em direção ao cárcere onde o maldito foi colocado. Estava tudo esquematizado. O André mexeu os pauzinhos para mim. Minha entrada seria facilitada, eu enfiaria o filho da puta numa viatura, apagaria ele num local isolado já combinado, desovaria o corpo num barranco no meio do nada e ninguém nunca mais ouviria falar dele. Não sabia que o André fazia esse tipo de coisa, foi uma surpresa. Sempre abominei esse tipo de conduta desprezível que mancha o nome da nossa corporação, mas hoje eu vou apelar. Recuso-me a esperar o cara ser condenado e daqui a alguns anos ou talvez meses um advogadinho qualquer tirar ele de lá para destruir mais famílias. Até mesmo em algum indulto ele poderia escapulir. Não poderia permitir isso. Esse cara tem que pagar. A morte ainda é pouco para a pessoa que me tirou a minha Amanda. Pelo que foi levantado da vida dele até o momento, o cara não tem família. E por culpa desse vagabundo eu também não. 120


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Cheguei. Dois agentes já estavam me esperando na porta com o cara algemado entre eles. Estava com um moletom encapuzado e cabisbaixo. Quando desci do carro ele levantou a cabeça como se tivesse acordado de um transe e pude ver em seus olhos tristeza e resignação. Notei que também estava amordaçado. Aproximei-me deles. – Boa noite. Eu vim remover o... – É a gente já tá sabendo. – O que estava à esquerda do sujeito interrompeu – Você sabe que isso pode dar muita merda, né? – Eu sei do risco. Não precisam se preocupar, não vi nem conheço nenhum de vocês. – É bom mesmo. – O da direita retrucou – A gente só tá fazendo isso aqui porque o André pediu. – Sim, eu sei disso. Não vai acontecer nada, podem confiar em mim. – A gente confia nele, não em você. Não fazemos nem ideia de quem você seja. – Então tudo bem, confiem nele. – Leva ele daqui logo antes que a gente mude de ideia. – O soldado da esquerda empurrou-o na minha direção. Ele tropeçou e caiu aos meus pés. – E se você acabar fazendo merda e der com a língua nos dentes, o seu velório vai ser de caixão lacrado!

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– Como é que é, seu filho da puta?! – Já estava perdendo a paciência com aqueles dois, até tentei ficar na minha, mas também não tenho sangue de barata – Você tá me ameaçando?! Escuta aqui, seu merdinha, eu ainda sou seu superior, ou o André se esqueceu de mencionar que o 1º Sargento aqui sou eu e não vocês?! Acham que estão em condições de ameaçar alguém?! O pé de vocês tá enfiado na lama tanto quanto o meu ou até mais! Se vocês não ficarem com o bico fechado, não vão achar nem os corpos pra colocar nos caixões! Tão achando que são os únicos que têm amigos?! O próprio André que vocês tanto idolatram e que colocou vocês dois soldadinhos de merda pra testar a minha paciência aqui hoje é meu amigo de infância! E uma dica: Pensem bem antes de pisar no calo de um superior, a corda sempre arrebenta do lado mais fraco. – Enfiei o infeliz algemado no fundo da viatura enquanto os dois ficaram me olhando sem saber o que fazer. Entrei no carro, fechei a porta e olhei para a cara deles pela janela – Eu vou ter uma conversinha com o André sobre vocês dois! – Arranquei e saí. Meu coração estava acelerado. Suava frio. Minhas mãos estavam escorregadias no volante. Sentia-me sufocado. Em determinado momento, encostei o carro no acostamento da estrada, para tomar um pouco de ar. Pareceu uma eternidade para chegar ao maldito local. Encostei a viatura, removi o sujeito da parte de trás e subimos mata adentro. Enquanto caminhávamos, notei que ele estava 122


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começando a tremer. Não vai conseguir nem uma gota de piedade em mim. Pensasse nas consequências antes de matar a minha mulher. De destruir a minha vida. Quando chegamos ao topo, o coloquei de joelhos. Vi lágrimas brotarem em seus olhos. Eu estava decidido. Não haveria compaixão para quem também não a teve com uma refém desarmada. Apontei minha pistola em direção a sua cabeça. Reparei que havia um leve tremor em minhas mãos também. Mais uma vez meus olhos se encontraram com os dele. Pretendia me aproximar mais e acertar o tiro exatamente na lateral direita da cabeça, tal qual ele havia feito, mas quando fiquei face a face com ele uma coisa me chamou a atenção: Apesar de visivelmente aterrorizado ele parecia decidido a morrer me encarando nos olhos. Curioso. Que seja então. Engatilhei a arma. O “clique” dela sendo destravada lhe causou um espasmo de susto. Mas ele não desviava o olhar. Aquilo me incomodava. Esperava que ele esperneasse, tentasse arrancar a mordaça, fugir de alguma forma, implorar por piedade... mas não. Ele continuava a me encarar. O que se passa na cabeça desse cara? Ele gesticulou com a cabeça como que me apressando a acabar logo com isso. Não. Não vou terminar com o seu sofrimento tão rápido assim. O meu nunca vai acabar, então prolongarei o seu enquanto eu puder. Aproximei-me dele. Essa sua mudança de atitude nos momentos finais me intrigou, então lhe removi a mordaça antes

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de continuar. O André me recomendou matar ele rapidamente e sair, mas pelo que vi esse local é bem isolado. ‒ Por quê? ‒ Perguntei enquanto jogava a mordaça no chão. ‒ Você tá mesmo convencido disso, né? ‒ Não deveria? As provas e as testemunhas estão contra você. ‒ Realmente tá tudo contra mim. Por que não atira logo? ‒ Decidi que não vai ser rapidinho. Tá tão a fim de morrer assim? ‒ Eu já cansei de correr e me esconder. Tinha uma casa, um trabalho e uma vida. Não tenho mais nada agora. Vou morrer e ser enterrado como um indigente, isso se você ao menos se der ao trabalho de enterrar o meu corpo. Então eu pelo menos vou me dar ao luxo de ter uma última gota de dignidade antes de sumir. Morro injustamente, mas de cabeça erguida. ‒ Injustamente?! ‒ Toda a raiva que senti naquele momento se manifestou na forma de um soco desferido em cheio na sua face, derrubando-o de costas no chão. Seu nariz começou a sangrar, provavelmente devo tê-lo quebrado ‒ Acha justo você e seu comparsa terem abordado uma pessoa inocente enquanto ela voltava do trabalho, feito ela de refém e matado antes de fugir?! Ela não merecia isso! Era uma pessoa que trabalhava duro, se formou, sonhava em abrir seu negócio próprio, sempre lutou pelo que era dela sem precisar tirar nada de 124


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ninguém! Você tem a mínima noção da dor que causou? Você pensou por um único segundo que essa pessoa poderia ter uma família esperando por ela? Eu amava minha esposa! ‒ Senti meus olhos começarem a marejar, mas não ia demonstrar fraqueza na frente desse merda ‒ O que você pretendia naquela noite? Um estupro? Um sequestro relâmpago? Levar o celular? ‒ Eu pretendia voltar pra casa. Surpreendi-me com a resposta. E fiquei com ainda mais raiva. Ele está me achando com cara de idiota? ‒ Ah, claro que pretendia! ‒ Desdenhei ‒ Nessa hora todo mundo é trabalhador e estudante! ‒ Me deixa terminar. Passava naquela rua no mesmo horário toda a noite quando voltava do serviço. Eu trabalhava numa farmácia daquela região e morava ali perto. É uma ruazinha perigosa de noite. E deserta. Infelizmente eu fui pego no lugar errado na hora errada. Só o que eu sei é que na hora que passei vi um cara segurando a sua mulher com uma arma apontada pra cabeça dela e dois policiais negociando com ele. Vi o parceiro deles que é seu amigo, acho que é André o nome dele. Pelo menos foi como eu ouvi os outros chamarem. Ele deve ter contornado pela viela do lado sem o cara ver e foi tentar acertar ele pela lateral. Não faço ideia do que ele pretendia, só sei que o tiro pegou na sua mulher. O cara se assustou, largou ela no chão e os outros dois policiais o encheram de bala. Os três me viram passando. O tal do André 125


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me agarrou e falou que eu ia ter que assumir isso, ia me levar preso e eu tinha que falar na delegacia que era comparsa do cara e que fui eu que matei aquela mulher. Ele me disse que se eu recusasse ou desse com a língua nos dentes eles me fariam de peneira que nem fizeram com o cara lá estendido no chão. Eu consegui me soltar e saí correndo. Eles vieram atrás de mim, mas eu consegui me esconder. Depois que tive certeza de que eles tinham ido embora, eu peguei um ônibus e saí da cidade. ‒ Você quer que eu acredite nessa historinha? Isso não faz sentido! Se você não tem culpa, por que fugiu? ‒ Fiquei com medo. Você não ficaria no meu lugar? Seria a minha palavra contra a de três policiais. ‒ E as testemunhas? Tinham duas pessoas que disseram ter visto tudo. ‒ Não tinha mais ninguém na rua. Se tiver alguma testemunha deve ter sido comprada ou coagida igual eu fui. Ainda não acreditava, mas quis dar corda para ver até onde ele ia. ‒ E o André? Por que ele incriminaria você e ao invés de assumir o que fez ou simplesmente falar que a culpa foi do bandido morto? ‒ Provavelmente por medo. Foi o que ele pensou no momento. Acha que ele iria querer assumir a morte da sua mulher? Eu fui o único que viu o que aconteceu. Ele deve ter 126


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feito isso porque eu era o único que poderia incriminar ele. Mesmo eu achando que não ia dar em nada. ‒ Que papinho... ‒ Disse isso enquanto imaginava do que o André seria capaz, uma vez que descobri o envolvimento dele em negócios escusos como o que ele providenciou para mim ‒ Você tem provas? ‒ Tinha. Um camarada meu que mora naquela rua ouviu o barulho e filmou com o celular pela janela do sobrado dele. Tudo aconteceu praticamente em frente a casa dele. Eu soube que ele tinha gravado porque depois que comecei a fugir ele me mandou o vídeo pelo WhatsApp. Só que já me avisou que não queria envolvimento nisso. Era só pra eu baixar o vídeo e apagar a mensagem. Isso foi logo nos primeiros dias da minha fuga. ‒ E por que você não voltou e mostrou o vídeo pras autoridades então? ‒ Eu ia voltar. Mas já estava um pouco longe e sem dinheiro, não tinha como arrumar um lugar pra passar a noite. Andei um pouco, encontrei uma ponte que tinha alguns mendigos e resolvi deitar ali. Eu sei que era perigoso, mas mais perigoso ainda seria ficar sozinho, eu acho. Deitei ao lado de um sujeito malvestido qualquer. Demorei muito porque estava frio, mas acabei pegando no sono. Quando acordei no dia seguinte, o cara já não estava mais lá, nem meu celular no meu bolso, só a minha carteira aberta no chão. Tinha só dois reais nela e até isso ele me levou. Ainda esperei pra ver se ele voltava de noite, 127


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mas não o vi mais. Perguntei pros outros que dormiam ali também, mas ninguém sabia de nada ou não queriam falar mesmo. Talvez fosse até algum deles que tivesse pegado o meu celular, mas não tinha como enfrentar, era eu sozinho contra um bando de gente. Foi então que não tive outra saída a não ser continuar fugindo. ‒ E onde tá esse seu amigo? ‒ Ainda deve morar lá. Nunca mais falei com ele. Será que toda essa loucura poderia ser verdade? Eu ia matar um inocente? Antes, talvez eu não colocasse à prova a sua integridade, mas depois que fiquei sabendo o tipo de coisa em que o André está metido fiquei com certa dúvida ao seu respeito. Teria o meu amigo de tantos anos mudado tão drasticamente a ponto de me deixar matar um inocente em benefício próprio? Mentir para mim? Quantos segredos ele ainda me escondia? Quantos outros inocentes podem ter sofrido por causa dele? Minha cabeça estava um turbilhão de pensamentos. Não é possível isso, não queria acreditar, mas e se esse cara não tiver mesmo culpa, eu não posso simplesmente... E se o André... O vídeo... ‒ Escuta aqui. Você vai me levar até esse cara. Se tiver mentido pra mim eu juro que vou estourar os seus miolos! ‒ Não tenho mais nada a perder mesmo... Coloquei-o de volta no carro e fomos ao local do crime.

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III “Não acredito que estou fazendo isso...”. Pensava ao dar por mim parado em frente a um sobrado verde, localizado bem na esquina onde ocorreu o assassinato da minha esposa, no meio da madrugada, com o suposto culpado do crime. Só posso estar enlouquecendo mesmo. Entretanto, já que estava ali, toquei a campainha. Nada. Toquei novamente. Após a terceira tentativa ouvimos uma voz um pouco sonolenta pelo interfone. ‒ Quem é? ‒ Boa noite, aqui é da polícia. ‒ Não devo nada pra polícia! ‒ Não disse que deve. Por favor, preciso de uma informação e creio que você possa me ajudar. ‒ Não tenho informação nenhuma! Você acha que me engana? Por que a polícia bateria na minha porta a essa hora da madrugada? Sai fora daqui, rapaz! ‒ Por favor, senhor, é importante. Não vou invadir a sua casa. A vida de uma pessoa conhecida depende da sua resposta. Houve um breve silêncio. ‒ Realmente é da polícia? ‒ Sim senhor, pode ficar tranquilo. Caso não se sinta confortável nem precisa abrir o portão. ‒ Um minuto. 129


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Um momento depois ouvimos o barulho do homem chegando ao portão e fez-se silêncio por alguns instantes. Provavelmente devia estar olhando pelo olho mágico. Fiquei de frente de modo que ele pudesse me ver claramente e empurrei o sujeito na direção oposta, para não ser visto logo de cara. Em seguida ouvimos o barulho de cadeados sendo destrancados e o portão abriu. Um homem aparentando seus trinta e poucos anos, de estatura mediana, levemente acima do peso e sem nenhum cabelo na cabeça apareceu do outro lado. ‒ Pois não? ‒ Olá, senhor. Eu sou o 1º Sargento César da Polícia Militar e gostaria de saber se conhece esse indivíduo. Seu rosto perdeu a cor quando se deparou com o homem abatido, algemado e de nariz ensanguentado que estava parado em seu portão. Olhou para ele por alguns momentos, sem ação, se virou para mim com os olhos arregalados e tornou a olhar para ele. ‒ Osvaldo? ‒ Preciso da sua ajuda, Jonas. ‒ Eu não... ‒ Eu sei, prometi não te envolver, mas as coisas saíram do controle e só você pode me tirar dessa. Minha vida tá na sua mão. ‒ Eu não tenho a vida de ninguém na minha mão! Cada um é dono de si mesmo! O que aconteceu com o seu nariz? 130


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‒ É uma longa história. ‒ Então vocês realmente se conhecem. ‒ Interrompi. ‒ Sim, eu o conheço. ‒ Eu sei que o horário já é um pouco avançado, mas se importaria se a gente conversasse lá dentro? Ele nos encarou por um longo momento. Suspirou resignado. ‒ Eu acho que não tenho escolha, né? Entra aí. Passamos pela garagem e subimos por um corredor. Adentramos pela porta da cozinha e nos dirigimos à sala. Jonas se sentou numa poltrona e apontou para o sofá que ficava de frente para ela ‒ Sentem aí. ‒ Nos sentamos. Ele nos encarou por alguns segundos ‒ Ele precisa mesmo ficar algemado? ‒ Por enquanto sim. ‒ O que tá acontecendo? Contei toda a nossa trajetória até aqui. Ele parecia bem agitado quando eu terminei. ‒ E o que te faz pensar que eu ainda tenho esse vídeo? ‒ Não sei nem se realmente existe algum vídeo. ‒ Se eu disser que não existe, o que você vai fazer? ‒ Vou matar o Osvaldo. ‒ Você fala isso com essa calma?

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‒ Eu já fui longe demais, vou até o fim. Se esse vídeo não existir, quer dizer que ele estava mentindo, tentando ganhar tempo de alguma forma e é realmente culpado. Só vou terminar o que comecei. Não precisa se preocupar que não vou te envolver em nada. ‒ Fitei-o seriamente ‒ Agora me diga com sinceridade: você realmente filmou o ocorrido? ‒ Sim, eu filmei. ‒ Pode me mostrar? ‒ Eu apaguei a conversa do WhatsApp assim que enviei pro Osvaldo. ‒ Mas deve ter ficado salvo no seu celular. ‒ Eu formatei o meu cartão de memória porque tava sem espaço. Desviei o olhar dele me virei para o lado onde o Osvaldo estava sentado, com as mãos para trás. Vi o fio de esperança que havia surgido em sua face se esvaindo. ‒ Não posso acreditar na sua versão se não existem provas. Há muito mais contra você do que a favor. Seu amigo não vai me convencer de que filmou se não tem nada pra me mostrar. Eu realmente cheguei a dar um pouco de crédito pro seu papo furado. Você quase me convenceu. Levanta daí, seu lixo. Ia puxá-lo quando o Jonas me interrompeu. ‒ Calma aí! Espera! ‒ O que foi?

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‒ Antes de formatar o cartão de memória eu salvei um backup do que tinha nele no computador. Não lembro se já tinha apagado o vídeo antes de passar as coisas de um pro outro, mas pode ser que ainda esteja lá. ‒ Pode olhar, por favor? ‒ Vou pegar ele, espera aí! Não vai fazer nenhuma besteira! ‒ Fica tranquilo. Em alguns instantes ele trouxe o computador e começou a procurar. Meu coração disparou quando seus olhos desviaramse da tela e se direcionaram a mim. ‒ Achei. Levantei de um pulo do sofá. ‒ Me mostra! Então eu vi. O cara a estava segurando. Ele era canhoto. O André disparou. Minha Amanda caiu sem vida. Meu Deus. Ele abordou o Osvaldo. Meu Deus! O que eu ia fazer?! ‒ Tira. Já vi o bastante. ‒ Estava nauseado. O mundo parecia estar desabando em cima de mim. Acabei de ver a minha esposa morrer pelas mãos do meu... Não. Não sobrou nada do amigo que um dia eu conheci. Apenas um policial corrupto e sem escrúpulos, que ia me fazer matar um homem que não tinha culpa apenas para se safar e continuar impune com suas sujeiras. Tentei me recompor. ‒ Pode passar isso pro meu celular? ‒ Posso. 133


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Entreguei o telefone nas mãos dele e me dirigi até o Osvaldo. ‒ Levanta. Ele levantou-se. Retirei as algemas das suas mãos. ‒ Me desculpa. Eu quase cometi um erro irreversível. ‒ Tudo bem. Eu compreendo a sua dor. Também perdi tudo, igual você. A única diferença é que ainda posso tentar recuperar. ‒ E desculpa pelo seu nariz. ‒ Relaxa. Só preciso lavar o rosto. Ele estendeu a mão e eu a apertei fitando-o nos olhos. ‒ Você vai ter sua vida de volta, pode ficar tranquilo. É o mínimo que posso fazer por você. Obrigado por me abrir os olhos. ‒ Eu que agradeço por não me matar antes de ouvir a minha versão. Se fosse outra pessoa, talvez tivesse sentado bala sem dó. Você me deu um voto de confiança e veio atrás de uma prova que você nem sabia se existia. Mesmo com toda essa raiva você é uma boa pessoa. ‒ Não sei se tão boa assim. ‒ Me virei para o Jonas ‒ poderia abrir o portão pra mim, por favor? ‒ Posso. Deixei os dois lá, entrei no carro e fui para casa.

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IV “Não é ele.” Tentava me convencer em vão enquanto assistia seguidamente ao vídeo. Vez após vez eu via. E nada mudava. Era ele. O zoom que o Jonas deu no vídeo evidenciava isso. Mesmo que não mostrasse o rosto com clareza, o que não era o caso, eu conhecia o jeito do André. Conseguia ouvir os outros dois pronunciando seu nome. Não tinha erro. Ficava pensando no que meu amigo de infância havia se tornado. Não o reconhecia mais. Essa noite não terminava. Não conseguia processar aquilo. Não conseguia dormir. Não conseguia parar de assistir. Recebi uma mensagem no celular. Era ele. Perguntava “E aí, tá feito?”. Senti meu rosto queimar de raiva. O que dizer? Poderia responder “Não, mas logo vai estar seu desgraçado!” Mas ao invés disso mandei como resposta apenas um “Feito.”. Em seguida ele me disse “Ótimo. Vingamos a Amanda. Ninguém nunca mais vai ouvir falar desse cara. Se precisar de qualquer coisa, pode contar comigo.”. Cínico. Do sofá, observava a minha arma em cima da mesa de centro. Estava sendo a noite mais longa da minha vida. Levantei, peguei-a, mandei uma mensagem dizendo “Tô indo aí então, preciso falar com você.” e saí. Enquanto me dirigia para a casa dele, meu celular apitou. Recebi como resposta para a minha última mensagem um 135


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“Beleza, aparece aí. Você deve estar precisando mesmo conversar.”. Ah, você nem imagina o quanto, André. Estacionei em frente à sua casa. Saí do carro e toquei a campainha. Em alguns instantes ele abriu a porta e me recepcionou. Estava de pijamas. ‒ E aí, cara. Como você tá? Ele estendeu a mão para me cumprimentar. Mantive as minhas no meu colete. ‒ Precisamos conversar. Ele abaixou a mão e me sinalizou para entrar. ‒ Claro! Entra aí! Ele percebeu que meu humor não estava bom. Embora deva deduzir que isso se deve ao fato de eu ter tirado a vida do Osvaldo. Ele foi para a sala e sentou-se no sofá. Eu fiquei de pé, encarando-o do portal entre ela e a cozinha. ‒ Não vai sentar? ‒ Não. O que eu tenho pra tratar com você é assunto rápido. ‒ Já imagino o que deva ser. Estava prevendo que você viria. Eu sei que você ficou abalado, no seu lugar eu também ficaria, mas pense que finalmente você acabou com a vida do desgraçado que matou a Amanda. ‒ Não tenho tanta certeza. ‒ De que? ‒ De que você ficaria tão abalado. 136


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‒ Ah, meu, mas é claro que eu fi... ‒ E de que eu matei o assassino da Amanda. Ele estancou. ‒ Puta merda! Como assim? Você deixou o cara fugir?! Eu disse pra você acertar logo na cabeça! ‒ Não. Eu acho que não era ele quem eu queria. O celular do André apitou. ‒ Como não era ele quem você queria, cacete! Tá maluco?! O cara é pego depois de seis meses foragido, com duas testemunhas que viram a ocorrência e você acha que não foi ele?! ‒ Não. Eu não acho que foi ele. Por isso não tenho tanta certeza. ‒ Quem você acha que foi então? ‒ Havia uma expressão desconfiada na cara do André. ‒ Você. Ele paralisou na hora. Sua face perdeu a cor. Aquele homem com cerca de um metro e noventa, e quase cem quilos pareceu tremer na base. ‒ Como assim, cara?! Tá louco?! De onde você tirou essa idiotice?! ‒ Eu tirei a mordaça do Osvaldo, olhei nos olhos dele e perguntei “por quê?”, como eu disse que faria. Não fiz apenas a última parte como você pensava. Não sou previsível como você pensa. Ele me contou tudo o que aconteceu. Como você

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apareceu naquela noite, chegou pela lateral e atirou na cabeça da minha mulher. ‒ Você só pode tá maluco mesmo! ‒ Ele esbravejou ‒ Perdeu a noção, meu?! Não tá tomando seu remédio?! Vai dar crédito pra bandido?! O cara inventa qualquer coisa na hora do desespero pra não morrer! E cuidado com a sua boca que a sua vingança só foi possível porque eu providenciei isso pra você! ‒ A troco da vida de um inocente? ‒ Inocente?! ‒ Inocente. ‒ Não acredito que tô ouvindo isso de você depois de tudo que eu fiz pra você poder dar cabo do assassino da sua mulher e minha amiga de infância! ‒ Amiga de infância que você matou. ‒ Eu não matei ninguém, porra! Vai pra casa, esfria a cabeça e depois a gente conversa, hoje não tem condições. ‒ Olha o seu celular. ‒ Hein? ‒ Olha o seu celular. Havia uma notificação de nova mensagem de WhatsApp no celular do André. ‒ Tô olhando, e aí? ‒ Abre o WhatsApp. ‒ Ele abriu. E viu que havia um vídeo enviado por mim. ‒ Baixa o vídeo agora. 138


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Ele pareceu titubear. ‒ O que você... ‒ Agora! Assim que foi possível visualizar a imagem do vídeo ele entendeu. ‒ Olha, eu... ‒ Abre o vídeo! Ele abriu o vídeo. Estava tudo lá. Não tinha mais como negar. O André estremeceu. Ficou branco, arregalou os olhos, me fitou surpreso. Olhei para ele fixamente. ‒ Por quê? ‒ Escuta, César, eu estava indo atender outra ocorrência naquela noite e aí... ‒ POR QUÊ?! ‒ NÃO FOI DE PROPÓSITO! ‒ Ele urrou ‒ Você acha que faria isso propositalmente?! Foi um acidente! Estava tentando acertar na cabeça do maldito justamente pra libertar a Amanda! ‒ E por que você não assumiu?! ‒ Porque eu ia me ferrar muito se descobrissem com o que eu mexo! E eu não tinha cara pra chegar até você e falar que fui eu que matei sua mulher! ‒ VOCÊ TEM NOÇÃO DO QUE FEZ?! ‒ Vociferei ‒ Você destruiu a vida de duas pessoas inocentes por mero 139


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capricho! Você acabou com a minha vida, jogou a nossa amizade no lixo! Eu não te reconheço mais! ‒ Me perdoa, cara! Isso não vai mudar o que eu fiz, mas eu admito que errei! ‒ O tempo pra pedir perdão já passou. ‒ Apontei minha arma para ele. ‒ Abaixa essa arma, mano! Você não atiraria em mim, né? Observei-o em silêncio por um longo minuto. Então abaixei a arma. ‒ Realmente. Independente do lixo que você se tornou e do tanto que mereça ter uma bala enterrada no seu crânio eu me recuso a ser como você. ‒ E o que você vai fazer? ‒ Vou levar esse vídeo e deixar a Corregedoria se encarregar de você. ‒ Mano, não faz isso, por favor! Você vai ferrar com a minha carreira, vai acabar com a minha vida! Se investigarem e desmantelarem os esquemas eu não saio vivo dessa! ‒ Isso não é problema meu. Ia me virar para sair, mas o André se levantou abruptamente. ‒ Mas é meu! Ele sacou uma arma escondida na almofada do sofá. Houve três disparos. Um no abdome, um no peito e o último na cabeça. Um instante de silêncio que parecia uma eternidade. 140


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E então ele caiu. V “Hora de concluir isso.”. Esse pensamento acabou de passar pela minha cabeça, então me sentei para terminar de contar minha história. Não tenho mais nada de interessante para fazer nessa cela. E aparentemente o pessoal daqui está gostando do meu conto. Sempre tive o hábito de escrever nas horas vagas, quem sabe algum dia até publicar algo. Amanda sempre gostou dos meus textos. Tenho alguns manuscritos na gaveta e mais algumas coisas no meu computador em casa. Eu me desanimei quando o assassinato ocorreu, até porque quem teria ânimo para escrever alguma coisa numa situação dessas, não é? Durante meu tratamento, o médico me disse que eu deveria voltar a exercitar minha escrita, colocar no papel tudo o que sentia, como uma forma de enfrentar a situação. Até tentei, mas não conseguia produzir muita coisa sob o efeito dos remédios. Então optei pela minha arma. Ele ficaria orgulhoso em ver como consegui espantar meus demônios. Mandei todos para o inferno. Provavelmente o Osvaldo será inocentado em breve, caso ainda não tenha sido. Espero realmente que ele consiga reconstruir sua vida. Pelo menos alguém merece um final feliz nesta história. Depois da morte do André e do meu depoimen141


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to quando me entreguei, foi iniciada uma investigação quanto ao envolvimento dele em falcatruas. Pouco a pouco mais envolvidos vão aparecendo, tanto acima quanto abaixo dele em hierarquia e poder, vindos de dentro e de fora da corporação. Aparentemente ele não era nem a ponta do iceberg. No final não somos tão diferentes assim. Ele ficou cego por poder e eu por vingança. Nenhuma das duas motivações me parece nobre, e apesar de serem diferentes, acabou por tornar a ambos assassinos. Seguimos apenas por caminhos um pouco diferentes que no final davam no mesmo lugar. Se quiserem saber se me arrependo eu digo que não. Queria vingança contra o carrasco da minha esposa e a consegui. Mesmo estando profundamente magoado, não pretendia matálo, mas ele forçou essa situação. Apesar de tudo, não sinto pena dele. Apenas me lembro com saudade dos bons momentos que nós três passamos juntos, correndo por aquela vizinhança ensolarada. Não tenho mais minha esposa. Não tenho mais meu amigo. Não tenho mais minha carreira. Não tenho mais segredos. Não me resta mais nada. Apenas terminar este texto. Será que ele terá uma repercussão grande? Quem sabe passe em algum jornal policial. Como as pessoas irão me julgar? Pena que não vou estar aqui para ler. Um sábio me disse uma vez que “No Brasil, um escritor só fica famoso depois que morre.”. Se ele está certo ou não, só quem vai ficar aqui para ver é que vai saber. 142


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Deixo aqui a minha história como minha carta de despedida. Nada mais me prende a este mundo. Fiquem com meu relato, que apesar de ser a minha versão dos fatos é também a única, então terão de se contentar com ela. Quem sabe possam aceitá-la como a verdadeira. Só me resta um último segredo para descobrir. Será que irei encontrá-los do outro lado? Espero que sim. Irei me reencontrar com a minha Amanda e nada mais poderá nos separar. Voltaremos a correr juntos pela vizinhança, sem preocupações. Talvez eu até me reconcilie com o André... Enfim, vou ficando por aqui. Se me derem licença, tenho uma corda de camiseta para trançar. César Augusto de Freitas 1º Sargento da Polícia Militar do Estado de São Paulo

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- Que chuva forte, você não acha? - É, tá mesmo. Como voltaremos para casa? - Tá complicado, mas vamos esperar mais um pouco que logo logo irá parar. Cláudio está com Amanda em uma plataforma do trem assistindo a uma chuva torrencial, com um cigarro e um copo plástico com café frio em suas mãos. Cláudio olha para o líquido negro no copo e o joga no trilho a sua frente. Não muito longe dali está Alberto, preocupado com a filha de sete anos, que se entretinha sozinha com os desenhos


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animados. Ao ver a chuva ele se desespera e como por instinto pega um táxi. Diana está fora da estação acompanhada de sua filha, elas são moradoras de rua. Elas se encolhem como podem para se proteger da chuva que escorre pelas frestas do teto acima de suas cabeças. Enquanto tentam se proteger da água gelada que as ameaça, se deparam com Alberto, passando rapidamente depois de sair do táxi. Pedem-lhe um trocado para comprar comida, o homem lança um olhar de desgosto e passa como se estivesse passando por uma coluna de concreto, enquanto resmunga seus pensamentos, simulando fingir que nada vira. O país passa por uma grande onda imigratória, por ter fronteiras com uma nação vizinha que vive uma guerra civil. Com isso, os civis estão deixando suas casas em busca de uma nova vida em outros países. A fragilidade e tensão entre os dois países aumenta por conta disso. O presidente da nação que recebe a onda imigratória, Edson, sente sua democracia ameaçada e tenta ocultar a presença de tudo relacionado aos imigrantes na mídia, ele temia que os estrangeiros afetassem a sua imagem perante o eleitorado. Enquanto isso, o seu rival, Cristian, um nacionalista ferrenho, assiste os acontecimentos mantendo um sorriso no rosto por saber que a situação lhe daria grande vantagem nas próximas eleições, enquanto sua secretária dorme com a cabeça apoiada em seu ombro em uma suíte na cobertura do 145


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prédio mais alto da capital ou qualquer outra coisa nesse sentido. Os dias passam como uma frente fria atravessa uma cidade. Escolhas eram feitas, as notícias que eram evitadas pelo governo pareciam pipocar em toda parte, entretanto, conseguiam abafar a maioria delas. Anderson, um jovem de vinte anos, está à procura de um emprego. É o seu primeiro emprego e ele precisa de dinheiro para sustentar suas escolhas e, principalmente, dar o primeiro passo em sua carreira. Seu estilo musical predileto é o rock, gostava de se vestir de preto e de vestir camisetas de suas bandas prediletas. Com sua pasta cheia de currículos, ele passava os dias os distribuindo em várias empresas. Em uma de suas entrevistas em que vários dos candidatos são imigrantes, Augusto, o recrutador, olha os candidatos com desdém. Pega os currículos e os guarda sem ao menos os olhar. O recrutador ao olhar para os candidatos, dá um novo sorriso e dispensa diversas pessoas, entre elas Anderson. No final da entrevista são selecionadas cinco pessoas, quatro imigrantes e um amigo de sua amiga Cláudia. Mais tarde naquele mesmo dia, Augusto se encontra com Cláudia para contar sobre a entrevista daquele dia. Em determinado momento da conversa ela comenta sobre como algumas pessoas não têm juízo. Augusto se lembra de Anderson com sua 146


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camiseta preta e comenta com Cláudia sobre como algumas pessoas não sabem nem se vestir de forma aceitável para uma entrevista de emprego. A nação vive o ano eleitoral e, consequentemente, a disputa entre os candidatos Edson e Cristian, se tornam mais acirradas. O clima no país é desesperador. Desespero pela alta taxa de desemprego e pela alta onda de confrontos no estado vizinho. Cristian, diante disso, percebeu que tinha uma verdadeira chance de ganhar. O presidente Edson tem o apoio de outros países devido ao histórico de boas relações que ele tivera com essas nações, mas ele sabia que não poderia ganhar, sua atuação no caso dos imigrantes desgastara demais sua imagem frente aos eleitores. Cláudio, Amanda, Cláudia, Anderson acabaram votando em Cristian por terem visto nele uma verdadeira liderança que poderia ajudar o país. Todos eles queriam que o país fosse como antes, que tivessem a oportunidade de crescerem sem se preocuparem com os problemas das nações vizinhas. No final, Cristian acaba eleito e no início de seu governo põe seu plano em ação. Seu plano consistia no reenvio dos imigrantes de volta para as suas nações. Todos aqueles que buscaram refúgio da guerra em sua pátria não sabiam o que esperar para o seu amanhã.

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RIO 2099 Fá bi o G u as ta f err o

CAPÍTULO I O CONDOMÍNIO Hoje chegou a minha primeira arma. Resolvi encomendar pela internet mesmo. As armas dos EUA são mais doidas e fáceis de manusear do que as que vendem por aqui, se quiser uma boa e barata, só no mercado paralelo. Aí é meio arriscado. Conheço gente que se deu mal comprando assim, o cara ficou sem arma e sem dinheiro. Um amigo ficou sem a vida, puta vacilão, tentou matar o vendedor para recuperar a grana. Hoje em dia tá assim. Desde que se


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liberou a compra e venda de armas para todos, neguinho mata à toa. Claro, querem se dar bem em cima dos outros a qualquer custo. Eu estava meio relutante em comprar essa pistola, uma Taurus.45 automática. Ainda acreditava que poderíamos resolver os nossos problemas sem ter que pegar em armas. Mas hoje em dia, todo mundo anda armado, ainda mais com o incentivo do governo para armar a população. A ideia era desestimular a bandidagem que tinha perdido “a vergonha na cara” e assaltava qualquer um, a qualquer hora, em qualquer lugar. Eles tinham uma vantagem, estavam armados, as vítimas não. Com a falta de punição, muita gente resolveu comprar um berro para se defender. No início era coisa bem malocada, nada de alarde. Era difícil de conseguir e o mercado paralelo era sujo igual ao tráfico de drogas. Aí o governo viu nisso uma oportunidade de ganhar dinheiro, dando a desculpa de que iria acabar com o tráfico de armas, assim legalizou-se o porte. Na verdade ele fez mais, institucionalizou o uso. Agora, quem quiser ter uma arma basta: ser maior de 18 anos; apresentar uma certidão de bons antecedentes, dessas que tem o modelo na internet, pronto para imprimir; CPF válido; estar “em dia” com a Receita Federal; não ter cometido infrações de trânsito nos últimos seis meses; não possuir débitos com os Governos Federal, Estadual ou Municipal e apresentar o porte de armas atualizado. Além disso, paga-se 149


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uma taxa para solicitar a arma, o curso para tirar o porte e o aluguel da mesma. Se já for proprietário, paga-se uma taxa um pouco maior para o seu uso em vias públicas. A arma é retirada em qualquer delegacia federal. Ela vem numerada e “chipada”. Caso seja particular, você tem que levar à delegacia para legalizar o seu uso. Ou seja, qualquer um pode ter uma arma. Aqui no condomínio todo mundo tem uma. Atualmente, a gente completa 18 anos e em vez de querer tirar a carteira de motorista, queremos é tirar o porte de armas. Os mais ricos ganham sua primeira antes mesmo de completar os dezoito. Vou completar 21, já passou da hora de eu ter uma. Todo mundo que conheço tem e vivem me criticando porque não tenho. Apesar de que, eu acho que nunca farei uso dela, quase não saio daqui. Desde que a nova empresa assumiu a administração do condomínio eles proibiram o uso de armas de fogo nas dependências públicas. Até mesmo dentro dos carros. Se você for transportar uma arma, tem que fazê-lo desmontada. As únicas pessoas que podem usar armas são os seguranças do condomínio. Uma espécie de polícia privada que faz todo o serviço de vigilância, policiamento e até investigação. Crimes aqui dentro não são tolerados. Para os moradores têm punições que chegam até mesmo à expulsão, sem direito de reclamar o valor da casa. Para os de fora, muitas vezes é a morte. O nosso condomínio é um dos maiores que existe, começou pequeno e com poucos recursos. Primeiro as pessoas muravam 150


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e colocavam vigilância ostensiva em suas casas. Com o passar dos anos, ficou cada vez mais prudente manter-se dentro dos muros destes burgos. Os moradores começaram a trabalhar para o próprio condomínio e ali dentro mesmo nasciam os centros comerciais onde os mesmos trabalhavam e frequentavam. Muita criança só esteve do lado de fora para nascer. Muito menino nunca saiu daqui. Não conhece o que existe além dos muros. Este mesmo em que vivo tem de tudo, raramente estive fora. Hoje trabalho na farmácia do condomínio, estudo via internet e raramente saio para ir à faculdade. Aqui tem tudo que necessitamos para manter as nossas vidas, só que sem violência. Se alguém for pego armado corre o risco de ser jogado para fora. Até mesmo pequenos delitos como: tráfico de drogas; de armas; estelionato ou falta de recursos para manter-se dentro dos muros pode ser penalizados com a expulsão. Não é barato viver aqui. A gente paga duas vezes, uma para o Governo outra para o Condomínio. Mas trancados aqui a expectativa de vida é muito maior do que lá fora.

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CAPÍTULO II MALU Maria Luiza, minha namorada, tem uma .22. Ela costuma sair do condomínio, por isso se armou. Além da arma de fogo ela usa também uma pequena faca que fica presa na perna, do lado externo da coxa esquerda. O primeiro homem que ela matou foi usando essa pequena faca, que ela batizou carinhosamente de “Agulha Negra” Ela contou que foi surpreendida no estacionamento da faculdade. Um homem apareceu de repente por entre os carros e a agarrou, segurando-a pela cintura e pelo pescoço. Ele já foi diretamente com a mão em seu coldre, assim ela não pode sacar sua pistola. Só que ele não esperava é que ela estivesse com a “Agulha Negra”. Num momento oportuno ela estocou a arma no olho do bandido. Malu foi instruída a agir assim, ataque nos olhos desorienta o agressor e o impede ou diminui o risco dele te atingir com um tiro. A faca que mais parece um pequeno espeto de churrasco perfurou fundo até o cérebro do homem, que caiu para trás em choque. Ela desesperada, sacou a pistola 22 e descarregou a arma no peito dele. Dois dias depois se apresentou à polícia, dizendo que foi atacada e foi obrigada a reagir. Ela já se apresentou com um laudo indicando a agressão, que era mais evidente no pescoço. A polícia tinha agora a resposta para uma das mortes ocorridas no estacionamento naquela noite. Mais duas pessoas tinham 152


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morrido ali; uma delas, vítima de latrocínio; o outro caso ainda não foi solucionado. Malu foi protegida pela lei que protege as mulheres e as crianças. Confirmado a agressão, ela agiu em legítima defesa, já que sua vida corria sério risco. O homem que ela matou estava armado com uma faca de cozinha e foi reconhecido por mais duas estudantes, que ele havia estuprado anteriormente. Depois disso, Malu despertou sua sede de sangue e matou mais vezes. Ela nunca disse isso abertamente - que entra em confusão porque gosta de matar, mas eu reparei isso nela. Ela não titubeia na hora de sacar a arma e atirar. Consegue se esquivar da lei se passando por vítima e, se ainda assim for presa, ela paga para sair. Sua família tem grana e a protege, afinal, ela está agindo sempre em legítima defesa. Só que os problemas de Malu vão além de suas pendências com a Lei. Ela matou um ex-namorado, ex porque morreu, quando vivo era o atual. Malu contou à polícia que o rapaz tentou estuprá-la, mas o que ela conta para as amigas é que estavam se divertindo com o que eles chamam de jogos perigosos. São brincadeiras com armas de fogo, como roleta russa ou como sair pela rua atirando nas pessoas, geralmente andarilhos e moradores de rua. Malu estava brincando com o namorado para ver quem sacava mais rápido a arma, ela sacou e disparou, acertou o rapaz no abdômen. Ele demorou para morrer e, para não se comprometer e manter o seu engodo, Malu resolveu não chamar o socorro, escondeu o cara, amor153


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daçado dentro de um armário. Depois de morto, ela colocou-o na cama e chamou a polícia. Foi fácil incriminá-lo. Ele pertencia à parte podre da sociedade que mata por diversão. Assim como Malu, ele tinha muito dinheiro e descobriu que matar os outros lhe dava prazer. Nunca era preso, era um protegido da lei. Esse tipo de pessoa - que mata por esporte - desperta o ódio da população em geral. Malu tem a mesma pegada que ele. Ela tem sede de sangue, gosta de matar. Outro dia, foi comprar droga numa comunidade carente do outro lado da cidade e matou o traficante. A bandidagem endoidou e veio em peso pegar ela em casa. Logo atacaram o condomínio. Foi como se estivéssemos em guerra. Ninguém podia sair, ninguém podia entrar. O síndico acionou a polícia estatal e a ordem para a polícia interna era para matar qualquer malaco que pulasse os muros. Ficamos recolhidos em casa e quase que o síndico entregou Malu para a bandidagem fazer justiça com as próprias mãos. Só que o pai dela é um dos membros do conselho do Condomínio e convenceu o restante que ele próprio puniria sua filha. Iria confiscar suas armas de fogo. Sob pressão dos moradores e da mídia, a polícia dispersou na base da porrada os “manifestantes” que queriam invadir e quebrar tudo. Existe um ódio dos que estão do lado de fora pelos que estão do lado de dentro. Quem está de fora quer entrar, já que 154


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do lado de dentro é mais seguro. No lado de dentro existem regras, e se não forem cumpridas, os próprios moradores as fazem cumprir. A família da Malu já foi expulsa de um condomínio com regras mais rígidas que as nossas, mais uma vez por culpa dela. Ela matou um cara, um morador, que segundo ela, assediou-a. Mas o que todos contam é que ela não gostava da forma que o cara a olhava. Um dia, quando ele a encarava, ela chegou bem perto dele, fingiu que ia lhe falar algo ao ouvido e espetou a “Agulha Negra” em seu pescoço. O homem sangrou até morrer. Eles falam que foram expulsos, mas a verdade é que saíram fugidos de lá. A família do homem que ela matou jurou vingança e prometeram esfolar Malu viva. Claro que não iriam fazer isso dentro do condomínio, logo Malu ficou impossibilitada de passar além dos muros, já que era vigiada pelos parentes do falecido dia e noite. Como estava impossível viver assim, numa noite de muita chuva ela saiu fugida e, logo depois, seus pais mudaram para cá. Até hoje, essas pessoas estão atrás dela. Já tentaram entrar aqui duas vezes e um deles acabou sendo morto pelos policiais daqui. Evito sair com Malu, pois posso acabar sendo morto por tabela. A gente fica por aqui mesmo. Sou o seu contra ponto, enquanto ela esbanja violência, eu sou a parte pacifica da relação.

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CAPÍTULO III NO PASSADO Minha mãe conta que “nos tempos dela” era diferente. Na verdade, a cidade era menos violenta. As pessoas andavam mais tranquilas nas ruas, sem o medo de morrer. Antes o medo era o de serem roubadas, estupradas ou feridas. Hoje, poucos saem de casa sem estarem devidamente armados e, quem pode, tranca-se em gigantescos condomínios fechados, como esse em que vivo. Quem fala melhor sobre esse tempo é o Seu Marcilio. Ele é o cara mais velho que conheço, possivelmente o mais velho daqui do Condomínio. Lembro que alguns anos atrás estavam comemorando os seus 150 anos. Atualmente, ele já deve estar chegando quase aos 160. Seu Marcilio faz parte de um grupo de idosos conhecidos como os Novos Anciões. São pessoas que conseguiram passar bem dos 120 anos, com a ajuda dos avanços da medicina e de muito dinheiro. Mesmo muito velho, Seu Marcilio ainda é bem esperto para um matusalém. Ele reclama de estar cansado da vida, e o que mais gosta é de companhia. Na verdade, o que ele gosta mesmo é de conversar. Conversar sobre o passado, e sobre as coisas que gostava de fazer. Hoje vive em cima de uma cama, e a maioria dos seus órgãos tem próteses ou funcionam à base de aparelhos. 156


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Ele conta que antigamente as pessoas eram de certa forma mais pacíficas. Existiam armas, violência, mortes, mas bem menos do que hoje. No passado, as pessoas ficavam chocadas quando alguém próximo morria, se indignavam com a violência e com a covardia. Muitos cobravam as autoridades por resposta aos crimes de assalto, aos homicídios, latrocínios, aos estupros e até ao estelionato. As pessoas se chocavam ao verem seus semelhantes mortos, principalmente quando eram mortos com violência e brutalidade. Com o tempo e o excesso deste tipo de crime, todos foram ficando indiferentes, aceitando que aquela situação era normal e que tinham que se proteger. Mesmo com tantos avanços da tecnologia em diversas áreas, para o Seu Marcilio, a humanidade regrediu. Segundo ele, estamos mais bestiais e selvagens. O nosso instinto de sobrevivência está “à flor da pele”, e ultimamente estamos vivendo em um constante sentido de alerta. É matar ou morrer! Minha mãe conta que, quando era pequena, ela costumava andar pelas ruas da cidade. A minha cidade tinha um grande centro comercial, onde todos trabalhavam. Eram milhares de pessoas ali, todos os dias, indo e vindo. Tudo estava em volta daquela área. Os principais escritórios, as maiores lojas, as principais repartições do governo. Era o centro nervoso da cidade. Hoje em dia, esse lugar não existe mais. Ainda tem gente trabalhando lá, mas já não é um lugar bom para se 157


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trabalhar. Nos dias atuais, só se trabalha pela internet. Fora isso, os melhores lugares para se trabalhar são dentro dos condomínios. Quando minha mãe passeava pela cidade a violência estava começando a crescer. Existia a polícia estatal, na verdade, cada Poder tinha a sua polícia e todos patrulhavam as ruas com o intuito de inibir a criminalidade e dar segurança ao cidadão. Era muita polícia, para inibir a bandidagem desorganizada e desarmada. Só que as polícias viviam brigando mais entre si do que combatendo a criminalidade. Estavam sempre em guerra, entre eles. E claro, os bandidos se beneficiavam com isso. Outro ponto que beneficiou a criminalidade foi a corrupção dentro da própria polícia. Todas elas tinham policiais corruptos, mas o que agravou mesmo a crise na segurança pública foi a sensação de impunidade. Os bandidos já não ficavam mais presos por cometerem delitos. Os processos jurídicos foram aos poucos se tornando demorados, devido ao excesso de demanda. Começou-se a fazer mais cadeias do que penitenciárias, e logo isso virou um negócio. Se você tinha dinheiro, não precisava ficar preso. E para ter dinheiro, bastava roubar. Virou um ciclo vicioso. O bandido roubava para ter grana para sair da cadeia na qual seria preso, porque roubou. Foi aí que o crime começou a valer a pena. Ficou difícil sair às ruas sem ser assaltado. O ladrão roubava, era preso, e logo era solto. Muitas vezes, ele saia da delega158


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cia antes mesmo da vítima, que estava lá presa na burocracia para reaver o bem roubado. Pelo o que conta Seu Marcilio, valia mais a pena ser roubado e agradecer ao bandido por não ter levado também a sua vida, do que ir à polícia reclamar. Primeiro, porque você ia passar muita raiva e indignação com a indiferença policial. Ali você era apenas mais um entre tantos e tantos reclamando. Segundo, porque se perdia muito tempo fazendo um boletim de ocorrência. E mesmo quando a polícia recuperava o seu bem, você tinha que pagar uma taxa para retirá-lo, claro, depois de preencher muita papelada e provar que o bem era realmente seu. Se você demorasse em ir buscar seu objeto roubado na polícia, eles tinham que leiloá-lo. O Estado não tinha mais espaço para ficar armazenando coisas alheias. Logo, isso também virou fonte de renda para o Governo. A bandidagem ficou cada vez mais ousada, já que praticamente trabalhava para o Governo, e mais violenta. Começaram a assaltar e a matar sem qualquer escrúpulo, os crimes ficaram mais violentos. Já não existia mais maníaco estuprador, existiam grupos de estupradores. O bandido roubava e humilhava a vítima, e muitas vezes a matava também. Passaram a tomar conta dos bairros mais afastados e das comunidades carentes. Traficantes, assaltantes, assassinos, toda uma corja de bandidos foi formando um verdadeiro exército paralelo, enquanto o Poder Público batia cabeça e brigava entre si. Sempre de 159


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olho em interesses próprios. Com o tempo, trabalhar para o tráfico, ingressar em uma carreira de assaltante virou objetivo de vida de muita gente. A bandidagem armada, a polícia armada e o cidadão de bem em meio ao fogo cruzado e sufocado numa velada guerra civil. Até que alguns começaram a se armar. O dono de um comércio que era assaltado duas vezes por semana resolveu comprar uma carabina. Quando a bandidagem chegou para fazer a “feira do dia” levou chumbo. O homem atirou nos meninos pelas costas, matou um, o outro conseguiu escapar. No dia seguinte, bem pela manhã, quando o velho comerciante ainda estava abrindo suas portas para começar mais um dia de trabalho, pararam dois carros cheios de malacos em frente à loja. Nove homens desceram, entre adultos e crianças, e saquearam a padaria. Espancaram o velho e um menor de idade cometeu o ato de assassinato, um tiro no umbigo do homem, à queima roupa. Tudo foi filmado e postado no Facebook, pelos próprios criminosos. Pressionados pela população, a polícia correu atrás dos bandidos, prendeu cinco, junto a eles o carrasco mirim, que foi liberado no mesmo dia, usando a justificativa de falta de espaço para mantê-lo apreendido. A família do velho comerciante, chocada, fugiu com medo para o interior do Estado. O filho mais velho, revoltado comprou dois revólveres e foi na comunidade, atrás dos homens que mataram seu pai. Conseguiu matar dois, mas foi pego pelos próprios 160


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moradores, espancado e queimado vivo dentro de pneus. Tudo filmado e postado no Facebook. Este foi apenas um dos casos, dentre muitos, como um assalto a uma casa em um bairro nobre, no qual cinco homens invadiram a casa, e mantiveram reféns a família inteira, um casal e seus dois filhos. A mulher e a menina viraram escravas sexuais dos assaltantes, que abusavam delas na frente do homem e do filho adolescente. O sequestro só foi descoberto porque os bandidos colocaram um anúncio oferecendo o corpo da menina em uma rede social. Dois foram presos e soltos três meses depois. Teve também o caso de um homem que assaltou e matou uma senhora no momento que saiu da prisão. Dentre os diversos delitos de sua ficha criminal, estavam agressões à mulheres, estupros, assaltos, homicídios e contrabando de cigarros, pelo qual ele havia sido preso. Ficou oitenta dias encarcerado e, ao sair, do outro lado do portão do presídio atacou a senhora e a matou. Segundo ele, precisava de dinheiro para começar sua nova vida. Diante da situação cada vez mais alarmante, as pessoas começaram comprar armas para se proteger, alimentando o já poderoso tráfico de armas. O que virou também um ciclo vicioso. O cidadão comprava a arma do bandido, o bandido roubava a arma do cidadão e a vendia para outro cidadão, muitas vezes, até para o mesmo. Aí o Poder Público resolveu

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intervir, já que não estava conseguindo mais controlar o tráfico e institucionalizou o seu uso. Com o próprio governo fornecendo armas e facilitando sua compra por vendedores autorizados, que pagam impostos, o cidadão de bem não precisava recorrer mais ao mercado paralelo. Assim, desaqueceu a venda dos bandidos, mas ainda assim, não deixou de ser um bom negócio para a bandidagem. Todo mundo passou a ter uma arma e a andar armado. Com tanta gente armada, as pessoas começaram a se protegem mais, e a fazer de suas casas verdadeiras fortalezas. Os carros passaram a sair de fábrica blindados e muita gente adotou o colete à prova de balas como peça fundamental de seus guardas roupas. Foi nessa época que a indústria bélica cresceu muito no país. Oferecendo tanto equipamentos de segurança quanto de combate. Quem não tinha dinheiro para se armar e defender fugiu das cidades grandes, alguns se uniram em pequenas comunidades no interior, como vilas, com a própria população vigiando uns aos outros. Daí surgiu a ideia dos condomínios. Se os pobres conseguiam sobreviver protegendo uns aos outros, os ricos também poderiam se unir e construir verdadeiros castelos medievais, onde usufruíam do poder de seu dinheiro atrás de gigantescos muros, protegidos por eles mesmos. No início, quando a população passou a se armar, houve certo sentimento de segurança. Sentimento este que durou 162


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pouco, pois as pessoas instauraram a matança por qualquer coisa. Se acontecia uma briga de trânsito, sempre alguém morria. Briga de vizinhos, tinha gente morta ou baleada. Briga na escola era uma verdadeira chacina. O cidadão atirava no bandido, na polícia e no próprio cidadão. A polícia atirava no bandido, no cidadão e na própria polícia, e a bandidagem atirava geral. A morte tornou-se banalizada, indiferente. Foi quando meu avô investiu em funerárias. Hoje meu pai é dono de dois cemitérios que prestam serviço para o Estado, dando fim aos cadáveres.

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CAPÍTULO IV HEMOTOX A Hemotox é droga do momento. Quero dizer, do momento não, essa maldição já está espalhada em nossa sociedade já há algum tempo. Anos atrás liberaram o uso de entorpecentes, o principal deles foi a maconha. O objetivo do Governo era enfraquecer o tráfico de drogas, dando ao usuário acesso ao produto - antes proibido e incentivando a sua compra de forma legal. Claro que com a facilidade em adquirir a droga, e ainda influenciada pela mídia, seu consumo aumentou exacerbadamente. Todavia, a proposta de enfraquecer o tráfico não vingou. O problema é que a droga liberada pelo Governo é industrializada demais, tem muito produto misturado, sem contar o seu alto preço. O Estado morde uma grande fatia de impostos dos entorpecentes, com a justificativa de usar esse dinheiro para bancar o tratamento dos dependentes químicos. A ideia no papel era boa: “vamos fazer os próprios usuários pagarem pelo seu tratamento ao comprar a droga”. Claro que eles não colocaram um fator determinante nesta equação, a corrupção. Esse dinheiro serve para tudo, menos para tratar os drogados. Outro fator é a concorrência, sim, o traficante é o concorrente direto. Ele oferece um produto melhor - nem sempre - e muito mais barato – sempre. Só que, ele não vende só as drogas legais de forma ilegal, ele vende as ilegais também. Uma delas 164


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é o crack, que transforma os usuários em zumbis urbanos, a outra é a Hemotox, que transforma o usuário em uma espécie de vampiro. A Hemotox é uma substância que reage com as hemácias do sangue humano dando ao usuário uma mistura de euforia, prazer e relaxamento. E se o sangue estiver “quente”, ou seja, com adrenalina, adiciona ainda alucinações a quem usa, potencializando em muito o efeito da droga no organismo. Há relato de usuários que chegam a ter orgasmos. Ela causa dependência, consegue-se fácil no mercado e não é cara. O maior problema é que torna o usuário um consumidor de sangue, de preferência, sangue humano. A Hemotox começou a ser usada pelas pessoas mais ricas, que compartilhavam o sangue umas com as outras, em grupos. Essa turminha passou a ser chamada de “vampiros brancos”, porque não tomam o sangue de ninguém à força, eles compartilham entre eles mesmos. A dificuldade foi a disseminação de doenças. Com esse compartilhamento de sangue, a AIDS voltou com peso, mesmo depois de erradicada, retornou a matar em massa. Fora as meningites, as hepatites e todas as outras doenças que se transmite neste tipo de prática. Mas a coisa ficou feia mesmo quando isso chegou as populações mais pobres. Os viciados passaram a atacar nas ruas, o que automaticamente já gerava adrenalina no sangue da vítima, então era perfeito. Logo, pessoas morreram sem ter nada a ver com a droga.

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O Poder Público tomou atitudes drásticas contra esse novo entorpecente. Começou a prender tanto os traficantes quanto os usuários. O problema é que a Hemotox é vendida nos mesmos estabelecimentos autorizados a vender maconha e cocaína, só que de forma clandestina. Mais um tiro no pé do Governo. Como a droga iniciou forte entre os mais ricos, quase ninguém foi preso, os que acabavam na cadeia eram os mais pobres, isso quando não eram linchados pela população, que passou a ver neste tipo de drogado um inimigo em potencial. Com as pessoas armadas, bastava uma senhora ver um rapaz com cara de louco para ela sacar sua espingarda calibre doze e mandar chumbo. Muitos morreram assim, e seus assassinos alegavam que foram atacados e tiveram que reagir em legítima defesa. Um caso que repercutiu muito foi o do filho do prefeito, que nem maconha usava, mas ficou viciado na Hemotox. Na ânsia de conseguir “sangue quente” para fazer valer a pena a viagem, acabou atacando uma senhora de idade. A doninha estava com uma escopeta de cano serrado que sacou e disparou dois balaços no peito do rapaz, a uma distância de dois metros. Nem precisa dizer o tamanho do estrago. A cena foi repetida inúmeras vezes em todos os canais de TVs do mundo, já que o crime aconteceu em um estacionamento vigiado por câmeras de segurança, em diferentes ângulos, com direito a closes.

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A velha não tinha nada contra ninguém, estava apenas assustada. O rapaz surgiu por entre os carros, e ela sacou a arma impulsivamente, e conforme o treinamento obtido para o uso de armas sacou e disparou, sem chances de reação. Seu Marcilio quase que teve que mudar-se por causa de um chupa sangue. Renato, um bisneto seu ficou viciado em Hemotox, e a notícia correu o Condomínio. Ninguém queria ter um vampiro como vizinho, mesmo que fosse um “vampiro branco”. Alguns queriam linchar o rapaz, outros queriam que toda a família se mudasse. Sugeriram que só ele saísse e fosse tratar-se nas clínicas de reabilitação, que na verdade não reabilitavam coisa nenhuma, eram verdadeiros manicômios. Outros foram complacentes com a situação da família e, contanto que o rapaz não causasse problemas, poderia ficar. Enquanto decidiam o que fazer, Renato foi pego dentro do condomínio compartilhando sangue com duas meninas de fora. A maioria decidiu por expulsá-los, mas seu pai, em um ataque de fúria matou o rapaz, as moças e depois se matou. Se não bastasse o povo roubando e atirando em todo mundo pelas ruas, essa droga trouxe ainda mais insegurança e violência à já insalubre vida da cidade, enclausurando ainda mais as pessoas atrás dos grandes muros ou expulsando os menos abastados para as zonas rurais.

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CAPÍTULO V CORONEL CARLOS EUGÊNIO Carlos Eugênio virou um mito por aqui. Ele foi um dos que inspirou a onda de vigilantes anônimos e potencializou ainda mais a violência na cidade. Foi nos tempos de minha mãe, antes dos grandes condomínios, que Seu Eugênio fez história e até hoje é lembrado. O mais velho dentre três irmãos, Carlinhos, como era conhecido, por ser o menor dentre os três, era também o mais ligeiro e esperto. Fazia de sua miudeza uma vantagem tanto nos esportes quanto na opinião das pessoas. Ninguém achava que ele era capaz, e por todos pensarem assim, estavam sempre o subestimando. Ele gostava disso, e usava esse preconceito a seu favor. Desde novo esteve envolvido com esportes. Era ágil, esperto e muito forte pelo seu porte físico. Muito disciplinado e inteligente, ele viu nas forças armadas a oportunidade de unir o físico e o mental para tirar o máximo de proveito do corpo e da mente. Iniciou pelo Colégio de Oficiais do Exército, e engajou-se em patentes superiores. Muito novo ele já respondia como tenente das Forças Armadas. Ministrava diversos cursos e era perito em diversas funções. Aos 30 anos era um dos oficiais mais respeitados e condecorados, pois dedicava sua vida em função do Exército. 168


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Com uma carreira estável, buscou desenvolver-se socialmente. Arrumou uma namorada e logo casou. Aos 40 anos tinha casa própria, emprego bom, mulher e filha, era crente devoto e pagava seu dízimo. Estava tudo dentro do padrão, como ele mesmo estava sempre repetindo. Só se sentia um pouco incomodado com o excesso de violência na sua querida cidade. Após sua filha ser assaltada dentro de um transporte escolar, onde todos os alunos foram assaltados e o motorista fora morto, ele decidiu muito a contra gosto, que a menina iria estudar fora do país. Eles tinham condições e, sua mulher, parentes no exterior. Ela por mais de uma vez sugeriu irem embora, achavam que a cidade estava cada vez mais violenta, e o país mais corrupto. Carlos, sempre contrário à ideia, já que construiu sua vida defendendo essa bandeira, se negava a abandonar sua amada Pátria. Outro motivo que o mantinha aqui eram os amigos. Carlos era muito próximo do Seu Moacir. Os dois frequentavam a igreja juntos e estavam sempre juntos nos campos de futebol. Torciam pelo mesmo time e jogavam na mesma “pelada”. Seu Moacir era comerciante, tinha uma padaria próxima da casa de Carlos. Seu Moacir já havia registrado algumas queixas de invasão, roubo e furto, mas no decorrer de sete anos, era aceitável. A coisa começou a ficar preocupante quando o seu estabelecimento começou a ser assaltado duas, até três vezes por mês.

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Em um destes assaltos um cliente morreu, no outro, Carlos, que estava por lá na hora, reagiu e matou um dos assaltantes. Nesta época, Carlos perdeu a mulher em um assalto, justamente porque o segurança de uma loja reagiu, e durante a troca de tiros sua mulher foi alvejada, por ambos os lados. Era o terceiro assalto que ela fora envolvida e já tinha decidido sair do país. O primeiro assalto fora um arrastão em uma das principais avenidas da cidade, durante um congestionamento. Mais ou menos umas vinte pessoas armadas vieram rendendo e roubando tudo que os motoristas tinham: bolsas, carteiras, relógios, celulares, até malas. Tudo que estava dentro dos carros eles carregaram. Desesperados, alguns motoristas trancaram seus carros, no meio da pista, e saíram correndo. Outros se trancaram dentro dos carros e rezaram para que eles passassem sem incomodá-los. Maria Amélia foi uma dessas que ficou. Ela subiu os vidros, travou as portas e ligou para a polícia. Já estava ligando para o marido, quando dois homens apareceram do lado esquerdo do carro. Com a ponta da arma, o maior deles gritou para que ela abrisse o carro. Desesperada, ela balançou a cabeça de forma negativa, enquanto Carlos Eugênio do outro lado da linha gritava desesperado. “Deita no chão! Deita no chão!” Ela dobrou-se em direção ao banco do passageiro, quase no momento em que o homem disparara a arma. 170


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O tiro estilhaçou o vidro do lado do motorista. O homem abriu a porta e puxou Maria Amélia aos prantos lá de dentro. Praticamente em choque, ela implorava para que eles não a matassem, enquanto do outro lado da linha Carlos, sem poder fazer nada, escutava. O homem a atirou no chão, enquanto o outro entrou e saiu recolhendo tudo que via a sua frente, jogando dentro de um saco preto. O telefone ainda estava com a ligação ativa para Carlos. Antes de seguir, o bandido tentou atirar nela, mas sua arma mascou e com grande desprezo ele a chutou o rosto quebrando-lhe dois dentes. Maria Amélia foi uma das que foram hospitalizadas, não tanto pela ferida física em si, mas pelo estado de choque no qual se encontrou. Neste assalto morreram apenas duas pessoas, foram quase 300 carros roubados. O evento causou grande impacto na vida de Maria Amélia e Carlos Eugênio. Para aquele assalto Maria Amélia perdeu também a saúde física e mental. Com o trauma ela desenvolveu síndrome do Pânico e depressão. Abandonou seu emprego em um hospital municipal e deixou de prestar serviço voluntário como médica pediatra. O seu amor ao ser humano, que a motivou desde criança a ser médica, acabou completamente. Ela passou a ver qualquer tipo de pessoa estranha como um bicho feroz e perigoso. Carlos teve que pedir baixa no Exército para cuidar da mulher. Ele já não tinha tanto serviço de campo, porém era muito 171


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bem quisto e gostava muito do que fazia. Afastar-se do trabalho não o fez bem, desenvolveu depressão e ficou bem menos amistoso do que outrora. O Segundo assalto foi quase na porta dos pais de Maria Amélia. Eles estavam voltando de um almoço quando foram surpreendidos por quatro homens. Um carro se aproximou deles e pediu informação à Carlos, distraído ele não percebeu que mais dois homens se aproximaram a pé pelo outro lado e renderam sua mulher, com uma arma apontada para a cabeça dela. Eles exigiram que ele descesse do carro e deixasse a chave no contato, o carona do outro carro entrou no lugar de Carlos, enquanto outros dois entraram pela porta de trás. Ainda com o revólver apontado para a cabeça da mulher, que pedia baixinho e com a voz mansa que a deixassem sair, implorando por tudo quanto era deus, o carro arrancou. Carlos Eugênio apenas ficou vendo, sem poder fazer nada, o carro ir embora com a sua mulher. Desesperado ele ligou para a polícia, passou algumas informações, pegou o carro dos sogros e tentou seguir na direção dos ladrões. No desespero acabou derrubando um motoqueiro, impossibilitando-o de continuar a perseguição. Os assaltantes foram com Maria Amélia a dois caixas eletrônicos e a obrigaram a fazer diversos saques e transferências. Um dos bandidos a ameaçava o tempo todo, enquanto o que estava sentado ao seu lado tocava-lhe as pernas, entre as coxas. 172


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Ela entrou em estado de choque e mal sentia o seu corpo. Chorava baixinho o tempo todo, implorando para que não a machucassem, um deles dizia que tudo iria ficar bem, bastava ela fazer o que eles estivessem mandando. O pesadelo de Maria Amélia durou duas horas. O tempo que a polícia demorou para respondeu ao chamado de seu marido. Ela foi libertada em uma das rodovias que dava saída para outra cidade. Em prantos, ela caiu no acostamento, chorando enquanto os carros passavam em alta velocidade. Entre o segundo e o terceiro assalto de Maria Amélia aconteceu o assalto à padaria de Seu Moacir, no qual Carlos Eugênio reagira, matando um adolescente que ameaçava a moça do caixa. Mesmo servindo ao Exército por tanto tempo, ele nunca havia atirado em alguém com o objetivo de matar. Aprendera nas Forças Armadas a dominar sua emoção e a valorizar a vida acima de tudo. Sabia usar a arma, mais como um recurso de intimidação e persuasão do que propriamente de eliminação. Mas chegara um tempo que muitos não respeitavam a vida do próximo, e ele passou a andar com sua arma na cintura para qualquer lugar em que fosse. Algum tempo depois sua mulher viria a morrer, baleada dentro de um shopping durante um tiroteio entre bandidos e seguranças. Eles já estavam cogitando a possibilidade de mudar de cidade. Estavam achando a cidade que tanto amavam violenta demais, era o momento de procurar lugares mais

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aprazíveis e pacatos. Por que não se juntarem à filha que morava em outro país? Carlos Eugênio não aceitou bem a morte da esposa e, contrariando vários parentes que recomendaram que fosse viver com a filha, ele optou por ficar. De forma amarga ele dizia que iria limpar seu país com sangue e lágrimas, a cidade estava em guerra não declarada e ele já tinha escolhido o seu lado. Resolveu que iria limpar toda a sujeira que encontrasse pela frente.

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CAPÍTULO VI VIGILANTES Carlos Eugênio passou a andar sempre armado e de prontidão. Demorou dois meses para ele cometer o seu primeiro assassinato após a morte de sua mulher. Em um posto de gasolina à noite, ele percebeu a ação de dois homens que roubavam o frentista e as bombas de combustível. Parou o carro e desceu disparando, acertando nas costas o homem que estava rendendo o frentista. No susto, o bandido atingido disparou sua arma, acertando o abdômen do rendido. Carlos também alvejou, na cabeça e no peito, o outro assaltante. Suas ações eram grosseiras e covardes, ele não ligava para a segurança das vítimas, atirava em bandidos e em todo mundo que pudesse lhe acertar um tiro também. Certa vez Carlos Eugênio executou uma mulher que acabara de salvar de um assalto. Assustada com a ação tanto dos bandidos quanto de Carlos, ela sacou a arma sem saber direito o que fazer. No frenesi da ação Carlos disparou de forma letal, matando também a mulher. Ele poderia muito bem incapacitá-la, mas se sentia em uma guerra, onde todos eram inimigos. Com o tempo ele foi se aprimorando, passou a matar os bandidos de longe, com um rifle, sem causar tanta sujeita e evitando matar tantos inocentes em suas ações. Foi nesta época 175


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que ofereceu seus serviços ao amigo Moacir, que era constantemente assaltado pelos mesmos bandidos. Carlos ficou escondido nos fundos da padaria, e atirava nos assaltantes lá de dentro, com uma arma com mira telescópica. Era preciso e mortal. Muitas vezes ele matava o bando antes mesmo que eles soubessem o que estava acontecendo. Nas duas primeiras vezes, os bandidos reagiram e atiraram a esmo ferindo as pessoas que estavam por perto, mas com o passar do tempo eles pararam de assaltar a padaria. Todavia, isso não foi uma vitória para o Seu Moacir, muito pelo contrário, após um breve período de calmaria a padaria foi alvo de um incêndio criminoso. Ninguém se feriu, mas Seu Moacir ficou sem seu estabelecimento e se mudou para o interior. Carlos Eugênio criou uma nova forma de segurança, a armada e ativa. Ele passou a oferecer seus serviços e a treinar seguranças que ficavam em pontos estratégicos para alvejar, muitas vezes mortalmente, meliantes que vinham com o intuito de prejudicar seus contratantes. Logo ficou conhecido pela bandidagem e pela polícia. Foi preso e na cadeia matou cinco homens antes de ser assassinado com quase 100 perfurações pelo corpo. Mas sua semente havia sido plantada. Por diversas vezes houve notícias de homens que se intitulavam justiceiros e saiam à cata de bandidos pela cidade. Com armamentos pesados e aparatos tecnológicos, esses homens deflagraram 176


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verdadeiras batalhas, e mataram mais inocente do que culpados. Alguns passaram até mesmo a usar uniformes militares e caveiras no peito, - eram juízes, júri e executores - outros voltaram-se para a comercialização da vida alheia. Ao invés de venderem segurança ofereciam cabeças. Um poderoso poder paralelo dominava comunidades inteiras, governando-as com mão de ferro. Homens ostentando diversas bandeiras como vingança, indignação e até mesmo aventura e fama passaram a lutar contra outros, sob a insígnia do “vigilante justiceiro”. Maníacos sanguessugas atacavam na penumbra e, muitas vezes em bandos, enquanto jovens ricos acima da lei faziam o que bem entendiam, inclusive matavam sem se preocupar com qualquer punição. A polícia corrupta e preguiçosa movida por uma instituição jurídica arcaica tentava a todo custo manter a ordem. E em meio a este caos, estava a população “de bem” armada até os dentes, pronta para o que desse e viesse. Alguns sugerem que os militares irão tomar o poder, acabar com a polícia e colocar as Forças Armadas nas ruas. Assim, o Estado irá impor a ordem colocando criminoso e vítima sob a mesma mira. Muitos são contra esse tipo de ideia, e acabam lutando contra o próprio Estado, deflagrando uma verdadeira guerra civil. Outros já aceitam a selvageria das ruas e vivem sob a lei da selva, ou seja, a lei do mais forte. Andam armados e atiram antes e perguntam depois, se impondo com armas cada vez maiores. Muita gente se mudou para o interior e lá 177


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construíram verdadeiras fortalezas, roubando e matando quem estivesse no caminho. Hoje os tempos são outros, você precisa aprender a se defender com o que existe a sua disposição. Foi neste cenário que os condomínios foram criados. Um lugar de refúgio, uma emulação da paz em meio à guerra urbana. É por isso que comprei essa arma. Porque todo mundo tem e, hoje, andar sem arma é o mesmo que andar pelado. Eu nunca matei ninguém, mas se eu tiver que matar, eu mato. Essa é a nova lei, matar para viver.

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JONAS Jo el G ar ci a da Co s ta

1. PAIXÃO PROIBIDA 22 de agosto de 2000 Ela estava linda naquele dia como sempre. Vestia um conjunto rosa choque para ginástica combinando com o tênis branco com detalhes em lilás; trazia um lenço amarrado à cabeça que prendia o longo cabelo castanho, que parecia loiro quando o sol a iluminava. Ela mancava um pouco, sendo necessário reparar muito bem nela para perceber, mancava em virtude de um acidente


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ocorrido há dois anos, quando sua filha a empurrara para que não fosse atropelada por um carro, o que ocasionou uma fratura na bacia. Vinha agora em minha direção, empurrando sua bike de alumínio, trazendo aquele sorriso exposto, aquele sorriso que me derrubava (a mim e ao resto dos fãs, é claro). Não parecia andar, para ser sincero, flutuar era o que fazia. Isso! Flutuava em minha direção com aquele corpo malhado, forte, mas sem perder a delicadeza feminina. Ah, tudo nela era lindo ou, como diz a frase “aos olhos de um apaixonado não existem defeitos, não existem obstáculos, somente o presente e a paixão”. Não era o que acontecia comigo, não que eu não estivesse perdido, apaixonado, nada disso, é que existia um pequeno obstáculo entre nós, pequeno, porém para mim intransponível. Ela era casada... – Vamos. Ela disse, tocando-me no braço. Fomos. Mais uma tarde de passeio ciclístico no grande bosque da cidade. Já era rotina esses nossos passeios desde que nos conhecemos numa academia de ginástica, cerca de um ano atrás. Patrícia era seu nome, mas eu a chamava de Pati e cultivávamos uma bela amizade unida por pensamentos muito parecidos. Ela sabia da minha paixão, eu fiz questão de me abrir, precisava continuar sendo sincero se a queria conquistar, a qualquer preço talvez; achava ser esse mesmo o caminho, mas 180


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estava quase desistindo. Bom, para não mentir, todos os dias eu pensava em desistir daquela nossa relação de amigos íntimos, sem segredos, mas não resistia à tentação de admirála, de falar e sorrir com ela, qualquer coisa enfim era maravilhoso, pelo menos até o fim daquelas longas tardes no bosque ou na academia; pelo menos até na hora em que me via sozinho novamente, e aí me segurava até chegar ao meu apartamento onde podia chorar à vontade, pois vivia só. Pati concordava e achava também que eu deveria me afastar dela, procurar um caminho menos acidentado, arranjar uma namorada entre as meninas que me paqueravam. Eu era bem bonito, eu sei, dava aula na academia já tinha sete anos, estava para completar trinta e dois e Pati com trinta. Trinta e dois anos, mas me sentia como um adolescente que está “ligado” na primeira menina namorada. Já havia namorado algumas vezes, saído várias vezes sem compromisso, mas nada comparado ao que sentia por Pati, nada. Ela era o tipo de pessoa que eu estava esperando para que fosse a mãe de meus filhos, a mulher com quem eu dividiria minha vida e ao mesmo tempo me completaria. Não fosse por aquele pequeno obstáculo... Acho mesmo que a minha paixão se iniciou naqueles longos papos na lanchonete da academia onde ela começou a desabafar, contar sua vida com seus problemas comuns enquanto eu falava de meu trabalho e das minhas aventuras. Foi nesse tempo que comecei a perceber como ela era diferente das 181


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mulheres que me rodeavam, como ela era especial. Tinha dois filhos e demonstrava tanta ternura quando falava deles que chegava a me comover. Do marido ela contava sobre as diversas brigas sem sentido, às vezes contava também sobre as noites de amor. Segundo Pati, ele não lhe dava mais aquele carinho que ela tanto necessitava e somente procurava se redimir na hora do sexo. Foi quando ela comentou que passara por sua cabeça uma possível separação no futuro, e então nessa época, eu me agarrei com força a uma possível chance, aguardando todos os dias que ela me ligasse e me desse a tão sonhada notícia, que certamente, mudaria de vez nosso relacionamento, já que eu tinha certeza que ela possuía um carinho muito especial por mim, que sempre, em todo e qualquer momento, jamais a desrespeitei nem decepcionei. Mas os dias e semanas passavam e a novidade não acontecia. Foi então nessa época que, querendo dar um empurrãozinho no destino, me abri. Me abri como nunca, como jamais sonhei em me abrir com alguém, despido de qualquer receio de sofrimento, exposto, um alvo fácil... E foi assim agindo que fui atingido em cheio, bem lá no fundo do meu coração. Fui atingido por palavras metralhadas por ela, palavras que feriam dizendo poder haver um futuro para o seu casamento, para os longos anos de casamento de, infelizmente para mim, um alicerce bem fundado. Eu fiquei afundado num mar de tristezas, incertezas, desespero; e pra 182


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não me afogar me agarrei em minhas mais profundas esperanças. Impus-me uma regra: a cada vez que pensasse nela, imediatamente eu me lembraria de que o seu coração já estava ocupado por outro homem, que ela nunca iria se separar e que eu jamais poderia destruir a felicidade de uma família inteira para me ver feliz; e principalmente, que eu não deveria estragar a mais linda amizade que eu já fizera, uma amizade de lágrimas e sorrisos, era bem verdade, mas era a coisa mais importante que eu tinha, uma proximidade que reabastecia de vida meu corpo, eliminando as tristezas da última noite. Quando estava com ela em nenhum momento me lembrava de qualquer sofrimento, era tudo passado, e passado não conta. Bem, consegui bons resultados com minha tática, não a esqueci, acho que nunca a esquecerei, mas comecei a sofrer menos quando estava na solidão do meu quarto. As coisas funcionam assim, não é mesmo, Deus sabe o que faz no interior das pessoas e acredito mesmo que cada um de nós tenha de passar por certas exclusividades da vida, talvez para darmos um real valor aos nossos sentimentos, mas eu juro, por este mesmo Deus, que se pudesse começaria minha vida toda de novo, lá do princípio, e quem sabe, bem possivelmente com a ajuda Dele, encontraria esta minha paixão proibida na hora e no lugar certo e, certamente, neste momento em que escrevo, eu não choraria tanto.

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2. O ESPECIALISTA 08 de setembro de 2000 O dia a dia de uma grande academia de ginástica é uma verdadeira correria. São alunos que entram, que saem, pais que buscam seus filhos, pais que malham também, mais os funcionários e professores. Eu estava nesse último grupo. Ficava doze horas dentro da academia de segunda a sexta e nos finais de semana fazia percursos de bicicleta para relaxar. Tinha alunos de todos os tipos e sexos; atuava principalmente na área de musculação e ginástica localizada. Já havia visto de tudo quanto fora “formato” de gente por ali, mas não consegui deixar de observar o grandalhão que conversava com a recepcionista. Num calor daqueles, um cidadão vestido inteiramente de preto e, com certeza, com mais de dois metros de altura, bom, se isso não chamasse a atenção então nada mais chamaria. Havia notado também que a recepcionista apontava em minha direção, fazendo um sinal de positivo com a cabeça. Após o sinal, o grandalhão, que era bem rápido apesar de seu tamanho, começou a atravessar as portas que davam acesso à sessão de musculação. Vinha sorrindo, com o queixo levantado, aparência típica de um senhor da classe média e o alvo era eu. Preparei-me para dizer qualquer coisa como: Boa tarde, mas fui surpreendido pelo trovejar da voz do visitante. ‒ Jonas, eu presumo! 184


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‒ Às suas ordens. O visitante me olhou lá de cima sem abaixar a cabeça um milímetro, como se fizesse questão de mostrar sua superioridade de tamanho e continuou naquela voz forte. ‒ Não vim aqui para me matricular em nenhum tipo de aula, Jonas. Foi me informado que você está com um tipo de problema, necessitando então de um especialista, ah, como sou mal educado! Permita me apresentar, sou Dr. Barros. Eu fiquei boquiaberto, uma coisa que raramente acontecia. ‒ Problema! – disse – alguém está de brincadeira por aqui, como pode ver me encontro perfeitamente bem e não necessito de especialista algum... ‒ Não estou falando de problemas de saúde comum – interrompeu o doutor tranquilamente – Estou falando de problemas na alma, no coração e na mente. ‒ Por favor, doutor, o senhor está... ‒ Não me entenda mal, eu sei o que anda sentindo aí dentro, estou falando de paixão, para ser mais claro. Deixei meu telefone com aquela gata da recepção e não se esqueça, eu posso ajudá-lo. Boa tarde. Continuei boquiaberto por algum tempo e quando dei por mim, o gigante de negro já se despedia ganhando um sorriso da recepcionista e chegava à calçada. Fiquei ali parado por mais alguns minutos, sem reação. Como é que o doutor sabia de meus problemas íntimos? Será que Pati, não, ela nunca faria 185


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isto. Só pode ser alguma brincadeira de alguém, mas quem? Passei uma lista de nomes pela cabeça, mas não consegui relacionar ninguém ao episódio. Tentei voltar ao trabalho, apesar de naquela hora o movimento do local ser mais tranquilo, havia alunos que necessitavam da minha atenção. Bom, pelo menos tentei, mas sem resultado, estava intrigado. Saí da sessão e segui direto para a recepção. ‒ Marta, sabe aquele senhor grandalhão, ele deixou algum cartão ou coisa parecida? ‒ Ah, aquele homem maravilhoso, sim, que pena que não foi para mim. Deixou para um tal de Jonas, hei, ele deixou para você... Hum, o que você tem que eu não tenho? ‒ Você acha que ele pode ser homossexual? Marta disse entre risadas. ‒ Jamais, mas se eu estiver enganada, TOME CUIDADO, é para não se machucar. Pegue, ele deixou este cartão. No cartão vinha impresso Dr. Barros, especialista em doenças do coração, junto a um endereço e telefone para agendar consulta. Peguei o telefone e, sem pensar duas vezes, marquei um horário para o dia seguinte. Naquela noite consegui dormir mais do que às três horas habituais e até sonhei... ... com ela.

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3. DIAGNÓSTICO 20 de setembro de 2000 Peguei um enorme congestionamento para chegar ao consultório do Dr. Barros, quase uma hora no trânsito para ser exato. O local do endereço era um prédio de escritórios muito moderno, construído com armações metálicas e vidros espelhados e devia ter uns vinte andares, me identifiquei para o porteiro que me explicou como chegar ao destino. Deixei o Mustang no estacionamento interno e rumei para o elevador sem pressa. Era no último andar, sala 515, não precisaria bater à porta, pois a secretária – um avião, segundo fez questão de esclarecer o nada discreto porteiro – já havia ido embora. Conforme me dissera a secretária, quando marcou a consulta, o doutor só tratava de um paciente de cada vez, pois se dedicava muito. Quando mencionei sobre valores, ela me interrompeu dizendo que o Dr. Barros era muito bem de vida e fazia seus tratamentos em caráter experimental, fundamentando dados para mais uma de suas teses. Ora, ora, não custa nada tentar descobrir o que estava acontecendo, mas havia outro detalhe que me surgira à mente, o doutor poderia ter encontrado meu nome na lista telefônica e simplesmente jogado psicologicamente comigo como jogaria com qualquer outra pessoa e no meu caso, atiçara uma grande curiosidade. Lá no fundo, era no meu salva-vidas que me se agarrava com mais força ainda, por mais estranho que isto possa parecer. 187


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A porta estava mesmo aberta, entrei e sem nenhuma cerimônia, me sentei. Passaram-se cinco minutos e nada, retirei uma revista das diversas colocadas sobre a mesa de centro e pus-me a ler. Na sua maioria, eram revistas que tratavam das modernas descobertas científicas no mundo da saúde, com uma ou outra Caras no meio, que não estavam ali por coincidência, pois após folhear ambas, descobri matérias inteiras sobre o Dr. Barros, que insistia em não aparecer na saleta de recepção. Será que o porteiro não comunicara ao doutor sobre sua presença? Olhei para o relógio: vinte minutos de espera, resolvi ir embora e até já havia me levantado quando a porta dupla de mogno se abriu, de onde uma voz conhecida se fez ouvir. ‒ Entre Jonas! Um arrepio passou pelo meu corpo, tentei sorrir e obedeci à voz. A outra sala era enorme, com as paredes cobertas de quadros que pareciam janelas mostrando a era medieval, havia livros espalhados por todos os lados, dois divãs estofados estacionados lado a lado no centro da sala, o que dava a impressão de serem reservados para terapia em casal ou para alguma safadeza do doutor; em uma cadeira grande e antiga, também estofada, repousava o gigante que agora observava a presa, digo, eu; observava com um braço cruzando o peito e uma mão segurando o queixo. Ele usava aquela mesma roupa 188


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escura do dia anterior e era difícil ter certeza em que parte do meu corpo o doutor me observava, devido à escuridão existente. Seria ele mesmo homossexual? Ri do pensamento enquanto o doutor me indicava o divã da esquerda com a mão espalmada e um aceno da cabeça. Querem ver agora ele deitar no outro divã, me olhar nos olhos e dizer: te amo! Meu pensamento foi cortado pela voz de trovão. ‒ Você tem uma imaginação muito fértil, Jonas! Fique tranquilo, não sou homossexual, apesar de realmente usar esses divãs para sexo. O arrepio retornou e a boca secou, imaginei-me agora saindo correndo como fizera quando criança no circo, após me assustar com um palhaço. ‒ Não se assuste nem corra, por favor, tenho certeza que na revista que leu estava escrito que sou especialista também em leitura da mente, hipnose, coisas assim. Mas tenho também certeza que não acreditou numa só linha que leu, como a maioria não acredita e torno a dizer, fique tranquilo e vamos iniciar nossa consulta. O “sim” ficou preso na garganta e respirando fundo, consegui enfim falar. ‒ O que é o senhor? ‒ Tudo bem, tem algumas perguntas, certo! Pergunte o que quiser agora, pois depois disto isto será a minha vez. Ok, vamos lá! Eu sou o doutor que se apresentou para você na academia e é tudo que precisa saber sobre mim. 189


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‒ Quem o contatou? ‒ Eu mesmo te escolhi para tentar ajudá-lo, após uma promessa na roleta russa, mas isto é uma outra história. Tenho grandes possibilidades de fazer com que possa ter sua paixão, ou melhor, ter Patrícia ao seu lado, estou errado? ‒ De que Patrícia está falando, doutor? ‒ Jonas, necessito de toda a sua sinceridade se quiser que eu faça qualquer coisa por você. Se achar que não vai conseguir ser sincero o suficiente, vá embora agora e eu não mais o aborrecerei. O encarei por um instante. O que tinha a perder, afinal ele sabia o meu grande segredo, aquele que deveria ser somente meu e de Pati para sempre. Será que Deus está me olhando com mais carinho neste momento e enviou este homem para me dar uma chance? Notei que o gigante desviara o olhar após este último pensamento e, sem ter uma resposta, resolvi confiar nele. ‒ Não está errado doutor, amo essa Patrícia a que se refere. ‒ Estamos progredindo. Vamos fazer um pequeno jogo de perguntas, eu as faço e, lógico, você responde ou se quiser, eu mesmo respondo. ‒ Não é por nada não, mas deixa que eu mesmo respondo! ‒ Certo! Primeiro farei perguntas em relação ao que sente por Patrícia. Pensa muito nela?

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‒ Sempre. Basta ficar quieto por um instante e ela toma conta de mim. ‒ Quando está na rua também? ‒ É pior ainda. Ela tem um gol vermelho e toda vez que vejo qualquer carro parecido, já fico doido pensando que é ela. ‒ Em casa? ‒ Lá é onde penso mais, pois moro sozinho, não há como fugir de sua presença. Tento ver defeitos nela, mas o amor que sinto é muito maior. Tento fugir da lembrança de seus sorrisos, mas é inevitável, o telefone toca e corro achando que só pode ser ela; o mesmo acontece quando a campainha do apartamento soa. Sabe doutor, acho mesmo que ela vive dentro de mim, mais que isso, tenho certeza que ela já é parte de mim. ‒ Mas então ela é uma princesa de tão linda e formosa? ‒ Sim, pra mim ela é uma mulher maravilhosa, mas o senhor diria que é uma mulher muito bonita, porém comum. ‒ Então o que você viu nela? ‒ Eu vi e vejo nela a essência de seu ser, a bondade que a envolve, o carinho que transborda de seu coração. Ela é especial demais e tenho certeza que eu posso dizer isto até mil vezes repetidas que ela vai achar que estou exagerando. ‒ Você já teve alguma intimidade com ela?

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‒ De nenhum tipo, nem um simples beijo. Eu a respeito demais e só faria alguma coisa com ela se não houvesse nenhum meio de escapar, ou se ela se separasse. ‒ E no marido dela, pensa? ‒ Deus me perdoe, mas morro de inveja dele; do carinho com que ela às vezes fala dele, da maneira como ela narra suas noites de amor com ele. Quem sou eu para competir com um casamento de longa data, uma vida a dois que foi construída provavelmente com o mesmo amor que sinto hoje, mais que caiu na rotina com o tempo. Eu o invejo sim, não há dúvidas, e ele deveria dar mais valor para ela. O gigante permaneceu calado, dando a impressão de que estava satisfeito com o diálogo travado. Quem dera! ‒ Seu diagnóstico é exatamente o que pensei, está muito apaixonado por essa mulher, disto não há dúvidas. Nossa consulta de hoje acabou, mas vou lhe fazer mais uma pergunta, que não quero que me responda agora: O que você faria se pudesse reconstruir sua vida e a dela desde muitos anos atrás, teria mesmo coragem de tentar? Pense durante a noite em todas as possibilidades, nos sacrifícios, e me dê uma resposta daqui a dois dias, numa nova consulta. Adeus Jonas. Eu deixei o local, meio incerto quanto aos resultados daquela consulta do tipo bate-papo, a que geralmente se tem com psicólogos. Cheguei ao meu apartamento meia hora depois e tomei uma ducha demorada. Não sabia o porquê, mas pensaria no que o doutor dissera, afinal não custava nada e que diferen192


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ça faria? De qualquer forma sonharia acordado com Pati. Como sempre. 4. INSÔNIA 20 de setembro de 2000 A noite parecia não ter mais fim. Deitei-me pelas 22 horas e comecei a construir um sonho, do qual eu jamais me esqueceria, em nome da ciência do Dr. Barros. Imaginei-me encontrando Pati quando ela era solteira, namorando-a, casando com ela, tendo lindos filhos; só imaginei as partes boas da relação, somente os sorrisos, as vitórias e ignorei todo e qualquer outro aspecto que pudesse ofuscar o belíssimo quadro criado durante a noite. De manhã, quando o sol tentava entrar no quarto através das frestas da janela, conclui enfim que sim, valeria a pena ter uma chance para tentar ser feliz, uma chance de mudar o rumo de minha vida e de fazer alguém ser mais feliz. Sim, valia a pena a qualquer custo. E pensando assim, adormeci.

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5. ENIGMA 21 de setembro de 1987 Quando acordei, me sentia mais renovado, focalizei o relógio localizado sobre a penteadeira e conclui que dormira o suficiente. O quarto ainda estava muito escuro, apesar da tarde já haver se iniciado umas duas horas antes. Pensei em ligar para a academia e informar que não passava muito bem e que também, no dia seguinte, não daria aula, mas busquei em vão o telefone sobre o criado-mudo constatei que nem o criadomudo parecia estar ali. Achei que tivesse esbarrado nele durante o sono e o empurrado para longe da cama e já ia me levantando quando escutei uma voz conhecida do lado de fora do meu quarto. ‒ Jonas. Vai dormir o dia todo? Quer que eu chame um médico? Na verdade, eu me sentia muito bem, obrigado, mas o médico foi necessário sim, pois desmaiei. Talvez fosse até por fraqueza – diria o médico mais tarde – mas provavelmente fora um desmaio de susto e não era por menos, já que não é todo dia que a gente escuta nossa mãe chamando do lado de fora do quarto, principalmente quando ela já falecera há uns cinco anos. Quando acordei novamente, estava num leito branco de um hospital. Minha mãe e minha irmã Rita se encontravam uma de cada lado. Bom, pensei, um sonho muito realista este, o jeito 194


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era aguardar e ver o que acontecia. Travei um diálogo com mamãe, afirmando estar me sentindo bem, mas só fui liberado horas depois, com uma enorme receita médica, de praxe. Durante o trajeto de saída do local, passei por um espelho e me vi de relance, retornando a seguir para ter certeza. Estava bem mais jovem, sem qualquer dúvida. O rosto mais afinado, sem bronzeado algum e com uma escassa barba por fazer, o cabelo cortado bem curto, tipo soldado do exército; mas o que mais me impressionou foram as roupas, que coisa mais horrível, prometi para mim mesmo que, sendo sonho ou pesadelo que fosse, a primeira coisa a fazer era trocar de roupa. Alcançamos a saída e ao pisarmos na calçada, senti um pouco de tontura, mas respirei fundo e procurei me acalmar. Minha cidade não mudara muito nos trinta anos em que vivera nela, mas certamente aquele ambiente que eu via agora não era o mesmo do dia anterior. ‒ É melhor você não ir à Faculdade hoje Jonas, pode ter uma recaída lá e quem vai te ajudar? Essa era mesmo minha mãe, preocupada como sempre, um doce de pessoa. Senti meus olhos se enchendo de lágrimas, não gostava de lembrar que perdera minha mãezinha tão cedo, sem poder dar um pouco mais de conforto que ela merecia. Meu pai faleceu quando eu tinha quatro anos, era mais fácil aceitar, pois não tinha convivido com ele, mas a minha mãe...

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‒ Está bem mãe, hoje eu não saio mais para lado algum disse e sem querer estava mentindo, pois a noite prometia e eu ainda não sabia. Cumprindo uma das promessas, ao chegar a minha casa, fui direto para o quarto trocando imediatamente de roupa, chegando até a me sentir melhor. O ano de meu sonho era 1987, lembrava-me muito bem deste corrido período, quando passava por uma má fase na Faculdade de Educação Física, o que me obrigou a uma aplicação muito maior do que a normal. Não saí para lado algum e as únicas novidades não passaram de uma paquerinha aqui, outra ali. Apesar das dificuldades, lembrava com carinho daquele ano, quando realmente tomei consciência do que esperava do futuro, tendo a certeza que queria ser um profissional da área para o qual tanto me aplicara. Isto para alguns poderia parecer bobagem, mas para mim foi fundamental. Considerei que aquela má fase que superei, sacrificando os finais de semana em que passava estudando, como a passagem do Jonas jovem para o Jonas adulto, através da algazarra trocada por responsabilidade, da troca do incerto pelo certo, e isto foi muito importante para desenvolvimento do meu caráter. Mas agora que estranhamente visitava este ano num sonho tão real com a aparência de um adolescente, mas ainda com a mente de um homem formado, achava mesmo que precisava dar um descanso para aquele jovem que eu fora, pelo menos 196


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num final de semana, afinal era um sonho, me lembrei, e os sonhos não modificam o futuro que já foi escrito. E assim pensando, tomei uma bela ducha e saí para a noite, que começara há algum tempo. Ao entrar numa via iluminada, que servia de acesso para os dois melhores clubes noturnos (ou danceterias) de minha cidade, comecei a cantarolar em voz baixa: “Sonho, sonho, sonho Não deixa eu acordar Que nesta linda noite Eu venha a rir, chorar Mas que a noite não se acabe Sem eu me apaixonar” Não se lembrava de onde vinha a cantiga, possivelmente a teria inventado naquele momento, mas de uma coisa eu sabia e meus olhos confirmaram, pois se encheram de lágrimas. Eu sabia que não conseguiria me apaixonar por mais ninguém além de Pati, ela que agora deveria dormir abraçada ao marid..., não, não queria pensar nisto e meu pensamento foi sufocado pelas lágrimas e quando me recuperei, cantarolei novamente a música, alterando-a:

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“Sonho, sonho, sonho Não deixa ela acordar Que nesta linda noite Ela esteja a rir, jamais chorar E quando a noite chegar ao fim Venha por mim se apaixonar” Chorei mais um pouquinho, algo que acontecia tão naturalmente agora e deixei que a cantiga se repetisse em minha mente, como um refrão que não se acaba. Entrei no banheiro de um boteco, escondendo os olhos vermelhos do balconista, onde lavei bem meu rosto e prossegui a seguir na caminhada até onde filas se formavam para entrar na Dance Music. O som que agitava o salão era uma música da Madonna. Não estava preparado, mas entrei agitando, seguindo diretamente até o bar, onde ao menos por uma hora ficaria me “abastecendo” de martínis e cubas. Quando já me sentia, digamos, “legal”, comecei a rodar pelo salão, para quem sabe encontrar uma das paquerinhas da época e tornar a noite um pouco menos sofrida, fazendo coisas que não havia experimentado, pelo menos naquele ano. A ideia subiu mais que o álcool nas minhas veias e comecei então a procurar com mais afinco, enquanto meu desejo aumentava num descontrole típico de adolescente.

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Em uma de minhas rondas pelo salão, esbarrei numa moça bonita, quase chegando a derrubá-la. O meu verdadeiro eu tomou a frente e imediatamente a segurei pela mão, me desculpando muito. O meu falso eu, resolvendo atrapalhar, ressurgiu. ‒ Menina linda, aproveitando que nossa trombada não resultou nem em mortos, muito menos feridos, somados ao fato de que estou sozinho e de que você está, está... ‒ ... sozinha... ‒ Isso! Estamos sós, portanto, creio eu que não faria mal algum se dividíssemos nossas tão boas companhias, seja em danças ou no barzinho, o que você acha? Ela nem precisou responder, mostrou um belo sorriso que se não era sim, seria então o mais magnífico não que alguém já tenha levado. Nem esperei por outro sinal, a puxei pela mão para o centro da pista e dançamos, brincamos, sorrimos. Logicamente, fizemos algumas escalas no bar também, mas a melhor parte foi na hora em que começou a tocar as músicas mais lentas. O contato com ela foi eletrizante e ao mesmo tempo suave e nem parecia que ela dizia a verdade quanto aos dezesseis anos que tinha, pois um diálogo muito legal surgiu entre nós. Apesar do álcool e do desejo, notei alguma característica nela que me fazia lembrar de alguém, mais deixei de lado a ideia ao sermos interrompidos por uma amiga da princesa. Estava tarde e ela precisava ir embora. 199


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Eu a soltei automaticamente e observava seu andar de retirada quando ela se virou, retornando para bem junto, colando em mim. ‒ Vou te ver de novo? – ela disse, em meio a outro de seus lindos e inesgotáveis sorrisos. ‒ Talvez – respondi abraçando-a mais forte enquanto a beijava de leve – Tudo vai depender de quando eu acordar e descobrir que não estou sonhando. ‒ Então, nos veremos amanhã. Retribuiu o beijo e saiu. Eu ainda permaneci por mais ou menos um minuto parado sozinho, no meio do salão. Que menina encantadora – pensei alto enquanto retornava ao bar - nos veremos amanhã novamente, princesa. 6. O DIA SEGUINTE 22 de setembro de 1987 Existem momentos na vida de todo ser humano que, por mais extraordinários que sejam, chegam a ter uma explicação, de certa forma, plausíveis, aceitáveis. Alguns o enquadrariam como milagres, outros até como frutos de magia negra, outros ficam loucos e vão morrer em sanatórios. Eu não saberia dizer em qual destas condições eu melhor me classificava, deixo isto por conta da imaginação dos que lerem essas linhas. O que posso afirmar com toda a convicção é que, quando despertei 200


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naquele último dia do outono de 1987, devido ao interminável som do telefone, eu me senti muito, mas muito perdido. Primeiramente, o telefone não estava em meu quarto, onde também não existia criado-mudo algum, onde não existia nada que me era familiar daquele apartamento de classe média, onde eu vivia só já há alguns anos. Apesar de tentar raciocinar normalmente, a única lógica existente era de que o sonho continuava; de que na noite anterior eu enchera a cara, pois marretas em bigornas soavam na minha cabeça; e de que também aquele telefonema só poderia ser de uma pessoa. Saí desesperado do quarto e quando toquei o telefone, ele calou. Sentei desanimado no sofá, cantei baixinho a música da véspera, contei até dez e estiquei o braço na direção do telefone, que voltou a tocar. Atendi. Era minha mãe, me pedindo para levar o carro no mecânico para a manutenção. É claro que disse que levava, pois do contrário mamãe ficaria muito surpresa, já que foi naquela inesquecível manhã que eu dirigi pela primeira vez o “possante” da família. Peguei a chave do fusca, que morava num prego ao lado da entrada da cozinha, saí pela lavanderia chegando à garagem e lá estava a belezinha. Lembro-me da excitação que senti ao abrir o portão da garagem coberta e sair rodando em marcha lenta. Se não me engano, na época nem fechei o portão, tal a 201


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adrenalina que me incendiava, adrenalina esta que certamente me ajudou a ocasionar o acidente. Procurei fazer tudo igualzinho e só mudei o percurso, afinal o sonho era maluco, mas eu não. Passei por uma rua paralela onde acontecera (no passado, presente, sei lá) o acidente, chegando são e salvo. Não estranhei quando li no dia seguinte (é, dia seguinte) que dois veículos haviam colidido onde o fusca de mamãe sofreria o acidente. Como por capricho do tempo, este alterou os personagens, mas não o fato. E também não estranhei muitas outras coisas que aconteceram, coisas inevitáveis para o bom andamento da história, eu acredito. Naquele sábado, depois do check-up realizado pelo mecânico de confiança da minha mãe, abasteci o carro e rodei por várias horas pela cidade toda, parando quando já estava exausto, lá por perto das 18 horas. Mamãe me deu uma bronca daquelas, onde já se viu ficar rodando por muito tempo de carro quando um dia antes havia ido parar no hospital por estar estressado. Mas bastou um sorriso meu somado a um abraço para que ela se tranquilizasse e me beijasse. Já estava me acostumando com a ideia daquela situação devido ao tempo em que passei pensando somente no assunto e provavelmente ficaria muito triste se fosse obrigado a acordar agora. Alguém me dava uma segunda chance, fosse obra do destino ou daquele bruxo, em ambas as situações a

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mão de Deus teria que estar presente, pois sempre acreditei que Ele era o Grande Escritor da história chamada vida. Resolvi sair novamente naquela noite e, quem sabe, encontrar aquela princesa novamente. Não vou mentir dizendo que estava pensando seriamente nisto, meu desejo mesmo era de procurar desesperadamente por Pati, onde quer que ela estivesse, dar uns tabefes em quem quer que estivesse namorando ou saindo com ela e depois sei lá, raptá-la, quem sabe. Mas não ia fazer isso, eu sabia, não conseguiria fazer isso, não seria justo. Por quê? ‒ Você deve se perguntar. É simples: eu tinha noção do que acontecera na vida dela, do namoro com o marido, do casamento, dos filhos, das decepções que ela sofrera; mas eu tinha outro pensamento que me dava medo: e se eu não conseguisse conquistá-la, se ela me visse novamente somente como um grande amigo, se já fosse apaixonada pelo futuro marido? Ahh, e aí? O que seria de mim? Passaria dos dezenove anos até o final da minha vida sofrendo por ela, sonhando com ela, não, eu não aguentaria. Aí sim eu iria ter certeza que só poderia ter sido obra de um bruxo aquele retorno, um retorno para que eu pagasse por amar alguém que já pertencia à outra pessoa. Não, era um risco enorme a correr para um coração cansado de sofrer, deveria haver outro caminho e eu talvez o encontrasse, quem sabe não seria até aquela princesinha linda que faltava para que eu me reencontrasse com a felicidade, que eu achava que me abandonara há tanto tempo. 203


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7. DESTINO 22 de setembro de 1987 Como na véspera, rumei direto para a danceteria e lá dentro, diretamente para o bar. Entrava no terceiro Martini quando visualizei a beldade entrando pela lateral da pista de dança, com aquele sorriso aberto e com a expressão nos olhos afirmando que procurava alguém. Eu esperava ansiosamente que fosse eu. Não demorei muito tempo para descobrir, pois quando me viu, seu sorriso pareceu aumentar, tanto em beleza quanto em brilho. Em resposta, sorri também enquanto ela se aproximava... Abraçou-me sem dizer uma palavra, ficando ali enroscada em mim com aquele corpo quente, corpo de menina certamente ainda inexplorado, ansiando por um carinho. Fiquei somente com os braços estendidos ao longo do corpo por algum tempo, com medo de tocá-la, com medo de ultrapassar qualquer limite. Ela retirou sua cabeça de meu ombro, mantendo seus braços a me acorrentar. Fitou-me séria como se esperasse alguma atitude minha, depois sorriu. Eu não resisti, acariciei seu rosto e seus lábios com meus dedos experientes e ela tentou me morder, numa brincadeira. A beijei, no começo com extrema suavidade, passando para um nível mais agressivo, retornando ao suave. Quando nossos lábios se separaram, com grande resistência por parte dela, levei-a para o segundo andar 204


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e paramos numa sacada, de onde tínhamos uma bela visão da cidade vestida de noite. ‒ Eu tenho um segredo, menina – disse olhando para o horizonte – Nem nos conhecemos direito, mas eu sinto que preciso me abrir com você, será que eu posso? Ela chegou mais perto, me acorrentando novamente e usou a primeira das poucas frases que falaria durante toda a noite. ‒ Por favor, continue. ‒ Estou me sentindo muito perdido aqui, deslocado, de alguma maneira penso que já passei por tudo que estou passando, a não ser por você, que é a mais bela novidade neste “replay” da minha vida. Não estou bêbado nem louco, somente confuso. Preciso de alguém que me guie. Eu sei que isto parece um tanto infantil, mas é assim que me sinto. O que você acha? Seja sincera, não vai me magoar. A princípio achei que a princesa nada diria e fiquei até aliviado com essa ideia, mas me enganei, ao mesmo tempo em que me maravilhei. ‒ Olha, não creio que possa te ajudar, sou muito jovem ainda. Até entendo o que sente, às vezes me sinto perdida também, mas não quando estou assim tão próxima de você. Se isto te ajudar como me ajuda, fique sempre assim comigo. Não me tenha como uma moça fácil, por favor, é que eu sempre sonhei com alguém como você, alguém que eu ainda nem sei o nome... 205


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‒ Prazer, Jonas ‒ eu me apressei em dizer – e antes que ela pudesse continuar, a beijei novamente e novamente, até o final da noite. E também, como na véspera, dançamos, brincamos, sorrimos. Dispensamos suas amigas e por volta das duas da manhã, a levei embora na “limusine” de mamãe, que ela adorou. Ela morava longe dali, um trajeto que de carro faríamos em dez minutos, se não fossem as paradas para os beijos e uma outra numa lanchonete, onde trocamos mais algumas ideias. Na entrada do portão de sua casa, ao nos despedirmos, eu dei um tremendo fora que me ajudou a compreender em segundos como seria o meu futuro. Estava meio zonzo devido aos inúmeros martínis e ao sono, que me chamava. Pela milésima vez eu me vi abraçado com ela e depois de (ufa) mais um longo beijo, me despedi. ‒ Eu te ligo outra hora pra gente se ver. Boa noite Patrícia... Ela se virou, passando o portão e deslizou até a porta de entrada e antes de adentrar a residência, com a porta já aberta, tornou a se virar em minha direção. Eu notei a gafe quando ela me encarou e senti a pele do rosto pegando fogo. Uma noite tão bonita com um fim tão trágico, pensei. Mas o que eu a ouvi dizer apagou o incêndio que tomava conta de mim de tal forma que chegou mesmo a me congelar ali naquela calçada.

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8. O PREÇO 22 de agosto de 2000 Quem nunca sonhou em ter uma segunda chance para consertar todas as bobagens que fez durante a vida? Acredito até que a resposta seria TODOS. Mas e se a pergunta fosse um pouco diferente, do tipo “Quem conseguiu ter uma segunda chance?” Aí você que me responda, pois nessa situação só conheço a mim mesmo e não tenho mais certeza se é felizmente ou não. Minha vida não foi tão modificada assim, eu acabei me tornando mesmo um professor de Educação Física, minha mãe faleceu alguns anos atrás, não sou melhor de vida do que era antes de retornar ao passado e, além disso, todas as minhas dores foram duplicadas. Está certo que duplicadas também foram minhas alegrias (e olha que houve muitas a mais), mas existem certos sofrimentos que levamos anos, se não para esquecer, ao menos para deixar um pouco de lado na mente. Só tive plena convicção do que aconteceria em minha vida naquela noite, há quase 13 anos atrás, quando aquela garota, que acabou se tornando minha esposa, me disse tão docemente: ‒ Olha Jonas, pode me chamar de Pati. Foi nesse momento que eu me entreguei de corpo e alma a uma realidade que eu jamais poderia fazer qualquer pessoa 207


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acreditar, uma realidade que eu não pude dividir com ninguém, uma realidade que me fez feliz, que realizou meu grande sonho de amor. Mas, diz um ditado que “Tudo tem o seu preço, e às vezes ele é caro demais”. Não posso dizer que meu preço foi caro demais, amei demais essa mulher, vivi os melhores momentos que um homem poderia sonhar em ter com uma mulher. A felicidade não foi plena pelo fato de eu achar que fui injusto com Pati, já que ela havia tido toda uma história antes, uma história que quer fosse boa ou ruim, existia, e o mais duro era que eu sabia, sabia de tudo. Não pudemos ter filhos, vim a descobrir em 1990 que eu era estéril. Pensamos em adotar, pensamos até em inseminação artificial, mas não deu certo, nada deu certo talvez porque certas coisas não possam ser mudadas. Fui extremamente feliz por tê-la ao meu lado, mas muito triste por não dar a ela (que tinha por direito) um filho; cheguei a pensar em separação, só que não tive coragem, pois ela me amava muito. Será que foi egoísmo meu ter sonhado em ser feliz com ela? E se foi por minha culpa que toda essa loucura aconteceu, eu queria que no mínimo ela pudesse ser bem mais feliz do que foi. Só que isso não aconteceu. Ela morreu há dois anos, levando consigo um enorme pedaço meu. Eu sabia, infelizmente, que isto aconteceria e, como no episódio do fusca tentei manipular o futuro, mas sem êxito. 208


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E o mais duro, o que mais me corrói por dentro é que indiretamente fui eu quem a matei, ela não teve nenhum filho ou filha para salvá-la do atropelamento, aquele que a teria somente causado uma fratura, mas que acabou por tirar-lhe a vida. Em muitas noites deste ano de sua morte eu saí com ela, na esperança de que o fato acontecesse e eu pudesse estar lá para ampará-la, esperança em vão. Numa noite, sem me avisar, pois eu estava muito ocupado na academia, ela saiu para fazer seu passeio pelo parque e o inevitável aconteceu. Acho que nem todas as lágrimas do mundo a trariam de volta, mas é tão difícil viver sem ela e agora eu pago o preço por toda a felicidade que eu tive. 9. RECOMEÇO 22 de setembro de 2000 Estava muito triste com a passagem daquele aniversário de treze anos do meu retorno, precisava conversar com alguém, desabafar com um ser diferente do que o meu reflexo no espelho. Havia tirado uma semana de folga para poder passar por um psicólogo e me dar um merecido descanso. Ultimamente trabalhava demais para ficar o mais longe possível da solidão de minha grande casa, o que acabaria por elevar o meu nível de stress ao limite.

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Abri a lista telefônica no tópico psicologia e o primeiro especialista que encontrei foi um conhecido meu de longa data, de um pouco mais de treze anos para ser exato. A inscrição abaixo de seu nome dizia: Especialista em psicologia, parapsicologia, doenças do coração, entre outros aspectos paranormais; famoso mundialmente. Anotei seu telefone (que por coincidência também já havia perdido há muito tempo) e entrei em contato com seu consultório. ‒ Consultório do Dr. Barros, bom dia! ‒ Por favor, eu queria marcar uma consulta com o doutor, se possível ainda para hoje, senhorita. ‒ Seu nome, por favor. ‒ Jonas. ‒Ah, Sr. Jonas! Um momento. Hum, sim, como pensei, o senhor tem uma consulta de retorno marcada para hoje a tarde, às duas horas. ‒ É verdade, me desculpe, havia me esquecido. Acho que minha memória está um tanto curta ultimamente. Estarei aí no horário marcado, muito grato. ‒ Sou eu quem agradece. Muito bom dia Sr. Jonas. Então será que o gigante me aguardava? Bom, se existia alguém em quem eu podia confiar era bem provável que fosse o Dr. Barros, pois eu tinha quase certeza que ele havia sido o responsável pelo meu retorno ao passado que acontecera comigo. Quem sabe ele me esclareceria muita coisa nesta 210


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tarde, mas eu estava morrendo de medo, é verdade, o gigante era de dar calafrios com suas adivinhações. Pelo menos agora eu já entraria em seu consultório com um pé atrás, prevenido. Será? – uma voz perguntou dentro de minha cabeça – e por um longo momento o que mais quis fazer na vida foi retornar a ligação e cancelar a consulta. No prédio de escritórios onde se localizava o consultório do doutor o procedimento foi o mesmo de antes, o porteiro era o mesmo de antes, o elevador era o mesmo, a secretária (para mim, funcionária fantasma) não se encontrava, a porta da recepção estava aberta, as conhecidas revistas espalhadas na mesinha de centro, tudo igualzinho a antes. Só uma diferença existia: a porta de acesso ao interior do consultório estava aberta, convidativa, tal a boca de um lobo gigantesco. Como feito há muito tempo, criei coragem e entrei. Lá estava ele, como antes, esparramado em sua cadeira da idade média, notei que havia novos objetos estranhos espalhados por todos os lados. ‒ Realmente Jonas, tive um bom tempo para colecionar novos objetos, na verdade para ser sincero tenho todo o tempo do mundo. Sente-se. Minha boca secou novamente e mesmo já esperando o acontecido, a vontade de correr tomou conta das pernas, mas respirando profundamente, caí num dos divãs e em vez de pensar, falei.

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‒ Por favor, não se deite neste divã que ficou vazio, pois sua secretária pode chegar e pensar muito mal de nós. ‒ Acredito que saiba que eu não tenho secretária alguma, não é Jonas? Seria difícil uma que fosse de inteira confiança e que aguentasse o meu pique. ‒ Eu suspeitava! ‒ Voltemos à sua consulta, você fez o que eu te pedi? ‒ Fiz, e acordei quando tinha dezenove anos. ‒ E o que achou da experiência? ‒ Uma experiência um tanto longa demais. Houve muita coisa boa, mas agora existe um sofrimento muito maior do que quando estive aqui da primeira vez... ‒ É o preço! ‒ Eu sei, mas me responda somente duas coisas: Quem calcula este preço e o que foi que o senhor fez comigo? ‒ O preço é calculado pelo destino, mais ninguém; e para terminar sua curta consulta, não, eu não fiz nada com você, eu não poderia fazer nada por você, o que é uma pena. Está certo, eu sou mesmo um tipo de bruxo, como você acha, mas não poderia mudar o passado e interferir no futuro de um ser humano, isto cabe somente ao Criador. ‒ Mas então, se não foi o senhor, o que foi então que aconteceu, eu preciso saber, eu me sinto muito culpado por tudo, estou começando a sofrer de insônia novamente, tenho medo de ficar louco. Quem foi – tentei gritar, mas o que saiu não foi 212


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mais forte que um sussurro – quem foi que brincou tanto comigo, o que foi que aconteceu, por favor, me diga? O gigante refletiu por algum tempo antes de responder, sempre com a mão direita segurando o queixo. ‒ Digamos que tudo não passou de, como é mesmo que você o apelidou, “Sonho Maluco”. Foi isso! Adeus Jonas. Despediu-se, levantou-se e saiu me deixando ali mergulhado na escuridão de sua sala, acompanhado por minha tristeza, agora sempre presente. Resolvi ir embora também. Desci pelas escadas, o elevador não respondeu ao chamado, quando passei pelo porteiro, avisei-o que o doutor havia deixado tudo aberto e já havia saído. Este sorriu. ‒ De que doutor o senhor está falando? ‒ De um com mais de dois metros, vestido de preto... ‒ O senhor está passando bem? Deixa pra lá, disse engatando a primeira marcha e sumindo dali. O gigante era um bruxo, ele mesmo havia me confessado, não era de se duvidar que aparecesse tão rápido quanto desaparecia, como um mágico de Las Vegas, sendo somente a diferença de que seu palco era o mundo. E para completar o número, quando cheguei a minha casa e abri a lista telefônica não encontrei nenhum Dr. Barros na mesma, para dizer a verdade, não havia nenhum doutor que começasse com a letra “B”.

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Fiquei um pouco intrigado, mas não surpreso, isso não! Depois dos últimos anos aprendi a acreditar que existem muitas coisas que desconhecemos e que, insistentemente ocorrem à nossa volta. E já que o assunto é magia eu também consegui realizar um pequeno truque, que estava se tornando raro para mim: dormir. Mal caí na cama, apaguei e, por uma misericórdia divina, não sonhei. 10. ???? 23 de setembro de 2000 O telefone explodiu por volta das nove horas da manhã, era um sábado. Acho que dormi como um bebê e como tal estava morrendo de fome, queria deixar o "trimtrim" de lado e disparar para a geladeira, mas o som era insuportável. Enfiei a cabeça sob o travesseiro na esperança de que ele realmente explodisse ou parasse, mas acabei vencido pela teimosia do mesmo. Estiquei o braço e dei um gemido ao chocá-lo contra o criado-mudo (?), a dor me fez despertar um pouco mais e notei como o quarto de casal estava menor (??), aquele "trimtrim" estava diferente também, lembro que minha saudosa mulher havia regulado o telefone para um som mais suave e eu não alterara nada na nossa casa (???). Peguei o fone de cor azul, que era sem fio, e fiquei observando-o um pouco 214


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antes de apertar a tecla "talk". Creio que meu pensamento voou para muito longe, pareceu-me até ter retornado para o sono. Balancei fortemente a cabeça de um lado para o outro e atendi, estremecendo por inteiro com o que ouvi (????). Há pessoas que costumam guardar velhos objetos, relíquias, pessoas assim como o próprio Dr. Barros. Eu não tenho esta mania, pelo menos não material, mas trago comigo numa das estantes da mente vários objetos, rolos e rolos de filmes sobre minha vida e a das pessoas que eu amei, das que eu amo. E foi vasculhando nesta estante que encontrei uma velha e gasta esperança. Pois é, ela estava lá, coberta de pó e de outras besteiras, acho que nunca perdi tempo fazendo uma faxina cerebral e olha que em questão de tempo eu fui privilegiado. Agarrei-me a ela novamente, só que agora essa esperança era mais fácil de ser concretizada, ou melhor, mantida. Não tinha mais a expectativa de ter alguém que não me pertencia ao meu lado, só o fato de poder manter uma amizade com essa pessoa já era o suficiente. Eu aprendera a melhor de todas as lições com toda essa doida experiência que passei ou loucura que vivi, sei lá. E lá vinha chegando a própria dona esperança, em carne e osso. Quando a vi estava mais linda do que nunca, os cabelos presos, as roupas próprias para ciclismo em cor verde com detalhes em azul, coladas em seu corpo, moldando o seu corpo; ela se aproximou falando coisas do tipo – Agora tenho 215


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que ficar acordando meu professor para ele cumprir seus compromissos? Que coisa mais chata! Olha que vou arranjar um melhor, hein! As palavras dela passaram por mim, insignificantes. Eu não disse nada a princípio, não tinha nada para dizer. Ao invés disso, soltei minha bicicleta e a abracei, sem nenhuma recusa ou pergunta por parte dela. Fiquei um tempo ali, colado, segurando com um enorme esforço as lágrimas que queriam desabar dos meus olhos castanhos, e o que eu senti foi a mais pura felicidade, soltei um suspiro e antes que a situação se tornasse no mínimo constrangedora, me afastei um pouco dela, mantendo um braço sobre seu ombro direito. ‒ Menina, que bom te ver, já está mais calminha agora? Por este sorriso, se é que foi pra mim, acho que sim. Obrigado pelo abraço, senti muita saudade e precisava roubar um pouquinho desta tua energia para conseguir fazer o percurso de hoje. Vamos? Notei que Pati ia dizer algo, mas se conteve naquele momento, talvez até colaborando para não estragar a alegria que me invadiu, fazendo somente um sinal de positivo com a cabeça para que iniciássemos a marcha. Mais tarde, enquanto conversávamos, ela me contou que a cada dia ficava mais distante de seu marido, as pequenas brigas, os ciúmes e outros fatores continuavam. Eu me sentia agora como se fosse o ex-marido dela (e de certa forma, eu realmente era) escutando-a e fazendo piadas do tipo “Quem 216


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manda casar” e “Procure um professor de ginástica, dizem que eles são ótimos maridos”. A esta altura de nossa conversa, meu salva-vidas me arrastou para um mar mais agitado e eu mentiria se dissesse que não havia gostado da ideia. Na verdade, eu aprendi a nadar muito bem nessas águas, pois foram treze anos de treinamento constante. Ao retornarmos para o parque, alegres e cansados, por motivos diferentes que eu não preciso explicar, passou rapidamente entre nós um cidadão alto, trajado de preto, que parecia e muito com um bruxo que eu conhecia. Não dei muita importância para o cidadão que passou como um raio, ainda mais porque a presença de Pati me tomava toda a atenção, mais mesmo assim consegui perceber que o gigante sorria enquanto cantava uma música, cuja letra achei recordar. “Sonho, sonho, sonho Não deixa ela acordar Que nesta linda noite Ela esteja a rir, jamais chorar E quando a noite chegar ao fim Venha por mim se apaixonar”

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