ECOS 6
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Capa e Editoração eletrônica: E. Reuss
SUMÁRIO
EDITORIAL .................................................................. 6 DANIEL NA COVA DOS LEÕES ASTROLÓGICOS....... 9 SOMBRAS E RELÂMPAGOS ........................................ 26 ABALOS DE FINAL DE ANO I .................................... 35 AO CLAREAR DOS HOLOFOTES ............................... 41 TRINTA E TRÊS ......................................................... 44 CORREDOR DA SORTE ............................................. 68 FLUXO ........................................................................ 98 NOITES SEM SONHOS & SONHOS ACORDADOS .... 103 VOLTANDO PARA CASA .......................................... 117 ABALOS DE FINAL DE ANO II .................................. 128 UCRONIA .................................................................. 136 ENTRE EM CONTATO .............................................. 143
EDITORIAL
A Ecos 6 é uma nova Ecos. Chegamos a nossa sexta edição cientes de que era hora de mudar. As mudanças foram pequenas, imperceptíveis para o leitor, mas para nós, jovens escritores, fizeram todo o sentido. Emprego "Jovens" no sentido mais abstrato possível, porque durante os dois anos de sua existência, a Ecos viu escritores emergirem pouco a pouco por detrás de suas narrativas desconexas e de seus personagens inertes, para se tornarem contadores de histórias competentes. Talvez não sejam jovens, mas sim escritores "recém-nascidos". Independentemente disso, se existe uma coisa que pode atrair um grupo de mentes criativas em torno da organização de uma mostra literária, é a capacidade ou a necessidade de contar histórias. Suas mentes conservam a inocência e a imaginação que muitos já perderam e são capazes de enxergar nos acontecimentos mais banais as histórias mais impressionantes. E fazem isso com a maior naturalidade do mundo, porque se sentem livres para se abrirem e contarem suas histórias da maneira que nasceram em suas mentes. Por isso mudamos, porque diante do talento que se revelou aos poucos, percebemos que quanto menos regras tivéssemos, mais liberdade o escritor teria para criar. Não impomos mais
limites ou exigências quanto ao tema. Aceitamos textos de qualquer gênero ou tamanho. Pedimos apenas que os escritores sejam honestos com seus leitores e respeitem as próprias limitações. Por consequência disso, montamos a maior edição da Ecos desde o seu nascimento, em 2014. Você, leitor, está diante de uma coletânea de onze contos que, coincidentemente, tratam de mudança (o que, na verdade, não é coincidência nenhuma). Em um universo de entropia crescente, a mudança é quase o seu elemento mais fundamental e é na literatura em que seu papel fica evidente. Afinal, o que são histórias se não contos sobre a capacidade humana de mudar e se adaptar ao mundo? Por meio da consciência humana com seus constantes debates internos, ilustrados perfeitamente pelo conto Fluxo, das batalhas em que a ordem do mundo parece depender unicamente do fato de poder haver um único vencedor, tão bem representadas pelo conto Sombras e Relâmpagos, e dos acontecimentos capazes de tirar o planeta ou uma vida dos seus eixos, seja pela força destruidora de um meteoro ou de uma memória, como em Abalos de Final do Ano, o mundo procura atingir o seu equilíbrio máximo e, no processo, acaba fornecendo material infinito para que nós, escritores, criemos. Então convidamos você a ler nossas histórias e a acompanhar as mudanças pelas quais passam não só nossos personagens, mas nós mesmos, "jovens escritores". Porque afinal, já dizia Thomas Pynchon que "o mais interessante nos jovens
são as mudanças, não a fotografia estática do caráter acabado, mas o filme, a alma em fluxo.". E. Reuss
CONTO UM
DANIEL NA COVA DOS LE ÕES ASTROLÓGICOS RONIEL FELIPE
7h14 ACORDOU SORRINDO e de bem com a vida. Até o seu espreguiçar foi diferente e malemolente. Pulou cedo da cama, cheio de gás e de peito aberto para o mundão. Não sabia dançar. Aliás, nunca soube, mas naquela manhã que prenunciava um dia quente, atacou de James Brown. O clima era perfeito como um comercial de margarina, embora não houvesse outras personagens felizes naquele cenário além de Daniel. Imitou, de forma descompassada, os passos do rei do soul no chão do banheiro molhado enquanto saía da ducha. Esfregou em ziguezague a mão no espelho enquanto escovava os dentes. No centro do vidro embaçado pelo vapor, reencontrou uma feição
cheia de regozijo. Não a via há muito, mas ela havia voltado naquele dia que estava apenas começando. Daniel estava certo de que aquele 4 de setembro seria venturoso e repleto de aventuras. "É hoje", pensava baixinho e ria. Como de costume, se vestiu relativamente bem. Calça jeans, camisa bem passada e sapatos bonitos. Os calçados ganharam um brilho especial com os raios de sol do dia que abraçou Daniel, assim que ele pôs os pés na rua. O tempo poderia mudar bruscamente, o céu azul se transformar em cinza-chumbo e os raios de sol poderiam dar lugar para frias gotas de chuva, mas ele manteria seu humor intacto. Mesmo sabendo que era desafinado, cantaria com graça e estilo, assim como Gene Kelly o fez no clássico Cantando na chuva. A certeza de que seu dia seria fantástico era crescente a cada passada completa. 8h27 COMO TODA MANHÃ, Daniel foi à academia de musculação. Buscava manter o equilíbrio entre uma mente sã e um corpo sadio, embora seus colegas vivessem a dizer que ele queria mesmo era ficar marombado para ter mais chances no jogo da conquista (acreditava que atrairia olhares das moças se chegasse à academia vestido como um jovem empresário descolado). DANIEL NA COVA DOS LEÕES ASTROLÓGICOS ▪ 10
Seguindo sua rotina diária, o rapaz malhou forte, ignorando a tremedeira dos braços enquanto enfrentava o supino. Ao terminar a série de exercícios, voltou a se encarar no espelho. Era seu segundo momento Narciso. Notou que os bíceps estavam crescendo e sorriu. O script fluía muitíssimo bem até o momento em que Daniel percebeu que não havia água nos chuveiros da academia. Estava melado de suor e tinha que estar no trabalho às 10h, já que a máquina de bater cartão e sua exigência pontual eram uma constante em sua vida. Sem recursos, restou-lhe apelar à técnica do banho de gato, muito utilizada nos tempos de molecagem para ludibriar a mãe quando lhe perguntava se já havia se banhado após brincar a tarde toda. Na pia, lavou o rosto e jogou água nos cabelos. Os próximos passos da higienização provisória foram passar o desodorante antitranspirante e pentear o cabelo para trás, substituindo o pente fino pelos dedos. Bem humorado, ignorou o contratempo. O autoconfiante estagiário na área de informática de uma biblioteca municipal estava pronto para trabalhar. 9h33 DENTRE TANTOS ÔNIBUS que passavam em frente à sua academia, escolheu o circular 1.73. Foi aí que as coisas começaram a mudar. Simpático, Daniel adentrou o veículo. Político, acenou para o motorista, que suava em bicas com DANIEL NA COVA DOS LEÕES ASTROLÓGICOS ▪ 11
aquele calor e olhou Daniel com desdém. Porém, se a falta de água não mudara o humor do jovem, não seria aquele sujeito infeliz que iria mudar suas convicções. "Ema, ema, ema. Cada qual com seu problema", pensou em silêncio Daniel. Além de mal-humorado, o homem tinha também o pé pesado e pilotava o coletivo de forma deveras irresponsável. "Tu não tá carregando boi, não, motorista", foi a voz que veio do fundo, que se perdeu no ronco irado do motor que funcionava a todo vapor. Ciente da dificultosa travessia que tinha até chegar à parte traseira do ônibus, prudentemente Daniel manteve-se colado à catraca. Foi dali que avistou em um dos primeiros bancos uma atraente jovem, com pinta de estudante de uma universidade particular daquela região. Tentou travar contato visual. Enquanto sua mente pensava em uma forma inteligente de aproximação, seu corpo, principalmente o braço agora mais musculoso do que nunca, trabalhavam para que nada de ruim acontecesse. Eureca! Daniel pensou em se aproximar da garota fingindo que sua mochila estava pesada. Ela se sensibilizaria, lhe ofereceria ajuda e o papo começaria. Plano perfeito que não entrou em ação porque, quando ele fez menção de se aproximar da moça, o ônibus entrou em uma curva tão acentuada que as rodas de um dos lados do veículo, por alguns segundos, deixaram de se encontrar com o asfalto ardente. As leis da física foram cruéis com Daniel, que foi arremessado diretamente em direção à estudante. No reflexo, agarrouse à universitária, que não gostou nem um pouco daquela DANIEL NA COVA DOS LEÕES ASTROLÓGICOS ▪ 12
situação. Daniel a olhava pedindo piedade, e quem passava pela catraca e assistia àquela cena, com certeza, percebia que havia caroço naquele angu. Irritada como se tivesse dormido de calça jeans na noite passada, a jovem lançou a Daniel o mesmo olhar de reprovação do motorista estressado. "Nossa, mas que horror!", reclamou com uma voz estridente. Encabulado, Daniel se recompôs e se dirigiu para o fundo do ônibus driblando as trepidações e ignorando a revolta dos demais passageiros que, em coro, maldiziam as barbeiragens do motorista. Sem muito o que dizer, evitou trocar olhares com a estudante, que, ironicamente, mantinha um ar de superioridade. "Essa aí toma vinho de latinha de camelô e o cheira como se tivesse saído da mais fina adega francesa", matutou o galanteador revoltado. 10h26 DANIEL CHEGOU QUASE 27 minutos atrasado para o trabalho. Odiava atrasos, principalmente porque resultavam em descontos no miúdo salário que recebia. A vida de estagiário era bem complicada. Como o dia estava bastante calmo no serviço, aproveitou para buscar um dicionário de língua portuguesa. O primeiro e único verbete selecionado foi a palavra horror. Daniel era bom com lógica, mas pouco efetivo com as palavras. Interpretar a frase proferida pela musa do 1.73 só piorou o dia que havia começado muito bem: DANIEL NA COVA DOS LEÕES ASTROLÓGICOS ▪ 13
s.m. Impressão física de repulsão, espanto, causada por algo de medonho: fiquei tomado de horror. Sentimento de antipatia, aversão, ódio: sentir horror à mentira. Pessoa repelente por sua fealdade. Passou a se sentir mal e, num surto, começou a cheirar a si mesmo compassivamente. Quando a ficha caiu, notou que o relógio já apontava que a metade daquele dia de altos e baixos havia ficado para trás. 12h33 COMO A GRANA ERA CURTA, Daniel foi até a rotisseria de um supermercado que ficava a duas quadras da biblioteca onde ganhava pouco mais de um salário mínimo. Quando saiu do corredor de higiene pessoal, bem coladinho à prateleira que exibia uma irresistível promoção de papel higiênico, ainda pensava no incidente do ônibus. Ao chegar à seção de doces e guloseimas, alegria das crianças mimadas e terror das mães, teve uma surpresa. Foi bem em frente da gôndola de biscoitos que Daniel avistou uma jovial promotora. Trajando um vestido cor de abóbora que lembrava uniforme de gari, a moça era pura simpatia. Sorrindo, convidava a todos que passavam ali a experimentar o produto que representava e dizia ser extremamente delicioso. Daniel gostou da moça e, pronto, o dia que começou bom e ficou ruim, agora estava ótimo. Maravilhoso.
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— Oi! Moça, eu quero um biscoito. Ou deveria dizer bolacha? — Claro, senhor. E se o senhor levar esse pacote da nossa bolacha, ganha um brinde extra. — O quê? — Um pôster do Ribamar, o craque da seleção — disse a jovem apontando para a foto gigante de um frangote sorrindo com um jeito cínico de galã barato. — Ah. Tá. Posso te fazer uma pergunta? — Claro, senhor. — Você me acha horroroso? — Como assim? — É, horroroso. No sentido de causar repulsa. — Senhor, eu não devo achar nada. Eu só acho esse biscoito uma delícia. Prove! — Tá, me desculpe. Posso conversar com você mais tarde? — Pode não, moço. Inclusive meu namorado é segurança e está de olho na gente, bem ali atrás da prateleira do arroz. Ele é superciumento. Indiscreto, Daniel olhou para a estante e encontrou um rapagão de braços cruzados. O sujeito era alto e forte, do tipo que não tremia na hora do supino. Restou ao estagiário voltarse à moça e pedir-lhe desculpas pelo incômodo. Também notou que uma pequena fila em busca do agrado havia se formado atrás dele. Em sua retirada estratégica e derrotista, DANIEL NA COVA DOS LEÕES ASTROLÓGICOS ▪ 15
ainda teve tempo de pegar um pacote promocional das mãos da menina, que usava um elegante rabo de cavalo. A essa altura do campeonato, estava tão transtornado com o dia que não sabia se o doce que tinha em mãos era biscoito ou bolacha. 13h15 AO TERMINAR A REFEIÇÃO, que foi quiche de alho-poró acompanhado de refrigerante barato, enquanto voltava para o maçante estágio na biblioteca, Daniel passou a mão no bolso e encontrou os doces. Notou que, assim como os biscoitos chineses, aquele pacote com duas unidades de biscoito (ou bolacha) sabor kiwi trazia uma espécie de mensagem. Parou debaixo de uma árvore, verdadeiro oásis naquela tarde que beirava os 40 graus, e viajou no tempo. Retrocedeu dez horas e se viu com o jornal do dia nas mãos. Sentado no parapeito da janela de sua quitinete, lia atenciosamente o horóscopo que afirmava as grandes chances de aquele taurino fã de romances franceses encontrar o seu amor. Essa era a fonte de sua alegria matinal e de sua empolgação com as moças. No fundo, não era galanteador, mas a mensagem do biscoito do fruto verde de gosto nada bom era mais uma prova de que as coisas poderiam dar certo: "Para aquele que tem esperança no coração, o dia ruim se transformará em alegria profunda." DANIEL NA COVA DOS LEÕES ASTROLÓGICOS ▪ 16
Mesmo que a frase não fosse de procedência chinesa, Daniel pensava na sentença trocando os erres pelos eles. 13h27 EMPOLGADO PELA PROFECIA, Daniel novamente sorria ao passar pela porta giratória da biblioteca, quando, literalmente, deu de cara com uma estudante apressada. Se houvesse uma perícia técnica para saber de quem era a culpa, provavelmente Daniel seria responsabilizado pelo acidente. Era ele quem estava no mundo das nuvens. — Poxa, me desculpe — respondeu à jovem. Ele também percebeu quão bonita ela era. Negra, de cabelos naturais e dentes perfeitos. — Não foi nada — ela disse. — Poxa, tem certeza de que não foi nada mesmo? — Não, não, não. Tá tudo bem. — Mas não foi nada mesmo? Por acaso não te bateu um sentimento bom? — Como assim? — Algo que te lembre o destino. Tipo um encontrão marcado nas estrelas. — Moço, tenho que ir. Estou com pressa. — E não foi nada mesmo, nadinha? Nem uma gotinha de algo? DANIEL NA COVA DOS LEÕES ASTROLÓGICOS ▪ 17
— Não tô entendendo, cara. Preciso ir. Tchau! E a moça, que devia ser estudante de Biologia, já que segurava com afinco um grosso livro de botânica lançado ao solo com o encontrão, se foi. Daniel ficou maluco com mais aquela situação. Aproveitou a ausência da chefia e mergulhou no mar da internet em busca de resposta. Com a ajuda do oráculo digital, passou a tarde toda pesquisando e lendo sobre coincidências no amor. Quanto mais lia, mais bravo ficava com o dia que começou bem, ficou ruim, melhorou, piorou, tornou a melhorar e estava acabando melancólico, péssimo. Cansado dos ideais românticos, passou a pesquisar como poderia rapidamente incinerar um mapa astral gigante desenhado numa lona, que tinha pendurada na parede de casa. Assim como toda a papelada mística que recebera de uma amiga que havia partido para a Ásia, Daniel queria dar fim a tudo aquilo. Na verdade, a garota que vivia uma vida nômade e dizia estar em busca da paz interior foi o grande amor de sua vida. Em busca de experiências transcendentais, Isabela deixou o Brasil, mas sempre mantinham contato. Ela adorava contar suas histórias a Daniel (certa vez, falou de suas experiências sexuais com um indiano bem-dotado, fato que enciumou o amigo, fazendo-o deixar de responder a seus e-mails por dois meses). Irritado com o dia estranho, ele preferiu cabular aula da faculdade.
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19h34 DANIEL CHEGOU EM CASA com uma lata de 5 litros de querosene, o que causou certa estranheza ao porteiro do prédio onde vivia sozinho. Como não havia elevador, foi uma dificuldade danada fazer a lata chegar até o quinto andar. Passado o sufoco, Daniel olhou para a parede onde estava o mapa astral desenhado por Isabela e mirou uma série de recortes de jornais, além de uma vistosa montanha de revistas de astrologia. Por dois anos, colecionara aquele material. Pensava que se conseguisse entender todo aquele mundo, poderia conquistar sua paixão. Quando notou, já estava praticamente viciado no mundo dos astros, signos e afins. Aos poucos, Daniel passou a acreditar cada vez mais no que lia. Porém, a realidade havia mudado. Juntou toda aquela tralha no tanque da área de serviço, amassou o mapa de lona e o banhou em querosene, para logo em seguida, mergulhar as revistas e as páginas de cultura dos jornais. Sem dó, tacou fogo. Encostado na parede de braços cruzados, ficou observando as chamas. Enquanto a fumaça fugia para o céu com a ajuda de um ventilador, Daniel sentiu um aperto danado na bexiga. Correu para o banheiro para urinar e lembrou-se de uma tia que sempre lhe dizia que "menino que brinca com fogo faz xixi na cama". Enquanto terminava de esvaziar a água do joelho, sentiu um cheiro forte de queimado. A princípio, pensou que o DANIEL NA COVA DOS LEÕES ASTROLÓGICOS ▪ 19
fogo estava corroendo o mapa astral desenhado por Isabela no dia em que ela foi embora e ele, em vão, disse que a amava. Quando voltou à área de serviço, foi surpreendido pelo fogaréu. O ventilador havia pifado, o fogo cresceu mais do que devia e chegou às roupas que estavam no varal. Logo as chamas se espalharam por uma parte do pequenino apartamento. Desengonçado, Daniel acabou tropeçando e, ao se levantar, encostou o braço no ardente tanque. 20h21 COM AJUDA DO PORTEIRO, que quase infartou ao cabo da sétima subida de escadas, e de outros moradores que pensaram que havia um senhor incêndio no quinto andar, a situação foi contornada. Daniel se sentia arrasado, sua moral estava em cinzas, assim como a papelada astrológica que tanto lera. Ao fim da confusão, notou que o capote ao lado do tanque resultou em uma vistosa queimadura no antebraço esquerdo. Embora insistisse para não ir ao hospital, Dona Nelma, sua vizinha e melhor amiga no condomínio — que sempre lhe presenteava com um delicioso salpicão nas tardes de domingo — chamou a ambulância. Contrariado, mas com a queimadura ardente, Daniel foi se tratar.
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0h34 DEU ENTRADA NO HOSPITAL após muitas horas de espera. Apesar dos cuidados iniciais recebidos na triagem, o braço ardia cada vez mais. Uma enfermeira, que lembrava sua primeira professora, lhe confortou naquele momento estranho. No entanto, nem o tato adocicado da mulher da saúde foi o bastante para sanar aquela situação ruim. Enquanto impacientemente aguardava para ser atendido por um médico, Daniel pensava em tudo o que havia acontecido. Não bastasse a tormenta, também sofria de devaneios com Isabela e o maldito indiano bem-dotado, quem sabe um famoso ator da versão pornográfica de Bollywood. 3h03 CHEGOU EM CASA E NÃO CONSEGUIA DORMIR. A mente insistia em acompanhar o ardor do braço, um pouco aliviado. A área de serviço da quitinete estava um horror. Pensou consigo de onde tinha tirado aquela ideia de jerico. Enquanto fuçava no tanque, ironicamente, encontrou uma folha de jornal intacta. Com o braço direito, retirou a folha de papel do tanque e a aproximou dos olhos. Para a sua surpresa, era o horóscopo que havia moldado o seu dia anterior, aquele que trazia a previsão certeira de que os DANIEL NA COVA DOS LEÕES ASTROLÓGICOS ▪ 21
taurinos iriam se dar bem no jogo do amor. A data do jornal anunciava o dia 3 de setembro. Ele se deu conta de que havia lido o horóscopo do dia anterior e, como Isabela advertia, isso não era coisa boa. Atribuiu tudo que de ruim lhe acontecera à leitura atrasada. Após três semanas, a vida havia voltado ao normal, mas como em um filme que já conhecia, Daniel se sentia atraído pelas repetições. O banheiro da academia voltou a ter problemas com água. Naquele mesmo dia, um pouco mais quente que o fatídico 4 de setembro, o estagiário mais uma vez viajou no 1.73. A musa do nariz empinado não estava lá. Talvez tenha se formado ou comprado um carrão. Daniel até pensou em manter um buquê de flores na mochila caso o destino, a física e os astros os unissem novamente. Também voltou ao supermercado para repetir o almoço. A promotora baixinha, aquela do biscoito (ou bolacha) também não estava lá. Quem sabe estivesse em outro supermercado trabalhando em outra promoção. E por pior que o produto oferecido fosse, seria infinitamente melhor que aquele doce de sabor kiwi. O adjetivo horroroso cabia bem àquela coisa. Na volta para o trabalho, não houve nem uma topada. Lembrou-se da beleza do sorriso e dos cabelos cacheados da negra bióloga. Aliás, nunca mais a viu também. Naquele dia, evitou manter contato com o oráculo virtual. À tarde, acometido pelo desejo de urinar, foi até o banheiro da biblioteca. Após fazer xixi e novamente recordar da máxima proferida por DANIEL NA COVA DOS LEÕES ASTROLÓGICOS ▪ 22
sua tia, dirigia-se até a pia para renovar seu banho de gato quando teve o caminhar interrompido por um jornal largado no canto do chão do banheiro. Daniel se agachou e, curiosamente, a página virada para cima era justamente a do horóscopo. Não resistiu e leu as informações sobre seu signo. "Touro. Hoje é um bom dia para ser grato às pessoas que lhe ajudaram, pois Vênus transita pelo seu signo e segue o caminho do sol. O momento é ótimo para tocar projetos antigos". Olhando para o braço marcado pelas chagas, saiu correndo em direção à sala da chefia. — Chefe, a queimadura está doendo muito. Vou até o hospital. Antes de o patrão autorizá-lo, bateu a porta e saiu em disparada pela biblioteca. Manteve o pique até alcançar à floricultura da rua. De lá, voou para o ponto de ônibus. Só descansou de vez quando chegou ao hospital e encontrou a enfermeira que havia lhe atendido há alguns dias. A mulher, que vestia branco, mudou de cor quando recebeu flores do jovem, que aparentava ser bem mais jovem que ela. — Desculpe eu aparecer assim, mas hoje eu tenho uma certeza — disse Daniel. — Olha, eu saio daqui meia hora. Podemos conversar lá fora — disse a enfermeira Flora. DANIEL NA COVA DOS LEÕES ASTROLÓGICOS ▪ 23
E quando Flora saiu, Daniel estava lá, lhe esperando. Papo vai, papo vem. Foram passear, tomaram uma cerveja, falaram sobre astrologia, biologia, condutores de ônibus mal-educados e queimaduras de segundo grau. Em poucas semanas, se apaixonaram completamente e hoje vivem felizes. Como Flora tem idade avançada para engravidar, decidiram adotar uma criança depois do casamento civil. Dona Nelma, a vizinha de Daniel, chorou como se o próprio filho estivesse casando. O processo de adoção segue devagar, mas Daniel estuda registrar o menino como Rama, em homenagem ao deus hindu e a sua amiga Isabela, o antigo amor que um dia desses lhe mandou um e-mail. Na mensagem, falava da vida na Tailândia e sobre o namorado que conheceu no Sri Lanka. Ela também perguntou se, após tanto tempo, o mapa astral de lona que desenhou já havia mostrado um caminho bom para o amigo. Daniel respondeu prontamente a mensagem: "Querida Isa. Bom saber que está bem. Apesar de todo o inferno astral, aprendi uma grande lição na minha vida. Serei eternamente grato pelo mapa que queimou parte da minha pele, mas me mostrou o caminho para ter a paz no coração." Do lado de lá, sem entender muito e sem saber o porquê, Isabela chorou e viveu uma experiência transcendental profunda. Tão profunda quanto aquela noite de sexo tântrico DANIEL NA COVA DOS LEÕES ASTROLÓGICOS ▪ 24
com o indiano bem-dotado, do qual o pai de Rama nunca mais teve motivo para se enciumar. !
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CONTO DOIS
SOMBRAS E RELÂMPAGOS MARCOS VINÍCIUS SANTOS DE MELO
"...e o mestiço virá tomado de fúria e rancor e em suas asas trará sangue e destruição. Haverão gritos e desespero e a floresta dos Éons arderá." VIZZITEL, ANTIGO PROFETA ÉON ESTAVA ESCURO. O vento das cordilheiras soprava com força. Nuvens tão negras quanto a noite que se fazia pairavam sobre o vale, castigando-o de forma constante e permanente com poderosas tempestades de raios. Aquele local inóspito, fadado a ser eternamente assolado desde tempos imemoráveis por uma das mais perigosas forças da natureza, ficou conhecido por todos como Vale da Tormenta. No centro dos entremontes, no pico da montanha mais alta, as intempéries eram ainda mais severas do que nos demais
pontos do vasto território rochoso, e justamente ali, em meio ao coração daquele anuviamento caliginoso, havia algo mais que cortava a negritude da noite além das majestosas descargas provindas do céu. Naquele solo áspero, duas figuras se digladiavam. Um dos combatentes trajava calças escuras prendidas por um cinto de couro, botas, luvas, uma camisa cinza e um longo sobretudo com capuz, de um tom escuro de púrpura, fechado e preso na cintura por um cinto, com uma fivela prateada. Seu capuz estava abaixado, sua expressão impassível. Seu olho direito, negro como ônix, encarava seu oponente, calmo, compenetrado. Não era possível saber se o outro fora igual um dia, pois havia um tapa-olho ocultando o local da face onde ele deveria estar. Seus cabelos, escuros como o olho, voejavam com a ventania. Em suas mãos segurava um cajado, forjado do mais fino dos metais, com toda a sua extensão coberta de runas e arabescos. A ponta inferior era pontiaguda, e em sua extremidade superior havia um suporte, trabalhado no mesmo metal, sustentando uma grande ametista lapidada, que emitia um brilho místico arroxeado. O homem que o enfrentava vestia-se da mesma forma, porém, com algumas diferenças. A cor de seu sobretudo era de um vermelho-sangue. Seu rosto estava encoberto pelo capuz, mas podia-se sentir a fúria de seus olhos verdes, que pareciam reluzir sob sua face oculta. Seu cajado também era feito de metal, entretanto suas inscrições e trabalhos eram diferentes e SOMBRAS E RELÂMPAGOS ▪ 27
em sua ponta, ao invés de uma ametista incrustrada, havia um rubi, o qual emitia um brilho vermelho intenso, como se emanasse fogo da pedra. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. O embate recomeçou. O combatente vermelho partiu para cima de seu oponente. Sua fúria era como a de um incêndio consumindo uma floresta, selvagem, indomável. Seu adversário continuou aguardando pacientemente, observando a investida impetuosa de seu contendedor. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. Enquanto avançava, o rubí de seu cajado brilhava ainda mais intensamente. Não somente o rubí, mas podia-se ver naquele momento por toda a extensão da arma o mesmo brilho. Suas runas se iluminaram e ele ardeu em chamas no momento em que desceu sobre a cabeça do homem de púrpura, que ainda o observava sem reação. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. O cajado acertou. Mas não como esperado. Seu ataque colidiu com um duro escudo de ametista, que vinha desde o chão até acima de sua cabeça, conjurado por seu oponente num piscar de olhos. Mal teve tempo de se surpreender com a velocidade de defesa do guerreiro que enfrentava, a pedra explodiu, arremessando-o para trás. O mago vermelho levantou-se a tempo de ver o cajado de seu adversário também SOMBRAS E RELÂMPAGOS ▪ 28
encoberto por uma grossa camada de ametista, deixando-o como um grande martelo de guerra. Desta vez, foi ele quem avançou. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. O martelo desceu impiedosamente sobre a cabeça do guerreiro vermelho, que desviou-se e saltou para trás, a fim de manter distância daquela arma perigosa. Mais uma vez, o mago púrpura avançou. A camada de ametista que cobria seu cajado se desfez como cristal. Ele mirou-o na direção de seu inimigo e de sua ponta disparou um poderoso feixe de luz roxa contra o mago vermelho, atingindo-o novamente e lançando-o para trás com o impacto. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. O mago do fogo percebia que o homem que estava enfrentando não era um mago arcano qualquer. Tão rápido quanto pode, pôs-se de pé, ainda sem ar do impacto do ataque recebido, que acertou-lhe a boca do estômago. Ele observava seu oponente se aproximar calmamente, tão seguro de si, como se estivesse enfrentando um aprendiz. Mais impressionante do que suas habilidades era sua frieza em combate. Aquilo irritava o guerreiro vermelho. Irritava profundamente. Seu fôlego havia voltado, sua fúria se ascendeu novamente e com ela, seu cajado também. Do grande rubi vermelho em sua ponta, ele conjurou uma bola de fogo. E mais uma. E outra. Cada uma das bolas de fogo lançadas era revidada com um feixe de luz roxa disparado pelo arcano. Cada um dos disparos roxos do SOMBRAS E RELÂMPAGOS ▪ 29
mago púrpura era repelido pelas chamas do mago do fogo. Ambos começaram a avançar em círculos contra o outro, num duelo de magias, tentando encontrar o melhor ângulo para acertar o adversário. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. A dança de magias estendeu-se. Um tiro púrpura pegou de raspão o mago das chamas, na altura da cabeça, arrancandolhe o capuz. Era agora possível ver seu rosto. Seus cabelos eram de um louro escuro e curtos. Sua orelha direita sangrava. Seu olhar vivo e feroz como fogo selvagem, contrastava com o olhar negro e sem vida do mago arcano. A dança continuou até que ele encontrou uma brecha. O piromante disparou suas labaredas, que desta vez conseguiram tocar o mago púrpura em diversos pontos, deixando suas vestes chamuscadas e causando pequenas queimaduras em seus braços, pernas e uma que pegou em cheio em seu flanco direito. Agora ele pode ver pela primeira vez algum resquício de expressão naquele rosto vazio. Algo como surpresa e raiva. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. O duelo continuou. O fogo continuava a recair sobre o mago arcano, desta vez na forma de um grande jato de flamas. Ele desviou-se pulando para a direita, mas não à tempo da língua de fogo queimar a parte de baixo de seu sobretudo. O controlador das chamas estava furioso. O mago púrpuro desvencilhou-se de mais uma rajada de labaredas e nesse instante avançou disparando rápido SOMBRAS E RELÂMPAGOS ▪ 30
e certeiro no flanco, no rosto e no braço do piromante, arrancando-lhe o cajado. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. Sem sua ferramenta de combate, atordoado da última onda de ataques, o mago do fogo observava seu inimigo aproximarse. Aquele olhar negro, mesmo no calor desta batalha de vida ou morte, aterrorizava-o, causava arrepios em sua espinha. Ele começou a sentir pequenos tremores. Havia algo além de sua compreensão naquele rosto vazio. Aquele não era um homem comum. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. O piromante tremia, agora incontrolavelmente. Ele tinha medo, temia não poder ver um novo alvorecer após esta batalha. Não. Ele não podia se entregar. Não podia morrer ali. Não iria ceder sua vida de bom grado. Não para um inimigo que o subestimara durante todo o combate, desdenhando dele com sua face sem emoções, sem sentimentos, sem vida. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. Mesmo sem sua arma, naquela montanha tempestuosa, o guerreiro vermelho reuniu todas as forças que ainda lhe sobravam, não sabia se por coragem ou por instinto de sobrevivência e afinal, naquele momento, isso não importava. Ele ergueu suas mão trêmulas para o céu e sem seu cajado, canalizou em si mesmo toda a magia que ainda lhe restara. Seu corpo emitiu uma aura vermelha. Seu oponente, sem se importar com o esforço desesperado do combatente escarlate, SOMBRAS E RELÂMPAGOS ▪ 31
continuou a aproximar-se lentamente, seu rosto continuava sem expressão. A aura vermelha em volta do corpo do mago das chamas aos poucos começou a adquirir um brilho azulado, até tomá-la completamente. Ele suava e tremia. Mas não se renderia. Agarrava-se a vida com todas as forças. A aura cresceu e cresceu. Era seu último recurso. Aquele combate teria que terminar ali, do contrário, estaria perdido. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. O homem de púrpura continuava a aproximar-se. Todo o poder reunido pelo mago vermelho, toda aquela aura azulada agora estava canalizada em suas mãos. Uma poderosa rajada azul foi disparada aos céus, rasgando as nuvens. Ele abaixou suas mãos. Estava esgotado. Apenas continuaria a encarar seu oponente com seus olhos furiosos. Não tinha mais seu cajado. Não tinha mais forças. Não tinha mais medo. Se isso tiver que terminar desta forma, que assim seja. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. E o mago arcano avançou. Seu cajado novamente coberto de ametista, transfigurado num martelo de guerra. Ele avançou com força e velocidade de encontro ao mago vermelho, exaurido e sem defesas. No momento em que a poderosa arma desceria de encontro à sua cabeça, ele ergueu novamente os braços. Seu corpo se ascendeu num clarão azulado, de seus pulmões emitiu um grito de fúria e dos céus, num clarão cegante, a mais poderosa tempestade de raios já vista por aquele vale caiu sobre o mago SOMBRAS E RELÂMPAGOS ▪ 32
púrpuro. Cinco descargas simultâneas desceram sobre o inimigo. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. Estava acabado. Sem mais forças para permanecer de pé, o combatente vermelho exausto cai de joelhos. Ofegava. Não havia mais sinal de seu opositor. Ele havia sido completamente pulverizado neste último e violento ataque. A luta havia enfim terminado. Ao menos, era o que ele imaginava. Uma poderosa coluna de luz dourada desceu sobre sua cabeça, derrubando-o. Do chão, sombras prenderam seus braços e pernas e lentamente começaram a tomar seu corpo, arrastando-o para um mundo de escuridão. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. E ele o viu. Enquanto as sombras o tomavam, ele viu o mago arcano. Estava acima dele. Era impossível, mas estava. Aquilo não era magia arcana. Aquele realmente não era um homem comum. Ele estava voando. Sua asa direita era constituída da mais pura luz dourada que ele já havia visto em sua vida. Entretanto, sua asa direita era feita da mais negra das sombras. Mais negra do SOMBRAS E RELÂMPAGOS ▪ 33
que a própria escuridão. Ele estava sem o tapa-olho. Agora podia-se ver seu rosto como realmente o era. O olho que estava oculto era de um azul penetrante. Ele brilhava. Aqueles olhos, tanto o preto quanto o azul o encaravam. Parecia que com o olho que outrora estava oculto, podia enxergar a alma do mago das chamas. E realmente podia. As sombras continuaram a tomá-lo. Só sua cabeça ainda não havia sido encoberta pelo véu de trevas. O guerreiro das chamas entendeu que desde o começo nunca teve chances. Aquela luta estava perdida desde o início. Ele amaldiçoou o dia que cruzou o caminho deste mago. Mas agora não havia mais volta. O relâmpago brilhou. O trovão rugiu. E a noite o engoliu.
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CONTO TRÊS
ABALOS DE FINAL DE ANO I FÁBIO GUASTAFERRO
"(...) e as estrelas do céu caíram sobre a terra como figos verdes caem da figueira quando sacudidos por um vento forte." APOCALIPSE 6:13 FOI COMO UMA gigantesca bomba atômica. No início pequenos fragmentos apareciam riscando o céu. As pessoas admiravam, mas não davam importância. Uma pedrinha ali, um risco no céu aqui, aos poucos eles foram se tornando cada vez mais constantes. Todo dia tinha um, dois, três, até vinte ou trinta meteoritos cortando o céu, mas nada de excepcional. Até que se anunciou a primeira queda. As expectativas eram grandes. Medo e desespero para uns, salvação e rendição para outros. Era pequeno, noticiava todos os jornais, alertan
do que não causaria grandes estragos. Bastava quem estivesse por perto se proteger, ou claro, fugir. Uma área seria comprometida, mas isso não influenciaria a vida na Terra. Pedras como essa estão sempre caindo por aqui, esta não seria a primeira, e nem a última. O povo ignorou avisos tranquilizadores, e muita gente se aproveitou da situação negativa para tirar proveito. Igrejas lotaram, promessas eram proferidas enquanto outros corriam para pagar as que estavam em débito. Alguns piraram e jogaram a vida pela janela saindo correndo pelados pelas ruas. Teve também os que se jogaram das janelas. A situação era tensa, mas era controlável, e no dia 29 de dezembro ele caiu. Ainda menor do que previra. Houve impacto, claro, mas bem abaixo de toda aquela expectativa. A reação imediata da grande maioria foi a frustração. Tinha muita gente acreditando no fim de tudo. Inclusive, muita gente apostou alto. Alguns dias depois as coisas começaram a se normalizar pelo globo, mas os arautos não paravam de chegar. A chuva de meteoritos que outrora era admirada agora trazia temor e medo. Cada vez mais intenso, aqueles riscos no céu profetizavam a chegada de algo maior, bem maior. Muitos afirmaram que os principais líderes mundiais já sabiam de sua chegada, outros acreditavam que fomos pegos de surpresa. Mas o que todos concordavam é que este próximo era grande, e que iria abalar todo o planeta.
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O impacto estava anunciado para o meio dia do dia 13 de janeiro no círculo polar ártico. Naquele dia o céu amanheceu com uma coloração diferente. Um vermelho azulado, como o núcleo de uma chama. Muitos viram Jesus caminhando entre as Nuvens, outros acreditavam ser o próprio Jesus. Muitos ouviram as trombetas do apocalipse, outros se tornavam os quatro cavaleiros do apocalipse. Era sabido que a vida na Terra corria grande risco, a espécie humana na Terra já se sentia condenada. O impacto não foi sentido em todo o globo. Teve gente que nem percebeu. Alguns, por incrível que pareça, acompanharam pela televisão. Mas no local onde aquela pedra de gelo e fogo caiu, ela causou um belo estrago. Porém, ele não seria o único, o pior ainda estava por vir. Meteorologistas, astrônomos e toda a sorte de cientistas diziam que aquele era apenas um pedaço de uma grande pedra que ameaçava tirar a Terra de sua orbita. Seria não só fim da humanidade, mas também do planetinha azul, que logo se tornaria uma gigantesca pedra de gelo. Os sinais no céu eram visíveis dia e noite e por alguns dias uma nova lua brilhava no firmamento. A loucura proliferou pelo mundo com o anúncio do apocalipse. Ninguém mais trabalhava direito. Ninguém mais sabia de nada direito. A todo o momento chegavam informações imprecisas, algumas dizendo ser o fim, outras dizendo ser um novo começo. Muitos não queriam acreditar, outros já ABALOS DE FINAL DE ANO I ▪ 37
aceitavam bem a situação. Mas poucos conseguiam conviver ou sobreviver à calamidade que reinou naqueles dias. Em determinados locais as forças armadas tiveram que intervir diante de saques e do desespero da população, já em outros, nem forças armadas havia mais. Era o caos. O início da era da escrotidão. Como um prelúdio para o fim ele se aproximou numa noite de uma terça feira. Em 19 de janeiro. Em meio a chuvas torrenciais, tempestades de raios e furações se destacava uma gigantesca estrela negra, anunciando as trombetas da potestade. O céu se rachou em chamas e o impacto foi sentido em todo o globo. Apesar de ser uma área inabitada por humanos, aquele lugar se tornou inabitado para qualquer ser vivente. O abalo foi tão forte que reverberou por horas. A onda de choque devastou milhares e milhares de quilômetros e uma poeira grossa tomou conta do céu por vários dias ocultando a luz do sol. A vida já não era mais a mesma. A humanidade já não era mais a mesma. Com a força do impacto, vendavais arrancavam antenas como se fossem ervas daninhas. Os meios de energia elétrica e comunicação sofreram o grande abalo. Os satélites já não conseguiam um bom contato com suas bases no solo, os sinais de TV se tornaram instáveis e a internet caiu em diversos locais do globo.
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Mas esse foi apenas um dos inúmeros problemas que os terráqueos enfrentaram naqueles primeiros dias. Logo após o impacto, detritos do impacto retornavam a Terra em velocidades gigantescas gerando uma chuva fogo que espalhou incêndios em diversos pontos do planeta. Maremotos geraram gigantescos tsunamis que engoliram boa parte dos litorais do atlântico e do pacífico. Cidades inteiras desapareceram engolidas pelas águas. Atividades vulcânicas respondiam a fúria das ondas cuspindo lava como um grande furúnculo cospe pus. Furacões e tornados assolavam cidades, fendas enormes engoliam construções e metrópoles inteiras vinham abaixo com a fúria dos terremotos. O planeta gritou, chorou alto a sua dor e boa parte dos seres que se autoproclamavam os mais evoluídos dentre os habitantes terrestres quase foram extintos. Alguns pontos contrários ao impacto sofreram menos com o impacto. Mas a economia mundial tinha praticamente sido extinta. A agricultura, já não era mais possível nestes primeiros dias, e o ar ficou poluído em todo o planeta, já que a poeira se misturou a atmosfera terrestre. Os poucos homens que sobraram regrediram algumas centenas de anos, muita da nossa tecnologia ficou obsoleta, e a própria fé em Deus foi abalada. Já não existiam mais as grandes instituições e organizações. Não existiam mais governos e líderes mundiais. Algumas poucas cidades se
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fecharam em seus próprios governos em busca de sobrevivência. Apesar do grande impacto, ainda havia esperanças. Apesar do medo e da loucura, ainda há locais com um pouco de razão, com um pouco de civilização. A vida iria mudar. Claro! É um recomeço, talvez uma nova chance para tentar fazer a coisa certa, enquanto viver as memórias desta civilização ainda pode se ter esperanças na sobrevivência da humanidade. Dedicado à Tatianinha
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CONTO QUATRO
AO CLAREAR DOS HOLOFO TES MARCELO
“DORAEMON” S. NASCIMENTO
“... POR QUÊ?”, é o pensamento que surge em minha mente no último segundo. Estando sentado, em um lugar ermo, olho de dentro do meu veículo, maravilhado com a paisagem local, e minha mente começa a divagar, cavalgando entre uma nuvem e outra, que está simplesmente enfeitando o céu azul. “Quem na verdade é o maior assassino de todos?” Tais palavras flutuam como se fossem bolas de algodão, fluindo de corrente em corrente, cavalgando para longe e sumindo de minha vista, desaparecendo no horizonte. “O palhaço! É nele que estou pensando? ” Este raio de pensamento não quer sair. Ligo meu veículo e começo a me deslocar, seguindo minha rota, mas os pensamentos começam a se acumular. Não demora muito... Coisa de
uma hora no volante e tenho que parar de novo. Desta vez, em frente a um cenário mais bonito que o anterior. Reclino meu banco, dando passagem para um cochilo, mas os pensamentos, empacados em meu cérebro, começam a pular como carneiros pulando a cerca. Infelizmente nesse caso, não fico com sono. Olho para o banco do passageiro. Apenas vejo o melancólico vazio, seguido de perto pelo estofamento da porta e seu vidro, fechado. Abrindo o vidro, uma suave brisa começa a circular, fazendo com que a bola de algodão chegue e pouse em minha barriga, criando uma singular mancha branca em minha camisa preta. Abro um leve sorriso e recomeço segurando o fio da meada de meus pensamentos, que sussurram: “Finalmente, o culpado de tudo chega ao palco, aplaudindo e pedindo bis. ” As luzes se acendem, o culpado se senta no banco e abre um jornal. Ao ler suas primeiras páginas, descubro que... Toda semana, milhares.... Não! Milhões de pessoas são assassinadas frequentemente sem se dar conta disso e com isso, a verdade começa a aparecer. Primeiro, vem o assassino, matando sem dó a tristeza. Depois, começa a se sentir em casa, em suas explicações e, com isso, as pessoas morrem de rir. Parece piada (talvez...) mas com isso, todos se apegam mais, dando chance para que o assassino chegue mais e mais perto, até dar o golpe final! AO CLAREAR DOS HOLOFOTES ▪ 42
E todos que estão próximos, se assustam e matam o tédio, a tristeza, o estresse, os problemas... Pomos de lado tudo que é ruim, porque.... Já morreu! E o assassino se levanta de seu banco, e com um terno sorriso, se despede, deixando um recado para todos: “Semana que vem, eu volto para matar mais! ” Depois de tirar essa dúvida mortal, de descobrir quem realmente é o culpado, levanto meu banco, ligo o veículo e volto a correr rumo ao sol poente, onde deixei parte de minha felicidade me esperando.
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CONTO CINCO
TRINTA E TRÊS FABIANO DOS SANTOS ARAÚJO
I NÃO HAVIA NADA que chamasse atenção ali, a não ser se você estivesse preocupado com a bagunça. Era um quarto de um solteiro, não havia nada de incomum em sua aparência. Cada canto tinha os seus defeitos e coisas pra consertar, todos eles eram bem conhecidos por seu morador. Ele estava no banho e mal sentia a água batendo em seu corpo. Um dos últimos avisos antes que não houvesse mais pressão alguma no chuveiro. Era mais um de seus incômodos diários. Sua mente se voltava para a pilha de exames e laudos médicos sobre o televisor. O rapaz era bastante econômico, bastava olhar rapidamente o seu quarto e ver a idade e a quantidade de coisas que havia
nele para constatar isso. Com a sua situação salarial, não havia outra forma de tratar suas finanças. Da melhor forma que podia, ele vivia sua existência frugal fazendo cortes e economias aqui e ali. Depois do banho o rapaz se olhou no espelho por algum tempo. Seu cabelo molhado sobre o rosto escorrendo o que restava de água, sua pele, ainda jovem, refletia a luz nos pontos mais molhados. Suas olheiras sempre imutáveis, o fitavam. Seu nariz era bem maior do que ele gostaria. Seus lábios sempre ressecados, sua barba recém feita e a pele vermelha de irritação, por fim olhou em seus olhos escuros, sempre procurando alguma coisa fora do lugar, por algum elemento que não estava no dia anterior e agora poderia estar, ou mesmo o contrário. Buscando de alguma forma encaixar tudo o que via naquele banheiro, naquele quarto, naquela cidade. Percebeu que estava tempo demais na frente do espelho sem ter feito quase nada para se arrumar. Ainda era cedo e se ele quisesse ficar parado na frente do espelho um pouco mais não faria diferença, mas ainda assim seria tempo demais desperdiçado com aquilo... Vestiu-se e foi saindo, pousando os olhos na pilha de exames antes de tocar na maçaneta da porta. Isso fez uma das frases de seus médicos ressoar em sua mente:
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– Rapaz, você tem a saúde de um cavalo! Não tem absolutamente nada de errado com você. Seu quadro é invejável. – Saúde de cavalo, saúde de cavalo? – ele repetia mentalmente – E isso agora é termo médico? Saúde invejável? Só ele pra ter inveja de um cavalo... Por isso que a saúde nacional está dessa forma... Ainda faltava muito tempo para o horário do seu ônibus, mas como estava sem fome, não tinha o que fazer com o tempo que usaria para preparar alguma coisa pra comer. Com esse tempo a mais iria caminhar até chegar a hora de pegar o seu ônibus, não queria chegar tão cedo assim no trabalho. E a caminhada lhe faria bem. Sua mente estava insistindo nos mesmos pensamentos sobre os exames a todo momento, mas ele não queria focar nisso, era desanimador demais. Sempre que isso ocorria, apenas uma coisa o ajudava a desviar estes pensamentos, repetir mentalmente esta frase: – Se os médicos, que são entendidos em tudo isso, dizem que não tenho coisa alguma, não deve ser algo tão importante assim... Ia repetindo isso até que estes pensamentos fossem perdendo o foco e deixassem de atormentá-lo. Mas se tinha uma coisa
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que ele sabia por experiência própria era que se uma obsessão não tratada perde sua força, outra sempre toma o seu lugar. O dia já havia começado há algum tempo para ele, mas ainda não tinha circulado em sua mente nenhum dos pensamentos arroz com feijão que ele sempre tinha: Sua lamentação constante motivada por se sentir deslocado do mundo o tempo todo. Não importa onde estivesse ou o que fizesse sempre se sentia deslocado e fora do grupo. Enquanto caminhava agia da mesma forma: olhava rapidamente para os seus sapatos tocando no chão a cada passada, para suas mãos, tanto nas palmas quanto nas suas costas, como se elas não fossem suas e se aparecesse o seu reflexo em algum lugar enquanto caminhava, ele o olhava fixamente, arrumava sua postura, por mais ereta e elegante que estivesse e discretamente tentava andar enquanto se observava. A visão de si mesmo o fascinava e causava repulsa simultaneamente. E da mesma forma que fazia em frente ao espelho, continuava a busca por alguma coisa, sinal ou padrão que estivesse fora do lugar, que fosse incomum, que não estava ali na última olhada. Nunca viu nada diferente, mas ele sempre sentia como se visse. Sempre sentia que era um forasteiro em uma terra que não o queria. E seu trabalho, sua situação financeira e o lugar onde morava, apenas contribuíam de forma negativa com tudo isso. TRINTA E TRÊS ▪ 47
II NO HORÁRIO DO ALMOÇO pegou sua refeição e escolheu uma mesa vazia para se sentar. Ele ainda não sentia fome alguma e sua vontade de dar eventuais explicações sobre isso era ainda menor. Para poupar um grande esforço seu, seria melhor ficar afastado dos outros. Bem devagar tentaria comer alguma coisa no horário que tinha. Hoje já completava três dias seguidos sem sentir fome alguma. Em nenhum deles se alimentou e se sentia muito bem com isso. Antes de ir aos médicos era normal, para ele, ficar um ou dois dias por semana sem fome e sem comer, mas nenhuma vez foram dias consecutivos. Em suas muitas visitas aos médicos contou esta situação, ouviu o que tinham a lhe dizer, fez os exames que cada um pediu, e sua falta de apetite pareceu ser ignorada, assim como a falta de sensibilidade que às vezes sentia em todo o corpo. Algumas vezes ele nem sentia que estava caminhando ou o tecido se suas roupas sobre sua pele. Em outras vezes estava perfeitamente normal. Ao seu redor via que todos comiam com aparente satisfação, alguns conversavam com os colegas enquanto o alimento ia sumindo de seus pratos. Enquanto isso uma luta era travada para que conseguisse empurrar uma garfada em sua boca, cada uma mais espaçada da próxima. TRINTA E TRÊS ▪ 48
Não sentia inveja deles, na verdade, nunca sentiu inveja de ninguém até onde conseguia se lembrar. Mas mesmo sem os invejar, se entristecia com o que via. Aquele horário do dia era especial, um momento para estar junto com outras pessoas, trocando ideias e compartilhando alguma coisa. E ele estava sozinho em sua mesa observando os outros. Sentia-se sozinho pela obviedade de estar sem ninguém próximo de si. Sentia-se sozinho por não ter contato com nenhum deles e sentia-se ainda mais só por ser o único que não estava conseguindo participar da refeição. Forçar a comida goela abaixo não se pode considerar uma refeição. Há uns meses trocaram a empresa que cuidava da alimentação, mas para ele não fez qualquer diferença. Não importava o que colocasse em sua boca, sempre parecia isopor ao molho de água. Sempre sem sabor e frio. Hoje ele sentia um leve amargor na boca e infelizmente era causado pela situação e não pelo que estava em seu prato. Qual a possibilidade de todos os outros funcionários estarem se refestelando com seus pratos, especialmente agora que todos se calaram e dedicavam toda atenção a eles, enquanto ele estivesse lutando para empurrar algumas garfadas pra dentro de si? E ainda não ter nada de errado consigo? Isso o agredia e reforçava o sentimento de que os profissionais que procurou eram incompetentes.
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Será que todos no mundo estavam errados e somente ele estava certo? Quais as chances disso acontecer? Mais do que nunca se sentiu deslocado do grupo. Entre uma garfada e outra o tempo foi passando e cada vez mais ele percebeu que estava perdendo o seu tempo. Logo, perdeu também a paciência, quando sua boca já não conseguia mais sequer sentir o alimento sendo mastigado. Sem sabor, sem textura e dormente era uma combinação forte demais para que suportasse. Empurrou a bandeja, respirou fundo e ficou de cabeça baixa pensando um instante. Todas as dificuldades do seu dia a dia foram passando pela sua mente e ele se lembrou de duas coisas, primeiro que já havia passado da hora de voltar pra sua sala, seu projeto estava parado o esperando, e que não havia como descer mais fundo do que ele já estava. Não conseguia conceber uma forma de ser mais desprezível e detestável do que isso. Voltaria ao seu trabalho e ao menos assim calaria todo esse tormento em sua mente. Levantou o rosto e olhou todos ainda comendo e lhe ocorreu uma coisa: A sirene ainda não havia tocado. Mesmo já tendo passado mais de uma hora do final do almoço. Ele sabia que estava atrasado, mas os outros também estavam e este não era o problema. Por que todos estavam comendo tão tranquilos mesmo estando tão atrasados? Alguém já deveria ter notado e avisado aos outros, mas até aquele momento estavam todos quietos. TRINTA E TRÊS ▪ 50
Levantou-se para retornar a sua sala, também o fez para espionar o que comiam com tanta devoção. Era apenas uma curiosidade inofensiva. Estava a não mais que dez passos da mesa mais próxima e ainda não conseguia ver direito os seus pratos. Eles estavam muito juntos e o movimento dos seus braços atrapalhava a visão nas poucas brechas que surgiam. Por muitas vezes em sua vida ele se sentira deslocado e invisível, desta vez não se sentiu diferente. Estava invisível e desta vez não se importava com isso, era quase um desejo sendo realizado. Poderia ver o que queria e não seria incomodado. Parou ao lado da mesa e ninguém ainda o notava, o fez por ter ficado imóvel com que não conseguia ver. Os talheres deles ainda estavam lá tinindo a cada batida nos pratos, mas nem os pratos e nem as bandejas estavam sobre as mesas. Seus olhos passearam por toda extensão da mesa e não havia um único prato ou bandeja. Nas mesas adiante, a mesma situação se repetia. Na sua frente estavam homens e mulheres tão reais e vivos quanto ele mesmo. Os via na sua frente, não precisava de prova maior do que esta. Não importava se o estavam ignorando ou o motivo para isso. Se isso fosse um monumental embuste, qual era o motivo? E como todos eles suportaram ficar repetindo o mesmo movimento por tanto tempo? TRINTA E TRÊS ▪ 51
Novamente no controle das suas pernas continuou caminhando e nas próximas mesas a mesma cena foi se repetindo exatamente da mesma forma. Mais ao fundo o ambiente parecia estranho, sua aparência era levemente achatada e chapada, ele tinha dificuldade de identificar o que via. Sentiase mais próximo de uma pintura no fundo de um estúdio de TV do que da saída do refeitório. Percebeu que as pessoas sentadas às mesas pareciam cada vez mais finas, não mais magras, pareciam literalmente achatadas e cada vez mais parecidas umas com as outras. Mais próximo da saída as pessoas ficavam menos nítidas, seus corpos foram se transformando em pontos desfocados, estavam tão finos que mesmo uma folha de papel seria mais espessa comparada a eles. As mesas do fundo estavam artificialmente cheias de telas com o formato de pessoas que trocavam a combinação de seus pontos para que de longe criassem a ilusão de movimento. Ainda se aproveitando de sua invisibilidade, se aproximou de um deles e levou a mão para tocá-lo, mas não conseguiu. Sua mão atravessou a tela como se ela não estivesse ali. Repetiu o gesto e sua mão novamente cortou o ar. Caminhou ao lado das outras mesas tentando outra e outra vez e suas mãos continuavam a cortar o ar. Continuou fazendo o mesmo mesa após mesa até parar de frente à porta que levava ao jardim. Olhou para o refeitório TRINTA E TRÊS ▪ 52
fixando a vista em todos aqueles que ele acabara de passar ao lado. Todos tinham sido indiferentes com ele, mas isso não era importante. Os primeiros eram pessoas se fazendo de bonecos animados e os últimos o que eram? Bonecos se fazendo de pessoas? Saiu do refeitório e correu pelo jardim. Só parou na sombra de uma árvore no meio do gramado. Não o seguiram até lá. Perseguição simplesmente não era uma preocupação que ele precisasse ter. Ele mal sentia as pernas, mas imaginava que elas não estivessem no seu momento de maior firmeza. Deitou-se sob a sombra e ficou imóvel olhando para o céu. Quando se deitou ventava, não era capaz de sentir o vento, mas sabia que soprava ao seu redor pelas folhas que caíam da árvore e eram levadas para longe das raízes. Todos os seus sentimentos estavam confusos, mas estavam consigo. Naquele momento sentiu-se o homem mais insensível e isolado do mundo. Era capaz de ver tudo e por isso sabia como as coisas ao seu redor funcionam ou deveriam funcionar, mas era incapaz de sentir e interagir com o que estava à sua volta. Mesmo estando a céu aberto sentiu-se em uma redoma ficando cada vez mais estreita. Como em tantas outras vezes sua reação era apenas mental, sua voz apenas reagia dentro de sua mente: TRINTA E TRÊS ▪ 53
– Eu estou aqui deitado debaixo desta sombra. O vento sopra e derruba as folhas no chão. Eu estou aqui e ao mesmo tempo não estou em lugar algum. – Não existe meio certo, meio verdadeiro ou meio justo. Ou se é certo ou errado, verdadeiro ou falso, injusto ou justo, se está ou não em algum lugar. – Algumas coisas devem ser exclusivistas. E por isso me pergunto como se pode ser meio humano? Se algo fosse meio certo, meio justo ou meio verdadeiro, seria inteiramente errado, injusto ou falso. Como posso eu ser meio humano? – E do que seria feita a outra metade? Uma pessoa vê, sente e interage com o mundo com as informações dos seus sentidos, é humano aquele que não sente? – Não sou apenas uma metade. Sei também que estou mais incompleto do que nunca. Não achei um lugar que eu sirva, em que eu possa me encaixar e fazer o que fui feito pra fazer. Mas se não é aqui, onde seria? Onde é o meu lugar no mundo? O céu estava lá no mesmo lugar, tão azul quanto sempre foi. As nuvens também estavam da mesma forma, com o mesmo formato e cores de sempre. Estava ventando, mas as nuvens estavam imóveis. Ele estava debaixo da sombra de uma árvore, mas em lugar algum do céu encontrara o sol. Muitas coisas seguram as pessoas nos locais onde estão às vezes são elas mesmas que fazem este papel. Alguns cuidam de TRINTA E TRÊS ▪ 54
outros, e usam isso como desculpa para serem não realizados, infelizes e deslocados como ele também se sentia. Outros, por ter sempre aquela quantia mensal, que não era suficiente para muita coisa, mas cobria as necessidades mais básicas, ficavam parados no tempo. Necessidades mais básicas. Já fazia três dias que ele não tinha nenhuma. O que o segurava ali? Ainda não sabia o que fazer adiante, sabia apenas que não iria mais voltar ao refeitório. Ele não sabia o que faria adiante, mas sabia que não suportaria tudo aquilo outra vez. Sentou-se e viu mais adiante uma fonte e próxima a ela outra árvore que lhe fazia sombra. Talvez sua água estivesse mais fria do que a dos banheiros. Seria melhor para lavar o seu rosto enquanto pensava o que fazer. Se ia sentir sua temperatura ou o contato dela na pele de suas mãos e seu rosto não tinha importância alguma. Seria apenas mais uma coisa para o manter afastado do refeitório por mais um tempo, entre tantas desculpas e motivos falsos do dia a dia, o que seria mais um para mantê-lo longe do que tinha que enfrentar? Desejava a mudança, mas não precisava ser agora. Foi até lá e enquanto caminhava continuava com a cabeça levantada olhando para o céu, ver a claridade do dia e não ter conseguido ver o sol lhe intrigava muito, continuaria procurando até chegar a fonte. Alguns passos adiante bateu o queixo em alguma coisa, que o fez dar alguns passos para trás. Baixou o rosto e nada havia TRINTA E TRÊS ▪ 55
na sua frente para lhe impedir a passagem. Repetiu os passos na mesma direção, agora olhando para frente e novamente sentiu alguma coisa impedindo sua passagem. Não parecia ser coercitivo, era mais como se fosse um muro invisível. Levantou as mãos e não conseguiu sentir nada, pois ainda não recuperara o tato, mas havia alguma resistência que impedia que sua mão avançasse no ar. Caminhou para os lados ainda com as mãos sobre a barreira e nada mudou, ainda havia uma parede invisível impedindo sua passagem. E mais adiante a uns oitenta ou cem passos estava a fonte lhe esperando. Se não fosse possível chegar até a fonte teria que voltar para o refeitório, e isso não era uma boa opção. Talvez se usasse um pouco de força, conseguiria vencer a barreira. Deu vários passos pra trás e correu o mais rápido que conseguia, mas antes de chegar ao local onde achava que deveria estar o muro invisível, sentiu algo lhe repelir na mesma intensidade e força de sua corrida o jogando no ar vários metros para trás, como se a barreira tivesse recuado alguns metros enquanto ele se afastava. Depois que se viu sendo jogado para trás, viu ao longe a fonte se afastando rapidamente enquanto tudo ia escurecendo e desaparecendo na frente de seus olhos.
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III NUM SOBRESSALTO ele se levantou, estava tudo silencioso e escuro, moveu rapidamente a sua mão até o interruptor e a luz acendeu, ela machucava um pouco os seus olhos que estavam acostumados com o escuro. Assim que seus olhos se acostumassem, olhou a sua volta e viu o seu quarto. De frente para a cama estava o seu televisor e sobre ele estava a pilha de exames e laudos médicos. Ao lado estava a cadeira que sempre deixava quando colocava o celular para carregar durante a noite. Se o deixasse mais longe talvez não ouvisse o despertador tocando. O led do aparelho informava que a carga estava completa, retirou-o da tomada e viu as horas na tela brilhante, passaram poucos minutos das duas da manhã. Ainda haveria umas boas horas de sono. Foi até a cozinha beber água antes de voltar a dormir. Pegou uma das garrafas na geladeira, destampou-a e bebeu direto do gargalo. Enquanto bebia olhou o topo da geladeira e viu um frasco grande com um líquido escuro, tendo dois ou três dedos a menos e ao lado uma caixa de comprimidos com tarja preta. Recolocou a garrafa sem tampa na geladeira, mesmo antes de matar a sede, pegou os dois remédios e correu para a pilha de exames levando tudo para a mesa da cozinha. TRINTA E TRÊS ▪ 57
No topo da pilha havia duas receitas médicas, uma de um clínico geral que receitara o uso daquele frasco de estimulante de apetite, e a outra de uma psiquiatra, que receitara o remédio com tarja preta. Em sua mente as lembranças começavam a emergir a medida que ficava mais acordado e alerta. Lembrava-se do retorno ao clínico, suas recomendações e do remédio que receitara. Recordava também da última visita à psiquiatra, do remédio que receitara e das suas recomendações de uso: – (...) Fora os efeitos que eu comentei tem mais um, ele é raro, mas eu sempre o comento com os meus pacientes para não serem pegos de surpresa. Há alguns casos de pessoas terem alguns distúrbios durante o sono, insônia ou confusão momentânea ao acordar. Há ainda alguns relatos de pacientes que tiveram sonhos muito vívidos que modificavam seriamente as suas realidades. Caso sinta algum destes sintomas não deixe de entrar em contato ou vir aqui(...). Ele estava se tratando de sua falta de apetite e por se sentir tão deslocado do mundo, foi receitado um antidepressivo. Tudo estava explicado agora. Em seu sonho a realidade foi completamente misturada com uma fantasia pavorosa. Um lugar onde ele era completamente ignorado. Era maravilhoso saber que o mundo não era daquela forma. Que ele não era
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mais uma pessoa invisível e que não conseguia sentir qualquer coisa. Respirando aliviado e com a mente leve, tentou dormir enquanto o celular apitava com algumas notificações de mensagens. Algumas pessoas não precisavam dormir mesmo... IV HORAS MAIS TARDE em seu trabalho ele fazia uma pausa, já era quase hora do almoço. Ainda não sentia fome, mas faria esta pausa pra descansar um pouco a mente e os olhos, estava a muitas horas seguidas na frente do computador. Foi saindo e voltou a sua mesa, tomou o seu estimulante de apetite e percebeu que não estava com o seu crachá. Na borda direita ficava a sua foto, na esquerda a logomarca da empresa e abaixo o cargo e seu nome. Mas no local do seu nome havia um número: 015633. Era o seu número de matrícula funcional, sem o número ele realmente ficava invisível na empresa por não poder acessar os seus projetos. Há algumas semanas começaram a trocar os crachás, mas só hoje o olhou com calma. Abaixo do número tinha várias linhas escuras, ao invés do nome do funcionário, agora usariam código de barras. Era impessoal, é verdade, mas a única função do crachá era a
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liberação de algumas portas no prédio. Quantas chaves você conhece que tem o nome do dono escrito? No refeitório pegou o seu prato e foi até a mesa mais próxima do balcão. Enquanto comia ficou distraído mexendo no seu celular. Estava tão entretido com os apps que só notou que havia terminado o prato quando levou o talher a boca e ele estava limpo. Baixou os olhos até o prato e sorriu aliviado. Realmente tinha sido um sonho. Ele já se levantava para sair quando olhou ao redor, era impressionante como o refeitório real era parecido com o do sonho. Ao longe ele viu o seu supervisor e foi até ele perguntar uma coisa sobre o projeto que trabalhava. O supervisor comia silenciosamente enquanto algumas pessoas ao seu redor conversavam. Tentou chamar a atenção dele, mas percebeu que estava sem voz, sentia seu corpo pesado nos últimos dias, talvez fosse uma gripe chegando, e agora estava afônico. Ele pigarreou o mais alto que pode na tentativa de conseguir falar alguma coisa e isso conseguiu chamar a atenção do supervisor. O homem corpulento virou seu rosto redondo na sua direção esperando uma resposta. Mas ele não foi capaz de nada além de arregalar os olhos e sair correndo e tentando gritar, mas suas cordas vocais não o ajudavam. O supervisor virou-se para olhá-lo, mas não havia nem olhos, nem sobrancelhas, nem nariz, boca, bigode, rugas ou TRINTA E TRÊS ▪ 60
verrugas na sua face. Estava completamente limpa como se fosse uma esfera com peruca e costeletas grisalhas. Acima de seu prato estava seu rosto flutuando no ar, mastigando prazerosamente tudo o que o braço levava a boca com o talher. Abaixo do rosto estava a mesa nua outra vez, sem bandeja e sem prato. Todos os outros funcionários passaram a olhá-lo com suas faces também sem rosto. Sem resposta alguma por parte dele, todos voltaram às posições iniciais e seus rostos novamente se encaixaram nas cabeças, de onde nunca deveriam ter saído. Agora enquanto corria, ele não era mais invisível como no sonho, todos se viravam e o viam correndo, na verdade, apenas suas cabeças e pescoços se viravam, pois seus rostos estavam ainda flutuando no ar acima de onde deveriam estar os seus pratos. Lá no fundo do refeitório, nas mesmas mesas e mesmos assentos, ele via cada vez mais perto as telas em formatos de pessoas, que de longe criavam a ilusão de pessoas se alimentando. Mesmo se quisesse gritar não era capaz. Começou a se perguntar qual foi a última vez que ele havia pronunciado uma palavra. Desde que ele acordara não se lembrava de ter dito coisa alguma, normalmente tudo o que ele precisaria dizer tinha dito mentalmente, ele morava sozinho e falar sem ter ninguém ao lado era estranho demais. Durante a madrugada ele não pronunciou uma única palavra. TRINTA E TRÊS ▪ 61
E em seu sonho também não havia falado nada. Será que ele tinha a capacidade de falar? É claro que podia falar, estava apenas afônico, repetia ele mentalmente. Se não pudesse falar, como explicar as lembranças de conversas que ele tinha? Como suas recentes visitas aos médicos. Essas memórias passavam em sua mente, ouvia mentalmente os médicos repetindo os seus diagnósticos, mas não conseguia se lembrar de ter falado coisa alguma para eles, aliás, sequer se lembrava de ter feito as primeiras consultas ou mesmo de ter feito tantos exames para formar a pilha que estava sobre a sua TV. Não tinha a capacidade de falar, tinha cada vez mais dúvidas se tudo o que se lembrava de ter visto, feito ou acontecido consigo, era mesmo real ou algum tipo de memória fabricada. No seu crachá havia apenas um número que o conectava na sua estação de trabalho. O que não era capaz de provar nada. Exceto por ele mesmo não se lembrar de seu próprio nome. Sempre que pensava nisso os números 015633 surgiam como sendo a resposta à pergunta: Qual é o meu nome? Agora ele estava próximo à saída para o jardim, a porta era de vidro, bem diferente da que estava em seu sonho. Ao seu lado as telas continuavam a trocar sua combinação de pontos, como se ele nunca tivesse passado por ali. Há uns dez ou vinte passos da porta ele parou bruscamente. Seu corpo estava novamente perdendo a sensibilidade. E agora lhe ocorria uma dúvida, se o seu remédio tinha mesmo tido TRINTA E TRÊS ▪ 62
algum efeito, pois ele o tomou e começou a comer antes de sentir fome e como estava entretido com os apps do celular, não percebeu o que comia. No sonho ele não tinha nada que fosse capaz de desviar tanto a sua atenção... Tirou o aparelho do bolso e sua tela brilhava convidativa, quase pedindo para que a desbloqueasse. E quase fez isso, no último instante o jogou na porta de vidro. No local onde o aparelho bateu ficou uma marca, o que era estranho, pois ele não acreditava que algo tão leve pudesse fazer um estrago tão grande a uma lâmina de vidro tão espessa. Neste ponto exato havia uma marca semelhante a de o impacto de uma marreta ou uma bala em uma parede. Mas somente neste ponto. Todo o vidro ao redor estava ileso. Mais de perto parecia que o estrago havia sido impresso como um adesivo minimamente realista, especialmente se visto de longe, colocado onde deveria aparecer a marca do impacto. Quando se aproximava para tocar na porta a sirene marcando o final do horário de almoço tocou, mas foi interrompida por uma voz que dizia: – ATENÇÃO! E O TEMPO... No local onde o aparelho bateu ficou uma marca semelhante a de um tiro. Como algo tão leve seria capaz de provocar tanto estrago em uma lâmina tão espessa de vidro?
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O estrago se limitava ao ponto de impacto, toda a área ao redor estava ilesa. Mais de perto o estrago parecia ser apenas um adesivo realista pregado ao vidro. Pouco antes de tocá-lo, a sirene indicando o final do horário de almoço soou, mas logo foi interrompida por uma voz nos auto falantes: – ATENÇÃO! O TEMPO... V – (...) DEIXOU DE EXISTIR... – disse Beto e depois respirou aliviado, por ter conseguido agir no último segundo. – Diz aí o que foi, Beto. – Entra aí cara! O trinta e três deu problema de novo... O que eu faço com essa joça, Tim? – Trinta e três? trinta e três, trinta e três... – Tim, eu vou ter que repetir isso toda a vez? Todos os bots dessa seção começam com o número 0156... O 015633 deu problema outra vez. – Ah... Tá falando disso? Ok. Mas nunca chame eles de bots fora desta sala. Isso vai nos arrumar problemas. – Bot ou simulação, o trinta e três deu erro, e agora? – Já fez o que eu te falei se isso acontecesse outra vez? – Tanto como três vezes... Só rodou com algumas modificações que fiz no seu código. E mesmo assim... TRINTA E TRÊS ▪ 64
– Beto, como o Marcos faz falta, né? – Eu sei, mas isso é outra coisa que não podemos falar fora daqui. Ele era turrão, mas sabia fazer isso funcionar com cuspe, fita e a energia de uma bateria de carro. Os bots que ele criou têm o gênio difícil que ele tinha. – Simulações, cara... As do Marcos estão entre as mais rápidas e estáveis. – Não tem uma vez que você não cai na piada... Antes de dar pau, ele conseguiu dar uma adiantada no projeto do cliente, dá uma olhada. Beto abriu um arquivo e executou um programa no monitor ao seu lado. – Tá vendo, só? Eu falava desse tipo de coisa! Quanto tempo uma equipe das antigas ia demorar pra fazer uma programação deste nível? – Nossa equipe rápida e o Marcos era o chefe... Como erámos uns trinta, né? Acho que entre dois e três meses, dependendo da necessidade de grana... Ambos riram – Mas sabe quanto tempo ele gastou pra fazer isso sozinho, Tim? Uns vinte e cinco minutos, logo depois que coloquei a simulação pra rodar e ele foi pro escritório programar. Está noventa e dois por cento concluído.
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– Cacete! Vinte e cinco? É por isso que não podemos abrir mão dessa seção. A seção “melhor” seção prédio faz menos da metade disso e gasta umas trinta e seis horas. – Mas esquece isso, vamos fazer o que com ele? E se demorar muito sabe que o problema vai se espalhar pra seção inteira... – Deixa ele congelado por agora, vamos comer alguma coisa e enquanto isso vamos trocando umas ideias. Ainda não sei o fazer. Talvez se ele tiver um pouco mais de consciência... Fora que o trabalho dele vai ser mais rápido. – Vai fazer ele dar pau mais rápido, você quer dizer. Tim, eu acho que ele estava a um passo de ter plena consciência de si, e fez isso por conta própria... – Beto, não fala asneira. Você tá com fome, vamos almoçar pra curar essa sua cabeça demente. – disse Tim rindo com a própria piada. – Pode rir cara, mas você estava no final junto com o Marcos, foi ele que falou que isso ia acontecer logo. – Cara isso já tem dez anos... Esfria a cabeça! – É, vamos comer que eu já to quase desmaiando. O trinta e três. Ele foi um dos melhores que o Marcos fez. – E um dos últimos também... Os dois bloquearam o acesso às maquinas e trancaram a sala e saíram rumo ao restaurante do outro lado da rua. A TRINTA E TRÊS ▪ 66
comida servida no prédio em que eles trabalhavam sempre tinha um gosto estranho. Algumas vezes era bem temperada e tinha boa aparência, mas a textura na boca era estranha, não condizia com o que estava em seus pratos, em outros dias quase tudo estava certo, aparência, textura e cheiro, mas parecia que os ingredientes principais eram isopor e água.
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CONTO SEIS
CORREDOR DA SORTE E. REUSS
“Precisamos jogar com mais balas.” MICHAEL, O FRANCO ATIRADOR EU GOSTO MAIS DELES do que eles gostam de mim, disso eu tenho certeza. Para falar a verdade, eu os admiro. Admiro a espera e a paciência deles. Me sinto um deus caminhando sobre suas cabeças. Meus passos ressoam de forma regular na passarela de alumínio do telhado. Mantenho minha velocidade constante para não perturbar o sono dos apenados. A minha volta, a cidade geme e da sua maneira tenta reproduzir o padrão das estrelas com luzes brancas e amarelas. A minha aparência é heroica, mas talvez seja um efeito da bebida. Você se sente grande caminhando pela passarela, não tem como evitar. Lá embaixo, eles dormem sob uma camada suspensa de
roupa suja, colchões e outros corpos presos por cordas e redes no teto da gaiola. As pessoas simplesmente aprendem a viver em níveis, como na cidade. Mas aqui não é como na cidade, não é mesmo? Aqui você sente o cheiro… Se você estivesse aqui, você também sentiria. E não é o cheiro de merda de que estou falando, é o cheiro da ausência da sorte. Afinal, a prisão é isso, uma sala de espera para aqueles que nasceram sem sorte. Na Galeria E as coisas são diferentes. Não há sorte por aqui também, mas aqui eles tem portas e janelas, privacidade e sono sem perturbações. Um reflexo do dinheiro que eles tiveram lá fora. Aqui é o lugar onde gosto de passar meu tempo, pois posso deslizar sem fazer barulho pelos corredores e espiar pela pequena janela em suas portas. Um deles sorri para mim, o primeiro sorriso que recebo na ala masculina em não sei quantos anos. Há uma espécie de passividade nele que chamou minha atenção, algo que me lembra Santidade, assim, sentado de pernas cruzadas no chão úmido, sorrindo… Esperando. E que sorriso, tenho que dizer. Dava para perceber que foi investido dinheiro naquele sorriso. Um polimento perfeito, reluzente, caloroso, um sorriso que te convida a fazer loucuras. Ah, aquele sorriso já viu muita sorte por aí. Tirei meu cantil do bolso da farda e comecei a beber. Ofereci um pouco para o monge, mas ele não ia querer aquela merda, não com aqueles dentes. “Obrigado, mas não.” CORREDOR DA SORTE ▪ 69
Enrosquei a tampa enquanto ele sorria para mim e comecei a deslizar novamente pelo corredor. “Parece meio abatido, rapaz” Eu parei. No estado terminal em que eu estava, eu precisava parar para qualquer coisa. Perguntei se ele falava comigo. “É, é… Eu sei como tu vive… Conheço bem o teu tipo. Às vezes, ladeira abaixo é o caminho mais fácil.” “Ladeira abaixo?” Arrotei e comecei a rir. “Acha que eu tô aqui contra a minha vontade?”, ele disse enquanto eu abria minhas calças e mijava pela janelinha da bandeja de comida. “Opa, acho que é hora de sair daí então… Oi? Como é? Não consegue? Ah, é mesmo. Sua vontade não vale nada aqui” Olhei para ele. Nenhum movimento. “Vivendo e aprendendo, meu amigo”, eu disse, “vivendo e aprendendo”. Verdade. A vida nos ensina muita coisa. Naquela mesma tarde, por exemplo, ela me ensinou que paraplégicos não sofrem de disfunção erétil. Eu não teria problema nenhum com isso, se a ereção não estivesse dentro da minha mulher.
Acordei por volta da uma da tarde sentindo o cheiro do almoço. Simone estaria na cozinha, preparando o mesmo prato que ela preparava todos os dias desde que firmamos esse contrato de decomposição mútua de espírito que é o nosso CORREDOR DA SORTE ▪ 70
casamento. Espaguete, molho de tomate e frango empanado. Para ela e para o irmão, Laércio, um ovo frito. Meio-irmão, na verdade. Ele veio junto com o casamento. Eles sempre foram próximos, próximos até demais. Você teria pena dele se o visse chorando na mesa de jantar com a boca cheia de espaguete, dizendo que eu o ofendi de alguma forma. A face do atraso mental e da melancolia, inconsolável. Quando isso acontecia, Simone sentava em seu colo, enfiava a cabeça do irmão no meio das tetas e balançava (a cabeça) para os lados, enquanto cantava cantigas infantis com uma voz melosa e enjoativa. Por isso eu não julgo o pai deles, que em algum momento da infância de Laércio decidiu enfiar uma picareta nas costas do filho e na cabeça da mulher, que não era a mãe de Simone. Infelizmente, o garoto ficou apenas paraplégico e, depois que o pai se matou, foi morar com a meia-irmã. E foi por isso que entrei na cozinha naquela tarde e não me surpreendi ao encontrar irmã sentada no colo do irmão do outro lado da mesa. Quando me levantei da mesa para levar o prato sujo até a pia, Simone disse: Deixa aí que eu lavo. O problema é que não havia nenhuma cláusula sobre lavar louças no contrato. O trato era o meu dinheiro pela comida e pela companhia dela. Até o sexo deixou de ser uma atividade cooperativa. Eu mesmo lavo, falei e eles cravaram seus olhares em mim e me acompanharam enquanto eu dava a volta na mesa. O que me surpreendeu não foi a nudez, mas sim o fato de que, no CORREDOR DA SORTE ▪ 71
momento em que Simone elevou o corpo e deslizou para o lado, o pênis de Laércio olhou para mim e pareceu fazer uma reverência. Ereto, imponente, rindo da verdade aniquilada, uma crença que permaneceu comigo durante todo o casamento e que agora jazia no chão pisoteada e abusada sexualmente. Caralho, eu disse e não consegui dizer mais nada. Agora, como você acha que essas coisas se resolvem? Com violência? Também acho. Minha mãe sempre me disse que não devemos maltratar mulheres, idosos e deficientes. Por isso decidi bater nos dois. Consegui acertar um soco na boca da Simone, o que é muito mais do que eu poderia esperar com aquela concentração de álcool no sangue. Quando consegui me estabilizar para poder chutar a cara do Laércio, senti seu abraço me imobilizando com uma força descomunal. Jesus, esses deficientes tem força nos braços. Você sabia? Acho que tem alguma coisa a ver com ficar girando por aí o dia inteiro. Bem que eu deveria ter comprado aquela cadeira de rodas elétrica que a Simone queria, talvez eu não teria apanhado tanto. De repente, Simone cravou as unhas nas minhas bochechas e logo comecei a sentir a pele sendo rasgada e o gosto de sangue em minha boca. Caí de joelhos e permaneci no chão da cozinha por horas, eventualmente caindo de costas e dormindo até a hora de ir para o trabalho. “Hora de ir”. Simone me acordou com um tapa. “Quero o divórcio.”
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Eu ri e senti a carne das minhas bochechas me dar outro tapa na cara. “Simone…” “Olha, acabou. Vai embora, você e essa barriga nojenta” “Depois de todos esses anos?” “Conheço ele há mais tempo que você” “Mas foi bom… Digo, o casamento. Não foi?” “O sexo com ele é muito melhor” “Eu te amo, Simone. Esquece isso. Você disse que me amava…” “Menti.” Cacete. A vadia estudou bem as respostas.
Acordei molhado e com uma dor se instalando em algum lugar da minha cabeça. “Se serve de consolo, a urina é sua” Eu conhecia essa voz. Era a minha? Não, não, minha voz não soa tão bem assim, não é mesmo? Você que me lê com certeza já tem alguma opinião formada sobre isso. Era a voz do monge. Eu havia dormido na porta de sua cela e a minha própria urina havia encontrado alguma reentrância no concreto desnivelado que levava até a minha bunda. “Sabe o que você não tem?” Ele disse. CORREDOR DA SORTE ▪ 73
“Um fígado?” “Não.” “O que?” “Sorte. Você acha que passaria por tudo isso se tivesse sorte?” “Olha, eu que comecei com esse papo de sorte…” “Sorte e dinheiro, Bruno. Isso eu posso conseguir pra você.” Levantei lenta e dolorosamente do chão molhado e parei tentando afastar a náusea. Minhas energias permitiram apenas que eu virasse a cabeça na sua direção e fosse atingido pela força daquele sorriso milionário. Eu não me lembro do que fiz em seguida, mas tenho quase certeza que sorri de volta. “Isso mesmo, Bruninho. É dinheiro o que você quer, não é?” Seu sorriso se abriu mais do que eu achei que fosse possível. Aquilo que era felicidade. Eu precisava daquilo. “E você pode ter.”
Você é um cético desgraçado, não estou certo? Você não acreditou que aquele monge vegetando numa cela úmida e escura pudesse me dar algum dinheiro, não é mesmo? Eu também não acreditei. Mas agora você tem na sua frente a prova concreta de que as coisas mudaram para mim, meu CORREDOR DA SORTE ▪ 74
amigo. Dois meses se passaram e agora eu sou um milionário. Talvez bilionário, você para de contar quando o peso do dinheiro começa a ficar inconveniente. O dinheiro simplesmente continuou entrando. Entrando. Entrando. Estuprando minha conta bancária como se não houvesse amanhã. Criando a minha volta uma força análoga à gravidade, mas que não opera sobre a massa dos corpos, e sim sobre desejos. Conscientes e inconscientes. No fundo, todos veneram a sorte. Todos veneram o próprio ego e o próprio direito de ser o centro de tudo. Você pode me dizer que valoriza o intelecto, as artes, a própria vida, que você trocaria todo o dinheiro do mundo pela oportunidade de realizar sua grande obra. Uma obra que fará o mundo abrir os olhos diante da verdade suprema. A veneração do dinheiro é a verdadeira escravocracia, você diria, desprezando o meu modo de vida, as minhas roupas, as minhas mulheres. Mika, minha assistente pessoal, uma estudante de medicina de dezenove anos resgatada da Dinamarca, com os olhos mais azuis que você já teria visto durante toda a sua existência terrestre, levantaria então graciosamente a porta da minha Lamborghini Murciélago e colocaria a si mesmo a sua total disposição. A demonstração de poder teria o efeito intimidante desejado, mas seria uma intimidação amigável e hipnótica e te lembraria um tipo de dominação sexual a qual os homens e mulheres adoram se submeter. Salvatore Ferragamo, Gucci, Versace, Alexander McQueen, Brioni, você veria esses nomes espalhados pelo meu corpo e estaria convencido de que CORREDOR DA SORTE ▪ 75
eu detenho o segredo para a vida eterna. Eu convidaria você para me acompanhar em uma viagem em direção ao núcleo rosado e suculento de uma vida cercada de mimos e conforto. Você seria transportado pela minha Lamborghini quase que instantaneamente para um lugar sem igual, talvez comparável unicamente ao útero de sua mãe: O meu Palácio de Cristal, uma réplica da construção em ferro fundido e vidro projetada pelo lendário Sir Joseph Paxton. Mas em vez da Inglaterra, estaríamos em pleno solo brasileiro, elevados aos céus pela majestosa serra catarinense e pela força transcendental da riqueza. O Palácio é construído sobre florestas e rios, jardins de pedras e vinhedos, você mesmo estaria em uma das câmaras reservadas a hóspedes em que duas araucárias tocam com delicadeza a abóboda vitrificada a trinta e três metros de altura, enquanto o som das bolhas do seu champagne Boërl & Kroff seriam abafadas apenas pelas bolhas da jacuzzi olímpica instalada nos seus aposentos. Você teria a sua disposição um grupo de jovens cuja beleza o hipnotizaria e suprimiria seus sentidos. E riríamos juntos de todo o nosso passado financeiro e de nosso ceticismo, da mesma forma que eu riria pelo resto da minha vida daquela noite em que quase não acreditei que um carimbo mágico pudesse me trazer felicidade.
“Eu sei que parece mentira. Mas as notas, você deve ter alguma das minhas aí na sua carteira, agora mesmo.” Nesse CORREDOR DA SORTE ▪ 76
momento, o monge deixou a posição meditativa em que estava e começou a abaixar as calças. “Procure por isso aqui. Esse símbolo é a marca que você deve procurar.” Ele me mostrava um símbolo simples que lembrava um floco de neve tatuado na coxa esquerda. “E você inventou toda essa história para poder furtar a minha carteira?” “Não… É simples. Acredite em mim. Tudo o que você tem que fazer é batizar as notas com o carimbo.” “Certo...” “Sabe o que esse símbolo significa? Para o universo? Que o dinheiro é seu… E ele sempre devolve o que te pertence.” “Olha, amigo, eu já ouvi falar de muito esquema miserável nessa prisão, mas que puta montoeira de bosta você inventou aqui, hein. Eu até admiro esse seu autocontrole, porque tenho que admitir que você mente consideravelmente bem pra um pé-rapado filho de uma puta, com esse tom sensato e crédulo de alguém que descreve algo de partir o coração e que você nem cogita que seja mentira, tipo o suicídio da própria mãe.” Situações como essas num lugar como esse geralmente não levam a nada porque ceticismo, estupidez e arrogância são praticamente pré-requisitos do candidato a Agente Penitenciário. Não que os agentes sejam todos pessoas sem alma, mas estamos falando aqui de interação diária com indivíduos que se assemelham a seres humanos apenas fisiologicamente, do tipo que trocam bebês viciados em crack desde o útero por ampoliCORREDOR DA SORTE ▪ 77
nhas de quetamina ou que ficam num estado tão deplorável que são parados pela polícia e não entendem o motivo de estarem presos até o advogado deles explicar que ele foi preso por excesso de velocidade e por haver um braço amputado preso na antena am/fm do carro. Mas por incrível que pareça, esses agentes com quem eu divido o local de trabalho são caras com um bom senso de autopreservação, e por isso a resposta padrão para propostas do tipo “me passe a sua carteira que eu te mostro” é uma sessão de espancamento grupal envolvendo três ou quatro agentes e um meliante sob um lençol. O problema aparece quando o agente se encontra num momento sombrio de sua vida, pessoalmente falando, e sentindo dores em lugares que ele nem imaginava que possuíam terminações nervosas, à beira de um colapso emocional ou de um coma alcoólico. Nesse estado, eu pensava que qualquer proposta, por mais idiota que fosse, não poderia tornar as coisas piores do que já estavam. E por isso eu cheguei ao final do corredor da galeria E e abri minha carteira e peguei a única cédula que eu tinha: uma nota de dois reais amassada e fedendo a bunda com o seguinte símbolo ao lado da frase “Deus seja louvado”:
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“Isso é outra piada?” Estendi a nota para dentro da cela e ele a pegou. “Eu não disse?” “Que porra é essa?” “Eu apenas imaginei, sabe, considerando a quantidade de dinheiro que eu carimbei na minha época, que você teria uma dessas notas.” “É? E de que quantia estamos falando aqui?” “Uma estimativa? Algo em torno do PIB do Suriname.” “E isso é muito?” O silêncio repentino me fez olhar pela pequena abertura da porta. Minha visão foi ofuscada pelo brilho que emanava de sua cabeça sorridente. Não esperei por uma resposta para a minha pergunta, aquilo era tudo o que eu precisava. Afinal, um sorriso daqueles custava dinheiro. Muito dinheiro. “Seus dois pilas, amigo.” Ele disse enquanto eu caminhava em direção à saída. “Pode ficar com ele”, eu disse e uma risada infantil e sincera reverberou pelo corredor. “Eu não disse, Bruno? Eu não disse que o universo sempre devolve o que é seu?”
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Não vou negar que me senti um idiota carimbando aquela primeira nota de dez reais. Entreguei o dinheiro para a atendente da lotérica e ela nem sequer percebeu o símbolo. Dois dias se passaram sem eu me lembrar da aposta quando, no terceiro, fui atingido em cheio pela lembrança do sorteio, que fora na noite anterior. Comparei os números da loteria com os números do meu bilhete e descobri que havia ganhado quatro mil, trezentos e vinte e um reais, descontado o imposto de renda. Naquela noite eu não consegui dormir e fiquei o tempo todo sentado na cama alternando entre goles de uísque e gargalhadas histéricas. Foi fácil no começo, quando o dinheiro ainda era pouco e as viagens até a loteria não eram tão frequentes. Mas logo precisei contratar uma fisioterapeuta para tratar de uma dor no ombro direito que havia surgido após uma sessão de carimbagem de dezoito horas ininterruptas. Todo o dinheiro que eu ganhava em jogos da loteria era sacado, levado em malas com rodinhas até a espelunca em que eu morava, carimbado e mais uma vez carregado até as lotéricas mais próximas para que eu pudesse fazer minhas apostas. De repente, me vi dividindo o chuveiro com uma pilha de malas de viagem cheias de dinheiro e me surpreendi ao ver que o lugar das bebidas na geladeira estava ocupado por tijolinhos de notas de cem reais. A fisioterapeuta agora prestava seus serviços 24 horas por dia. Nós começamos a ficar realmente preocupados com o calombo no meu ombro, que crescia mais a cada dia e adquiria feições CORREDOR DA SORTE ▪ 80
quase humanas, como se eu estivesse desenvolvendo uma segunda cabeça.
Paguei a fiança do meu amigo monge, afinal, eu devia pelo menos isso a ele. Descobri então que ele havia sido preso por fraude bancária e suborno e que ele, o Monge, era um advogado e economista conhecido internacionalmente no submundo da vigarice corporativa. “Eu vou garantir, pessoalmente, que nada do que aconteceu comigo aconteça com você.” Ele me disse durante uma reunião de negócios. “Mas não podemos continuar pagando isso para o governo”. Ele apontava para uma daquelas somas monstruosas que ninguém sabe como se chamam. “Como fazemos isso?” “Microfinanças”, ele disse em meio a um de seus sorrisos. “…” “Montamos uma ONG internacional especializada em microfinanças. Oferecemos pequenos empréstimos para comunidades rurais do oeste da África e da Índia. Criamos uma carteira de clientes de fazer qualquer investidor chorar de dó. Quer um exemplo? Uma velhinha de noventa e dois anos precisa de dinheiro para comprar uma nova cabra, já que aquela que a acompanhava diariamente pelos campos de fumo CORREDOR DA SORTE ▪ 81
caiu de um penhasco e ela precisa desesperadamente do leite e da única companhia que ela tem na vida. Nós ajudamos esse tipo de gente. Milhões deles. Os impostos são baixíssimos, e os lucros, altíssimos. O maior juros do mercado, o das microfinanças. A perfeita máquina de lavar dinheiro. Nessas comunidades, eles não emitem notas fiscais de cabras e coelhos, então, nenhuma prova contra nós.” “Nós vamos ajudar esse povo?” O monge colocou sua mão no meu ombro e sussurrou entre os dentes, para não desfazer o sorriso: “Elas não existem, Bruno. Nada disso existe.” “Não?” “O que existe por traz da fachada é uma organização bilionária, composta por milhares de funcionários instalados nas nações mais viciadas do mundo. E sabe o que eles estão fazendo? Jogando com a sua sorte, com o seu dinheiro. Nada de lotecas com imposto de renda retido na fonte. Nada disso. Estamos falando de jogo do bicho, pôquer francês, luta de rua em Valparaíso, cassinos subterrâneos da yakuza, briga de galo na Costa Rica, whe whe em Trindade e Tobago, etcétera, etcétera. Tudo que você tem que fazer é carimbar o dinheiro. Eles te ligam e você escolhe no que apostar. Logo em seguida você recebe a ligação e é sempre a mesma frase: Nós ganhamos. E o dinheiro continua entrando mais rápido do que você consegue gastá-lo. Dinheiro para você fazer o que quiser. Me diz, Bruno, qual é o seu maior sonho?” CORREDOR DA SORTE ▪ 82
Eu estava sonhando alto. Alto demais. Garrafas e carros e putas e um sonho que eu queria realizar mais do que tudo. Um sonho tão grande que ofuscava todos os outros. “Meu sonho é acabar com a vida daquela vagabunda.”
Eu estava sentado num facho de luz que se projetava da janela e conferia ao ambiente aquela atmosfera sonífera e poeirenta de escritórios de advocacia com carpete. A recepcionista digitava alguma coisa no computador e o ar condicionado zumbia e cuspia gotas de condensação na minha cara. De repente, um telefonema. A recepcionista atendeu e desligou num intervalo de um segundo. “Pode entrar.” Quando entrei na sala de reuniões, percebi no rosto das duas mulheres sentadas à mesa que elas não me reconheceram. Talvez fossem meus sapatos de couro de crocodilo, que brilhavam tanto sob a luz do sol que mais pareciam globos de discoteca. Isso ou Simone apenas não estava acostumada a ver o brilho da sorte emanando do meu rosto daquele jeito. Sentei de frente para elas e esperei que falassem. “Senhor Bruno?” A advogada precisou confirmar e senti que Simone também esperava a resposta. “Sim.”
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“Você está ciente da dificuldade que tivemos para encontrar o senhor?” “Sim.” “Entramos com uma ação de divórcio litigioso contra o senhor. No entanto, o juiz não quis assinar a sentença por conta do seu… desaparecimento.” “Certo.” “O senhor concorda com o divórcio?” “Não.” Tive ainda um ou dois segundos de paz antes que Simone começasse a falar. “Seu broxa. Seu egoísta filho de uma puta. Viado. Tu sabe o que eu tive que aturar no nosso casamento? O nojo que eu sentia toda vez que te via com aquela farda nojenta? O desprezo que eu ainda sinto por ti? Olho pro Laércio e vejo como tu é atrasado. Metade do homem que ele é. Tua vida é patética, seu alcoólatra desgraçado. E tu ainda tem a coragem de aparecer aqui vestido desse jeito? Um terno, sério? Nem na porra do nosso casamento tu usou um terno, seu demônio! Na lua de mel tua camisa era só vômito e cerveja. Filho da…” A essa altura você já deve saber como eu silenciei aquela lamentação toda. Isso, isso mesmo, você pode falar. Ninguém vai te julgar, estamos todos entre amigos aqui... Dinheiro.
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Sabe qual o segredo? As pessoas adoram os vencedores, principalmente os vencedores por acidente. Elas querem crer em algo ao seu alcance e se sentem ligadas por essa crença em comum, a crença na Sorte, mais ou menos como os religiosos formam um conjunto de indivíduos em torno da ideia de Deus. E a minha maneira, eu sou um Deus. Exerço minha soberania com aquilo que melhor representa a sorte: Grana. Por isso, quando tirei vinte mil reais do bolso e coloquei na mesa a minha frente, só pude ouvir o som da submissão. “Simone,” eu disse. Ela não tirou os olhos dos dois montinhos de notas de cem reais a sua frente. “Eu quero sentir prazer.” Silêncio. “Senhor Bruno…” A advogada me interrompeu e eu lancei um monte de notas de cem reais na sua direção, que a atingiu na testa. Apontei na direção da saída e ela colocou as mãos no joelho de Simone, esperando alguma instrução. Coloquei mais trinta mil sobre a mesa e Simone virou para o lado e acenou positivamente com a cabeça. A advogada foi embora. Nesse momento assinamos um novo contrato tácito. Simone receberia dez mil por cada encontro que marcássemos e, em troca, eu receberia noites de um sexo selvagem do tipo que nós nunca fizemos antes. Nossos encontros passaram a acontecer numa frequência metronômica, exatamente às 22 horas de toda segunda, quarta e sexta-feira. Nossa performance era frenética e sonora, com algo de falso em todos aqueles gemidos e caretas. Mesmo assim, deixei escapar um Eu te amo CORREDOR DA SORTE ▪ 85
sincero na nossa décima noite e, por incrível que pareça, recebi a resposta que eu queria. Ela chegou até a tatuar o floco de neve mágico atrás de sua orelha esquerda, mas aquilo não me convenceu. Aquilo era Veneração, e o problema é que todos sabem que nós deuses não nos importamos com quem nos venera, apenas com quem nega nossa existência. Por isso naquele ponto eu comecei a enjoar do sexo. Comecei a enjoar da constância dele, do prazer sem nenhuma emoção verdadeira. Não era mais Simone quem eu queria, era Laércio. Tudo o que eu queria era encará-lo mais uma vez, mas agora do alto do meu panteão, e finalmente esmagar aquela cabeça suja de espaguete.
“Quer alguma coisa? Um café?” Laércio perguntou em meio ao som do caos na cozinha. “Álcool”, eu disse. “Ah, temos heineken.” Aceitei. Às vezes, até aqueles que têm sorte precisam fazer sacrifícios. “Como vão as coisas aqui em casa? Tudo benzinho com a Simone?” Eu gritei. “Bruno, meu chapa. Desculpa mesmo pelo o que aconteceu aquele dia, não era pra ser daquele jeito, sabe? A gente tava
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planejando explicar tudo para você, de um jeito bem explicadinho mesmo, bem correto tipo bem ético e honesto, sabe?” A cada pausa eu ouvia um utensílio doméstico se espatifando na cozinha. “Não se preocupa com isso, Laércio. Eu vim aqui para fazermos as pazes.” Ele surgiu todo sorridente na porta da cozinha carregando uma long neck entre as coxas e uma xícara de café equilibrada no braço da cadeira. Com a mão livre, ele guiava a cadeira de rodas usando o joystick que, aparentemente, oferecia um controle extremamente vago sobre a direção em que ele queria realmente ir. Ele ziguezagueou e colidiu com cadeiras e mesas, derrubando vasos e uma luminária, até encostar seus joelhos esqueléticos nos meus. Olhamos para a garrafa no meio das suas perninhas subdesenvolvidas e eu a peguei sem fazer contato visual. “Você tá com uma aparência boa.” Laércio disse. “Acho que nunca vi você vestido assim.” “Tenho sorte agora.” “Sorte?” “E dinheiro. Montei uma ONG. Ajudo pobres e ganho muito dinheiro assim. Moro num palácio de vidro lá em Bom Jardim.” “Verdade? Estamos pensando em nos mudar pra serra.” “Bom lugar pra morar.” CORREDOR DA SORTE ▪ 87
“É o sonho dela... Morar num lugar frio. Ela quer montar o abrigo lá.” “Abrigo?” “Ela sempre quis isso... Um abrigo para os sem-teto.” “Sei, sei. Ela adora homens fedidos e indefesos” Nós não sabíamos o que dizer em seguida e ficamos olhando para os nossos pés por um bom tempo. “Já tenho um bom dinheiro guardado pra dar a entrada numa casa. Não usei ainda o dinheiro da herança, mas esse não vou gastar por enquanto, né? Vamos precisar daqui a pouco.” Ele riu. “Você já sabe, né?” “RARRRRGHHHH… AAAAHHHH.” “Você tá bem?” “Não é nada… Só dando um gole.” “Então, você já sabe?” “Sei o que?” “Simone está grávida.” “Ah… É?” “É.” “Parabéns.” “Um verdadeiro milagre.” “Milagre?” “Anos atrás eu fiz vasectomia. E agora isso.” Seus olhos brilhavam de emoção. CORREDOR DA SORTE ▪ 88
“Você está querendo dizer… GLUTGLUT AHHHHH… que houve uma intervenção divina?” “Acredito que sim. Foi o que eu disse, um milagre.” “Você está dizendo que um Deus interveio… e fez Simone engravidar?” “Sim… Deus colocou uma criança na nossa vida. Nunca me senti tão abençoado.” Pobre Laércio. Laércio, meu amigo, se alguém pudesse esclarecer as coisas para você de um jeito que o sofrimento pudesse ser amenizado. Se eu tivesse a paciência ou inclinação para isso, eu faria. Juro. Alguns vêm ao mundo para sofrer. Não bastava perder as pernas, a mãe e o pai, o coitado agora tinha que perder a dignidade. Me levantei do sofá e caminhei até o quarto de Simone. “Laércio,” eu disse, “vem aqui.” Ouvi às minhas costas o zumbido do motor da cadeira se aproximando e esbarrando nas paredes do corredor. Me sentei na cama, de frente para Laércio. A mesma cama em que eu enrabava Simone três vezes por semana. “Laércio, eu vou ser sincero com você. Eu gosto de você Laércio, eu acho que todo o seu sofrimento te deixou meio cego para algumas coisas.” “Cego?” “Sim. E agora eu preciso te mostrar quem a Simone é de verdade.” CORREDOR DA SORTE ▪ 89
“…” “Eu vou te dizer exatamente o que você vai encontrar aqui embaixo do colchão.” Suguei meus lábios e olhei para o teto, pensativo. “Não sou muito bom com números, mas eu acho que temos aqui trezentos mil reais em notas de cem, alguns conjuntos de espartilho e fantasias sensuais, alguns potes de lubrificante e um pen drive com algumas músicas românticas que ela gosta de pôr para criar um clima.” Ele ficou mudo e o seu queixo começou a tremer. Levantei o colchão e me senti estranho presenciando as evidências das minhas noites com Simone. O dinheiro espalhado pelo estrado era muito mais do que eu lembrava, mas de alguma forma aquilo pareceu muito pouco. Todo o nosso casamento reduzido a notas e brinquedos sexuais. De repente o quarto ficou vazio e silencioso, e eu ouvia apenas o som exagerado do choro de Laércio.
Leitor, leitora, eu odeio minha rotina. Passo noites sem dormir, pensando no inferno que seria minha vida se eu perdesse o encanto. Quando durmo, eu acordo tendo ataques do pânico e achando que tudo aquilo foi um sonho. Eu ando constantemente acompanhado por três guarda-costas que juntos pesam uma tonelada. Não para me proteger, mas para proteger o carimbo. Meu braço lembra uma coisa atrofiada e mentalmente paralítica e me provoca ânsia de vômito quando CORREDOR DA SORTE ▪ 90
me olho no espelho. Demiti minha fisioterapeuta incompetente e contratei uma equipe de três dos melhores fisioterapeutas do país, seis enfermeiras trabalhando vinte e quatro horas por dia, e um chimpanzé treinado em um circo da Nigéria que me acompanha para onde quer que eu vá massageando meu ombro. Quando entro em algum lugar acompanhado pelo meu staff todos batem palmas e crianças com os olhinhos brilhando gritam de alegria, mas logo caem num silêncio constrangedor quando se dão conta de que aquilo tudo não é uma performance artística. De noite, contemplo a equipe de limpadores de vidro responsável pela limpeza da fachada do meu palácio enquanto carimbo meu dinheiro usando meu braço esquerdo para guiar o braço dormente. Todas as noites, converso com o Monge sobre a nossa operação usando códigos complexos que ele insiste em usar e que há muito tempo deixaram de fazer algum sentido para mim. “galinheiro pagou doze”, ele falava quando eu coloquei o telefone na orelha e eu ouvia os sons das teclas e do papel sendo cuspido por sua calculadora ao fundo, “com vinte e sete da semana passada é trinta e nove, e vinte dois do china pagou cinquentão vezes treze maloqueiros daquelas bandas, mais treze apostas com o Marconi é dezoito vezes treze menos comissão é duzentos com três pagando sessenta pra um é cento e oitenta na trifeta do Longo, mais vinte por cada Lote do Uruguai é trezentos e trinta que dá um por oitenta é o que me
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disseram e deixa eu ver aqui… Parari, parara, é setecentos e um pra caridade.” “Mil?” Uma gargalhada estrondosa disparou do telefone. “Mil, diz ele”, o Monge disse para ninguém. “Ô.” “Ãhn?” “Nem te conto.” “Tudo bem.” “Tua patroa tá presa.” “A Simone?” “Parece que ela entrou em estado de choque quando descobriu que o Laércio usou a roda da cadeira de propulsão elétrica como um torniquete para espremer o próprio pescoço com uma gravata. Tudo isso enquanto ela fodia com outro no quarto ao lado. E quando a polícia chegou lá a cabeça já tinha sido decepada e a Simone tava olhando pro que sobrou do Laércio. Agora ela tá em prisão preventiva porque encontraram o dinheiro embaixo do colchão.” “Mas o dinheiro era dela!” “Sim, mas aí temos um plot twist e aparece uma mulher clinicamente obesa lá dizendo ser irmã do Laércio de outra mãe e que aquela vadia da Simone na verdade só queria o dinheiro da herança dele porque afinal quem é que se interessa por um decrépito paralítico desses. Então a polícia descobre que o Laércio já tinha um histórico de fodelança com irmãs, e CORREDOR DA SORTE ▪ 92
que essa irmã na verdade é uma ex mulher com quem ele tem uma filha que na verdade é uma aberração mutante feia de te fazer perder o sono. Mas eu e você sabemos que essa mulher tá na história porque quer essa grana não declarada, e agora a Simone tá lá presa por suspeita de assassinato e fraude e tá bem feio a coisa pro lado dela.” “Jesus. Ela tá na minha prisão?” “Isso mesmo.” Afastei o telefone da orelha. Antes de desligar, ouvi as últimas palavras do Monge soando como um sussurro: “Boa Sorte Brun...”
Ela parecia cansada e humilhada. Na verdade ela parecia um cotoco, um resto humano, uma carcaça leitosa e inanimada. Havia me esquecido de quão branca era sua pele. Ali, sentada no vaso sanitário e me olhando através do buraco na porta, ela tinha uma aparência vazia e inconsciente. A expressão nula de um cego. Parecia não se importar comigo, mas mesmo assim virei o rosto tentando respeitar sua privacidade. “Simone”, eu disse, “Jesus… Que cara é essa?” Ela não respondeu. Seu olhar catatônico encarava as profundezas daquele vazio que só ela enxergava. “Ele me contou sobre a gravidez.” E então ela olhou para mim e agora ela parecia assustada, como se eu a tivesse CORREDOR DA SORTE ▪ 93
lembrado de algo que ela queria esquecer. “Porra, Simone, olha o teu estado. Eu vou te tirar daí…” Ela desviou mais uma vez o olhar. “Simone, por favor, fala alguma coisa.” Não era o silêncio que me incomodava. Depois de quinze anos casado com ela, o silêncio é algo de que você acaba sentindo falta. O que me parecia estranho era sua docilidade. O jeito como ela me olhava, alheia a tudo, sozinha em seu sofrimento. Um sacrifício que eu não sabia que Simone era capaz de fazer. Eu estava acostumado com o seu egoísmo, sua necessidade de levar a vida a sério e de desprezar a minha mania de fazer piada com tudo. Mas naquele silêncio eu podia ouvir o sofrimento e a vergonha de alguém que não precisava mais de pena. “Simone…” “…” “Simone… Eu não estou entendendo. O que você quer? Eu tenho mais dinheiro do que eu posso gastar e posso realizar todos os teus sonhos. Quer morar em Bom Jardim? Montar um abrigo? Quer ter meu filho, Simone? Quer ser feliz, porra?” Então me dei conta de uma coisa: que caralhos ela ia querer com meu dinheiro, hein? Naquela sala de espera, minha sorte não tinha serventia nenhuma. Nesse momento, meus olhos estavam afundando em lágrimas e eu estava perdendo o CORREDOR DA SORTE ▪ 94
controle da minha face. E não era tristeza, mas sim um tipo de medo que nunca havia sentido antes. Eu estava assustado… Assustado pra caralho. Porque quando ela virou o rosto para a parede num gesto de vergonha e submissão, enxerguei o floco mágico tatuado em seu pescoço e percebi que pela primeira vez ele estava falhando comigo. Aquilo era um presságio. Eu chorava enquanto deslizava minhas costas na porta da sua cela. E tudo o que eu queria era que ela dissesse o óbvio, que aquilo tudo era culpa minha.
Acordei com as costas apoiadas na porta da cela e sentindo uma dor na nuca. O único som humano que eu ouvia era a batida irregular do meu coração. Me dei conta da familiaridade daquela situação e comecei a me desesperar. “Não…” Disse, olhando para o teto e rindo como um louco. “Não é possível... Por que? Por que?” Foi tudo um sonho? Todo aquele dinheiro? Toda aquela felicidade? Claro que foi... Como eu pude acreditar na sorte? Como eu pude acreditar que a porra de um carimbo pudesse me aproximar dela, da sorte? Atrás de mim, a cela. Em breve minha urina ensoparia minhas partes baixas e eu ouviria a voz zombeteira do Monge me oferecendo consolo. E eu precisava de consolo. PreferenciCORREDOR DA SORTE ▪ 95
almente de um com no mínimo 50% de teor alcoólico. Apalpei todos os bolsos da minha farda tentando encontrar meu cantil. Nada. Estiquei as pernas e enfiei a mão nos meus bolsos e encontrei dinheiro. Ai, meu dinheiro amado, se você soubesse o quanto eu te amo… Estendi a nota de dez reais e enxerguei o pequeno floco de neve mágico. Foi um alarme falso. Quem diria, não? O universo gostava realmente de mim. Quase perdi o controle do meu esfíncter. Deus seja louvado, a efígie da república disse, e eu beijei sua boca. Não tenho preconceitos, amo todos eles da mesma forma, do peso chileno à libra esterlina. Aquilo significava que atrás daquela porta estava Simone. Talvez estivesse morta, não sei, não tive coragem de checar. Eu seria o dono da sorte por mais uma noite e amanhã me preocuparia com Simone. Afinal, eu nunca seria o dono dela e daquela criatura que se formava em seu ventre. Não pense que eu não a amava. Só amei duas coisas durante minha vida inteira. Simone era uma delas. A outra me esperava no fim do corredor, com seu sorriso tênue e receptivo de cem mil dólares, pronta para me abraçar e dizer que o mundo podia ser meu. Seus ombros estavam cobertos de neve e ela usava sapatos Jimmy Choo e um xale Hermès esvoaçante, bordado à mão nos platôs Tibetanos. É o primeiro dia do inverno, ela disse, vamos voltar pra casa. Seu nome era Sorte e eu corri até ela sem olhar para trás. Porque esse é o problema
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de se viver seus sonhos, você nunca sabe quando se vai acordar de um deles.
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CONTO SETE
FLUXO LUIZ MARIANO
“e no entanto, ela se move.” GALILEU
QUANDO PENSAS NO QUE FOI, dificilmente aponto qualquer dor de consciência que não o óbito da racionalidade. Porque, o que falar se o pensamento se esvai junto com a mão que estraga o berço? É preciso ter começo, meio e fim, diria os finados livros da didática ourives. Altivas, elas. Mas, é preciso saber: que quando o povo rola dados com o intestino, as borboletas voam. Manhãs. Estava o à toa na universidade, quando o céu desabou feito um anjo. Sem mais nem menos, acabou. Mas o quê? O interesse pela vida? Ou a certeza de um fracasso em forma de
poesia, feito homem? Não. Era preciso mais que o infinito, e para isso é fácil. Somente ser, pensar no cadafalso – mente humana. Não havia mais Pasárgada; não havia mais para onde ir. Não, a vida não é divertida mente, é corpo constante. Se os pássaros voam, os homens refletem e freiam a vontade de verdade. E estes embates? Azuis e vermelhos, procurais lógica onde o instante é maior que o mosquito. Não, disseram os professores de narrativa. Sim, disseram os deuses. Não, disseram os cientistas. Sim, disseram os leucócitos anônimos. Eis que a verdade surge aos nossos olhos: havia um ser, com cabelos e poderes, que, por causa de livros e testemunhos, de repente toda uma sociedade de parentes e demógrafos insistem em parecer arrogantes a si mesmos, como se fossem filhos de Alcmena. Parece que os pontos finais conferem seriedade à equação atômica. Mas, os tomistas diriam que não há parafuso solto na geleia. O fato é que, se pensar na roda cósmica do Universo, o nada é sempre livre. Mais ainda que algo entre as pernas (com marca) da mulher errada. E finalmente as mulheres, como não? Pois, ao crer no dimorfismo sexual, o abutre raramente come o significado. A essa altura do campeonato, “não faz sentido” já passou na cabeça e nas mãos de moleques e moçoilas, senhores e libélulas, como se a vida fizesse algum fuzilamento perante alguém que insiste em rodeá-la. É como bater punheta em FLUXO ▪ 99
pleno mar de rosas, tão vil, tão além da compreensão dos pobres iluministas.... Pobre razão! Podre tesão pela existência. Mais vale algo sem valor que alimente, do que um peixe na bacia de Andrômeda. Jogar videogame? Ora, jogar videogame! Atrasar o tímpano da esfera. Não? É preciso travessões, é preciso diálogo, dirão. Pois tomemos diálogo. Mas não apenas; devem ser inteligentes, para passar no crivo da cristandade. Ateus? Ah tá. -Não pode ser! – Exclamou a ninfeta no meio dos faunos. -Mas como é o nome do protagonista? Perguntou o coro grego. -Opa, isso está equivocadamente proibido. Seria como causar um bug na Matrix, por mais que quem não tenha assistido ao filme ficará boiando. Cumprida a cláusula do conto, ponto, juntemos nossas mãos num mesmo ritmo. As madrastas pedem respeito, não? Vejamos: algo tem que acontecer. É tempo de encontrar sentido, significado. É tempo do meio. Não o império do meio dos chineses, mas um desenvolvimento cairia bem. Nada como um velho Machado de Assis cagando na cabeça dos entendidos em processos contratuais. Eis que se ficar autobiográfico demais, é perigoso, pois a medida da civilização é o medo do desejo, e poderiam dar a desculpa da bebida, isto é, senhor. Sim. Mas não, nada de FLUXO ▪ 100
bebida, nada de música, somente o fluxo, será que Freud estava certo? Há um delinquente no palácio? Ora, Freud era apenas um homem, que não orava, quem disse que ele estava certo? E se esse for eu de verdade, e se eu for uma soma de eus mais micróbios e absintos? Mas aí eis que chega a mulher e dá conta do recado, mas o que faz ela ser mulher? Ela é a sopa e acabou. E de repente todo um discurso fica fanho e acanhado, disco riscado, e o violão continua a pedir por aumento. O telégrafo já piscou na velocidade de um autômato, e a mulher começou a empoderarse, ou, cuidado senão os detentores da ligação dos neurônios pedirão detentos em meio ao barranco. Não se pode pensar! Deve-se tomar um lado, e ser tudo menos isento de ser errático. Hora de encher linguiça. Deve-se salpicar salsicha, entrando palavras bonitas cheias de simbolismo para manter o leitor atento. Aliás, meu filho, você não perde por esperar, saiba que ainda nesse mesmo parágrafo acontecerá grandes confusões! Quer ver? Aqui vai uma profecia: dentro de dois dias você seguirá anônimo para a grande cadeia de acontecimentos que insistem em meter-lhe na cabeça. Cabe então transformar estas duas horas seguintes em algo nunca visto por você mesmo. Que tal um grande gesto, como diria Oscar Wilde, um “gesto desesperador”? Ou melhor, que tal falar depois de ler esse “conto” a seguinte frase: “Porra do caralho! Eu vou viver a partir de agora cada FLUXO ▪ 101
instante da melhor forma possível! Vou tratar os outros como se fossem eu mesmo! Vou honrar o fato de ter nascido!” (Agora você se dá conta que o que conta não é o sentido, mas a pegada. Ou: um olhar pode valer mais que mil trepadas.) E o fim? O fim é que tem que trazer uma moral da história, a não ser que seja livre expressão da múltipla organização do (para de buzinar, ourives!) artista, como se todo que escreve fosse além do alcance. O fim é agora? Depois vem o sempre, e o “felizes para sempre” depende do quanto se coloca num espaço, que o tempo sempre espera pelo momento de começar, e não precisa numerologia, pode ser a qualquer instante, pode ser quando tiver gripado, pode ser agora. Quem sabe se a enciclopédia reside num magma que ninguém conhece? Pois não. O que acontece é que chegou na segunda página do documento do word, e descubro que a medida que devo medir é o comprimento da ignorância. Deus salve a consciência do saber, para então, perceber que o acontece é nada senão invenção do sempre porvir, do sempre existir, e, na dúvida, o cabeludo tem razão.
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CONTO OITO
NOITES SEM SONHOS ACORDADOS
&
SONHOS
ROSCA J. R. TUDOR
UMA AMIGA MINHA COSTUMAVA dizer que “se você quer surpreender alguém conte a verdade”, então é isso que farei aqui. Para quem não me conhece, meu nome não é Rosca J. R. Tudor, esse é apenas um pseudônimo que criei para participar de um grupo literário chamado Ecos e acabou ficando, pois não tenho interesse algum em expor minha verdadeira identidade. Ecos começou sendo chamada de EcOS, se referindo a “mostra literária” da Outerspace”. Outerspace é um fórum de discussões sobre videogames e variedades do qual participei de 2001 até 2015. Em 2014 criamos a EcOS, que significa “Escritores e contistas da Outerspace”. Sim, é um acrônimo meio cagado, pois o certo seria ECO, mas no fórum é costume
abreviar Outerspace como “OS”, assim mesmo o “c” deveria ser maiúsculo, formando “ECOS”. Mas isso não importa, pois não tenho intenção de falar sobre a Ecos, apenas acabei de fazer um merchan suave. Quero lhes contar algumas histórias que fizeram parte de minha vida. Antes de tudo, é bom esclarecer sobre o meu conceito de Realidade. Não sou apreciador de conceitos definidores pois creio que, excluindo raras exceções, definir é limitar. Essa frase pode soar como um amontoado de jargões e, de fato, o é, mas ela também é honesta quando falo sobre a Realidade. Para resumir, apelando para outro jargão, “a Realidade é a nossa percepção”. Esclarecendo: para uma pessoa a realidade é aquilo que ela consegue, ou não, ver, ouvir, cheirar, tatear e degustar. Enfim, perceber. Independentemente de sua realidade coincidir com a de outras pessoas. Não importa o que você, leitor, achará de mim, mesmo que esteja certo, pois isso nada mudará as experiências que tive e aqui relatarei. Pode me considerar louco, iludido, simplório ou ignorante e talvez eu realmente o seja. Apenas entenda que a única coisa que não sou é mentiroso. Dizer “não sou mentiroso” poderia ser a minha grande mentira, mas creio que se você se prontificou a ler esse texto é porque pelo menos está disposto a me dar um voto de confiança. Se não confiar também não é impedimento, esse texto não é nenhuma tentativa de evangelizar alguém ou sequer advogar a favor de NOITES SEM SONHOS & SONHOS ACORDADOS ▪ 104
meu relato de vida. Encare isso tudo como uma peça de entretenimento ou mera curiosidade. Sei que alguns de vocês passaram por experiências parecidas e quero que saibam que, possivelmente, não estamos loucos. Para todos os outros, espero que nunca passem por esse tipo de experiência. MINHA PRIMEIRA VEZ NÃO SEI DIZER EXATAMENTE quando foi a primeira vez que a realidade ficou confusa. Quando eu era pequeno, digo, realmente pequeno, em torno de meus três ou quatro anos de idade, talvez mais novo, costumava sonhar com o apartamento onde cresci sendo construído. Era um sonho cheio de detalhes, os quais me recordo até hoje como se tivesse vivido aquilo, o que não seria cronologicamente possível, pois o apartamento ficou pronto antes mesmo de eu ser uma ideia na cabeça de meus pais. Sobre o mesmo apartamento, eu costumava ter “sonhos” onde ficava deitado em minha cama, escondido sob os lençóis, olhando tudo destruído, como se acabasse de acontecer uma guerra ali. Com medo eu gritava por minha mãe e ela vinha, como se nada estivesse acontecendo. Ela se recorda até hoje disso, então não foi um “sonho dormido”, realmente aconteceu, ao menos em minha cabeça. Já ouvi “dizerem” que é comum crianças terem esse tipo de sonho e, também, alucinação. Porém até hoje nunca ouvi de um psiquiatra ou psicólogo NOITES SEM SONHOS & SONHOS ACORDADOS ▪ 105
que isso seja comum. Ok, ajudaria se eu realmente fosse a um doutor de cabeça ver o que aconteceu dentro da minha, mas é mais barato escrever um texto sobre isso. Para mim os sonhos foram a porta de entrada para todo o desfoco ao convencionado como Realidade. Nada mais justo, afinal tive que começar por algum lugar e existe tanto a possibilidade de meus sonhos serem um processo biológico totalmente aleatório como, também, um portal que expande minha percepção ao sobrenatural. Pode ser até mesmo as duas coisas juntas. De fato, tive minha carga de leitura sobre sonhos, do científico ao esotérico, e como não estou aqui para expor preferências ou declarar favoritos me recolherei dizendo, apenas, que tem bastante coisa acontecendo entre o Céu e a Terra, então deixarei Ciência, Filosofia e Crenças falarem por si próprias, resumindo minhas histórias apenas ao que posso contar sobre elas. Apesar de confundir muita coisa, não sabendo dizer o que era realidade material, alucinação ou sonhos, toda história precisa de um antagonista. Eu tive o meu, por muitos anos. Nunca comentei sobre isso com ninguém e entendam que era o pesadelo de uma criança bem pequena. Então, com certeza, era muito mais assustador naquela minha cabeça do que minhas palavras conseguirão atiçar sua imaginação, assim mesmo começaremos por aqui.
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ENTER SANDMAN MEU INIMIGO NOTURNO não era o Sandman (João Pestana, em luzitanês) nem a música manjada de uma banda de garagem de Los Angeles, era só um sádico, pedófilo, demente, supernatural, extremamente covarde e inconveniente. Na época era apenas muito aterrorizante, a ponto de eu mijar na cama, acordado, só por medo de encontrar ele no corredor, entre meu quarto e o banheiro. Dizem que todo herói precisa de um grande vilão. Lembro bem de nosso primeiro encontro. Não só do primeiro, lembro de todos. No sonho eu estava na minha antiga escola, ainda no pré-primário (que realmente frequentava na época). Era uma daquelas escolas de bairro, com várias salas, paredes pintadas de verde musgo, adornadas com bichinhos fofinhos e coloridos, piso de azulejos na cor vermelho telha e aquelas antigas carteiras de madeira vernizada, mas não pintada, nas quais várias mesas e cadeiras eram grudadas umas nas outras, para evitar que a criançada anarquizasse demais. Estávamos em “aula”, que era “a tia” soando aquele “blablabla blablabla”, idêntico aos adultos num desenho do bom e velho Charlie Brown, enquanto todas as outras crianças faziam nada de maneira aleatória, como figurantes em um cenário vagabundo. Então aconteceu. Um de meus “amigos”, que não lembro o nome, apesar dele ser a representação de um colega real, mas creio que NOITES SEM SONHOS & SONHOS ACORDADOS ▪ 107
chamava Diego (bom, decreto que agora ele assim o chamará), entrou correndo de maneira escandalosa, tropeçando em tudo (sim, meus sonhos eram bem animados... a cores... 3D... surround 7.1... e alguns até tinham cheiro, sabor e todos os sentidos) e gritando de maneira efusiva, “corre que o Dadada tá vindo”. Nota de esclarecimento: Da-Da-Da é o nome de uma música de um grupo chamado Trio. Não sei qual é dessa banda, apenas ouvi essa música e achei a coisa mais ridícula do mundo. Acontece que meus pais, sei lá por que caralhos, insistiam em colocar um disco dessa patota áudio-circense, com a referida faixa, para eu escutar quando era muito novo. Com certeza meu subconsciente, em um acesso sadomasoquista, batizou meu nêmese com o nome dessa música, de lançamento contemporâneo a seu surgimento. Independentemente de sua gênese, o desgraçado estava vindo e, como em todo bom sonho, eu ficava cada vez mais pesado e inerte, quase pregado naquele piso vermelho, vendo o mundo ficar mais alto ao meu redor e nada, que eu queria, acontecendo. Sim, meu sonho foi quase uma releitura de Tubarão, onde o maior inimigo é o suspense, não o digno predador marinho. Mas, ao contrário do filme do Spielberg, o “monstro” (o Dadada, não o peixe) apareceu em pouco tempo. A única maneira eficaz de descrever aquilo é com um “puta que pariu”, pois ele não precisou fazer nada para eu saber quem era, o que
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queria, como conseguiria e que me daria muito trabalho, apesar de ainda não ter noção do quanto. Para resumir o Dadada: Ele era um adulto bem grande e forte, apesar de ser velho. Tinha uma pele pálida, ligeiramente amarelada e sua marca era a cabeça afunilada para os lados, parecendo o formato de uma bola de futebol americano, mas pontuda. O objetivo existencial de tal ser era perseguir crianças mordendo seus pés. É uma descrição idiota e um objetivo idiota, mas tenham em mente que se tratava de um ser idiota... “criado pela mente de um idiota”, pensou você, com seu humor ácido. Não julgue assim tão fácil. O Dadada sempre foi compatível com minha idade e experiência de vida. Por exemplo, ele só conseguiu realmente me morder depois que eu tomei a primeira mordida real. Foi exatamente naquele ano, ainda no Pré 2, de uma menina que muitos anos depois se tornou uma boa amiga, mas na época estava em sua fase de morder e nada podia ser feito em relação a isso. O ponto relevante aqui, porém, não é ela me morder e sim que a mordida de meu inimigo doeu um bocado mais. Mas, muito mesmo! Minha cabeça conseguiu pegar um sentimento real e o materializar em sonho. E a evolução continuou. No início ele era quase um inimigo de Super Sentai, mas com o tempo se tornou um carniceiro muito eficiente. O pavor durante os sonhos era tão intenso que eu acordava berrando, suado e chorando só dele conseguir chegar perto de mim. Nossa interação era totalmente sugestiva e eu NOITES SEM SONHOS & SONHOS ACORDADOS ▪ 109
não precisava ser mordido, ou sequer pego, para ficar aterrorizado. Eu via meus amigos, parentes e familiares serem estraçalhados com grandes requintes de crueldade, noite após noite. Ele chegou até a matar minha cadela na correia de um motor automotivo e a cena foi tão real que não esqueci dela nunca mais. Mesmo no dia que essa minha cadela sumiu (quando cães fogem de casa para morrerem longe da “matilha”), eu já tinha meus dez anos, ainda pensei nele e fiquei com muito medo dela ter morrido com tal sofrimento. Infelizmente nunca mais a encontramos. Mas, tudo tem um fim. O Dadada evoluiu conforme minhas experiências de vida, mas eu também evolui, à minha maneira. Para explicar isso eu conto um pouco da minha história de vida e também experiências sobrenaturais, que são o motivo pelo qual você está lendo até aqui. Para começar a explicar minha vida sobrenatural é melhor não começar pelo começo, mas sim por um episódio contemporâneo ao surgimento do Dadada. A CASA NA CONSOLAÇÃO EU POSSUÍA CERTO GRAU DE MEDIUNIDADE, sensibilidade, imaginação ou o que quer que você queira chamar. Meus sonhos acordados eram tenebrosos, meus sonhos dormidos muito realistas e convincentes. Mas, o principal, é que eu via NOITES SEM SONHOS & SONHOS ACORDADOS ▪ 110
coisas. Eu não “via pessoas mortas”, apenas coisas que, segundo a Ciência, não deveriam estar ali. Tenho um primo que morava, com meus tios, em uma casa muito grande e antiga. Era um sobrado enorme no bairro paulistano da Consolação, com uma escadaria longa dando acesso à entrada, pisos de madeira, janelas que pareciam ter saído de um filme de terror (e isso não é minha imaginação, tenho fotos para provar o péssimo gosto dos meus tios na escolha por aquele imóvel) e tudo mais que precisa para dar errado. Casas com piso de madeira naturalmente fazem vários barulhos, mas quem as conhece uma hora aprende a distinguir estalos e ruídos aleatórios de sons específicos causados por determinadas ações. Aconteciam coisas bizarras, como todo mundo estar no piso inferior e passos serem ouvidos no andar de cima. Luzes acendiam sozinhas em cômodos sem ninguém. Armários trancados se abrindo sozinhos. Respiração atrás da cortina do banheiro bem naquela hora que é complicado você levantar da privada e sair correndo. Muitas dessas coisas são questionáveis, certamente, mas a frequente ocorrência delas e a maneira que grande parte de meus familiares mantem as mesmas lembranças nítidas nos deu muito sobre o que pensar. O episódio que fez eu realmente entender essa minha relação com o “não material” foi um dia em que eu saí do quarto do meu primo e ouvi, vinda do escuro quarto dos meus tios, do outro lado do corredor, uma voz me dizendo “desce”, no NOITES SEM SONHOS & SONHOS ACORDADOS ▪ 111
tom mais imperativo imaginável. Não havia ninguém lá. Meu primo estava no quarto atrás de mim e todas as pessoas estavam bem visíveis na sala, logo abaixo. Não foi eco, alguém fazendo graça ou qualquer coisa assim. Eu ouvi, assim estou convencido. Óbvio que desci correndo para a aba de meus pais. Foi na hora de ir embora quando, finalmente, aconteceu o que tinha para acontecer. O fato comum para minha família: Eu estava descendo as escadas, sem ninguém perto, quando cai de um jeito esquisito e comecei a rolar degraus abaixo até o nível da rua. Todos os três adultos presentes (meus pais e minha tia) viram eu ser arremessado. Alucinação coletiva? É possível. Minha versão? “Segura no corrimão”, me ordenou a mesma voz, mas não existia um corrimão para eu segurar. Enquanto eu olhava para os lados, procurando por um, senti um pé enfiando uma solada bem servida nas minhas costas. Pode ser desatenção de uma criança? Certamente! Mas eu sei bem como é sentir o peso do pé de alguém te chutando, e me refiro a esse sentimento em relação à coisa física e não à solada filosófica, que também conheço bem, por isso sei que são coisas bem diferentes. CONTATO TOTAL QUANDO FIZ DEZ ANOS DE IDADE decidi iniciar a maior luta de toda minha vida. Foi o momento que decidir parar de ser NOITES SEM SONHOS & SONHOS ACORDADOS ▪ 112
medroso. Como isso foi difícil. Por mais jovem e inexperiente que eu fosse admito, sem modéstia, que consegui planejar bem a coisa toda. Meu grande problema não era de ordem noturna ou sobrenatural, mas sim real, óbvio e escancarado em minha frente. Eu era menor que todo mundo, mais fraco e mais mole. Isso tinha que mudar o mais rápido possível. Depois de peregrinar por diferentes estilos e academias eu finalmente encontrei um tal de Sérgio Batarelli, um dos percussores dos torneios de artes marciais mistas no Brasil como eventos organizados. Em 1989 conheci uma de suas academias, junto de um estilo que ele criou, chamado Full Contact. Esclarecimento: Full Contact era uma modalidade que englobava vários estilos marciais. Ele apenas batizou seu estilo com esse nome, pois o treinamento visava a participação nesses campeonatos, muito populares na época. Não vou descrever muito o estilo que o Batarelli batizou como Full Contact, apenas dizer que, começar a praticar, foi a mudança que eu precisava em minha vida. E não virei o Daniel San, porque ele era um viadinho. Eu estava para integrante de uma versão da Cobra Kai sem aquele vilanismo caricato (ou qualquer tipo de vilanismo, pois aprendíamos a ser esportistas honrados). O mais importante que aprendi ali não foi a dar porrada e sim a parar de achar que eu era feito de isopor. Aprendi a me
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respeitar muito mais e, também, a não deixar os outros me diminuírem. Parei de ter medo de reagir. Claro, a “evolução” disso foi me tornar um babaca chato que brigava todo dia na escola, mas isso não é culpa do Batarelli ou do Full Contact, o “mérito” foi só meu. Acontecia que em minha infância eu era um covarde que fugia ou, geralmente, paralisava e na adolescência virei um covarde que se escondia atrás da violência. Porém, como eu avisei, foi um processo de evolução, e esse tipo de coisa não acontece de um dia para o outro. Comigo demorou muitos anos, mas foi um processo contínuo, até o dia que fiquei corajoso o bastante para fugir de uma briga (desnecessária) contra alguém mais fraco apenas porque, por mais que ele estivesse muito errado, eu podia deixar quieto. Esse foi o fim de todo esse processo, apesar de que sempre evoluo um pouco mais nesse quesito. Mas para a história da casa na Consolação eu precisava dar um fim. E dei. EVOLUÇÃO ENTRE MEUS QUATRO E DOZE anos de idade a minha experiência com o sobrenatural só se intensificou. Mais vozes, mais visões, mais pesadelos e cada vez menos coragem. Mas ela teve começo e fim. Era comum eu escutar vozes no meu quarto durante a alta noite, especialmente quando acordava de madrugada. ObviaNOITES SEM SONHOS & SONHOS ACORDADOS ▪ 114
mente não dá para separar tão bem o que era sonho ou poderia ser real, mas existiram dois momentos, sobre esse episódio, que eu tenho certeza que foram reais. O primeiro foi ser chutado na escada, aos quatro anos. O segundo foi uma noite na qual uma maldita voz ficava sussurrando meu nome, ao lado de minha cama. Isso era muito comum durante os anos, só que especificamente nesse dia meu sentimento não foi medo e sim aborrecimento. Um pouco de reflexão sobre a questão do “medo” com o “aborrecimento”. O medo é um sentimento sempre relacionado ao desconhecimento. Se não conhecemos algo o temeremos de alguma maneira. Se o temor for grande acaba virando medo. O aborrecimento, porém, sempre foi, no meu caso, um sentimento recorrente em exatamente todas essas situações. Me aborrecia a maneira que essa entidade, ou seja lá como você queira chamar, me tratava. Experimenta ficar cornetando a vida de uma pessoa! Experimenta toda noite ficar falando na orelha de quem quer dormir! Experimenta chutar as costas de alguém, especialmente quando esse é uma criancinha descendo uma escada tosca! Dizer que isso tudo me aborrecia é um puta eufemismo. Nada disso “me aborrecia”. Isso tudo me deixava puto pra caralho. Mas eu ia ficar bravinho com quem? Com uma voz sem rosto? Com alguém que me chuta mas não tenho como revidar? Isso acabou em menos de meio segundo, estimo. Eu estava deitado de lado, virado para a parede encostada na esquerdo da NOITES SEM SONHOS & SONHOS ACORDADOS ▪ 115
cama. A voz chamou por meu nome algumas vezes, não contei, suponho que entre quatro e cinco. Pedi, sem o mínimo polimento, “cala a boca e me deixa dormir”, então me chamou mais uma. Como eu falei, a academia do Batarelli era muito boa. Em um movimento muito rápido (modéstia à parte, fui rápido mesmo) girei meu corpo da esquerda para direita acertando um soco rodado de destra no meio da fuça de alguém. E, sim, depois de mais de ano de Full Contact eu já reconhecia exatamente como era acertar uma “de destra no meio da fuça de alguém”. Quando olhei para o espaço ao lado de minha cama ele estava vazio. Voltei a dormir e quando acordei minha mão direita estava levemente inchada, como deveria ficar caso acertasse um soco daquele em alguém. Ao lado direito de minha cama não tinha nada em que eu pudesse acertar sem querer enquanto dormia, não foi parede, móvel e nem algum familiar, então tudo me leva a crer que não foi um sonho. Após esse dia duas coisas aconteceram. Primeiro, eu nunca mais ouvi vozes. Segundo, eu nunca mais sonhei com o Dadada.
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CONTO NOVE
VOLTANDO PARA CASA VITOR MACIEL GONCALVES
“Para meu pai-não-pai, com amor.” EVOLUÇÃO - 1996 ACHO QUE UMA DAS PRIMEIRAS memórias que tenho é de uma coisa engraçada, boba de verdade. Lembro das minhas mãozinhas pequenas pegando uma das chaves de fenda do meu pai para cutucar os tocos das árvores perto de casa, como se os estivesse consertando, ou instalando melhorias. Também ali por perto, lembro-me das minhas tardes solitárias caçando passarinhos com meu estilingue que eu mesmo fiz! Era um sentimento inexplicável de calma e serenidade, como se estivesse fundido com a natureza. Essas são lembranças tão nítidas em minha mente que quase sinto o cheiro do molhado
do tronco recém banhado pela chuva, aquele cheiro tão gostoso de mato, o gelado subindo pelos meus pezinhos descalços no meio do sítio. Bons, mas também tempestuosos tempos. Toda infância é boa, dizem. Não são poucas as pessoas que olham para traz com um sentimento de nostalgia e balbuciam 'Nossa, como aquela era uma época boa, de inocência!'. Concordo que a inocência é boa, e digo ainda que é inclusive essa a inocência que nos falta enquanto adultos para uma vida mais plena. Somos todos tão cheios de obrigações, o tempo todo correndo pra lá e pra cá, que esquecemos de usufruir do olhar tão necessário e fundamental da inocência. Esse sentimento tão doce que nos faz ver o mundo como se fosse a primeira vez, nos fazendo tirar proveito total de todos os momentos. Enfim, sobre o que estava falando mesmo? Ah, minha boa e conturbada infância. O que não ficou claro no que foi há pouco dito é que a chave de fenda era pega sem que ninguém soubesse, pois se meu pai descobrisse, o pau torava. Meu pai sempre foi daqueles metódicos e bastante rígidos. Seguia suas regras enquanto criança porque não gostava de apanhar. Além disso, nem pensar em sair para brincar com meus amigos quando bem entendesse... Aos oito já trabalhava na sua oficina de carros, ocupando grande parte das minhas tardes livres. Felizmente, eu até gostava de fazer aquilo. Acho que por isso não gosto de futebol até hoje. Gosto mesmo é de tecnologia. VOLTANDO PARA CASA ▪ 118
Aos quinze anos embarquei um dia em um ônibus que saía da minha cidade para a cidade grande mais próxima para realizar um sonho. Desembarquei no terminal rodoviário e andei até a loja de departamento Mesbla, sendo que a cada passo o coração palpitava mais forte. Fechando os olhos agora consigo sentir aquele cheiro característico de plástico novo que exalava do meu TK2000 então recém comprado. Era uma época onde se ligava o computador na TV e que os softwares eram gravados em fitas cassete. Infelizmente, o meu não gravava os programas tão bem no cassete e, muitas vezes, ao desligar a máquina, tinha que escrever as linhas de comando todas novamente. Bons tempos. Desde que saí de casa, aos meus dezessete anos, foquei sempre meu trabalho no setor de tecnologia de um banco estatal. Lembro até que mesmo trabalhando na mesma cidade que minha família vivia, morava no alojamento da instituição como menor aprendiz. Ia para casa apenas para comer e para que às vezes minha querida mãe lavasse minhas roupas. Como, mesmo durante a minha adolescência, a rigidez e severidade de meu pai não haviam nem um pouco amenizado, fato esse que me impedia de sair e me divertir com meus amigos, não via a hora de sair de casa. Na primeira oportunidade eu saí e claro, na mesma cidade minúscula que nasci eu não ficaria indefinidamente e, pouco tempo depois, já me mudei para uma cidade maior aqui no interior do Paraná e aquela que moro até hoje: Londrina. VOLTANDO PARA CASA ▪ 119
Hoje, passados vinte e seis anos do meu nascimento, cá estou eu, sentado na cadeira do meu escritório, exausto por mais um dia de pepinos no banco, aguardando a tela do meu computador mostrar uma coisa tão simples, mas tão sensacional. Minha mulher diz que é bobo, diz que não vê sentido nisso. Eu a ignoro nesse ponto, tadinha, não sabe o que fala. Ela aliás nem entende exatamente o que foi que eu consegui fazer. Sobre o que acha meu filho, que dorme profundamente no quarto ao lado, não preciso nem dizer nada. Imagino que eu, aos três anos de idade, também não conseguisse distinguir muita coisa. Já eu, o que sinto agora é algo inexplicável, quase sobrenatural. Depois de ter conseguido efetivamente abrir o browser Mosaic, meu corpo se inundou com uma mistura de ansiedade e euforia que não consigo nem acreditar existir. Deve ser por isso que enquanto olho meu computador carregar, pixel a pixel, linha a linha, a imagem à minha frente, estou refletindo sobre o que foi que aconteceu e que me fez chegar até aqui. Lembrando do meu passado, das minhas solitárias porém divertidas tardes no mato, das minhas incansáveis tardes na oficina do meu pai, sempre criando ou consertando as coisas. Passei a semana toda atarefado com os preparativos para o que está acontecendo agora. Furei a parede e passei o cabo do telefone lá do quarto para o escritório. Conectei o cabo no modem que comprei esses dias, e via Renpac, rede nacional de pacotes da Embratel, acessei o provedor Alternex. Podia ter VOLTANDO PARA CASA ▪ 120
feito via DDD direto pro Rio de Janeiro, mas não compensaria. O minuto da ligação até o Rio sai muito caro. Pensando agora parece ter sido tão simples, mas conectar meu computador no provedor não foi uma tarefa nada fácil. Agora, já faz duas horas que a merda do monitor tá carregando isto e foi só uns vinte por cento. E nessas mesmas duas horas estou olhando fixamente para a tela, notando como a pintura à minha frente se cria, se forma, como se estivesse sendo pintada ao vivo pelo artista, mas com alguns meros detalhes: a tela que observo é a do meu computador e o Leonardo da Vinci já morreu há muito tempo. Não consigo acreditar que estou vendo um dos quadros mais conhecidos do mundo se materializar na minha frente assim, do nada. E ele tá vindo de tão longe, lá da França. O Louvre tá lá em Paris, caralho! E ele tá me mandando, devagarzinho, o quadro 'Mona Lisa' do da Vinci. Tá vindo diretamente, ao vivo e em cores, do acervo digital do website do Museu do Louvre para o meu computador. Penso que não importa quantas horas forem, ainda vai ser mais rápido assim do que vir pelo correio em correspondência. Ri sozinho disso. “Estou indo dormir, você vai ficar olhando pra esse monitor a noite inteira?” - perguntou a minha esposa. “Já vou, já vou” – respondi. Precisava descansar para trabalhar novamente no dia seguinte. Com o moleque pequeno e a mulher prestando concurso, não posso simplesmente largar o trabalho pelo hobby. VOLTANDO PARA CASA ▪ 121
Deixei o computador ligado para que o download terminasse. Acho que a maioria das pessoas não sabe nem o que significa a palavra download. Nem eu sei direito, mas sei o que é. É o que tá acontecendo agora lá no escritório. A transferência de dados do acervo do museu diretamente aqui para casa. Acabei de deitar na cama, mas estou sentindo um frio... Mas não frio porque faz frio, já que hoje é um dia quente. Sinto aquele frio na barriga, aquela euforia da descoberta, aquilo que sei que é o que quero sentir pelo resto da minha vida. A única coisa que consigo pensar agora é que eu sou o primeiro londrinense a ter acessado a internet da própria casa. Ah, como eu amo a tecnologia! INVOLUÇÃO - 2016 AGORA HÁ POUCO, descobri uma coisa muito interessante fuçando na internet, a permacultura. É um sistema de design para a criação de ambientes humanos sustentáveis e produtivos em equilíbrio e harmonia com a natureza. Do inglês permanent culture – nasceu na cabeça de um cara chamado Bill Mollison, ex-professor universitário australiano, na década de setenta. Pelo visto deve haver aqui alguma coincidência do destino, porque tanto eu, quanto a permacultura nascemos juntos, visto que eu nasci precisamente no ano de 1970. Faz já algum tempo que venho me interessando cada vez mais pela natureza. Esse fascínio, na verdade, sempre existiu: VOLTANDO PARA CASA ▪ 122
nasci no sítio caçando passarinhos. A mãe-natureza me encanta, me empolga, assim como a tecnologia me empolgou ao longo dos anos. Ocorreram até alguns episódios mais recentes em minha vida em que tentei aliar a minha área de tecnologia a outras áreas ambientais em projetos que incluíam até o monitorar de cantos de pássaros no meio da floresta com o auxílio de microcontroladores. Percebo que desde que descobri o caminho da Verdade, desde que aceitei o meu mestre, tenho estado cada vez mais conectado com o mundo verde em que vivemos. “Sadhen é o seu sanyas” – me disse o mestre há alguns anos. Sanyas é o nome que um mestre iluminado dá aos discípulos quando estes aceitam a ruptura com o conhecido, e o mergulho na Existência. Na época, aquilo pouco interferiu em minha vida, e simplesmente aceitei o nome como sendo qualquer coisa de inútil. Ainda não tinha o aceitado de verdade. Como assim um nome novo? Parece piada. Nesses tempos, e em alguns anos posteriores, tive muitos problemas com a família devido a minha personalidade explosiva. O episódio da internet já estava esquecido há muitos anos, e ficou apenas como mais uma história curiosa qualquer do meu passado. Lembro-me bem que, em meados dos anos dois mil, enquanto meu filho era ainda adolescente, resolvi fazer um mestrado na área de ciência da computação, que é onde atuo VOLTANDO PARA CASA ▪ 123
até hoje como professor universitário. A questão é que esse mestrado evidenciou problemas em minha personalidade que, infelizmente, refletiram na minha relação com a minha família. Minha bipolaridade aliada ao transtorno de déficit de atenção ficou escancarada pelo stress e pressão da tese a ser concluída... Me separei da minha mulher. Foram meses esquisitos em minha vida os posteriores a esse rompimento. Mudei-me e passei a morar com um amigo. Comia o que quer que tinha a disposição, sem muito esforço em dietas regulares, e via meu filho diariamente, já que o buscava na escola, e este se mostrava sempre muito alheio a tudo. Vivia sua vida como se nada mais importasse, como se fosse o centro de tudo. Tinha receio desse egoísmo que aflorava em sua personalidade e por isso não imaginei que meu filho fosse sofrer com a separação, mas parece que sentiu minha falta. Felizmente, alguns meses depois, voltamos a ficar juntos, eu, minha mulher e meu filho. Aceitei tomar remédios para controlar meus transtornos psicológicos e continuei a viver... Como um zumbi. Antidepressivos tem efeito muito imediato em aliviar sintomas e sensações antes quase insuportáveis, o que efetivamente melhora um pouco a sua qualidade de vida. A questão é que os efeitos negativos do uso da droga são também diversos. Cansaço excessivo e falta de apetite eram alguns deles. Algo ainda estava errado e, apesar da minha bipolaridade e explosividade estarem relativamente controladas, eu não estava plenamente satisfeito com a minha situação. VOLTANDO PARA CASA ▪ 124
Algum tempo depois, como sempre, minha esposa voltou a insistir para que visse o mestre novamente. Aquele que tinha me nomeado Sadhen e eu pouco me importei. Aceitei o convite, porque sabia que alguma coisa em minha vida não ia bem. Algo precisava mudar, precisava de um click no interruptor do meu ser. E o click aconteceu. Hoje o Zen faz parte da minha caminhada. Parei com os remédios já há alguns anos por conta da meditação e da orientação de uma médica especial, e tenho vivido o Agora o mais intensamente que posso. Em meio a esses devaneios da minha mente minha mulher apareceu no escritório. “Olá Sadhen, o que você está vendo aí?” - perguntou “Descobri a permacultura, Angale” – disse. Angale é o sanyas da minha mulher. “E o que é a perma... cultura?” Expliquei tudo o que havia encontrado. Sobre a sustentabilidade desse modo de produção, sobre a aplicabilidade, sobre a eficiência. Sobre meus então novos sonhos e planejamentos para quem sabe um dia aprender e até aplicar todo aquele conhecimento. Pedi até para meu filho fazer o download de um documentário para mim. E ele baixou rapidinho, inacreditável! Será que o seu egoísmo tá diminuindo um pouco? E que documentário incrível!
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Eu com certeza fui uma pessoa que louvou a tecnologia, a inovação. Gostava de mexer com computadores e microcontroladores e trabalhei por muito tempo com isso. Vejo que minha vida passou por um processo evolutivo relativamente simples, onde um menino nascido na região rural, criado com o básico, ao se deparar com o novo, com a tecnologia, se apaixonou. Evolui de um menino com ideias simples para um homem tecnológico. Um homem que acessou a internet pela primeira vez na minha cidade. Um homem do futuro. A questão é que desde quando aceitei a Verdade, a meditação, o Zen, o processo tem sido inverso. E tem que ser. A essência do ser reside na simplicidade da inocência de uma criança, no cantar dos pássaros, no correr do rio. A vida, complexa como achamos que é, só é complicada porque queremos que ela assim o seja. Nossa mente trabalha incansavelmente todos os dias para catalogar todas as coisas a nossa volta de forma que as 'conheçamos', sendo que nada mais fazemos do que colocar rótulos e mais rótulos, abandonando a essência. Se você vê uma árvore de flores azuis pela primeira vez, normalmente você se encanta com o desconhecido. O problema é que se você vê uma segunda, seu rótulo mental diz que aquilo é nada mais do que uma árvore de flores azuis, fazendo com que aquilo se torne banal e a visão, que antes era magnífica, torne-se irrelevante. Isso não pode acontecer. Todas as árvores com flores azuis são igualmente relevantes e belas. Cada momento é um momento, cada segundo é um VOLTANDO PARA CASA ▪ 126
segundo, e o Agora, eterno, é imutável. Pelo visto, a correnteza quer que eu volte para a origem, para minhas origens. E vou voltar. Estou voltando. A iluminação é o passo máximo para a origem, para o nosso olhar para dentro. Por agora, simplesmente vou estudar permacultura e suas peculiaridades. Quem sabe num futuro próximo possa começar a praticar tais conhecimentos porque é isso que me foi reservado e também o que mais me interessa. Viva o Agora! Ah, como eu amo a natureza!
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CONTO DEZ
ABALOS DE FINAL DE ANO II FÁBIO GUASTAFERRO
A NOITE FOI DELICIOSA. Acordei bem disposto. Quando vi que ainda era cedo demais para levantar resolvi ficar um pouco mais na cama. Ela sempre acorda depois de mim, mas hoje já tinha se levantado quando eu despertei. Ainda assim resolvi ficar. O barulho do chuveiro no banheiro ao lado começava a embalar meus pensamentos, ora pensava no início da noite passada, que começou meio fria, mas esquentou bastante sob os lençóis, ora na possibilidade de me levantar e acompanhá-la no banho. Possivelmente não tomaríamos só banho, o que acabaria por atrasar a nós dois. Ainda se enxugando ela disse, meio apressada, que não iria me esperar, que tinha um compromisso e sairia mais cedo. O que justificava ter se levantado primeiro, mas que eu poderia
ficar tranquilo e que poderia sair na hora que eu quisesse. Realmente ainda era muito cedo para eu pegar serviço, e a proposta de poder ficar mais um pouco me foi um tanto tentadora. Ainda sugeri a ela que me fizesse um pouco de companhia, principalmente no calor da cama, ainda mais que eu me mostrava bem animado a agradá-la. Ideia que ela refutou com pesar, insistindo que corria o risco de se atrasar para o já mencionado compromisso. Assim voltei à proposta de ficar mais um pouco, talvez cochilar, talvez levantar e tomar um banho mais tranquilo, e fazer um desjejum mais calmo. Mesmo tentadora, ponderei a possibilidade de ficar. Poucas vezes eu havia passado a noite com ela, e sempre era o primeiro a sair. Nunca tinha ficado sozinho naquele tipo de habitação, e confesso que mesmo com ela, me sentia pouco à vontade. Por mais que ela dissesse que não, me sentia sempre vigiado. Segundo ela, todas as câmeras daquele setor se desligavam durante um período do dia, geralmente era o período que eu estava lá. Sabia que eu era proibido de estar naquele setor da cidade. A verdade é que estive poucas vezes neste tipo de moradia, conheço muito pouco seu funcionamento, sem contar que se eu for pego ali, provavelmente seria jogado nas areias, ou pior, seria drenado e transformado em comida. Desde que eclodiu a crise de comida, diversas pessoas tem alimentado outras com sua própria carne. Começou com a ABALOS DE FINAL DE ANO II ▪ 129
população carcerária. Os presos alimentavam a si mesmos, com partes de seus corpos e por fim, com seus corpos inteiros. Quando a crise piorou esse tipo de “comida” se estendeu ao resto da população. Logo a densidade demográfica nos presídios caiu vertiginosamente e claro, novos crimes foram criados, já que cadeia virou sinônimo de fazenda, a ideia era sempre aumentar o rebanho, ou pelo menos mantê-lo. Ainda bem que criaram outros tipos de comida. As comidas sintéticas, feitas a base de proteínas e plástico. A comodidade é que dá para baixar pela rede e imprimir em uma impressora 3D. O ruim são os temperos, o que dá gosto a estes pedaços de plástico. Insisti mais uma vez que ela se deitasse comigo, nem que fosse para uma rapidinha, mas logo desisti depois que ela colocou o escafandro. Despressurizar aquele tipo de equipamento dava um trabalhão danado, sem contar que ela iria desperdiçar o gás de pressão. Relaxei com a possibilidade de ficar, e concordei, ficaria mais um pouco, até chegar a minha hora de partir. Após algumas instruções de como regular a filtragem da água do chuveiro, a caixa sanitária, as trancas da porta e a saída da garagem, ela partiu. Claro que não prestei muita atenção já que muitas das coisas eu já a tinha visto fazendo antes. Ela liberou ainda dispensa para mim, dizendo que eu poderia comer o que quisesse, assim como o uso do sinal da rede para que eu pudesse acessar as telas televisivas. Quem me dera ABALOS DE FINAL DE ANO II ▪ 130
ter tempo para usufruir tanta coisa, já que o tempo que tinha logo diminuiu diante de tantas possibilidades. Fiquei mais uns quinze minutos deitado e resolvi dar uma olhada na tela de teto da cama. Com a rede disponível aproveitei para logar em um daqueles canais de sexo ao vivo e fazer uma visita a uma rameira que vez ou outra eu visitava virtualmente. Assim que a moça carregou na tela eu comecei a atividade solitária, com a mão nua mesmo, não ia levar o meu equipamento de masturbação para a casa da minha namorada. Custei a me concentrar no sexo virtual, pois questões morais como traição começaram a me perturbar. Estaria eu traindo a minha namorada com uma puta digital, que nem mesmo existia, e o pior, no nosso ninho de amor? Aos pouco a culpa foi tomando lugar do tesão, e como eu estava sem o meu estimulador peniano para que o avatar digital mantivesse minha ereção, logo perdi o interesse e resolvi ir tomar um banho. Regulei a filtragem do chuveiro no máximo e tomei banho em uma das águas mais puras que já me molhei na vida. Inclusive era até potável. Ela tem inúmeros sabonetes, cremes e xampus, mas não ousei tocar em nenhum. Curti só aquela água limpa e refrescante mesmo. Sabia que estava abusando ao chegar a quase 10 minutos de banho, ainda mais sendo a água tão cara hoje em dia, mas desta vez, só desta vez, me permiti. Troquei de roupa e fui preparar o café, o que não deu muito trabalho, já que ela tinha deixado os grãos separados para ABALOS DE FINAL DE ANO II ▪ 131
mim, era só botar na máquina e coar. Aproveitei a água do banho mesmo, era melhor que arriscar na água salobra da torneira. Liguei todas as telas da cozinha para curtir diversos vídeos espalhados pela rede, enquanto separava um pedaço de proteína prensada para comer. Tinha carne amalgamada também, aquela mistura de carne de boi, porco, gente, galinha, e sei lá mais o que, tudo moído e prensado junto. O gosto não é ruim, mas eu não gosto muito de comer da minha própria carne. Foi quando abri a geladeira que eu vi. Despretensiosamente jogada sobre uma das prateleiras de metal já meio enferrujada. Sem plástico, sem papel, sem proteção nenhuma, totalmente desprotegida no frio congelante daquele refrigerador. A geladeira estava cheia, mas os meus olhos só conseguiam focar ali onde ela estava, roubando toda a cena, toda a minha atenção. Por um instante fiquei paralisado, admirando e num impulso, a toquei. Nunca tinha visto uma. Nunca tinha tocado em uma. Ao sentir a sua casca fria, recolhi minha mão instintivamente. Na hora perdi o interesse no café que já se derramava pela garrafa, pelas barras de proteína e plástico comestível que imitava biscoitos e até pela carne processada em forma de disco. Nada mais daquilo me chamava a atenção. Segurei-a na mão e a levei ao nariz. Dei aquela fungada e o cheiro fez a minha memória viajar 25 anos no passado. Eu ABALOS DE FINAL DE ANO II ▪ 132
queria sentir o gosto mais uma vez, eu queria sentir novamente aquele cheiro. Talvez nem fosse a mesma daquela época, tinha muito tempo, eu não tinha certeza. O tamanho, a cor, eram diferentes. Lembrei-me de estar sentado à mesa, com a minha mãe, minhas duas irmãs e mais algumas pessoas, provavelmente parentes. Meu pai, em pé, dizia solenemente que o que iríamos comer nunca deveria ser esquecido. Que deveríamos ficar o máximo de tempo com aquilo na boca, para que nos lembrássemos do gosto para sempre. Ele repartiu em seis pedaços, que foram distribuídos a nós cinco, sua família. O pedaço maior serviu de pagamento por uma dívida que ele pouco comentou. Isso foi em algum ano após a queda dos meteoros, a cidade onde morávamos resolveu construir uma espécie de minicidade no centro. Fomos morar dentro de um shopping, que se transformou em uma fortaleza. De lá tínhamos notícias da guerra por recursos, os poucos que sobraram na Terra, deflagraram algumas bombas atômicas para impor suas vontades, o que acabou por destruir ainda mais o nosso combalido planetinha. As cidades menos afetadas conseguiram construir, com alguma tecnologia, condições para sobreviver àquele caos. E assim que saímos da fortaleza shopping, fomos para um lugar mais seguro. Mudamos para uma destas cidades. O problema foi que meu pai morreu durante essa mudança e acabamos indo parar em uma espécie de favela. ABALOS DE FINAL DE ANO II ▪ 133
Mas desde essa época eu nunca me esqueci daquele pedaço que derreteu rapidamente em minha boca. Daquele gosto, daquele cheiro. Os mais velhos contavam que aquilo existia aos milhares, e em diferentes tipos, cheiros e sabores, mas eu até então só tinha experimentado aquela vez. Hoje, estou com uma, inteirinha, bem na minha frente, bem na minha mão, quase na minha boca. A tentação de comê-la era insuportável, eu salivava de escorrer pelos cantos. O cheiro cada vez mais forte criava gostos na minha boca vazia. De um imprudente impulso eu a mordi. Meus dentes penetraram em sua pele macia, esguichando um caldo doce na mão que a segurava. Espremi vigorosamente o naco subtraído no céu da minha boca, sugando ao máximo o suco doce daquele pedaço. Rapidamente engoli sem quase mastigar. Novamente mordi. O cheiro inundava o meu olfato, o gosto era maravilhoso, mais divino que as inúmeras descrições que já tinha ouvido. Sem que percebesse, eu já tinha comido quase toda. Sobrava apenas uma ponta, mais dura e enegrecida. Mordisquei-a por um tempo, este pedaço era um pouco mais amargo que todo o resto, mas ainda assim era a melhor coisa que eu já havia comido na vida. Foi quando escutei a garagem se abrindo. Coloquei aquele pedacinho melado em cima do balcão de cimento e fui até a sala receber Mariana. No mínimo tinha esquecido alguma coisa, ou será que teve algum ABALOS DE FINAL DE ANO II ▪ 134
problema? Ela entrou, passou esbaforida pela porta, me deu um rápido beijo e falando bem rápido foi direto para a cozinha. Não entendi bem o que ela disse que havia esquecido e que voltara para buscar. Quando de repente gritou histérica. - Você comeu! - Você comeu a pera!
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CONTO ONZE
UCRONIA LUIS EDUARDO GONÇALVES COSTA
EU CAÍ DE PARAQUEDAS AQUI? Eu estou preso em mim mesmo, 14 anos mais jovem, presumo. Mas, estou confuso. Olha... Tinha certeza que era apenas minha consciência, a essência de mim, que havia, de uma forma ainda não compreendida por mim, se transferido daquela forma. Uma pessoa adulta presa no corpo de um jovem pré-púbere. Eu simplesmente me assumi em um mundo que já não era mais há muito tempo, tendo que repentinamente conviver com coisas com as quais não tinha mais nenhuma paciência. Mas eu simplesmente tinha que aceitar. A verdade é que não faziam nem 5 minutos, de certo. Muito confuso. A porcaria do colégio, porque exatamente a porcaria do colégio? Nem lembro direito se eu realmente gostava ou não, mas eu presumo que nos conhecimentos atuais um
colégio para um jovem de 14 anos deveria sim ser uma porcaria de fato. Provavelmente não era horário letivo, talvez o intervalo... Talvez, talvez, mas na prática, exatamente... Eu estou muito, muito confuso. Eu, eu... eu nem sei como eu vim parar aqui? É como se eu tivesse vivido uma vida de 28 anos, com tudo que tem direito a vida nada simples de um adulto comum, e estou aqui no corpo de mim mesmo, 14 anos de idade? Será mesmo que eu “vim parar aqui” ou na verdade eu REALMENTE tenho 14 anos e estou sofrendo de algum raro distúrbio que me condiciona uma mentalidade de um homem de 28 anos, sem contudo aferir lembranças reais? Mas que grande porcaria hein? Melhor me sentar aqui no banco... Pensar, pensar, pensar... se eu tenho, ou tinha, ou terei, foda-se... 30 anos, qual minha profissão? Quais minhas ideologias, meus sonhos? Quais meus ódios? Onde eu moro, que carro eu tenho? Eu sou pai? Minha esposa é bonita... minha esposa!!!... nossa de repente parece que algo me tocou, sentindo uma pontada, de repente me vem um pouquinho de lembrança... cheiros, um cheiro bom de cabelo feminino... eu com 14 anos não devo conhecer o cheiro de cabelo feminino, né? Então, na prática, se as lembranças não forem fruto desse possível surto, essas lembranças não pertencem a hoje, agora, exatamente, no ano de... que ano é mesmo?
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Melhor ir ali correndo na diretoria da escola tentar achar um calendário, eu lembro onde fica? LEMBRO! Deu um estalo aqui agora na minha mente, eu sei onde estou! De repente me vem uma lembrança, mas não vívida, simplesmente uma lembrança longínqua de quando eu estudava no Colégio Objetivo São Marcos, uma lembrança de mais de década, eu tenho um mapa mental perfeito dessa escola, e eu estou fisicamente nele nesse exato momento! As coisas são bizarras! Muito! De repente minha mente começa a ficar um pouco menos nublada, porque fui caminhando pra diretoria pra tentar ver um calendário, me situar, não queria de jeito nenhum conversar com ninguém, e de fato ninguém ainda tinha vindo falar comigo (eu meio que lembro que não era lá muito popular, de fato, então meus temores vão se concretizando), mas simplesmente estava tudo errado naquele ambiente, não vi UM smartphone, ninguém com a cabeça enfiada nos malditos smartphones como eu sei que são os jovens (e até adultos), onde estão os smartphones? Realmente, tá tudo errado! Melhor ir rápido pra secretaria! Rápido, muito rápido... O chão, o chão, o chão tá vindo ao meu encontro, rápido demais, MERDA! Que puta tropeço! Sorte que não tem ninguém por perto, acho que estou no saguão principal, mas espera aí... alguém, um rosto amigo. Porra, é o Lucas! Como ele tá novo, parece criança! Ai! Que dor no cotovelo! UCRONIA ▪ 138
— Mas que tombo, hein? ‘Cê tá bem, cara? — Ah sim, obrigado, me ajuda aqui a levantar. — ’Cê tá esquisito, muito esquisito, qual o teu problema, viado? — Ham?... Ah nada não, nada. Bati o olho do lado, um calendário, e ele parecia um objeto de uso diário e não um item de antiquário ou museu, mas não conseguia entrar na minha mente nem a pau, o desenho era uma ilustração de praia, em letras garrafais, dava pra ler perfeitamente: SETEMBRO, 2001, acho que dia 29... Puta que pariu! Mas acho que o Lucas tá olhando pra algo que caiu do meu bolso, acho que é isso, ele foi ali pegar... — Acho que esse trem é teu, parece um papel dobrado... ERA UMA FOTOGRAFIA! Um objeto que simplesmente não deveria estar aqui, agora comigo... Mas porque estava? Não fiquei pensando muito como estava, mas quando peguei da mão do Lucas e desdobrei a foto, pude ver, era ELA. A foto! eu a memorizei, cada linha, cada centímetro do teu rosto, do teu sorriso, a expressão dela, tudo. Quase posso ouvir a voz dela. Está tudo na minha mente, guardado onde ninguém pode tirar ou destruir...
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Fiquei um bom tempo, acho que talvez 30 segundos, ou foram 5 minutos? Olhando? Simplesmente não pude conter e comecei a chorar quieto, essa foto havia sido destruída, porque simplesmente surge nessa circunstância, ela não deveria estar aqui! É totalmente anacrônico... — Cara, o que foi? Quem é essa mulher? O que você tem? — Olha... nada Cada linha, cada centímetro, exatamente como ficou gravado a fogo na minha mente, uma linda menina, nos seus 19 ou 20 anos, olhos cor de mel penetrantes, cabelos escuros, um sorriso cativante... uma data, anacrônica, 04/02/2014, a data que a foto foi tomada, mas essa data na ocasião de agora seria considerada uma montagem grosseira, como o Lucas já observou. — Essa data está errada, apesar de quem é uma mulher muito linda. Quem é? É tua mãe quando era jovem? — Não, essa foto na verdade eu havia perdido, ou pelo menos achei que tinha sido perdida pra sempre, é a lembrança que tenho de alguém, o único alguém de fato. — Não entendi nada, por que você está falando desse jeito? Está louco? Com certeza era difícil mesmo pra um jovem mancebo de 14 anos compreender uma fala com certa carga de analogia, mas não me importei.
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— Lucas, entenda, você é meu melhor amigo, você é e será durante os próximos quatorze anos, pelo menos, entenda que eu perdi essa foto, agora eu encontrei, só isso já valeu a pena, e outra coisa, essa menina linda, ela nasceu em 27 de novembro de 1996, então ela existe, ela é REAL, está aqui. Achei que esse mundo era irreal, coisa de algum distúrbio da minha mente, mas não, ela é real, felizmente tudo pode ser diferente. — Cacete, você fumou orégano? Tá doidão? Só não entendi uma coisa, ‘cê tá me dizendo que essa mulher aí tem cinco anos de idade, de acordo com a data de nascimento dela aí na tua cabecinha, não é mesmo? — Sim, essa foto é uma Ucronia! — Uma o que? Ah, vai se foder, vamos embora pra sala logo, vai tocar o sinal! — Vamos, vamos, sim. Vamos indo pra sala, vamos e eu não ligo, eu não a perdi. Nunca vou a perder, eu sei tudo que vai acontecer.
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ENTRE EM CONTATO E. Reuss e.reuss@outlook.com Fabiano dos Santos Araújo fabiano.sa@gmail.com Fábio Guastaferro guastaferro@gmail.com Luis Eduardo Gonçalves Costa eduardo_costa_89@hotmail.com Luiz Mariano biruts@hotmail.com Marcos Vinícius Santos de Melo marcosvsmelo@terra.com.br Rosca J. R. Tudor originalroscatudor@gmail.com Vítor Maciel Gonçalves vitormg93@gmail.com
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