Ecos 11

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ECOS 11



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Capa e Editoração Eletrônica: E. Reuss. Revisão: E. Reuss, JoeFather e Rosca J. R. Tudor


SUMÁRIO A LUA SOBRE O CASTELO .......................................... 6 ENIGMA ...................................................................... 15 CAMINHOS DIVIDIDOS ............................................. 29 A FRESTA NO DRAKE ................................................ 47 POUSO CEGO ............................................................. 78 SAFÁRI ...................................................................... 104 TETRAEDRO ............................................................. 136 LADY MURPHY ......................................................... 145 DIÁRIO DE BORDO................................................... 152 O BRILHO DAS ESTRELAS ........................................ 186 ENTRE EM CONTATO .............................................. 197


EDITORIAL

A LUA SOBRE O CASTELO Por Rosca Tudor [Perfil do Wattpad]

Desde os tempos mais remotos da História nossos ancestrais chegaram à conclusão de que o melhor adversário que existe são outros seres humanos e, de fato, você encontrará registros de atividades competitivas da antiga China, aproximadamente no ano 4.000 A.C., até formas de combate corporal desportivo entre tribos nativas da América do Sul. No ano 5711 D.C. a humanidade já passou por muita coisa. Menos de um bilionésimo dos humanos ainda residiam no planeta Terra e os pouco menos de dois bilhões que continuavam por aqui possuíam um modo de vida muito diferente do que você tem no começo do Séc. XXI. Já fazia milênios que a humanidade vivia num esquema econômico chamado de hiperprodução. Quando começou a expansão espacial tivemos acesso a muito mais recursos do que precisávamos e, com o advento da produção totalmente


automatizada e plena, iniciada com relíquias chamadas de impressoras 3D, qualquer pessoa pôde produzir em casa aquilo que quisesse. Com isso o antigo sistema de vínculo trabalhista deixou cada vez mais de fazer sentido. Até mesmo alimentos passaram a ser fartos após a criação de fazendas hidropônicas totalmente automatizadas. As pessoas cada vez mais precisavam pagar por menos coisas, até o ponto em que a antiga medicina evoluiu para a bioengenharia e esta para a capacidade de criarem em suas próprias casas as máquinas e substâncias necessárias para mudar e gerenciar sua própria biologia. Houveram catástrofes como guerras e revoltas, além de muito do velho mimimi. Mas a humanidade, um dia, superou isso tudo e realmente evoluiu. Você do Séc. XXI deve achar que a maior evolução humana foi a capacidade de construir mais coisas, e está totalmente enganado. Claro, para conseguir a verdadeira evolução muita coisa precisou ser construída, mas a grande diferença entre um ser humano do Século LVIII e do XXI é o próprio ser humano. Existem muitas histórias para contar sobre os diferentes seres humanos. Dá para dizer que as pessoas mudaram tanto que parecem outras espécies. Seres humanos de formato quase esférico e com casco parecido com o de uma tartaruga que conseguem sobreviver no espaço, outros que possuem os dois sexos totalmente funcionais, outros com características de animais aquáticos para viver em ambientes marinhos ou


fluviais. São muitas mudanças. Mas uma coisa nunca mudou: O ser humano tem uma incrível capacidade de se entediar... e uma ainda maior de superar isso. Um grupo de jovens habitantes da Terra, na faixa de seus 70 anos (sim, pessoas vivem muito mais do que isso em suas plenas juventudes, apesar de que poucos flertaram com a imortalidade, que é o único tédio que ninguém conseguiu superar) procurava algo de útil para fazer. Um deles teve a ideia de fuçar nos arquivos locais e, então, encontrou algo que não era visto há muito tempo: a imagem de um carro. Por séculos a humanidade teve seu cotidiano dominado por essas máquinas. Elas vinham em diferentes aparências e tamanhos, possuíam distintas funções e, além de tudo, davam a forma para as cidades e seus arredores. Tudo era feito para os carros, como se fossem deuses pelos quais as pessoas se devotavam. Máquinas barulhentas e poluidoras (ao menos durante pouco mais que seu primeiro século de existência), facilitadoras da morte e maiores responsáveis pela crise chamada Exploração do Petróleo, que é um dos períodos mais terríveis de toda nossa história. Os humanos são muito menos inteligentes no Século XXI pois não têm acesso às maravilhas que a bioengenharia faz por seus cérebros, mas ao menos possuem a capacidade de se autopreservar. Então, por que o amor pelos carros? Depois de muito estudo o grupo entendeu que nem todas as pessoas amaram tais máquinas, porém ainda se entregam,


voluntariamente ou não, à sua dependência. O grupo pesquisou então os benefícios dos carros e encontraram coisas interessantes. Carros mataram, mas também salvaram vidas. Carros foram o único meio de transporte viável na maior parte dos lugares. Carros serviram como locais móveis de acasalamento e até a moradia de algumas pessoas. Certo... certo? Mas, será que nenhuma dessas funções e benefícios poderia ser substituída ou simplesmente negada, especialmente nos últimos séculos onde foram usados e amados? Deveria haver mais do que isso e a pesquisa continuou sendo feita. Um dia, quando outros assuntos eram pesquisados nos arquivos, uma curiosidade surgiu devido um certo relato. No ano de 1994 D.C. morreu um homem que era considerado herói. Muitos heróis morreram durante o curso da história e isso sempre causou comoção, mas este caso foi diferente. Todo o ritual funerário dele pode ser, sem qualquer dúvida, considerado de longe o maior de toda a história da humanidade em quantidade de pessoas a se fazerem presentes e, também, por ninguém ter sido obrigado a isso. Uma das cidades mais populosas de toda a história, com mais de dez milhões de pessoas (não contando a zona metropolitana) foi parada e silenciada pelos ritos funerários a este homem. Quem ele era? Era um piloto de corrida. Corrida de carros. O que tinha de especial nessas corridas de carro? Por que as pessoas


idolatravam quem tinha como atividade fazer barulho e poluir ainda mais a já muito poluída atmosfera daquela época? O grupo estudou então tais corridas. Os humanos sempre praticaram muitos esportes perigosos e, mesmo no Século LVIII, diferentes tipos de corrida ainda seriam praticadas em certas partes do universo, porém nada parecido com as de carros. Enquanto pesquisavam mais sobre os carros, encontraram poucos documentos sobre como eram feitos. Os velhos vídeos das corridas os impressionavam muito, mesmo sem ainda entenderem direito as físicas e processos de fabricação usados em tais máquinas. Para os padrões do Século LVIII elas eram todas rústicas, quase artesanais, muito limitadas em tecnologia e extremamente complexas. “Olhem este projeto! Mais de dez mil peças e nem consegui encontrar todas as suas páginas”, disse um dos pesquisadores. “Eles faziam essas coisas andarem explodindo substâncias totalmente voláteis em seu interior. Eram todos loucos”, disse outro. Finalmente conseguiram encontrar as plantas completas de dois veículos. Nas ruínas da antiga cidade de Stuttgart, há alguns séculos, foi encontrado um museu soterrado e, em uma de suas câmaras, um cofre. Ali encontraram as plantas e instruções completas de dois carros, assim como as informações para construir as ferramentas necessárias às suas montagens, dicas de como ajustar suas peças, criar o combustível ideal e, por fim, sua pilotagem. Eram milhares de


horas de vídeos e incontáveis páginas de texto, plantas, esquemas de montagem e diversas anotações e ilustrações. Havia até instruções para produzir as tintas usadas. Um bilhete dizia: “Deixo para as futuras gerações as instruções para ressuscitarem nosso modelo mais interessante e também seu mais digno rival. Vocês entenderão a razão disso quando colocarem os dois lado a lado”. Depois de outros muitos anos o grupo finalmente conseguiu montar ambas as máquinas e restaurar as ruínas de um antigo autódromo que existiu a duzentos e quarenta quilômetros a noroeste de Stuttgart, ao redor de um velho castelo, que ainda estava ali. Tudo conforme especificações da época sobre a composição do asfalto e demais materiais. Tudo foi acertado conforme os antigos textos e dois dos pesquisadores foram escolhidos para testar as máquinas depois de treinarem numa simulação virtual desenvolvida com as estimativas do funcionamento de tudo aquilo. Enquanto o autódromo era restaurado ninguém entendia as razões de tal obra, ou sequer da “perda de tempo” do grupo de pesquisadores, mas depois de pronto ninguém mais parecia duvidar da validade do projeto. O ronco do primeiro carro a ser ligado causou alvoroço entre as pessoas, que aos poucos chegavam ao local. O rugido de um animal selvagem, há muito tempo extinto, voltava a ser ouvido. As pessoas desconheciam sua voz, mas era como se seus DNAs tivessem memória própria e nunca esquecessem. O lado mais primitivo


do ser humano recordava as feras que nos caçavam na préhistória, mas nesta encarnação tais bestas não estavam nos opondo e sim se oferecendo em um pacto. A simbiose homem/máquina fez sentido. Uma das máquinas era pintada num tom de vermelho que ninguém ali antes vira e que todos os presentes entenderam como sendo aquele que deveria ser o padrão dessa cor. Uma das cartas deixadas no cofre dizia que “esta máquina é a última e mais refinada da antiga maneira de se fazer superesportivos”. Todos os presentes queriam chegar perto e colocar a mão na lataria enquanto sentiam o calor do motor e o cheiro do combustível queimando. A segunda máquina foi chamada de “o primeiro superesportivo da nova geração e bússola de design para todos que vieram depois”. Possuía um design mais robusto, mas não menos belo que o carro vermelho. Sua pintura prateada refletia o sol matutino acrescentando um leve azul ao brilho. “Como as pessoas conseguiam pensar nesses tons de cor?”, questionou um curioso, deixando os pesquisadores sem uma resposta objetiva. “Não existe bioengenharia que substitua o bom gosto”, brincou um dos pesquisadores, arrancando algumas risadas da multidão. Os pilotos ficaram o dia inteiro levando as pessoas para passear nos vinte e um quilômetros do velho autódromo. O traçado era intimidador, cheio de curvas fechadas próximas demais de muretas, morros e barrancos, cercados por uma


antiga e escura floresta. Com o passar das voltas os dois pilotos pegavam intimidade com as máquinas e as pilotavam com cada vez mais confiança. Pouco antes do almoço já conversavam sobre maneiras de guiarem os carros com um pouco mais de velocidade e, ao final da tarde, já tinham todas as cento e cinquenta e quatro curvas mapeadas em suas mentes, discutindo maneiras de serem ainda mais rápidos nelas. À noite milhares de pessoas já haviam chegado ao antigo autódromo. Seria muito fácil para a multidão olhar a corrida de perto, pois a maioria poderia voar ou usar qualquer outra tecnologia de monitoramento, mas fazia mais sentido se sentarem nos pequenos morros nas laterais da pista, sobre a grama úmida e entre a flora e fauna do local enquanto enxergavam tudo com os próprios olhos e ouviam com os próprios ouvidos. “Olha lá, estão chegando!” Uma criança dizia toda vez que os rugidos se aproximavam, como se respondesse às vozes dos antigos deuses, que ecoavam ao vento gelado, lhe saudando após eras de esquecimento. Ao longe os faróis brilhavam como labaredas de fogo queimando em meio às incontáveis árvores daquela floresta. Dois homens faziam aquilo que os seres humanos sempre fizeram de melhor, que é superar... sempre superar… superar o meio… superar uns aos outros... superar suas próprias limitações... e que a lua que brilha sobre o castelo nunca nos deixe esquecer disso.


“O último carro que será construído será um carro esportivo” Ferry Porsche Parabéns à divisão esportiva da Porsche pelos seus setenta anos e obrigado a todos que enviaram seus textos à décima primeira edição da Revista Ecos. Vocês ajudaram a humanidade em sua busca pela superação.


E N I G MA Cristina Faraco

[Perfil do Wattpad]

Vencedor do Concurso Ecos Sci-fi

Primeiro, foi o som. Depois, as luzes que começavam a tomar uma tímida definição. Ela abriu os olhos, ainda bastante tonta e sem entender o que acontecia. Não sabia onde estava. Assustadoramente, não se lembrava de quem era. Como se toda a sua memória de uma vida inteira tivesse sido apagada. Levantou-se com dificuldade e se apoiou numa parede fria. Observou ao redor e deu-se conta de que estava em um beco escuro. Logo à frente, havia uma via pública onde criaturas estranhas circulavam, com múltiplos membros articulados e um crânio alongado. As luzes da cidade sinistra ofuscavam a


sua visão. Prédios em ruínas contrastavam com estruturas metálicas de tecnologia avançada. Suas costas ardiam e percebeu que seu pulso estava inchado. Nele, estava a tatuagem recente de um desenho, uma estrela de cinco pontas. Com uma sensação de perigo atrás da orelha, a garota decidiu se embrenhar pela escuridão da cidade, se escondendo de qualquer um que aparecesse. Por mais que se esgueirasse pelas sombras, teve a impressão de que alguém ou alguma coisa a seguia. Entrou numa espécie de cano de cabos elétricos e subiu por tubulações até chegar ao alto de um pequeno edifício. Queria enxergar o panorama da cidade e talvez ter algum resquício de memória sobre onde estava. Ficou feliz em perceber que tinha os membros fortes e não descansou até chegar ao topo, numa espécie de terraço cheio de antenas e ferragens. Descansou por um breve momento, sentindo fome e sede. Ficou com medo de morrer sem nem ao menos saber quem era ou o porquê de aquilo estar acontecendo. Naquela ocasião, decidiu ser forte. Levantou-se com cuidado para não ser vista. Olhou o panorama em volta do prédio e percebeu estar em uma larga megalópole, cheia de símbolos estranhos. Nada que conseguisse decifrar. Não bastasse desconhecer sua identidade, encontrava-se em um mundo desconhecido, sem compreender sua linguagem ou meios de comunicação. Era como a Terra, mas tudo estava diferente.


ENIGMA – CRISTINA FARACO Ao longe, avistou uma imensa torre, com uma grande estrela de cinco pontas rodeada de luzes douradas, girando como um farol. Olhou para o seu pulso tatuado e acreditou ter uma relação com aquele monumento. Ela tinha que fazer algo para descobrir sua origem. Seguir em direção à torre parecia a ação mais sensata a fazer. Precisava encontrar respostas sobre si mesma. De repente, dois robôs sentinelas enormes apareceram do céu e apontaram um facho de luz diretamente em seu rosto, emitindo um som metálico numa linguagem desconhecida. Ela pôs a mãos sobre os olhos, protegendo-se da luz. Os aerobots insistiram com o mesmo som metálico, como se a intimassem sobre algo. - Eu não falo a sua língua! As máquinas mudaram o padrão dos sons e trocaram de cor. A garota sentiu medo. Por instinto de sobrevivência, se atirou rolando no chão e entrou por uma tubulação, pequena o suficiente para barrar a entrada das máquinas. Ela desceu manualmente por uma escada, passando por um túnel de cabos escuro. Viu um vulto humanoide ao fundo de uma entrada. No início, sentiu pânico. Mas o fato de existir a possibilidade de haver mais um humano além dela a confortou, de certo modo. Instintivamente, decidiu sair do tubo da escada e entrar no túnel escuro, onde avistara o vulto. Caminhou lentamente dentro da escuridão, com o coração acelerado e a respiração

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ENIGMA – CRISTINA FARACO ofegante. Suas pupilas estavam dilatadas, tentando enxergar cada movimento que aparecesse. Sem perceber, alguém a pegou por trás e cobriu sua boca com a mão. - Shhh... não grita! – sussurrou uma voz masculina. Ela mordeu a mão com força, a ponto de sentir o gosto do sangue em seus lábios. Foi para trás, encaixando seu corpo no ventre do homem, puxando sua cabeça por cima e derrubandoo para frente, no chão. - Calma! Calma! – o homem tentou proteger-se com as mãos, enquanto ela o chutava em reflexo pelo próprio desespero. Quando a garota viu que o homem não reagiria, ela parou de atacar e se encostou na parede úmida do túnel escuro: - Quem é você? O que faz aqui? - Caramba! Você é forte, heim? - Fala! Quem é você? - Shhh... – disse o homem, com a mão sangrando enquanto colocava o dedo na frente da boca, pedindo silêncio. – Fale baixo! Ou eles vão nos encontrar e nos assimilar! - Eles quem? Mais calmo, o homem de pele morena e olhos negros se levantou, estendendo a mão ensanguentada em sua direção: - Eu sou Leonardo. Estou aqui pra te ajudar a salvar o nosso povo!

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ENIGMA – CRISTINA FARACO A garota o fitou com olhar desconfiado, mas pensou que ele parecia ser inofensivo. Decidiu se apresentar: - Eu sou... sei lá quem eu sou. Pode me chamar de Enigma, se assim o quiser. – e estendeu sua mão para cumprimentá-lo. – desculpe-me pela mordida! Leonardo rasgou um pedaço da própria roupa para amarrar sobre a ferida. Sem muito tempo para explicações, pegou a mão da jovem e disse: - Temos que sair daqui, antes que nos peguem! *** O homem, apesar de não ter um corpo atlético, se embrenhava habilmente pelas tubulações e buracos da megacidade. Desceram pelo edifício até o subterrâneo, onde existia um labirinto de túneis no meio do esgoto e o cheiro de excremento era insuportável. Chegava a arder os olhos e as narinas. Duas aeromotos estavam estacionadas. - Pegue! – Leonardo ofereceu uma blaster laser para a jovem. – Se você me prometer que não vai atirar em mim! Enquanto atravessavam sobrevoando o rio de dejetos, cheio de ratos, baratas e outros comensais, o misterioso homem contou-lhe alguns fragmentos do que sabia: - Há cento e vinte anos, quando a humanidade recém se recuperava de uma grande guerra mundial, recebemos contato

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ENIGMA – CRISTINA FARACO de uma civilização além do nosso sistema solar. Foi o primeiro contato com uma outra espécie alienígena inteligente, pois a humanidade só havia encontrado bactérias e outros micróbios nas luas de Júpiter e em cometas errantes. Imagine o entusiasmo de toda a classe científica com a possibilidade de trocar tecnologias, conhecer novos materiais e métodos mais eficientes de se produzir energia. - Imagino que não foi tão romântico quanto esperavam... - O que aconteceu foi o pior. Não só eles eram tecnologicamente mais avançados, mas eram exploradores vorazes, como nossa humanidade foi há séculos atrás. O planeta Terra se tornou uma jazida de minério para suas máquinas e nós, humanos, fomos usados como tração e mão de obra escrava a trabalhar em suas indústrias. - Mas, não houve revolta? - É claro que houve! Entretanto, ao perceber a insubordinação dos humanos, os seres de Narmor, como nós os chamamos, criaram um método de engenharia genética de assimilação de DNA. Eles desenvolveram um processo de injeção de vetores virais na corrente sanguínea que parasitam os ácidos nucleicos. Desse modo, enxertam informações capazes de alterar a conformação física e fisiológica de todo o sistema nervoso central e periférico. É como uma reprogramação genética de obediência. - E o que EU tenho a ver com isso? – perguntou Enigma, temendo a resposta.

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ENIGMA – CRISTINA FARACO - Você é o nosso mapa para escaparmos daqui! - Mapa? Que mapa? Eu não sei de merda nenhuma de mapa! Nem sei, ao menos quem eu sou, ou de que porcaria de lugar eu vim! Só sei que acordei tonta e sem me lembrar de nada em um beco escuro desta cidade bizarra! - Você é um dos 1500 humanos da colônia intergaláctica Exodus, criada clandestinamente para a fuga de sobreviventes não assimilados. - Então, existem humanos como nós fora daqui? - No Laboratório de Estudos Espaço-Temporais, no silêncio do subterrâneo e longe dos olhos dos Narmors, foi desenvolvida uma nova tecnologia de salto espacial. Foram usados cálculos de relatividade e os conhecimentos do setor de xenobiologia do que sobrou do Governo Mundial. Após o rastreamento quântico, foi encontrado um planeta irmão da Terra, com condições semelhantes de carbono, oxigênio e hidrogênio, além de vida animal e vegetal. - Então, por que eu estou aqui? – interrompeu impaciente, mas o homem continuou. - Um único cruzador espacial com 1500 pessoas conseguiu dar o salto até o planeta, momentos antes de um ataque em massa que destruiu toda a doca espacial, as naves interestrelares e milhares de sobreviventes não assimilados. Quem sobreviveu, a maioria, teve seu DNA alterado. Os poucos que escaparam, como eu e mais uma centena, vivemos no subterrâneo, onde os Narmors não conseguem nos alcançar.

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ENIGMA – CRISTINA FARACO - Você não me respondeu minha pergunta. – insistiu a garota. - Há alguns anos, conseguimos consertar um pequeno módulo de salto, capaz de enviar cerca de cem pessoas para a colônia Exodus. Porém, perdemos a localização do planeta com a destruição do laboratório original. Desde então, mandamos ondas hipersônicas de comunicação criptografadas para todas as direções do cosmos. - E? - Há poucas horas, recebemos uma resposta da colônia. Você! - Ainda não compreendi meu papel nessa história! - Por todos estes anos em que mandamos mensagens criptografadas, os engenheiros de Exodus reproduziram parte da tecnologia de salto. Para evitar que os Narmors interceptassem a localização da colônia e arruinassem tudo, projetaram um modelo simplificado que permitiu o deslocamento de apenas um indivíduo que pudesse nos indicar o caminho de volta. Como sabiam da possibilidade de perda da memória durante o deslocamento, pois não havia uma cápsula que neutralizasse seus efeitos, eles deixaram um mapa em algum lugar do seu corpo! - Como assim? Eles me usaram pra voltar pra esse inferno, roubando a minha memória e a minha vida? - Eles não te usaram! Você se voluntariou.

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ENIGMA – CRISTINA FARACO - Ah, claro! E por acaso, eu também sabia que perderia a memória. Leonardo ficou em silêncio, pois viu que discutir com Enigma não levaria a lugar algum. A garota calou-se e sentiu um aperto no peito. Tinha vontade de gritar e espernear, mas não poderia, estando no meio daquela merda toda. E não conseguia acreditar naquela história. - Chegamos! – disse Leonardo, esboçando um sorriso, pela primeira vez. Saindo do túnel, chegaram a uma enorme galeria subterrânea, com vários passeios e andares, onde casebres e pessoas se amontoavam como um pombal. Apesar do acesso ser pelo esgoto, o lugar era mais limpo e havia um frescor de ar que descia pelos tubos de ventilação no teto. Havia poucos homens e mulheres. A maioria era de jovens e crianças que se ajoelharam quando ela atravessou o caminho principal. - Eles pensam que você os irá salvar. - Eu não sei salvar nem a mim mesma, vou salvar a quem? - Não subestime a si mesma. Veja o estrago que você me fez quando nos encontramos! Enigma deu um sorriso nervoso, então Leonardo a levou para um casebre com uma estrela de cinco pontas sobre a porta. A garota olhou para o próprio pulso. - Este é Jorel, nosso engenheiro chefe! Na verdade, nosso único engenheiro não assimilado.

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ENIGMA – CRISTINA FARACO Jorel era um homem magro e franzino, mas seus olhos brilharam quando viu Enigma entrar no barraco. - O mapa! - Sinto te dizer, mas não sei de porra de mapa nenhum! – falou, direto e reto. - Você não precisa saber do mapa. – disse Jorel, calmamente. – Você é o mapa! Enigma fez uma cara surpresa mas, ao mesmo tempo, incrédula. Uma mulher com um manto verde a pegou suavemente pelas mãos e a conduziu para uma sala nos fundos da tenda. Era uma sala pequena, com uma mesa e alguns computadores velhos, porém funcionando. - Tire a roupa! - Como? – falou Enigma assustada, não gostando daquela história. - Tire a roupa. Confie em mim! Os homens estão do lado de fora da sala. Só eu estou aqui. Muito desconfiada, tirou a blusa e as calças, sentindo o frio arrepiar os pelos do corpo. A mulher de manto verde observou atentamente cada curva do seu corpo. Depois disse: - Vire-se de costas. Quando Enigma se virou, havia em suas costas um mapa de todo o quadrante alfa, com os cálculos necessários para o salto até a colônia Exodus. A mulher sorriu, com lágrimas nos olhos. Digitalizou a imagem e pediu para que a garota se

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ENIGMA – CRISTINA FARACO vestisse novamente. Entregou os cálculos para Jorel, que esboçou um largo sorriso enquanto falava alto, com entusiasmo: - Chamem todos! Peguem as armas! Vamos saltar hoje à noite e deixaremos esses Narmors comendo poeira neste planeta arruinado! *** Eram, ao todo, uma centena de pessoas em peregrinação pelos esgotos subterrâneos. Enigma olhava pra trás, para aquele mar de gente e se sentiu mal por não se achar digna de tamanha missão. Ela não era uma heroína perfeita, com virtudes e atitudes corretas. Olhou para o seu blaster, e não estava muito segura se aquilo adiantaria alguma coisa. Só sabia que estava pronta para estourar a cabeça cônica daqueles seres cheios de pernas articuladas. O grupo parou em frente a uma grande tubulação. - Aqui é a entrada da torre da estrela! Nosso caminho para Exodus está lá no topo do farol! Temos que chegar lá antes que os Narmors nos peguem! - E se nos pegarem? – gritou um jovem menino, lá atrás. - Então, a gente atira neles! É matar ou morrer. Não seremos assimilados!

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ENIGMA – CRISTINA FARACO O grupo começou a subir, lentamente, pelas escadas. Se fossem encontrados, seria um verdadeiro massacre. Havia mais jovens e crianças do que adultos capazes de lutar. Enigma estava com um mau pressentimento. Estavam próximos do topo quando um barulho estranho veio se aproximando pelos túneis adjacentes. Era como patas de caranguejos correndo na direção do grupo. Enigma olhou para baixo e viu dezenas de Narmors correndo e subindo pelas paredes do túnel como aranhas. - Subam! Rápido – ela gritou, inutilmente. Os humanos armados começaram a atirar com seus lasers contra as criaturas, que eram maiores e mais ágeis do que as pessoas. Jorel, que estava na frente, gritou com todos pulmões: - Vamos! Ainda temos chances de escapar! - E os outros? – questionou Enigma, apavorada com a cena de crianças e jovens tendo suas cabeças arrancadas enquanto os outros acertavam apenas alguns alienígenas pelo caminho. - Os outros já estão mortos! Fuja ou morra! No fim da escada, apenas uma dezena de pessoas conseguiu chegar até a máquina de salto espacial. Jorel ativou o sistema e digitou os cálculos passados pelo mapa na tatuagem de Enigma. - Subam! Na plataforma de transporte!

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ENIGMA – CRISTINA FARACO Desesperados, os poucos humanos sobreviventes correram para a plataforma, enquanto a máquina se preparava para dar seu único salto antes de ser destruída pelos Narmors. Leonardo correu, subindo os degraus, enquanto a garra articulada de um dos alienígenas o alcançou pela perna e o puxou de volta para baixo. Enigma, apavorada, saiu da plataforma apontando sua blaster na cabeça horrenda do Narmor. Ela apertou o gatilho em potência máxima explodindo os miolos da criatura, que se espalharam como uma gosma negra e fedida. Outros Narmors começaram a entrar na sala de transporte e Enigma ergueu Leonardo pelo braço, arrastandoo pela cintura de volta para a plataforma, segundos antes de todos desaparecerem com um imenso clarão. *** Primeiro, foi o som. Depois, as luzes que começavam a tomar uma tímida definição. Ela abriu os olhos, ainda bastante tonta e sem entender o que acontecia. Não sabia onde estava. Assustadoramente, não se lembrava quem era. Como se toda a sua memória de uma vida inteira tivesse sido apagada.

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ENIGMA – CRISTINA FARACO

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CAMINHOS DIVIDIDOS Diego Laucsen

Caminhos Divididos obteve o 2º Lugar no Concurso Ecos Sci-fi

A luz entrou rasgando os olhos. Estava acordando, mas se sentiu como se estivesse nascendo. Quando a porta do compartimento em que se encontrava se abriu, ela caiu mole, como se estivesse morta. Viu o chão se aproximar sem conseguir fazer nada para se proteger. Seus músculos estavam fracos e flácidos. Bateu a testa contra a grade de metal do chão e um brilho tomou conta de sua mente. As lembranças… Essas eram turvas. Lembrava de ser um homem. Se alistou nas forças armadas e serviu na frota espacial. Lembrava de desertar e se tornar um

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CAMINHOS DIVIDIDOS – DIEGO LAUCSEN mercenário. Abandonava sua esposa e seus filhos para conseguir dinheiro. Também lembrava de ser uma mulher. De quando teve o primeiro namorado. De ser médica e salvar vidas. Essas duas lembranças não tinham nada a ver uma com a outra. Não encaixavam direito na cabeça dessa pessoa que acabou de acordar. Enquanto se debatia no chão, seu corpo, sensível e magro, escorregava pelo líquido gorduroso que havia se derramado. Quem a olhasse, imaginaria uma girafa que havia acabado de sair do ventre de sua mãe, se debatendo no líquido amniótico. Sozinha, naquele corredor metálico, sentiu aos poucos sua visão se acostumar e começou a enxergar melhor. Ali haviam milhões de outras cápsulas como aquela da qual ela saiu, mas todas estavam fechadas com portas de vidro, refletindo o brilho esverdeado que vinha de dentro. Tentou se levantar, mas a fraqueza era maior. A mão escorregou e bateu com a cara, mais uma vez, no chão frio. Ali ficou até sentir calor outra vez. Quente e protegida por um roupão, acordou em uma maca. Estava sozinha em um quarto branco com apenas uma cama e uma janela opaca. Em seu braço havia um cateter ligado a uma bolsa com líquido amarelo. Os olhos ainda ardiam e o estômago se embrulhava.

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CAMINHOS DIVIDIDOS – DIEGO LAUCSEN Resistiu ao primeiro impulso de se levantar e sair dali. Se mexeu sob o roupão e acariciou a pele ardida de seu antebraço. Estava todo cortado e doía. Como os músculos estavam melhores, imaginou que teria passado por uma terapia de acupuntura para reativar os músculos. Quando tentou se mover para sair da maca, a porta se abriu. Diversos enfermeiros e enfermeiras entraram e a puseram de pé. Conseguiu resistir, mas não aguentaria muito tempo. Com ajuda, foi levada para uma outra sala, onde se sentou e esperou. — Senhorita Dora, — disse um rapaz de jaleco branco que entrou por uma porta. — Desculpe a demora. Eu sei que você deve estar se sentindo mal nesse momento. — O que... — Tentou falar, mas a voz engasgou na garganta. Parecia que deveria treinar a fala como se fosse uma criança. — Calma. Está tudo bem. Aqui é a usina de clonagem de Alpha Centauri. — Eu fui clonada? — Perguntou, com a voz em baixo tom. Mesmo assim, a garganta doeu. — Não, — respondeu o enfermeiro, em tom brincalhão. — As usinas trabalham como uma reserva. Se você morrer, seu clone assume o seu lugar.

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CAMINHOS DIVIDIDOS – DIEGO LAUCSEN — Ah! — Seus pensamentos começaram a fervilhar, como se o cérebro tivesse acordado só naquele momento. — Então, eu… morri! — Aí é que está o problema que é o culpado pela minha demora para a encontrar hoje. Seu corpo estava marcado para descarte. Ele deveria ser descartado e não acordado. — E porque eu deveria ser descartada? — Porque faz mais de quatro anos que seu verdadeiro corpo faleceu. Seu clone, digo, você, deveria ter acordado há quatro anos. Isso acontece, às vezes. Um a cada mil falha e não acorda. Quando marcamos como descartado, fica por cinco anos na usina e então o corpo é decomposto. E tinha outro problema tabelando nas paredes internas de seu crânio. Algo que era confuso. Algo que não compreendia. O médico falaria disso também? — Entretanto, — continuou o enfermeiro. — Como seu despertar não causa nenhum problema social, estamos lhe autorizando a continuar sua vida. Pena que seu antigo emprego como médica não está mais disponível. Dora foi deixada em uma sala com roupas para vestir. Apesar de já estar limpa, tomou outro banho. Sentia como se a gosma ainda estivesse sobre seu corpo. No banho, acariciou a si mesma. Sua pele era macia e branca. Anos privada do sol. O cabelo estava bonito e longo. As

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CAMINHOS DIVIDIDOS – DIEGO LAUCSEN pontas estavam todas quebradas e irregulares, mas não deu muita atenção àquilo. Se secou e foi para a frente do espelho, onde vestiu uma calcinha. Depois pegou um sutiã. Foi ali que seu cérebro entrou em parafuso. Não tinha a mínima ideia de como se colocava um sutiã. Talvez fosse melhor ficar sem mesmo. Se olhando no espelho viu a imagem do que era. Ela era uma mulher bela. Quando voltasse a se alimentar e tomasse sol, pareceria um ser humano normal. Acariciou a pele mais uma vez com estranheza. Começou em sua pelve, subiu esfregando a barriga até encontrar um dos seios. Um arrepio tomou conta do corpo. Os seios, grandes e fartos, precisariam de suporte ou ficariam balançando e incomodando. Então, vestiu o sutiã. A facilidade em vestir a peça lhe espantou. Mas, como? Não sabia como, mas o vestiu. Se aproximando do espelho, olhou fundo nos seus próprios olhos. Aqueles olhos não eram estranhos, mas não eram seus. Aquele não era seu corpo e não era Dora. Ele era Jordan. E estava no corpo de outra pessoa. ***

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CAMINHOS DIVIDIDOS – DIEGO LAUCSEN Dora… ou Jordan, já havia se acostumado e se adaptado à sociedade. Conseguiu um emprego em um hospital. O currículo de Dora era fenomenal e, mesmo com tudo que estava acontecendo, se adaptou fácil e começou a ter uma vida normal. As habilidades médicas estavam no conjunto de coisas que Jordan não sabia, mas fazia de modo automático, assim como vestiu o sutiã no primeiro dia. Ele lembrava de ser um soldado, bem treinado, de corpo forte e daqueles que se destacavam em seu pelotão. Pilotava naves e sabia atirar com elas. Ao mesmo tempo, tinha todo o conhecimento de Dora. Lembrava dos estudos e dos anos de experiência como médica. Aos poucos, as memórias começaram a se juntar e, em alguns momentos, se sentia esquizofrênico, quase perdendo o controle de si. Havia um ponto que ainda não havia conseguido atingir. Tanto nas memórias de Jordan, quanto nas memórias de Dora. Ambos se conheciam. Mas, como? Para evitar qualquer problema, decidiu que não faria nada até que descobrisse o que estava acontecendo. Então, não contatou nem a esposa de Jordan e nem a família de Dora. Entretanto, a mente era perversa e confusa. Foi em um lapso de loucura que resolveu ir mais a fundo, pôr tudo a

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CAMINHOS DIVIDIDOS – DIEGO LAUCSEN perder e tentar descobrir, de uma vez por todas, o que estava acontecendo. Entrou em contato com a usina de clonagem, mas não conseguiu muitas informações. Era difícil falar e investigar sem contar o que havia acontecido, afinal, eles ainda não sabiam que ele estava no corpo errado. Então, resolveu pagar um detetive para lhe auxiliar. Também não foi sincero com ele. Em sua declaração, disse que só queria entender porque demorou quatro anos para acordar. O resultado final da investigação foi o de que um acidente havia acontecido. Há quatro anos, a usina havia sido atingida por um meteoro e muitos clones foram perdidos. Segundo as informações, todos os clientes que perderam o corpo foram chamados para atualização. Foi então que Jordan quebrou a primeira barreira. Se fingindo uma parente distante de Dora, ligou para o hospital onde ela trabalhava antes dos eventos e descobriu que havia uma carta lá, desde os tempos em que a usina foi atingida e que ela… — Suicídio? — A notícia entrou em sua cabeça como um tiro. — Como isso aconteceu? — Dora foi encontrada em seu quarto privativo, no hospital, com um tiro na cabeça e a arma em sua mão. — A voz do outro lado pareceu chorar. — Ela parecia bem, não sei o que aconteceu.

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CAMINHOS DIVIDIDOS – DIEGO LAUCSEN Na teoria da clonagem, havia uma coisa que chamavam de Espaço de Memória. O espaço de tempo entre a última sincronia de memórias e o evento que acabava com a vida da pessoa. Quando o ser humano acordava em seu casulo, todas as memórias eram injetadas novamente no corpo para reforçar a mente. Neste caso, Jordan, ou Dora, só lembraria até o momento em que foi sincronizar os seus dados pela última vez. Ele não conseguia entender porque Dora se suicidou. Sabendo que houve um acidente na usina, e ainda possuído pela curiosidade irresistível, foi até lá e usou todo seu carisma. — Soube que aconteceu um acidente anos atrás e eu não havia sido avisada. — Todos foram avisados, senhorita Dora. — A advogada da usina estava um pouco sem confiança. — Na verdade achamos que não poderíamos fazer nada para lhe ajudar. — Como assim? — Dora gritava e a voz ecoava na sala. — Eu pago um serviço muito caro e, quando perco a vida, sou esquecida! — Me desculpe, senhorita. — Agora, a advogada estava quase perdendo o controle para o nervosismo. — Seu casulo estava estragado. Assim como o de seu irmão… — Irmão? — Sim. Você e seu irmão, Jordan, vieram e fizeram o plano juntos. No acidente o casulo do seu irmão foi destruído e o

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CAMINHOS DIVIDIDOS – DIEGO LAUCSEN seu foi danificado. Por isso foi marcado como descarte. Os engenheiros falaram que o seu nunca mais abriria e você não sairia com vida de lá. Jordan terminou aquele dia em um bar, dando goles em um copo de whisky sem gelo. Pensando sobre o que descobriu e que, apesar de bizarro, estava tudo claro. O corpo do irmão, ou seu verdadeiro corpo, foi destruído no acidente e Jordan havia assumido o corpo de Dora. Mas, onde Dora estaria agora? Onde estão suas memórias e sua consciência? Ela já teria deixado esse mundo? O dia terminou sem essa resposta. Terminou no fundo de uma garrafa de whisky. *** As semanas se passaram e Jordan resolveu ajeitar as últimas pontas que faltavam. Primeiro, descobriu onde a sua família vivia e entrou em contato. Sabia que seria difícil, pois Jordan era quem estava no controle de Dora e Dora é quem encontraria sua esposa. Ver sua esposa, seus filhos, seria complicado. Ela poderia já ter outro homem. Não estava preparado para isso. O que encontrou estava muito longe do que esperava. Anne tinha uma boa vida. Apesar de Jordan ter desertado

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CAMINHOS DIVIDIDOS – DIEGO LAUCSEN quando mercenário, voltou a trabalhar para a frota espacial de maneira que, depois de sua morte, sua família foi presenteada com uma boa grana por parte da companhia em que era empregado. Os filhos pareciam felizes, estavam grandes e Julian já tinha até namorada. Chorou ao ver a ex-esposa caminhando com seus filhos. — Sempre gostei de você Dora, — disse Anne. — Seus sentimentos me comovem. Ela mal sabia que, quem chorava, era Jordan. Anne trabalhava, mas ganhava pouco dinheiro. Dora conseguiu convencê-la a aceitar um pouco de ajuda. Conseguiu um plano de saúde gratuito em seu nome e os três ficaram muito felizes. Jordan também ficou. A parte mais estranha de tudo isso foi entrar em contato com o lado da história de Dora. Encontrou o ex-namorado dela. Ao menos eram namorados quando tudo aconteceu. Achou que seria impróprio, sabendo que ela havia se suicidado. O ex-namorado podia ter sido o motivo, mas o encontro foi caloroso. Denis a convidou para jantar em casa. Ele, agora tinha uma namorada, uma loira magra que não tinha um décimo da beleza de Dora. Jordan se sentiu péssimo por pensar daquele

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CAMINHOS DIVIDIDOS – DIEGO LAUCSEN jeito, mas havia algo dentro do corpo de Dora que falava mais alto. Ela ainda gostava dele. Entretanto, Jordan não gostava de homens. Não fazia sentido continuar com aquilo. Houve um momento que a namorada de Denis foi ao banheiro e ele lhe lançou um olhar que ela bem conhecia. Seus hormônios explodiram e, se não fosse importuno, o agarraria ali, tiraria toda sua roupa e iria até o fim, sem temer as consequências. Jordan foi para casa com o corpo de Dora pegando fogo. Depois de um banho gelado e de um pote de brigadeiro, pegou sua mala e foi para o destino final. Sua mãe. *** A reunião com a mãe foi tensa. Houve horas de lágrimas, tanto por uns que voltaram quanto por uns que se foram. Depois de três dias comendo a boa comida da mãe, ela trouxe um outro assunto à tona. — Dora, eu sei que é chato esse assunto, ainda mais agora. Antes do que aconteceu, você tinha criado uma poupança para

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CAMINHOS DIVIDIDOS – DIEGO LAUCSEN mim, mas partiu com a senha. Eu estive precisando muito desse dinheiro. Dora era sensível. Às vezes, era má, mas se sensibilizava fácil e poderia se magoar com a mãe falando desse assunto em uma situação dessas. Já Jordan era direto! Se havia dinheiro em algum lugar, deveria ser usado. Entretanto, suas memórias por parte de Dora estavam nebulosas sobre a senha da conta. Lembrava de algumas letras e números, mas o sistema não autorizava. Quando retornou para sua cidade, foi direto ao banco onde tinha conta. Depois de um longo procedimento, teve seus dados recriados, de modo que poderia voltar a acessar sua conta. — Está tudo aqui, Dora — disse o funcionário do banco que fez o procedimento. — Só que esta conta está vazia. — Como assim? — Assim! — O funcionário estava tentando ser engraçadinho para manter as coisas calmas. — Há registro de muitos depósitos até quatro anos atrás. Depois, há um saque feito há uma semana. Todo o dinheiro foi retirado. — E, quem fez esse saque? — A senhora. — Eu? Mas eu não estava aqui. — O saque foi feito em uma filial, em Sirius. Foi agendado pelo sistema e retirado, em pessoa.

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CAMINHOS DIVIDIDOS – DIEGO LAUCSEN Jordan havia fracassado na jornada até o banco. Não era o dinheiro que queria. Ajudaria a sua mãe da mesma maneira. Seu salário, no hospital, era muito bom. O que Jordan queria saber era o que estava acontecendo. Quem havia pego aquele dinheiro? *** Jordan não passou um dia sequer sem enviar mensagens de voz e texto para a filial de Sirius na intenção de descobrir quem tinha pego o dinheiro há tão pouco tempo. Viajar agora seria inoportuno, depois de passar dias fora do trabalho. Evitou ao máximo se deslocar até Sirius. Uma semana depois de inúmeras tentativas, uma ligação veio com mais uma surpresa. — Senhorita Dora — disse a voz do outro lado. — As investigações do seu caso, na usina de clonagem, foram concluídas. Descobri que o seu casulo foi sabotado. O problema não era mecânico e nem elétrico. O programa dele foi alterado para não funcionar. Por isso você não acordou. Depois dessa notícia, a fúria tomou conta de Jordan. As coisas estavam ficando muito estranhas para serem deixadas daquela forma. Sem se explicar, avisou que faltaria ao trabalho por tempo indeterminado e viajou para Sirius. Chegando lá, não perdeu tempo e foi até a filial do banco.

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CAMINHOS DIVIDIDOS – DIEGO LAUCSEN — Aqui no sistema consta que foi você, Dora — disse o funcionário. — Você ligou e retirou o dinheiro. — Impossível! Eu estava trabalhando em Centauri e não vim até aqui pegar esse dinheiro. Depois de meia hora de escândalos, segurança e até polícia, todos estavam na sala de vigilância, onde um vídeo mostrava um homem entrando no momento do saque, conversando com um funcionário e saindo com uma mala de dinheiro. — Evidentemente, não foi a senhora. — Claro que não. Agora, como esse homem conseguiu pegar o dinheiro? — Você deve ter dado a senha para ele. Depois de mais meia hora de escândalos e confusão, terminaram em uma delegacia onde Jordan daria entrada em um processo em nome de Dora. Jordan não estava satisfeito. Não queria esperar a lenta justiça fazer algo. Ele faria por conta própria. Sacou uma boa grana e pagou um outro detetive para lhe ajudar. — Quero pagar o submundo por essa informação. Gangues, máfias, quem você conhecer. Ele pediu o dobro por isso e Jordan pagou. Também comprou uma arma, uma roupa escura, colete e amarrou o longo cabelo. Com toda a grana que havia sido retirada pelo homem misterioso, alguém veria uma pessoa suspeita gastando mais da conta ou comprando um carro.

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CAMINHOS DIVIDIDOS – DIEGO LAUCSEN Mas, quem pegou o dinheiro, foi cuidadoso. Descobriram nada. Dessa vez, Jordan deu a última cartada. Pegou todo o dinheiro que tinha e comprou criptomoedas em uma casa de trocas clandestinas. Usou todo esse dinheiro para contratar um hacker. — Descubra de onde esse acesso veio. Em três dias, o hacker havia descoberto o IP de acesso e, por consequência, o endereço. Armado, Jordan seguiu até a casa no endereço marcado. Chegou enfiando o pé na porta, mas o meliante era esperto. No mesmo momento, ele pulava a janela, estilhaçando os vidros. Jordan desceu a tempo de ver o homem correndo no outro lado da rua. O corpo de Dora não era bom para essas coisas. Ela cansava fácil e era fraca. Ao menos, Jordan ainda tinha seu raciocínio rápido, então, seguiu sem o perder de vista. A perseguição se deu pelas ruas e, depois, por uma linha de esgoto grande que desembocava em um túnel de trem. Subiram as escadas que davam acesso a um edifício e, depois de vinte e três andares, o corpo de Dora estava em pedaços, implorando por descanso. Quando Jordan abriu a porta final, seu alvo estava lá, na beirada do prédio mais alto da cidade. Apontou a arma para o estranho e se aproximou.

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CAMINHOS DIVIDIDOS – DIEGO LAUCSEN — Quem é você? O homem se virou e tirou o capuz. — Quem é você? — Dessa vez Jordan insistiu, mas sabia a resposta. Era ele mesmo. — Eu sou você — disse o homem e a voz ecoou como uma gravação. Depois gargalhou. — Ora, Jordan, você sabe quem eu sou. Aquele jeito insolente de falar só podia ser… — Dora! Dora no corpo de Jordan também levantou a arma. Agora ambos apontavam a arma um para o outro e estavam a apenas um gatilho de distância da morte. — Você já matou alguém, Dora? — disse Jordan. — Sim, — respondeu ela. — Em uma cena muito parecida com essa. — O que você quer dizer? — Ah! — Ela estava sorrindo. — Você não lembra! Eu não posso dizer o mesmo. Eu lembro muito bem. Afinal, estive lá duas vezes. O vento soprou e os cabelos se soltaram. Sentiu a brisa soprar no pescoço. Ainda não conseguia entender o que havia acontecido e a curiosidade era grande. — Eu tinha um plano, Jordan, e estava dando certo até você voltar nesse corpo podre que era meu.

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CAMINHOS DIVIDIDOS – DIEGO LAUCSEN “Durante a guerra, quando você morreu, logo que recebi a notícia, a Dora original invadiu o sistema da usina de clonagem e depositou minha memória no seu corpo, Jordan, para não deixar que você ocupasse o seu clone de direito. Isso aconteceria de modo automático na usina de clonagem então…” “Quando acordei e encontrei minha antiga versão, trabalhando no hospital, ambas sabíamos o que deveria ser feito. Matei minha verdadeira eu e forjei o suicídio.” Ela gargalhou, mas as risadas eram de um homem. — Engraçado que, talvez, ainda seja suicídio. Afinal eu matei eu mesma. “Depois disso, explodi a usina com uma bomba. Usando o seu corpo e seu nome, é mais fácil conseguir armas, hein?” — Não tinha sido um meteoro? — Que meteoro, Jordan? Deixe de ser burro. Foi uma bomba. Precisava destruir o casulo que estava o meu clone oficial antes que ele acordasse também com minhas memórias… ou suas. Eu jamais imaginaria que meu plano teria dado errado. A usina explodiu e meu casulo continuou intacto. Tive que entrar lá e sabotá-lo. — E, mesmo assim, não deu certo. O silêncio tomou conta.

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CAMINHOS DIVIDIDOS – DIEGO LAUCSEN — E, como resolvemos isso? — Perguntou Jordan no corpo de Dora. — Vamos para casa, felizes, ou enfio uma bala nessa sua… na minha cabeça oca? — Eu também estou armada. Jordan era um bom atirador. Melhor que Dora. Naquele momento, Dora tinha o corpo de um bom atirador. O corpo de Dora era frágil e hábil com as mãos. Para cirurgias, era necessário. Talvez, essa habilidade, ligada ao que Jordan sabia sobre armas, o ajudasse. Ambos dispararam juntos e apenas um saiu vivo. Mas, o que ficou, guardou a memória dos dois. Pouco se perdeu. Aqueles que trilhavam os caminhos divididos, agora, trilhavam juntos. Em um só corpo.

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A FRESTA NO DRAKE Adrian Alves

A Fresta no Drake obteve o 3º Lugar no Concurso Ecos Sci-fi

PARTE I — Quer o seu café com ou sem açúcar? — Perguntou a moça atrás do caixa com um péssimo sotaque português. Rubens D’ávila achava desnecessário que falassem na sua língua. Não queria que o tratassem diferente só porque não era nativo de Ushuaia. Ele podia se virar. Aquele tipo de tratamento só o lembrava, para agravar a sua angústia, que não pertencia àquele lugar. No entanto, preferiu ignorar o ocorrido pois as pessoas já o achavam apático quando não dizia nada. Rubens não estava ali para ser o velho ranzinza — como as

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES pessoas o chamavam —, ele só queria um último gole de café antes de partir. — Com açúcar — ele respondeu, seco. — E o seu amigo? — A moça adicionou, indicando Dimitri que, ao notar ser o foco, respondeu com um movimento desesperado dos olhos indo de Rubens para a mulher. Dimitri tinha a cabeça raspada e a barba feita. A sua pele oleosa lhe dava um aspecto suado. As mãos finas estavam quase sempre enfiadas dentro do bolso, os ombros tensionados. Qualquer um, até mesmo alguém que não costumasse julgar, veria algo suspeito, e Dimitri parecia saber disso, porque sempre devolvia os olhares alheios com ansiedade. A moça ergueu uma sobrancelha — Perdão, ele está com você? — Está — Rubens respondeu, voltando-se para o rapaz. — Dimitri vai querer o de sempre, certo? — Indagou. Dimitri assentiu. Rubens tornou a fisgar a mulher — Descafeinado e sem açúcar. Ele é sensível. *** O som da TV de cubo sobrepunha os ruídos dos poucos clientes: Mais uma vez, luzes não identificadas foram vistas acima de lagos e oceanos ao redor do planeta. O fenômeno foi registrado pelo satélite da NASA em fotos; como podem ver, os ventos se

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES comportam de forma peculiar. Pesquisadores ainda não sabem do que se trata. Enquanto isso, especulações tomam a internet e vídeos viralizam. As pessoas questionam a natureza do fenômeno. Estaríamos diante de algo totalmente novo? — Você curte essa lavagem cerebral? — Rubens perguntou ao perceber o jovem Dimitri hipnotizado com o noticiário. Estavam ambos sentados na mesa do café, acomodados nos assentos estofados. Dimitri se remexeu, se voltou para a sua xícara de café e depois de volta para Rubens com uma expressão de reprovação. Rubens suspirou — Esquece. — Tomou um gole do café e pousou as mãos na mesa. — Precisa de mais alguma coisa antes da gente partir? Dimitri ficou em silêncio. — O que eu fiz? — Rubens indagou, impaciente. Dimitri ergueu as mãos na altura do peito e sinalizou em libras: “Eu não sou sensível”. De repente, o café perdeu a doçura. Rubens limpou a garganta: — Eu não vou te pedir desculpas. “Eu não estou surpreso, velhote!”. Dimitri virou o rosto na direção do mar, estudou as ondas batendo nas margens por um momento e sinalizou: “Me conte como é navegar?”.

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES Rubens se culpou. Ele tinha esquecido que Dimitri nunca estivera em alto mar. A ideia de colocá-lo dentro de um navio — assim, tão repentinamente — era um pouco precipitada, mas abandoná-lo na costa parecia pior; sendo que o rapaz não tinha ninguém. Recordava-se do dia em que ele aparecera no seu quintal. O rapaz parecia um menino mal desenvolvido naquela época. Surgira ao anoitecer com uma mochila rasgada nas costas. Os seus sapatos estavam encardidos de barro, os olhos anêmicos. Acabara de ser dispensado do abrigo por completar a maioridade. Em dezoito anos, ninguém o quisera. Por isso Rubens não conseguira recusar o pedido de emprego. Dimitri merecia uma chance, mesmo que fosse com ele. — Enquanto estiver fora d’água não tem com o que se preocupar. — Rubens disse. Dimitri arregalou os olhos de amêndoas. Rubens conhecia aquela expressão. Ele recordou dos sufocos em alto mar e dos perrengues que vinham atrelados a responsabilidade de ser capitão. A profissão não era pra qualquer um. Pensou em algo, qualquer coisa que pudesse dizer pra confortar o seu pupilo. De todos os problemas possíveis, nervosismo era um dos piores porque congestionava o cérebro, e ele precisava do rapaz em boas condições. — As probabilidades de algo dar errado são quase nulas. — Rubens suspirou fundo, vendo o rapaz se aninhar na cadeira com os dedos entrelaçados sob a mesa. O jovem não podia ser facilmente enganado. — Se te der conforto, mantenha o dispositivo de flutuação pessoal por perto.

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES

*** Rubens retirou a polaroid da bolsa. Ele achava a câmera prática, diferente das novas tecnologias. Espiou pelo visor; tinha uma boa imagem em foco: o garotinho estava descalço na costa, os dedos dos pés apalpando a areia enquanto as ondas fugiam de volta para o mar. Como os pais poderiam deixar uma criança abandonada no porto?, pensou. O menino deu dois passos na direção de algo preso na areia. Rubens afastou a câmera e espremeu os olhos. A princípio pensou ser uma água-viva — o que lhe deu uma vontade imensa de acautelar o garoto com todo ar dos pulmões, mas ele se segurou por mais um instante, analisou: o negócio não possuía tentáculos. Talvez não oferecesse perigo. O garoto então se curvou pra pegar a esfera translúcida com um quê de receio. Apalpou cuidadosamente. Rubens percebeu que o treco era, aparentemente, mais consistente que uma água-viva. Mas isso não diminuiu a sua preocupação. As mãozinhas do menino investigaram o objeto em trezentos e sessenta graus e, como se compartilhasse da vontade de Rubens, enfiou a mão dentro do organismo cuja casca estava rompida, retirando do seu interior uma gosma asquerosa. Alguém tocou no ombro de Rubens, chamando a sua atenção. Dimitri carregava uma mochila gorda na mão direita que

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES fazia o seu corpo se inclinar na direção oposta. O rapaz indicava com o dedo agudo as figuras se aproximando do navio quebra-gelo, um grupo formado por dez cientistas, homens e mulheres na faixa dos trinta. Rubens passou o cordão da câmera no pescoço e a deixou pender. Analisou as figuras empacotadas que vinham na sua direção com casacos, toucas e luvas de espessura significativa. Eles carregavam parafernálias metálicas, malas de trinco revestidas com material robusto e trecos, bagulhos, de aspecto complexo; alguns maiores do que outros, instrumentos mesclados com antenas e cabos. Rubens se intimidou com os itens. A coisa mais complexa que tivera contato até então fora o seu aparelho VHS — onde costumava assistir fitas da sua infância e casamento — e o sistema de navegação naval. Aquela tecnologia fazia com que ele se sentisse um tremendo fracassado, enaltecendo a sua síndrome do impostor. O homem com quem Rubens conversara alguns dias atrás liderava o grupo. Rubens guardava as contas atrasadas dentro de um envelope engordurado quando bateram na sua porta. A vontade de ignorar fora grande, pois o seu cabelo estava despenteado e os dentes amarelos por escovar. Rubens vestia o mesmo pijama dos últimos dois dias — uma das poucas vantagens em estar viúvo — e não podia dizer se cheirava mal ou se o nariz se acostumara com o odor. Sobretudo, ele não se lembrava da

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES última pessoa com quem conversara, Dimitri a parte, alguém que verbalizasse sons, vogais e consoantes. Estava distante das relações humanas. Às vezes, se perguntava como, dia após dia, fora se acomodando daquela forma. Ele tinha se prendido àquela cabana como um caramujo se prendia à areia para evitar ser levado pelas ondas do mar, e não se movera um centímetro sequer. A pior parte, talvez, era que se sentia bem confortável naquela posição despojada. — ¡Buenas tardes, siñor! — Cumprimentou o homem alto de terno. — Boa. O homem de terno ajeitou os óculos no rosto pálido. Rubens percebeu como o seu queixo era pontiagudo, como um triângulo, e as sobrancelhas finas a ponto de serem quase inexistentes. — É você o dono daquele barco? — O homem de terno apontou para o barco de pesca. A tinta verde da madeira estava descascada nas bordas e o nome de Rubens, pintado em letras brancas, borrado. O seu nome era “SOLIDÃO”, pois o encontrara encalhado na costa. Como ninguém parecia ter se apropriado, ele resgatara a carcaça e reformara as partes danificadas. Independente da sua história, servia muito bem para a pesca. — Eu não vou tirar ele dali pra você estacionar o seu yacht. — Senhor, eu adoraria ter um yacht, mas ando muito atarefado pra descansar. — Estendeu a mão para um aperto. —

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES Eu sou Vasco Pacheco, mas pode me chamar de Professor. Integro a HALCYON SOUTH AMERICA. Somos um Instituto de Pesquisa Ambiental. — Vá direto ao ponto — Rubens pediu. — Procuramos alguém que possa nos levar numa expedição, uma expedição científica. Rubens pensara não ter escutado direito, então tornou a perguntar: — Expedição? — Sim, para pesquisa — respondera o Professor. Explicara — O local fica alguns quilômetros depois da passagem de Drake. — Aposto que você nunca navegou com ventos ultrapassando 80 km/h? — Nunca. — Você mijaria nas calças. — Pacheco piscou, confuso. Então Rubens continuou — Eu não tenho permissão pra navegar nesta área. Mas se não quiser voltar pra casa de mãos vazias, posso te dar um cupom de desconto pra usar no restaurante da esquina. As centollas são deliciosas. O Professor ficara mudo por um instante. Rubens acreditava tê-lo convencido da burrice que era a pesquisa. Então, para sua surpresa, o homem se aproximou alguns centímetros, ultrapassando o capacho para dentro da cabana. O seu cheiro era frio como o cheiro de hospital.

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES — Talvez você não tenha se dado conta, mas essa pesquisa é estritamente confidencial — o Professor explicara. — As autoridades que nos enviaram têm permissão pra navegar tanto no Drake quanto no seu quintal. Se quiser ver os documentos, eu te mostro, apesar de algumas informações estarem riscadas por questão de sigilo. — O Professor o encarava com determinação. — A HALCYON não chamaria qualquer um pra esse tipo de empreitada: precisamos de alguém com experiência. — A sua voz adquiriu um tom pessoal — O seu nome foi mencionado entre vários, mas o que me estimulou a te procurar foi a sua localização, porque cá entre nós; não é qualquer um que se aposenta e vai morar no fim do mundo. Os navios que saem daqui para a Antártida sempre passam pelo Drake. Se o senhor aceitar, cortaremos gastos. — Umedeceu os lábios que juntavam saliva seca nos cantos — Quanto ao transporte, nos concederam um quebragelo com equipe treinada. Tudo está em ordem, exceto pelo capitão. — Eu era capitão, Rubens pensara, sentindo a própria constatação cravar uma faca no seu peito. Será que não estaria ultrapassado para aquele tipo de coisa? Por mais que detestasse admitir para si mesmo, ele estava inseguro e com muito medo. — Se dinheiro for o problema — o Professor adicionara —, nós podemos conversar. O Professor entregara um contrato e explicara superficialmente o intuito da investigação. A pesquisa tinha o intuito de estudar uma nova espécie marinha e o seu potencial de desequili-

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES brar o ecossistema por comportamento predatório. A espécie não tinha nome ou classificação — talvez nem soubessem o que procuravam. Rubens não obteve acesso aos arquivos na sua integridade. Os detalhes eram escassos, mas o dinheiro, bem, o dinheiro era razoável. — Aposto que você preferiria uma cabana maior e um barco menos... ultrapassado — o Professor dissera, organizando os documentos dentro da maleta prateada. — Pense no assunto, amigo. O meu número está no cartão. Vasco Pacheco se aproximou. Avaliou Dimitri de cima a baixo, ajeitando os óculos de grau. — Esse é o rapaz mudo? — Indagou o Professor. — Esse é o meu amigo, Dimitri Garcia — respondeu Rubens. — ¡Hola, Garcia! — disse o Professor, esboçando um sorriso questionável. — Você pode ficar com os tripulantes responsáveis pela faxina. Dimitri se remexeu no lugar, claramente desconfortável. — Dimitri vai ficar comigo na ponte de comando — Rubens definiu. O Professor ajeitou a mochila nas costas, desviou o olhar para o navio quebra-gelo, como se por um momento estar no convés fosse mais interessante do que estar ali conversando com os dois.

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES — Se você acha seguro, quem sou eu pra contestar, não? — Voltou-se para eles e deu uma piscadela. — Nos vemos lá em cima, D’ávila.

PARTE II Rubens despertou com o rosto no chão frio ao lado de uma garrafa quebrada. Ao se erguer, sentiu o corpo dolorido, como se tivesse sido atropelado por um trator. A queimação se espalhou pelos músculos ao passo que se locomoveu até o painel de controle. Garrafas estavam caídas sob a mesa, gotas pingando da boca, encharcando os papéis com pequenas poças de cerveja. Rubens estava com uma ânsia insistente, como se a cerveja espumasse por conta própria dentro dele, escalando o esôfago até a garganta ardida. Sentiu o gosto amargo na língua. Ele conseguia se lembrar de pequenos fragmentos das últimas horas: um grito, uma sirene e um tranco, como se algo tivesse topado com o navio. O resto era vazio. Empurrou, sem o mínimo de delicadeza, as papeladas para o chão, revelando o mapa por debaixo. Onde estavam? Se deparou com a bússola — objeto cujo ponteiro rodopiava loucamente. Os olhos ardiam. Ele piscou algumas vezes para se acostumar a luz que adentrava as janelas sujas de respingos. Estranho, pensou, estudando o mapa. Os dedos perseguiram a rota. Então o nó na garganta se

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES intensificou: eles não estavam perdidos, muito pelo contrário, tinham chegado com sucesso ao ponto chave da missão. Onde será que estavam os demais tripulantes? Alguém deveria ter sentido a sua ausência. Alguém deveria ter domado o navio! Rubens prestou atenção ao silêncio, à inexistência das ondas. O navio deveria estar balançando, mesmo que pouco. O fato de estarem imóveis produzia um conflito frustrante nos seus sentidos. Aquilo não era característico do Drake; o mundo lá fora parecia calmo enquanto deveria estar furioso. Rubens apanhou o microfone radiotelefônico com vontade de escutar outro som que não fosse a sua respiração ofegante: — Ponte de comando para base, alguém na escuta? Mayday, mayday! Sete segundos de silêncio e ele repetiu. De repente, a estática foi substituída por uma interferência que fez Rubens largar o microfone em cima da mesa. Ele nunca escutara algo semelhante. O som era sobre-humano; um choro agudo e rouco. Apesar do espanto, se sentiu sobrecarregado de tristeza, momentaneamente possuído pela tragédia melódica. Havia dor no som. Rubens tentou desligar o rádio, mas o aparelho fervia, impedindo que fosse desligado. A estática continuou, cada vez mais intensa de modo que se tornou insuportável continuar ali dentro.

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES Fugindo do barulho, ele agarrou o casaco de pele nas costas da cadeira e rumou para a porta, abrindo caminho para as escadas. O cheiro de gelo invadiu as suas narinas. Desceu cautelosamente, agarrando-se ao corrimão para não escorregar na umidade. A neblina estava rala e caminhava para o resto do navio como se estivesse viva, envolvendo a embarcação num abraço frívolo e espectral. Ao olhar para cima, o céu o sufocou. A vertigem súbita lhe desceu pelos sentidos: não havia estrelas, nem vestígios de nuvens. O céu se espelhava totalmente no mar, a lua em plena nudez, talvez até próxima demais — ou seriam os seus sentidos afetados? Rubens retornou o foco para o convés. Investigou. A bombordo e a estibordo tudo estava manso, o horizonte aberto; de longe o seu navio deveria ser um pontinho de pouco contraste. A passagem de Drake não poderia ser mais assustadora. Algo se moveu mais à frente, uma figura humanoide, e logo desapareceu entre a névoa de modo que Rubens não conseguiu identificar o vulto. Rubens tocou a pistola no cinto com a ponta dos dedos, mas se deteve porque não atirava há milênios e abrir fogo contra um mero tripulante afundaria a sua carreira mais rápido do que o iceberg afundara o Titanic. Ele rumou para as cabines se curvando diante da escuridão. Alguns passos à frente, os pés deslizaram sob algo. Inspecionou. A substância era verde e tinha consistência de catarro. Estava por toda parte: paredes, boias, cordas... e agora estava

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES nele, grudada na sola das botas tipo chiclete recém mascado. Os rastros se ramificavam em trilhas, várias, como se duzentas lesmas tivessem se arrastado por ali. Aquela, em especial, convergia direto para a cabine; para onde o vulto se dirigira, e sumia por debaixo da porta. Rubens desceu a mão para o cinto, apanhou a lanterna e deu tapinhas até a luz surgir como uma lâmina que cortava as trevas. Os primeiros degraus estavam perigosamente pegajosos, então ele se cuidou para não tropeçar, apoiando uma das mãos na parede até alcançar o último degrau. Um odor penetrante de mofo impregnava o ar. As primeiras camas estavam vazias, os lençóis abarrotados parcialmente caídos no chão. Ao passo que se movia mais adentro, a luz da lanterna vasculhando cantos e arestas, Rubens se deparou com os tripulantes agrupados num grande bolo humano no fundo do cômodo, e não soube reagir se não com uma tremedeira involuntária. Os seus corpos trepidavam, pálidos e úmidos, como tivessem sido retirados do gelo há pouco. Sustentavam expressões de agonia nos semblantes mórbidos enquanto se despedaçavam com as próprias unhas. Estavam mastigando fragmentos de pele, a própria carne, roendo os ossos expostos, como num banquete de auto apreciação. Rubens, descrente, mirou o faixo de luz num tripulante cuja face rasgada balançava da ponta do queixo. Este, em resposta, lhe mostrou as gengivas sanguinolentas e berrou. Os seus

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES olhos eram leitosos: sem íris e sem pupila, completamente preenchidos de branco. Ao lado, outro leproso balbuciava virado para a parede. As suas costas expostas apresentavam um relevo anormal próximo aos ombros. A textura era diferente da textura de pele humana; apresentava dobras, como um anelídeo, e se movia, vivo, acoplado à nuca — o que lhe concedia uma caraterística parasitária. Olhando mais atentamente, Rubens percebeu que o bicho se alimentava do tripulante, engordando aos poucos feito uma sanguessuga. O estômago do capitão se embrulhou. Havia muitos motivos para não se navegar no mar, mas o que ele fitava atônito estava além de uma explicação coerente. A sua fé pareceu medíocre e seus anos de experiência de nada serviram, ao contrário, agravaram a sua perdição. Sem pensar duas vezes, apanhou a pistola e apontou na direção dos tripulantes, se é que ainda pudessem ser chamados assim. Ao passo que recuava, um dos homens se virou num movimento brusco e gritou, perturbado. De repente, estavam todos lhe admirando, cada um dos cientistas. Eles o fisgavam no olhar como um anzol preso nos lábios de um peixe de tal forma que Rubens estacou, seduzido por um poderoso frenesi. Os tripulantes, no entanto, não pareciam dispostos a atacar. Eles simplesmente estudaram Rubens, estudaram delicadamente com a mesma falta de compreensão. Devido ao inseparável bolo humano, Rubens pensou que talvez estivessem conservando calor. Se não atacavam, é porque não possuíam

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES energia. Era mais que óbvio: estavam aflitos e desorientados. Suavam em excesso, mais que Dimitri em situações de tensão, e o suor era tanto que as gotas se aglomeravam na ponta dos dedos antes de pingar. Rubens concluiu que estavam mudando de dentro pra fora, como numa metamorfose, e que as coisas presas nos seus corpos trabalhavam arduamente para acelerar o processo. Rubens recuou cuidadosamente, degrau por degrau, e tratou de fechar a porta. O clique metálico proporcionou conforto, mas este durou milissegundos, pois o coração esmurrava o peito com golpes fortes o suficiente para vibrar as pontas dos dedos. Rubens tentou estabilizar o fôlego e falhou, o ar só escapava dos pulmões, podia ver a fumaça do hálito no ar gelado, ele estava perdendo o controle... De repente, rompendo o silêncio sepulcral, um tremor sacudiu o céu. O choro agudo e rouco vinha de longe, o mesmo que escutara antes no rádio da ponte de comando. A gravidade parecia ter se alterado de alguma forma porque Rubens se sentia duas vezes mais pesado e, para agravar a própria aflição, tinha a desagradável sensação de ouvidos entupidos, como se estes acumulassem líquido. Havia alguma coisa por perto, algo físico, uma presença invisível exercendo forte pressão sob a nuca. Rubens deu um passo impulsivo na direção da borda do navio, e olhou. A sua fisionomia se projetou na água, distorcida e enfraquecida pela distância. Esferas translúcidas boiavam

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES em torno do casco. Ele forçou a vista por entre a névoa. As esferas, quando próximas o suficiente, se agarravam à embarcação como cracas. Em seu interior, embebidos por mucosa verde, anelídeos verde-oliva se moviam freneticamente, alguns tão agitados que rompiam o invólucro. Anéis constituíam os seus corpos cilíndricos e se movimentavam em conjunto para que os seres se arrastassem pelo casco. Estavam escalando o casco rumo ao convés, deixando rastros de gosma pelo caminho. Quanto mais perto chegavam mais se pareciam com as coisas atreladas aos tripulantes na cabine. O choro soou novamente, e dessa vez persistiu, inicialmente baixo e, ao passo que ganhou volume, fez o navio vibrar a ponto de trepidar os joelhos de Rubens. Ao longe, no meio do céu, um raio de luz cortou o ar. Rubens protegeu os olhos até se acostumar com o clarão, e tornou a encarar a abertura com os olhos espremidos de tamanha que era a intensidade. O céu havia se partido. Havia um rasgão no azul escuro, uma fresta nebulosa. Algo se moveu do outro lado e, como se explorasse o ar, um tentáculo brotou de dentro da rachadura. Este se esticou lentamente, sem parar, descendo sempre em espiral. A sua cor era verde-oliva, ligeiramente mais escura do que a dos anelídeos e a textura desidratada — de aspecto primitivo. A extremidade mais aguda se inflou ao tocar na superfície da água e então tateou o líquido, como se quisesse ter certeza de onde tocava. O membro inflou mais um pouco e implodiu na

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES ponta, liberando esferas translúcidas na água. A criatura parecia estar depositando ovos no mar, centenas deles. — Nós invadimos um berçário, D’ávila — a voz inesperada fez Rubens saltar. O Professor estava parado atrás dele, os olhos esbranquiçados, cobertos por uma fina membrana que surgia a cada piscar. A sua aparência se assemelhava aos tripulantes, exceto pela inexistência de braços. No lugar dos membros, ele possuía tentáculos asquerosos que se arrastavam no chão. Rubens concluiu que ele também estava se transformando, porém, num estágio mais avançado. O Professor deu um passo na direção de Rubens, que recuou em resposta. — A saliva dos sugadores possui anestésicos naturais; o que torna o acoplamento rápido e indolor. Veja... — Esticou um tentáculo para os anelídeos subindo para o convés. —, são como bebês: sensíveis e indefesos. Eles não conseguem prosperar sozinhos. Precisam de um hospedeiro. E depois que escolhem um corpo, eles se acoplam, modificando o DNA até que se tornem um. — Abriu um sorriso no semblante asqueroso de onde brotavam dois bigodes de bagre. — Os sugadores são sorrateiros, dotados de uma inteligência acima da média, tanto que nos pegaram desprevenidos. — Fisgou Rubens com ar melancólico — Eles também te pegaram, Rubens, não pegaram? Eu posso ver no seu rosto: você está se transformando. Instintivamente, Rubens levou a mão até o pescoço. Escorregou o dedo até a nuca. Ao tocar na mucosa do sugador, um choque se propagou pela pele como se tivesse entrado em

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES contato com uma corrente elétrica. O efeito de anestesia sucumbiu por um momento. Então ele sentiu os dentinhos serrilhados presos aos seus nervos, sentiu a pressão da sucção, sentiu a criatura respirar acoplada à sua pele, pulsando no mesmo compasso do seu coração. Os pés cambalearam para o lado — ele estava perdendo a vitalidade. Como não percebera que estava sendo lentamente sugado por um parasita? Rubens ergueu a pistola na direção do Professor, sentindo uma coceira na ponta do dedo que encostava no gatilho. — Por favor, não atire, irmão! — Pediu o Professor, em tom pessoal. Um flash de luz se intensificou no céu. Os olhos do Professor se iluminaram: — A nossa mãe desaprova violência em tempos de crise — Rubens se virou para o alto. A fresta ainda estava aberta e por ela uma criatura colossal observava o navio com o seu globo ocular leitoso. O Professor explicou — Ela ficou milênios na solidão, esquecida. — Suspirou enquanto sangue brotava dos olhos, como lágrimas. — Deve ser horrível ser a única da sua espécie, presa num planeta escasso, sem vida. Mas agora que a fresta interdimensional se abriu, mamãe pode recomeçar. Em breve este planeta será povoado e nós seremos como uma família! Rubens não se conteve e atirou, derrubando o Professor com uma única bala cravada na testa.

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES Em seguida, câimbras pungentes tomaram as pernas. Enfraquecido, o velho liberou a arma dos dedos retesados e caiu. Uma gota atingiu a testa, depois outra. O céu se iluminou com um raio e começou a precipitar em cima dele, lavando a sua consciência, cada vez mais longe do choro e da tempestade até que deixasse de existir.

PARTE III Quando retomou a consciência, Rubens sentiu alguém arrastando o seu corpo para longe do convés. Seguravam ele pelas pernas, puxando com dificuldade. As suas mãos estavam atadas, talvez corda, ele não se deu ao trabalho de descobrir. A vista embaçada discerniu um corredor, depois ouviu uma porta se fechar logo atrás. Pareciam estar com pressa... Os dois continuaram pela escuridão até um cubículo com cheiro de álcool. Rubens sentiu o sequestrador se aproximar. Queria sair daquela paralisia e atacar, mas a cefaleia só ficava mais forte, obrigando-o a manter os olhos fechados. De repente, dedos inquietos apalparam as suas costas e pesquisaram os seus músculos. Incapacitado, Rubens ergueu um dedo em protesto. Se sentiu estúpido naquela posição — contra o chão com a baba escorrendo da boca feito um doente.

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES Ruminava um desejo de mordiscar os próprios punhos, algo macio ou qualquer outra coisa que lhe permitisse saciar a fome. Estava de olho na mão do indivíduo, vigilante. Se ele se aproximasse o suficiente, conseguiria morder. Bastaria uma mordida para rasgar a sua carne. Rubens rosnou em discordância com os toques, um rosnado fraco, nada ameaçador. Os dedos então se fecharam em torno do seu cérebro — o segundo cérebro, o anelídeo. Abruptamente, choques elétricos dispararam pela espinha, fazendo o velho trancar os dentes. O sequestrador deu um tranco forte. A dor aguda obrigou Rubens a se encolher em posição fetal. Foi então que um cheiro nostálgico preencheu as suas narinas: era ovo queimado. Rubens se lembrava claramente daquele dia. Ele era pequeno, deveria ter em torno de cinco anos. Havia um fogão em chamas na sua frente, cobrindo a cozinha de fumaça e, ao fundo, o som do alarme de incêndio apitando sem parar. “O que você aprontou, moleque?”, a sua mãe perguntou, correndo para as chamas com um pano molhado. Mais um choque percorreu a sua espinha e um clarão explodiu na visão; de repente estava embaixo de flocos de neve, agasalhado com um colete espesso e meias felpudas por dentro das botas que ganhara no seu aniversário de dez anos. Rubens estava com a língua à mostra, captando o gosto do inverno a cada floco de neve. O seu pai o observava do outro lado com um sorriso estampado no rosto enrugado. Ele tinha uma câmera na mão,

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES uma polaroid, e se preparava para tirar uma foto. O homem abriu a boca para falar alguma coisa, mas ao invés de palavras, Rubens escutou gaivotas. Agora ele era mais velho e estava descalço, caminhando na praia na companhia de uma mulher. Ela segurava um bebê no colo envolto por um cobertor azul claro. O sol ofuscou o seu rosto, alterando a cena para o convés de um navio. “Papai, olha aquele pássaro!”, o garoto, que agora já estava maior, apontou para a gaivota sobrevoando a embarcação. Rubens retirou o seu chapéu de capitão e colocou na cabeça do menino, dando tapinhas nas suas costas. O céu escureceu; uma tempestade. Sete buzinas curtas seguida de uma longa. Rubens corria na direção do convés atrás dos gritos de socorro. O seu filho estava pendurado para fora da embarcação sem o dispositivo de flutuação. Rubens esticou a mão, tomando o menino pelos dedos. A embarcação balançava rapidamente, cada vez mais inclinada, perdendo o centro de gravidade. “Eu não vou te soltar”, Rubens bradou, mas não conseguiu segurar; os seus braços estavam úmidos demais. Os pequenos dedos escorregaram para longe da sua mão. Rubens viu o frágil corpinho sendo tragado por uma onda, desaparecendo embaixo dela junto com o seu chapéu. Rubens estava de volta no quebra-gelo agora, dentro da cabine de comando. Dimitri tentava arrancar a garrafa de cerveja da sua mão. “Você está bebendo demais” o rapaz sinalizou. “Vai se foder, seu órfão filho da puta!” Rubens

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES gritou, arremessando a garrafa na direção do rapaz que desviou no último instante. “Por que você se importa com as pessoas? Elas vão te deixar, todas, e você vai ficar só, vão te abandonar do mesmo jeito que seus pais te abandonaram. O tempo vai passar e você vai definhar, isolado, vai definhar até virar um monstro”. Dimitri mostrou o dedo do meio e desembestou para fora da cabine. Algo se desprendeu do corpo de Rubens em seguida. Ele estava de volta no presente, mas a sonolência veio com tudo, derrubando ele com a força de um tsunami. *** Dimitri estava jogado no canto, observando Rubens como uma criança ansiosa. Ele usava a pior colônia dos sete mares e a sua inhaca de um dia sem banho só incrementava o odor. Rubens imaginou que estivesse nas mesmas condições, ou até pior. Pensou em reclamar, mas a garganta arranhava toda vez que engolia saliva. Dimitri desatou a corda nas mãos de Rubens lentamente. Apanhou uma garrafa d’água, destampou e levou até os lábios secos do capitão. O líquido escorreu pela língua desidratada do velho. A saliva grossa afinou. A garganta infeccionada ardeu. Após o desconforto, veio o prazer. Dimitri não precisou mais segurar; Rubens conseguiu fechar os dedos em torno da garrafa por conta própria e esvaziou o recipiente.

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES O jovem sinalizou: “Eu estava me escondendo”. Rubens limpou os beiços com as costas da mão. Olhou em volta, tentando reconhecer o ambiente. Os dois estavam no armário de vassouras, rodeados de produtos de limpeza e trapos velhos. Havia uma mochila da HALCYON no chão e, no canto oposto, sob uma poça de gosma e sangue, jazia o cadáver de um anelídeo sugador. Dimitri estalou os dedos, chamando a sua atenção: “Você perdeu muito sangue, precisa ir para o hospital.”. Suspirou profundamente. Engatinhou até a mochila da HALCYON, vasculhou por um momento até retirar a câmera de Rubens lá de dentro. “Eu peguei pra você”, sinalizou. Dimitri limpou a máquina com a camiseta e pressionou o botão de ligar. Cuidadosamente, posicionou a lente. O flash cegou Rubens por alguns segundos. “Recordação”, sinalizou. As sobrancelhas do jovem despencaram repentinamente. Rubens percebeu que ele só estava fazendo aquilo para levantar o ânimo — o verdadeiro Dimitri deveria estar tão abalado quanto ele. “Eu também encontrei um detonador”, Dimitri apontou a mochila da HALCYON. “Há bombas no navio. Te falaram das bombas? Acho que não. Mentiram pra gente; aqueles filhos da puta... Poderíamos afundar essa merda”.

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES Rubens concluiu que precisava se esforçar para falar: — Se o navio explodir, a gente afunda com ele. Dimitri sacudiu a cabeça em negação: “Temos jangadas salva vidas!”. Rubens vislumbrou uma faísca de esperança nos olhos do jovem. “A gente foge...”, Dimitri fez sinal, “...e depois explode a porra toda!”. *** Eles deixaram o armário para um corredor ladeado de janelas. Rubens se aproximou do vidro, vislumbrou o mar e se perdeu entre as ondas. Raios iluminavam o céu, trovões quebravam o ar. Tempo e espaço funcionavam perfeitamente ali. Deveriam ter cruzado a passagem de Drake, a zona afetada pela fresta interdimensional. A costa, para seu alívio, despontava timidamente na linha do horizonte, nascendo ao mesmo tempo que o dia madrugava. Ele imaginou o porto, o cheiro de centollas que às vezes impregnava o ar, as cabanas de madeira e a terra firme... Parecia ter ficado séculos e séculos distante daquela realidade, e na verdade só se ausentara por alguns dias.

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES Atravessaram o corredor até a porta metálica para o convés — que estava entreaberta e com gosma na maçaneta. Dimitri escancarou a porta, abrindo passagem para a tempestade. Antes de pisar do lado de fora, se virou para Rubens com o semblante coberto de preocupação e, comunicando-se como já estavam acostumados, ergueu o dedo até os lábios pedindo silêncio. Sem mais nada a dizer, prosseguiu chuva adentro. Rubens se pôs para fora logo em seguida, curioso sobre o alerta de Dimitri. Compreendeu imediatamente: os tripulantes estavam espalhados pelo convés, assistindo a tempestade com uma admiração hipnótica. Agora eles não vestiam mais pele humana. O corpo ganhara um aspecto aquático, com guelras e pés dotados de membranas natatórias. A pele lisa brilhava com uma fina camada de muco viscoso. O rosto, de aspecto alienígena, possuía dois bigodes que tateavam o ar. Estavam com a cabeça erguida para o show de luzes, totalmente absorvidos pela natureza que os cercava. Rubens entrecortou as criaturas rapidamente rumo ao contentor. Antes que chegasse, o telhado da ponte de comando rangeu, detendo os seus passos. Rubens não pode se esquivar. Quando foi derrubado, ficou tão chocado quanto Dimitri. As costas bateram no chão. Os tentáculos tatearam o seu corpo, pesquisando os seus contornos humanos, até se fecharem em torno dos pulsos como algemas. O sugador

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES manteve Rubens preso, impedindo que ele se debatesse. A língua bifurcada se projetou para fora, derramando saliva de característica viscosa. Rubens virou o rosto com asco. O ser lambeu a sua pele, provando do seu gosto e, quando o velho se deu conta, o bicho já estava preso no seu pescoço, sugando a sua carne com gula. Um tiro explodiu. Rubens sentiu a boca do sugador se amolecer sob a pele. Em seguida, os tentáculos se afrouxaram, liberando os pulsos. Ele estava livre e, do outro lado, segurando a pistola com a mão trêmula, Dimitri mantinha os olhos arregalados cheios de incredulidade. — Eu não queria te machucar, mas também não podia deixar que você partisse — A criatura ao lado de Rubens murmurou, a voz rouca e profunda. Ele encarava o céu, a chuva lavando o sangue que escorria do buraco em seu peito. Se voltou para os dois, as írises verde-musgo por debaixo da pele branca perdendo a intensidade — Seríamos muito felizes aqui, neste planeta onde o céu grita e acende... Dimitri se aproximou, guardando a pistola na calça. Ainda abalado, ajudou Rubens a se levantar dando o braço de apoio. Ambos caminharam até a borda, onde o capitão se segurou na barra enquanto o rapaz buscava os coletes salva-vidas dentro do armário. Rubens se vestiu. Dimitri também. Em seguida, retirou uma faca da cintura, surpreendendo Rubens que àquela altura

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES do campeonato só pensava em apagar. Habilidosamente, o rapaz rompeu a corda que segurava o contentor de jangada com a precisão de um açougueiro. O contentor sofreu um tranco e despencou, indo na direção das ondas. A caixa branca flutuou por alguns segundos até desabrochar como uma flor sob a superfície. A jangada foi inflando, tomando a forma de um transporte laranja escuro com quatro assentos disponíveis. “Se lembra do que me disse sobre ficar fora d’água?”, Dimitri sinalizou. “Vai ter que me desculpar” adicionou e, agarrando Rubens pelo colete, se atirou do convés para o mar. A água engoliu os dois com a frieza de uma geleira. Rubens tateou o corpo de Dimitri, se agarrando ao tecido da sua roupa como carrapicho. Manteve os olhos e boca fechados para se proteger da água salobra. Sem poder fazer o mesmo com os cortes, as feridas gritaram com o contato aquoso, a natureza penetrando a sua pele com a ferocidade de mil agulhas. Ao passo que subia, pensou no seu filho; imaginou como seria afundar para dentro da escuridão. Era por este motivo que tinha se isolado: o dissabor de perder as pessoas era grande demais para suportar mais de uma vez. Quanto mais afastado estivesse, menos doloroso seria. E agora ele estava no fim do mundo se perdendo de si mesmo, usando suas últimas forças para ficar perto de Dimitri, mas sabendo que não duraria, não o suficiente para chegar em terra firme.

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES Os dois despontaram na superfície com fome de oxigênio. Dimitri localizou a jangada a dois metros. Ele puxou Rubens no braço até a borda — onde o velho se agarrou nas cordas para se arrastar até o assento — e engatinhou na direção do remo retrátil. A mais ou menos quarenta e cinco metros de distância do navio, Rubens cuspiu as palavras com sangue: — Dimitri, pare! O rapaz encerrou o movimento automático dos braços. A adrenalina exalava dos seus olhos de tal forma que foram necessários alguns segundos para que ele percebesse o detonador na mão do capitão. O velho tinha razão, precisavam parar. Eles já estavam longe e dependendo da distância o sinal do detonador não chegaria até as bombas. Rubens virou o pescoço lentamente para o navio. — Aquelas coisas não podem pisar em terra firme. — O seu filho disse, a mão apoiada no seu ombro esquerdo. O tom de voz era como se lembrava, macio e arisco. Entre o cheiro da chuva, conseguiu captar um resquício do seu perfume doce, como se os restos do menino de repente emergissem no mar. — Aperte o botão, papai! O seu polegar ensanguentado se moveu na direção do botão. As bolas de fogo queimaram o ar num baque, multiplicando-se em mais bolas de fogo e fumaça cinza. A proa foi

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES arrebentada, voou pelos ares. O segundo explosivo não tardou. Este incendiou o casco, abrindo um rombo enorme por onde a água adentrou com toda gula marítima. O terceiro, e último, demoliu a ponte de comando que cedeu com as antenas, triplicando as chamas pela carcaça em ruína. A embarcação continuou rangendo enfurecida enquanto naufragava. Dimitri levou um momento para perceber que Rubens caíra desacordado e mais alguns segundos hesitantes para agir. Socou o peito do velho por três vezes consecutivas, alternando entre respirações boca a boca e massagens torácicas com a esperança de reanimá-lo. Após inúmeras tentativas, aceitou. Delicadamente, apoiou a cabeça do velho sob o colete salva vidas e se aninhou no canto da jangada, fechando os braços em torno do próprio corpo num abraço quente, os olhos encharcados. Acima dele, sobrevoava um bando de pássaros. Dentre as dezenas de gaivotas, uma desceu até a jangada, aterrissando na beirada. O animalzinho investigou o detonador na mão de Rubens como se fosse um peixe suculento. Bicou, estudou atentamente e se entediou. Dimitri observou a gaivota alçar voo num salto, indo na direção do quebra-gelo que se desfragmentava pela superfície. Havia algo naquele pássaro que ele não conseguia explicar, algo tão misterioso quanto a fresta na passagem de Drake, e imerso nessa quietude introspectiva,

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A FRESTA NO DRAKE – ADRIAN ALVES Dimitri foi flutuando lentamente para a costa levado pela vontade do mar.

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POUSO CEGO JoeFather

[Perfil do Wattpad]

01h30 — Torre de Controle, aqui é Delta Alfa Cinco Cinco Três. — Prossiga Delta Alfa Cinco Cinco Três. — Torre de Controle, informando que faremos pouso forçado! Repetindo: Delta Alfa Cinco Cinco Três informando que faremos pouso forçado! Aparelhos não respondem... — Delta Alfa Cinco Cinco Três, aqui é Torre! Informem coordenadas, vocês sumiram do radar. “Repetindo: Delta Alfa Cinco Cinco Três, aqui é Torre! Informem coordenadas, vocês sumiram do radar.” “Capitão.” — Prossiga Controlador. — Delta Alfa Cinco Cinco Três não responde, sumiu do radar após fazer contato, proximidades de Campinas.

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POUSO CEGO - JOEFATHER — Alerte Victor, Charlie, Papa! Procedimento padrão de emergência. Dados da aeronave? — Airbus A380, Golf, Índia, Golf - Victor, Charlie, Papa! — Informe ao Comando Geral! — Sim senhor! 01h35 — Atento Unidade de Resgate 01, 02 e 03, possível queda de avião de passageiros próximo a Rodovia Dom Pedro I, km 13. Solicitante: Viracopos. Efetuando contato com as cidades vizinhas solicitando apoio imediato. — Unidades 02 e 03 a caminho! — Unidades 01 na área central, a caminho! 01h55 — Atento Centro de Comunicação, Unidade 02 e 03 pelo local! — Informe situação! — Por cá sem novidades! Avião aterrissou na rodovia, recebida informação do Comandante que não há vítimas. Necessidade urgente de apoio da Polícia Rodoviária, para organização do trânsito local.

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POUSO CEGO - JOEFATHER — Copiado! 02h15 — Sargento, foi efetuada a sinalização com apoio da Concessionária responsável pela operação. — Ótimo! Onde está o Comandante da aeronave? — Está ali junto com o pessoal da imprensa! — Por favor, traga-o até aqui para confeccionarmos um Boletim de Ocorrência. — Sim senhor! 02h25 — Acabamos de preencher todos os dados necessários, agora comandante, pode dizer o que aconteceu para o preenchimento do histórico da ocorrência. — Policial, eu bem que gostaria! Os controles pararam de funcionar, entrei em contato com a Torre de Controle e depois disso não lembro de mais nada. Quando vi já estávamos aterrissados na rodovia. Devo ter desmaiado... — E a tripulação?

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POUSO CEGO - JOEFATHER — Ninguém também viu nada, deve ter havido uma grande queda de pressão, estávamos na velocidade de Cruzeiro e a quarenta mil pés. — Os passageiros? — A maioria dormia! E os que estavam acordados também perderam os sentidos. — E há alguma testemunha? — Testemunha? Tem sim, aquele senhor que a imprensa está conversando agora... 02h35 — O senhor, por favor, me acompanhe. — Eu já disse tudo que sei para aquele policial ali. — Por favor, somente umas informações para o Boletim de Ocorrência. Me empresta o seu RG. Certo, Sr. Júlio Prado, 50 anos, tudo anotado, agora me descreva o que aconteceu. — Senhor, eu não vi muito bem, vinha de longe com minha moto, estava bem escuro. — Diga somente o que viu para que eu preencha aqui, afinal o senhor é a única testemunha. — Como eu disse, vinha vindo e vi o avião pousando, estava a cerca de 500 metros dele. — Ele deslizou muito?

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POUSO CEGO - JOEFATHER — Não sei dizer, quando dei por mim ele já estava parado bem ali onde está agora. — E o que o senhor fez? — Liguei para vocês! — Imediatamente? — Não! Eu fui até o avião para ver se alguém estava machucado. Vi quando o Comandante abriu a porta de emergência e disse tudo estar bem, aí liguei. — Nada mais a acrescentar? — Nada mais senhor... 02h45 — Notícia urgente direto da redação! Avião fez pouso forçado na Rodovia Dom Pedro I, interior de São Paulo, não houve vítimas. Vamos Ao Vivo com nosso repórter que está no local. É com você, Rocha! — É isso mesmo, Mauro! Um Airbus com mais de 500 passageiros aterrissou aqui no meio da rodovia, felizmente sem vítima alguma. Acabamos de falar agora a pouco com o comandante da aeronave, senhor José Eduardo, que ainda não sabe dizer como conseguiu aterrissar. Disse também que todos a bordo perderam os sentidos, provavelmente devido à pressão interna da nave. A única testemunha, Sr. Júlio Prado, de Campinas, que vinha em sua motocicleta, somente disse que

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POUSO CEGO - JOEFATHER viu a aeronave pousando e mais nada, depois acionou as autoridades. Não há sinal de choque contra o asfalto. Aguardaremos agora a perícia com o laudo da causa do incidente, que sairá provavelmente nos próximos sessenta dias. Rocha, da rodovia para a redação! — Agradeço, Rocha, ficaremos atentos e a qualquer momento vamos trazer Ao Vivo mais informações sobre o acidente. 60 dias depois — Boa noite! Começa agora o Tele21 com as notícias que foram destaque durante o dia. Saiu hoje o resultado da perícia técnica da aeronáutica, sobre o pouso forçado do Airbus 380 na rodovia Dom Pedro I há dois meses. Segundo a perícia, não houve dano algum na aeronave devido ao impacto com o solo, somente constatada falha geral na instrumentação devido pane eletrônica, o que nesses casos levaria a perda total do controle da nave, ocasionando queda imediata. Foi remetido como “inexplicável” o laudo final, uma vez que não existem outras testemunhas do fato. Especialistas chamados a falar sobre o assunto não quiseram opinar por se tratar de um caso inédito dentro da aviação mundial, que por esse motivo foi arquivado.

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POUSO CEGO - JOEFATHER 1 ano depois — Conversamos hoje com o historiador e ufólogo, senhor Maurício Dalavares, para o lançamento do seu décimo livro. Fique à vontade! — Obrigado! Estamos lançando hoje o meu livro, Mistérios Modernos, onde o último fato acrescentado foi um acidente de avião ocorrido há mais de 1 ano na Rodovia Dom Pedro I, interior de São Paulo, que até hoje não possui uma explicação plausível sobre a sua causa. Aterrissou sozinho na rodovia, sem acionar o trem de pouso, sem danificar a aeronave, sem deixar marcas no asfalto, sem vítimas ou testemunhas com dados concretos sobre o fato. Com certeza esse é um dos incidentes que podemos dizer que uma mão do além veio em seu auxílio, pois não existe outra explicação, assim dizem os especialistas que eu entrevistei e que eram os responsáveis pela investigação, entre eles técnicos e peritos da aeronáutica. Alguns passageiros, depois do episódio, afirmaram terem sonhado com intervenções divinas e acreditam que essa seja a grande explicação, mas eu sou um cientista e afirmo: algo de anormal aconteceu naquele dia e alguém com toda a certeza sabe do que eu estou falando, mas provavelmente a verdade não virá à tona, a não ser que essa testemunha queira contar ao mundo aquilo que somente ele e mais ninguém sabe. Todos os detalhes envolvendo o mistério, entrevistas, fotos, documentá-

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POUSO CEGO - JOEFATHER rio, estão num capítulo especial dedicado ao episódio. Agradeço a todos! Boa noite! 30 anos depois Quando eu era pequeno, lembro que eu sonhava um dia ser astronauta. Tenho certeza que esse desejo nasceu em mim devido aos passeios que fazia na chácara do meu avô, no interior do estado de São Paulo. Meus pais viviam e trabalhavam na capital, mas não ficavam nem um mês sem visitá-lo. O lugar que eu mais gostava de ficar era num tipo de torre de metal que ele tinha na propriedade. Neste local ele fez um tipo de cômodo no topo da torre, onde ele deixava sua luneta, uma estante repleta de revistas e livros falando sobre viagens espaciais e uma coleção de réplicas perfeitas de todos os foguetes que a NASA construía. Passava quase os finais de semana inteiros em que o visitávamos dentro daquela sua torre fantástica, torcendo para que meu avô ficasse comigo o maior tempo possível lá dentro, principalmente a noite, quando ele me ensinava sobre as estrelas. Eu cresci e estudando muito, me formei engenheiro aeronáutico. Lembro do orgulho do meu avô ao me abraçar,

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POUSO CEGO - JOEFATHER quando desci com o diploma na mão. Parecia até que ele estava mais feliz que os meus pais. Tive que fazer vários estágios fora do país, mas sempre que eu voltava para casa, fazia questão de ligar para ele e marcar uma visita. Foi assim a nossa última conversa. Eu já estava casado com a Marisa e o meu filho Roberto tinha completado recentemente treze anos de idade. Trabalhava numa importante multinacional que prestava serviços para a própria NASA e recebera um convite para participar de um novo projeto que seria gerenciado por esta agência espacial. Não via a hora de contar esta novidade para o meu avô, mas não o queria fazer por telefone, então disse que o visitaria no próximo final de semana, pois certamente teria que passar vários meses nos Estados Unidos. — É o que eu estou pensando, garoto? — ele me perguntou eufórico. Quis fazer um suspense, mas o meu avô era inteligente demais e difícil de ser enrolado, mesmo aos 81 anos. — É sim! Acredito que agora o céu é o limite. Ele ficou quieto por um tempo, depois comentou. — Fico muito feliz por você! Grandes coisas o aguardam no seu futuro! Grandes coisas… Marcamos de nos encontrarmos no final de semana, um encontro que não chegamos a realizar.

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POUSO CEGO - JOEFATHER 1 dia depois Era o início de uma terça-feira, acordei sobressaltado com o Sol já clareando o dia a algum tempo. Abri a janela e fiquei contemplando o céu azul, algo que me trazia uma paz imensa, mas que naquele dia não trouxe o efeito esperado, pois uma estranha ansiedade me invadia. Marisa entrou no quarto e tocou de leve meu ombro. — Já estou indo, amor — lhe disse, após dar um beijo em seu rosto. — Jorge, ligaram para você da empresa... Saí da janela e peguei minha agenda eletrônica. — Será que esqueci algum compromisso importante? — disse para mim mesmo, atribuindo a isso a ansiedade que me sufocava. — Não é isso, querido! É sobre o seu avô. O aperto em meu peito se tornou mais forte. — Meu avô? O que tem ele? — Eu sinto muito. Ele faleceu! Até aquele momento em minha vida poucas coisas chegaram a me emocionar tanto ao ponto de me fazerem chorar, mas ao ver a lágrima descendo no rosto da minha esposa, provavelmente pelo sofrimento que ela via em meu próprio rosto, não consegui me conter e minhas lágrimas, muitas, queimaram a minha face.

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POUSO CEGO - JOEFATHER — Isso é impossível! Marisa me abraçou forte e descobri que era exatamente aquilo que eu precisava naquela manhã. — Mas ele estava tão bem... — cochichei em seu ouvido — Conversei com ele ontem. — Disseram que foi enquanto dormia! Querem que você vá ao funeral hoje à tarde. Fiquei em silêncio por mais um tempo, enquanto as lágrimas ainda insistiam em sair, sem tentar escapar daquele abraço especial. — Eu irei — disse finalmente — Eu… preciso me despedir... 1 mês depois Ainda não acreditava que o meu avô havia realizado a sua última viagem, para o desconhecido. Mesmo após trinta dias, eu ainda estava muito frustrado por não ter lhe falado da minha próxima aventura, que poderia me levar ao topo, profissionalmente falando. Por sorte, a NASA pedira um adiamento de seis meses antes de iniciar o projeto e eu teria tempo de sobra para tentar amenizar a tristeza que eu sentia. Numa tarde, tentando me concentrar num outro projeto de um novo modelo de aeronave, uma mensagem apareceu no

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POUSO CEGO - JOEFATHER topo do meu aparelho de desenvolvimento. Cliquei com o dedo na mensagem e o rosto de um senhor desconhecido apareceu numa pequena tela. — Senhor Jorge Augusto Prado. — Sou eu.. — Muito prazer! Eu sou o Dr. Rui, advogado da Bertes Consultoria. — Em que posso ser útil? — Liguei para marcarmos a leitura do testamento do seu avô... — Ah, é necessário que eu compareça? Pensei que a minha família fosse tratar de tudo... — Sim, sei, mas o senhor é citado no testamento, então seria como atender um último pedido do seu avô... “Meu avô!” — pensei — “Que viajou para o desconhecido…” — Certo! Me passe o endereço que estarei lá. 20 dias depois Não conhecia esse lado excêntrico do meu avô, mas ele me surpreendeu quando determinou que a leitura do testamento fosse realizada na sua torre, que ficava na chácara. Eu cheguei uma hora antes do horário marcado para dar um passeio pela propriedade com meu filho e foi bem interes-

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POUSO CEGO - JOEFATHER sante ver as pessoas subindo na escada vertical, para chegarem ao local proposto. Deixei Roberto com minha esposa na parte de baixo e subi ao encontro deles, que não perderam tempo em realizar a tarefa para saírem daquele local, pois em seus rostos eu via o receio de que torre fosse desabar a qualquer momento. Não sabiam eles que o meu avô era um excelente engenheiro, que projetara e construíra aquele local sozinho e, segundo suas palavras, uma nave espacial podia posar perfeitamente sobre o platô superior da torre, que ela suportaria facilmente. O tabelião fez todas as justificativas padrão, depois encerrou com seu texto ensaiado. — Procedendo a leitura, eu, Rubens de Souza, tabelião encarregado desta circunscrição, valendo da vontade do falecido senhor Júlio Prado, faço saber que todos os seus bens ficarão para entidades assistenciais abaixo citadas, o qual em vida ele fartamente ajudou. O critério utilizado e justificado por ele foi que toda a família já possui situação financeira estável. Para o seu neto, filho de seu filho, senhor Jorge, ele deixa a chácara com tudo que estiver dentro da propriedade, e mais um cofre particular na sua agência bancária da cidade, contendo documentos particulares e relíquias adquiridas com o tempo. Aqui está a chave e a combinação, senhor Jorge. Fiquei sinceramente emocionado pela lembrança do meu querido avô. Aquela chácara fora um paraíso para mim no

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POUSO CEGO - JOEFATHER passado, certamente traria ótimas lembranças para o futuro que ainda estava por vir. — Obrigado! — disse olhando para uma foto do meu avô que se encontrava na estante, em meio às suas miniaturas de naves espaciais. 15 dias depois — O que seu avô lhe deixou no banco, meu amor? — Somente papéis velhos, alguns troféus e um antigo BD dentro de um envelope lacrado. Nos documentos que se encontravam no envelope, havia a instrução para que eu visse o conteúdo digital sozinho, depois de estudar toda a documentação, que é da minha área. O problema é onde irei ver o BD, pois estes discos deixaram de ser fabricados há um bom tempo. Marisa era muito prática e sorriu. — Jogue fora! Eu até cogitei a ideia dela, mas não queria me desfazer destes bens que o meu avô me deixara, pois tinha a sensação de que algo de especial se encontra perdido ali no meio. E foi num novo passeio na chácara que eu herdei que pude descobrir o segredo mais importante do meu avô, um segredo tão bem guardado que por pouco eu não arremessara numa lata de lixo.

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POUSO CEGO - JOEFATHER 30 dias depois Fui para a chácara para descansar e fazer uma faxina por lá. Convidei a esposa, mas ela preferiu ficar com Roberto, que estudava para as provas que aconteceriam na próxima semana. Levei comigo os pertences que retirei do banco e após dar uma limpada e organizada na torre, comecei a remexer os documentos que ele havia me deixado. Dentre eles uma carta direcionada a mim me chamou a atenção, especificamente numa das frases do meio da carta. “Lembra daquele meu aparelho, que eu usava para assistirmos os filmes sobre viagens no tempo e outros filmes de ficção científica que você tanto adorava? Ele ainda funciona…” Me recordei na hora do BD. Aquilo parecia ser uma pista para que eu pudesse reproduzir o disco, mas também podia ser coisa da minha cabeça. Meu avô adorava charadas e brincadeiras, vibrava ao me fazer quebrar a cabeça para desvendar os enigmas que ele criava. Dei uma vasculhada na estante, fui revirando revistas, até que dentro de uma caixa esquecida sob outras, encontrei o aparelho mencionado. Liguei-o e estranhamente ele funcionou de imediato. Olhei na sua lateral e vi que a barra de energia estava quase cheia, como se a sua bateria tivesse sido carregada a pouco tempo.

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POUSO CEGO - JOEFATHER Rapidamente coloquei o BD e uma introdução de Star Trek encheu a tela de vinte polegadas do pequeno aparelho, que tenho certeza que meu avô deixou de propósito, pois sabia que eu amava esta série. Um pouco depois a imagem do meu avô alguns anos mais jovem apareceu lentamente na tela e iniciou um monólogo comigo, uma conversa que ele acreditava que um dia teríamos, mas não enquanto ele estivesse vivo. “Por quê?” — lhe perguntei enquanto ele se arrumava no banco, dentro do vídeo. Em pouco tempo ele me respondeu. — Meu caro Jorge, como é que você vai, meu neto? Provavelmente, se está assistindo essa minha gravação, eu já devo estar em outro plano, mas não fique triste, pois um dia nos encontraremos novamente, assim espero… “Desculpe por todo esse meu cuidado para que visse sozinho o conteúdo desta gravação. Daqui a pouco vai compreender o porquê de eu ter agido assim. Posso até ter sido cuidadoso demais, mas existe uma explicação sensata para isso.” “Eu sei que pensa agora que eu estou somente me divertindo e brincando contigo, como fizemos tantas e tantas vezes, pode até ser, quem vai saber? Mas deixe a mente aberta, meu neto, pois seu pai era cético demais, calculista demais, um bom homem, é verdade, mas jamais será um sonhador como você, jamais.”

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POUSO CEGO - JOEFATHER “Se leu antes os papéis, viu que existe uma reportagem sobre a misteriosa aterrissagem de um avião numa rodovia chamada Dom Pedro I. Era a única informação que eu gostaria que lesse de verdade, o resto era só para lhe confundir. Se prestou atenção viu também que eu fui a única testemunha deste fato e apesar de estar escrito lá que nada vi de anormal, tenho que lhe confessar agora que eu menti…” “Eu preferi guardar segredo, afinal não tenho nem ideia do que aconteceria se eu agisse diferente, creio que foi melhor assim.” “Escolhi você, meu neto, para passar essa informação, primeiro porque eu não gostaria que fosse comigo para o túmulo e depois devido à importante função que você desempenha dentro da aeronáutica moderna, tanto nos testes quanto na engenharia. Faça bom proveito dessa informação, mas lhe aviso com antecedência que é algo que vai mudar seu jeito de ver todo o Universo, portanto, se achar melhor, desligue agora essa gravação, quebre o disco e continue sua vida.” Dei uma pausa no vídeo e a imagem do meu avô sorrindo ficou na tela. Um sorriso enigmático, que eu conhecia bem. O sorriso de alguém que esperava que eu não desistisse. Mesmo assim, com o coração acelerado, desci até a cozinha da chácara e tomei duas cervejas para me acalmar, enquanto fiquei um tempo sentado numa das poltronas da varanda, observando o céu. Já passava das cinco da tarde, resolvi

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POUSO CEGO - JOEFATHER esperar até o anoitecer para tomar uma decisão e cheguei a dormir na varanda. Foi um sono profundo e cheguei a ter um pesadelo que me sufocou. Nele eu abria os olhos na varanda e já estava escuro. De repente senti uma onda de calor sobre o meu corpo, quando um jato de luz verde saia da parte de baixo da torre do meu avô. em pouco tempo a base da torre ruiu, com vários pedaços caindo quase sobre mim, sendo impedidos somente pelo telhado da varanda. Olhei para fora e a parte de cima da torre flutuava. Em pouco tempo a sua aparência rústica foi dando lugar para uma superfície lisa e depois ela decolou rumo ao espaço, levando o meu avô dentro dela como seu único tripulante. Depois disso o ar esfriou rapidamente e comecei a sentir calafrios, até que acordei do pesadelo e me vi encolhido na poltrona. O ar daquela noite de junho estava gelada. Busquei um casaco dentro da chácara, fiz um rápido café, depois sentei novamente na varanda, onde fiquei por mais um tempo imaginando o que fazer a seguir.

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POUSO CEGO - JOEFATHER 1 hora depois Por fim, a curiosidade falou mais alto em mim e retornei para a torre. A imagem congelada e sorridente do meu avô permanecia na tela e sem pensar duas vezes, continuei o vídeo. — Creio que algo de mim reside em você, portanto, não vai desligar, não é mesmo? Então se acomode na cadeira e relaxe, pois ainda tenho uma boa história para lhe contar. “No dia daquele incidente que somente eu testemunhei, voltava de Campinas de moto, uma imitação de Harley que eu tinha. Percebi que uma luz forte descia rumo à rodovia vindo do céu. Diminuí a velocidade e parei no acostamento, quando constatei, apesar da escuridão da noite, se tratar de um avião.” “Estava com minha filmadora digital novinha dentro da mochila e pensei na hora que seria uma bela oportunidade para fazer um vídeo incrível, pois tinha a nítida impressão que a aeronave fazia um pouso forçado. Você lembra desse meu passatempo, não, de ficar fazendo filmes da família pra depois postar na rede? Pois é, andava filmando por toda a parte aonde ia.” “Coloquei a moto no pezinho, peguei a filmadora e a preparei. Preparei a melhor resolução possível, acendi todas as luzes auxiliares que ela possuía, pois estava escuro demais, apesar da Lua sobre a minha cabeça, e então finalmente iniciei a filmagem.”

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POUSO CEGO - JOEFATHER “Só fui perceber que havia algo de errado quando não escutei o barulho das turbinas, isso cerca de 300 metros do ponto onde eu estava. Não sou especialista em aviação como você bem sabe, mas tive certeza na hora que algo incomum estava acontecendo, então me empenhei mais ainda em caprichar na filmagem.” “Quando ele estava a uns 100 metros mais ou menos, percebi várias coisas ao mesmo tempo: o avião vinha devagar demais, a luz parecia vir da parte detrás dele e o mais intrigante é que ele descia com o bico meio inclinado para a esquerda. Eu pensei que aquilo era impossível e só poderia ocorrer caso o avião estivesse sendo rebocado.” “Foi nessa hora que percebi que a luz alta que agora quase me cegava só poderia vir de outra nave que estava literalmente carregando o avião, do qual não se via mais nenhuma luz acesa em ponto algum. Ele continuou descendo cada vez mais lentamente, chegando a cerca de uns 15 metros de mim, até que ele parou e desceu na vertical mais lentamente ainda e parou. O avião ficou por um tempo suspenso no ar e então começou a ser baixado para o solo verticalmente. Percebi claramente que seu trem de pouso não fora acionado, outro detalhe que me passou despercebido antes”. “Enquanto o avião tocava o solo, corajosamente eu me aproximei, ainda filmando, e tenho certeza que a aeronave que rebocara o avião continuava invisível para meus olhos, pois a luz da minha filmadora atravessava o local onde ela deveria

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POUSO CEGO - JOEFATHER estar. Como que para confirmar o que eu estava pensando, uma onda de cor metálica correu por toda a estrutura de uma nave enorme e redonda, que após alguns segundos ficou visível, enquanto meu coração queria saltar pela minha boca, tal a tensão em que eu me encontrava.” “Nesse momento minhas mãos tremiam tanto que parecia haver um terremoto acontecendo em minha volta. Logo a aeronave ficou semitransparente e se afastou do avião, iniciando uma subida na vertical, até que quando alcançou a altura de um prédio de trinta andares, seguiu em direção ao céu numa velocidade impressionante.” “Fiquei ainda um tempo com a respiração acelerada e percebi que filmava o céu vazio. Voltei a filmadora na direção do avião e desliguei a mesma, guardando-a rapidamente na mochila presa às costas. Corri para o avião e bati em sua fuselagem. Em pouco tempo a saída de emergência lateral foi aberta e eu liguei para a polícia. O resto é o que está escrito no jornal que você deve ter lido. Não disse nada do fenômeno que havia presenciado para absolutamente ninguém. Na hora nem sei porque agi assim, mas com o tempo percebi que havia procedido de forma correta.” “Não me resta dizer mais nada, agora basta olhar o vídeo e tirar as suas próprias conclusões, mas meu querido neto, ainda dá tempo de desligar o vídeo. Pense bem, pois depois não tem mais volta…”

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POUSO CEGO - JOEFATHER Foi inevitável dar outra pausa no vídeo. Tudo aquilo que o meu avô contara era fantástico demais, mas o conhecendo bem, parecia ser mesmo uma grande piada. “Mas e se não fosse?” — pensei ao me afundar na cadeira e prosseguir com o vídeo. 10 minutos depois Não era mentira do meu avô. Vi no vídeo exatamente tudo que ele descrevera minuciosamente e fiquei boquiaberto. Ainda estava atônito, quando meu avô retornou para a tela do vídeo. — Em algum momento achou que era mais uma brincadeira minha? Pois se achou, se enganou! Queria estar aí do seu lado para ver a sua cara depois de pensar que eu havia enlouquecido. E não pense que se trata de uma montagem, nem cogite isso. Eu jamais faria isso com você, meu neto, você sabe muito bem... “Agora você tem em mãos um conhecimento que eu guardei por muito tempo e o que você fará com essa informação que lhe deixei eu sinceramente não sei. Use-a bem! “Para mim foi importante ter a certeza de que não estamos sozinhos no Universo, mas sempre fui um homem equilibrado e tive o receio que essa informação pudesse vir até a destruir o

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POUSO CEGO - JOEFATHER nosso mundo, é isso mesmo, tal a maneira como aqueles que detêm o poder acabam agindo diante de circunstâncias que desconhecem.” “Fui procurado por aquele ufólogo famoso, o Maurício Dalavares, alguns meses depois do incidente. Quase lhe contei toda a história, porque ele sabia ser insistente e persuasivo, e tinha certeza que eu andava ocultando coisas. Por pouco eu acredito que não fiz uma tremenda besteira.” “Que bom que você me acompanhou até aqui na minha última história, eu sabia que o faria, você é igual a mim nesse ponto, curioso como ninguém. Vamos ver no que mais nós dois somos parecidos…” “Eu amo você, meu querido Jorge. Ainda iremos nos encontrar. Neste ou em outros mundos, quem sabe? Espero que seja feliz!” Naquela noite e por vários dias eu meditei muito sobre tudo que assisti. Revi o vídeo várias vezes, antes de voltar a guardá-lo, junto com as reportagens e documentos, agora num cofre pessoal meu. O que eu faria com aquele conhecimento? Isso eu ainda não sabia dizer...

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POUSO CEGO - JOEFATHER 30 dias depois Num almoço especial de domingo, uma semana antes de eu viajar para a NASA, minha esposa tocou no assunto que me fazia perder horas de sono todas as noites. — E aí, você não me falou nada sobre aquela herança do seu avô… Eu ensaiei meu melhor sorriso amarelo antes de lhe responder. Tal meu querido avô, eu não sabia mentir. — Meu bem, foram só lembranças que ele gostaria de compartilhar comigo. — E o que vai fazer com elas? Essa era uma excelente pergunta. — Ainda estou pensando nisso… Havíamos decidido ir os três para os Estados Unidos. Ela aproveitaria para fazer um mestrado em línguas e Roberto faria um curso de inteligência artificial na NASA, voltado a jovens cientistas. Apesar da nossa alegria em viajarmos juntos, meu filho andava um pouco triste. Todo garoto adora o mundo onde vive e por vezes, cria raízes. Eu também já fui como ele, sei bem como é... 2 horas depois

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POUSO CEGO - JOEFATHER Dei um pulo em nosso jardim e o peguei assistindo um filme num dos novos aparelhos que materializavam as imagens em tamanho real. Ele parou o filme ao notar minha presença e veio se sentar ao meu lado, na cadeira larga que deixávamos para as raras visitas. — Pai, sinto muito pela morte bisavô — disse ele me abraçando. Senti um aperto no coração e lágrimas querendo molhar os meus olhos. — Obrigado filho, eu estou bem… Ele me olhou com aqueles seus olhos grandes e lindos. — É que o senhor tem andado muito estranho depois que ele se foi. É lógico que ele percebera. Nós éramos muito amigos, assim como eu e o meu avô. — Eu sei! São muitos assuntos que tenho que resolver — disse tentando desconversar. — Está falando da viagem? Vai ser legal… — Não está triste? — perguntei agradecendo por aquela mudança de assunto. Ficamos um tempo conversando sobre as vantagens e desvantagens daquela viagem, para ele e para mim. No final, Roberto me surpreendeu. — O bisavô Júlio iria adorar também fazer esta viagem. — Por que você acha isso?

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POUSO CEGO - JOEFATHER — Aqueles modelitos de naves que ele guardava na estante. Eram tantos e tão perfeitos… — É verdade! Já lhe contei que foi ele que me inspirou a trabalhar com foguetes? — Já pai! Várias vezes. — Bom filho, eu posso dizer que seu bisavô era uma pessoa muito boa, por isso sinto tanta saudade dele. — E ele lhe deixou várias lembranças. Tenho certeza que gostou de todas. Este meu filho era sábio demais e estava certo. — É verdade. Gostei de todas! Mas tem um presente especial que somente ele poderia me deixar e que supera a todos os outros. Roberto me olhou curioso e reconheci em seu rosto a mesma curiosidade que eu carregava comigo. Arrumou a armação dos seus óculos e me questionou. — E qual seria esse presente, pai? Olhei para o céu e num rápido momento, imaginei meu avô pousando a parte de cima da sua torre em um planeta qualquer e me aguardando para darmos um passeio pelo espaço. Foi impossível não sorrir e aproveitei para abraçar Roberto. — Se chama conhecimento, meu filho. Algo que no momento certo você também herdará de mim...

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SAFÁRI E. Reuss

[Perfil do Wattpad]

A última vez em que Isabel e eu nos tocamos foi quando ela pisou em meu pé e provocou uma infecção na unha do meu dedão. O ataque foi uma forma indireta de Isabel dizer que eu era imaturo, irresponsável e um bosta incapaz de criar uma filha e de manter um trabalho. Eu a odiava por estar certa e só esquecia do ódio quando entrava no quarto de nossa filha. Agradecia a oportunidade de poder atravessar aquela porta sem ser expulso, pegá-la no colo e cheirar sua cabeça. O problema é que nada daquilo mudava o fato de eu ter levado nossa família à falência com as minhas escolhas profissionais. A infecção no dedão era merecida. Portanto, tentei me redimir e encontrei uma solução simples, que enriqueceu minha família, mas me transformou num criminoso e num fugitivo e me levou ao Brasil.

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SAFÁRI – E. REUSS Quando cheguei em São Paulo, embarquei num dos jatos de médio porte que faziam o translado para o extremo sul do país. As duas primeiras horas de viagem se passaram numa monotonia desoladora. Olhava pela janela, para planícies e montanhas cobertas por plantações de trigo, e as únicas coisas em movimento eram bandos de pássaros e grandes colheitadeiras controladas por satélite. O piloto anunciou a entrada da aeronave em ecossistema protegido por lei internacional. Logo em seguida vi girafas e colei o rosto contra a janela. À medida que avançávamos, o número de girafas parecia aumentar consideravelmente. Havia algo de estranho naquela abundância animal, quase surreal. Girafas se amontoavam sobre girafas, brigavam entre si e dormiam amontoadas formando um tapete amarelo sobre o campo. De repente, as girafas sumiram e deram lugar aos leões, que se amontoavam da mesma maneira. Entre as duas espécies, uma nítida trilha de dez metros de largura as separando. O piloto disse pelo alto falante: “Olhem, pessoal. Um leão preso na cerca.” Olhei pela janela e vi um leão suspenso no ar, flutuando e agitando as patas em desespero. Para os que viam aquilo pela primeira vez, o piloto explicou vagamente o funcionamento das cercas eletrostáticas e suas bobinas de três metros de diâmetro enterradas sob a terra, girando e produzindo um

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SAFÁRI – E. REUSS campo de estática tão forte que poderia interromper no ar aquele jatinho. E assim as coisas começaram a perder o encanto. Onde estava a tão prometida diversidade animal? As lutas entre presas e predadores? A natureza crua e intocada pelo homem? Tudo parecia um circo. Vi uma zebra ser suspensa por um helicóptero e levada até o centro da área de leopardos. A zebra foi atacada como uma piñata gigante e os leopardos quase se mataram tentando comê-la, enquanto uma pequena plateia batia palmas. No segundo dia naquele país, caminhei sem rumo até encontrar uma trilha marcada por placas de sinalização que diziam: O Rio Assassino. Fiquei curioso e segui a trilha por quase uma hora, chegando ao fim dela e me deparando com algo que não era um rio, mas um pequeno açude de cor e consistência semelhante à de fezes humanas. Uma placa fixada nas margens do açude dizia “Alimente mais de 500 piranhas famintas” e apontava para uma catapulta acionada remotamente, que lançava ao rio guaxinins enjaulados sempre que um turista colocava uma moedinha no console. Encontrei um lar no Bairro Holográfico, um esgoto a céu aberto onde se amontoavam criminosos e degenerados, homens cujos olhos pareciam nunca piscar. Caminhei pelas ruas negras cobertas de lama e olhei pela primeira vez através

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SAFÁRI – E. REUSS das janelas dos porões onde vendiam explorações cerebrais videográficas, ou ECEVs. Desci as escadas e me ofereceram um catálogo de explorações, um grande livro negro onde cada ECEV tinha seu próprio título e capa. Pareceu-me um catálogo de uma agência de viagens, mas especializada em destinos terríveis, cujos títulos soavam estranhamente poéticos, coisas como o “Assoalho Sangrento do Submundo” e o “Assassinato de um Relojoeiro Judeu”. Quando o vendedor viu que eu não parecia interessado, me empurrou um catálogo de capa vermelha. “Esses são do caralho.” Ele disse. Abri o livro, mais leve que o anterior, e me deparei com a foto de uma cabeça decepada. Ali estavam os snuffs, os estupros e as torturas. Vídeos extraídos diretamente dos cérebros de psicopatas, ou de suas vítimas. Perguntei ao homem atrás do balcão se ele não tinha algo mais rotineiro. “Rotineiro?” Ele disse. “É, sabe, coisas do dia a dia?” “Do dia a dia?” Assenti com a cabeça. Ele abriu o livro negro e apontou para alguns ECEVs com nomes como “Faxineira Uruguaia e o Manejo do Esfregão” ou “Balé Colegial: O Cisne Negro Parte 2”.

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SAFÁRI – E. REUSS Eu disse que não era aquilo que estava procurando. Perguntei se não haviam cenas comuns, familiares, inofensivas. “Cenas de homens responsáveis, sabe?” Perguntei. E maduros, eu queria dizer, capazes de criar uma filha e de manter um trabalho. O homem atrás do balcão me lançou uma expressão de desamparo e disse: “Se é o que te apetece.” E jogou um catálogo fino e estropeado sobre a mesa. *** Um dos ECEVs acompanhava um homem sem um dedo da mão construindo um berço para o primeiro filho. Era tão doloroso assistir ao vídeo que o vendedor teve que arrancar o visor do meu rosto antes que minhas lágrimas queimassem o aparelho. Então assisti a um ECEV que mostrava um fazendeiro extraindo batatas da terra e recebendo lambidas no rosto de um cachorro tão preto que parecia azul. Outro ECEV ocorria no leito de um hospital. Pude sentir a iminência da morte e que era amado. Uma senhora e uma mulher de uns quarenta anos nos fundos do quarto olhando para mim em visões entrecortadas pelas próprias pálpebras do homem que eu habitava. No fim, as pálpebras se fecharam e tudo ficou escuro e silencioso, de modo que arranquei o visor e me afastei dali correndo desesperado.

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SAFÁRI – E. REUSS No dia seguinte, voltei ao Bairro Holográfico e comprei meu próprio óculos de reprodução ecévica. Comprei também alguns cartuchos, incluindo a construção do berço e os últimos momentos do homem no hospital. Caminhei até os campos abertos nos arredores do Bairro Holográfico e vi que outros, como eu, caminhavam por lá imersos em seus ECEVs particulares. Um bando carismático. Caminhar aumentava a imersão, era o que diziam, e pude confirmar isso acoplando um cartucho novo em meu visor. Logo fui transportado para uma casa rústica de madeira onde dois homens conversavam à mesa e um terceiro preparava café enquanto brigava com eles. Então percebi que o cartucho deveria ter vindo por engano, porque o homem que preparava café começou a chorar e logo a filmagem se transformou num pornô sobre um casal homossexual poligâmico. Nesse momento, tropecei em algo no meio do caminho e caí sobre uma superfície macia e quente. Retirei o visor e me deparei com o cadáver de um lobo sob mim. Aterrorizado, olhei ao redor e vi outros lobos, dezenas, todos com as gargantas cortadas. Ouvia vozes, mas a cena era tão estranha que eu não conseguia tirar meus olhos dela. “Olha lá.” Alguém disse. “O que é?” “Lá no meio dos lobos.” “O que? Um homem?”

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SAFÁRI – E. REUSS “Ná, só um viciado.” *** A primeira coisa que me disseram quando cheguei à delegacia foi que eu faria parte de uma investigação televisionada e me obrigaram a assinar uns documentos. O processo de justiça brasileiro era uma longa e custosa produção midiática, que arrecadava milhões de dólares em publicidade e direitos de reprodução. Ouvi falar sobre investigações e julgamentos televisionados em que as testemunhas eram interrogadas em pleno tribunal, com câmeras dos principais canais espalhadas pelo camarote de imprensa. De modo que não me surpreendi quando vi surgir no corredor da prisão um grupo de oito pessoas, entre eles um cameraman, um diretor e uma maquiadora, que se pôs diante de mim e disse para eu me aproximar das grades. Perguntou se eu era algum pervertido e eu disse que não. “Que pena,” ela disse. “O Joaquim tá sem quebrar um pescoço há alguns dias já.” Olhou para trás e indicou o Joaquim, um segurança com no mínimo um metro e noventa e uma barba tão desgrenhada que parecia nascer para cima. “Vamos fazer perguntas simples e você responde.” Disse o diretor do programa, usando um boné vermelho. “Depois vamos fazer um dolly lento, provavelmente uns 20 segundos.

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SAFÁRI – E. REUSS Você vai fazer uma cara triste, num canto escuro que o nosso diretor de fotografia vai indicar. Deve parecer arrependido e desesperado. Se chorar, melhor. O resto a gente edita fora.” Eu concordei e o homem da iluminação começou a armar os refletores. A luz que as lâmpadas irradiavam era quente e num instante extinguiu todas as sombras da cela escura. O diretor, que também era o entrevistador, começou a falar para a câmera sobre os massacres que vinham ocorrendo há dois anos, sem solução. “Seu nome?” Disse o diretor depois da breve introdução. “Sérgio Macedo.” “Tens cara de estrangeiro.” “Sou espanhol.” Eu disse. “Mas cidadão brasileiro.” A maquiadora se aproximou e entregou ao entrevistador meus documentos. “Parecem falsos.” Ele disse. Comecei a tremer. Antes que eu pudesse responder, ele perguntou em que momento da minha vida eu decidi ser um assassino de espécies ameaçadas de extinção. “Nunca matei um animal ameaçado de extinção.” Eu disse. “Tem certeza?” “Claro.” “Com o que você trabalha, Sérgio?” Disse o diretor. “No momento, desempregado.” “E antes de ser desempregado?”

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SAFÁRI – E. REUSS “Trabalhava num matadouro na Espanha.” Subitamente, todos me olharam surpresos, inclusive o segurança. “Permita-me dizer que o teu currículo não te faz nenhum favor, Sérgio.” Disse o diretor. “Eu sei.” “E gostaria de acrescentar que o infeliz que confeccionou teu passaporte pode ter errado feio na cor da capa.” Eu suava como se estivesse sendo lentamente assado pelos refletores. “Mas Deus me livre de transformar isso em uma investigação de falsificação documental.” Ele disse, sorrindo sarcasticamente. “Todos sabem que as penas são piores, mas o apelo ao público é muito menor.” O diretor me lançou uma piscadela e então disse: “Você sabe o que eu quero?” “Uma confissão?” Eu disse. “Deus, não.” O diretor disse, fazendo um gesto para o cameraman parar a gravação. “Você tem ideia do dinheiro que essa história dos animais mortos tá trazendo?” “Não.” “Exatamente. Eu só quero uma boa história. Um rosto confuso, marcado pelo tempo e pelas escolhas erradas. Preciso de uma história pessoal de sobrevivência e arrependimento. O problema de se filmar uma história sobre bichos decapitados é que faltam personagens humanos. Entende? Para fazer o nosso

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SAFÁRI – E. REUSS telespectador chorar. Seu rosto é perfeito para isso, senhor Sérgio.” “Obrigado.” Eu disse. “Assim que Marguerite escurecer um pouco essas olheiras, ficará melhor ainda.” “E como fica o caso dos meus documentos?” Perguntei. “Nunca vi os seus documentos, senhor Sérgio. Nem sei a que documentos se refere.” Ele disse, fechando um zíper imaginário sobre os lábios. E então discursei sobre as mazelas da minha alma. Disse-lhes onde estava no fatídico dia da morte do Panda Jujuba. Estava terminando com minha namorada no momento em que vi o último panda vivo do mundo ser decapitado por terroristas russos. Minha namorada chorava aos berros enquanto eu assistia à vida do pequeno panda se esvaindo de seus olhos. Naquele momento, não podia imaginar que aquele acontecimento mudaria o destino do mundo. Logo começaram as negociações. Eram notícias breves, sem peso real para aqueles que moravam na Europa. Começaram a surgir as conversas sobre um país à venda e o Brasil passou a povoar qualquer mente que cultivasse uma preocupação com o futuro. ONGs e painéis governamentais defendiam a necessidade de se construir em algum lugar do mundo uma espécie de conservatório da fauna mundial. Outros, humanistas radicais,

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SAFÁRI – E. REUSS falavam sobre uma terra exclusivamente agrícola, que alimentaria o resto do mundo, sem restrições. As mentes mais brilhantes consideravam ambas as possibilidades e apontavam o Brasil como o paraíso. Lembro até hoje de uma charge famosa que mostrava um zoológico construído na base do Pão de Açúcar. No centro da figura, o dono de uma das maiores companhias de tecnologia da época vestia um biquíni e se defendia de um leão enfurecido com um banquinho de madeira. A legenda da figura dizia: Mi casa, su casa. O que na época parecia piada, em pouco tempo se tornou realidade, com algumas poucas diferenças: o Rio de Janeiro nunca se tornou um polo de proteção ou turismo ambiental, e nem entrou na rota portuária da exportação de alimentos. Durante tudo isso, vi minha profissão ser transformada numa vergonha nacional. Me sentia como devem ter se sentido os motoristas de charretes quando as ruas foram ocupadas por veículos peidorrentos. O matadouro em que eu trabalhava na Espanha foi transformado no Museu Agropecuário de León, e todos os trabalhadores que não sabiam lidar com as exigências dos turistas mimados foram mandados embora. Éramos uma legião de assassinos de animais perdidos num mundo que não os comia mais. Sem emprego e assolado pela vergonha de representar um passado enegrecido, passei a noite num bar e fui expulso de lá aos chutes por não ter dinheiro para pagar a conta.

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SAFÁRI – E. REUSS Cheguei em casa e me deparei com a fantasia de um panda sobre a mesa da cozinha. Era a fantasia de Érica para a apresentação do cursinho de responsabilidade ambiental, que eu acabei esquecendo completamente enquanto tentava induzir um coma alcoólico. Sobre a fantasia, um bilhete de Isabel dizendo que era para eu imaginar que meu lado da cama era um poço de lava e ir dormir na garagem. Caminhei num ritmo fúnebre até a garagem, onde havia um colchão no chão e uma lagartixa morta sobre o travesseiro. Passei a noite acordado planejando um café fabuloso em família. Levantei-me às seis da manhã e preparei panquecas, omelete, brigadeiro e um bolo de chocolate. Recebi as pessoas que eu mais amava nesse mundo na cozinha com o meu melhor sorriso. Mas algo estava errado, pois Isabel lançou um olhar aterrorizado para a mesa do café da manhã. Os olhinhos de Érica, ao contrário, brilhavam de alegria e sonolência. Ela gritou Oba e correu até a mesa, mas foi impedida por Isabel. “Mamãe quer falar com o papai.” Isabel disse, e aquela frase me deu arrepios. “Eu sei que a tua memória é equivalente à de uma marmota.” Disse Isabel. “Mas gostaria de te lembrar que hoje é o exame de intolerância à lactose da Érica. Então eu espero que tu tire toda essa tralha da mesa sem fazer minha filha chorar, seu filho da puta.” Algo pareceu morrer dentro de mim. Fui até a sala e Érica me aguardava com as mãos atrás das costas, quase não

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SAFÁRI – E. REUSS conseguindo conter a ansiedade. Eu fiz promessas, pensei. Aquele pote de brigadeiro sobre a mesa era uma delas. Disse a Érica que aquele banquete teria que esperar até ela voltar do laboratório. Érica piscou os olhos e disse: “Que laboratório?” Olhei para trás e Isabel cobria vergonhosamente o rosto com a mão. “Sua mãe vai levar você para um exame.” Eu disse, no tom mais indiferente que consegui. “Exame?” Érica disse, um leve tremor nos lábios que prenunciava um ataque de choro. Tentei dizer que o exame era indolor e consistia em beber copos e copos de leite, mas aí me lembrei que Érica odiava leite puro e nesse ponto o berreiro já nos havia feito desistir de qualquer estratégia conciliadora. Isabel pegou Érica no colo, disse “obrigado” e pisou com força no meu pé enquanto saía. “E isso, meus senhores,” eu disse para a equipe de televisão, “antes mesmo de eu dizer que estava desempregado.” O diretor me encarou fixamente por alguns segundos antes de fechar os olhos e bater três palmas lentas e retumbantes. “Ótimo.” Ele disse. “Maravilhoso. Não é maravilhoso, pessoal?” A equipe concordou com a cabeça, com exceção do segurança.

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SAFÁRI – E. REUSS “O take final, agora. Por favor, Sérgio, repita tudo isso, agora com mais emoção.” Disse o diretor. “Marguerite, traz as lágrimas.” *** No décimo primeiro dia preso, recebi a visita de um detetive. Seu nome era Gaspar Bragança e ele disse que precisava da minha cooperação. Perguntei quando é que eu poderia voltar para casa. “Não tens endereço registrado.” Disse o detetive. “E daí?” Eu disse, exausto. “O Órgão Internacional de Proteção aos Ecossistemas Privados nos dá o direito de manter em prisão temporária aqueles sem residência registrada.” Sorri para o detetive. Um homem que me pareceu simpático, apesar das circunstâncias, meio nervoso, talvez um pouco inseguro. Perguntei então de que tipo de cooperação ele precisava. “Uma autorização para acessarmos o teu chip.” Ele disse. “O meu chip?” Eu disse. “Se és um cidadão brasileiro, imagino que tem um Chip de Processamento Visual implantado no teu cérebro.” “Claro, mas por que acessar o meu chip?”

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SAFÁRI – E. REUSS “Seu interrogatório não esclareceu algumas coisas importantes.” Ele disse. “Que interrogatório?” “A entrevista para o canal 22.” “Aquilo era um interrogatório?” Perguntei, surpreso. “Gosto de dizer que sim.” Ele disse, abaixando os olhos. “Não sou muito bom com as pessoas, então prefiro que eles façam as perguntas.” “Você parece um cara legal.” “Obrigado.” Disse o detetive. “Mas não tenho muitos amigos.” “Ah.” “De qualquer forma, precisamos estabelecer o motivo de sua fuga da Espanha.” “Por que precisam estabelecer isso?” Eu disse, assustado. “Curiosidade.” Ele disse. “E porque de acordo com as nossas estatísticas, é de lá que vem a maioria dos terroristas especializados em massacres animais.” “Eu não vim para cá massacrar animais.” “Eu sei. Terroristas não se viciam em ECEVs.” Ele disse, como se fosse o fato mais óbvio do mundo. “Ah, não?” “Não. São poucos os motivos para alguém se viciar em ECEVs. E, como eu disse para o Nuno, acho que eu sei porque você se viciou.”

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SAFÁRI – E. REUSS “Quem é o Nuno?” “Meu cachorro.” Ele disse. “É com ele que eu discuto minhas teorias investigativas.” “Certo.” Eu disse. “E porque você acha que eu me viciei em ECEVs?” “Para ver se encontrava o Fundo do Poço.” O detetive disse sorrindo com um ar orgulhoso. “O fundo do poço.” Repeti, como se degustasse as palavras. “Uma teoria minha. Vocês se viciam em ECEVs porque querem ver até onde podem descer. Anestesiam o cérebro com ECEVs ou com qualquer outra droga só para a queda não doer tanto. Sabe, eu acredito que algumas pessoas só se sentem realizadas quando são uma decepção. Porque se não fossem capazes de decepcionar os outros, isso significaria que, todo esse tempo, o poço não era um poço, mas a porra de uma piscina de bolinha ou algo raso e patético. Por isso eles continuam a testar a sorte e a cagar em suas vidas até encontrarem o que procuram: O Fundo do Poço, que pode ser a morte ou o momento em que alguém te oferece a mão.” “Boa teoria.” Eu disse. “Mas não explica por que eu vim para o Brasil.” O detetive encolheu os ombros e assentiu com a cabeça. “Verdade, mas eu não estaria nessa profissão se não fosse capaz de descobrir.” Ele disse. Então passou uns papéis através

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SAFÁRI – E. REUSS das grades, que falavam sobre os riscos de se extrair uma exploração cerebral videográfica. Amnésia temporária, cefaleias, distúrbios de fala, tonturas, vômitos, sintomas psicóticos, embolia pulmonar e morte. “Bom, parece tudo ok.” Eu disse e assinei os papéis. Para falar a verdade, eu estava curioso. O detetive chamou o carcereiro e pediu para ele abrir a cela. Gaspar tirou de uma mala de plástico um aparelho que se parecia com uma pistola e pediu para eu me sentar em algum lugar e virar a cabeça para a esquerda. Então ele posicionou a ponta da pistola atrás da minha orelha até o aparelho soltar um apito agudo e nesse momento senti algo que se pareceu com um beliscão. “Já deu?” Eu disse. “Já. A transferência é quase instantânea.” “E agora?” “Agora podemos assistir.” Disse o detetive. “Gostaria de assistir comigo?” “O que? Meu próprio ECEV?” “Se quiser, claro. Afinal, é seu.” Eu o encarei por alguns segundos, desconfiado, o que pareceu deixá-lo com vergonha. “Prefiro que a pessoa saiba o que estou assistindo quando invado sua privacidade.” Ele sorriu.

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SAFÁRI – E. REUSS Eu aceitei a proposta e o Detetive guardou o aparelho. Retirou da mala um pequeno monitor de dez polegadas e o conectou ao extrator em forma de pistola. Em poucos segundos surgiram na tela várias pastas diferentes, cujos nomes eram datas recentes. O detetive procurou pela data do massacre dos animais e selecionou o arquivo equivalente ao intervalo de tempo em que a chacina foi cometida. Para o espanto do detetive Bragança, uma cena de sexo intenso envolvendo três homens barbudos numa cozinha apareceu na tela. Assistimos em silêncio, a tensão crescendo no ar entre nós à medida em que os homens do vídeo aproximavam-se do clímax. “Bom, parece que não tem nada de útil por aqui.” Disse Gaspar, pausando o ECEV. “Eu juro que esse cartucho veio por engano.” “Por favor, Senhor Sérgio, não precisa se explicar.” “Eu só queria cenas do dia-a-dia.” E então o detetive inseriu o seu crachá na lateral do monitor e digitou uma senha. Uma nova série de pastas apareceu na tela e o detetive pareceu surpreso. “Nunca vi um Depósito de Delitos tão cheio.” Ele disse. O Depósito de Delitos nada mais era do que uma partição oculta acessada apenas pela justiça daqueles países que autorizavam o uso de ECEVs como provas criminais. O

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SAFÁRI – E. REUSS sistema do Chip de Processamento Visual possuía um módulo que gravava experiências de acordo com as reações psicomotoras que elas provocaram no indivíduo. Coisas como pH da pele, taxa de adrenalina no sangue e ritmo de batimentos cardíacos. O problema é que essas experiências poderiam ser simplesmente momentos em que o indivíduo se sentiu vulnerável ou emocionado ou ameaçado, de modo que essa partição oculta quase sempre se mostrava inútil. Apesar disso, o Detetive Gaspar Bragança decidiu assistir cada um dos vídeos disponíveis, como se não tivesse nada melhor para fazer do que assistir aos pedaços tediosos e tristes da minha vida. *** Era o dia seguinte ao massacre do Panda Jujuba, quando comecei a sentir na pele a aura de desastre iminente que pairava sobre nós. Então resolvi procurar minha ex e implorar pelo seu perdão. Não a encontrei, mas fui até a casa de Isabel, sua melhor amiga. Pensei que ela era louca. Em troca de informação sobre minha ex, exigiu que eu a levasse para sair. Aceitei e no final do encontro Isabel ficou a me beijar durante todo o trajeto de volta para casa.

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SAFÁRI – E. REUSS Nos beijamos o resto da noite e no momento de nos despedirmos, fiquei com vergonha de exigir a informação que ela havia prometido, pois havia me esquecido completamente do que eu queria saber. Só me lembrei três dias depois, durante o terceiro encontro. Mas naquele ponto, a informação não importava mais. Nesse momento, Gaspar Bragança interrompeu a filmagem para dizer que às vezes o Chip de Processamento Visual interpretava um nervosismo ou um amor muito grande da mesma forma que interpretava um crime violento, e o romantismo daquela frase pareceu impróprio considerando o lugar onde estávamos. Então assistimos a um ECEV simples. Eu, sentado num sofá, bebia algo que se parecia com uísque. O detetive Bragança não tinha como saber no que eu pensava, mas aquele era um momento decisivo. Aquele era o momento em que eu planejava o maior crime da minha vida. Naquele sofá, eu sentia pela primeira vez que não havia nada que eu poderia perder que já não estivesse perdido. Sem trabalho e uma constante decepção, eu tinha a sensação de ter iniciado algo reservado para homens, e não meninos. Naquela época, o desemprego já havia atingido níveis aterrorizantes e vi muitos dos meus antigos colegas de profissão se tornarem alcoólatras ou se suicidarem, alguns levando suas famílias inteiras.

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SAFÁRI – E. REUSS Em casa, sentia algo pesado no ar, tudo a ver com a morte ou com a dissolução de alguma coisa. Olhava desconfiado para minha mulher no sofá, cansada de tanto se dedicar a uma família que não tinha futuro. Foi então que decidi me sacrificar. Por meio de um colega do matadouro, descobri a existência de um ex-vereador recémsaído da prisão, condenado por um esquema de corrupção que desviou milhões do fundo para merenda escolar da cidade. Agora esse ex-vereador se especializava em fraudes de apólices de seguro de vida e oferecia golpes perfeitamente executados. O ex-vereador ofereceu um panfleto digital que explicava o plano: Uma explosão que consumiria um cadáver parecido comigo; um velório e a fuga para o Brasil, com todos os custos pagos; a indenização do seguro à família e a cobrança das taxas do ex-vereador. O plano foi executado com perfeição e Isabel foi indenizada com um valor considerável pela minha morte. Como era hábito do ex-vereador, ele filmou o momento em que minha esposa era obrigada contratualmente a pagá-lo 5% do total do seguro, mostrando a ela minha assinatura e todos os detalhes do plano. E, então, um close em sua face chorosa, agora uma expressão não de tristeza, luto ou amor, mas de ódio. “Aquele covarde”, ela disse, respirando fundo. E o ex-vereador tentou apaziguar a situação dizendo que eu era um grande homem.

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SAFÁRI – E. REUSS Isabel deu uma risada arrepiante e o detetive Bragança achou melhor parar o vídeo. Ficamos olhando para o sorriso diabólico congelado no monitor, ambos sentindo uma vergonha paralisante, e não levantei os olhos até o detetive sair da cela. *** O Detetive Gaspar Bragança emitiu um relatório que afirmava, de forma contundente, que as explorações cerebrais videográficas determinavam minha inocência. Mas como alguém que viu o que eu havia feito podia dizer que eu era inocente? A minha liberdade incomodou aqueles que ansiavam pelo término da crise. Mas a última gota d’água no copo transbordante da paciência das autoridades locais foi um novo massacre animal, dessa vez de pequenas e fofas ovelhinhas brancas. A chacina coincidiu com a minha soltura, mas agora tinham certeza de que eu não era o culpado, pois os assassinos divulgaram um ECEV do momento em que as ovelhas eram envenenadas. Não demorou muito tempo para eu sentir a necessidade de voltar ao Bairro Holográfico. A verdade é que eu queria conferir o ECEV dos matadores de ovelhas.

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SAFÁRI – E. REUSS Era sábado de noite, o que significava mais agitação pelas ruas. Mulheres vestindo nada mais do que biquinis florescentes e visores ecévicos nas janelas chamavam qualquer coisa que se movia para trepar. Placas holográficas cobriam fachadas de edifícios, divulgando experiências virtuais com ECEVs de última geração, com sensores de olfato e paladar. Olhei pelas janelas de espeluncas mal iluminadas e vi homens deitados com óculos de reprodução ecévica como se estivessem em coma, recebendo alimentos líquidos por canudinhos de mulheres seminuas. Entrei num desses estabelecimentos e perguntei se eles tinham o ECEV das ovelhas. A moça atrás do balcão riu, uma risada que podia significar qualquer coisa. A espelunca parecia uma daquelas casas de ópio chinesas do século dezenove. Todos os funcionários vestiam roupas que se pareciam com roupas íntimas. Uma mulher gorda vestindo uma camisola me levou até um corredor escuro, onde gemiam dezenas de homens e mulheres deitados em uma fila de colchões no chão. A mulher mandou eu me deitar em um colchão vazio com manchas de sangue e acoplou o visor em minha cabeça. Havia uma pessoa com uma máscara preta no banco do carona. Eu via as coisas pelos olhos do motorista, que parou o carro no meio de um campo aberto, com algumas ovelhas no fundo. A segunda pessoa desceu do carro e tirou de lá um equipamento que se parecia com um bambolê dobrável.

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SAFÁRI – E. REUSS Armou o equipamento e caminhou lentamente na direção das ovelhas. No meio do caminho, o círculo foi suspenso a um metro do chão por uma cerca eletrostática. A pessoa de máscara escalou pelo círculo e passou para o outro lado, onde começou a lançar biscoitos para as ovelhas. As ovelhas, no início assustadas, comeram todos os biscoitos e começaram a espumar pela boca. Os criminosos ficaram assistindo até a última ovelha cair morta e retornaram ao carro. Dirigiram até uma casa decadente de madeira, onde novamente a pessoa de máscara retirou um equipamento do porta-malas. Era um extrator de ECEVs idêntico ao que o Detetive Bragança usava. Nesse momento, olhei ao redor e vi pela janela da sala escura um ponto negro cruzando o céu. Mesmo sendo proibido, voltei o vídeo e continuei voltando até perceber que o ponto negro era um animal. Não um animal com asas, mas um guaxinim percorrendo um arco no céu. Ouvi o seu grito longínquo, um pouco antes de o aparelho bugar e a mulher de camisola gritar para mim, dizendo que era proibido interagir com os ECEVs. Mandei ela se foder e fui expulso da espelunca por um homem que parecia por sua conta mais viciado do que todos os clientes juntos. Ele tinha os olhos esbranquiçados e me empurrava pelo ombro até a saída, quando eu disse que sua braguilha estava aberta. Ele olhou para baixo e viu que estava apenas de cueca. Então me olhou seriamente e disse: A sua também.

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SAFÁRI – E. REUSS Olhei para baixo e vi que ainda usava a calça de elástico da prisão. Começamos a rir e tivemos que parar pois já não conseguíamos mais andar, nos apoiando na parede do corredor estreito e secando as lágrimas. Quando terminamos, andamos até a porta da rua e ele tentou me dar um tapa amigável nas costas, mas acabou errando e batendo a mão na maçaneta. Um “Ai” de dor foi a última coisa que eu ouvi antes de mergulhar na escuridão. *** Depois de caminhar por duas horas, consegui encontrá-la. A casa era a mesma que eu havia visto no ECEV. Ainda mais decrépita, como se houvessem se passado décadas desde a morte das ovelhas. À distância, vi a catapulta com o guaxinim enjaulado e pensei em como era irônico aquela casa ficar tão perto de um lugar em que se matavam animais por diversão. Bati na porta e fui recebido por uma mulher de uns cinquenta anos. Reconheci os seus olhos azuis como os olhos que vi por trás da máscara no vídeo. Eu disse meu nome. Sem saber o que falar em seguida, disse que eu era o cara que foi preso pelos massacres. “Eu sei.” Disse a mulher. “Foi por isso que lançamos o ECEV. Para que te soltassem.”

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SAFÁRI – E. REUSS “Ah. Obrigado.” Eu disse. “Mas quando o vídeo surgiu, eu já não tava mais preso.” “Isso é ótimo.” Ela disse e sorriu amigavelmente, abrindo a porta e dando espaço para eu passar. Entrei na casa e reconheci o seu interior. A cama onde o homem do ECEV havia se sentado agora estava ocupada por um velho deitado com um visor sobre os olhos. Ao seu lado, um segundo visor, que imaginei pertencer à mulher. “Meu marido.” A mulher disse. “Ele que começou isso tudo.” Disse isso com um tom de orgulho na voz, sorrindo para ele como quem sorri para uma reminiscência. “Por quê?” Eu disse. Ela deu de ombros. Então expliquei a ela que o país inteiro falava sobre a origem de uma nova resistência, um grupo nacionalista, tentando acabar com a dormência generalizada que havia se instaurado na mente da população. Políticos falavam que aquele era um ato simbólico de amor à pátria, incubado no coração do povo desde o século passado, quando ainda havia algo que nos unisse. Ao fim do meu discurso, a mulher soltou uma risada e me olhou preocupada, como se perguntasse com os olhos se eu acreditava naquela merda.

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SAFÁRI – E. REUSS Eu encolhi os ombros e ela me ofereceu um café. Aceitei e ela foi até a cozinha, enquanto eu observava o velho sobre a cama. Percebi que ele sorria e movia os lábios, como se conversasse com alguém. Eram viciados. Eu podia ver em seus olhos, esbranquiçados e fundos, como se agora eles só pudessem ver o mundo através dos chips em seus cérebros. Ela voltou da cozinha e colocou duas xícaras sobre a mesa. Tomei um gole do café, mas não consegui disfarçar minha aflição. “Você quer saber porque essas mortes são importantes, né?” Assenti com a cabeça e ela apontou para o segundo visor sobre a cama. “Por que você não dá uma olhada?” Ela disse. *** Vi uma paisagem árida e morta. Um tipo de paisagem que não existia mais ao nosso redor, agora que todo metro quadrado dessa região foi quimicamente transformado no cenário verdejante e monótono que temos hoje. O ECEV era antigo, cheio de interferências e de imagens distorcidas. O homem no vídeo caminhava numa rua de lajotas cumprimentando os habitantes de uma pequena cidade.

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SAFÁRI – E. REUSS Vi o homem caminhar até uma igrejinha pequena. Assisti a toda a missa e depois o acompanhei até um churrasco na casa de uma família. Entendi serem todos parentes ali, e num ponto da reunião as risadas deram lugar às lágrimas. Falaram sobre os protestos, sobre a morte de um dos meninos do bairro, que provocou uma alteração fúnebre na expressão de todas as mulheres à mesa, sem exceção. Ao lado do homem no ECEV, um velho cão com um travesseiro na boca, balançando o cotoco de um rabo. O sol era uma presença, atravessando a janela e criando uma pátina sobre todos na mesa, como uma pintura desbotada pelo tempo. O homem caminhou de volta até sua casa e de fora ela me pareceu familiar. Reconheci as janelas e percebi que era a casa onde estávamos, uma versão íntegra e limpa dela. Um lar, com brinquedos espalhados pelo quintal e roupas no varal. O homem entrou pela porta e foi recebido pela mulher de olhos azuis, muito mais jovem. Um menino de sete ou oito anos comia pão com geleia sentado no sofá, em frente à TV. A mulher de olhos azuis e o homem se beijaram, e nesse momento fechei os olhos e imaginei que beijava Isabel. Então era assim que se sentia alguém que fez as escolhas certas? A imagem foi cortada e o vídeo começou a se passar em pequenos vislumbres, como uma compilação de memórias semelhantes àquelas que eu vi em meu Depósito de Delitos.

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SAFÁRI – E. REUSS Vi a mudança na aparência da mulher de olhos azuis, mais velha e com uma expressão abatida e preocupada no rosto. Helicópteros sobrevoavam a casa diariamente. Avisos em papel vermelho como sangue chegavam pelo correio e eram fixados na parede da cozinha pelo menino, que deveria ter agora uns treze anos. Depois, nem mais o correio aparecia, e avisos eram gritados pelos homens nos helicópteros por meio de alto-falantes. Alguma coisa sobre a cidade estar em terras cedidas a governos estrangeiros. As pessoas abandonavam as suas casas. Logo, a vizinhança se tornara um amontoado de casas abertas e tomadas pelo matagal. Os helicópteros pararam de aparecer, mas o homem, a mulher e o seu filho continuavam na casa, à espera de alguma coisa. Começaram a ouvir ruídos durante a madrugada. Latidos e uivos. Olhavam pela janela e viam presenças na escuridão, sombras e olhos refletindo a lua. Numa manhã, o homem acordou com um rugido, algo violento seguido por um grito. Olhou pela janela e viu a mulher no quintal, segurando um lençol branco sobre o varal com um olhar aterrorizado. Antes mesmo de o homem começar a andar, eu já sabia o que havia acontecido, e creio que o homem também soubesse, pois caminhava decididamente para a porta da frente, pegando sua espingarda no meio do caminho.

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SAFÁRI – E. REUSS Fechei os olhos e ouvi os tiros, dois estouros retumbantes que me deixaram surdo por um momento. Então o berro de um lobo atingido. Abri os olhos e o homem caminhava em direção ao filho morto, deitado sobre um círculo de areia negra impregnada com sangue. O grito da mulher de olhos azuis, que não gritava pelo filho, mas por causa de um lobo que corria na direção do homem. Sua boca ainda estava suja com o sangue da criança, e o homem olhou com toda a serenidade do mundo para a aproximação feroz do animal, firmando a mão ao redor do cano da espingarda. O lobo rosnou antes de pular na sua direção e, a menos de um metro do animal, o homem ergueu a arma e enfiou o cano da espingarda através de sua boca aberta. Ouviu-se um som abafado de algo estourando no interior do lobo, provavelmente a parede do seu esôfago. Ouviu-se um gemido quando o homem segurou o pescoço do animal com a mão livre e esmagou alguma coisa com a ponta dos dedos. O animal empalado foi lançado ao chão e o homem pisou em sua coxa direita diversas vezes, deixando a perna presa por alguns fios de músculo e pele. O homem contemplou por um segundo o animal agonizante com a espingarda na boca e teve uma ideia: Decidiu apertar o gatilho. A parte inferior do animal explodiu e lançou um rastro de tripas pela areia. O homem se ajoelhou sobre o estômago do animal, sentindo em seu joelho o cano quente que o empalava, e puxou a arma para fora. Viu que o lobo ainda estava vivo e rosnava.

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SAFÁRI – E. REUSS Olhou para trás e viu a mulher ajoelhada ao lado do filho, balançando a cabeça e movendo os lábios como se tentasse invocar a alma do menino. Levei um susto ao ver, no lugar do rosto do filho, o rosto sério e assustado de Érica. Tentei chamá-la, mas ela olhava para o céu com a mesma expressão de tristeza que via em seu rosto quando eu quebrava uma promessa. Senti um ódio crescer dentro de mim. Eu desprezava aquilo tudo. Os lobos, as ovelhas e aquela terra maldita, costurada por cercas invisíveis protegendo os animais de nós mesmos. Eu odiava o que isso representava, o fato de que um homem podia ser inimigo dele mesmo e trazer apenas destruição e tristeza. E, por um momento, era como se a minha ira estivesse movendo os braços do homem no ECEV. Estávamos em sintonia. Então, unidos pelo ódio, arrebentamos a cabeça do lobo. Eu podia sentir suas patas abrindo rasgos na minha pele, na altura dos rins. O desgraçado rosnava enquanto seus dentes se separavam de sua mandíbula e ficavam grudados nos dedos da minha mão. Comecei a rir, diabolicamente, como se achasse tudo muito engraçado. Nunca recebi um olhar tão penetrante no tempo em que trabalhei no matadouro. Vi um longo corredor nos olhos negros do lobo e continuei a socar sua cabeça, só para ver até onde o corredor levava. Sua mandíbula se partiu em algum

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SAFÁRI – E. REUSS lugar perto do seu ouvido e a cabeça inteira pareceu pender para o lado. Ouvi o som de ossos se quebrando e o choro delicado de um animal vencido. Não vendo mais os olhos de Érica no rosto do menino morto, olhei para trás, temendo que ela estivesse ali me assistindo. Se estivesse, veria no que o seu pai havia se transformado. Veria que aquele era o fundo do poço, o mais baixo que eu podia descer. E, dali para frente, percebi que só havia uma direção para ir: Para cima. Eu escalaria as paredes do poço com as próprias mãos, deixaria aquele safári sulista para trás e voltaria para a terra onde as memórias são feitas. E isso tudo pareceu me confortar no momento em que eu arrancava os olhos do lobo morto com os dedos e os separava do crânio a dentadas.

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TETRAEDRO Bernardo Pereira

[Perfil do Wattpad]

Com o clique do interruptor, piscando em intervalos irregulares, uma depois a outra, depois a outra, depois mais duas, estabilizando uma depois a outra, depois a outra, todas acesas, o laboratório completamente iluminado, banhado de branco fluorescente, o chão branco, as paredes brancas, o aparelho branco, de sua barriga aberta, projetavam-se suas entranhas de cobre revestidas de plástico branco em grossos cabos enrolados, trançados, que serpenteavam até um buraco no chão. Numa das paredes, um mostrador verde indicava 88:88. O aparelho tinha um aspecto simples, um leigo diria se tratar de um balcão sólido de uns três metros de largura por um metro de altura, em forma de ferradura. Sobre uma de suas extremidades, uma espécie de caixote que lembrava um forno. À esquerda da ferradura, do lado onde ficava o tal caixote, a sala de observação, separada do laboratório por uma parede de vidro, onde havia trinta poltronas organizadas em três níveis,

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TETRAEDRO – BERNARDO PEREIRA como numa sala de cinema. À direita da ferradura, separada por uma parede de vidro assim como a sala de observação, estava a sala de controle, preparada para abrigar oito pesquisadores, cada um com sua estação de trabalho dotada de monitores e controles diversos. Tanto os espectadores do experimento quanto os pesquisadores que o conduziam acessariam suas respectivas salas por um corredor que contornava por trás o laboratório. Os diversos adesivos colados à entrada da câmara de descontaminação que dava acesso ao laboratório alertavam com ícones e pictogramas para os mais variados fatores de risco e segurança. Dentre eles, o que mais assustava era aquele famoso, com as três últimas fatias de um bolo, daqueles que se corta fazendo uma rodela no meio. Aliás, qual a função da rodela no meio? Ninguém sabe, um time de oito pesquisadores não estaria jamais preparado a responder esta pergunta. Deve ser para dar sorte, todas as coisas inexplicáveis o são, exceto quando servem para evitar o azar. Tem que ter fé. O laboratório tinha atmosfera estritamente controlada, nele era permitida a entrada de apenas uma pessoa por vez, vestida da cabeça aos pés com trajes que um leigo diria de astronauta, após passar pela câmara de descontaminação. Um grão de poeira era sujeira demais para o laboratório, inadmissível. Uma a uma as estações de trabalho se foram preenchendo na sala de controle, um a um se foram iluminando os monitores. O cheiro de café e o som de ventoinhas dominavam o

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TETRAEDRO – BERNARDO PEREIRA ambiente. Os pesquisadores estavam ansiosos, apreensivos, calados e em suas olheiras se viam os dias e noites de trabalho que culminavam naquele dia. Através da vitrine, através do laboratório, viam a sala de observação ainda escura. Um deles teve um frio na barriga ao ver a luz da câmara de descontaminação acender. Sabia que os jatos da câmara faziam um barulho infernal, mas desse barulho, nada chegava aos seus ouvidos. Como num filme mudo, viu emergir o astronauta pela porta de vidro e caminhar cuidadosamente a dúzia de passos que o separava do aparelho. O astronauta se ajoelha então próximo aos cabos, retira um painel expondo dutos, fios, peças de metal e de plástico, placas verdes de silício, leds piscantes verdes e vermelhos. Pluga um monitor de mão em uma das placas, aciona o dispositivo, toca a tela com um pequeno bastão, vira em direção à equipe e aponta para a própria cabeça, ao que o coordenador coloca o headset e o liga, escutando a respiração do astronauta, que diz "pronto para começar a verificação". O coordenador olha então para a pesquisadora da estação quatro, acena brevemente a cabeça e ela começa a digitar, falando também em seu headset "rotina um, protocolo XPZ traço H2 preparado" a voz metálica e chiada em seu ouvido responde "lançar rotina um", "lançando em 3, 2, 1". No monitor em sua mão esquerda, o astronauta vê surgir o que um leigo chamaria de eletrocardiograma e diz "pico em 3,47, duração de 8,32 microsegundos." A pesquisadora digita

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TETRAEDRO – BERNARDO PEREIRA alguma coisa, abre um novo console virtual e diz "confere." "Sistema operacional, temperatura exterior de aproximadamente 275K, núcleo a 3,48K", responde o astronauta, "confere, lançando rotina um, protocolo XPH traço 24 em 3, 2, 1", a pesquisadora fala então em seu headset e o astronauta responde, "pico em 7,82, duração de 17,08 microsegundos", "confere". O astronauta desconecta seu monitor, volta a plugá-lo em um novo componente, acena com a cabeça para o coordenador que mastigava a ponta dos óculos enquanto olhava ansioso através da vitrine. Sem virar a cabeça, o coordenador dá o comando ao ocupante da estação seis, para que comece a testar a rotina dois. Os testes do equipamento se estendem por quatro horas, ao fim das quais todos estão exaustos, as canecas de café vazias pela terceira ou quarta vez. Como esperado, os resultados são positivos, o equipamento completamente operante e funcional e pronto para conduzir o experimento. Durante a última meia hora de testes, começaram a aparecer os primeiros ocupantes da sala de observação, que logo pegaram as poltronas mais próximas à parede de vidro, para verem de perto o experimento. Sabiam que não começaria por pelo menos duas horas, mas garantiam seus lugares, que não arriscariam perder por nada. Aquele laboratório era o lugar do mundo para se estar naquele dia, o que sairia dali revolucionaria toda a ciência humana e testemunhar o experimento era um

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TETRAEDRO – BERNARDO PEREIRA privilégio para pouquíssimos. Ocupando as poltronas, físicos, jornalistas, um filósofo, um grupo de patrocinadores do experimento. Com todas as poltronas ocupadas, um grupo que não tinha conseguido lugares tentava convencer o staff do laboratório a permitir que assistissem em pé, mas, irredutíveis em suas regras e procedimentos, negaram o acesso ao grupo, que teria que assistir ao experimento em um dos monitores na sala anexa, onde naquele instante a equipe descansava e se preparava para o experimento, enquanto comia simples sanduíches - champanhe e caviar, só depois de concluído o experimento. Da sala de observação, as pessoas narravam em seus tablets e telefones tudo o que acontecia no laboratório, descreviam as instalações, falavam de quem lá estava, especulavam sobre o experimento, que no momento era trending topic mundial. Milhões de computadores por todo o mundo acompanhavam um live feed do laboratório e esperavam ansiosamente pelo início do experimento. Na hora marcada, a equipe voltou à sala de controle. O coordenador do experimento, através da câmera de seu computador, dirigiu-se ao mundo, que os assistia, com um pequeno discurso preparado, dizendo "boa noite, foram anos desenvolvendo teorias, fazendo simulações virtuais, projetando e construindo o equipamento, testando e aperfeiçoando modelos e agora nós estamos prontos para realizar o experimento, possivelmente o mais importante que já foi feito pela

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TETRAEDRO – BERNARDO PEREIRA humanidade. Como vocês que estão assistindo já sabem, nós realizaremos, em termos corriqueiros, a primeira viagem no tempo". Mostrou à câmera uma caixa selada de plástico transparente, dentro da qual havia um tetraedro de vidro de cor âmbar, dizendo "em alguns minutos este pequeno tetraedro de vidro será enviado por nossa equipe no futuro para o passado. Cronologicamente, o experimento vai seguir da seguinte maneira: vamos ativar agora o equipamento, que precisa de em torno de quinze minutos para atingir o nível máximo de energia". Virou a cabeça para uma das pesquisadoras e deu o sinal de que iniciasse o equipamento, o que causou uma vibração e um zumbido grave no laboratório, que nem a blindagem das vitrines foi capaz de isolar. De volta à câmera, disse "dentro de quinze minutos, vamos ativar o cronômetro. Prevemos receber o tetraedro do futuro por volta do quarto minuto a partir do início da contagem. Como podem haver variações no tempo de chegada, abriremos o compartimento na marca de nove minutos. Na sequência, carregaremos novamente o equipamento ao nível máximo de energia para o envio do tetraedro. Vejam bem, neste momento, teremos conosco dois tetraedros, quero dizer, tecnicamente duas vezes o mesmo tetraedro," riu para a câmera e continuou a falar, "passados então quinze minutos mais, na marca dos 24 minutos, depositaremos este tetraedro," mostrou novamente a caixa lacrada, "no aparelho e aos 25 minutos o enviaremos ao passado, concluin-

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TETRAEDRO – BERNARDO PEREIRA do o experimento. Vamos aguardar agora o momento para zerar o cronômetro e iniciar o experimento." Desligou a câmera do computador, o live feed passou a mostrar uma imagem do laboratório, com o compartimento de transporte transtemporal em primeiro plano e ao fundo a sala de controle, onde a equipe compenetrada olhava seus monitores. Na sala de observação, a plateia se torcia de ansiedade nas poltronas, compartilhando com o bilhão de pessoas que assistiam agora ao vivo, todos os detalhes do que acontecia no laboratório. Aparece então em cena o astronauta, carregando nas mãos a caixa de plástico lacrada contendo o tetraedro. Nada se ouve além do zumbido elétrico do aparelho. Tudo pronto para começar, o mostrador que dizia 88:88 se apaga, voltando a acender mostrando 00:00, pisca uma, duas, três vezes e os segundos começam a contar. Frio coletivo na barriga, dedos suados que escrevem em seus smartphones, olhos que não piscam. Passaram apenas 24 segundos, a espera está matando a todos. O astronauta olha fixo para a equipe, esperando updates no headset. Os diálogos da equipe na sala de controle são transmitidos aos espectadores, tanto os que lá estão quanto os que acompanham de casa o mais importante experimento da história da humanidade. Passou o primeiro minuto e meio do início da contagem. O diálogo da equipe é puramente técnico e não interessa real-

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TETRAEDRO – BERNARDO PEREIRA mente a ninguém que esteja fora da sala de controle, mas dá um toque sexy a quem de casa assiste o experimento e ouvindo aqueles números e parâmetros se sente parte daquele grupo. Três minutos se passaram e o suor frio é geral. O mundo parece estar em silêncio neste momento. Pode-se dizer que praticamente todos os aparelhos de televisão e computadores conectados à internet estão assistindo ao experimento. Quatro minutos completos e neste momento o tetraedro enviado do futuro pode já estar no compartimento. O compartimento está equipado com um sensor preciso, que acusaria qualquer massa em seu interior, mas o pesquisador da estação número 2 não tem ainda nenhuma leitura. Aos cinco minutos e meio, a úlcera do coordenador da equipe ataca e ele rebate com mais um café. Aos seis minutos, ainda nenhuma leitura e o coordenador joga no lixo o lenço de pano, já saturado do suor de sua testa. Aos nove minutos, o zumbido da máquina começa a morrer. Massa indicada no interior do compartimento de transporte transtemporal, zero. O astronauta abre o compartimento e, para decepção do mundo inteiro, está vazio. Olha incrédulo para o tetraedro dentro da caixinha lacrada de plástico, como que para certificar-se que ele realmente existe, olha então para a equipe, esperando que digam algo, mas todos estão mudos. Na internet, todos os status compartilhados sobre o experimento vêm agora acompanhados da hashtag #fail e a equipe não sabe o que fazer.

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TETRAEDRO – BERNARDO PEREIRA O cronômetro conta já 12 minutos e nenhuma decisão foi tomada. Aos 15 minutos, não tinham ainda iniciado a nova carga de energia. Aos 16 e meio, os primeiros memes sobre o experimento fracassado já circulavam. 18 minutos, cortou-se a transmissão do live feed, conduziram-se os espectadores para fora da sala de observação. 21, o coordenador do experimento sai da sala de controle batendo a porta atrás de si, atravessa a sala anexa pisando duro e empurrando os jornalistas, passa o lobby e sai correndo pelo estacionamento em direção ao seu carro. Aos 24, a equipe desliga os computadores, o equipamento de transporte transtemporal e o cronômetro. O tetraedro ficou lacrado dentro da caixinha de plástico, esquecido sobre o aparelho.

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LADY MURPHY Luiz Mariano

[Perfil do Wattpad]

Aconteceu que Ricardo, mais uma vez, se perguntava: Por quê? Mistério. Será? Será que mistério, seria, mesmo? Ou haveria alguma explicação? Ponderou Ricardo sobre sua vida. O magnetismo sobrenatural (ou científico?) do qual dizia que sofria. A tal da “lei de Murphy”. Era capaz de mostrar para qualquer um, provar por A + B, como ele padecia por isso, de uma forma bem específica. Chamava a isso de “atipicidades rotineiras”. Um exemplo: Ricardo sempre se portava com o mesmo traje, o mesmo corte de cabelo, a mesma barda barba, o mesmo caminhar. Pensando com seus botões, afirmava Ricardo que isso começou a ocorrer com mais frequência

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LADY MURPHY – LUIZ MARIANO agora, depois de ultrapassar a meia-idade. De tempos em tempos algumas pessoas o abordam, na rua, sem o conhecer, e afirmam, sem algum motivo aparente: -O senhor é maestro? -Hã... Não, sou funcionário público. -Entendi. Bom dia - E o mundo voltava a girar. Como explicar? Todo dia era assim! Num desses dias, mornos, nublados, nesses dias que não acontecem nada e coisa nenhuma, Ricardo foi à padaria, como sempre faz, no intervalo do trabalho. Coisa de meia hora. Pois bem. Eis que, durante essa meia hora, Ricardo foi abordado quatro vezes, por pessoas diferentes. Quatro vezes! Numa delas, pediram ajuda para comprar um litro de leite (!). Em outra, perguntaram se podia ajudar numa passagem de ônibus interestadual; mais à frente imploraram por um almoço. E na última, uma donzela pediu para acender um cigarro. Aliás, outro dia, o cigarro foi alvo dessa mesma situação. Estava caminhando em direção ao ponto de ônibus, quando um motoqueiro parou, tirou o capacete e o interpelou: -Tiozão, me empresta o isqueiro. -Pois não – balbuciou Ricardo, surpreso. Feito isso, o homem acendeu o cigarro, devolveu o isqueiro e seguiu seu caminho. Haveria alguma explicação para isso. Certeza! O que os dados mostravam? Ricardo tinha lido o livro “O andar do

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LADY MURPHY – LUIZ MARIANO bêbado”, do cientista Leonard Mlodinow, obra interessante que punha-se a tarefa de explicitar sobre o acaso e sua relevância nas vidas humanas. Usualmente, a aleatoriedade é malvista; costuma-se citar sempre com desenvoltura a causalidade, esquecendo-se da lapidar frase de Max Born: “o acaso é um conceito mais fundamental que a causalidade”. Ou seja, por mais que seja supervalorizada a sucessão lógica dos eventos, a incerteza sempre está presente em medições, contradizendo as estatísticas e os economistas. E seria essa talvez a explicação mais convincente para os percalços que Ricardo passava diariamente? Possível, não provável. Afinal, por quê estas estranhas coincidências aconteciam com ele, justamente com ele? Outra explicação possível: de tanto afirmar que estranhas coisas acontecem, elas acabariam acontecendo, eventualmente. É claro, outras normais também ocorreriam; mas somente as esquisitas seriam realçadas. Ricardo sempre se via como um “ímã biológico”: um ser que, para fazer uso hiperbólico, seria o único objeto de diálogo do marciano viajante intergaláctico. Outra possibilidade estaria numa teoria nova, intitulada “campo mórfico” (ou seria melhor campo órfico?), do amalucado Rupert Sheldrake: o ambiente traria algo mais, reteria mais que pudesse imprimir sua influência nas pessoas, contrariando a ciência até então. Seria por causa disso que num cemitério indígena acontecesse “maldições”, por exemplo. Sandice? Está em debate.

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LADY MURPHY – LUIZ MARIANO Mas como encontrar a lógica no padrão em que a realidade bêbada teimava em presentear esse singular cidadão? Como naquela vez em que, volteando pelo centro da cidade, andando na frente de uma colegial, os colegas dessa última foram fazer uma surpresa, gritando com força quando a encontraram numa esquina. Só não imaginaram que, antes que a encontrassem, dessem de frente com Ricardo! Que realmente passou um susto danado. Ou daquela outra que, e dessa vez não teve alguma situação infeliz, caminhou em direção à padaria num horário incomum, no qual nunca vai, e, no momento em que saía, uma amiga sua procurava entrar na padaria pela – pasme – porta da saída! Sendo que Ricardo tinha sido o último cliente, já que a padaria estava fechando. Coincidência? “Deixamos de perceber os efeitos da aleatoriedade da vida porque, quando avaliamos o mundo, tendemos a ver exatamente o que esperamos ver”, afirma Mlodinow. No caso específico de Ricardo, era o contrário: o aleatório estava presente, e ele sabia. Mas era uma aleatoriedade viciada. Se isso dependia do olhar dele ou não, não importava. Que o ouvinte tirasse suas próprias conclusões; Ricardo sabia-se marcado pela lei de Murphy. Mas, repetindo, numa forma, diríamos, surrealista de Murphy. Outro exemplo: um homem, bem vestido, de terno, alto, pasta nas mãos, jeito e porte de empresário. Cruza com Ricardo, caminha mais um pouco, para, pesa seus pensamentos. Volta. Olha diretamente para nosso senhor em tese, e:

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LADY MURPHY – LUIZ MARIANO -O senhor parece o Einstein. Assim. Sem eira nem beira. Sem titubear. E, sem mais palavra, continuou seu caminho. Como um grânulo de Brown. Estranhamente, coisas sobrenaturais, ao menos na acepção mais literal do termo, não ocorriam; o santo, nisso era forte. Ricardo sabia disso. Mas, no frigir dos ovos, todo dia era, como ele dizia, “para-raio de maluco”. E algumas vezes, dos mesmos malucos. Claro que ajudava bastante Ricardo proceder pelas mesmas ruas, pegar o mesmo ônibus, chegar no mesmo horário, enfim, os mesmos hábitos. Mas não é assim também com o resto dos mortais? Quem que em sã consciência leva a ferro e fogo os belos conselhos da Superinteressante e de Teds sobre neurologia e faz algo novo todos os dias, desde comer com a mão esquerda em vez da direita a pegar um caminho diferente para ir ao trabalho, ou mesmo a, diabos, sentar no assento diferente do ônibus toda vez que se pega um? Mas não, não, convenhamos, isso não acontece com todo mundo, com um cidadão, morador de rua, digamos um pouco lelé da cuca, cantando e gritando ao longe, assim que avista o tímido Ricardo: -Amigo é coisa pra se guardar, do lado esquerdo do peito... E nem mesmo os passos apressados de Ricardo dão conta do recado: é evidente que é com ele, é somente com ele, e todos olham especialmente para ele. Não importa que ambos não sejam amigos, que nunca tenham se visto (ou melhor, que se vejam ocasionalmente, justamente nessas ocasiões, quando

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LADY MURPHY – LUIZ MARIANO Ricardo está a caminho do trabalho). Não resta nada a Ricardo senão cumprimentar o efusivo cidadão já citado, e prosseguir seu caminho, já acostumado. Ricardo já pensou em se benzer, mas não haveria como. Pois se até padre já virou, e de dois homens! Aos pés da catedral da cidade, uma dupla de amigos, já velhos, talvez já tendo passado do ponto na bebida, escolheram alguém na multidão, entre dezenas. Quem? Ora, seu Ricardo, que foi assim abordado pelos dois risonhos: -Aqui! Aqui está o nosso padre. Por favor, padre, nos declare marido e mulher. E que se alguém tiver algo contra que fale agora, ou cale-se para sempre! Ou então, para ficar no mesmo tema, no mesmo e exato lugar, aquela vez em que um homem, chorando, interpelou Ricardo, nosso pobre homem, se ajoelhando, levantando e baixando os braços, como quem entoa preces a Alá, no caso preces incompreensíveis, para um atônito seu Ricardo, que, como quase sempre, sem saber o que fazer, tenta, em vão, passar despercebido, como diz Dominguinhos, “nessa multidão boiada caminhando a esmo”. Por quê? Por que esses acontecimentos, tão incomuns, fossem tão usuais para seu Ricardo? Que mistério faria com que a aleatoriedade fosse tão estranhamente enviesada, justamente para ele, que procurava sempre não chamar a atenção? Seria por isso? Seria pelo seu vestuário? Mas que explicação se teria para que ele se destacasse tanto em relação

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LADY MURPHY – LUIZ MARIANO aos seus conhecidos e familiares, nessa profusão de histórias loucas, diárias e mirabolantes? Que determinismo indeterminado que o procurava, a ponto de ter que mudar de calçada, por saber que seria visado, sem nenhum motivo aparente? Teria o estudo da aleatoriedade algo a dizer? Afinal acabava que se tornara previsível que algo insólito aconteceria todo dia. O inexplicável seria essas estranhas coincidências diárias que assolavam, e ainda assolam, a curiosa trajetória de seu Ricardo. Fica aqui o desafio. A você, caro amigo, faço esse convite: onde estaria a ficção e a ciência nesse caso? O que Mlodinow teria a dizer sobre a regularidade, inclusive na temática, dessas coincidências?

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DIÁRIO DE BORDO Daniela Castro

[Perfil do Wattpad]

CAPÍTULO 1 5 ANOS LUZ LONGE DA TERRA "Não sei porque ainda fico contando... talvez seja para me lembrar o que deixei para traz e reforçar o que vim fazer aqui. Aqui... essa palavra com certeza perde a definição neste contexto no qual me encontro, já que estou a bordo de uma nave rumo aos confins do Universo. Sem tripulação, apenas eu, a nave e o computador de bordo. Acordei há algum tempo. E embora esteja perfeitamente consciente de que estou desobedecendo o protocolo ao não fazer os registros, assim que saí da criogenia; não me preocupo tanto. Além de receberem relatórios automáticos do computa

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO dor, que demoram eternidades para chegar à Terra, vocês terão muitas gerações para avaliar minha missão. Mas hoje de repente tive vontade de iniciar este diário e aqui estou. Meu dia a dia não é muito diferente do que era aí na Terra: dormir, acordar, higienizar, exercitar, trabalhar, comer e assim por diante. A única diferença são as paisagens magníficas que servem de cenário para minha nova vida. Planetas de cores e tamanhos incríveis, nebulosas exuberantes, estrelas, pulsares, cometas, nuvens de poeira estelar... não esquecendo da beleza ameaçadora dos buracos negros, supernovas e blazares!... Tudo isso flutuando dentro de uma grande massa escura, como um gigantesco caldeirão de sopa cósmica, o espaço profundo e infinito que me cerca dia e noite. Na verdade, literalmente apenas noite... Sei que para a primeira anotação pessoal, depois de tanto tempo viajando pelo cosmos, provavelmente receberei algumas advertências e muitas reclamações (que nunca verei) pela falta de detalhes minuciosos. Mas vocês me conhecem ou melhor dizendo, daqui para frente, me conheciam!... Quando tiver algo realmente importante e incrível eu comunicarei o mais rápido que puder. Por enquanto é isso. Nada de novo. Apenas voando..."

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO Zack terminou o registro, tocou em "enviar" na tela do monitor e mesmo sabendo que não tinha muito o que contar, respirou aliviado. De certa forma, escrever nem que fosse aquela página pobre e meio desanimada de seu diário de bordo, o deixou menos depressivo. Quando aceitou a missão de partir da Terra como desbravador espacial no ano de 2.101 até sentiu-se um pouco como o capitão James T. Kirk, da antiga relíquia cinematográfica de quase 2 séculos atrás; o filme Star Trek que seu bisavô tanto adorava! Aliás ele não só passara ao bisneto sua paixão pelo mundo da ficção científica, como também praticamente fora o motivo pelo qual tornara-se astronauta. Mas tinha total consciência de que diferente da ficção aquilo seria vida real! Sem volta para casa, sem tripulação. A não ser o computador da nave. Sem contato com mais ninguém. Somente reportando pelo diário de bordo que eles receberiam depois de alguns meses e anos conforme ele ia se afastando da Terra. Além é claro da atualização programada que o computador enviava automaticamente. - Até que eu conseguisse escondê-la apenas com o meu polegar – disse fazendo o gesto pela escotilha da nave. "Vejo que alguém está ficando ligeiramente nostálgico..."

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO - Estava demorando Jarvis – brincou Zack enquanto dirigia-se para os fundos da nave – acho que vou dar uma voltinha lá fora... para me despedir... "Ficaria muito agradecido se me chamasse apenas de computador." - Olha... para uma máquina, você está humanamente malhumorado hoje – ironizou terminando de ajustar o traje espacial – estou pronto. Preparar descompressão da antecâmara e abrir escotilhas externas. "Descompressão completada. Bom passeio homem de ferro! " - Assim está bem melhor! Mesmo que ele tentasse descrever a magnífica vista da Terra perdendo-se como um pontinho azulado e solitário em meio a grandeza absoluta do cosmos que o cercava, não chegaria nem perto do que, naquele momento, tinha o privilégio de admirar! - É uma pena Jarvis, que você não possa ver o que eu estou vendo... – comentou extasiado pelo comunicador do traje – não existem adjetivos à altura dessa beleza descomunal. "Eu estou vendo Zackary – respondeu o computador." - Não Jarvis. Infelizmente sua "humanidade" só chega até o seu mau-humor... se eu precisar de você, aviso. Mas agora gostaria de um tempo sozinho. "Como quiser."

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO Enquanto flutuava um pouco afastado da nave, Zack ia se despedindo de tudo e todos que fizeram parte de sua vida na Terra. Quando terminasse o último passeio de avistamento terrestre e voltasse a bordo, ele sabia que Zackary Stevens, o filho, neto, irmão, sobrinho, primo, namorado e tudo mais que ele viveu há muito tempo como ser humano naquele planeta, morreria ali; assim que fossem lacradas as escotilhas externas. Depois disso não haveria mais lugar na nave para fantasmas, por mais estimados que fossem. Ou então ele mesmo correria o risco de virar um... era preciso desapegar. Dessa vez para sempre. Admirava fascinado o "céu" rasgado por pinturas majestosas desenhadas por nuvens cósmicas, nebulosas coloridas, repleto de estrelas brilhantes, em cima, embaixo, por todos os lados... e ao mesmo tempo ouvia o "silêncio barulhento" do espaço infinito à sua volta. Constatava impressionado o quanto se identificava com tudo aquilo. Por dentro era assim mesmo que se sentia e convenientemente, por esse motivo não fora tão complicado aceitar aquela missão. De jeito nenhum esqueceria nem por um segundo, que apesar de não ter sido muito difícil para ele a decisão dessa viagem sem volta; o caminho escolhido entristeceu praticamente todas as pessoas que o amavam. Principalmente seus pais e sua quase noiva, Kate...

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO Definitivamente ele amou a todos. Esse nunca fora o motivo de ter aceitado a missão. Mas alguma coisa o atraía com tanta força para esse destino longínquo e solitário, que nada o faria desistir. Nem mesmo um grande amor! Foi sofrido para Zack, mas ele tinha que fazer isso. Caso contrário passaria o resto da vida arrependido de pelo menos não ter tentado. - Parece que isso aconteceu em outra vida... Foi então que quando se preparava para voltar sentiu-se estranhamente observado. Era como se algo ou alguém lhe fizesse companhia. Sem pensar duas vezes iniciou uma leitura de check-up em seu traje procurando por alguma falha. Se fosse isso, ele poderia estar alucinando... mas nada. Tudo apresentava perfeito funcionamento. - Jarvis... "Gostaria de não lhe atender até que me chame de computador. Mas infelizmente por conta das configurações de segurança, nem isso posso fazer." - Muito engraçadinho! – Retrucou enquanto olhava para todos os lados – pois se acostume. E pare de reclamar porque não te chamarei de computador. Você viu ou detectou alguma coisa de anormal? "Tudo funcionando perfeitamente Zackary. Deseja reportar algo ao registro programado? " - Não... delete. Bom é isso. Estou voltando. "No aguardo."

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO O astronauta deu uma última olhada para o pontinho azul. Respirou fundo e flutuou de volta para a nave. "Zackary, de acordo com o planejamento da missão, estamos quase deixando a Via-Láctea e antes de prosseguirmos você deve se preparar para hibernação prolongada." - É meu amigo... essa vai ser dureza – comentou enquanto tirava o traje cuidadosamente – 300 anos dormindo não será nada fácil. "Infelizmente não consigo processar o que está dizendo. Basta fechar os olhos e a cápsula criogênica fará o resto. Depois acordar novamente. Estarei à sua espera cuidando de tudo como sempre. " - Eu digo que você está ficando humano demais! "Desculpe. Isso também não consigo processar. " - Isso se chama ironia... esquece Jarvis. Quanto tempo temos antes de sair da galáxia e seguirmos para a próxima etapa da missão? "72 horas no máximo. Tempo suficiente para preparar a nave, inserir coordenadas no piloto automático e todas as outras providências de praxe. Tomei a liberdade de fazer um checklist – informou o computador, enquanto abria uma tela virtual. - Excelente. Vamos ao trabalho!

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO CAPÍTULO 2 ESTAMOS SÓS?... - Zackary! - Hã?... Mãe?! O que você está fazendo aqui? Ou melhor... como você está aqui? - Ah Zack... - reclamou a elegante mulher enquanto desligava a televisão do quarto do filho - quantas vezes já disse para não ouvir as histórias do seu bisavô antes de dormir?! E como se não bastasse, assistiu esses filmes até tarde?! - Constatava irritada enquanto recolhia as caixas de filmes antigos jogadas no chão - é por isso que não dorme bem garoto! Você fica muito agitado! Vamos! Levanta que está atrasado para o colégio. - Garoto?! Colégio? - Disse saltando da cama e se vendo no espelho espantado - mas como isso é possível? Eu estava em minha nave, prestes a sair da galáxia e... - Chega Zackary! Para o banho! Agora! - Ordenou apontando com o dedo a direção do banheiro - e depois colégio! Vai sem café da manhã mesmo, paciência. Se alimente no intervalo. Ah! - Lembrou a mãe saindo do quarto - terei uma conversinha com seu bisavô... se continuar assim é bem capaz mesmo de você ir parar em outra galáxia!

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO - Não pode ser verdade... - disse ainda se olhando no espelho do banheiro - eu não devo ter mais de 15 anos com certeza e... "Além de nostálgico você agora está cego, Zackary?" - Jarvis? É você? Em um piscar de olhos estava de volta à nave. "A sua mãe que não poderia ser." - Agora você está folgado demais! Preciso modular seu senso de interação humana... "Você deseja alguma coisa?" - Não. Quero dizer... por favor atualize o tempo restante para sair da Via Láctea. "Menos de 15 horas." - Isso é impossível! Não faz nem 1 hora que você disse que faltavam 72 horas... faça um escaneamento completo de todos os sistemas da nave e varredura minuciosa em você também. "Pois não." - E por favor mostre na tela virtual, o que eu andei fazendo até agora. "Isso não será possível Zackary." - Como não? É uma ordem Jarvis! "Não posso mostrar o que você mandou deletar." - O quê? Eu mandei?! Mostre a ordem.

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO Rapidamente a tela virtual projetou ele próprio ordenando que deletasse a gravação. - Eu mandei mesmo... Jarvis continue o escaneamento e a sua varredura completa. Não deixe passar nada! Por mais insignificante que pareça. Zack então seguiu para o compartimento de sobrevivência, continuando a checagem. Mas sua cabeça fervilhava tentando entender como uma janela de tempo de mais de 48 horas sumira da sua vida e ele nem fazia ideia do por que. Simplesmente sua memória estava em branco! Virou-se ainda confuso para o balcão do laboratório, dando de cara com sua ex noiva. O que quase o matou de susto! - Meu Deus! Kate?! - Por que esse espanto Zack? Não gostou de me ver? Será que nem aqui você tem tempo para mim? - Reclamou saindo de cima do balcão e andando toda sedutora, em sua direção vem aqui... não foge de mim outra vez... - Não é isso... é que... o que estou fazendo? É óbvio que estou alucinando! Mas antes que ele tivesse qualquer outra reação, a esbelta loira já estava pendurada em seu pescoço. Ele podia sentir em tempo real, sua pele, seu perfume e até seu beijo... Kate realmente estava lá com ele! - Isso parece alucinação para você?...

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO "Zackary porque está parado no meio do laboratório de boca aberta e olhos fechados?" Ele abriu os olhos assustado e logo respondeu. - Mas o que... Jarvis mostre a tela virtual de cinco minutos atrás. A tela se abriu e para seu completo espanto, a imagem aparecia toda distorcida. - O que aconteceu? Porque essa imagem danificada? "Estamos muito longe da Terra. Essas interferências não serão tão anormais daqui por diante." - Não é possível! "É sim perfeitamente possível." - Hã? ... claro... eu falava comigo mesmo. Você já tem o resultado do escaneamento completo que solicitei? "Ainda processando. Mas aconselho a finalização imediata dos procedimentos restantes. Estamos ficando sem tempo. " - Entendido. Assim que você completar sua tarefa me avise. Zack terminou a checagem sem nenhuma outra surpresa. Apesar de sua mente buscar, em vão, respostas para os estranhos acontecimentos. Coincidência ou não, o computador também não detectara nada de anormal na varredura realizada e isso deixara-o ainda mais intrigado. Era muito cômodo pensar que aqueles eventos eram apenas alucinações. Mesmo levando-se em conta, que na situação em que se encontrava, há tanto tempo sozinho no espaço, seguin-

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO do para uma viagem sem volta e tendo que lidar em algum momento com a própria morte, pois sem dúvida, os recursos vitais não durariam para sempre; isso era mais do que esperado... Infelizmente essas dúvidas e outras divagações ficariam sem respostas. Ele não tinha tempo para mais nada. - Jarvis, iniciar processo de hibernação criogênica. "Iniciando..." - Parece que é isso meu amigo. Boa viagem para nós. Te vejo daqui há 300 anos. Espero que você não se sinta muito sozinho! ... - brincou. E enquanto a cápsula ia se fechando sobre ele, seu corpo foi submergindo em nitrogênio líquido, completando o processo de conservação física. Ainda assim conseguiu ouvir a resposta do computador: "Não se preocupe Zackary. Eu não ficarei. " Totalmente impossibilitado de fazer qualquer coisa, pouco antes de perder os sentidos, Zack visualizou, estarrecido, alguns vultos que passeavam vagarosamente ao seu redor... Estavam agora debruçados em sua cápsula! Mas já era tarde demais para qualquer reação. Segundos depois Zackary Stevens adormecera profundamente...

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO CAPÍTULO 3 CONTINUAMOS AQUI! "- Foi um sonho?..." Esse foi o primeiro pensamento que veio à mente do astronauta assim que a cápsula criogênica se abriu, conforme o programado, exatamente 300 anos depois. "Seja bem-vindo de volta Zackary." - Jarvis... que bom ouvir você amigo... "Vejo que mesmo após 300 anos de hibernação, continua descartando o protocolo." Zack deu um vagaroso e profundo suspiro. Respirando pela primeira vez depois de 3 longos séculos, enquanto o nitrogênio líquido era sugado para fora da cápsula. "Escaneamento físico e mental concluído com sucesso Zackary. Se desejar pode..." Antes que o computador conseguisse terminar a frase, o ansioso astronauta, esquecendo que passara tanto tempo sem se mexer levantou-se de uma vez, caindo de cara no piso, gargalhando alto por conta de sua própria situação! "Emoção equivocada. Porque está expressando alegria? Dor causada pela ignorância deveria gerar tristeza." Zack, seminu, vestindo apenas um short de malha especial acinzentada, conseguiu com muito esforço virar-se de barriga

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO para cima. Engoliu o riso e lentamente começou a movimentar músculo por músculo de seus braços e pernas. - Sabe Jarvis... acho que agora além de eu te chamar assim continuou zombando do computador - vou exigir mesmo que você também me chame de homem de ferro, daqui por diante! Preparar para acoplar exoesqueleto. "Era exatamente isso que iria sugerir, se você não tivesse sido tão..." - Burro! – Completou ironizando a si mesmo - pode falar. Hoje depois desse sono prolongado não poderia estar de mal humor. "Prefiro chamá-lo de ansioso, homem de ferro - "brincou" o computador - exoesqueleto em execução." Usando um poderoso sistema de imãs bioenergéticos, aos poucos as peças metálicas que formavam o exoesqueleto de liga leve eram atraídas reconhecendo os sinais vitais do corpo de Zack, que deitado no chão as recebia praticamente imóvel. Realmente após 300 anos de hibernação seria impossível o astronauta andar ou se locomover. Sua musculatura encontrava-se toda atrofiada. Ele precisaria do exoesqueleto no mínimo pelos próximos 6 meses. "Processo concluído com sucesso Zackary. Agora levantese devagar. O exoesqueleto está ligado às suas conexões neurais e executará as funções motoras como se fosse parte do seu corpo."

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO - Nossa como é bom estar de volta Jarvis! – Confirmou animado dando os primeiros passos robotizados pela sala de criogenia - bem vamos às atualizações. "Sugiro que você repouse antes de reassumir suas funções." - Já repousei bastante amigo. Por 300 anos! "Como preferir." Aos poucos e acostumando-se com seu "novo corpo" Zack foi andando até o compartimento de comando central da nave. A gravidade artificial estava acionada justamente para que ele se movimentasse ao máximo possível. - Abrir janelas. "Janelas abertas." - Uau!... - Meu Deus... magnífico! "Não posso ver o que você vê. Mas adianto que qualquer mapeamento local é impossível. Meu banco de dados perdeu a capacidade de se atualizar há 200 anos atrás." - "Audaciosamente Indo onde nenhum homem jamais esteve..." - citou a famosa frase do filme preferido de seu bisavô, ainda maravilhado com o que via. "Aguardo suas ordens." - Interrompeu o computador, despertando Zackary de seu transe. - Está bem Jarvis - concordou enquanto checava os instrumentos de navegação - antes de mais nada, trave o curso ao

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO redor destes planetas. Assim me dará algum tempo para analisar as gravações... "Rota fixada." - Excelente. Agora, por favor, faça um resumo de seus registros mais importantes durante o tempo de minha hibernação e ... o que é isso ascendendo em meu traje? - Perguntou enquanto uma pequena luz vermelha piscava próxima de seu estômago. "Você precisa se alimentar e se hidratar Zackary." - É verdade - concordou - tanto tempo que não como e nem bebo, que me esqueci completamente... estou indo ao refeitório. Mostre as filmagens lá. Assim que entrou na pequena sala de refeições sentiu o sangue gelar... - Mas o que é isso?! Bem à sua frente a mesa estava posta, arrumada para 3 pessoas, respectivamente. "São nossos convidados. Eles devem chegar em breve."

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO CAPÍTULO 4 MISTÉRIO... Ainda estarrecido sem saber o que pensar, Zack olhava chocado para a mesa posta à sua frente. - Ok! Acalme-se Zack - falou consigo mesmo - isso com certeza deve ter uma explicação... estou no espaço profundo, acabei de acordar de uma hibernação de 300 anos, pareço o homem de ferro e tem uma mesa posta com cadeiras, toalha, louça, talheres, copos e até um vaso de flor; no compartimento do refeitório de uma nave espacial exploratória!... Acho que por enquanto é isso. O astronauta rondava a pequena copa e tocava em tudo para ver se era mesmo de verdade. - Incrível!... Posso sentir a textura da toalha, das cadeiras de madeira, das louças... sem dúvida estão mesmo aqui! "Obviamente - interrompeu o computador - se você acredita, então tudo isso existe." - Jarvis, o que você está tentando me dizer? Será que seus componentes pifaram? Não seria de se admirar... - comentou com olhar vidrado - depois de tanto tempo em funcionamento direto sem manutenção, sem atualização... "Se alguém tem o parafuso solto aqui definitivamente não sou eu."

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO - Continua folgado! Sorte sua que você é só uma voz... mas ainda posso modular seus sensores de interação humana e acabar com suas gracinhas! De repente ouviu-se 3 batidinhas do lado de fora do compartimento. - E mais essa agora! Estão batendo na porta?! - Zombou gargalhando - já sei! "São meus convidados", certo? Querendo entrar para o jantar, é claro!... "Eu disse que quem estava com problemas não era eu." Zackary gargalhava de nervoso! Sua mente não conseguia processar tantas informações absurdas ao mesmo tempo. Além disso somava-se a essa confusão bizarra, o medo de estar completamente louco! As batidinhas ficaram mais insistentes e mais fortes, virando quase que murros à medida que ele começava realmente a duvidar de tudo aquilo. "Devo abrir a escotilha, Zackary?" Desesperado ele tapou os ouvidos com as duas mãos e fechou os olhos, balbuciando a si mesmo: - Isso não pode estar acontecendo! Não é possível! Não faz o menor sentido e... De repente as batidas cessaram. Zack ainda apavorado destapou os ouvidos e imediatamente olhou ao seu redor. - Onde está a mesa para o jantar?

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO "Basta apenas selecionar no menu virtual - indicou abrindo a tela à sua frente - e retirar a refeição no lugar designado de sempre. Sugiro que abra as escotilhas centrais. Assim terá uma vista relaxante enquanto se alimenta." - Jarvis, o que está acontecendo comigo? - Desabafou. "Escaneamentos físico e mental em perfeita ordem Zackary. Você precisa apenas se alimentar e descansar, conforme lhe avisei desde o início." Percebeu então, que o computador falava com ele como se nada tivesse acontecido! Apesar de assustado e cheio de perguntas sem respostas, achou melhor seguir as instruções da máquina. Se eles estivessem com problemas o mais perigoso dos dois seria Jarvis. "Ele controla tudo aqui! – Pensou convicto - até mesmo a mim. Está preparado inclusive para conter qualquer acesso de loucura que eu possa vir a ter. O que é mais provável de acontecer... agora se o problema estiver apenas com ele... estou perdido!" Segurando a ansiedade que o consumia por dentro, para que descobrisse de uma vez por todas, o que de fato estava acontecendo, Zack fez exatamente o que o computador sugeriu: escolheu a refeição e sentou-se de frente para a bela vista do espaço profundo cercado de cores e matizes de todos os tipos. Muito além do que qualquer ser humano poderia imaginar...

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO - É uma vista impressionante! "Eu lhe disse homem de ferro. Tudo o que você precisa agora é se alimentar e descansar." - Você tem toda razão Jarvis... - concordou desconfiado agora vou me deitar um pouco. "Não se preocupe. Eu cuidarei de tudo. Como sempre."

CAPÍTULO 5 A OUTRA NAVE "Diário de Bordo" - digitou Zack em seu computador pessoal. Ao mesmo tempo que haviam tantas coisas e acontecimentos a serem escritos - pensava como se estivesse com algum tipo de bloqueio literário; desses que os escritores têm logo quando mais precisam escrever... Não sei nem por onde começar! Não sei nem mesmo para que retomar esse diário se é bem provável que ninguém consiga ler meu relato. Tal qual um escritor definitivamente "travado" batia os dedos na mesa, rodava a cadeira de um lado para o outro, fitando o teto como quem procura o gancho para ter de volta a inspiração... "Diário de Bordo"

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO Olhava novamente para a tela do computador. Tantas coisas aconteceram depois que aceitei essa missão da qual, mais que do nunca, sei que jamais retornarei - escreveu. Vamos! - Pensou - isso será uma válvula de escape para minha sanidade mental - confessou a si mesmo - preciso escrever e registrar tudo o que puder para que eu mesmo não duvide do que vi. Então continuou, como quem recuperava aos poucos a inspiração: A data aqui não é importante. Apesar de que já se passaram mais de 300 anos desde que embarquei nessa missão exploratória. Somos apenas eu e Jarvis (meu inabalável computador). Tudo está saindo razoavelmente conforme o planejado, com alguns pequenos atrasos, mas nada que comprometa a missão. A verdade é que tenho tido algumas alucinações que por conta do peso deste trabalho eram mais do que esperadas. Tenho que confessar: elas me apavoram! O motivo é que essas alucinações beiram um nível de realidade praticamente tangível, se é que devo chamar assim... posso não somente ver, como sentir e até mesmo tocar! Neste momento parou de digitar por um segundo e sentiu um certo alívio. Finalmente conseguiu dizer a si mesmo que acreditava em tudo que presenciara. E aquela confissão de certa forma lhe devolvia quase que completamente sua sanidade!...

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO Tudo aquilo foi real! - Escreveu. A sensação de estar sendo observado enquanto me despedia da Terra, na última caminhada no espaço. A volta ao passado com minha mãe. A visita de Kate. Os vultos antes da hibernação. A mesa posta para o jantar. As batidas na porta!... Foi de verdade! Aconteceu mesmo! Mas como? Porque? Isso era bom? Ou ruim?... O que "queriam" dizer? E o que é mais intrigante: porque Jarvis ficou tão enigmático? Ora concordando, ora não registrando os acontecimentos. Falando como se nada estivesse acontecendo. Então lembrou-se de algo que o computador dissera, assim que as "batidas na porta" cessaram: "Se você acredita, Zackary, tudo isso existe." Mas antes que pudesse continuar seu diário de bordo, Jarvis o chamou: "Zackary desculpe interrompê-lo em seu descanso, mas temos companhia. Aconselho sua vinda imediata até a cabine de comando. Os visitantes solicitam que se abra um canal de comunicação entre naves." - Como é que é?! - Perguntou sem acreditar no que acabara de ouvir, praticamente voando pelos corredores apertados da nave. "Pois não. Vou repetir: Zackary desculpe interrompê-lo em..."

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO - Eu já entendi Jarvis - bufou enquanto quase estourava as engrenagens de seu exoesqueleto de tanto correr - mas você fala isso assim?! "Se estou mais direto, a culpa é sua. Você modulou meus sensores de interação humana." - Pelo jeito foi uma péssima ideia!... Sem saber o que pensar, Zack só ansiava chegar o mais rápido possível à cabine de comando. Internamente torcia para que o computador estivesse com algum tipo de defeito... Seu coração parecia uma metralhadora de tanto que disparava! - Abrir painéis, Jarvis! "Painéis abertos." Assim que os painéis alternaram para o modo "transparente" flutuando bem “cara a cara” com a cabine de comando; estava outra nave. Tinha sem sombra de dúvida, o dobro do tamanho em comparação à sua nave! Mas o que o assustou mesmo fora o simples fato dela estar ali. Jarvis não vira errado, nem muito menos estava com defeito. Pelo menos não até aquele momento...

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO CAPÍTULO 6 REVELAÇÕES Zackary continuava ali em pé, de frente para o painel aberto. Olhava absolutamente paralisado, para o que, de fato era o momento mais importante de sua vida! "Devo abrir um canal de comunicação, Zackary?" - Hã?... Ah sim... devemos nos comunicar... tem razão Jarvis. Mas espere! Como se dará isso? Obviamente não falamos o mesmo idioma... e nossas aparências? Como iremos nos encarar? O Astronauta balançava a cabeça, parecendo não acreditar que aquilo estava realmente acontecendo. - Esperei a minha vida toda por este momento e agora simplesmente não sei o que fazer! Por incrível que pareça estou despreparado. Essa é a verdade. Mas agora seja o que Deus quiser e... De repente, ao olhar de novo para o painel aberto, literalmente tudo desaparecera! Não só a nave alienígena, mas como a sua própria nave também sumira!... Outra vez ele não estava mais no espaço. Ele não era mais astronauta. E não havia nem sinal de Jarvis ou de qualquer outra coisa que existia no cenário espacial, o qual habitava segundos atrás!

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO - Zack! - Chamava Kate, sua esposa, batendo no vidro do carro - vem aqui me ajudar, amor... você já pegou as coisas do bebê? - Bebê?! - Zackary abaixa o vidro! Sem conseguir pensar em mais nada, visivelmente " fora de órbita", apenas obedeceu à solicitação da mulher; apertando instantaneamente o botão que ficava ao lado esquerdo da porta do carro. - Amor, o que foi? Está se sentindo mal? Falei para não abusar ontem na casa dos seus pais... toda vez que sua mãe faz aquele guisado você come demais. Segura o Júnior - pediu, enquanto entregava ao marido, o pequeno bebê, loirinho de olhos azuis - deixa que eu pego a bolsa e a cadeirinha dele... Enquanto Kate desaparecia pela porta da frente da bela casa de subúrbio americano, ele olhava fascinado para aquele serzinho, que sorria descontraído em seu colo... - Jarvis!!!!!!!!!! - Berrou fechando os olhos, apertando bem as pálpebras. "Zackary não há nada de errado com meus sensores de escuta. Portanto não há necessidade de aumentar a sua voz. Basta dizer o que deseja." O astronauta abriu os olhos e mais uma vez estava de volta. Deu um longo suspiro e muito assustado, sentou-se em uma das poltronas da cabine de comando da nave.

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO Então falou seriamente. - Precisamos abortar essa missão Jarvis. "Zackary, acredito que esteja ciente do que significa "abortar a missão". Por isso prosseguirei com o início do protocolo de autodestruição da nave. Você precisará responder algumas perguntas e se a minha programação julgar procedente, abortaremos a missão." Sem duvidar, depois dos últimos acontecimentos, de que aquela atitude seria a mais adequada, uma vez que entendia estar definitivamente insano, portanto inapto para continuar no comando daquela missão, Zackary concordou. - Iniciar protocolo. "Comandante Zackary Stevens qual o motivo para abortar a missão?" - Perdi o controle de minhas faculdades mentais. "E quais são os indícios deste auto diagnóstico?" - Estou delirando. Imaginando coisas... vivendo situações impossíveis, que não podem existir. "Queira por favor, sentar-se na poltrona à sua esquerda, para que eu possa escanear sua mente e obter as provas do que foi relatado." - Iniciar escaneamento cerebral, Jarvis - autorizou sentando-se onde fora indicado, enquanto uma aparelhagem complexa, que compreendia uma espécie de capacete e fios conectados

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO a algumas artérias do braço esquerdo e pescoço, se ajustavam ao seu corpo. Alguns minutos depois, o computador respondeu, desconectando o scanner. "Permissão para abortar a missão negada." Por mais que internamente sentisse um certo alívio estava também indignado com a negativa. Tanto que acabou explodindo com o computador, como se ele fosse algum amigo de bar! - Como negada? Sua lata velha! Estamos ambos doidos aqui?! Não percebe que nada disso faz sentido? Que não podemos continuar assim?! Você me nega a opção de uma morte descente, mas também não sabe porque tudo isso está acontecendo! "Quem disse que não sei, Zackary?" - Como é que é?! - Retrucou ainda mais irado - quer dizer que você sabe e esse tempo todo não me disse nada? "Você nunca perguntou diretamente, como está fazendo agora." - Ora seu!... Jarvis, se você tivesse um corpo eu estaria te dando uns bons chutes agora! "Se eu fosse humano eu estaria agora dando umas boas gargalhadas!" - Chega! Fale de uma vez por todas! O que diabos tem de errado comigo?

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO "Zackary, você continua fazendo a pergunta errada. Por isso não detectei nenhum problema anteriormente. Nada há nada de errado com você." - Porcaria de máquina! Como não? Se acabou de afirmar que sabia o que estava acontecendo! "Com você não há nada de errado. Mas o que está acontecendo eu sei." - Mas que droga! O que você está querendo dizer, afinal? Esbravejou - espere... está tentando explicar que isso que vem acontecendo é normal? "Exatamente. Sou uma máquina Zackary. Ainda que tenha sensores de interações humanas, eles não alcançam certos níveis emocionais. Questionamentos que não sejam diretos. Você deve sempre fazer perguntas sem margens para outras interpretações." - Agora estou começando a entender... "Creio, então que podemos cancelar o protocolo para abortar a missão. Confirma o cancelamento Comandante Zackary Stevens?" - Sim confirmo. "Protocolo desativado. O que deseja saber?" - Tudo Jarvis! Absolutamente tudo.

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO CAPÍTULO 7 O CÉU NUNCA FOI O LIMITE Zack ainda respirava um pouco ofegante, depois da revelação feita por Jarvis, confessando sem mais delongas, que sabia o que de fato estava acontecendo. Passava as mãos nervosamente pelo rosto, só de imaginar as mais complexas explicações. Levantou-se e foi na direção do refeitório. A situação inusitada, certamente merecia uma boa dose, daquele whisky on the rocks, o seu preferido. Mas após 300 anos de hibernação, nem pensar! - Um gole d'água terá que bastar... - resmungou virando o copo de uma só vez na boca - pronto Jarvis. Comece a falar! "Não sei o motivo de tanta comoção para algo tão simples, Zackary." - Ainda mais essa!... Sabe o que seria ótimo? Que você fosse como eu! Sim! Um humano! Ou pelo menos algum ser de carne e osso que eu pudesse olhar cara a cara agora! Porque à essa altura dos acontecimentos, onde me encontro quase perdendo a razão, conversar com uma voz sem rosto, me faz sentir ainda mais insano!... "Se este é o seu desejo..." Mal terminara de ouvir o computador estranhamente concordar, com o que, para ele era apenas uma espécie de desaba-

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO fo e não uma vontade propriamente expressa; virou-se e deu de cara com outro astronauta ali, parado em pé, bem na sua frente! - Mas o que?!... - Acalme-se Zackary - pediu o homem caminhando em sua direção - sou eu. Jarvis! - Jarvis?! Mas como isso é possível? É você mesmo? - Perguntou tocando em seu ombro. - Venha - indicou o homem - vamos nos sentar e eu explicarei tudo. Zack controlou-se o máximo que podia para não perder a razão de vez. Naquele momento no mínimo bizarro, falava mais alto o cientista curioso que também sempre fora. Agora mais do que nunca precisava entender... - Tudo o que você acha impossível de acontecer, Zackary é porque ainda se prende aos conceitos engessados da física clássica. Para sua sorte fui programado também com a outra física, muito conhecida, mas pouco reconhecida na Terra. A física quântica. - Ah não... vamos discutir bases de ciência esotérica? Ironizou - nunca ninguém conseguiu provar que essas teorias fossem verdadeiras. - Mas também nunca provaram o contrário - retrucou Jarvis, quase humano - e afinal se não aceitar minhas

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO explicações, então você terá que admitir que está mesmo ficando louco!... - Vendo por esse ponto de vista... - bufou impaciente - está bem continue. - Como eu disse - continuou - é muito simples. Embora o conceito da física quântica tenha suas fórmulas e equações matemáticas complexas como toda ciência; especificamente para você neste primeiro momento, basta saber que, segundo à quantização, é o princípio inteligente que constrói o universo material e não o inverso. - Quer dizer que tudo isso ao meu redor e até eu mesmo, tudo, absolutamente tudo existe porque eu acredito? - Sim. Levando em consideração que sua explicação é um tanto simplória, é exatamente isso. Mas eu trocaria o termo "acreditar" por "vibrar". Tudo o que você está materializando em terceira dimensão, porque você vibra a mesma energia que você é, nessa frequência, existe e está tangível somente por esse motivo. - Entendo... lembrando justamente que a mecânica quântica estuda todos os fenômenos que acontecem com as partículas atômicas e subatômicas... concordo que faz sentido sua explicação. - Basta olhar para mim, homem de ferro - ironizou o astronauta - o que mais poderia me explicar?

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO - De fato, Jarvis, apenas a minha insanidade - riu Zack nervosamente - isso explica então o episódio da mesa posta para o jantar... a nave alienígena... as batidas na porta... a sensação de estar sendo observado durante o último passeio fora da nave e aqueles vultos assustadores que vi antes da hibernação!... Tudo criação da minha mente? - Sim. Tudo real e tangível. - Incrível! Mas porque desapareciam sempre? - Ao negar ou duvidar do que via, sua consciência deixava de vibrar naquela frequência. O que impossibilitava que tudo o que era visto em sua dimensão se materializasse ao ponto de poder ver, tocar e sentir. Isso não quer dizer que deixaram de existir ou que eram provenientes só da sua imaginação. Apenas habitam outra dimensão. - Ainda que eu concorde com você Jarvis, porque essa realidade tornou-se tão relativamente fácil, digamos assim, de existir? Porque quando estava na Terra não era desse jeito... embora se eu for buscar em minhas memórias sei que acharei alguns episódios muito estranhos. Eu diria antes, inexplicáveis até. Mas não como acontece aqui! Se é como você diz, basta imaginar e pronto!... - Zackary, você pode até ter essa sensação, mas sabe que não é bem assim. Posso citar inúmeros motivos. Mas deve concordar que estaríamos gastando muito tempo inutilmente. Confirmou o computador/humano - mas está claro que precisa de ao menos uma razão plausível. O principal é que

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO aqui você está afastado de tudo e de todos. Sua rotina é algo nunca experimentado antes. Está livre de qualquer manipulação de massa. Sua mente está expandida e sendo usada quase que na capacidade máxima. Coisa praticamente impossível para humanos da terceira dimensão. Entende o que quero dizer? - Sim e infelizmente ou não, não posso discordar - confessou mais calmo, mas ainda tentando processar todas as explicações que nunca um dia ele imaginou ouvir. Muito menos vindas de um computador!... - E antes que questione o fato de viajar no tempo, porque é assim que você classifica; posso ler em sua mente - continuou Jarvis - nada mais é do que a chamada "dualidade onda partícula"... - Você está falando de Multiversos e Dimensões Paralelas... por isso visitei alguns cenários diferentes no tempo - comentou Zack com os olhos vidrados - coisas que eu já vivi... - E coisas que também está vivendo em outro Universo ou em outra dimensão - completou o astronauta com um sorriso de contentamento - seria a ligação entre a física quântica e estudos filosóficos, que afirmam ser perfeitamente possíveis duas situações diferentes e simultâneas para o mesmo corpo subatômico. - Meu Deus!... - Zackary se me permite, sugiro que eu volte a ser apenas a voz, por enquanto. Porque ao contrário de mim, você não é

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DIÁRIO DE BORDO – DANIELA CASTRO uma máquina. Precisa de muito mais tempo para processar todas essas informações. Até porque isso é apenas o começo... - Tem razão Jarvis. Permissão concedida. O astronauta caminhou sem pressa, até a cabine de comando e por um longo tempo ficou contemplando a magnífica vista do espaço profundo... Melhor cenário para pensar sobre as verdades universais certamente não existia. E talvez, dentre toda a humanidade, apenas ele teria a chance de vivenciar. Então confessou a si mesmo emocionado: - O céu nunca foi o limite!...

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O BRILHO DAS ESTRELAS Paula Carminatti

“A morte veio com o brilho das estrelas. Para muitos. Para outros, foi a vida.” — O que é isso? — Ambrose, capitão da nave Nebulosa, olhava com curiosidade para a pequena e suja caixa preta de formato estranho, um cubo contendo um pequeno espaço acústico no centro e cinco botões na superfície superior. — Um equipamento analógico muito antigo, capitão. — A resposta veio do tenente Offyr, um jovem capaz de reunir na mesma proporção características que provocavam em Ambrose respeito e ao mesmo tempo irritação. Era um rapaz de inteligência sagaz, grande coragem e ousadia, cuja curiosidade e obstinação colocaram a tripulação de Nebulosa em risco ao terem permanecido tempo excessivo sobre a atmosfera de

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O BRILHO DAS ESTRELAS – PAULA CARMINATTI uma Terra às vésperas de sua morte. Foi por muito pouco que conseguiram alcançar a força de aceleração necessária para zarparem da região, alguns minutos antes da explosão do núcleo superaquecido do planeta. Apesar do perigo a que foram expostos, foi também devido à teimosia do jovem tenente que conseguiram encontrar a pequena caixa preta, neste momento jogada sobre a mesa da biblioteca de Nebulosa, o último resquício das antigas civilizações que um dia habitaram a Terra. — Fiz uns testes e creio ser possível fazê-lo funcionar. A rápida troca de olhares entre o capitão e o tenente comunicou expectativas profundas demais para serem expostas com palavras. Sequer precisaram usar de telepatia para compreenderem mutuamente o que cada um sentia. — De quanto tempo você precisa? — Calculo que antes de atingirmos a próxima dobra espacial, capitão. Ambrose assentiu em silêncio antes de cada um retornar às suas respectivas obrigações. Mal conseguiam esconder a ansiedade. ***

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O BRILHO DAS ESTRELAS – PAULA CARMINATTI — Capitão, o senhor não vai acreditar. — Offyr apareceu ofegante à porta da cabine de comando e o sobressalto provocado em Ambrose o fez derramar seu chá. — Será possível que você não consegue ser menos estouvado? — Respirou fundo e contou até 10, quando sentiu ter conseguido dominar o impulso momentâneo de fazer um discurso sobre os modos desastrados do tenente. — O equipamento funcionou? — Perfeitamente, capitão. — Offyr ignorou a bronca de Ambrose, como sempre fazia, e continuou sua interlocução quase sem pausar entre uma palavra e outra. — Esse aparelho é um gravador de voz. Consegui fazê-lo funcionar e decodifiquei o som para podermos escutar em nosso próprio idioma. — Isso quer dizer que... — Finalmente temos um registro real de nossos ancestrais. Sem delongas correram até a sala de máquinas, um amplo espaço circular onde Offyr passava a maior parte de seu tempo junto a dois assistentes. No momento a sala estava vazia, de forma que teriam paz para apreciarem a descoberta. Sentaram-se em duas poltronas. Offyr pegou um fone de ouvidos para si e entregou outro à Ambrose. O trabalho fora tão bem feito que o tom da voz soou exatamente igual à do áudio original - suave, musical, como jamais ouviram antes.

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O BRILHO DAS ESTRELAS – PAULA CARMINATTI *** Manaus, Amazonas, 18 de outubro de 2287. Nem sei por que estou fazendo isso, gravar um diário. É uma coisa boba, mas... Eu tenho essa loucura de achar que um dia alguém escutará isso e talvez ache interessante. Olá para vocês que estão me ouvindo neste momento, do passado para o seu presente. Como é a vida de vocês aí no futuro? A minha é boa, realmente muito boa. Espero que a de vocês também seja. Relato do dia: continuo minhas aventuras pelas ruínas do passado. Cavernas, penhascos, rios e oceano. O céu é o limite. Ou talvez não. Minha curiosidade é imensa e não faço a mínima questão de controlar. Tenho ânsia de saber cada vez mais sobre as pessoas que um dia habitaram a Terra. Cada peça, cada ferramenta, cada pedaço de metal... Tudo tem a sua história e, para mim, vale mais que o ouro já valeu para os povos antigos. A Terra já foi um planeta muito diferente. Como é que sei disso? Se eu contar para vocês que tenho uma caverna, irão acreditar? Pois eu tenho esse lugar secreto e muito especial onde guardo meus tesouros: livros muito antigos, peças mecânicas, peças eletrônicas, peças rasgadas de roupas, objetos pessoais, uma câmera fotográfica e máquinas que os antigos chamavam de computadores, dentre vários outros. Graças ao meu pai, que me ensinou a ler em dois idiomas diferentes desde garotinha, aprendi através da leitura dos meus

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O BRILHO DAS ESTRELAS – PAULA CARMINATTI achados sobre cada um deles. A maioria dos livros está faltando páginas, no entanto consegui filtrar um pouco de conhecimento de cada um deles, e foi suficiente para me ajudar a descobrir uma forma de consertar dois computadores. Tive que lançar mão da minha teimosia para persistir ante os primeiros fracassos. Fui testando fios e pecinhas eletrônicas até acertar aquelas que foram compatíveis para cada uma das máquinas. Ainda bem que naquela época a tecnologia havia evoluído ao ponto de terem feito baterias capazes de resistir ao tempo e às mudanças ocorridas na Terra, e de absorverem energia solar. Encontrei diversas delas em ruínas de prédios, localizados na zona proibida. Quando elas funcionaram... Chego até a me arrepiar! Em cada máquina descobri várias e incríveis surpresas. Não reparem na minha voz chorosa, estou emocionada. Querem saber o que havia nas máquinas? Bom, encontrei mais livros – sim livros que não são de papel. E também... Música! E vídeos! Nossa, é incrível! Posso assistir a filmes, dançar, cantar, enfim, sonhar! É realmente uma pena que tudo isso, toda essa riqueza tenha se perdido. Como eu gostaria de poder compartilhar essas descobertas com as pessoas da aldeia! Como se eles já não me achassem louca o bastante! Eles acham que remoer o passado traz má sorte. A Terra e seus habitantes já foram muito diferentes. Melhores? Piores? Quem poderia dizer isso já partiu há muito tempo e seus descendentes não fazem a menor ideia do que significa

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O BRILHO DAS ESTRELAS – PAULA CARMINATTI viver num planeta que alcançou o ápice da tecnologia e da inovação. Querem que eu conte como tudo aconteceu? Tudo bem, contarei o que eu sei. Do pouco que sei, aprendi pelos relatos que são passados de pais para filhos na aldeia. A partir desses relatos confirmei posteriormente alguns fatos pelos documentos encontrados nos computadores. No passado os humanos possuíam uma necessidade mórbida de tentarem prever o seu fim. Houve diversas previsões, premonições, profecias, ou seja lá qual for a denominação mais adequada. O fato relevante é que não puderam prever quando de fato aconteceu. Um cometa foi detectado por cientistas e não apresentava risco, uma vez que todos os cálculos indicavam que sua rota passaria longe da Terra. Não poderiam contar com o fator surpresa, uma força misteriosa que causou a alteração de seu curso e o aumento de sua velocidade. Não houve tempo e nem tecnologia que pudesse evitar o impacto. O meteoro caiu no litoral nordeste do Brasil e muito do que um dia foi considerado vida se tornou trevas. A morte veio com o brilho das estrelas. Para muitos. Para outros, foi a vida. Para alguns a morte foi imediata. Para outros ocorreu lentamente pela falta de alimentos, de água, de ar puro, de esperança..., e pela Doença. Um vírus desconhecido presente na rocha espacial que eles chamaram genericamente de Doença se alastrou numa velocidade assustadora. Não houve fronteira capaz de detê-lo. Todas as nações foram

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O BRILHO DAS ESTRELAS – PAULA CARMINATTI comprometidas. Sobreviveram somente alguns humanos que misteriosamente eram imunes ao vírus. Sobreviveram ao vírus também..., eles – os Cavaleiros. Eles, sete criaturas aladas que vieram das estrelas, caíram na cratera do meteoro, no fundo do mar, poucos dias após a colisão. O aspecto exótico de suas peles cor de prata, olhos de cor azul-fluorescente, cabelos cor de lama, rostos triangulares e asas brancas com envergadura de três metros fez com que fossem denominados Os Cavaleiros do Apocalipse pelos humanos sobreviventes. Eles, os Cavaleiros, vieram de um planeta semelhante à Terra, localizado numa galáxia vizinha destruída há mais de 1000 anos. Vagavam desacordados pelo espaço desde quando perderam seu lar. Suas caixas metálicas, por eles chamadas de cápsulas do tempo, foram programadas para localizarem o planeta mais próximo que reunisse as condições necessárias à sobrevivência dos sete, os últimos de sua espécie. Estavam desacordados, preservados em criogenia, e somente seriam despertados quando suas respectivas cápsulas atingissem a atmosfera do planeta. Foram as cápsulas as causadoras da mudança de curso do meteoro. Foram as cápsulas que trouxeram a Doença. Foram as cápsulas as responsáveis pela morte de tantos humanos. Mas também foram as cápsulas as determinantes para a restauração da biodiversidade da Terra. A Doença teve efeito devastador sobre a raça humana, contudo provocou um efeito acelerado

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O BRILHO DAS ESTRELAS – PAULA CARMINATTI de fertilidade das plantas através do enriquecimento do solo. Em 100 anos a biodiversidade da flora e da fauna transformou a Terra num paraíso natural como há centenas de anos não ocorria. Aqui no Brasil, os sobreviventes constituíram vilas e têm procurado conviver em harmonia com a natureza. Os Cavaleiros, por sua vez, encontraram seu lugar na Terra numa coexistência pacífica com os humanos sobreviventes e a biodiversidade. Por 100 anos eles têm estado entre nós. Por 100 anos temos vivido em paz. Quando leio os meus velhos livros, ou quando vejo vídeos sobre os graves conflitos que a Terra já presenciou – guerras, disputa por território, pela economia, pelo poder, e até mesmo pela liberdade de cada indivíduo – e as consequências destrutivas de tais conflitos para o meio ambiente e a espécie humana, percebo que a morte não veio do brilho das estrelas, como os noticiários do passado costumavam expressar. Os humanos há muito tempo estavam se matando uns aos outros, aos poucos, e através disso matavam também o planeta. As fotos nos computadores são assustadoras. Nas regiões por onde gosto de percorrer, antes havia um cenário desértico de destruição. Hoje tenho a possibilidade de abrir minhas asas ao máximo possível, sobre o topo da mais alta árvore da Amazônia, e me jogar sobre essa linda imensidão verde, ganhar velocidade, sentir o vento no rosto, no corpo, nas asas... O gosto da liberdade é indescritível.

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O BRILHO DAS ESTRELAS – PAULA CARMINATTI Nesse exato momento em que falo com vocês, encerro um desses voos. Acabo de me aproximar do leito de um dos vários rios da região e avalio a minha imagem na superfície espelhada da água – asas escuras, assim também como minha pele, olhos e cabelos cacheados, herança da minha mãe humana. Minha mãe, caros ouvintes, nunca teve medo dos Cavaleiros. Muito pelo contrário, encantava-se quando os via cortarem o céu em alta velocidade. Ela e meu pai, o mais novo dos sete, construíram uma relação especial. Até posso sentir se formar a dúvida em suas cabeças: Mas eles não chegaram há mais de 100 anos? Sim, chegaram. Mas lembrem-se de que pertencem a uma raça alienígena diferente da humana. Muito diferente. A expectativa de vida deles é maior, de forma que quando meus pais se conheceram, meu pai era jovem. Ainda é, na verdade. Da morte surgiu a vida, e da vida floresceu um novo mundo. Um mundo de natureza selvagem e vibrante. Eu faço parte desse mundo. Meu nome é Alfa, sou a primeira de minha espécie, uma nova espécie. A morte veio com o brilho das estrelas. Para muitos. Para outros, foi a vida. Espero não tê-los entediado com meu falatório, queridos ouvintes. E se é que de fato vocês estão me escutando, e me entendendo, gostaria que soubessem que a vida sempre dá um jeito de recomeçar. Para cada fim, há um começo. ***

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O BRILHO DAS ESTRELAS – PAULA CARMINATTI Offyr não se surpreendeu ao ver Ambrose passar a mão pelos olhos e rapidamente secá-los. O capitão retirou os fones de ouvidos e mirou a tela do computador por longo tempo absorto em pensamentos. — E assim descobrimos a origem de nossa espécie. — murmurou em tom solene. — Somos a combinação da extinta raça humana com a extinta raça ângelus. — A conclusão veio acompanhada de um meio sorriso confuso. — O que fazemos com essa informação capitão? Ambrose alongou as imensas asas preguiçosamente e respondeu: — Não creio que nosso povo esteja preparado para a verdade. Uma informação como essa poderia causar um colapso social. — Mas, capitão, como poderemos esconder algo assim? A verdade não precisa ser dita? Ambrose sorriu com simpatia. Offyr era tão jovem! Passaria por muitas adversidades, muitas frustrações, para então compreender um pouco melhor como funciona o pensamento coletivo. — É claro que sim. No momento certo. — Então... Nosso povo continuará acreditando que nossa vida veio do brilho das estrelas? — O jovem olhou para o

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O BRILHO DAS ESTRELAS – PAULA CARMINATTI rosto sorridente do capitão e lentamente se deu conta de suas próprias palavras. — O senhor tem razão. Nossa vida veio com brilho das estrelas!

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