ECOS 10
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Capa: Berserk. Editoração Eletrônica : E. Reuss
Revisão: E. Reuss, JoeFather, Renan Rondon, Rosca J. R. Tudor
SUMÁRIO EDITORIAL .................................................................. 6 KAFRA .......................................................................... 9 O HOMEM DO FAROL ................................................ 18 AMIGOS ONLINE........................................................ 48 PARA NOS FAZER SORRIR ........................................ 52 WOMBAR .................................................................... 76 O POMAR .................................................................... 83 SABE O QUE É UM BEIJO BOM? ................................ 110 ATO ........................................................................... 113 DOS MEUS DEVANEIOS, VOCÊ ................................ 123 NEM TUDO SÃO FLORES! ......................................... 125 FALTA ....................................................................... 140 RIO ABAIXO .............................................................. 142 UTÓPICA ................................................................... 204 ENTRE EM CONTATO .............................................. 225
EDITORIAL Minha história com a escrita se desenvolveu na mesma época em que eu navegava nos fóruns de games, buscando discussões sobre jogos de RPG. Num destes fóruns, eis que me deparo com um tópico de Chamadas de Textos para a ECOS 7. Entrei e gostei da ideia logo de cara e quis participar, até porque queria voltar a escrever e dar um tempo nos games. Enviei minha participação, a primeira parte do meu conto chamado Jonas, que eu achava que estava perfeito, e recebi de volta o texto com diversos apontamentos, demonstrando que eu podia melhorar muito mais o trabalho, com dicas valiosas de correção. Fui acertando tudo e percebi, no final, que tinha muito ainda que evoluir para sonhar em algum dia ser um escritor de verdade. Indicaram-me uma obra do Mestre King, Sobre a Escrita, que tive o prazer de concluir neste ano, e que me deu um novo olhar sobre como eu tinha que idealizar os meus trabalhos, algo que pratico atualmente e que está dando muito certo. Outra porta que se abriu quando conheci a Mostra ECOS foi a minha participação na plataforma do Wattpad, onde eu tinha ainda um envolvimento tímido, mas que com o gás que veio com a Mostra eu acabei me aprofundando e hoje, um ano
e cinco meses depois, mudei todo o meu foco principal de escrita e leitura para lá, ganhei prêmios, fiz muitas e excelentes amizades e no final descobri que os amigos da OuterSpace que promoviam a Mostra estavam certos: tinha e ainda tenho muito que aprender na hora de compor meus textos; tinha e ainda tenho muito que evoluir para um dia querer galgar uma carreira como escritor; tinha e ainda tenho muitas pessoas especiais para encontrar pelo caminho e que, de uma forma ou outra, me farão um dia ser imensamente grato por me ajudarem a crescer como pessoa e na literatura. Em suma, penso que escrever é literalmente sonhar, depois colocar esses sonhos em forma de palavras no papel. Num belo dia, não sei em que ano, alguns nobres usuários da OuterSpace sonharam com uma Mostra e a idealizaram, transformaram este sonho em realidade e inspiraram muitos outros sonhadores. Eu sou mais um deles, um sonhador, que embarcou nesta jornada de escrita e que acredita que os sonhos são mensagens, basta você estar apto a entendê-las quando se deparar com elas ou aguardar o próximo momento, quando o sonho voltar a lhe embalar. Como diz minha amiga Alessandra Gomes, outra bela sonhadora, Escrever É VIDA! E eu adoro VIVER! JoeFather – Dezembro de 2017
K AF RA Ernane Martins
Encaminho o presente documento ao médico perito responsável pela avaliação do paciente Miguel Cervantes. O texto foi elaborado pelo referido paciente, conforme o protocolo de deliberação sobre aposentadoria por instabilidade psicossocial e deve integrar o processo de solicitação de deferimento de benefício social. Dr. Salomão Rodrigues Vieira (ABP3699)
Kafra – Ernane Martins
O texto a seguir tem como objetivo atestar e auxiliar no meu diagnóstico e tratamento e sua elaboração foi sugerida pelo Dr. Salomão Rodrigues vieira (Registro na Associação Brasileira de Psiquiatria nº3699) no intuito de exteriorizar ideias e sentimentos. *** Eu sempre odiava quando era meu turno de desligar o letreiro, ainda mais sendo eu o gerente, e sempre que o dono do turno faltava eu acabava tendo que assumir a responsabilidade. Em uma cidade pequena quase todas as pessoas se conhecem, o que fazia com que todas as relações, mesmo as de trabalho, fossem quase informais. E lá era uma cidade bem pequena, apesar de na época já ser uma cidade promissora, com algumas indústrias sendo atraídas pela mão de obra barata, e a falta no trabalho raramente era seguida de alguma punição, o que acaba estimulando esse comportamento e me colocando diversas vezes na pior situação. O nosso mercado era grande, levando em conta que os outros que existiam no raio de 10 quilômetros não conseguiriam superar o status de mercearias. Mesmo assim, ainda nos situávamos na rodovia que circundava a cidade. Voltando ao letreiro, ele já tinha visto dias melhores, mesmo na época dos acontecimentos que venho trazer, ele já se
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mostrava ultrapassado. Acho que se ainda existe, deve ser considerado algo “vintage” ou “oldschool” ou qualquer outro termo que venham a criar para justificar o fato da moda ser algo cíclico. Me lembrava muito aqueles painéis neon de bares com strippers que são marca registrada de todos os filmes de assassinos psicopatas. Só que, ao invés de uma moça com curvas sinuosas levantando e abaixando o vestido, nós só tínhamos um letreiro vermelho com mal contato na letra K, que piscava em intervalos cronometrados. O letreiro emitia um ruído de energia elétrica que, para o visitante casual passava completamente desapercebido, principalmente por não termos muito movimento após às, que era o exato momento em que nós o acendíamos, mas para mim era o mais irritante dos sons que meus ouvidos já haviam experimentado. Hoje eu sei exatamente o porquê. No começo eu achei que era besteira, que não passava do meu subconsciente me pregando peças. Eu sentia que algo estava errado, me sentia sendo observado, sentia que algo ruim estava prestes a acontecer, cheguei até a sentir formigamento nas extremidades dos pés e das mãos, todos os sintomas que meu psiquiatra diagnosticava como uma forma clássica de síndrome do pânico. Ele sempre me falava que era algo normal, que eu me sentiria bem com doses cavalares de Novril associado à terapia em grupo. Se estar dopado de sentimentos pode ser considerado como “estar bem”, então ele tinha razão. Eu não sentia medo, raiva, remorso, desprezo, não tinha
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nenhum sentimento durante todo o dia após ter começado com a medicação, exceto na hora de desligar o letreiro. Vou narrar a primeira vez em que eu notei algo diferente com detalhes, afinal todo mundo lembra bem da primeira vez. As outras foram bem parecidas, então citar somente o que houve de diferente vai bastar. Era uma noite comum, todos já haviam saído do mercado e era meu turno de fechar as portas e apagar o letreiro. A rotina era fechar as janelas, as portas e por fim apagar meu carma. Nesse dia, quando desliguei a chave de energia da base do poste que sustentava as cinco letras de mal gosto, o K insistiu em ficar piscando e emitindo seu ruído por alguns segundos. Fiz minha nota mental em voz alta de agendar a manutenção, assim como o meu herói, O Máscara, faria. Logo em seguida eu ouvi um ruído muito alto. Era como o ruído elétrico do letreiro, mas em 300 decibéis. O som cruzou na minha lateral, como uma moto com escapamento aberto passando no corredor entre os carros em um engarrafamento. Na mesma hora, senti o meu corpo gelar inteiro, como quando entramos dentro da agência bancária e damos de cara com uma cortina invisível de ar frio do ar condicionado. E no segundo seguinte era como se nada daquilo tivesse acontecido, como se eu tivesse acabado de acordar de um sonho estranho, no estacionamento fechado e completamente escuro de um supermercado de beira de estrada.
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Eu não entendi nada do que aconteceu naquele dia, bati nos meus braços e pernas pra acelerar o desaparecimento do restinho de dormência que ainda existia e fui para casa. Não contei nada daquilo para a minha esposa. Acho que agi corretamente. Não precisei apagar o letreiro nos três dias que sucederam a minha experiência bizarra, mas no quarto dia, lá estava eu, me preparando para fechar o mercado. No caminho para o poste tive uma sensação horrível de ser observado. Sentia como se houvessem olhos espreitando de cada sombra, de cada canto escuro, esperando o momento certo de atacar, quase fui para casa deixando o letreiro aceso, mas o tormento que seria aguentar o proprietário me ligando às 23h pra saber o motivo de o letreiro que deveria ter sido desligado às 21h continuar aceso foi motivação o suficiente para que eu enfrentasse o medo e apagasse o maldito luminoso. Não sei ao certo quanto tempo o ruído durou, não deve ter passado de meio minuto, mas para mim foi uma eternidade. Uma moto elétrica à 190 por hora cruzando o estacionamento, emitindo um ruído infernal e deixando um rastro de queimado por onde passava. Eu não conseguia ver nada, mas conseguia ouvir o ruído ensurdecedor, e conseguia sentir o cheiro de queimado que variava de intensidade junto com o som. No dia seguinte procurei o Dr. Salomão, único psiquiatra disponível na cidade.
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O diagnóstico era claro como o dia, e ele queria até fazer um estudo comigo por nunca ter ouvido o relato de alteração térmica associado com os outros sintomas clássicos de síndrome do pânico. É claro que eu não topei, mas ele insistia na oferta à cada visita. Eu não queria conversar sobre aquilo com mais ninguém, mas era muito difícil pensar em algo que não fosse eu apagando o letreiro. Fazíamos uma reunião semanal de funcionários do mercado. Eu, sendo a pessoa mais próxima do proprietário, precisava renovar a amizade entre os colegas de trabalho, falando besteiras e reclamando do dia a dia do mercado, para que eles se sentissem à vontade comigo e falassem de tudo sem medo de represálias. Em uma dessas reuniões, já no fim, quando já não sabíamos se a nossa embriaguez era pelo álcool ou pelo sono, resolvi contar para alguns colegas de trabalho o que estava acontecendo comigo. Eles ouviram toda a história com ar de interesse, e quando eu terminei houve silêncio, uma pausa silenciosa que foi sucedida por risadas histéricas. Acho que contei a maior piada que eles já ouviram. Aproveitei para rir das risadas deles, o que facilitou muito para que eu fingisse que foi tudo realmente uma grande piada. A partir daquele momento o Dr. Salomão era o único que sabia do que me acontecia, afinal ele era o único com estudo suficiente para me achar louco sem que eu ficasse ofendido.
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A vez seguinte, a última, foi a pior de todas. Estava tudo calmo demais, eu deveria ter largado tudo e ido embora. Fui até o poste sem sentir nenhum mal estar, parecia que eu estava ganhando controle sobre a situação, que aquilo não voltaria a ocorrer. Quando apaguei o letreiro, a letra K permaneceu acesa. Ela se apagou muito devagar, como se não quisesse desaparecer no escuro da noite, como se quisesse ficar e me proteger. O restinho da letra K desaparecendo como ferro em brasa na escuridão é a última imagem do mercado que eu me recordo. Aqueles olhos que eu sentia me olhando por todo o trajeto da porta até o poste, agora eu já não apenas os sentia, agora eu podia os ver. O ruído não parecia somente uma moto, ele tomava conta de todo o estacionamento. Eu não conseguia sequer pensar. Larguei o portão aberto, corri desesperado até a minha casa. O ruído me seguiu, como uma criança brincando nas teclas graves de um piano, cada vez mais alto. Quando cheguei em casa e consegui abrir a porta me deparei com a minha esposa sentada no sofá, assistindo novela e fazendo as unhas. Ela me olhou assustada no momento em que eu abri a porta, e quando eu olhei para o seu rosto ele estava completamente desfigurado, esticado, retorcido, sua boca se abria três vezes mais que o normal de qualquer ser humano, e sua voz lenta e distorcida ecoava junto ao ruído que havia me seguido. Agi por impulso, talvez instinto de sobrevivência, talvez desespero, não sei dizer ao certo. A única coisa que eu pude
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enxergar com clareza era o algodão sujo de esmalte enrolado na ponta do palito de madeira que ela estava usando para fazer as unhas no momento em que eu entrei correndo pela porta. Foi nesse dia que perfurei meus tímpanos. Minha esposa tinha crises de depressão. O motivo, de acordo com o Dr. Salomão, era por ela ser estéril. Após presenciar o marido perfurar os próprios ouvidos ela surtou, hoje ela vive com os pais idosos que cuidam dela da forma que eu não pude cuidar. O senhor Gonçalo, proprietário do mercado, me faz visitas sempre, mais do que eu esperava receber. Acho que ele sente minha falta no mercado, e estaria ansioso para que eu voltasse a trabalhar se eu não tivesse tirado a minha audição. Acho que mesmo se ele quisesse um deficiente auditivo como gerente eu não seria capaz de reassumir o cargo. Ainda consigo ver os olhos na escuridão do estacionamento. *** O perito lê todo o documento, pasmo. Seus lábios estão azulados e frios. Ele reza todas as noites para que a letra K, que ele enxerga da janela do seu quarto, não se apague.
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O HOMEM DO FAROL Luccas Machado
A cidade de Santa Terra é uma das maravilhas perdidas no Estado do Rio de Janeiro. Outrora fora grande produtora de açúcar e aqueles que investiram no pequeno município serrano durante a época do império garantiram riquezas para, ao menos, quatro gerações futuras. Entretanto, o brilho das grandes lavouras apagou com o decorrer do tempo, havendo apenas resquícios de um potencial desperdiçado, restando aos
O Homem do Farol – Luccas Machado
quase quinze mil habitantes sobreviverem graças à fábrica produtora de cerveja localizada no extremo norte do município. Essa afirmação, contudo, geraria discussões entre os moradores mais antigos que atribuem a subsistência da cidade devido ao comércio alimentício. Fato é que Santa Terra é a última parada possível daqueles que pretendem subir a Serra dos Percevejos rumo ao interior do Estado, e é o primeiro contato civilizatório daqueles que acabaram de descer a famosa serra, rumo à capital. Por isso as várias lanchonetes de Santa Terra estão sempre cheias de consumidores eventuais, caminhoneiros, famílias em viagem, meros civis que buscam cruzar a serra para passarem o dia na praia não mais que 30km da cidade. Os jovens moradores de Santa Terra só têm uma certeza na vida: de que irão sair de lá o mais rápido possível. E era o que efetivamente acontecia, o adolescente prestava vestibular para a capital e iria morar nas selvas de pedra, visitando os familiares poucas vezes durante o ano e jamais retornava depois de formado, o que fazia com que os moradores mais jovens ainda habitantes de Santa Terra fossem vistos como aqueles que não obtiveram sucesso, restando apenas o trabalho fabril ou servindo refeições nas lanchonetes. Esse era o caso de Flávio Salgueiro. Flávio recebeu sua educação, como todos os outros de sua idade, na Escola Municipal de Santa Terra. Seu sonho, desde
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criança, foi o de seguir a carreira musical, objetivava levar o reconhecimento de Santa Terra para o mundo, o que orgulhava ingenuamente seus pais, já idosos. O irmão de Flávio foi para a área da advocacia, passou em concurso para juiz no Piauí e nunca mais deu as caras na cidade, enviando mensalmente dinheiro à família e um cartão de felicitações quando lembrava do aniversário de algum deles. Flávio terminou o ensino secundário quase que forçado pelos pais, porém não conseguiu uma vaga no curso de engenharia civil, sonho de sua mãe. Já com seus 21 anos nas costas, viu-se obrigado a arranjar emprego como garçom na maior lanchonete de Santa Terra. Perdeu o contato com seus poucos amigos e passava seus dias servindo pratos e limpando mesas, quando acabava o expediente corria para casa a fim de praticar na velha guitarra, presente de uma tia-avó hoje já falecida. Porém, sua rotina encontraria grandes mudanças no dia 18 de março de 2011. Acordou cedo, como de praxe, nesse fatídico dia. Precisava chegar à lanchonete antes das 8h, horário no qual os caminhoneiros começavam a se aglomerar rugindo atrás de pão com linguiça e xícaras transbordando de café. Caminhava para o serviço. Nunca se preocupou em aprender a dirigir, pois de pouco adiantaria carteira de habilitação já que o carro de seus pais configurava como um enfeite inerte na garagem de casa. Houve um problema na bateria há cerca de dois anos e que até hoje não foi consertado, afinal de pouco servia um automóvel
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em Santa Terra e dinheiro não era algo tão menosprezável para a família Salgueiro. Durante os trinta minutos que demorava a caminhada desde a entrada de Santa Terra, residência de Flávio, até o restaurante “Sonhos da Serra”, pensamentos uivavam na mente do jovem garçom, implodindo devaneios sobre uma futura carreira artística. Muitos diziam que ele tinha talento, mas que ser talentoso no cenário musical não significa absolutamente nada. Outros já eram menos entusiastas quanto ao talento de Flávio, dizendo que sua técnica era incipiente, que até daria para arrancar alguns trocados nos bares da cidade, mas que se arriscasse a ir para a capital seria engolido pela concorrência e logo viraria pedinte nas ruas. Tamanha motivação apagava aos poucos o sonho, agora tão distante, de ser um músico reconhecido. Teve a frustração cessada ao passar pelo velho jornaleiro saindo da padaria, que de prontidão gritou o nome de Flávio e lhe direcionou, munido de um sorriso largo, um longo aceno. Todo mundo em Santa Terra se conhecia, sendo impossível cruzar uma esquina sem cumprimentar algum transeunte. Depois do décimo segundo “bom dia”, Flávio chegou até o restaurante, ainda vazio e com apenas o outro garçom fazendo a faxina diária. - Chegou cedo, garoto. - falou Rogério, veterano no Sonhos da Serra, enquanto enxugava o suor da testa com a mão
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direita. - Bom que você vai poder colocar as cadeiras no lugar já. Minha coluna agradece demais. Carregando uma mochila com a muda de roupas e algumas partituras, como de praxe, Flávio acenou com a cabeça para Rogério e foi para seu armário perto da cozinha iniciar o dia de trabalho. - Ô, Flávio. Caiu da cama? - uma voz estridente chamou pelo garçom enquanto ele amarrava o avental. Tratava-se de Dona Áurea, a rechonchuda gestora do restaurante. Deu-lhe uns dois tapinhas nas costas e uma risada falsa que irritava profundamente o jovem. - Pois é… - Hoje é sexta. - disse Áurea. - Eu sei. - Hoje o bar fica cheio. - Como de costume. - Flávio sabia qual o caminho Áurea estava levando a conversa. - É. É… Acho que hoje eu não vou ficar no bar. Estou muito exausta depois desse último carnaval. Minha joanete está uma coisa que só vendo para crer. - ameaçou levantar a saia que se arrastava pelo chão, a fim de mostrar a assombrosa joanete. Foi interrompida pelo bom senso e continuou o falatório. - Bem que você podia ficar por lá hoje, está fazendo um bom trabalho.
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Era costume Dona Áurea ficar no caixa pela manhã e servir os clientes à noite no bar. Maldita foi a hora em que Flávio aceitou o turno duplo durante os fins de semana. Desde que começou a trabalhar no restaurante, apenas em três semanas não teve que ficar no bar exercendo a função chata de agradar caminhoneiros bêbados. Claro que recebia a mais por isso, porém não poderia recusar ainda que quisesse. O ideal era trabalhar no restaurante durante o café da manhã e almoço de segunda à quinta, e na manhã e janta durante as sextas, como o típico garçom que só serve batatas fritas, pão com linguiça, café e refrigerante. Apenas isso, em situações raras uma porção de quibes e coxinhas, o que não era o forte da casa. A função de barman não lhe cabia, era estressante, até um pouco perigosa dependendo da clientela. - Certamente, Dona Áurea. - Ah, que maravilha. - beijou-lhe no rosto. - Chegue às 18h, então. - saiu dando outro tapinha nas costas de Flávio. O dia em si correu como qualquer outro. Terminou o expediente matutino às 15h, passou no parque da cidade para tomar um pouco de ar e aguardou em casa até chegar a hora de retornar ao restaurante. Ainda não estava escurecendo quando chegou para servir as bebidas, porém três consumidores já aguardavam para serem servidos. Com o tempo acabou por criar certa intimidade, ainda que involuntária, com os caminhoneiros mais fiéis ao Sonhos da Serra, aqueles que transportavam produtos
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semanalmente da capital para a cervejaria ou para os municípios além da serra. Dos três boêmios daquela noite reconheceu dois, Tom e Tito, um forasteiro diria até que eram irmãos de tão parecidos fisicamente. Gordos, já com poucos cabelos cobrindo a cabeça, vestidos da forma mais confortável permitida pela lei. - Chegou a chefia! - bradou Tito, enquanto batia com as mãos no balcão. - Agora a sexta-feira começou! - Opa. Estão animados hoje, algum motivo especial? indagou Flávio, passando pela divisória da bancada. Os três riram, o homem desconhecido de Flávio era um caminhoneiro franzino de barba falhada e com uma perturbadora monocelha uniforme. - Conta pro chefia aí, Cléber. - continuou Tito, já sinalizando para Flávio servir a entrada. O homem de monocelha soluçou antes de começar a falar. - Ih, Seu chefia. É melhor o senhor já passar duas rodadas para a gente que logo mais vai chegar o campeão da noite. Voltaram as risadas. Flávio refletiu por alguns segundos e logo já percebeu de quem estavam falando. - Borges vem aí? - perguntou enquanto servia os clientes. - Na mosca. - respondeu Tom, pegando a caneca de chopp à sua frente. - Cléber encontrou nosso amigo abastecendo aqui perto, falou que vai cruzar a serra amanhã e passará aqui no Sonhos para dar aquela animada na gente.
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Borges era a maior figura que Flávio já encontrou. Com seus quase 40 anos era um caminhoneiro diferente do habitual. Vestia-se formalmente, com crachá e tudo, cabelo penteado para trás banhado em gel e com uma barbicha desalinhada para completar a excentricidade. Entretanto, não era apenas a aparência que chamava a atenção em Borges, mas sim as loucas anedotas e histórias absurdas que ele trazia na bagagem e seu entusiasmo em compartilhar tais relatos. Era conhecido pelo apelido de Homem do Farol. Não havia uma vez em que Borges não contasse a bendita história do farol. A maioria dos clientes já conhecia de ponta a ponta, mas Borges fazia questão de importunar os transeuntes eventuais com a tal história. A própria Dona Áurea só conhecia o caminhoneiro pelo apelido incomum. Pouco antes das 20h o homem do farol dá as caras no bar, carregando consigo os olhares curiosos daqueles que ali estavam. - Ora, ora, meus camaradas. Está todo mundo aqui só para me ver? - Salve, Borges. Esse é que é o campeão! - Tito cumprimentou o homem num longo abraço, talvez sob efeito do quarto chopp que já tomava naquela noite. Todos saudaram o caminhoneiro e a noite adentrou, regada de chopps e aperitivos, agora com a presença do maior contador de histórias que já colocou os pés em Santa Terra.
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Tito tombou na bancada antes das 22h30min, após longas rodadas e conversas com os amigos caminhoneiros. Foi aí que o homem do farol juntou os poucos clientes que ainda restavam no recinto para contar seu relato mais famoso. A história do farol. Cléber, já cambaleante, despertou ao ouvir o pigarrear da garganta de Borges. - Ih, é agora, chefia. - cutucou Flávio e pediu outra rodada. Flávio, apesar de tudo, nunca havia escutado a história do farol. Talvez por alguma ironia do destino sempre que Borges começava a confabular especificamente aquele caso, estava ocupado em outra função, limpando o banheiro ou prestando as contas no caixa. Hoje não teria nada para interromper e, confessava estar até curioso para ouvir a história. - Bom, meus camaradas. - começou Borges. - Essa sextafeira está me remetendo a um incidente que me causa até certo calafrio em contar. Pela segurança de vocês, vejo-me obrigado a dizer que aqueles que desejarem escutar estão por sua conta em risco. Algumas poucas cabeças viraram para o caminhoneiro, porém a maioria continuava sem prestar atenção, enquanto Cléber segurava a risada ao bebericar sua caneca. - A história da criatura no Farol Rosa. “É uma história de monstro? Sério?” Pensou Flávio. Aquilo já diminuía sua expectativa para o desenrolar do conto.
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- Sei o que estão pensando. - prosseguiu. - Criatura? Farol rosa? Alguém andou confundindo o álcool do caminhão e bebeu da caneca errada. Mas peço a paciência de vocês, tudo fará sentido logo. Para aqueles que não estão em Santa Terra há muito tempo, que estão de viagem ou apenas por algum fator do destino, talvez não conheçam tão bem a Serra dos Percevejos. É a serra que separa Santa Terra dos outros municípios mais ao nordeste, certamente a maioria aqui já a cruzou, mas talvez, e repito, só talvez não tenham prestado a atenção devida. Flávio conhecia bem a Serra dos Percevejos. Bastava andar por cerca de dez minutos saindo da cidade para chegar até o início da inclinação. Brincou de esconde-esconde por muitas vezes ali com seus amigos e sem a anuência dos pais, obviamente. A existência da serra remetia mera nostalgia à Flávio, não sabendo de alguma característica especial que poderia ter por lá. Taxa de mortalidade baixa para uma serra intermunicipal, muitos insetos, principalmente aqueles que davam nome à cordilheira. Voltou sua atenção para o contador de histórias. - Há mais de 100 anos, quando Santa Terra era apenas uma próspera cidade, e a Dona Áurea aqui pode me corrigir caso eu esteja errado, já que foi testemunha ocular do que estou lhes contando. - algumas risadas surgiram, principalmente de Cléber que já estava desgrenhado em seu banco. – Santa Terra possuía a mesma função de conectar municípios e subindo a Serra dos Percevejos conseguia-se visualizar terras mais
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distantes. Fato era que dava para ter uma boa vista da praia de Taquerajá, e, consequentemente do porto. Construíram, então, um farol, bem no ponto mais alto da serra, adentrando na mata ali presente. O projeto do farol foi custoso, porém trouxe prosperidade para a cidade. Pintaram sua estrutura com uma tintura rosada, para se destacar dos demais faróis no Estado, foi batizado a partir do nome de um general famoso, porém todos conheciam como o Farol Rosa. Bem, está bom. Vocês devem estar pensando o que diabos tem demais em um farol rosa. É esse o grande mistério? Peço, novamente, a paciência. Nesse ponto Cléber já dormia, apoiado como um cão abandonado em cima do balcão. - O farol continuou ativo por muitos anos, até que sua gestão foi transferida para uma família síria, nova no país, e é aqui, amigos e amigas, que devemos focar nossa atenção. Conhecemos sírios pela sua cultura, culinária, vestuário. Porém, dentre os sírios que tomaram conta do Farol Rosa, havia uma pessoa diferente, um homem perverso. Seu nome era Ibrahim e ele era responsável por guiar embarcações menores até o porto. Contudo, Ibrahim tinha um segredo. Ibrahim, o sírio, amava os Djinns. Ibrahim, o faroleiro, idolatrava os demônios. Ele carregava consigo uma garrafa que acreditava ser mágica e sua convicção ia além. Ibrahim queria a atenção dos Djinns, pretendia atrair os demônios árabes para nossa querida Santa Terra. Começou fazendo
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sacrifícios esporádicos, desviando escaleres e embarcações pequenas em direção oposta ao porto, direto para às rochas que permeiam a baía. Ibrahim era esperto, não fazia seus rituais sem a devida precaução. Porém, uma hora evidentemente ele seria descoberto. E foi o que aconteceu. Flávio, que de início mostrou-se indiferente quanto à boba história de um farol cor de rosa, agora parecia, no mínimo, instigado, sempre teve curiosidade quanto à religião islâmica e pela figura dos gênios e suas lâmpadas mágicas. - Um velho pescador sobreviveu ao choque com as pedras e confrontou sozinho o faroleiro. Era um homem já calejado e queria que Ibrahim pagasse com a vida pelo que tentou fazer. Apesar da idade, o pescador detinha uma força surpreendente que fez o jovem sírio tremer e pedir clemência aos Djinns enquanto seu rosto ficava cada vez mais desfigurado a cada golpe irado do velho. Já sem forças, Ibrahim pediu que o velho ardesse, que as chamas que iluminavam o farol descessem e colocassem fim aquele embate. “E foi o que aconteceu. Os Djinn escutaram seu servo e o velho pescador urrou enquanto fogo pulava de seu peito. Mas a história não terminou aí. O velho, em um ato de desespero, lançou-se em Ibrahim e segurou forte com o que restava de sua força. Encontraram os cadáveres de ambos já tostados e a história foi ocultada do resto dos moradores. Fecharam o farol em respeito às vítimas do sírio, e a família se mudou para outro Estado.
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- Tá bom. Tá muito bom. - Cléber despertou, batendo palmas. - A história do Popeye contra o Aladin, palmas pro nosso querido “historiantizador”. Os outros clientes riram abafadamente e Cléber bateu longas palmas sozinho até se cansar e voltar para onde quer sua mente se encontrava. - Sei que isso pode ter sido chocante para alguns. - Borges ainda não tinha terminado sua história, para felicidade de Flávio que nem percebeu um cliente saindo sem pagar poucos minutos antes. - Mas o surpreende está no fato de que os Djinn não deram apenas o que Ibrahim queria. Eles transformaram Ibrahim em um próprio gênio. Seu espírito está amaldiçoado para sempre no Farol Rosa e qualquer um que passe por lá consegue escutar os gritos do pescador em chamas. Ibrahim precisa se redimir pelas vidas que ceifou e concede desejos para aqueles que o perdoam pessoalmente pelos seus atos. Conheci um rapaz, bem pobre, que foi despejado de sua casa e começou a morar no farol. Foi lá que encontrou Ibrahim e soube de toda a história. “Hoje é um homem riquíssimo, apresentador de televisão e cujo nome eu não posso revelar. Ele próprio contou a história a mim e já soube de outras pessoas que tiveram suas vidas mudadas após visitarem o Farol Rosa. Camaradas, irmãos, meus amigos, contei-lhes algo incrível e me despeço de vocês dando a oportunidade de todos mudarem seus destinos. Perdoem Ibrahim e realizem seus desejos.
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Flávio estava boquiaberto, apesar de não perceber. Tudo parecia absurdo demais, porém sempre foi muito impressionável com histórias místicas e sabia que remoeria aquela por bastante tempo. Borges estava pegando o dinheiro para pagar sua conta, a noite terminara para o caminhoneiro. - Borges, diga-me uma coisa. - Flávio impediu a saída do homem. - Você já foi ao Farol Rosa? Uma risada emergiu de Borges e Flávio sentiu-se tolo. - Veja só, meu camarada. Eu adoraria ir. Mas não posso, eu sou evangélico. Deu-lhe uma piscadela e partiu em direção ao caminhão, deixando Flávio e o resto dos boêmios pensativos naquele início de madrugada de sábado. O fim de semana, enfim, chegara. Flávio trabalhou no restaurante, como sempre, porém sua imaginação não fugia por mais de dez segundos daquela fatídica história de caminhoneiro. Como era bobo em ao menos cogitar a veracidade daquilo. É história para impressionar ignorantes, pensava. Acreditar nisso só iria provar que pertence àquela cidade consternada, que seria seu destino permanecer ali ouvindo baboseiras diante de um balcão. Mas, precisava saber. Foi o único fato em tantos anos que havia seduzido seu imaginário dessa forma.
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Precisava visitar o Farol Rosa, ainda que a pé. Domingo seria um dia tranquilo para subir a serra, a maior parte dos carros estaria descendo e seus pais não se importariam de escutar uma mentirinha. Mas iria mesmo? Visitaria o tal farol? Estaria lá no alto o próprio Borges com câmera em punhos aguardando o primeiro bobo a cair em sua história? Pouco importava, seria até emocionante. Caso tudo passasse de mentira, teria ao menos feito exercício físico. E passou o sábado inteiro planejando o que faria no dia seguinte. Primeiro pegou sua antiga mochila de colégio, não a que levava para o trabalho, mas uma outra, já surrada e carcomida. Ali carregaria seu celular, duas garrafas de água e um pacote de biscoitos. Também colocou um canivete, pertencente ao seu pai, para caso encontrasse não o tal Djinn, mas algum pervertido querendo tirar proveito da situação. Diria aos seus pais que passaria o dia na biblioteca municipal, estudando para um vindouro concurso público que nem ao menos existia. Acreditariam, ou fingiriam acreditar, pouco importava contanto que o resultado fosse atingido. Assim, o sol de domingo surgiu e Flávio partiu atrás do gênio da lâmpada, para que o transformasse em um astro musical da noite para o dia. Teve muito que agradecer ao clima naquele dia. A Serra dos Percevejos também era conhecida pela incômoda neblina que permeava as matas frequentemente, o que, por sorte, não estava acontecendo. Quando chegou na entrada da serra,
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diante de uma placa rabiscada, Flávio sentiu-se mais uma vez um tolo. Remoeu por minutos, observando o alto da cordilheira e fingindo ser um mochileiro quando algum carro passava ao seu lado. O som dos pássaros era perturbador, o canto das gralhas forçava sua mente a tomar uma decisão logo. Por fim, colocou o pé direito no asfalto e iniciou a subida. Alguns moradores já haviam contado sobre a existência do tal farol, apesar da cor rosa nunca ter sido mencionada, e como se chegava lá. Mais ao alto da serra existia uma abertura de trilha, uma estradinha de terra por dentro da floresta, o caminho direto até o monumento abandonado. Após cinco minutos de caminhada, Flávio pensou ter escutado algum animal se aproximando, mas ignorou procurando a tal trilha que parecia nunca chegar. Demorou o dobro do tempo para abrir sua primeira garrafa de água e perceber o quanto seu corpo estava fora de forma, uma subida tão simples e o suor já escorria como cachoeira em suas costas, sentiu-se aliviado ao perceber uma abertura do outro lado da pista, quase como um portal adornado por plantas secas e que revelavam um chão de terra batida estendendo-se de forma íngreme para o leste. “Tem que ser aqui”, pensou. Em frente ao tal portal havia um espaço não ocupado, suficiente para que um carro ou charrete ficassem estacionados ali. A própria entrada era grande o suficiente para passar um caminhão e perguntou-se por que nunca reparou naquilo durante as vezes em que subiu a serra com seus pais.
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O que não imaginava é que a nova estrada o faria subir tanto quanto a serra, e o conforto mental só emergiu quando a primeira escada de mármore apareceu em sua frente. Ao seu lado, uma rampa, provavelmente para facilitar a subida e descida de materiais de construção, mas já era possível vislumbrar o farol. Rosa é elogio para aquela tonalidade. Havia uma extensa campina verde e o tal farol brotava como um espinho surgindo da terra. Não era tão gigante quanto imaginava ser um farol, porém pensou ser inacreditável tal construção robusta existir perdida naquela serra desolada. Conseguia sentir um leve cheiro da maresia misturado com a forte presença da flora local. Sentiu-se, por um momento, puro. Caminhou em direção ao tal farol, erguido em sua frente, com manchas e musgo emoldurando sua estrutura. Ao chegar na base se deparou com um portão de ferro destruído, curvo, totalmente enferrujado, caso tocasse era capaz de precisar de cinco vacinas antitetânicas para não morrer. Conseguiu ultrapassar a entrada se esgueirando e torcendo para que as teias de aranha nas paredes não atraíssem quem as construiu. Assim, dentro do farol, deparou-se com a escuridão. Havia bifurcações na parede que forçavam a entrada do Sol em pequenos feixes de luz, contudo apenas dava para se ter uma breve noção do que estava ali. Um andar completamente vazio, sujo, fétido, com insetos e seja lá mais o que grudados na parede.
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Pensou em correr naquele exato momento, já que não vira sinal nem de Borges ou de qualquer Djinn que fosse. Mas havia uma escadaria ali, em espiral, bem ao centro daquela catástrofe. Flávio havia chegado tão longe, teria que subir. Passou rapidamente tentando não pensar em baratas e ratos escalando suas pernas, até que colocou o pé no primeiro degrau e o barulho quase o fez desistir novamente. A escada estava podre e caso Flávio tivesse mais uns 20kgs derrubaria com facilidade toda a estrutura, morrendo soterrado. Mas não tinha, estava com mero sobrepeso, conseguiria subir. E subiu, subiu, subiu. Chegou ao topo da torre, agora em uma sala menor com uma abertura dando visão privilegiada do que supôs ser a praia de Taquerajá. A lente, que iluminaria o mar, um considerável vidro convexo apoiado sobre uma estrutura de mármore com mecanismos de ignição por dentro, estava destruída e a única coisa que chamava a atenção de Flávio naquele ambiente era um ramo de flores estranho perto da janela. Aproximou-se com cautela, sempre atento para algum ataque surpresa, e encontrou três flores que nunca havia visto antes. Eram alaranjadas, suas pétalas abriam no formato de um escorregador, no centro uma espécie de caule com sua ponta permeada de pequenos poros amarelados apontando para o céu. “Talvez eu já tenha visto isso sim”, refletiu e ignorou seu redor por alguns segundos, dando uma breve aspirada naquilo que parecia ser a única fonte de vida no Farol Rosa.
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O cheiro doce extasiou suas narinas e Flávio sentiu-se engraçado. Riu para o nada, até que percebeu estar perdendo o equilíbrio. Apoiou-se na janela e tentou, com muita dificuldade, manter-se em pé e sair dali o mais breve possível. Tombou em poucos segundos, de frente para escadaria. A última coisa que ouviu foi o bater de passos subindo os degraus enferrujados. Quando despertou já era noite, seu rosto coberto pelo pó que impregnava o chão, estava desorientado e já não se escutava mais o som dos pássaros, apenas o impertinente barulho dos grilos e o piar de corujas. Demorou certo tempo até retomar a consciência do que tinha acontecido e quem era a pessoa que o seguiu até farol. Tocou a mão no bolso a procura do canivete e celular, e, para sua grata surpresa, estavam em seus devidos lugares. De pronto visualizou a hora no aparelho, que indicava em sua tela 19h32min, porém sem conexão de rede ou sinal telefônico. Ativou a lanterna a fim de procurar a saída para aquela torre maldita até que uma silhueta se propagou junto com a luz. Flávio vacilou e quase escorregou para fora da janela, que essa hora da noite revelava pontos de iluminação de uma cidade próxima. - Borges? É você? - pegou o canivete e apontou na direção da penumbra. Por trás da lente desativada saiu um homem que definitivamente não era Borges.
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- Pensei que não fosse acordar mais. Geralmente o efeito passa exatamente ao cair do sol. E olha que eu nem tive que te forçar a inalar nada. Que… Suspeito. A voz suave vinha de um homem que trajava um terno obviamente feito para alguém com duas vezes seu peso. Vestia um chapéu-coco. A luz da lanterna estava oscilando e não era possível discernir qual a cor daquele traje, tampouco ver o rosto do tal homem, entretanto tudo parecia sujo, desgastado e, principalmente, aterrorizador. Um silêncio se manteve por instantes e Flávio tentava montar a imagem daquele rosto insólito até que, por fim, sua lanterna apagou, bem como a bateria de seu celular que jurava estar acima da metade. O homem permanecia de pé, mais alto que Flávio, sem se movimentar. - Isso é tudo? - retomou a conversa já que Flávio não arriscava soltar nem mais uma palavra. - Deprimente. Até outra hora, então. - Djinn… - a palavra saiu com asco pela sua boca. - Perdão? - o homem, que estava prestes a virar de costas, parecia até surpreendido pelo chamamento. - Djinn? Ah, você disse “Borges” antes, não é mesmo? Foi ele quem te mandou então. Já estava até preocupado com a quota dele, mas isso não é algo para você se preocupar. Suponho que para você meu nome seja… - Ibrahim. - completou Flávio, confuso com a situação.
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- Isso! - o homem deu um salto e subiu na estrutura que elevava a lente. - Ibrahim! Se há algo em que Borges não me decepciona é a criatividade. Quando o primeiro que ele me enviou começou a contar essa história, confesso que não pude segurar as risadas. Mas esqueça aquilo tudo, se a história que ele continua a contar é a mesma de outrora, pouco daquilo serve de parâmetro para a realidade. Flávio continuou em silêncio. Não se tratava de um gênio, então o que poderia ser? Um canibal, talvez. Algum religioso com certo teor de excentricidade. Pouco importava, ele tinha que sair dali e ameaçou andar em direção à escadaria. - Mas já? Pensei que agora nossa conversa iria fluir. Sei que não me perguntou, mas me chamo Hibiscus, assim como aquela bela flor que você cheirou mais cedo. - Você estava aqui me observando? Escondeu algum remédio na planta? O que diabos é você? - Flávio agora estava exasperado, principalmente com Borges e pelo fato de não saber as intenções daquele louco. - Evidentemente. Ora, não se invade a casa de alguém e espera que o dono mantenha-se inerte. Eu que deveria fazer as perguntas. Você veio até aqui por um motivo, acho que já está na hora de contar. Iluminados apenas pelo luar do exterior, Flávio e Hibiscus se encaravam. Este último com um sorriso tolo na boca, Flávio agora conseguia enxergar melhor sua face, que parecia carbonizada, com exceção dos olhos escuros e penetrantes.
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Pensou em correr sem dar satisfações, mas sabia que a escada não aguentaria o peso de ambos, principalmente caso o homem de terno o perseguisse. Um combate físico talvez fosse a saída, até onde sabia apenas ele próprio estava armado com o canivete, porém seria arriscado demais. Quem sabe a melhor alternativa estivesse em ficar e escutar o que esse homem chamado Hibiscus tinha para dizer. De seu terno emanava um cheiro muito peculiar de uva que quase remetia a vinho e dava um frescor peculiar ao farol, e assim Flávio esperou mais um pouco antes de tentar escapar. - Djinns realizam desejos. Eu vim atrás de um Djinn. disse. - Sim, mas isso eu já sei. Ainda estou ignorante quanto ao seu desejo, o que pediria a um verdadeiro Djinn? - Uma saída rápida daqui. O homem pôs-se a rir. - Tanta desconfiança para quê? Somos todos iguais aqui. Dinheiro é um pedido comum, não pensarei menos de você caso seja esse seu desejo. - Não é dinheiro. De que te importa saber sobre mim se é só um louco dentro de um farol? Você pergunta meu desejo antes de perguntar meu nome. - Pois seu nome tem valor irrisório para mim. - Hibiscus saltou da lente e ficou pensativo olhando para o luar através da janela. - Veja bem, apesar da história que Borges te contou ser
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inverossímil, algumas coisas podem ser verdades. Seu desejo me importa, dependendo do que seja poderemos chegar a um acordo. Nem tudo está tão perdido. Hibiscus olhou profundamente para Flávio e em seguida para a lente. Pelo menos para onde estava a lente poucos segundos antes, agora sumira. Flávio voltou seus olhos para a escadaria e esta também havia desaparecido deixando o chão de madeira completamente liso e o cheiro de uva mais forte ainda. Por fim, a própria janela sumiu e a sala tornou-se um breu com apenas Flávio e Hibiscus ali. O garçom esgueirou-se para a parede tentando fugir, quando duas pequenas chamas surgiram, flutuando um pouco acima de Flávio e a mão de Hisbiscus tocou em seu pescoço. - Não precisa falar o que deseja, já que não se sente confortável. - as chamas, que em realidade eram os olhos do homem, eram terríveis e dançavam de um lado para o outro. Flávio tentou furar Hibiscus com o canivete, porém este também desaparecera de sua mão. O olhar daquele ser consumia o garçom, que tentava dispersar seus olhos para qualquer outra direção, mas era atraído irresistivelmente para aquele fogaréu do medo. Então tudo escureceu e Flávio despencou ao chão, acordado. Piscou e a realidade retornara à sua visão. Por um instante pensou ter imaginado tudo o que ocorrera, mas lá estava Hibiscus de pé, na janela, seus olhos ainda penetrantes, porém comuns aos de qualquer ser humano.
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- Is-Isso… - Estará gastando energia desnecessariamente, Flávio. Hibiscus sabia seu nome, mas como? O que estaria acontecendo ali? - Sucesso musical é um pedido bem comum, até onde sei, poderíamos ter evitado isso caso sua timidez não tivesse atacado. A boa notícia, garçom Flávio, é que se trata de um pedido possível. Basta você aceitar. Ainda estava enleado, jogado naquele piso sujo e diante da escada. Fugir pouco adiantaria, esse homem pode fazer coisas inimagináveis. - O que você quer em troca? - Bom você ter perguntado. Veja, não é sobre o que eu quero em troca. Até porque você tem pouco a me oferecer. É sobre a sua capacidade. - Hibiscus saiu de frente da janela e revelou uma garrafa de tamanho médio, cujo gargalo tinha o mesmo formato da flor que fez Flávio desmaiar, graças ao reflexo da Lua pôde ver que estava quase cheia de qualquer líquido que fosse. - Vinho? - Um bom palpite. - Hibiscus riu. - Quase isso. - É só beber? - Beber é fácil, garçom Flávio. Dê uma garrafa de champanhe a um recém-nascido que te garanto que ao menos um gole ele tomará. Não, não é só beber. Veja, garçom Flávio, as pessoas que me visitam possuem duas alternativas, a primeira
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delas é beber da minha fonte e terem aquilo que tanto desejaram. Quem consegue beber todo aquele líquido sem vacilar é digno de ter seus anseios atendidos e podem sair livremente para saborear. - E aqueles que não conseguem? - Esses estão na segunda alternativa. Flávio fungou e sabia que teria que beber aquilo. Nunca fora um exemplo de beberrão, mas aguentava várias doses da cachaça que vendiam perto de sua escola. Nada poderia ser mais forte do que aquilo. E se essa fosse a única alternativa que tivesse para escapar, teria que ser assim. - Vamos começar? - Hibiscus pegou a garrafa pela sua base e entregou à mão trêmula de Flávio. Quando encostou na garrafa, Flávio vislumbrou dúzias de cadáveres espalhados pela sala da torre, alguns jogados na escadaria, outros amontoados em pilha, todos carbonizados olhando para o céu. Gritavam sem emitir som, rastejavam-se sem movimentação, pareciam presos em uma tortura eterna dentro do farol cor de rosa. Não precisou que Hisbiscus dissesse que aquela era a segunda alternativa e deu o primeiro gole na garrafa com formato de flor. O sabor que inflou em sua garganta era, de princípio, doce tal como um suco fresco e natural de uva. O líquido escorregou em espiral pela sua garganta, irrigando suas cordas vocais e incendiando o esôfago. Atrás desse divino sabor começou a queimadura, um ardor estranho e contínuo rasgava a garganta
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de Flávio que não conseguia abrir os olhos. Quando, enfim, o calor chegou até seu estômago, entrou em êxtase e voltou para aquele mundo escuro no qual Hibiscus vasculhou sua mente, mas agora não estava tão ermo quanto antes, um som surgia da imensidão e Flávio percebeu estar em um palco. À sua frente, uma multidão em frenesi, gritando em júbilo seu nome. Tocava, mesmo sem guitarra alguma, seus dedos desenhavam o ar e atingiam notas que nem fazia ideia da existência. Não tinha controle do ocorria, vendo quilômetros de pessoas à sua frente e apenas ele próprio no grande palco. O céu brilhava em púrpura e raios lutavam entre si, torres eram erguidas e a cada segundo Flávio sentia-se mais eufórico. Do alto da maior torre um homem vestindo chapéu-coco olhava para baixo. Mesmo tão distante, Flávio conseguiu vislumbrar seu rosto, um homem com pele morena, usando um bigode que já saíra de moda ao menos cinco décadas atrás, sorria enquanto encarava o garçom, que agora era guitarrista. Flávio começou a ignorar sua presença e estava arrebatado pelo sucesso, até que diversas mãos começaram a surgir do palco e a sugá-lo para o chão. Visualizou a si mesmo, agora no farol, engasgando enquanto bebia da garrafa mística, e usou toda a determinação que tinha para suportar a dor do fogo em sua bile, para sentir, nem que por mais outro segundo, o júbilo da gratidão, o sabor do reconhecimento. Bebeu até a última gota da garrafa, enquanto pensava que o fogo em seu estômago explodiria e o consumiria como fez com
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tantos outros naquele farol. Despertou com o canto das gralhas e o Sol batendo em seu rosto. Não havia mais Hibiscus, nem garrafa, tampouco os corpos cremados. Apenas Flávio, a lente e o horizonte por fora da janela. Pegou o celular em seu bolso, a bateria estranhamente apontava 35% de energia restante. Por pouco não percebeu que o calendário na tela mostrava se tratar de segunda-feira, 6h45min da manhã. Levantou em um pulo, correndo pela escadaria sem olhar para trás e indiferente se ela cairia com seu peso. Chegou até a estrada da Serra dos Percevejos e correu como nunca havia feito antes. A rota que fez aquele dia da serra até sua casa simplesmente desapareceu de sua memória. Quando passou pela porta de entrada, notou que esquecera a mochila no farol e que estava com a aparência mais suja de sua vida. Sua mãe estava sentada na sala e o abraçou com força, desesperada pelo sumiço do filho. - Meu Deus, Flavinho! Olhe só para você! Por onde você se meteu? Passamos na biblioteca e disseram que você não esteve lá. Ó céus, sabe como o seu pai é nervoso com essas coisas. Já chamamos até a polícia, Flavinho. Por Deus! Por Deus! Ela o beijava com força enquanto Flávio permanecia estático, com o olhar paralisado, querendo vomitar, porém segurando com força para não o fazer.
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Inventou uma história de que quis ir até a serra e bateu com a cabeça em uma pedra, apesar de não ter contusão alguma em seu corpo. Tomou banho após acalmar seus pais e sentou na cama para refletir. Pensou se tudo aquilo foi ilusão, se Hibiscus era fruto de sua cabeça confusa ou se alguém se aproveitou dele enquanto estava inconsciente. Nada daquilo tinha relevância. Mesmo que fosse alucinação, ele experimentara o sucesso ainda que por um breve momento e tinha convicção, como nunca antes, de que era aquilo que ele queria para sua vida, o clamor do público, a sensação de vitória continua. Fugiria de Santa Terra e atingiria o estrelato, pouco importando o preço a se pagar. Abriu seu armário e foi surpreendido. Havia, em cima de uma trouxa de roupas, uma cuia de aparência antiga, áspera ao tocar e dentro um líquido escuro. Flávio conteve o grito que quis dar, mas então sabia que se tratava da realidade. Quis beber quase que imediatamente daquela cuia, mas percebeu um bilhete ao lado. A caligrafia era muito rebuscada, precisou fazer esforço para ler. “Todos têm sempre os mesmos desejos. Você pode alcançá-los quando quiser. Basta beber. Há mais desse para cada pessoa que você enviar a mim.” Flávio largou o bilhete e sentiu como se uma epifania abatesse sua mente.
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Havia pedido para sua mãe comunicar à Dona Áurea que não iria ao Sonhos da Terra aquele dia, porém voltou atrás e disse que trabalharia no turno da noite. Chegou ao restaurante ao surgir da Lua, como se nada tivesse acontecido, e foi direto para o balcão de bebidas ainda que Áurea não tivesse pedido sua presença ali naquela noite. Encontrou Tito conversando com um caminhoneiro que Flávio não conhecia. - Ô, chefia! Que bela surpre… - Tito parou e encarou Flávio por alguns segundos, teve o mesmo olhar vindo do garçom como resposta. Flávio viu os olhos de Tito em chamas, tal como os de Hibiscus, e calafrios passaram pelo seu corpo. Tito vira a mesma coisa. Tom, o outro caminhoneiro, estava chegando, também com os olhos em chamas e encarou, surpreso, o rosto de Flávio. Em alguns instantes todos entenderam o que havia acontecido. - Bem… Chefia… - Tito tentava, inutilmente, voltar com a típica voz de boêmio. - Esse aqui é o Rui, ele era amigo do Cléber. Estamos todos muito tristes com o desaparecimento do nosso camarada caminhoneiro. Cléber era fenomenal. O chefia foi o último a servir as canecas de chopp pro Cléber. É quase como o último a dar um abraço, não é mesmo? Rui fez como se sorrisse e saudou Flávio.
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- Ah, mas o nosso garçom aqui é mais do que um ótimo atendente. Ele conta umas histórias incríveis. Ô, Flávio, passa uma rodada aqui para a gente e depois conta aquela história do farol. Flávio permaneceu inerte, aos poucos tudo estava se encaixando em sua cabeça. Como nunca notara que Tito e Tom pediam chopp, mas sempre carregavam uma pequena garrafa de bolso, que bebericavam a cada rodada? O mesmo acontecia com Borges. - Ah, claro. Mas escuta só, Rui. Essa história vai precisar de toda a sua atenção. – começou a servir os chopps. Olhou-se no espelho do balcão e achou engraçado não ter percebido seus próprios olhos em chamas enquanto estava em casa. Flávio também iria precisar de uma garrafa de bolso.
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AMIGOS ONLINE JoeFather
Sim Foi assim Riu demais de mim Lembrava na foto um arlequim Despojado estudante na porta do botequim Sob o cĂŠu da aurora banhado por uma luz de tom carmim
Amigos Online - JoeFather
Não Sem decepção Amigo igual a um irmão Dono de um nobre e doce coração Com as mãos estendidas em qualquer situação Nas risadas da vida ou nas tristezas que perturbam a razão
Sei Que hoje calei No seu perfil vislumbrei Uma mensagem que jamais pensei Que traria um sofrimento tão grande que eu odiei Por perder alguém que eu nem imaginava que um dia amei
Tento Falho intento Ser forte neste momento Ao reler a nota do seu falecimento Pequena mensagem online no seu perfil cinzento Que queria tanto que fosse uma brincadeira lançada ao vento
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Amigos Online - JoeFather
Nunca lhe vi nem o abracei e jamais cheguei a ouvir sua voz O nosso tempo se acabou nesse seu ritmo veloz Ficamos apenas nesse destino atroz Inevitรกvel sentimento feroz Restaram nรณs Sรณs
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Naquele tempo, para que um cidadão fosse considerado respeitável ele precisaria atender a alguns requisitos. Se tivesse muito dinheiro, seria bem tratado de frente, mas invejado pelas costas. Era necessário ter boa aparência, o que é diferente de ser belo. Pessoas muito belas viravam motivo de inveja e intrigas entre os menos formosos.
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Ser educado e gentil com os vizinhos era primordial. Os calados e reclusos eram considerados esquisitos e sempre seriam preteridos pela coletividade. Cuidar da aparência de sua casa era imperativo, pois como alguém viveria em um lugar caindo aos pedaços? O menor sinal de desvalorização de uma das casas no bairro era um problema coletivo. Ainda na sua casa, o jardim merecia atenção especial, exigindo um cuidado a mais. Sempre com o gramado impecável. A vaidade de morar num bairro com belos jardins deveria ser compartilhada por todos. E, por fim, era sempre garantia de elogios ter um bom automóvel em sua garagem, se possível do ano. Demonstração de sua competência pessoal, completando a imagem de prosperidade em seu lar. As coisas tinham que ser assim! Quem gostaria de ter um vizinho que não fosse respeitável? Um certo representante comercial conseguiu alcançar esse status de cidadão admirável. Não seria exagero dizer que ele era o morador mais ilustre do bairro. E essa aferição ia além de sua casa, jardim ou mesmo dos carros na garagem. Quando passava pelas ruas do bairro, sorrisos e braços acenando para ele surgiam por todos os lados. Este homem era Astolfo.
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O respeito que todos tinham por ele era algo invejável, mas não era ali onde sua paixão estava. A única coisa com a qual Astolfo se importava era Mara, sua esposa. Mara era muito habilidosa no trato com o jardim de sua casa. Plantas que não eram comuns na vizinhança ornavam sua faixada. Todas vistosas e bem podadas, as maiores e mais belas flores, dispostas no gramado mais verde e bem aparado já visto em todo aquele bairro. Os vizinhos, interessados em ter essa beleza em seus próprios jardins, não podiam simplesmente aparecer e tocar a campainha para uma visita com intenção de descobrir os segredos de Mara. Em vez disso, caminhavam em frente à sua casa esperando encontrar Mara cuidando do jardim, assim poderiam fazer uma pergunta informal e desinteressada sobre aquela joia aos cuidados de Mara.
Muitos dias se passaram com a busca, infrutífera, pelo segredo do jardim de Mara. Enquanto o tempo passava e as buscas continuavam o jardim tinha a grama cada vez mais verde, flores mais belas e perfume mais agradável. A curiosidade de cada um crescia com a dificuldade em se conseguir a resposta.
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Num determinado fim de tarde, Mara estava jardinando. Preferia ficar dentro de casa, longe da onda de curiosos, mantendo as coisas como estavam. Isso era tentador, mas ela precisava se livrar da legião de desocupados passando o dia todo na sua calçada. Em alguns minutos uma pequena procissão se formou na sua calçada. A oportunidade surgiu e todos se esqueceram da discrição. Não importava quem fizesse a pergunta, ou como ela fosse feita, a resposta seria sempre a mesma: - Só adubo, podo e molho todos os dias. Uma das vizinhas mais matreiras tentou uma abordagem diferente para conseguir algo além de sua resposta padronizada. Perguntou qual era o tipo de adubo que ela usava para ter plantas tão belas. Foi a única pergunta para a qual Mara teve prazer em responder. Levantou o rosto para olhar a vizinha bem nos olhos e falou de maneira suave e delicada, escondendo toda sua malícia: - Uso um adubo muito bom. Bosta de vaca, sabe? A vizinha ficou travada na mesma posição por alguns segundos. Para sua sorte, e tristeza de Mara, outro vizinho surgiu empurrando a senhora dali antes que Mara visse a sua reação e não conseguisse mais segurar a risada. Geralmente a reação de todos era a mesma. Agradeciam e se despediam com a mesma face amigável que usaram para se
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aproximar. A cada passo mais adiante da cerca de madeira, lentamente voltavam à realidade e percebiam o que acabara de acontecer. Suas faces ficavam torcidas pelo ultraje. O “segredo” de Mara foi repassado a todos e o amontoado de pessoas na calçada foi se dispersando. Saiam em grupos, sussurrando e acenando a cabeça em afirmação sempre que um deles terminava de falar. Depois da última pergunta, Mara ouviu passos. Levantou o rosto e viu as pessoas se dispersando. Sentiu uma vontade incontrolável de rir alto para que eles a ouvissem, mas se conteve. Achava melhor guardar-se e apreciar o pequeno prazer sozinha. Terminou de regar suas plantas e observou as pessoas se afastando em várias direções diferentes. Ela sabia o que eles fariam depois daquele dia. Caso Mara fosse alguém que dependesse da companhia alheia se sentiria triste e definharia em uma amargura fatal, porém nunca teve problema com a solidão, sua querida amiga. Mara abriu o seu mais belo sorriso e vagarosamente caminhou para dentro de sua casa. A calçada voltou a ficar livre dos curiosos. As pessoas se dispersaram em vários grupos nas casas uns dos outros. - Pobre homem - Dizia um eles - Não esperava que alguém tão bom convivesse com umazinha tão desprezível - Dizia outro.
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Eles resmungavam muito e se empertigavam quando era a sua vez de falar. Cada um teve a chance de fazer o seu comentário, sem se negarem à oportunidade de retirar aquele ranço de dentro de si. As conversas rodeavam quase sempre o mesmo ponto. Aos poucos, a maior questão de todas foi se formando e surgiu no meio de vários comentários. “Se a Mara fosse tratada devidamente, como ficaria a relação entre o bairro e o Astolfo?” Valia o risco de perder o seu maior benfeitor? O homem que sempre vinha ao auxílio de todos ao primeiro sinal de dificuldade? Aquele que era quase um super-herói? Lembraram do último verão, na tarde em que caiu um dos temporais mais fortes, cujos ventos ameaçaram arrancar as casas dos alicerces. Felizmente as casas sobreviveram aos ventos, mas várias árvores nas ruas tombaram deixando todos no escuro. Depois de algumas voltas pela cidade, caminhões da companhia de energia apareceram com um batalhão de funcionários. Eles cortaram e retiraram as árvores do local, recolocaram os fios nos postes e antes da meia noite a luz voltou ao bairro. O mesmo valia se seu filho precisasse ir ao dentista ou se sua avozinha ao médico. Ter Astolfo na vizinhança era como ter o prefeito ou o governador como vizinho. Nunca antes lidaram com um impasse como aquele. Mas por ele, o sacrifício de não repudiar Mara deveria ser feito.
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Mara nunca foi uma pessoa fácil de lidar. Mesmo na época que trabalhava cuidando e vendendo suas flores, ela era geniosa. Era uma pessoa de poucas palavras e aspereza no olhar. Mas até para isso Astolfo, sempre apaixonado pela esposa, dava valor. Fosse uma gota de café no forro da mesa, uma mancha numa camisa limpa, uma ruga numa calça recém passada ou um objeto fora do lugar, era motivo para ao menos um olhar de fúria de Mara, que era sempre respondido com um sorriso terno de Astolfo. Talvez ele fosse masoquista, ou a entendesse melhor do que todo mundo. Nunca se casaram de direito, apenas estavam juntos de fato e isso só dizia respeito a eles. Ninguém precisava saber disso, principalmente naquela época. Mara acreditava que tudo aquilo podia acabar em breve. Desde o primeiro dia que dividiram o mesmo espaço como um casal ela aguardava o fim de tudo para voltar a sua vida solitária novamente. Astolfo sempre teve um pensamento mais otimista. “Meu amor, um casal amigado com fé, casado é”. E sendo a “fé” de Mara depositada no fim breve dessa união, a falta de formalidade os amarrando era tudo o que ela desejava. Mara quase nunca pedia alguma coisa para Astolfo. Cedo se acostumou a viver com pouco e mesmo agora esse velho
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hábito continuava com ela. Porém Astolfo contribuía para que nunca faltasse qualquer tipo de coisa à esposa. Ele parecia ter uma habilidade para descobrir o que sua esposa queria. Sabia observar as ações e reações das pessoas. Mara gostava de ler revistas e semanalmente fazia a compra de uma porção delas, em uma ocasião Astolfo viu várias vezes uma das revistas de Mara aberta na mesma página, com uma imagem de Marylin Monroe em uma reportagem que falava de sua vida. Era quarta-feira e ele viajaria na manhã seguinte, retornando só alguns dias depois. Várias vezes ele viu a revista em algum local da casa na página onde se iniciava a reportagem. Retornou na segunda, ao final da tarde, trazendo consigo uma caixa preta e fosca com a logomarca da loja gravados em dourado. Mara pegou a caixa com os olhos arregalados. Ele sempre trazia coisas extravagantes quando chegava de uma de suas viagens. Mara colocou a caixa no colo e retirou a tampa e os papéis que cobriam o conteúdo. Antes que retirasse o que estava na caixa ela já adivinhara o que era. Olhou algumas vezes para a caixa e para o marido e em todas as vezes ele sorriu e fez um aceno incentivando-a a continuar. Ela levantou-se e retirou da caixa um vestido branco, idêntico ao que Marylin Monroe usou em O Pecado Mora ao Lado. Colocou o vestido sobre suas roupas e ficou virando de um
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lado para o outro, tentando se visualizar dentro do vestido. Parecia que esse era o primeiro presente que ela recebia na vida. - Ele é seu, Mara. Pode vestir agora se quiser - Disse Astolfo, tão feliz como se ele mesmo ganhasse o presente. Mara ficou estática por alguns instantes. Ela ouviu o que o marido disse, mas demorou algum tempo para sair da sala para se trocar, calçar seus melhores sapatos, usar as melhores joias e se maquiar como mais gostava. - Você está linda assim - disse Astolfo vendo Mara sair do quarto. Astolfo devia ser o vendedor mais alinhado e bem vestido que já houve. Sempre saia de casa para trabalhar usando um terno de três peças, não importando a época do ano. Peças muito bem passadas, com caimento exato e abotoaduras brilhando nos punhos. Convidou Mara para que jantassem fora naquela noite, mas ela recusou. O jantar já estava pronto esperando apenas que ele chegasse. A comida foi degustada em uma agradável e rara conversa entre os dois.
Ambos tiveram uma noite única, mas “ainda faltava alguma coisa”. O pensamento não saía da cabeça de Astolfo. Até que
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ele finalmente entendeu. Conseguiu acertar a atriz e o filme, mas errou a cena. Anos antes, O Pecado Mora ao Lado foi o primeiro filme que Mara conseguiu ver na vida. E por vários anos foi o único. Ela era jovem e estava encantada com tudo que via na tela do cinema. Mas uma cena a marcou. A cena da banheira! Uma das mais curtas. Naquele momento, para a sua mente jovem, uma boa vida de felicidade e sucesso, era ter uma banheira em casa para poder tomar banho de espuma sempre que quisesse. Durante o jantar ela estava quase radiante, mas parecia que alguma coisa estava errada. A alteração de Mara era ínfima, mas Astolfo conseguiu notar. Antes do fim da tarde, no dia seguinte, um batalhão de pedreiros e encantadores instalaram no banheiro principal da casa uma banheira branca idêntica à do filme. Com os ladrilhos no mesmo formato e tom esverdeado. Ao final da obra, ambos estavam plenamente realizados, ela com a nova banheira e ele com a felicidade da esposa.
Numa noite de lua cheia, Astolfo chegou em sua casa e ela estava sem qualquer luz acesa. Ele estacionou pacientemente o Opala vermelho na garagem, ainda não acostumado com um carro daquele tamanho. Esse era mais um dos momentos em
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que sentia saudade de seu velho amigo de estrada, o velho Corcel GT XP, que agora pertencia à esposa. Saiu do carro e viu o Corcel ao lado. Casa escura, carro na garagem com o capô frio. Talvez tivesse saído no carro de uma amiga pois ela ainda não tinha confiança para dirigir na cidade. A luz da Lua entrava pela porta da garagem, iluminando o para brisa e o painel dos dois carros. Astolfo via o rosário de madeira que a esposa pendurou no retrovisor do Corcel. Ele quase conseguia ver a esposa colocando ele naquele local, pouco depois de lhe presentear com o carro. Saiu da garagem se dirigindo à porta de entrada na frente da casa. A luz do poste era o suficiente para que achasse a fechadura. Abriu a porta e tateou a parede procurando pelo interruptor. Apertou o botão e a sala continuou escura. Um medo irracional tomou sua mente. Mara trouxe poucos objetos consigo quando se mudaram para aquela casa. Tinha poucas coisas, porém amava todas. O pertence preferido era o Teimoso, o seu secador de cabelos. O Teimoso devia ser tão velho quanto o filme de Marylin Monroe. Era uma pena que o secador já estivesse judiado pelo tempo e não mais funcionasse direito. Ele ganhou o nome porque precisava levar duas palmadas na parte traseira para funcionar.
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Astolfo várias vezes ofereceu um secador novo para a esposa, argumentando que o Teimoso não era mais um produto seguro de usar. Ela sempre se irritava e dizia que não faziam mais secadores bons como aquele. Ele sempre temeu que um dia ela levaria um choque usando o velho secador. E acreditava que o dia então chegou. Estava apavorado achando que ela não estaria bem. A luz da Lua entrava pelas janelas e ele conseguia se guiar relativamente bem pela sala mal iluminada. De longe viu um vulto no sofá e correu até ele. Estava certo de que era a Mara esperando no escuro para que ele cuidasse do disjuntor. Já imaginava que ela comeria o seu fígado por primeiro ir falar com ela e depois ir cuidar do fusível, mas precisava ter certeza de que a esposa estava bem antes de fazer qualquer outra coisa. Aguentaria a bronca com um sorriso. Astolfo se aproximou do sofá e então sentiu seu desespero voltar. Era apenas almofadas empilhadas. Seus olhos o enganaram e ainda não sabia onde estava a esposa. Ele correu direto até o banheiro, tropeçando nos sofás, nas mesinhas e em qualquer outro móvel que estivesse no seu caminho. Parou ao lado da porta do banheiro. Trancada por dentro! Fechou seu punho com força, fazendo a luva de couro em sua mão gemer. Bateu algumas vezes na porta e não obteve resposta. Repetiu as batidas chamando pela esposa. Continuou
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sem resposta. Sentiu algo estranho nos pés e percebeu que pisava em uma poça d’água. Respirou fundo, se afastou e correu em direção à porta para arrombá-la. Com duas batidas fortes e secas ela escancarou. Toda a luz que a Lua emitia entrava pela janela, brilhando na água do piso. Criou coragem, controlou sua queda de pressão e por algum tempo encarou a banheira cheia de água transbordando antes de ter coragem de chegar perto. Segurou as lágrimas e se aproximou. Não havia ninguém dentro dela. Se aproximou mais para conseguir olhar melhor e encontrou apenas o Teimoso repousando no fundo da água. Já sabia o que derrubara os fusíveis. A janela estava fechada por dentro, da mesma maneira que a porta que acabara de arrombar. Ficou catatônico por algum tempo e começou a gritar pela esposa desesperadamente enquanto corria pela casa inteira. - Mara! Mara! Não obteve resposta. Conseguiu se acalmar, ficando novamente no mesmo estado catatônico. Foi até a caixa de fusíveis e não obteve sucesso em restaurar a eletricidade. Decidiu sair de casa. Talvez a esposa chegaria e o ajudaria a entender o que aconteceu.
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A luz da Lua estava muito forte naquela noite, iluminando todo o jardim com clareza, mas ele não conseguia acreditar em seus olhos. Ao invés de um lindo gramado aparado e flores bem cuidadas tudo era terra batida e sujeira. Restos enferrujados de automóveis estranhos ocupavam quase todo o espaço. Do outro lado da rua avistou um muro muito alto, com arame farpado em cima e uma grande estrutura do outro lado, o que parecia um galpão, armazém ou fábrica. Toda aquela estranheza não importava para Astolfo, que tinha seus pensamentos focados em Mara. “Onde está você?” Pensava em voz alta. “Não posso ter entrado na casa errada! Enlouqueci?” Ele andou na direção à rua, desviando dos detritos, até tropeçar em alguém. Uma jovem voz feminina protestou. - Mara? – Ele perguntou de maneira enfática enquanto seu corpo não se decidia entre permanecer de pé ou não pisar na perna da mulher. Terminou caindo de joelhos e também rasgando uma das luvas em vã tentativa de se apoiar. - Não, vô, sou só eu – A voz da jovem moça soava muito parecida com a de Mara, mas não era ela – A vó felizmente não está mais aqui. - Você está me confundindo com alguém, moça – Astolfo soou mais convicto do que realmente estava. A moça parecia muito com sua Mara, mas claramente não era ela – Quem é você e o que está fazendo na minha casa? – Essa pergunta já não soou tão convicta. Ele se sentia cada vez menos em casa.
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A jovem se levantou com um pouco de dificuldade, mostrando claros sinais de embriaguez. Ela olhou para Astolfo, sentado no chão e com cara de perdido. - Estou tentando falar com meu pai – Ela se recompôs um pouco, tentando controlar a voz embriagada. Respirou de maneira controlada e começou a encarar a rua como se fosse um grande vazio. Acendeu um cigarro um pouco torto, tirado de trás da orelha, e deu uma longa tragada. Tirou um maço todo amassado do bolso de traz da calça e ofereceu a Astolfo. - Não fumo, acaba com a disposição e incomoda as pessoas – Respondeu ele, com uma rispidez educada, causando um discreto riso na garota. - Acaba com a disposição e incomoda as pessoas forçar casamento de mentira com biscate, vô – Ela parou de rir, mas manteve um sorriso que no começo parecia de desdém, mas que com o tempo se tornara complacente. Astolfo continuava no chão. Desistira tanto de encarar a atitude da garota quanto de entender o que ela estava dizendo. A garota se abaixou, sentando sobre os calcanhares, deu mais uma tragada e começou a rir. Por um momento ele não se sentiu mais tão frustrado com toda a situação. Alguma coisa na garota lhe reconfortava. Provavelmente a maneira informal e espontânea como o
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tratava. Não se lembra da última vez que foi tratado assim. Provavelmente nunca. A garota continuou o encarando, com uma expressão amigável, como se esperasse que ele dissesse alguma coisa. - Nós nos conhecemos? – Astolfo perguntou depois de tomar algum fôlego e coragem. - Eu não sei responder isso, vô. Nós nos conhecemos, mas não agora – Respondeu com serenidade. - Não entendi. E por que está me chamando de “vô”? – Ele tentou se sentar numa posição mais confortável, mas parecia que todo o chão estava tomado por pedras ou detritos. - Porque você é meu avô, mas não era para estar aqui – Ela apagou o cigarro na lateral de um barril de óleo, assoprou para o alto o resto de fumaça que tinha nos pulmões e sentou mais perto de Astolfo – Eu tentei chamar meu pai. Aqui, olha – Apontou para um conjunto de pedras rúnicas colocadas aleatoriamente sobre uma travessa cheia de ossos e pedaços da carne crua de algum animal pequeno. Astolfo não entendeu nada do que a garota falava ou do que acontecia a seu redor. Mas seus instintos lhe diziam que devido à situação e ao absurdo relato da garota, o melhor era simplesmente fingir que acreditava. - A sua avó está bem? A Mara é a sua avó? – Ele resolveu entrar no jogo.
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- Claro que sim! – Respondeu de maneira convicta – A vó sempre está bem! Minha mãe, que é sua filha, também sempre está bem. É meu pai que nunca esteve bem. Você nunca esteve bem. Mas você pelo menos viveu bastante. Meu pai é que não viveu nem para me ver nascer. - O que aconteceu com seu pai? Meu filho? – Começou a ficar preocupado. “Meu Deus, embarquei na loucura dessa garota”, pensou, sem saber se ria ou chorava. - Não, vô. Minha mãe é filha da Mara – Respondeu de maneira convicta – Só não sei se também é sua filha de sangue, porque a vó foi muito mal caráter contigo. E também com todo mundo. Mas você que criou minha mãe sozinho, quando a vó perdeu interesse por ela. E depois também criou a mim, também sozinho, quando minha mãe decidiu partir, igual a vó. Então é pai dela e também meu avô. Astolfo olhou para os lados numa busca sem objetivo racional. Não procurava mais pela Mara, pela vizinhança, seu jardim ou qualquer coisa de sua realidade. Só procurava pelo fim daquilo. Por mais que simpatizasse com a garota achava que já era hora de terminar com aquele pesadelo. Era real demais para algo tão surreal e não queria ficar louco de vez. A garota se levantou num pulo desengonçado e olhou Astolfo direto nos olhos. Ele conseguiu ver uma autêntica alegria no olhar da garota. “Ela pelo menos acredita no que diz”, “pior é que eu também estou acreditando” pensou. Ela esticou a mão e gesticulou com a cabeça em direção a casa.
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- O que aconteceu com a vizinhança? – Perguntou enquanto se levantava com a ajuda da garota. - Não sei explicar, mas eu preferiria que continuasse sendo como nas fotos que me mostrava – Ela continuou o segurando carinhosamente pela mão e o levou para dentro da casa. A casa estava toda diferente por dentro. Sem a elegância e aconchego de outrora. Parecia um escritório malcuidado. A garota mostrou uma foto numa moldura já desgastada pelo tempo. Astolfo olhou e viu Mara sentada no capô de seu Opala. Porém ela estava abraçada com outro homem. Aparentava estar feliz como poucas vezes ele a viu antes. A garota gentilmente tirou a foto de suas mãos a colocando de volta na estante e lhe deu um abraço muito amoroso e demorado. - Pelo menos eu fiquei com o Corcel? – A garota começou a rir depois que Astolfo fez essa pergunta. - GT XP – Ela respondeu sem conseguir parar totalmente de rir – Você ficou para sempre com aquele pau velho - Ele começou a rir também. Eles ficaram mais um pouco abraçados. Astolfo tentou afrouxar o abraço, mas a garota não queria o largar, então ele continuou por mais todo o tempo que ela precisava para matar a saudade. - Vô? – Ela se afastou um pouco, mantendo as mãos sobre os ombros de Astolfo e o olhando seriamente dentro dos olhos – Posso te pedir uma coisa?
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- Claro – Astolfo fez uma cara séria esperando que ela continuasse. - O senhor viu que nenhuma das coisas às quais se dedicou tanto continuaram existindo. O mundo mudou tanto que um dia tive até que me despedir para sempre de você. Eu não vou me despedir dessa vez porque você vai voltar para o seu lugar e um dia vai me encontrar novamente – Astolfo tentou falar alguma coisa, mas a garota o impediu com um gesto e continuou falando – Enquanto esse dia não chegar eu quero que você não viva em vão. Quero que viva para ser feliz. Quero que ame as pessoas do jeito que sempre amou, mas sem achar que amar é idolatrar. Sem achar que você pode amar outra pessoa sem antes amar a você mesmo. A vó nunca vai mudar de caráter e eu só não quero que quando ela deixar de te amar você pense que é porque não merece mais ser amado. Ela colocou a mão sobre o peito de Astolfo e o empurrou ao mesmo tempo com firmeza e cuidado. Astolfo tentou falar, mas sua voz não saia. A garota segurou uma pedra rúnica, tirada de seu bolso, com os dedos indicadores e polegares das duas mãos. A peça era desenhada em um pequeno pedaço rústico, comprido e fino de pedra sabão. A garota olhou carinhosamente para o avô enquanto derramava algumas lágrimas e, enfim, quebrou a runa ao meio. - O que aconteceu, Astolfo? Tudo bem?
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Mara estava muito assustada e até gaguejou enquanto olhava para seu marido caído no chão do banheiro. Ela estava na banheira relaxando, quando então ele entrou tropeçando e se estatelou no chão. A porta do banheiro continuava arrombada, mas o chão estava seco e as luzes da casa acesas. O Teimoso repousava dentro do armário. Astolfo demorou alguns segundos até se situar. Tivera um sonho acordado. “Perigoso”, pensou. “Imagina se eu estivesse dirigindo e matasse alguém”, pensou uma bronca para si mesmo. Levantou a cabeça e viu que Mara continuava o encarando com olhar assustado. Ele sorriu, se levantou e começou a tirar a roupa. - Astolfo! – Mara se espantou. Fazia meses que não tinha um momento íntimo com o marido. Nunca se viram nus com luz acesa – Isso não é adequado – Ela reprimiu o marido. - Por que? – Perguntou Astolfo num tom divertido – A banheira não é grande o bastante para nós dois? - Mara tentou protestar, mas enrolou a língua – Se você quiser eu me visto e saio do banheiro – Ele completou sorrindo de maneira simpática e libidinosa. Mara não conseguiu responder e também sorriu enquanto efusivamente puxava o marido para dentro da banheira.
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Depois disso o casal não ficou junto por mais que alguns poucos anos. Astolfo não conseguiu levar o papel de garanhão por muito tempo. Mara começou a se acostumar, mas quando Astolfo aos poucos foi voltando a ser a figura paternal de antes, ao invés do homem que a desejava, ela primeiro se sentiu frustrada, até o momento em que finalmente perdeu totalmente a atração pelo marido. Eles tiveram uma filha nove meses depois de tomarem banho juntos. A criança segurou o casal por alguns anos, mas não demorou muito para que ambos começassem a ciscar fora de casa. Primeiro Astolfo buscou suas aventuras nas casas de soltura, inclusive se apaixonando por uma ou outra profissional. Mara se soltou com o irmão de um dos vizinhos. Se conheceram em uma confraternização e com o tempo foram se aproximando. Ela realmente amou o rapaz por alguns anos. Nunca tiveram filhos. Mara teve mais um filho com o terceiro ou o quarto marido. Oficialmente com o quarto. Astolfo nunca mais teve filhos. Ele assimilou o conselho da “neta” e nunca mais achou que não merecia ser amado apenas porque Mara deixou de amá-lo. Levou sua vida amorosa de maneira suave, com um romancezinho aqui, um cortejo acolá e nunca mais frequentando casas de lupanar. Um dia conheceu sua segunda e última esposa em uma feira de negócios. Sua filha casou jovem, como Mara. Arrumou um bom marido, como Mara. Eles engravidaram cedo, mas o rapaz morreu num acidente de trabalho meses antes de ver sua filha
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nascendo. Mara foi ficando amarga depois de divorciar do quarto marido e foi viver com a herança deixada pelo terceiro. Viajou o mundo inteiro e só aparecia no Natal com presentes caros e histórias sobre luxo e ostentação. A filha deles não demonstrou nenhum interesse ou vocação para a maternidade deixando para Astolfo e sua esposa criarem a pequena, na mesma casa onde ele um dia morou com Mara. Ele não precisou criar a neta sozinho. A esposa de Astolfo morreu de câncer e ele a seguiu alguns poucos meses depois. O médico disse que foi um infarto, mas todos sabiam que foi de saudades. Sua neta já estava adulta e feita na vida. Do avô ela herdou a velha casa, no decadente bairro, um Corcel velho e exemplo dado de que o segredo da felicidade é amar. A garota aprendeu a aceitar a natureza desapegada da mãe e o egocentrismo da avó biológica, mas teve boas recordações de seu avô biológico e sua avó de lei e adoção. No final ela só queria que o pai pudesse ter feito parte de sua vida e esse sempre foi o único infortúnio com o qual nunca ficou em paz. Uma noite, durante viagem a Oslo, uma conhecida lhe vendeu um conjunto de pedras rúnicas junto de alguns manuscritos sobre uso e confecção das mesmas. Disse que era uma invenção de um antepassado seu e que aquele era o primeiro e único projeto de máquina do tempo que foi ou viria a ser desenvolvido. Elas fecharam o negócio por um par usado de Havaianas, um pint de cerveja e um selinho. Ficou um
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pouco frustrada por viagem no tempo não funcionar como na ficção.
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Eu senti o cheiro de alguém se aproximando, escutei os passos receosos no chão úmido da caverna. Um curioso estava se aventurando a me conhecer: -T...Tem alguém aqui? - Gaguejou uma voz feminina. -Sim, sou um alguém não é mesmo?! - Surgi em frente da pobre moça Ela se assustou ao me ver surgindo tão de repente entre as sombras; mas manipulei sua mente para que não enxergasse minha real aparência.
Wombar – Renan Rondon
Ela se assustou ao me ver surgindo tão de repente entre as sombras; mas manipulei sua mente para que não enxergasse minha real aparência. -Então existe alguém que vive aqui? - Murmurou baixinho. -Mas é claro! Não está me vendo? -É que eu não imaginava realmente isso… - Parecia pensativa. -O que uma jovem como você faz aqui? Ela olhou receosa para mim, seu corpo tremia levemente, estava assustada. -Eu quero de volta o homem que tanto amo. -Para quê forçar um homem a voltar para você? Ele te abandonou, não é mesmo? -Não! Foi uma mulher que o roubou de mim! - Seus olhos transbordavam ódio – Eu quero acabar com ela! A raiva, ira, ódio. Eu adorava esses sentimentos, pobre moça; ela ainda irá se arrepender de ter me procurado. Algum tempo depois, após meses de diversão, a minha festa com a garota acabou. Chegam mais ingredientes. O que é isso que ouço lá fora? O herói chega à minha casa, inspirado pela beleza da pobre dama, sonhando com as glórias que ganhará assim que sua espada passar em meu pescoço. Seu sentimento ganancioso acha que dessa vez um pobre humano pode me desafiar, por mais que muitos já tenham tentado. O herói vem de espada
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pesada, tão pesada que seus dois braços mal podem aguentá-la, mas sua determinação é tão grande que o peso da lâmina não lhe faz mal. Sua vida está horrível e ele já perdeu muito do que tinha, mas isso não explica o fato dele ter vindo aqui sozinho para tentar mudar tudo, o risco é tão grande que isso me leva a crer que o pobre homem mal pensou no que tinha aqui dentro. Pois minha humilde casa é nada mais que a caverna maldita. Ela ganhou esse adjetivo por inúmeros motivos. Primeiro, por ser um espaço labiríntico e malcheiroso no qual poucas criaturas aguentam ficar, segundo pela fama mórbida que carrega, pois quem aqui entrou nunca voltou para contar história, e terceiro por conta desse ser bestial que vos fala, modéstia à parte, jamais vi ser mais temível. A caverna sou eu e eu sou a caverna, ela não vive sem mim e eu não vivo sem ela. As raras vezes que dei as graças de meu ser fora daqui para propagar o mito de Wombar. Senti muita falta desse lugar, pois o local ficara desprotegido e ninguém podia me proteger. Meu consciente é a caverna, tudo o que aqui pisa eu fico sabendo, tudo o que respira, exala, sente, pensa e olha, eu fico sabendo. Todo ser vivo que aqui esteja, é controlado por mim, sou o ser onisciente e onipresente e esse é meu mundo. Mas fora daqui não sou ninguém, pois o poder da caverna não se conecta a mim. De fato, algumas jornadas para fora daqui são necessárias para atrair os curiosos, e com a moça não foi diferente. Em busca de poder para vingar-se da rival, a qual supostamente
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roubara seu amado, entrou aqui com esperança de encontrar as respostas de sua vida. É claro que como bom anfitrião eu a acolhi muito bem. Eu lhe prometi veneno letal, beleza absoluta, riquezas e rapazes, mas ela só queria o amor de seu amado. Seu belo e voluptuoso corpo moreno só percebeu a armadilha depois que já estava presa, e daqui ela não vai sair mais, muito menos nos braços de um herói que pouco sabe cuidar de sua retaguarda. Meu prazer reside justamente na jornada desses infelizes para cá, logo que sinto a calma do herói, já lhe faço uma surpresa. Meus mosquitos carniceiros recém-atraídos lhe pegaram as costas, e eu os mandei extrair todo o couro possível dos humanos. Para melhorar minha empolgação, o herói descobre meu calabouço secreto e se joga numa sala cheia de cadáveres e sangue, fechando a porta de metal antes que os mosquitos pudessem entrar. Fico admirado com a calma desse rapaz, pois com cinquenta metros de caminhada sua vida já tinha sido testada mais de cinco vezes, eu não estava gostando da falta de tensão. Decidi influenciar mais diretamente e aumentei o batimento cardíaco do herói de forma branda. BUMP-BUMP-BUMP-BUMP. Pensem no desespero de uma pessoa que sentia seus sentidos controlados pela primeira vez, é algo inenarrável. Não quero ser alvo de críticas, mas o prazer do sofrimento de minhas vítimas me alimenta mais do que suas carnes e órgãos frescos. Comer um humano sem brincar com ele antes
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é algo tão monótono que eu prefiro ficar de jejum. O desespero me alimenta, me fortalece, me enobrece, ele faz parte de tudo o que é mais sagrado para minha raça, embora eu seja o único demônio que conheço. Meu prazer por essa loucura só não é maior que a curiosidade dos humanos quando resolvem vir aqui me enfrentar, mesmo eu sendo mal falado em qualquer cidade. Sem esse prazer, eu certamente morreria aos poucos. Quero deixar meu desabafo de lado pois percebi que a Zuehir está ficando excitada. Ela é considerada a última cobra gigante do reino, ou, pelo menos, era, até acharem que ela estava morta, enquanto na verdade ela foi domesticada/escravizada por mim. A feição espantosa do herói quando adentrou no calabouço da Zuehir e viu que estava enfrentando uma lenda viva foi algo delicioso demais para mim. Essa mulher era tão importante assim para você correr esse risco? Obviamente eu jamais deixaria Zuehir tocar nas minhas presas, então ela só hipnotiza, para deixar a cena ainda melhor eu dou um toque de paralisia geral no herói, fazendo de estátua por alguns segundos, e culmino aumentando a frequência cardíaca do pobre homem. BUMBUMBUMBUMBUM. É música para meus ouvidos. Meu único desejo nesse mundo é que eu pudesse ler o pensamento das minhas presas, pois o homem estava tão tenso que suas palavras já não faziam mais sentido. A voz da bela mulher percebe o perigo e grita por ajuda, o grito ecoa na cabeça do herói fazendo-o despertar da paralisia
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e sair do alcance da cobra, porém, ao passar pelas colunas negras do centro de minha caverna, ele teve uma das piores visões de sua vida. Jazia em sua frente a bela morena em pedaços sobre uma cripta. Seus cabelos se confundiam com as tiras de couro das sandálias, seus ossos das mãos tentavam segurar seus grandes seios, porém agora disformes, sua garganta jorrava sangue e seus olhos estavam só eu sei onde. Atrás de toda a carnificina estava Wombar, seu humilde narrador, uma figura gigante e vermelha, sem forma representável e com poder incomensurável. O herói vira que já não havia mais sangue em meu corpo, eu já havia devorado a donzela a muito tempo atrás e estava reproduzindo sua fina voz na sua mente. Ele se deu conta de tudo o que passou e viu todo o poder que tinha que enfrentar. Seu batimento cardíaco aumentava sem minha interferência divina. A espada mal chegou a se mover contra mim, seu coração atingiu um ritmo tão frenético que simplesmente parou no melhor da brincadeira. A lâmina caiu, depois o herói, depois a minha esperança por algo maior. Sim, eu devorei sua carne, aproveitei bem todo esse momento, mas me senti mal depois. Meus planos para ele eram muito maiores. Um humano pode chamar outros humanos, talvez se eu deixasse sair um, atrairia multidões até mim. Eu me refestelaria no sangue. Só me resta esperar sozinho aqui até que o mito de Wombar atraia a curiosidade de mais alguém.
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Daqui não saio mais, espero que nunca descubram que fora daqui eu não sou nada.
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O homem pintado de preto sai do barraco. Veste uma cueca preta e percorre uma trilha tentando desviar de galhos e arbustos e animais noturnos. Ele é um predador sem forma, só uma presença na escuridão, unindo-se às sombras como só as silhuetas conseguem se unir. O canto de um animal no cume de uma paineira soa para a noite. O homem pintado de preto para e tenta se comunicar na língua das corujas, mas o bicho não responde.
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Pisa dentro de um riacho e começa a xingar a água. “Que merda”, ele diz. Tem que retocar a maquiagem agora. Ou melhor, a pintura corporal, como ele gosta de chamar. Tira o tubo de graxa para sapato de dentro da cueca e o coloca sobre uma pedra. Tira cueca e meias e seca os pés molhados. Ele fica olhando a cueca preta cair no riacho com aquela incredulidade cansada reservada para situações que parecem não ter como piorar e do nada pioram. Ele então decide deixar a cueca e as meias para trás e pinta os pés, virilha e nádegas com a graxa preta. Caminha até enxergar um ponto luminoso por trás de algumas árvores. É a vizinhança. Ele ouve o som de um motor e a luz de um farol desenha em seu rosto as formas intrincadas dos troncos das árvores. Ouve o som de televisão e uma risada humana. Ele simplesmente sabe que aquela risada é de alguém morbidamente obeso. Evidentemente, ninguém naquela vizinhança se preocupa com seus gramados, porque o matagal denso e pinicante que ele precisa transpor acaba lambendo sua pele e removendo camadas grossas de graxa negra. A casa que ele procura é a menor dali. Paredes de alvenaria cor de pele e janelas marrom cano-de-pvc. Ele pula o muro sem muita dificuldade e se esconde sob uma janela. Dá para enxergar a mãe e o berço na frente da TV. Aquela ali está no
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mudo para não atrapalhar o sono da bebê, que quando está acordada espanta até os mosquitos com sua gritaria psicótica. Hora de retocar a maquiagem. O calor pegajoso faz ele suar em baixo da camada de graxa. Se senta sob a janela e tenta cobrir um pedaço de pele encharcada nas axilas. As costas terão que ficar assim mesmo, porque um tendão teimoso continua a doer sempre que ele torce o corpo. O rosto já perdeu toda a sua definição e seu estômago já não é mais o mesmo depois de digerir tanta graxa de sapato. A mulher agora amamenta a bebê sob a luz azulada e etérea da TV de trinta e duas polegadas, como uma divindade lactante de alguma gravura medieval, vestindo uma camisola rosa com florais azuis, o seio esquerdo parcialmente encoberto pela cabeçona desproporcional da criança e brotando pelo decote arregaçado da camisola. Sua expressão tem ao mesmo tempo um ar divino e cansado. Ali, sentado no jardim daquela casa decadente, ele tem a mesma sensação de quando era criança e voltava para casa depois de um dia cheio de brincadeiras aventurosas, quando tudo o que sobrara do dia agitado eram algumas casas emitindo luzes televisivas pelas janelas. Nos dias de sol as manchas em sua pele pareciam ainda piores, e eram nesses dias que sua mãe o obrigava a entrar em uma pequena cabana de compensado que emitia em seu interior a luz obliteradora de dezenas de lâmpadas ultravioletas, que segundo um artigo de alguma revista serviam para combater o vitiligo. O pai sempre chegava em casa do trabalho alguns
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minutos mais tarde e olhava para aquela criança metida num caixote de madeira reluzente com a expressão derrotada de alguém que está cansado demais para discutir. Ele consegue entender quem dizia que seu pai era um covarde e um irresponsável. O que as pessoas não entendiam era que ele era uma pessoa boa também, apesar da insegurança doentia e de todo aquele tempo passado em silêncio submisso. Um bom homem e um excelente vendedor de móveis usados. O problema era: Muitas vezes ele pagava mais do que os móveis valiam e os vendia por menos do que havia pagado, dependendo da miséria em que se encontrava o cliente. Sua mãe, uma mulher determinada a ver o filho livre do destino genético do pai, tinha acessos de raiva sempre que descobria que o seu marido gastara duzentos reais por uma mesa com os pés carcomidos. “Eles amam seus filhos, como a gente.” Seu pai dissera uma vez, os olhos cheios de lágrimas. “Essas crianças merecem ter uma mesa que não fica soltando cocô de cupim, Simone. É uma coisa quase sagrada. Tu tinha que ver quando eu dei o dinheiro e a mesa nova. O pai tinha um olho bichado e fez os cinco filhinhos dele cantarem noite feliz pra mim. Eu chorei.” “Fresco. Idiota.” A mãe disse. “Tu acha que essas lâmpadas são baratas? Tu acha que é fácil manter meu filho longe dessa tua doença nojenta?” O pai, é claro, nunca tirava as mãos do bolso e nunca mostrava suas pernas, nem mesmo para dormir. Mas as manchas
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estavam lá, a mulher sabia, como um segredo doentio sobre o qual ninguém gostava de falar. Descobrira o gradual embranquecimento do marido apenas duas semanas depois do casamento, quando Simone já estava grávida e a vida parecia estável demais para, de repente, abandonar tudo. O homem pintado de preto agora se move em direção aos fundos da casa, onde ele atravessa uma porta de tela e é recebido por lambidas de um cachorro que não late. Ele está numa cozinha que emana um cheiro doce de mamadeira e talco perfumado. Ouve alguns passos e se encolhe sob a mesa da cozinha. Por causa da ausência de atrito entre seus joelhos e o piso branco da cozinha, é difícil se manter parado. Por sorte o resto da casa é de carpete. A mulher entra na cozinha e enche um copo de água na pia. Ele teme que ela sentirá o fedor azedo de suor e graxa enquanto escreve um pequeno bilhete em papel rosa, que ela pendura com um imã na porta da geladeira. O bilhete diz alguma coisa sobre pastel de carne na geladeira e tem um coraçãozinho com boca e olhos no final. A mulher lava a louça enquanto ele desliza para fora do seu esconderijo em direção à luz da TV muda. Quando finalmente atinge a região acarpetada da sala, o homem se levanta e corre até o berço. Enrola a bebê no próprio cobertor, cobrindo a criança com grandes manchas pegajosas de graxa. Por algum motivo, a bebê arregalada não chora ao ver aquele vulto intimidante se misturando à escuridão da casa. Leva a criança
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para o lado de fora, saindo agora pela porta da frente depois de se certificar de que não haviam vizinhos nas redondezas. Estamos falando de uma vizinhança tranquila, não tão longe do centro da cidade, mas isolada do fluxo principal de veículos e localizada nos últimos metros de uma rua sem saída. As casas ali dividem seu espaço com uma mata densa e selvagem, que avança por sobre quintais e calçadas como uma força vital meio que puta com todo aquele desenvolvimento imobiliário. Portanto, zero movimentação e zero % de chance de um homem pintado de preto ser visto colocando um bebê na grama sob a luz das estrelas. Quando retorna para a casa, a mulher está curvada sobre o berço com uma expressão desorientada no rosto no que ela levanta a cabeça e se depara com aquele negrume vagamente humanoide invadindo sua casa. Ela não grita, apenas arregala os olhos e leva a mão até a boca, deixando cair a mamadeira no chão. O homem sente uma onda de satisfação olhando para a mamadeira e começa a se mover com os braços afastados do corpo, como alguém que busca encurralar um porco. O ritmo da sua respiração diminui e ele não sente mais o calor e a graxa pegajosa, apenas aquele prazer doentio pela caça. Algo que não é bem prazer, mas uma sensação complexa que mora entre a satisfação e a fúria. A mulher só reage quando percebe a expressão demoníaca por trás daquela sombra se aproximando, uma máscara do mal, cujos traços só se revelam quando já estão a um palmo dos seus olhos.
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A mulher então grita e se volta para correr, mas as unhas da mão negra já estão cravadas nos tendões do seu pescoço e escorregam deixando apenas um rastro de sangue enegrecido. A outra mão agarra a camisola e puxa todo o lado esquerdo do seu corpo com tanta força que os braços permanecem por um momento na posição original enquanto o corpo revolve numa velocidade que faz a mulher expelir uma lufada de ar dolorosa. A mulher está com os seios à mostra e gritando e só então ele percebe o pedaço de camisola rosa na sua mão reduzido a um farrapo sujo. O homem tenta duas vezes agarrar o pescoço da mulher, mas deixa apenas umas marcas medonhas de graxa e se contenta em apenas ficar ali parado olhando ameaçadoramente enquanto diz: “Cala a boca.” Três vezes. Ela passa de berros para um choro desconsolado em poucos segundos. Ele dá um leve tapa na cara da mulher, que lança um olhar meio incrédulo como se o tapa fosse a parte mais inaceitável daquilo tudo. “Que horas teu marido chega?” O relógio na parede marca oito e vinte. A mulher ofegante diz que o marido chegará a qualquer momento e ainda por cima o chama de viado (o invasor, não o marido). O homem olha em volta e vê que deixou manchas de graxa por toda a casa. A mulher segue o olhar dele e também percebe a sujeira. “Eu tiro com sabão pra roupas.” Ele diz. Um choro abafado parece vir de algum lugar distante.
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“Onde tá a menina?” Ela diz. “Lá fora, no gramado. Ela tá bem.” “Ela tem quatro meses, cacete.” Alguma coisa muda na expressão da mulher. Ela não parece mais inofensiva e amedrontada, e nem parece hesitar quando decide correr em direção à rua. O homem tenta agarrá-la, mas suas mãos escorregam e ele a segue até o gramado, onde a menina havia parado de chorar ou por estar gostando de ser lambida na cara pelo cachorro silente ou porque a baba espessa estava começando a obstruir suas vias aéreas. A mulher diz “Para com isso” e chuta o cachorro, que sai chorando com a bunda baixa. O homem se ajoelha ao lado da mulher para se certificar de que está tudo bem com a criança. Ele não sabe, mas seu entrenádegas brilha fluorescentemente na escuridão ali onde o tubo de graxa não havia alcançado. Agarra o braço da mulher com as duas mãos e leva ela e a bebê até a casa, onde ele pede para ela se livrar da criança. “Se tu me soltar eu coloco ela no berço.” Ela diz. A bebê olha seriamente para o homem pintado de preto e a mãe diz “éca, sujeira”, o que o ofende profundamente. Ele não gosta de ter sua autoridade ameaçada, então olha a sua volta procurando por algo que possa usar para amarrar a mulher. Tem um pedaço de varal de nylon na área de serviço que de repente parece forte o suficiente, então vai busca-lo enquanto a
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mulher coloca a bebê no berço e canta alguma coisa com uma voz infantil. Quando ele retorna, a situação finalmente se revela excitante e o ritmo de sua respiração começa novamente a diminuir. É para aquilo que ele havia vindo, para o jogo de dominação. Ele fecha os olhos e fica degustando mentalmente a sensação boa da corda de nylon machucando seus dedos. Quando abre os olhos, a mulher está olhando para ele com aquela expressão incrédula de novo. “Tu não vai colocar isso dentro de mim.” Ela diz. É para a sua ereção que ela olha, mas aquilo é normal. Nada sexual, ele tenta explicar, mas a mulher está… Chorando? Ela está exausta, dá para ver. E acima de tudo implora: por favor, não me machuque. Uau. As lágrimas definitivamente parecem de verdade, o que faz ele se sentir um pouco culpado. Tudo o que ele queria era imobilizar ela no sofá, nada mais. A única inconveniência disso tudo seriam algumas manchas de graxa no mobiliário doméstico. Ele diz que a ereção nem sempre é voluntária, nem sempre pode ser controlada, mas ela continua chorando. Ele diz a si mesmo que aquilo é tudo atuação. Tudo para fazer ele se sentir mal. Então dá de ombros e continua amarrando os pulsos da mulher com a corda do varal. Vem de repente a lembrança do seu pai, que havia se enforcado nos fundos da casa com uma corda como aquela e
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deixado uma carta de suicídio, que dizia para ele chamar logo a polícia e não olhar no quintal. Ele deixa a lembrança assentar e faz uma careta para si mesmo quando se dá conta de que o que matara seu pai foi o mesmo tipo de culpa que consumira sua sanidade até ele começar a satisfazer aquele desejo de cobrir o corpo de graxa. A carta se estendia por três ou quatro folhas escritas na frente e no verso, uma lista interminável de motivos para a decepção da mãe, que incluía os genes malditos do pai, sua inépcia para os negócios, a inutilidade de seus gestos solidários e milhares de outras pequenas coisas das quais só o pai se lembrava. Embora nunca tenham sido próximos, nem antes e nem depois de sua mãe fugir de casa, no bilhete de suicídio o pai revelara que tinha um sonho recorrente em que ele via seu filho vivendo uma vida normal em uma pequena casa de classe média com um balanço no jardim, onde sua filha de aparência normal se balançava e era rodeada por um labrador abobado que latia para um nada alegórico como se dissesse: Nessa casa a gente é feliz pacas. Na visão, seu filho está sentado em um dos degraus da varanda tendo seus cabelos acariciados por uma belíssima e radiante mulher loira numa mise-en-scène hollywoodiana claramente influenciada pelos filmes que o pai adorava. Vale destacar que na visão do pai o filho não tinha a pele consumida pelo vitiligo e nem precisava de mil watts de luminescência para cair no sono.
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E então quando ele contou a história do pai para a terapeuta ela disse que a tristeza e o sentimento de impotência que acompanham a frustração sexual são terríveis e podem levar um homem ao fundo do poço. “Por isso você tem que extravasar”, ela disse. Extravasar? Tipo cobrir o corpo de graxa preta e imobilizar mulheres em suas casas? Ele não perguntou isso de verdade, mas a terapeuta assentiu para aquilo que estava em sua mente, como se finalmente oferecesse um consentimento. “Encontrar alguém que te aceite. Uma mulher que entre nessas brincadeiras sem se sentir ofendida. Descarregar essa energia sexual reprimida.” Ela disse enquanto o homem atacava o pote de M&M’s sobre a mesinha. “Uma mulher?” Ele disse e soltou uma risada nervosa. “Uma parceira, ou um parceiro. Você não é o único com fetiches e obsessões. Eles são muito mais que isso. São necessidades. Não seja como o seu pai, que aceitou a rejeição como parte do seu caráter. Não aceitava aquilo que o fazia humano. Foi como se sua mãe tivesse levado com ela toda a dignidade de um homem com suas malas quando ela foi embora.” “Uma mala.” Disse o homem. “Como?”
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“Minha mãe partiu com só uma mala. Eu e meu pai vasculhamos a casa inteira tentando descobrir o que ela tinha levado naquela mala. Mas ela deixou todas as coisas dela pra trás, uma montoeira de lixo que ainda tá lá em casa pegando poeira.” “Pois então. Uma mala contendo a dignidade de um homem.” “Acho que tava vazia mesmo.” A terapeuta assentiu com a cabeça e olhou para a mão lambuzada de chocolate do homem e entregou um lencinho para ele. O pote de M&M’s vazio e o homem limpando a mão no lenço que os outros pacientes usavam para chorar. Deixou o lencinho ali na mesinha mesmo, todo sujo, e aquilo fez ele pensar num papel higiênico usado e logo a imagem de um corpo besuntado da mesma forma, alguma fixação por pele lambuzada de cores escuras reprimida ressurgindo logo ali naquele consultório. A dor que ele sentiu ao ver o dedo limpo, a pele branca encarando-o como uma lembrança ruim do tempo em que sua mãe começou a trancar o caixote de luz ultravioleta com um cadeado e a colocar umas canções de ninar diabólicas em um toca-fitas ao lado da única abertura de ar no topo da caixa. E aos poucos foi aprendendo a aceitar esses problemas irresolvidos envolvendo graxa de sapato não tanto por causa da terapia, mas por que passava de cinco a dez minutos conversando com os outros pacientes da terapeuta enquanto esperava ser chamado para a sua sessão. Esse pequeno
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intervalo de bate-papo livre de restrições morais fez ele conhecer a imensa gama de problemas mentais que acompanham pessoas que foram abusadas emocionalmente e/ou fisicamente em suas infâncias. Conversou com um cara com olhos de insônia e que precisava peidar sempre que ouvia o pio de um canário. Outro só andava com o corpo voltado para o noroeste, morreu uma semana depois atropelado por um ônibus e foi enterrado de lado no caixão. Tinha também um homem vindo de um paísinho da costa ocidental da África que tinha pavor do sistema métrico e foi preso umas nove mil vezes por depredação de patrimônio público por detonar placas de velocidade e distância. Por isso o fato de ele não conseguir obter uma ereção sem estar coberto de graxa passou a ser considerado, por comparação, uma compulsão leve e quase inofensiva, com exceção das erupções cutâneas e a imundície que esse hábito provocava. É esse o raciocínio que passa por sua cabeça quando ele termina de amarrar os braços e pernas da mulher no sofá. Decide acariciar sua pele macia banhada pela luz da TV quando um som agudo e eletrônico soa acima de suas cabeças. O homem se ergue num susto e olha a sua volta, finalmente repousando seu olhar na expressão assustada da mulher amarrada. O som se repete, e só então se dão conta de que aquele é o som da campainha. A mulher vira a cabeça para trás num movimento brusco e o homem faz o som de shhh com o dedo indicador sobre os lábios.
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“Mila? Tá em casa?” Ouvem a voz estridente de Mariele, uma das vizinhas. “Que lambança é essa?” Mariele diz, tocando na maçaneta para investigar as manchas de graxa. Seu rosto curioso e obeso ressurge na janela e enxerga aquela forma negra dentro da casa, seus olhos aterrorizados tentando dar sentido à visão e a boca proferindo silenciosamente alguma coisa que eles não conseguem ouvir. Logo seus olhos deslizam pelo interior da casa e se focam nos contornos de sua amiga amarrada no sofá. Mariele então se afasta com a boca aberta e corre pela vizinhança gritando em pânico um pot-pourri de exclamações diferentes. O homem pintado de preto corre desesperado para os fundos da casa e escorrega no piso da cozinha, caindo de costas e deslizando até a porta de tela onde o cachorro o observa com a cabeça inclinada. A mulher consegue se levantar e olha para o homem pintado de preto deitado no chão da cozinha com uma expressão preocupada. O feitiço acabou. Não há mais prazer naquilo. Ele tenta se levantar, mas parece que tem alguma coisa estilhaçada lá dentro de seu corpo. Há um par de vozes diferentes soando na noite quente, e Mariele continua berrando Socorrajudestuprador e etc. O homem pintado de preto precisa se arrastar alguns metros até seu fôlego voltar e descobrir que ele pode se levantar novamente. Ele cambaleia e manca na direção do matagal denso de onde veio quando sente algo quente na parte de trás da cabeça.
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E então vem a escuridão. “Peguei ele”. Ele ouve e pensa que a voz vem de algum lugar do passado acompanhada da imagem do corredor de sua escola, aquele canto escuro e fedorento onde ele se escondia no intervalo sob cadeiras e mesas velhas tentando passar um dia sem ouvir as provocações. Peguei ele, eles diziam e abaixavam suas calças no meio do pátio superlotado. Tortura diária. A vida adulta é difícil, sem dúvida, mas ele não sabe como sobreviveu à infância. Quando abre os olhos, ainda não enxerga e a voz ainda diz “peguei ele”. A escuridão tem cheiro de grama e é úmida como uma toalha molhada no rosto. O gosto é terroso. Ele vira a cabeça e enxerga uma luz. Há um par de havaianas em dois pés gordos e brancos ao seu lado. Olha para cima e vê um dos moradores do bairro tremendo de medo com o que parece ser uma assadeira de bolo na mão. “Ai meu Deus.” O vizinho diz, dando chutes desengonçados na panturrilha do homem estendido na grama, que tenta se arrastar até os fundos do quintal. Vê que não vai conseguir fugir e se agarra à perna que chuta e usa toda a sua força para tentar desequilibrá-la. A assadeira de bolo cai no chão fazendo um baque abafado no que o homem coberto de graxa tenta escalar usando a bermuda do vizinho como apoio. Tudo o que isso provoca é a revelação das partes íntimas do vizinho, que
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tenta agarrar a bermuda mas acaba se desequilibrando e ameaçando desmoronar sobre o homem pintado de preto. Mariele surge na sala de estar da casa acompanhada de dois homens de pijamas, um armado com uma vassoura, o outro apenas com os punhos fechados e com uma marca de travesseiro na bochecha esquerda. “Onde tá o meliante?” Mariele diz. “Fugiu.” Diz Camila, ainda amarrada no sofá. “Pelos fundos?” Camila assente e os homens correm em direção à porta de tela onde o cachorro está latindo. Param na cozinha e olham para as duas faixas paralelas de graxa que correm pelo piso branco, possivelmente das nádegas do agressor. O gordo agora também está caído na grama tentando segurar em vão as pernas lubrificadas do homem pintado de preto. Ele leva alguns chutes na cara antes de desistir do heroísmo e se levantar cambaleante e sem bermuda. Corre em direção à casa e encontra os outros dois vizinhos saindo pela porta dos fundos. Olham em volta, mas o meliante já desapareceu na escuridão da mata. Em casa, Mariele desamarra os pulsos de Camila e pergunta onde está seu marido. “Não chegou do trabalho.” Mariele solta uma risada curta e debochada. “Que novidade”, ela diz.
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Camila sente um arrepio só de imaginar a tortura que serão as semanas seguintes. Ela será o principal e talvez único assunto das mulheres do bairro. Falarão sobre o crime usando o mesmo tom condescendente e dramático que usavam para fofocar sobre os casos de depressão e violência doméstica que ocorriam silenciosamente pela vizinhança. No final da noite todas as mulheres já estariam bêbadas e admirando o heroísmo de Mariele, olhando para Camila com desprezo e pensando que se ela tivesse uma casa um pouco menos arruinada ela talvez não fosse alvo de um estuprador com sérios problemas mentais. A polícia leva alguns minutos para chegar, dois PMs de farda que parecem ter saído recentemente da adolescência. Um deles é alto e magro, tem uns braços finos assustadores e anda recurvado como se estivesse caminhando sob um teto rebaixado. Ele fala com Camila enquanto o outro policial faz anotações e coça o couro cabeludo sob um boné que está apenas apoiado em cima do cabelo. A voz de Mariele logo monopoliza a discussão e começa um discurso reciclado sobre feminismo e sobre a irresponsabilidade do marido de Camila, que passa umas vinte horas por dia no trabalho enquanto a mulher fica ao relento por aí sendo estuprada. Camila diz que não foi estuprada e que ela não quer fazer o B.O. “Tu é louca?” Grita Mariele. Camila não responde. O policial alto para ao lado do berço e pergunta por que a bebê está toda suja.
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“Ele a pegou no colo.” Diz Camila. “O invasor?” Pergunta o policial. Camila assente com a cabeça e Mariele solta um gritinho que é mais um suspiro exagerado e coloca a mão na boca. “O meliante tentou sequestrar seu filho, senhora?” Diz o policial. “Não, ele colocou a bebê lá fora, no quintal.” O outro policial não faz mais anotações e está olhando a dispensa da cozinha fixamente e ajustando disfarçadamente algo dentro de sua calça. Ouvem a aproximação de um carro e Camila sabe que é Gabriel com a caminhonete velha do trabalho porque quando ele puxa o freio de mão o carro faz um estalo alto que parece uma ratoeira gigante sendo desarmada. Gabriel atravessa a porta aberta da casa com a expressão pálida e intensa de alguém que acabou de presenciar uma morte violenta. Ele coloca sua mochila lentamente no chão e é orientado pelos policiais para se sentar e tomar uma água enquanto eles explicam o que acabara de acontecer com sua esposa. Quando terminam, Gabriel chora abraçado no pescoço de Camila, que retribui acariciando o ombro do homem grande e cansado. Mariele revira os olhos e pergunta onde ele estava enquanto sua mulher era estuprada. “Eu não fui estuprada.” Diz Camila.
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“Sim, graças a mim. O negócio dele já tava de fora.” Gabriel não sabe o que dizer. Camila é o seu alicerce e ele beija seu rosto sujo de graxa. Pega a bebê no colo, também imunda, e beija seu rostinho vermelho e amassado. Abraça Camila e diz que a ama, mas ela não responde, consciente da presença de Mariele e dos policiais e um pouco envergonhada. Ele parece um garotão na puberdade ali ajoelhado ao lado da mulher, chorando como se fosse a vítima. O policial pede perdão por interromper e diz a Gabriel que sua mulher não foi estuprada e que ela também não quer fazer um B.O. “Síndrome do que isso aí?” Diz Mariele. “Aquela doença que faz a vítima se apaixonar pelo estuprador.” “Bom, se ela acha melhor não fazer o B.O…” Diz Gabriel. “Seu inútil. Não é à toa que ela prefere passar a noite com um sequestrador besuntado de graxa.” Mariele diz. O policial gordo ainda não conseguiu posicionar corretamente aquilo que ele manuseia dentro da calça. “Não diz isso, Mari.” Gabriel diz. Camila percebe que as coisas não estão indo bem, mas está tão cansada que prefere não se intrometer. Os policiais parecem impacientes, olhando para os lados esperando por uma oportunidade para voltarem para o ar condicionado da viatura.
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“Tu não faz a mínima ideia do que é ter o corpo violado, não é?” Mariele diz. Gabriel encolhe os ombros e abaixa a cabeça. “Minha recomendação é que tentem se acalmar e deixem para resolver essas pendengas amanhã.” Diz o policial. “Como não houve abuso físico, não é preciso fazer o corpo de delito.” “Bom.” Diz Mariele. “Você diz que não houve abuso físico, mas olha pra ela.” Todos olham para o rosto de Camila. O policial gordo sai de perto da dispensa e tira a mão do saco. “Ela parece um pouco abatida”, ele diz. “Não podemos fazer nada se a vítima prefere não apresentar queixas.” Diz o segundo policial. Ele se afasta de costas em direção à porta e diz para Gabriel e Mariele: “Procurem se acalmar. E limpem essa bagunça. Liguem se precisar.” Os policiais deixam os três naquela escuridão que suscita sono e desânimo. Mariele senta ao lado de Camila, abraça-a e pergunta a Gabriel se ele pensa em deixar sua filha coberta de baba canina e graxa negra potencialmente tóxica. Gabriel carrega a menina para o banheiro, de onde se ouve ele cantando para a bebê e o barulho da água inundando o piso do banheiro. Camila sente-se tensa e envergonhada pelo marido. Olha para a TV muda e começa a chorar. Mariele a abraça mais
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forte, achando que a TV havia desencadeado esse choro reprimido, o choque finalmente se desprendendo do corpo. “Acho que é hora de você ir embora.” Diz Camila, tentando se desvencilhar do abraço da amiga. “Ah. Mas já?” “Desculpa, mas eu tô cansada.” “Claro. Já vou.” Diz Mariele, se levantando. “Tem certeza?” “Tenho.” “Tá bom, qualquer coisa liga, tá?” Mariele vai embora e antes que Camila possa ir ajudar Gabriel com o banho da filha, ela está dormindo e babando e sonhando com a aproximação de uma tempestade medonha. Ela está olhando pela janela da sala para nuvens negras e tempestuosas que se parecem com enguias gigantescas se erguendo sobre a pacata cidade, e ela não consegue tirar os olhos da janela, literalmente, presa na sua posição por aquela paralisia tão característica dos sonhos ruins. A sensação de solidão é desconsoladora e ela fica parada no mesmo lugar esperando com uma certa expectativa pelo momento em que a janela ficará negra e toda a casa escura será invadida pelas enguias negras assassinas que descenderão dos céus como braços demoníacos para levá-la para casa. Camila acorda antes de a tempestade atingir o seu ápice e leva quase um minuto para se dar conta de que o sol já havia
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nascido e de que ela havia dormido no sofá da sala. Gabriel caminha silenciosamente pela cozinha preparando o café quando passa pela porta e vê os olhos de Camila semiabertos voltados para ele. “Já acordou?” Ele diz. Camila solta um grunhido afirmativo. Ela nunca se sente bem falando logo que acorda, então fica em silêncio ali deitada sob um trapézio de luz solar que ilumina o seu corpo do pescoço para baixo. Gabriel sente uma onda de satisfação ao ver que ainda acha Camila uma mulher bonita, ainda mais bonita do que na noite passada, quando colocou o edredom sobre ela e sentou-se ao seu lado pensando em como às vezes a vida podia ser simplesmente boa mesmo no meio de tanta merda. “Quer um café?” Ele pergunta e recebe como resposta um grunhido indecifrável. Dois pássaros conversam na varanda. A casa cheira a pó e café, e Gabriel sente um arrepio menos causado por frio real do que pelo toque do sol em sua pele. Os olhos de Camila estão inchados e úmidos e parecem sorrir. Gabriel vai até a cozinha e traz duas xícaras perfumadas de café preto com a quantidade certa de açúcar em cada uma. Levam uns cinco minutos olhando um para o outro, para as nuvens de poeira se erguendo na luz do sol e para o interior vermelho e quente de suas pálpebras antes de alguém dar um primeiro gole.
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Camila vê que Gabriel quer falar alguma coisa. Depois de tanto tempo, Camila sabe quando ele se sente mal por ter feito ou deixado de fazer alguma coisa. Ela deixa a situação ficar desconfortável e decide quebrar o silêncio: “Lembra daqueles vizinhos que moravam nas terras do Seu Lídio e cuidavam da horta lá de casa?” Gabriel parece surpreso. Não só pelo súbito início daquela conversa, mas porque ele consegue se lembrar do casal de idosos que moraram naquelas terras vazias por dois verões seguidos. “Lembro sim. Dois velhinhos com cara de índio.” Diz Gabriel. “Eles não falavam muito, mas trabalhavam que nem uns escravos.” Ela continua. “Nós tomávamos banho de riacho e comíamos maçãs sentados no colchão que minha mãe colocou na edícula da churrasqueira. Lembra? As maçãs que esses dois velhinhos colhiam pro Seu Lídio em troca de moradia.” Camila diz que eles devem estar mortos agora, esses dois velhos, enterrados um ao lado do outro em algum campo por aí. Gabriel concorda. Sua xícara está quase vazia, mas ele ainda não está preparado para ficar sem café. Não agora. Ele quer que aquele momento dure para sempre e que a história de Camila nunca chegue ao fim.
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“Já te falei que um dia eu conversei com a velha? Só eu e ela?” “Acho que não.” Diz Gabriel. “Foi umas duas ou três semanas depois do aborto e as coisas não estavam boas entre nós. A gente ia se mudar pra casa que meu pai comprou, e aquela certeza começou a me deixar desesperada, sabe? Na hora eu não sabia se era o aborto ou outra coisa, mas enquanto eu tava lá sentada, vi aquela mulher colhendo maçãs num pomar imenso e comecei a chorar. Consegue imaginar isso? Consegue imaginar eu toda vulnerável na frente de uma índia velha que provavelmente sofria mais em uma semana do que eu havia sofrido a vida inteira?” Gabriel não conseguia imaginar. Camila era forte. Mais forte do que ele. Havia erguido ao seu redor uma barreira emocional que a tornava propensa a ignorar certas convenções e limites sociais, interagindo com os outros com uma honestidade que às vezes era interpretada como frieza ou insensibilidade. Era uma mulher que não jogava conversa fora e, no geral, parecia que bastava tropeçar para ter um ataque de raiva. Era por isso que a visão de Camila deitada no sofá da sala parecia tão pura, tão fora do lugar, como uma pintura na parede bolorenta de uma garagem. “Então ela veio até mim, perguntou o que tinha acontecido.” Camila diz. “Contei tudo. Falei sobre o aborto. Sobre meu medo de ter uma vida branda, sem graça, o medo de não
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ser capaz de esquecer. Comecei a contar até coisas que eu nem sabia que sentia, como se ali naquele pomar fluísse alguma coisa lá do fundo da terra que fazia o choro e as palavras saírem. Então perguntei se ela não se arrependia de ter vivido a vida inteira na servidão. Se ela não sentia que tava desperdiçando tempo ali naquele pomar.” Camila não parece mais cansada. Ao contrário, mesmo deitada, está alerta, olhos vidrados no teto, esforçando-se para contar aquela história com perfeição. Gabriel não ousa olhar no relógio, embora saiba que está atrasado. “A velha ignorou aquele papo sobre desperdiçar tempo e disse que muitos anos atrás um caçador acertou o filho dela na coxa quando ainda viviam em tribo. Deixou o filho dela sangrando até a morte nas margens do riacho de onde vinha a água que eles bebiam. Desde então, o marido dela não conseguia ficar muito tempo num mesmo lugar. Precisava se afastar do local da morte do filho mais rápido do que a água com o seu sangue conseguia se espalhar pelo mundo. Eu não sabia o que dizer, além de que aquilo era loucura. A velha concordou, mesmo eu não tendo falado nada. Ela disse que sabia que era loucura, mas mesmo assim nunca havia se questionado e seguiu o marido de fazenda em fazenda, de trabalho em trabalho. E apesar da pobreza, sentia um arrepio toda vez que via o marido tomar um gole de água e abrir um sorriso grande e dizer que aquela água não tinha o gosto do filho. E era dali que vinha a felicidade, ela disse.”
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Gabriel não sabe o que dizer, apenas coloca a xícara vazia sobre a mesa e continua olhando para Camila encarando o teto. “Quando eu disse a ela que o problema era eu, que depois do aborto o tempo não parecia passar do mesmo jeito, ele parecia jorrar, como algum vazamento desgraçado. Quando eu disse isso e que tinha medo de talvez não encontrar a felicidade como ela, ela disse que então não sabia que porra eu tava fazendo ali, desperdiçando meu tempo num pomar. E foi embora.” Gabriel solta uma risada. Olha no relógio e vê que está atrasado. Camila sorri, percebendo o alívio na expressão do marido. Conversando numa segunda-feira pela manhã, como se não tivessem uma lista de obrigações que parecia aumentar à medida que o tempo ficava mais escasso. É como antigamente, apenas os dois sozinhos no mundo, seguindo os ensinamentos de dois índios nômades. Nesse momento a bebê começa a chorar no quarto, despertando o casal da nostalgia. Camila faz menção de se levantar, mas Gabriel diz para ela esperar mais um pouco. Ele se esquece até mesmo das suas costas arrebentadas e diz que tem que se vestir para ir trabalhar. “Que horas são?” Diz Camila. “Ainda é cedo, umas sete horas.” Gabriel mente. Ele se afasta até o quarto do casal, onde a bebê histérica chora no berço. Camila ouve as roupas do marido caindo no
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chão e o choro logo dá lugar ao silêncio. Camila se ergue um pouco no sofá e vê que Gabriel está dançando peladão em frente ao berço, algumas manchas de graxa e um hematoma roxo do tamanho de um prato de sopa se sobressaindo naquela nudez pálida e fantasmagórica do vitiligo. Gabriel balança os quadris e os braços como se estivesse tendo uma convulsão epiléptica e a risada da bebê soa baixinho e contente. Gabriel diz alguma coisa sobre uma cueca perdida no riacho e sobre comprar cortinas para a sala, mas Camila não ouve. Ela está ocupada demais se sentindo a melhor mulher e mãe do mundo e protegendo a cara daquele sol quente e alto que diz que nem a pau é sete horas.
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SABE O QUE É UM BEIJO BOM? Tatiana A. Valvassoura
Sabe o que é um beijo bom? Vou te dizer o que é o beijo bom! É aquele cheio de desejo Onde o encaixe é perfeito Que deixa você, sereia, molhada E você, marujo, duro
Sabe o que é um Beijo Bom? - Tatiana A. Valvassoura
De tesão daquele beijo! É aquele onde você tenta entrar no outro Juntando o corpo Prendendo Com um abraço cada vez mais apertado Intenso! Vem um calor lá de dentro E você, mergulhado naquele beijo Se perde em todo o desejo A mente viaja Some, desaparece Vocês já não estão mais ali! Beijo bom é aquele que te faz sumir Para algum lugar distante daqui E quando digo sumir Não é só a mente Porque o corpo pede o sumiço Para um lugar mais tranquilo Onde o beijo possa deslizar Para outras partes do corpo seu Corpos entrelaçados Molhados, suados Em movimentos rápidos Até terminar no apogeu
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Sabe o que é um Beijo Bom? - Tatiana A. Valvassoura
Que começou Com um simples beijo Que você deu!
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ATO Luiz Mariano
Nietzche: -Faça! Agora! Nui: -Você está louco? Recolha-se a si próprio. Você sabe, Mouro, que não se deve seguir sempre os instintos. Pense bem antes de fazer.. F.. Gleiser: -Estou com Nietzche. Acho que Mouro devia fazer. As possibilidades de dar certo são maiores.
Ato – Luiz Mariano
Nietzche: -Muito bem, Gleiser! Embora esse teu nome seja o fim da picada. E, aliás, como cientista eu sou muito mais o Einstein. Gleiser: -Perdão por desapontá-lo. Coringa: -Já acabaram? Posso assar minhas batatas fritas? Brando: -Lá vem o idiota. É por causa dele que perdemos muitas mulheres em baladas. Mouro: -Calma lá, pessoal. Vamos nos ater ao essencial... Nietzche: -Essencial! Essencial! Tu não acabou de ver que a antropologia ri na cara do essencial!? Seu essencialoide! Magus: -Morra, Nietzche. Râni: Alguma cabeça para degolar? Ótimo. Mouro: -Peraí, pessoal... Milton: -Isso dá samba. Mouro: -Peraí... Quéops: -Estão todos nervosos. Precisam de uma mão de ferro para governá-los. Mouro: -Peraí, porra! Link: -Tô com medo! Mouro: -Calma, guri. Gente, vamos ouvir? Lembrando que eu mando aqui. Gin: -Oi?
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Ato – Luiz Mariano
Mouro: -Isso mesmo. Aqui, quem manda sou eu! Muito bem, recapitulando. Estou em dúvida se ajo ou não. Por isso, convoquei essa reunião. Está todo mundo aí? Nietzche: -Obviedades, obviedades. Vai adiantar alguma coisa? Você sempre acaba decidindo por conta própria, e é sempre refém do seu medo, ou como você diz, “princípios”. Não à toa, termina antes mesmo de começar... Mouro: -Terminou, Nietzche? Nietzche: -Nunca. Coringa: -Suazilândia na Patagônia. Mouro: -Certo. Bem, onde estávamos? Nietzche: -Aliás, já falei: como religioso, eu preferia a Teresa. Esse Nui aí é muito sem graça. De onde você é, afinal? Nui: -Da Ilha de Páscoa. Nietzche: -Uau! Praticamente uma Atenas. Coringa: -Coelhinho, coelhinho, que trazes pra mim? Um ovo, dois.. Magus: -Eu acho que você devia se matar, Mouro. Não tem como permanecer são, assim. Gin: -Você é louco? Ah uma surra, não?! Râni: -Posso trucidar o Magus agora mesmo, se você quiser, senhor. Mouro: -Não Râni, tudo bem... guarde sua selvageria para outro momento.
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Ato – Luiz Mariano
Brando: -Eu acho que seria uma boa fazer sexo antes de tomar uma decisão. Gleiser: -É uma hipótese plausível. Há chances de que ele fique relaxado. Mouro: -Gostei da ideia. Quéops: -Não dá tempo. Temos que decidir logo. Nietzche: -Sempre tem um responsável pra estragar a brincadeira... Milton: -Poderíamos compor algo! Pintar. Boas ideias podem surgir disso, e não toma muito tempo. Um desenho, e a mente viaja. Link: -Podemos brincar! Brincar e esquecer, deixar o tempo passar! Nui: -O menino pode ser perigoso nesse momento, senhor. Nietzche: -Você está com medo de um menino? Coringa: -“Há um menino, há um moleque”... Milton: -Ei! Gleiser: -Isso se configura como plágio. Brando: -Se sexo não dá tempo, bater uma é rapidinho. Sites pornôs estão aí pra isso. Nui: -Perversões que só desviam o homem. Mouro: -Acho, só acho, que estamos fugindo do assunto.. Quéops: -Muito bem. Você quer decidir se faz ou não faz. Que tal fazer uma votação?
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Ato – Luiz Mariano
Mouro: -Boa ideia! Nietzche: -Meus ateus, “Quéops”. Cadê o Gengis Khan? Francamente, “Quéops”!? Quéops: -Cuidado, filósofo. Posso mandar meus soldados prendê-lo. Nietzche: -Ai que meda! Gleiser: -Isso também se configura como plágio. Coringa: -Dança da manivela... Mouro: -O problema da votação é que somos em 12. E se der empate? Voltamos ao impasse. Nui: -Aí você deixa Deus decidir. Gleiser: -Não é uma perspectiva muito inteligente devotar uma decisão numa entidade que muitos sequer acreditam que existe. Mouro: -Eu sei, mas... Link: -Quero chocolate! Mouro: -O que você acha, Brando? Como diz num lugar que li, “o que o amor faria?” Brando: Sexo. Link: -Ui! Coringa: -Trinta melões e quarenta vaginas. Râni: -Estou perdendo a paciência. Tô começando a ficar com vontade de quebrar alguma coisa. Magus: -Só se for agora.
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Ato – Luiz Mariano
Quéops: -Com todo o respeito, senhor, mas acho que você devia dar a decisão para mim. Um rei sabe o que deve fazer. Gin: -Acho que aqui somos seus consultores, meu amor. Teus ajudantes. No fim, quem tem que decidir é você. Nietzche: -Quem deixou essa mulher falar? Gin: -Eu mesma. Vai encarar? Râni: -Essa eu gostei! Nietzche, mexe com ela e vou te fazer sofrer. Devagar. Mouro: -Muito bem. Eu quero saber a opinião de cada um. Um de cada vez. Pod.. Nietzche: -Faça agora! Mouro: -Certo. Queres defender teu argumento, Nietzche? Nietzche: -É muito simples. Se você não fizer, você é um covarde. Covarde. Você não gosta dessa palavra, não é? Pois é isso que você será: um covarde. Mouro: -Próximo. Gin? Gin: -Acho que você não devia fazer, meu amor. Você sabe, pode ser uma coisa da qual você vai se arrepender... Mouro: -O que você acha, Milton? Milton: -Eu diria para você fazer uma obra de arte. Vão-se os genes, ficam-se os memes... Mouro: -Boa. Brando? Brando: -Faça. Porque o fazer tem algo de desvirginar o desconhecido. Se embrenhar no matagal de uma boceta bem molhada.
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Ato – Luiz Mariano
Nietzche: -Meu garoto! Mouro: -Quieto! Gleiser, você já disse que é para eu fazer. Mantém seu voto? Há mais algum argumento a favor de sua decisão? Gleiser: -Veja, meu caro Mouro: a ciência caminha através da tentativa e erro. A moral, por sua vez, é subalterna da especulação. Faça, e ficas aliviado; não faça, e não saberás jamais a sensação. Nui: -Em nome de Deus, não faça, Mouro. Deus não quer. Seu anjo da guarda também não quer. Cristo, não faça! Mouro: -Nui, você sabe que não acredito em anjo da guarda... Nui: -Isso é mero detalhe! E o que é pior, você reza para ele! Ele tem até nome! Mouro: -Sim, mas eu acomodo essa oração para que caibam as boas ações, as pessoas. É uma maneira metafórica de dizer... Nietzche: -Credo. Quanta volta pra se agarrar numa crença inútil. Quéops: -Vamos voltar à votação, pessoal? Mouro: -Obrigado, Quéops. Qual o seu voto, por favor? Quéops: -Uma decisão difícil. Em nome de todos, eu decidiria por não agir. No entanto, acho que você deveria compensar essa não ação com algo que apaziguasse os elementos discordantes, como o filósofo Nietzche e Magus, a sombra.
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Ato – Luiz Mariano
Nietzche: -Não vão me calar! Nunca me calarão! Mouro: -Depois solucionamos isso, Nietzche. Obrigado, Quéops. Link? Link: -O que é pra fazer? Mouro: -...Decidir se agirei ou não. Link: -Qual é melhor agora, nesse exato momento? Mouro: -Agir, mas... Link: -Eu quero agir! Eu quero ação! Mouro: -Certo... Râni: -Com licença, senhor. Eu acho que você não deveria agir. Mouro: -Você!? Râni: -Sim. Mouro: -Posso saber a razão? Râni: -Claro. O que, nesse momento, é mais difícil? Não agir. Ora, eu prefiro enfrentar o melhor combatente. Portanto, voto para não agir. Nietzche: -Covard.. Râni: -Termine. Termine de falar o que você ia dizer. Nietzche: -Eu? Não estava falando nada, homem! Mouro: -Vocês, calma lá. Estamos quase acabando! Magus? Râni: -Magus? Niezche: -Ele não quer falar.
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Ato – Luiz Mariano
Mouro: -Magus, por favor. Seu voto é importante. Eu prometo escutar até o fim. Prometo. Magus: -Morra. Vá até a janela e se mate. Nada de se acovardar. Você sabe que a vida não tem sentido nenhum. Agir, não agir. O que é isso? Poeira. Você é um merda, um nada. O que isso mudará? Você solucionará os problemas da humanidade? Aliás, ela merece isso? Estupradores merecem isso? Ninguém dá a mínima. Então, não decida. Simplesmente se mate. Somente assim, alcançará a paz. A paz, tranquila, bela, silenciosa. A paz. Mouro: -... Nui: -Recomponha-se, senhor. Estamos todos aqui, não queremos que o senhor morra. Nietzche: -Quem sabe? Se bem que morrer deve fazer mal à saúde. Râni: -Cale-se! Coragem, senhor. Lembre-se da família, sua mulher... viver tem seu valor, sim. Um bom dia, que seja. Vamos. Falta o último. Reaja, homem! Mouro: -Estou bem, pessoal. Muito bem. Vou computar o voto do Magus como... Magus: -Meu voto é: aja. Mouro: -Certo. Obrigado pela contribuição, Magus. Coringa, seu voto? Coringa: -Na dúvida, é bom lembrar que o documento do word ia escrever dívida, e você escreveu “dúdiva”, e mesmo
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Ato – Luiz Mariano
com cobrinha vermelha embaixo, eu acho que você devia plantar abóbora. Mouro: -O seu voto é pra eu agir? Coringa: -Luz, Câmera, Ação! Mouro: -Vou computar como sim... Muito bem pessoal, foram seis votos para agir. Meu voto é para não agir, o que dá o famigerado empate. Sendo assim, o que eu resolvo? O que vou fazer? Agir ou não agir? Fazer ou não fazer? É chegada a hora de decidir, e como me custa tomar essa decisão! No entanto, chega. Decidi.
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DOS MEUS DEVANEIOS, VOCÊ Tatiana A. Valvassoura
Estava ali distraída Quando Te vi passar! Moço de barba grande De olhos vibrantes e sorriso contagiante Confesso que meu olhar se perdeu Não tirava os olhos dos seus! Te despi por inteiro
Dos Meus Devaneios, Você – Tatiana A. Valvassoura
Imaginando como seria os beijos seus! Sorria sozinha Sem graça Achando que você perceberia Os devaneios meus! Lenhador, de camisa xadrez Queria que você fosse meu! Ali mesmo, no sofá, na cama Foda – se a vergonha que me deu Na saída, aproveitei a multidão E foi naquele esbarrão Que te encarei E em um momento de delírio Abri a boca e te disse: Você ainda será meu!
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NEM TUDO SÃO FLORES! JoeFather
Quando eu era pequeno meu pai me ensinou que existiam duas maneiras de fazer tudo na vida. Eu optei sempre pela mais difícil. Por quê? Minto dizendo que não faço ideia. Na verdade costumo dizer que deve ser porque gosto de sofrer ou...
Nem Tudo São Flores! - JoeFather
Ou as maneiras mais fáceis nem sempre são as mais corretas. Um belo exemplo disso foi quando comecei a namorar pela primeira vez, na casa dos dezessete anos, com uma garota linda de dezesseis. O que mais eu ansiava era pelo sexo, mas, por uma questão de postura e respeito para com a mesma, decidi agir como um cavalheiro e ela me chutou. Seis meses depois estava grávida de outro. Descobri, por A + B, que a perdi por respeitar demais, fato confirmado por uma amiga dela. Não teria sido muito mais fácil me deixar levar? Na escola tentei fazer inúmeras amizades, mas na maioria das vezes preferia ficar sozinho, devorando grossos volumes de ficção. Quantas vezes não fui tomado por um cara estranho e assim, sem querer, ia afastando os colegas, que só se aproximavam de mim para obter ajuda. Por que eu me aprofundava tanto em meus sonhos de olhos abertos e me isolava dos demais? Nas empresas que trabalhei o fato se repetiu. No campo profissional eu interagia muito bem, mas quando o assunto caia para o lado pessoal, eu sempre era esquivo ao extremo, dando sempre preferência aos meus assuntos e passatempos pessoais. Festas de confraternização, churrascos, longas bebedeiras em bares, nem pensar. Tudo isso não fazia parte da minha agenda. Será que eu achava que tinha uma cultura superior à de todos que me cercavam?
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Nem Tudo São Flores! - JoeFather
Mesmo depois de casado, todo o relacionamento externo seguiu o mesmo padrão, mas tive que tentar aprender a me dividir, a dar um pouco da minha atenção para alguém que não fosse somente eu. Tentei, tentei, não consegui e, claro, o divórcio chegou, como era de se esperar... Seria o egoísmo uma das minhas “qualidades”? Demorei a entender que sempre agi desta forma por isso fazer parte de mim, do que eu sou e, quando cheguei a esta conclusão, aprendi a me aceitar. Mesmo hoje, sendo chamado de Doutor pela maioria, um título do qual não me acho merecedor, a velha frase do meu pai sempre ecoa em minha mente: existem duas maneiras de se fazer tudo na vida... — Doutor Mathias, o vereador Jarbas deseja lhe falar. — No telefone ou pessoalmente? — Ele está aqui na recepção — Mande-o entrar, Clarisse. Obrigado. Onze de agosto, o Dia do Advogado, e o meu primeiro presente é um político. Bom, segundo presente, minha doce secretaria Clarisse, um verdadeiro achado, já havia me dado com um belo vaso de tulipas, minhas preferidas, e uma irresistível caixa de bombons. — Como vai, Doutor? — Deixe de lado o Doutor. Vou bem, muito bem, sente-se.
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Nem Tudo São Flores! - JoeFather
— Você parece mais alegre hoje, alguma programação especial? — Nada de mais, processos e mais processos, uma infinidade deles. — Até parece que foi ontem, Mathias. Lembra-se do colégio, o quanto a gente aprontava? Você ainda parece o mesmo rapaz, enfeitado com alguns cabelos grisalhos na lateral da cabeça. Creio que ele nunca me conhecerá de verdade. Nunca estudamos na mesma classe e o máximo de contato entre nós foi um esbarrão maldoso da sua parte, no corredor da cantina. Será que devo dizer isso a ele? — Você, meu caro vereador, está mesmo com a aparência de alguém com 50 anos... — Sempre esqueço que o Doutor não tem papas na língua... — Perdoe-me a sinceridade, mas não é crítica, é um elogio. Os homens não devem aparentar exatamente o que são? Eu sabia que esse olhar de fuzilamento viria, hoje mais rápido do que o normal. — Pensou na minha proposta? — Qual delas? — Abandonar esse escritório e advogar exclusivamente para a Câmara? — Vocês já tem um excelente advogado por lá.
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Nem Tudo São Flores! - JoeFather
— Ora, não seja ridículo, ele não passa de uma ameba crescida demais, para todos os lados. — Não penso assim, ele já se saiu bem em diversos trabalhos. — Você continua sendo ridículo Mathias, falta muito para que ele chegue ao seu patamar. — Ou será que lhe falta mais decoro profissional? — Pra quem? — Estávamos falando do seu advogado? — Ah, lógico, lhe falta muitas qualidades, por isso que eu e os colegas insistimos tanto para que aceite esse cargo. Como gostaria que ele pudesse entender que eu jamais aceitaria esse cargo. Vai contra os meus princípios e nem é a minha principal área de atuação. — Jarbas, já falamos inúmeras vezes sobre isso e a minha resposta continua sendo a mesma: não me enquadro nas expectativas que vocês, nobres edis, tanto desejam. — Queremos somente que você faça o melhor por nós, Doutor, e isso é a sua maior virtude. Lembre-se: ótimos honorários o aguardam por lá! — Não são os valores que discutimos que me desagradam, meu caro, mas serão as condutas que terei de tomar. — Mas é só seguir as Leis...
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Nem Tudo São Flores! - JoeFather
— E as interpretar em favor dos meus clientes. Sim, esse é o meu encargo público, mas prefiro continuar advogando para a minha atual clientela. — Insisto Mathias, não existe diferença entre cá e lá... Se eu não falar agora, terei um treco, alguém segure a minha língua. — Existe toda a diferença do mundo, vereador Jarbas. Aqui eu determino quais serão meus clientes e as causas a serem defendidas. Lá eu estarei amarrado ao compromisso de representar ou ao menos chefiar todos os componentes da Casa. — E isso implica em que? — Implica que eu gosto de tomar as minhas próprias decisões, ser meu próprio chefe... — Clientes são clientes. — E advogados são advogados... — Você torna tudo mais difícil do que é. — Pois é, assim pensava também meu finado pai... — Deus O Tenha, foi um grande homem – Ele disse com a mão direita sobre o coração. Foi mesmo, o melhor de todos que conheci, com suas qualidades e defeitos. — Você o conheceu? — Não, somente de nome... Foi o que pensei.
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— Que pena, vocês se dariam bem! Ele jogava xadrez como um russo, falava alto como um italiano e gostava de viver como um brasileiro... — Não mude o foco, Doutor! Você não pode reconsiderar a minha proposta? Precisamos do melhor no comando do nosso setor jurídico. — Agradeço muito pela consideração, Jarbas. Por favor, faça com que esse meu agradecimento chegue aos demais edis, mas tenho outras metas para o futuro. — Última palavra? — Sinto muito. — Bom, como é que você diz mesmo? Aquela sua frase... — Nem tudo são flores! — Disse rápido, interrompendoo. — É verdade. Mas não esqueça, a proposta continua valendo, caso mude opinião. — Assim como a minha porta sempre estará aberta a novos clientes. — Desde que você aceite defendê-los... — É claro vereador. Passar bem. Como tudo em minha vida, de forma planejada construí uma sólida carreira de advogado, pautado no princípio de poder defender aqueles cuja causa eu considerasse justa. No começo da minha profissão, quando optei pela advocacia criminal, como rege o Código de Ética e Disciplina da
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Ordem de Advogados do Brasil, sempre tive o cuidado de não cometer um deslize sequer, manchando assim uma carreira que queria seguir até o fim da vida. Eu sabia muito bem, através da mídia, como andavam as ações dos vereadores no meu município, em diversas esferas, e não queria correr um risco desnecessário, apesar das pressões referentes à minha contratação, sempre cogitada por anos a fio. Poderia haver um momento em que essas insistências se tornariam insuportáveis e eu não dispusesse de mais um pingo de paciência para lidar com a situação, correndo o risco de me tornar uma pedra no sapato de algum poderoso senhor da cidade e assim angariar inimigos. Bom, deixemos para o futuro as consequências dos meus calculados princípios. Seis meses depois o futuro reservou uma mudança da minha postura em relação a Jarbas, situação na qual me coloquei por livre e espontânea vontade. O mesmo vereador, agora correndo risco de cassação, se encontrava detido em cela especial na cadeia local, acusado de tentativa de homicídio, e no aguardo de uma audiência em júri popular. O descompromissado advogado que o defendia lavou as mãos e abandonou o caso, alegando envolvimento pessoal. Numa tarde como outra qualquer sua esposa me procurou no escritório e conseguiu me convencer a defendê-lo.
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— Ele precisa do senhor — Ela começou dizendo com os olhos molhados. Era uma bela senhora, na casa dos 40 anos, corpo esguio, educada, fina mesmo. Impossível relacioná-la com o príncipe em forma de sapo, sem abusar do sarcasmo, de como eu definiria o seu esposo Jarbas. Fiz um gesto para que prosseguisse. — Foi tudo uma armação, ele não fez nada! — Sra. Jamile, preciso ser sincero: Todos dizem isso! — Não! Ele não fez nada mesmo. Só bebeu um pouco demais. Nós dois bebemos. Depois caímos no sono, deitados nas cadeiras em volta da piscina. Havia mais três casais conosco, todos colegas vereadores do Jarbas. Qualquer um poderia ter entrado na chácara e disparado contra mim, depois chamado a polícia. — A senhora chegou a entrar em coma por dois dias e estava embriagada, como pode ter certeza que ele não atirou, tomado por uma insanidade qualquer? — Ele me ama, jamais me faria mal algum, eu sei disso. Ela enxugou uma lágrima com um lenço de papel que lhe forneci. — E, além do mais, que motivos ele teria? — Diga-me a senhora! — Nós dois temos muito dinheiro. Viemos de famílias abastadas. Não tenho nenhum seguro milionário em meu
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nome. Jamais sequer pensei em traí-lo com outro homem, amo o homem que ele é, da maneira como ele é. — E quem mais poderia querer lhe matar? — Não tenho inimigos. A única explicação seria alguém tirá-lo do caminho por questões políticas, mas isso não tem lógica. É seu último mandato. Ele está abandonando a carreira para se dedicar a arte, sabe, ele é um exímio pintor. — Não conhecia esse dom do Jarbas. Bem, na verdade pouco sei do seu marido. A senhora terá que fornecer todos os mais íntimos detalhes que souber de ambos e a partir desse momento começar a ser totalmente honesta comigo. — Já estou sendo sincera com o Doutor... — Desculpe-me contradizê-la, mas não está! Tenho anos de experiência com todos os tipos de pessoas e a senhora oculta algo. — Em relação a o que eu poderia mentir? — Ao fato de nunca ter traído seu marido. No momento em que falou olhou para as mãos e desviou o olhar... — Foi por pura timidez. O Doutor é muito bonito e tem os olhos mais azuis que eu já vi. — Agora que estamos começando a ficar mais íntimos, me chame de Mathias. E não se preocupe, sei que não está mentindo, só usei de um pouco de manipulação para deixá-la mais à vontade. Agora me conte tudo, todos os detalhes daquela tarde. Cada vírgula é importante.
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Depois de 30 minutos sem que mais nenhuma novidade surgisse a dispensei. Precisava falar com Jarbas, caso fosse aceitar o cargo. Toda a história narrada por ela me levava para um quebracabeça perfeito, sem nenhuma peça faltando. A Sra. Jamile, a vítima, apesar de envolvida com o suspeito, seria a testemunha perfeita, até demais. Passava uma sinceridade que ia além do normal. Na cadeia, depois da rotina para liberação de visita, facilitado pelo meu conhecimento de longa data com o delegado, pude ter algum tempo de privacidade com Jarbas, um sujeito arrasado. — Que bom que veio, Doutor. Falei para Jamile que o amigo seria minha única chance. — Se você não é culpado, qualquer bom advogado dará conta de lhe libertar. — Mathias – disse ele quase sussurrando — Armaram pra mim! Somente um excelente advogado como você vai encontrar uma maneira de me livrar. Por mais que eu não tenha nenhum motivo, também não tenho nenhum álibi. Estava deitado segurando um revólver no colo, enquanto Jamile sangrava ao meu lado. — Sei de todos os detalhes. Ninguém ouviu nada, foram todos para o outro lado da chácara, enquanto vocês descansavam. Quando chegaram e viram a cena, chamaram a ambulância, que veio acompanhada pela polícia. A perícia constatou
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que ninguém modificou a cena do crime. O tiro foi disparado pela arma que estava presa à sua mão. Foi constatado vestígio de pólvora em seus dedos… — Calma, homem! Jarbas chorava como uma criança, chegando a soluçar. Por um momento tive vontade de abraçá-lo. Creio que foi isso que me motivou a lhe defender. — Tenha calma! Farei tudo que puder para livrá-lo daqui. Vamos começar com um habeas corpus e tirá-lo da cadeia. — Obrigado, Mathias — Ele conseguiu dizer entre os soluços. Três dias depois Jarbas estava livre, aguardando o julgamento em liberdade. Nunca sofrera um simples processo nas costas, tinha residência fixa e pleno desejo de colaborar com a investigação. Eu me esforcei ao máximo para buscar uma solução para o seu caso, mas quando me vi num beco, às vésperas de comparecermos ao tribunal, propus a Jarbas que tentássemos um acordo com o promotor do caso, para abrandar a sua pena, no que ele foi categórico: — Prefiro a decisão do júri e a batida do martelo. Jamais vou admitir que atirei em Jamile, jamais! Com essa sua decisão tudo ficou mais difícil. No dia da sessão fiz uma das atuações mais brilhantes de que tenho lembrança. Chamei sua esposa para testemunhar, ele próprio,
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os envolvidos diretos que participaram do incidente, outros amigos de longa data. Pintei um quadro de inocência perfeito, recheado por um amor pleno, mas “chovi no molhado”. Nenhum dos meus argumentos tirou da mente dos jurados a visão das fotografias do corpo da vítima e a do revólver com o acusado. Tentei ao menos convencê-los de que foi um ato impensado, de uma pessoa fora de suas condições normais de raciocínio, pois se tivesse a clara intenção de matar sua esposa, teria então atirado em sua cabeça ou no seu coração, não em sua barriga. O juiz o condenou a cinco anos de prisão em regime fechado, por tentativa de homicídio, com todos os direitos a redução da pena prevista em Lei. Fiquei muito abatido com a decisão, mas Jarbas me agradeceu, em meio a um abraço desconcertante. — Você é um grande amigo e um excelente advogado. Vou lhe confessar algo: eu menti! — O que você quer dizer com isso? – disse enquanto o policial encarregado de conduzi-lo se aproximava. — Eu nunca tinha ouvido falar do seu pai, mas tenho certeza de que ele teria orgulho do filho que trouxe para esse mundo. Quem diria que alguém conseguiria arrancar um sorriso de meu rosto de forma tão fácil e num momento igual a esse, onde por dentro o sofrimento chegava a doer.
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Foi a última coisa que Jarbas viu da minha pessoa, uma cabeça balançando negativamente com um sorriso bobo na face. Uma semana depois, numa aparente confusão na penitenciária para onde ele foi enviado, alguém lhe tirou a vida. Creio que perdi o único amigo de verdade que eu fiz na vida, mesmo isso ocorrendo de forma tão inesperada. E justamente quando eu começava a aprender a fazer as coisas da maneira mais fácil. Nunca tive certeza do que de fato aconteceu com ele na prisão, cuja investigação não levou a nada, nem do verdadeiro culpado do disparo contra Jamile. Mas uma desconfiança se apossou de mim algum tempo depois, quando recebi uma pequena correspondência, que por algum motivo tinha certeza de que viera para a pessoa errada, pois vinha do Canadá e não conhecia ninguém que residisse ou estivesse de férias por lá. Só notei que estava enganado ao constatar que se tratava de uma devolução de correspondência que não chegara ao seu destino. Era um envelope simples, com inúmeros selos cobrindo quase todo o seu lado esquerdo, e diversos carimbos azuis. Mais pela curiosidade do que por qualquer outra razão, o rasguei com cuidado e retirei de lá um cartão fino com uma única frase digitada no centro, enquanto belos desenhos de tulipas enfeitavam as bordas. Fui para a delegacia. Não foi constatada nenhuma digital na correspondência e na central dos Correios fui informado que a
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Nem Tudo São Flores! - JoeFather
carta não foi entregue diretamente no balcão de atendimento, mas coletada numa das diversas caixas de armazenamento próprio para envelopes que existiam na cidade, em diversos bairros afastados do Centro. Devido a um controle interno, conseguiram descobrir até o bairro onde a carta foi colocada, mas nenhuma testemunha do fato surgiu após a divulgação do fato na mídia. Assim encerrou-se o último capítulo da minha pequena amizade com o agora finado Jarbas. Sua esposa eu nunca mais vi, mudou-se para bem longe. Bem que gostaria de encontrá-la qualquer dia desses para lhe perguntar se em algum momento seu marido havia lhe mencionado a minha frase preferida, a qual por algum motivo estava impressa naquele bilhete. Prefiro ainda acreditar que tudo não passou de uma brincadeira, que acabou se tornando uma despedida, pois como é fácil de constatar, na vida nem tudo são flores...
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FALTA Victor Magalhães
Ele foi, e que falta me faz Um amor como esse não esqueço Não é mero ardor no começo: Antes arde até o fim da minha paz. Em vão está sendo sonhar A locais onde sempre o encontro Eu confesso: não sei se estou pronto Pra sofrer sempre que acordar.
Falta – Victor Magalhães
Tudo bem, as coisas têm fim! Sê feliz e sorri para outros Privilégio arrogado a poucos Concedido que fora a mim Ei de viver o que vier Sem olhar para trás Fé que o tempo faça o que faz E desfaça o quanto puder! Esquecer-te, um dia, eu queria.... Se me lembro, porém, por um instante Como eu era feliz teu amante A saudade é que acaba a poesia.
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RIO ABAIXO J. D. Amorin
I Em 1910 a pequena cidade de Don Inácio era um pouco mais do que algumas dezenas de casas, a igreja Matriz (ainda pequena, não mais que uma capela), o cemitério e a praça Dolores Cintra onde acontecia todos os anos a Festa do Congado. Fora isso a população daquele amontoado de residências se espalhava pelas fazendas dos três coronéis: Seu
Rio Abaixo – J. D. Amorin
José Ferreira, Dr. Calixto e Coronel Bichart. Todos os três, durante as festas do congado, usavam os melhores ternos de congo da região e faziam questão de abarrotar as mesas e barracas com prendas e boa cachaça. A cidade ficou famosa pela qualidade da festa e por mais um fator: os duelos de violeiros. Quando as doze badaladas se davam na igrejinha e as moças de bem com suas famílias já se tinham recolhido a muito, uma multidão de peões, jagunços, comerciantes e violeiros se reunia no coreto e só o som do pontilhado rasgava a madrugada. Esse som, recheado das mais diversas emoções, encantava quem ainda não tinha sido pego pelo sono e trazia, aos sonhos de alguns meninos, amores perdidos, fazendas salvas e tantos outros temas comuns naquela época. Numa casinha pequena, à beira da igrejinha, dormia um menino magricela, mulato e esperto. Passava a noite ali para não subir à fazenda de Seu Zé Ferreira, longe demais da cidadezinha. Ali, que era residência do sacristão, o menino sonhava em também tocar viola e ser um dos que levavam o anel de Santa Cecília. O anel era um presente do Coronel Bichart, que apaixonado pelo instrumento mandara fazer, de puro ouro, um anel com a imagem da santa. Dava também dois contos de réis, um cavalo bom e uma viola nova. O menino se deliciava com esses prêmios e sonhava em se tornar um violeiro.
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Rio Abaixo – J. D. Amorin
O garoto, conhecido por todos como Tonho, cresceu. Trabalhou com o pai na lida do gado da fazenda. Aos dezesseis anos comprou sua primeira viola e ao lado dos calos deixados pelo trabalho surgiram os do instrumento. Mas era frustrante, ele não conseguia a velocidade dos violeiros mais antigos e nem a qualidade. Todos diziam que ele ainda tinha muito tempo para progredir e que levaria anos. Mas a paciência não era uma das virtudes de Tonho e seu gênio explosivo já o colocara em situações complicadas. O garoto tomava uma cachaça no final de semana, na folga que tinha lá no bar do Zé Galinha. Ficava no canto, remoendo uma forma de conseguir melhorar em tempo recorde, ter seu anel, sua viola e comprar uma terrinha com os contos de réis. Estava perdido nesse sonho quando, dois jagunços, nunca vistos naquelas bandas, apearam do cavalo e já dentro do bar pediram cachaça. Os dois homens recendiam a suor e, pela poeira no gibão e na capa, deviam estar na estrada há vários dias. Tonho observou os dois com cuidado, do canto onde estava. Debaixo da pesada capa de viagem do mais alto pendiam pistolas, um facão de boa qualidade e também havia uma faca longa, boa para destrinchar caça. O homem mais baixo, no entanto, apesar de estampar brutalidade nos seus olhos parecia menos feroz, tinha também uma pistola na cintura, mas ao retirar a capa a batina se mostrou. Os homens no bar imediatamente fizeram fila para beijar a mão do estranho sacerdote,
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Tonho seguiu os demais. Ao pegar na mão do padre o garoto estranhou os calos em contraste com a delicadeza usual dos sacerdotes que conhecia, os olhos dele também não expressavam bondade ou candura, mas sim dureza. Eram os olhos de um jagunço. - Calma meus filhos - disse o padre - Não é necessária tanta formalidade. Que a graça e a paz de Deus Pai Todo Poderoso, o amor de Seu Filho, Jesus Cristo e a benção de São Bento, Dominador dos Demônios, recaia sobre vocês em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. – Ao terminar o sinal da cruz os homens voltaram para seus afazeres. O padre se dirigiu ao dono do bar: – Filho, poderia contar com sua ajuda? – o sacerdote abrandou o olhar, quase como o de um padre comum. – Mas é claro, o que vosmecê precisá pode pidi. Num há negativa pra Vossa excelência. – O sotaque do interior mineiro contrastava com a fonética impecável do sacerdote. – Que bondade a sua. Vejo que temos um cristão temente aqui. Eu e meu auxiliar estamos a procura de uma figura nefasta. Um sacerdote que se voltou contra as práticas da Santíssima Mãe Igreja e fugido veio para este lado das Gerais – Zé arregalava os olhos em torno do que o padre falava. Era certo que todos ouviam, mas ou se faziam de surdos ou preferiam esquecer. Tonho era curioso demais para deixar passar o que ouvira. – E Vossa Excelência teria como descreve ele?
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– Claro, filho. Tem a minha altura, cabelos e barba grisalha e o que mais chamará sua atenção é a cicatriz que vai da boca à orelha e a corcunda, ao lado esquerdo. – Devo avisar o pároco se vosmecê já não estiver aqui? – Sim, farei uma visita a sua igreja e avisarei ao pároco. Só peço que tenham cuidado, este homem lida com o inimigo em si, pode oferecer maravilhas mas iria lhe custar a alma. Os homens tomaram a cachaça e compraram alguns mantimentos, charque, queijo e milho. Teve-se notícia dos dois passando na igreja de Santa Teresinha e partindo no mesmo dia. Tonho ficou a matutar sobre os dois durante vários dias. Que espécie de padre bebia cachaça e andava com pistola e jagunço. Ele com certeza não parecia com o finado monsenhor Pompeu, o primeiro pároco, um português de pulso firme, e nem com o Padre Gabriel. Esse, nem mesmo parecia padre. Um sujeito de mão macia e bigode escovinha, que retirou Seu Juvenal como sacristão e trouxe um rapazola loiro da capital. Os dois andavam sempre tão juntos que havia quem jurasse que eram próximos como namorados. Mas Tonho não se importava com isso. Nem à igreja gostava de ir. Não entendia patavinas, o ritual dava-lhe sono e o martelar do órgão irritava seus ouvidos acostumados ao doce som da viola. Numa dessas andanças com a viola, em uma tarde de domingo com o céu de ameaça de chuva, o mulato sentou-se aos pés de um ipê amarelo. Tirou a viola do saco e deu a treinar.
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Não mais que alguns minutos haviam passado e ele percebeu, na beira da estrada, uma figura já curvada pela idade montada em um jumentinho. O garoto parou o ponteio e a figura aplaudiu. – Mas dá gosto ver alguém se esforçando tanto! – disse o homem que já apeáva do jumento. – Muito agradecido – Tonho respondeu se levantando e encostando a viola no tronco do ipê. Os dois caminharam para se encontrarem. O jovem com tranquilidade e o estranho em misto de dificuldade e excitação. Ao se aproximarem a dois passos um do outro a figura mirou o sol, que se levantava à esquerda do campo, mostrando só o perfil em uma imitação da figura nas moedas de réis. -- Tarde – Disse Tonho acanhado. Apanhou um pouco de capim, e iniciou um trabalho de parti-lo. – Tarde – Respondeu o sujeito enquanto Tonho levantava os olhos e verificou que o homem era um velho. Pelas roupas um mascate – Vosmecê tem uma ótima mão direita, mas a esquerda não ajuda muito, não é mesmo? – É, isso mesmo. Mas com o tempo eu melhoro. – ele continuava a pegar capim e a despedaçá-lo. – Dizem, bom isso lá no Mato Grosso, que se você em uma noite de lua cheia, em uma encruzilhada deixar uma cascavel andar na sua mão direita e uma coral na esquerda o Tinhoso dá procê o dom de tocar viola.
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– Diacho! E quem é o bistontado que vai querer ganhar alguma do Cão? – Tonho levantou a cabeça ofendido com a história. Podia não ser chegado a igreja, mas não queria e nem iria fechar acordo com o Tinhoso. Ele olhou firme o velho que ainda admirava o sol. O velho sorriu um sorriso cheio de dentes amarelos e virou o rosto para o mulato. Do outro lado a cara do velho mantinha um sorriso macabro com uma cicatriz grossa que repuxava a pele do canto da boca até a orelha, atrás dela uma corcunda sobressaltou quando ele aprumou o corpo. Tonho não teve dúvida e desatou a correr mais do que jamais pôde ou do que jamais conseguiu. Passou a mão na viola deixando o saco para trás. Ouviu o velho gritar atrás dele, parecendo estar bem na sua nuca: – Ele não é tão mal assim, Tonho. Essa cicatriz quem me deu foi a Santa Sé. Ele só me trouxe paz! – Tonho correu até a fazenda e chegando na sua tapera desatou a carrear o terço aos pés da imagem de Santa Teresinha. II Dois anos tinham se passado e a situação em Don Inácio quase não mudára. Em uma cidade pequena pouca coisa muda. Houveram algumas mortes, com a mulher do Coronel Bichart, o seu Juvenal, ainda chamado de Juvenal sacristão pelo povo,
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o Seu Zé Ferreira e também o pai de Tonho. O mulato que só tinha o pai no mundo ficou sozinho. No começo o trabalho tomou a cabeça de Tonho. Era o primeiro a chegar o último a sair, depois ele se empertigava aos domingos na casa de lupanar. Mas Tonho se tornou um homem bonito e alto. Mantinha um impecável bigode e o seu corpo era desenhado pelo trabalho desde moleque. Quando não estava na lida mantinhase com a roupa digna de igreja e sorria com fartura aos passantes. Os atributos de Tonho não passaram despercebidos pela viúva de seu finado patrão. Dona Lucinda era jovem e não tinha ainda vinte seis anos. Casara-se com Seu Zé Ferreira após a morte da primeira esposa dele. O pai dela tinha várias dívidas com o português e diziam que ela foi o preço para a quitação. Enquanto o marido era vivo D. Lucinda tratava a família como nobreza, mas as coisas mudaram após o falecimento de Seu Ferreira. Ela não recebia mais o pai, a ordem era de não deixar nem ele nem o irmão entrarem na fazenda. Na calada da noite mandara os jagunços buscarem a mãe já adoentada para viver com ela. Mandou recado a cada comerciante e fiador de que seu pai não estava sobre suas graças e que as dívidas que tivesse deveriam ser arcadas por ele e só por ele. Como Seu Zé Ferreira não possuía filhos ela reinava absoluta sobre a fortuna do português e queria também desfrutar de certo empregado.
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A primeira vez que D. Lucinda chamou Tonho para deitar consigo esteve mais para uma emboscada do que para convite. Sabendo pelas conversas das criadas que o mulato banhava-se sempre na cocheira das Velhas, D. Lucinda armou o encontro casual. Esperou na mata até que Tonho subisse as pedras para o mergulho, entrou na água já despida. Suas mucamas deixaram cestos e outros utensílios como se elas estivessem colhendo ervas e tivessem parado para se refrescar. D. Lucinda esperou na parte mais próxima a queda d'água dificultando a visão para quem olhava de cima da cachoeira. Quando Tonho emergiu após o mergulho deparou-se com D. Lucinda nua. Não é preciso dizer o que aconteceu. Passaram a se encontrar na cachoeira e também na casa da fazenda. A vida do aspirante a violeiro ia bem. Era mimado pela mulher mais rica da região, tinha outras amantes entre as criadas e era estimado pelos trabalhadores. Mas a sorte não costuma sorrir por muito tempo para quem tem calos nas mãos. Perto de completar um ano da morte do marido começaram os boatos sobre a viuvez prolongada de D. Lucinda. Uma mulher tocar uma fazenda de gado sozinha, lidar com o dinheiro e com os banqueiros começou a assustar os homens da região. Aconselhada por padre Gabriel D. Lucinda começou a arquitetar uma saída para o falatório. Tonho ficou sabendo do noivado da amante pelas criadas. O mulato ficou cego de raiva, subiu as escadarias da casa da fazenda e invadiu a sala encontrando D. Lucinda e seu noivo,
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um janota, com ares de rapaz moça: Pedro, filho do Coronel Bichart. – Então é verdade. Meu jasmim vai mesmo se vender a esse frozô? – Tonho sentara no sofá como se fosse dono da casa. Pedro levantou-se tentando manter a compostura, mas na realidade o tamanho do mulato o amedrontava. – Em primeiro lugar, Antônio, levante-se! – A voz de D. Lucinda era fria, comedida e num tom claro – Você não tem autoridade para sentar-se à casa grande. Trata-me por “Senhora” e não pelo que seus devaneios lhe ordenam. – Minha senhora – Interrompeu Pedro, a voz grave não era delicada – Decerto devia perdoar o rapaz. Vê-se que nutre afeição por vosmecê – Olhou com o desdém que o medo de Tonho e do facão a sua cintura permitiam e dirigiu-se ao mulato – Não sei que fantasia mantêm em sua cabeça, mas lhe aviso, que qualquer boato que espalhar sobre minha noiva cobrarei como se deve. Tonho era só ódio. Respirou três vezes tentando aplacar a ira, mas ela era mais forte, dominava seu sangue. Olhou para aquele projeto de homem, baixo, delicado, usando mais cores que os trajes de Santo Reis e então não pôde mais, sua língua se soltou. Levantou-se e disse: – Boato, acha que são boatos, conversinha de currutela, seu coronelzinho de meia pataca? Não são boatos que vi cada pedaçim do corpo de sua noiva nas nossas idas a cachoeira da Velha.
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– Antônio! – D. Lucinda corou. Tonho não sabia se por raiva ou por lembrar-se das tardes na cachoeira. – Meu jasmim, eu não vô ficar calado! Mas também não vô ficar observando esse circo, já lhe vi montar cavalos mais espertos que esse aí! – Pedro deu alguns passos na direção de Tonho e foi recebido com um soco que lhe pôs ao chão cuspindo um dente. – Já chega, ponha-se pra fora da minha fazenda até a noite ou meus jagunços o porão! Tonho olhou uma última vez para os olhos castanhos de D. Lucinda, apanhou o chapéu e retirou-se. III O mulato já havia guardado seus pertences. A noite ia caindo. Na falta de ter um cavalo, Tonho seguiu a pé a estrada que levava de Don Inácio a Passos e as cidades do sudoeste. Caminhar fazia bem a Tonho, ele conseguia se acalmar e pensar na burrada que fez. Agora teria que deixar a região em que cresceu. O jeito era tentar seguir o trabalho em outra fazenda da região, o mais longe possível. Pensava na loucura, o velho Coronel Bichart nunca deixaria passar uma ofensa ao filho, mesmo que ele fosse frozô. O rapaz não estava mesmo errado. Ali , no meio da estrada , com a péssima iluminação do lampião ele conseguiu distinguir a silhuetas de três homens a
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cavalo e mais dois a pé. Um frio subiu pela espinha, mas mesmo assim o rapaz foi ao encontro dos cinco, sabia que eles o estavam aguardando. Ao se aproximar identificou as figuras à cavalo, mas não as outras. Estavam o coronel, seu filho Pedro e Matoso, o capataz. Matoso era um paraíba de feições duras, mas o rosto sempre barbeado lhe dava uma feição jovial. Tonho já havia bebido algumas pingas com ele na casa de lupanar. O coronel, um inglês alto que se mudara para Don Inácio há quarenta anos atrás, estava em um cavalo escuro. Sua barba hirsuta, quase branca, dava um ar solene. Podiam ouvir sua respiração curta na noite. Ele tirou o chapéu e entregou-o para Matoso. – Boa noite, Tonho. – o sotaque ainda era carregado apesar das décadas no Brasil. – Noite, Coronel Matoso – Acenou levemente com a cabeça – Bom vê-lo, Seu Pedro. – Tonho, eu gosto de você, sabe? Você é menino esforçado, mas parece que minha família não agrada você, no é ? Bate no meu filho, desrespeita minha futura nora, this is a shame boy, vergonhoso isso. O violeiro engoliu a seco. Não tinha medo do frozô, mas seu pai era diferente. O coronel não tinha medo de ser duro. Seu Ferreira era o único que ele respeitava já que o turco quase nunca dava as caras pra nada. Tonho percebeu o frozô rindo, faltava um canino.
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– Veja, Tonho, meu menino vai precisar de dente de ouro. Tudo porque você achou que o pussy de D. Lucinda era seu... – Daddy... – interrompeu Pedro. – Shut up, Pedro! Coward! Isto é conversa de homem adulto – O rosto do coronel ficara vermelho. Ele respirou novamente, de forma curta, e passou a mão esquerda pela barba – Bem, eu sou um homem racional. Vejo que tem uma viola, no é?Ok, se tocar e eu gostar, pode ir. No punishment, sem castigos. O que acha? – Confio em sua palavra, coronel. Nós podemos acordar assim. Tonho colocou o saco com seus poucos pertences no chão, tirou a viola do saco de lona onde a levava e afinou as cordas. Tocou o primeiro acorde. Cheio, afinação cebolão. Começou com uma sequencia de acordes leves, acelerando aos poucos, foi acrescentando uma melodia comum, mas bonita. Acelerou o pontilhado, alternou com harmônicos e ao fim de alguns minutos terminou em um acorde menor. O coronel olhou para Tonho durante alguns segundos, apeou do cavalo, Matoso o seguiu. O inglês bateu algumas palmas sem muito vigor e olhou com pesar para Tonho. “Morto”, ele pensou. – Sabe, vejo que você tem treinado. Good. But it's not enough. No é suficiente! – Tonho sentiu o golpe atrás do joelho, seguido de um soco no rosto. Matoso era rápido. Os outros dois jagunços seguraram Tonho pelos braços, o coronel
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calçou um par de luvas e começou uma série de socos firmes em Tonho. O olho direito inchou, o supercílio abriu. Tonho ouviu Pedro apear do cavalo também. – Agora pegue o alicate, Pedro! – ordenou o coronel. – Se o senhor me permite, daddy, tenho uma ideia melhor – Tonho percebia o movimento ao redor . O coronel olhou curioso para o filho. – Ele parece gostar muito do instrumento, vamos garantir que não toque mais. – Gostei! – havia um sorriso na escuridão. – Os dois, estiquem os mãos dele on the floor. – os homens olharam confusos uns para os outros - No chão!!!! – esbravejou o coronel – Blood hell! – O mulato teve suas mãos colocadas no chão bem a frente do corpo, e os braços esticados. Não conseguia ver o que estava acontecendo, a luz fraca do lampião não dava margem de ajuda, foi quando sentiu a primeira pancada, no indicador direito. Seguiram-se duas a essa no mesmo dedo, Tonho ouviu o osso estalar. Os gritos dele poderiam ser ouvidos da fazenda. Um a um os dedos dele foram quebrados e só pouparam os polegares. O violeiro estava mole. O corpo suado, mal enxergava com o olho direito. Colocaram sua viola no chão, Matoso pisou sobre ela e jogou o lampião em cima a incendiando. – Agora estamos quites. Pode ficar em Don Inácio se quiser, mas longe dos meus olhos – O coronel, Pedro e Matoso subiram nos cavalos e se foram.
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Iluminado apenas pelo fogo dos restos de sua viola Tonho desmaiou. IV Havia no ar cheiro de café coado. Sentiu também a erva cidreira, arnica, guaco e malmequer. As mãos estavam doloridas, enroladas em pedaços de pano. No olho direito havia um emplasto. Dali vinha o cheiro de arnica e malmequer. O local era escuro, mas ele viu o vulto de uma mulher no fogão a lenha. Ela olhava para ele. – Ocê cordo, meu fio! Que bão, já tava percupada por demais com a durmição que ocê tava – Tonho fez menção de levantar – Levante não, minino. Vô levá café procê – a senhora levou uma caneca de barro com café até o violeiro, o café estava morno, mas gostoso, forte e doce. Ela colocou um prato com broa de fubá. Olhou pra ele tocando a testa do rapaz com as costas da mão e começou a retirar o emplastro do olho. O olho já estava quase sem inchaço e pôde ver melhor sua salvadora. Era uma senhora já de cabelos brancos, a boca sem os dentes de baixo, mãos fortes, mas delicadas, e mancava um pouco da perna esquerda. Havia um cheiro doce, jasmim, que vinha da senhora. – Obrigado – A voz estava rouca – Não tem como agradecer. Qual é a sua graça?
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– Ê minino, nome é um trem tão desimportante – Riu baixo – Mas todo mundo nesse arraiá e fazendada me chama de Vó Nenê. Se ocê quiser pode chamá tamém. – Obrigado, Vó. Como eu vim pracá? – Uai, foi por Deus, fio – Ela arrastou o banquinho para perto da cama onde ele estava – Foi por Deus, fio, só pode. Eu vinha vortando de um parto ca pas banda donde ocê tava e apercebi oce disfalecido na beira da istradinha. Pensei: ”Pobrezin, preciso da um jeito nele sô.” Ai, cuma certa difircurdade eu ponhei ocê na carroça e trosse pracá. Tratei desses dedo e do oio. Só num dei jeito na viola, ela era só cinza. – Deus te dê em dobro, Vó. Agora, eu preciso seguir meu caminho – A mão firme de Vó Nenê segurou o mulato. – Ocê me descurpa, fio, mas ocê num vai não. – Mas... – Maisi, nada. Escuta a Vó. Eu andei assuntando nesses dia que ocê tava aqui e descubri que lá donde cê vei eles ainda querem judiá docê. Fica aqui, dexa a pueira passa, adespois cê vorta. A frase da velha senhora morreu em um sorriso. Tonho foi ficando, pagou a bondade de Vó Nenê com trabalho. Arou a terra, cuidou pra que ela tivesse uma horta fácil de manter. Comprou uma vaca de leite com o pouco dinheiro que sobrara de Don Inácio. Pegava algumas boiadas para tocar lá pelo lado
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de Mato Grosso, passava mais tempo na estrada do que na casa da senhora. Foi então que começou a ouvir as histórias. Historias de como D. Lucinda e Pedro Bichart haviam transformado as fazendas em potência na região. Que D. Lucinda estava prenha do primeiro filho, que o coronel morrera numa queda de cavalo e que Pedro havia aumentado o prêmio dos violeiros para oito contos de reis em homenagem ao pai. A viola. A viola era o que mais machucava Tonho. Em cada estrada, em cada pouso, toda tropa, em todo lugar ela estava. Algumas vezes trazida pelas mãos de um santo, que deixava um rastro de tranquilidade e alegria. Em outras, nas mãos de um demônio que ridicularizava Tonho, mostrando que qualquer zé ninguém podia tocá-la, menos ele. Ele que sonhava com a textura das cordas, com o cheiro da madeira, que sentia a diferença entre um pontilhado mineiro de um goiano, do mato-grossense e do paranaense. Ele que conseguia ver a beleza das que jaziam mortas, sem cordas, empenadas, esquecidas tanto quanto das recém criadas, novas em folha. Os anos passaram e Tonho ia e vinha das Gerais. Agora era dono de tropa e levava gado de Minas a Mato Grosso. Nesses tempos sua tropa ficou conhecida como a “Tropa do Antônio Aleijado”. Uma tropa bem paga, sem briga ou mau feitio, mas sem música. Tonho proibia qualquer instrumento. Quebrava ele mesmo qualquer violão, viola, cavaquinho ou tamborete que aparecesse. Nesses tempos também ganhou como paga de
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divida um pedaço de terra na sua amada Don Inácio. Fez questão de arranjar a casa de lá, construir pouso e fazer do lugar uma passagem para descanso da sua tropa e tantas outras. Para isso mandou chamar Vó Nenê e deu liberdade de dona para a mulher que salvou sua vida. Em algum tempo o pouso Santa Cecilia era referência de lugar pacífico e primoroso para quem viesse atrás de trabalho ou de ajuda. Vó Nenê arranjava trabalho para quem precisava e cuidava dos doentes. Tonho numa dessas viagens acabou voltando sozinho. Havia passado em Ribeirão Preto para pegar um cavalo como parte de um pagamento e tinha por intenção voltar montado no bicho. Para ter mais segurança voltou acompanhando a linha do trem. Don Inácio ficava entre as cidades de Cássia, São Sebastião do Paraíso e Passos. Os dias foram tranquilos nessa vinda. Tonho gostava do barulho da mata e não tinha medo de nada, seja natural ou não. Saiu do caminho da estrada após passar por Paraíso, o caminho a partir dali era comum pra Tonho. Lembrou-se do pai, do tempo em que ele fazia aquele caminho com o gado de Seu Zé Ferreira e de como vinha tocando a viola e seu pai cantando as músicas da folia de Reis. Em uma certa parte do caminho o mulato estacou, segurou firme na sela e percebeu que estava na estrada onde lhe quebraram os dedos. Engoliu seco, mas seguiu firme. Filho de Manoel Jacinto não ia arregar por aquilo. Após algumas curvas na estradinha ele tornou a estacar. Havia um ipê vermelho no meio da encruzilhada, o ar estava parado, quase quente.
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Aquela árvore o encarava. As imagens e a dor voltaram em onda para Tonho, um desejo de vingança o invadiu como o estouro de uma boiada. Cheio destes sentimentos ele forçou o cavalo a sair da estrada e cortou caminho pela vegetação até o pouso Santa Cecília. Foi direto ao curral, tirou a cela, encheu o cocho de água e colocou um pouco de capim na baia. O mulato entrou na casa e pediu para uma das meninas que Vó Nenê acolhera para aquecer um bocado de água e encher a banheira no quarto dele. Tonho enrolou um cigarro de palha e foi até a varanda que circundava a casa toda e, sentado em uma cadeira de balanço, fumou enquanto observava a mata e o céu do início da noite. – Ocê parece ditá cansado, fio – A voz rouca e as vezes falha tirou o peso dos ombros de Tonho. Ele se levantou, segurou uma das mãos daquela senhora e beijou com carinho. – A bença, minha vó. – Deus ti bençõe – Ele viu o sorriso desdentado dela – Conteceu arguma coisa? Cê parece mexido. – Passei por aquela estrada sem querer, vó. Tinha um ipê vermelho bem donde eles me pegaram, senti um aperto no peito, mudei de caminho e vim pracá. – Ocê devi di tá cansado, fio. Não exesti ipê vremeio, tem branco, roxo, rosa, mas vremeio não tem. Ocê andô muito chão, deve de se isso. Quer que a vó benze ocê? – Claro vó, sempre.
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Vó Nenê separou as ervas e começou a benzeção. Após alguns minutos Tonho já se sentia mais leve. Ainda havia aquela sensação de ser seguido, mas isso era comum pra um homem que já foi emboscado, a precaução passa a ser sua amiga. Logo a menina foi até a varanda avisar que o banho de Tonho estava pronto. Ele se despediu de Vó Nenê, pediu a benção e foi até seu quarto. O quarto de Tonho não era luxuoso, a cama de casal já estava lá quando eles se mudaram e Vó Nenê deixou assim. Havia um criado mudo de cada lado, uma cômoda em frente a cama, a banheira ficava beirando a janela, com um banquinho ao seu lado e havia uma porta que dava para a varanda. Tonho tirou a roupa, tendo a dificuldade costumeira com os botões e deixou a faca e a pistola no banquinho do lado da banheira. Entrou deixando os músculos relaxarem na água já morna. Depois de algum tempo cochilava. “Ele estava sentado à sombra do ipê, era jovem de novo e tocava a viola. Sentia as cordas ásperas cederem à pressão dos dedos da mão esquerda e a vibração causada pela mão direita que atacava em ritmo compassado. Parecia que o ar se enchia com aquele som, trazido por ele, sem astúcia, sem trapaça, honesto e limpo. Percebeu pelo canto do olho um vulto se aproximar. Ainda tocando virou-se para o lado da estrada e viu um homem envolto em uma capa preta, usando um daqueles chapéus de janota. Trazia um embrulho as costas. Com a proximidade, Tonho
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percebeu olhos muito verdes e um cavanhaque bem feito, ao estilo dos imigrantes italianos. O homem sorria. – Que bom que consegui lhe encontrar – A voz era grave com alguma rouquidão. – Vosmecê vai me perdoar, mas não conheço o senhor – Havia um certo cuidado na voz de Tonho, como se toda a confiança construída nesses últimos anos tivesse escapado e ele realmente fosse o garoto inseguro de novo. – Ah, que isso Tonho, meu velho. Nós nos conhecemos há tanto tempo, praticamente te vi crescer. Na verdade, vi tudo acontecer – Sorriu – Essa sua viola não é muito boa, é? – Não é das melhores, mas é boa – “Por que estou respondendo a um estranho?”, pensou ele. O sujeito tirou o embrulho das costas, ao abrir o saco de veludo escuro sacou uma viola, novinha, com as cravelhas de madrepérola, a madeira em um tom vermelho, o cavalete era moldado no formato de um par de asas, e em volta da boca haviam arabescos, preenchidos com uma madeira escura, na mão, grafada em letras cursivas, havia a palavra Desiderium. O sujeito ofereceu a viola para Tonho. – Tente nessa meu rapaz, ela pode realizar todos os seus sonhos – O sorriso novamente. Tonho pegou a viola desconfiado, colocou a que usava deitada sobre o capim. Aconchegou o instrumento novo no colo e soou o primeiro acorde, o som era alto e claro. Arriscou um pontilhado, só alguma coisa em ré menor. Ela respondeu com ferocidade como se quisesse mais, como se o que Tonho lhe desse fosse algumas gotas
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de água para alguém sedento no deserto. Sentindo a madeira pulsar em seu colo Tonho começou uma série de acordes agressivos. Raspava as unhas da mão direita com vontade, as cordas respondiam a altura. Uma série de arpejos veio somar à melodia com frescor, ele acelerou e o pontilhado crescia com vigor. Tonho fechou os olhos. Não era preciso olhar para o braço do instrumento, ele adivinhava onde a viola queria suas mãos, elas vibravam, sentia a direita pulsar no ritmo necessário para a felicidade do instrumento, a mão esquerda deslizava nas cordas, a aspereza lembrava escamas, o vibrar do cavalete um guizo, o som fervilhava, Tonho abriu os olhos, não conseguia parar de tocar, a velocidade fazia os dedos doerem, quase os quebrando. No horror de ter seus dedos quebrados mais uma vez ele abriu os olhos e percebeu que cascavéis andavam por sua mão direita, braço e cavalete do instrumento, enquanto havia dezenas de corais verdadeiras alternando-se entre seus dedos e as cordas. Tonho olhou desesperado para o sujeito, ele sorria. Seu sorriso foi se alargando, os cabelos e o cavanhaque embranquecendo, o lado esquerdo do sorriso se abrindo como uma ferida de faca, mostrando dentes, tendões e músculos, chegando a orelha e parando ali. A capa subia, uma corcunda surgia, o sangue empapava a capa, escorrendo da ferida na boca. Tonho não conseguia falar, só tinha forças para continuar tocando. – Eu lhe disse que ele lhe trataria com respeito – Um som de gargarejo mediava as palavras, era o sangue que não parava de sair da ferida. – Faça o ritual garoto, na encruzilhada onde lhe aleijaram, como lhe ensinei. Ele lhe dará tudo. Vingança, poder e
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dinheiro. Mate sua sede. Poderá tocar assim, mas sem dor alguma, apenas prazer...” Tonho acordou submerso, havia cochilado e escorregado para dentro da banheira. Agarrou a faca assim que submergiu, olhou para os lados procurando um agressor, procurando o homem de capa preta. Não havia ninguém, só uma corujaburaqueira piando na árvore em frente da sua janela. V Tonho não saiu com a tropa naquele mês de Março. O sonho havia deixado-o perturbado. Não assustado ou com medo de dormir. O perturbára porque Tonho percebeu que queria aquilo. Queria tocar daquela maneira, se vingar e ver D. Lucinda e o frozô se lamentarem nove vezes por cada dedo que foi quebrado. Vó Nenê percebeu que alguma coisa afligia Tonho, mas nem sua benzeção e simpatias funcionavam. Ela resolveu fazer uma penitência na quaresma e rumar de burrico até Aparecida. Oferecendo esse sacrifício para aplacar o mal que estava afligindo Tonho. Ela já tinha pego afeição de mãe pelo tropeiro. Após alguns dias da saída de Vó Nenê para Aparecida, Tonho parou de dormir. O sono foi rareando e diminuindo em tempo até que o mulato passou a ficar acordado a noite toda. Isso estava afetando o juízo dele. Ouvia ruídos na casa durante a madrugada. Havia sussurros no quarto e um vento gelado só
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lá. Algumas das meninas que cuidavam da casa passaram a arrumar o quarto do patrão apenas durante o dia, se recusavam a fazer qualquer tarefa à noite. O tropeiro passou a fazer caminhadas de madrugada, andando durante horas pelas trilhas do pouso. Abria novas, verificava as velhas, mas sempre acabava na encruzilhada. O ipê vermelho crescendo cada dia mais, tornando-se uma amolação ao juízo dele. A barba crescera, e o cabelo era escondido debaixo do chapéu de boiadeiro. Irritado com a falta de sono, resolveu ao final da tarde descer para Don Inácio e tomar algumas pingas por lá. A cidade continuava a mesma. Desceu a rua central e pôde ver a Igreja de Santa Terezinha, a praça do congado e a casa do finado Juvenal Sacristão. Havia mais casas do que ele esperava, mas dez anos são muita coisa em uma cidadezinha. No final da rua ainda estava o bar do Zé Galinha. Apeou do cavalo e entrou discreto. Pediu ao garoto no balcão, que não tinha mais de quinze anos, que levasse à mesa do canto uma garrafa de cachaça. Naquela mesma mesa havia visto o padre e seu jagunço. “O tempo passa”, pensou. Enquanto o garoto levava a garrafa de cachaça entraram três homens. Tonho reconheceu o primeiro deles. Matoso, ainda possuía o aspecto jovial, mas já se percebia um grisalhar nas têmporas. Os outros, um gordo falante e um magricela tímido, Tonho não reconheceu.
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– Rafael! – disse o gordo, enquanto sacudia a mão e exibia as manchas de suor na camisa azul celeste – Traga dois tragos de pinga pra mim e pro Matoso e água pro meu moleque. Eles se sentaram em uma mesa próxima a saída, Matoso de frente pra porta, o gordo ao seu lado e o magrelo de costas. – Claro Coronel Pedro, já vai sair. “Coronel!”, pensou Tonho, “esse gordo é o frozô, D. Lucinda deve tá galhando ele mais que tudo”, um sorriso discreto surgiu na boca do mulato, ele quase deu uma risada. – Uai, cadê seu pai que não para mais por aqui, menino? – A voz de Pedro continuava grave, mas estava mais afetada. – Oh, Seu Coronel, o senhor discurpa ele, tá? Mas a gota tá acabando com o pai, ele fica aqui de dia, mas não guenta mais ficá muito tempo impé. – Bom, mande meu abraço ao Zé. Mas traga logo essa cachaça, hoje vamos comemorar – Virou-se para o garoto colocando a mão em seu ombro – Finalmente meu menino está preparado para os desafios. De seu avô estivesse vivo estaria estourando de orgulho. – Brigado, pai – A voz do garoto também era grave, mas ele falava baixo, quase sussurrando – Vou fazer o meu melhor. – Você vai é ganhar Antônio! – Estapeou a mesa – Nenhum Bichart vai perder pra esse povinho. Não gastei uma fortuna com professor pra você perder pra um zé tatu qualquer!
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– Desculpa, pai. – Deixa disso! Pega a viola e toca um pouco pro seu pai! O garoto saiu e voltou um tempo depois com uma viola branca, enfeitada com fitas. Sentou-se na mesma cadeira e começou a pontilhar. Ele era bom. Melhor do que Tonho já fora, tinha mais técnica, mas também tinha sentimento. Tocava na cebolão, a preferida do mulato. O menino começou a pontilhar “Bigode Raspado”, emendou “Cabocla Tereza”, “Pingo d'Água” e terminou com dois pontilhados das folias. Havia uns sete ou oito bêbados no local, todos aplaudiram, menos Tonho. Tonho quase terminou a garrafa de pinga. O ódio já não tinha onde se espalhar. O tropeiro foi até a encruzilhada, amarrou o cavalo junto ao ipê vermelho e deu a procurar os bichos. Separou dois embornais, a primeira foi fácil seguiu o ouvido, ainda mais naquela região solo de calcário, seco por demais. A outra debandou mais trabalho, teve de se embrenhar na mata, procurar nos galhos e tocos velhos. De posse da matéria prima ele se postou de joelho na encruzilhada, ao pé do ipê vermelho. Abriu os embornais e colocou as mãos na frente deles imitando a posição usada para quebrar seus dedos. A primeira a sair foi a cascavel. Colocou a cabeça pra fora, medindo o ambiente com a língua, rastejou lenta para perto da mão direita de Tonho, passando primeiro pelas costas da mão, raspando o guizo, passou pelos dedos, se esgueirando pelo médio e anelar, permanentemente em arco pelas fraturas.
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Enquanto observava a cascavel Tonho sentia a outra cobra abraçando os dedos da mão esquerda, quase que acarinhandoos, deslizando sem fazer barulho. Elas se afastaram ao mesmo tempo, cada uma por um lado da estrada, Tonho se levantou e olhou para as mãos, ainda tortas, com os dedos mortos. – Eu sabia que você vinha – A voz era familiar, grave, quase rouca. Tonho ficou apreensivo, não sabia se devia olhar. – Pelo jeito não funcionou. Os dedos estão mortos ainda – Uma risadinha forçada ecoou na mata, havia silêncio demais. – Mas, Tonho, meu rapaz. A simpatia é só pra me chamar. Agora é que nós vamos discutir os termos do acordo, nem parece que você trabalha negociando boi por aí? – Tonho se encheu de coragem e virou. Era o rapaz do sonho, sorrindo. – Pois bem, estou aqui pra ouvir sua proposta – O mulato deu dois passos em direção ao homem de capa preta. – Bem, nós vamos discutir os termos, mas não posso mudar a matéria prima, nem a cobrança que vem depois. – Diga então... – Tudo bem. Vamos ser diretos. Eu preciso que você concorde em me fornecer a matéria prima para realizar seu desejo. Eu vou ser fiador em cada negócio ou transação que você fizer para torná-lo necessário. Aplainar os caminhos, adoçar os ouvidos e facilitar qualquer dificuldade. – Parece jus...
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– Entretanto – Interrompeu o homem – Você concorda em pagar meu preço a qualquer momento após nós concretizarmos seu desejo. Não digo nem a matéria prima e nem o preço, você tem que aceitar na confiança. Tonho olhou para o rosto do homem de capa preta. Os olhos verdes permaneciam tranquilos. O sorriso era de uma pessoa franca. Mas era justamente essa calma e tranquilidade que assustava Tonho. – Então é um acordo as cegas, no fio do bigode – O mulato deu mais um passo, podia agora até mesmo ver onde a barba do homem começava a crescer. – Isso, no fio do bigode – O homem esticou a mão para Tonho. Havia calos, mãos de alguém que lidava com a terra. O silêncio cresceu. Tonho suava, sentia uma linha fina descer pela sua coluna e o peito já estava encharcado por deixar as cobras andarem em seus dedos. Mas a vingança, o som da viola e o ódio eram maiores que o medo. Tonho esticou a mão e fechou-a em um aperto firme na mão estendida do homem de capa preta. – Muito bem, um aperto firme, de homem feito. O acordo está fechado, pela dor eu vou lhe dar um extra, está bem? – Mas que do... – Tonho soltou a mão do homem de capa preta. Seus dedos queimavam, parecia que eram quebrados de novo, mas com muito mais força. Os tendões atrofiados eram puxados por uma força invisível. O braço doía e os músculos pareciam ter trabalhado um mês inteiro sem descanso. Tonho
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foi ao chão. Lágrimas brotaram sem que ele pudesse controlálas. A dor era muita. Ele desmaiou. Já era manhã quando Tonho acordou. O sol cegou seus olhos e ele colocou a mão na frente do rosto, passou os dedos para tirar as remelas e levantou assustado. Os dedos voltaram ao normal! Eles eram de novo dedos sem defeitos, fortes. Ele abriu e fechou a mão várias vezes. Abotoou e abriu a camisa. Segurou a faca com uma precisão perdida há anos. Tonho não viu o ipê vermelho, mas havia um saco escuro no seu lugar. O mulato caminhou até lá, tomou o saco em suas mãos, ao abrilo viu a viola do sonho, idêntica. Havia uma carta também. Tonho, Espero que esteja bem. Eu disse que o ajudaria, não disse que seria indolor. Espero que goste da viola, é presente meu. Não se esqueça: siga sua intuição. Também não deve ir a igrejas de nenhum tipo. Quando ficar satisfeito com seu sonho eu venho buscar minha paga. Fique bem! O mulato apanhou a viola e seguiu para o pouso, encontrou seu o cavalo pastando no caminho. Ele continuou a pé, queria desfrutar o dia.
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VI Tonho voltou para o pouso. Passou dias tocando. Mas não era um tocar que estava acostumado, era como se a viola e ele estivessem ligados. O que ele fez no sonho podia fazer agora. Conseguia imitar até o canto dos passarinhos, nota por nota. Imitava o ranger do carro de boi, nada escapava das cordas. Passou dias começando e terminando músicas que ele nem sabia que podiam ser escritas. Quando a tropa chegou no meio da quaresma Tonho decidiu que iria com ela. E que pararia em toda cidade, pouso ou fazenda e iria desafiar todos os violeiros daquelas terras. Assim fez. Por quase um ano Tonho passou levando e trazendo gado. Passou por São Paulo, Minas, Mato Grosso, Paraná, Goiás. Sua tropa mudou de nome, agora era a Tropa do Tonho Cascavel. Tonho pegara a mania de imitar o guizo da danada antes de começar qualquer desafio. Por influência de um índio que conheceu no Paraná amarrou o guizo de uma cascavel em um cordão e ficou caracterizado assim. Quando se perguntava quem era esse tal de Tonho Cascavel, caboclo logo descrevia: “É um mulato alto, forte, com um bigode bem aparado, usa um chapéu escuro e trás no peito o guizo de uma cascavel. Se você ainda achar que não dá pra reconhecer o homem olha a viola dele. È vermelha que nem sangue, com asa no cavalete, e uma palavra estranha, igual das rezas do padre escrita na mão da bicha.”
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Tonho foi alcançando fama, o nome chegou a toda parte, era violeiro respeitado e até temido. Às vezes, quando chegava em uma roda, os outros violeiros paravam e ficavam só escutando os pontilhados de Tonho. A viola veio afinada na “Rio Acima” e ele manteve assim. Mas as noites de Tonho não eram tão tranquilas. Ele era corroído pela vontade de fazer o frozô e D. Lucinda pagarem. Foi numa dessas noites que teve uma ideia: Tonho começou a apostar as boiadas em duelos de viola. Os donos de fazendas, com os olhos maiores que a barriga, viam nisso a oportunidade de aumentar sua criação. Pobre deles. Tonho não perdia, mesmo quando um coronel mandava o povo da fazenda votar no violeiro dele, ele não perdia. Era tanta presteza, que ninguém deixava de reagir. Essas apostas não deixaram de ter efeito colateral. Várias emboscadas foram armadas para Tonho. Mas o mulato sempre fugia e escapava delas. Em certa vez o jagunço ficou emocionado com a música da viola e deixou passar para não privar o mundo daquela beleza, daquele dom de Deus. Tonho várias vezes avistou corujas buraqueiras e mudou caminho para não segui-las. Em outras tantas a filha ou empregada do coronel corria a avisar Tonho. Houve vezes em que a afronta foi na presença de todos e Tonho teve que se defender. Respondia sempre que só seria no punhal, arma de homem honesto, sem covardia de pólvora. Nisso Tonho foi ficando abastado. Comprou terras em Don Inácio para guardar as boiadas que ganhava. E essa fama chegou aos ouvidos de Pedro.
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Pedro começou a ficar assustado. Um homem, tropeiro e mulato estava comprando as terras em volta da propriedade que era sua e de sua senhora. Um matuto, sem escola, comprando e criando um reino maior que o dele. E para piorar havia as histórias. “Ele tem corpo fechado”, “ a viola é presente de São Gonçalo”, “ele tem pacto com o sete pele”. Essas crendices só irritavam Pedro. Ele não havia passado cinco anos no Rio de Janeiro para ter de lidar com um zé tatu. Diziam as empregadas e a curandeira que ele abrigava na casa da fazenda que ele estaria aqui para a festa de Santos Reis e que gostaria de duelar no coreto da matriz. “ Vou adorar ver Antônio fazer miséria com esse matuto”, pensou. Tereza voltava da feira em Don Inácio mas não poderia imaginar que sua carroça fosse quebrar naquele ponto da estrada. Já estavam ali há algum tempo e não passava viva alma, foi quando ouviu o berrante. Da colina surgiu uma enorme tropa, com pelo menos 100 bois, eles passavam do lado da estrada escoltados por vários peões. Um deles se aproximou da carroça e olhou para a roda quebrada. Sem falar nada voltou para tropa e de lá saiu um mulato enorme com um saco de veludo as costas. – Dia – Disse o tropeiro. – Dia – Respondeu o cocheiro – Será que vosmecê não podia dispô de uma ajuda. A carroça quebrou e tô com duas dama nesse calorão.
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– Mas é claro! Meus homens já tão trazendo uma carroça que tá mais vazia pra vosmecês terminarem a viagem. Depois é só levar de volta pra minha fazenda. Pouso Santa Cecilia. Tereza esticou a cabeça para ver melhor o homem. O pouso Santa Cecilia tinha crescido muito em menos de um ano. O proprietário, diziam, era um mulato violeiro e bondoso que não negava ajuda a ninguém. Tratava de maneira justa os empregados e não permitia malvadezas em suas terras. Tereza mediu o homem que estava a ajudando. Alto, forte, um bigode aparado mesmo na lida, sorria bastante e tratou o empregado de Tereza com cuidado e cortesia. Uma carroça parou atrás deles, o mulato parou o cavalo mais a frente e ajudou o cocheiro a descarregar os suprimentos trocando de veículo. “Ele chama todos pelo primeiro nome”, reparou Tereza. Quando o cocheiro foi ajudar a mãe de Tereza a descer, o mulato o acompanhou e estendeu a mão para Tereza descer. Os olhos escuros dela cruzaram com os dele, ela se apoiou para descer e agradeceu timidamente. Quando as duas estavam acomodadas na carroça, o mulato dividiu seu cantil com o cocheiro, apertou sua mão com entusiasmo e se despediu. Quando chegaram na fazenda, seu pai esperava na varanda da casa grande. Dr. Calixto era um homem baixo, com um grande bigode grisalho, calças no estilo pula brejo e o cabelo liso era sempre penteado para trás. Havia feito dinheiro como médico na capital paulista e se mudado para o interior mineiro quando a
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esposa morreu no parto. Passava a maior parte do tempo na fazenda, casara de novo com a governanta da casa quando Tereza tinha quatro anos e sua outra menina doze. Tinha agora momentos de felicidade, sua filha retornara da escola normal de Campanha formada professora. A alegria de Dr. Calixto era imensa, já estava em andamento a expansão da escolinha, o doutor fizera questão de dar o melhor suporte para onde a filha junto de mais quatro amigas iriam moldar as mentes dos pequenos. Dr. Calixto estranhou a carroça se aproximando da casa grande. Não reconheceu como sendo a de sua mulher e Tereza. Esperou que ela parasse e viu Tereza e Maria descerem. Desceu calmamente os degraus e acendeu o cachimbo longo. – Hora Maria, que raio de carroça é essa que eu não conheço? – Boa tarde pra você também, Hercílio. Percebendo o amargo na voz da esposa Dr. Calixto abriu um sorriso amarelo e se precipitou a segurar as mãos da mulher. – Desculpe, minha flor. É que me assusta ver meus tesouros chegando em uma carroça estranha... – Eh, se o senhor me permite Doutô, eu posso explicar – O cocheiro deu um passo adiante. – Pois diga, Zé.
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– A estrada estava em petição de miséria, toda esburacada e uma das rodas quebrô. Isso lá era pelo meio dia já, num sabe? Deus ajudô de tá passando uma tropa, guiada por um homem bom que só Deus. Deixô usar a carroça dele e inté colocou as cargas junto cueu. – Ora , quem é esse anjo Zé? Tô vendo que enfeitiçou você já. – É o dono daquela fazenda nova, o Pouso Santa Cecilia. O nome é Tonho. – E como é esse Tonho, Maria? – Um sujeito de lida, Hercílio. Mulato, forte, até bem apessoado. De uma educação, que só vendo – A esposa seguiu até a casa grande seguida da filha. Dr. Calixto pensou sobre o “salvador do dia”. Esse rapaz já era comentário na cidade há meses. Comprava terra atrás de terra, contratava todos os funcionários do dono anterior, pagamento justo, gente bem tratada. A fama dele se alastrava pelo amor dos empregados e pela língua afiada de Don Inácio. Pois Dr. Calixto resolveu que ia matar sua curiosidade. – Zé? – Pois não, dotô? – Limpe a carroça do moço e se prepare para devolvê-la! Aguarde aqui, você vai levar um recado meu pra ele – O Doutor entrou e escreveu uma nota rápida, colocou em um envelope, lacrou e deu ao cocheiro.
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VII Tonho havia chegado a pouco. Acabara de tomar um banho e estava na varanda dos fundos com a viola ao lado da cadeira, um gato velho da fazenda parado perto dele e, empoleirado nos caibros da varanda, Eustáquio, o filhote de coruja que Tonho criava. Enquanto fumava seu cigarro de palha chegou Valéria, a governanta da casa. – Licença, coronel? – Uai, Valéria, eu não tinha pedido procê não me chamá mais de coronel. Se ocê quiser florear meu nome me chame só de Seu Tonho, apesar de eu não gostar – Virou a cabeça para olhar melhor para ela. – Desculpe, cor... Seu Tonho. O cocheiro do Dr. Calixto trouxe a carroça e esse recado do patrão dele. Pediu a gentileza de uma resposta. – Tá bom. Então sirva pro Zé bolo e café na cozinha e diga que já vou lá dar a resposta pra ele. – Pois não, patrão. Tonho leu com calma o bilhete do Dr. Calixto e riu miúdo. Viu umas meninas correndo e chamou: – Maria Flor! Uma menina negra de talvez uns seis anos correu pra perto dele. – Bença, padrim?
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– Deus te abençoe – Ele sorriu para ela e ela devolveu o sorriso – Faz um favor pro padrim, chama o moço que tá lá na cozinha e pede pra Filó trazer um café bem forte pro padrim, pode ser? – Tá. Licença. Em instantes um Zé envergonhado apareceu na porta, apertando o chapéu e pisando com cautela. – Licença? – Opa, se achegue Zé – Ele se levantou e apertou a mão do cocheiro, sentou-se de novo, mas puxou uma cadeira – Senta ai. – Que isso Seu Tonho, precisa não. – Claro que precisa, senta ai rapaz. O rapaz sentou desconfiado, agradeceu com um aceno. – Então, seu patrão me convidou pra jantar com ele. – Uai, que beleza Seu Tonho! Deve de sê pra agradecer o auxílio. – Cê sabe que eu imaginei o mesmo. Mas eu queria fazer umas perguntas procê primeiro – Ele se inclinou, sussurrando – Eu não sou letrado, fui criado na lida , igual ocê, queria saber como ele é, pra num fazer feio, sabe? – Uai, seu Tonho, ajudo o senhor com prazer. Mas preocupa não, o dotô, apesar de ser o homem mais sabido que eu já conheci, fala com educação cu nóis, tá sempre disposto a judá
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os otro, trata cum respeito a fia e a muié e não é enjoado com comida nem nada. A conversa durou mais alguns minutos. Eles tomaram café, Tonho tocou um pouco de viola e Zé voltou com uma resposta positiva para seu patrão. Na noite combinada Tonho vestiu o melhor terno que possuía, selou Currupio, o cavalo que trouxe de Ribeirão e rumou para a fazenda do Dr. Calixto. A marcha foi tranquila, Currupio era um alazão forte, que foi acostumado a rumar longas distâncias. A marcha era regular, tão precisa que o andar dele podia fazer as vezes de acompanhamento para a viola de Tonho. Nas costas Tonho trazia sua companheira, afinada, pronta pro uso. Avistou a porteira da fazenda. Zé estava a sua espera, trazia junto consigo dois meninos, de uns treze anos. – Noite, Zé – Tonho colocou o chapéu para trás , sorriu para o cocheiro. – Noite, Seu Tonho – Se aproximou do cavalo que parara – Vim presentá pro sinhô meus meninos: Cosme e Damião. Eles vão subi com o sinhô e adispois levá seu cavalo pro estábulo, pra ele se refrescá e cumê. – Uai, mais ocê é danado por demais, Zé? Fazê gêmeo é coisa pra homem viril. Diz pra mim meninada, quantos anos ocêis tem?
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– Treze – Eles responderam juntos, com uma timidez nítida. – Zé, se eles não tiverem quem ensinar um ofício pra eles aqui, faz favor de levar eles na minha fazenda. Lá tem padeiro, ferreiro, peão, domador de cavalo, marceneiro. Esses menino precisa ter uma profissão boa pra acudir o pai quando ficar velho, né não? – Fico agradecido por demais, Seu Tonho – A alegria do pai e seus meninos fizeram a noite de Tonho – Agora é só o senhor subi reto nessa estradinha e vai chegá na casa grande, meus meninos vão de carreira e já levam seu cavalo. – Tá bom – tirou do bolso duas moedas, quatrocentos réis cada uma e as atirou na direção dos meninos que as pegaram animados – Isso é paga adiantada procêis cuidarem bem do Currupio – Antes dos meninos agradecerem ele cutucou o alazão em direção a casa grande. Em alguns segundos ouvia os pés batendo na terra correndo atrás dele. Logo que avistou a casa grande Tonho se admirou. Ela não parecia com as casas dos outros grandes de Don Inácio. Não havia uma varanda ao redor dela, apenas na frente. A casa possuía muros laterais como as casas das cidades grandes, havia grades nas janelas e até mesmo o cocho era afastado alguns metros. Ele apeou do cavalo e percebeu os meninos chegando quase que instantaneamente, entregou as rédeas sem olhar, e seguiu até a casa. Havia um senhor com um grande bigode grisalho e calças do tipo pula brejo, com uma mão no
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bolso e fumando um cachimbo na varanda. Ele se levantou quando viu Tonho e caminhou até encontrar o mulato na base da escada. – Boa noite. Eu sou Tonho, do Pouso Santa Cecilia, vim pelo convite do Dr. Calixto. – Pois fala com ele. É um prazer falar com vosmecê, Seu Tonho. Pois não fique aí, entre rapaz. Os dois trocaram um aperto de mãos forte e o Dr. Calixto deu um amistoso tapinha nas costas de Tonho. A casa de Dr. Calixto era o oposto do que Tonho imaginava. A sala era grande com sofás e poltronas, não havia parede entre ela e a sala de jantar. Depois da sala de jantar ficava um grande corredor. Também haviam duas portas, uma a oeste e outra a leste. O doutor explicára que a oeste ficava a cozinha e a leste a biblioteca, apenas a menção em haver uma fez os olhos de Tonho brilharem. Apesar de não ter muito estudo Tonho adorava ler. Sempre que havia um caixeiro viajante ou ele passava por uma cidade com livraria ele comprava um volume. No começo era difícil entender tudo o que estava escrito, mas um dos caixeiros vendeu a ele uma coleção para meninos no primário, ele leu todos, depois comprou livros para meninos no colégio e foi indo até começar a se encantar por livros de poesia. Para ele eram músicas sem notas. Passava horas à noite lendo e relendo, às vezes maldizendo sua falta de instrução.
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Doutor levou Tonho para ver a biblioteca. Era um tesouro, possuía os clássicos, poesia, livros de medicina, livros em francês. Era uma jóia. Depois de algum tempo fumando e conversando sobre gado e leite uma das empregadas veio chamá-los para o jantar. Saíram da biblioteca e viram D. Maria e Tereza, em pé, à espera deles para sentarem. Tonho havia visto Tereza no dia do incidente da carroça, a tinha achado formosa, mas hoje havida beleza demonstrada. Os cabelos espessos e negros estavam presos até a altura da nuca e depois caiam em cascata pelos ombros até a altura dos seios. O vestido era de um tom de azul claro, quase branco, mesclando a sua pele alva. A boca era vermelha e cheia, os olhos grandes, com cílios proeminentes, não usava joias, mas corou quando cruzou seu olhar com o dele. Apesar da tentativa de discrição, Tonho desconfiou que o doutor percebera os olhares. O jantar correu com tranquilidade. Comida simples, quase como se Vó Nenê ou Filó tivessem feito pra ele. Arroz, tutu de feijão, frango com quiabo e quindim de sobremesa. Após o jantar Dr. Calixto e ele foram até a varanda para fumarem e tomarem um dedo de cachaça. Ficaram em silêncio apreciando o fumo e a bebida, olhando a noite clara e bonita. – Vosmecê é um rapaz peculiar, Tonho – A voz do Doutor descera um tom, talvez pelo fumo e a cachaça, talvez pelo adiantado da hora. – Isso é uma coisa boa ou ruim?
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– Pra mim, boa. A gente daqui… bom, a gente com dinheiro daqui, é afetada e cheia de traquejos que não vi nem mesmo em São Paulo. Por isso não vou à cidade. Mas você é um achado. Não! Um paradigma. – Como? Não sei se entendi vosmecê. – Quero dizer que você é um exemplo a ser seguido. Era peão, foi expulso daqui por aquele inglês dos diabos, virou tropeiro, violeiro afamado e gosta de livros, vi pelos seus olhos na biblioteca. É gentil com todos, ricos ou não, tem decência e está crescendo e trazendo decência para Don Inácio. E está fazendo isto sem trapaças, de um jeito honesto – Tonho pensou na encruzilhada – Sei por que me informei de você por ai. – Uai, do jeito que vosmecê fala, doutor, parece até que tava me estudando. Medindo eu pra saber se eu cabia donde tava. – E estava. Tonho arregalou os olhos. – Mas não me entenda mal, é por bons motivos. – Hum... – Dá pra perceber que eu estou velho, não dá, Tonho? – O olhar do mulato não se alterou – E por isso me preocupo com a cidade, minhas terras, minha gente. Vosmecê deve entender bem que é obrigação nossa cuidar bem do nosso povo, da nossa família.
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Tonho sentiu que devia deixar o turco falar. – É por isso que queria saber que tipo de homem era vosmecê. Eu tenho uma proposta pra fazer. – O Doutor me deixou curioso. – apagou o resto do cigarro de palha na bota e tomou a dose de cachaça em seu copo. – Quero que se case com minha filha. Por um momento Tonho segurou a cachaça na garganta, forçando-se a não engasgar. Por mais que sua intuição dissesse “vamos lá, aceite”, uma pequena parte dele se perguntava o que o turco poderia querer. Ele era letrado, rico, tinha uma propriedade grande, não havia vantagem nenhuma para esse casamento, nada. Os olhos de Dr. Calixto permaneciam fixos em Tonho, eram olhos sinceros, não se via dúvida. Estava claro que qualquer que fosse o motivo o Doutor sabia o que queria e sabia como conseguir. Tonho tomou fôlego, inclinouse e olhou também com vontade, assim como fazia com touros bravos e cavalos xucros e tirou um sorriso de canto de boca da gibeira. – Quero que vosmecê saiba que tô honrado, doutor. Mas vosmecê deve saber que num cheguei até aqui sem malicia. O que vosmecê ganharia casando sua filha, estudada, fina, com um mulato tropeiro, que ganhô dinheiro na lida. O turco sorriu e bateu na perna produzindo um som estalado na noite tranquila.
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– Sabia que vosmecê era esperto, Seu Tonho. É claro que eu ganho alguma coisa com isso. O mulato trançou os dedos. – Ganho duas coisas: poder e vingança. – Como? – Tonho agora se endireitou na cadeira, parecendo quase relaxado. – Poder porque a herança de minha filha se soma a sua, fazendo a maior fazenda da região. Trazendo recursos, qualidade e alegria pro povo dessa cidade e vingança contra o inglês maldito – Cuspiu – O janota que ele chamava de filho deveria se casar com minha menina mais velha. Ela se apaixonou pelo maldito, ele encheu-a com juras de amor. Mas assim que D. Lucinda passou o período de luto ele resolveu trocar minha filha pelas terras de seu Zé Ferreira. A menina definhou até morrer, foi-se por tristeza. A vingança acontece porque o janota vai perder poder. – Tudo bem, aceito com gosto a mão de sua filha. Mas tenho uma condição. – Pois diga – O turco não escondia a satisfação. – Devemos esperar para anunciar o noivado depois das festas de Santos Reis – Muito bem, será assim. – E também não quero me casar dentro de uma igreja. Quero me casar em pouso Santa Cecília, ao ar livre, em comunhão com a terra que tudo me deu, concorda?
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– Não haverá problema nenhum nisso. – estendeu a mão a Tonho. O mulato aceitou-a e assim acertaram o casamento. VIII Chegaram finalmente as festividades de Santos Reis. A escola havia sido entregue com o adicional de uma linda biblioteca doada por Tonho. As prendas das barracas estavam magníficas e podia se ver uma clara competição entre o dono do Pouso Santa Cecília e o Coronel Pedro. Se um doava um bezerro rapidamente o outro mandava uma vaca, se havia cachaça por parte de um, frangos eram mandados pelo outro. A disputa provocou uma fartura gigantesca e o boato se espalhou entre as cidades e fazendas da região. A festa estava duas vezes maior que o usual. Os dias de festa passaram e não houve incidentes. A surpresa estava no tímido filho do Coronel Pedro e D. Lucinda. O menino franzino estava ganhando todos os duelos. Ele era uma atração e tanto. O rapaz que parecia recém-saído das saias da mãe vencendo violeiros tarimbados que passariam fácil por jagunços perigosos. Na última noite em todas as barracas, sacadas, bancos e esquinas o comentário era de que o anel, o prêmio e o título iriam para o rapazola.
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O sino batera meia noite e, apesar de não haver muitos concorrentes para o rapaz, havia muitas pessoas no coreto para ouvir os duelos. As disputas começaram cedo e os embates foram longos, causavam dúvidas até que se chegasse a uma decisão de quem os havia ganho. Na última disputa, quando se teve certeza que o menino Antônio saíra vencedor, o relógio batia três horas. Um silêncio tremendo se fez no coreto e arredores e ouviuse os cascos de um cavalo. Aproximando-se do coreto vinha um sujeito montado em um alazão e com um saco de viola nas costas. Vestido com roupas de tropeiro logo viu-se que era Tonho. Coronel Pedro fechou a cara, Matoso levantou-se do banco atrás do coreto e juntou-se ao patrão, eles não podiam acreditar no que viam. O mulato atrevido voltara a Don Inácio. Muitos ouvintes deram boa noite ao violeiro, ele apeou do cavalo e os filhos do cocheiro de Dr. Calixto tomaram as rédeas de Currupio. – Boa noite – Tonho fez uma mesura com o chapéu para os presentes – Espero não ter chegado atrasado para o duelo. Quem restou? – Pedro se adiantou, parou a frente de Tonho. – Devo estar tendo uma alucinação! Veja, Matoso se não é o empregadinho petulante de minha esposa? Parece que ele enfim voltou a cidade. Matoso olhou para as mãos dele e viu os dedos em perfeição.
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– Oxi, patrão. Deve de ser não, aquele lá ficou aleijado, esse moço tá perfeito que só. – Boa noite pra vosmecês. Pois ninguém tá enganado não. Sou eu mesmo. Engraçado como o tempo cura, não é? – Tá procurando trabalho, Tonho? Por isso que veio? – Pedro limpava as unhas enquanto falava. – Não – Respondeu o mulato – Careço de emprego não. Minha fazenda tem trabalho por demais, vosmecê já deve ter ouvido falar dela, Pouso Santa Cecilia. O rosto de Pedro ficou como muro caiado. Então aquele mulato indecente havia voltado e era o tal Tonho dono do pouso, o grande tropeiro. O rosto passou para um vermelho de raiva, subitamente. – Fico feliz que tenha se dado bem na vida – mentiu Pedro. – Agradecido. Mas ninguém me respondeu, ainda há com quem duelar? – Oxi – Respondeu Matoso – Até tem, só duvido que tu consiga ganhar, visse? Se teu pontilhado não te salvou antes, né mesmo? Tonho estava firme como uma estátua. Observou Pedro, Matoso e o rapaz com a viola branca. Com um movimento firme tirou o saco com a viola. Pedro, Matoso e mais dois homens sacaram pistolas. Tonho sorriu.
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– Que isso, estão com medo de uma viola agora? – Continuou retirando o instrumento do saco – Se vosmecês querem mesmo continuar com isso é melhor olharem pra trás. Atrás deles havia doze homens armados com garruchas e pistolas todas apontadas para os quatro. Podia-se ver o fio de suor escorrendo do rosto vermelho de Pedro. Os quatro cautelosamente guardaram as armas e foram seguidos pelos outros. – Só queria deixar claro que nenhum deles veio comigo, mas agradeço a ajuda – Houve um burburinho de “que isso seu Tonho”, “o senhor faria também por nós”, “acabe com os safados, senhor”. Tonho terminava de tirar a viola da sacola e não haviam instrumentos que constrastassem mais que o dele e do garoto. Eles eram pureza e libido, sangue e hóstia, dia e noite. – Vosmecê não vai conseguir derrotar meu menino, Tonho. – Uai, seu fio – Sorriu – Dá gosto de vê um pai orgulhoso de seu meninu, mas ocê não devia mentir pra ele. – Bom, vamos ver isso quando o duelo acabar, não é mesmo? – Pedro sentara. – Confiança. Gosto de vê isso. Muito do que eu construí veio disso aí. Ocê apostaria no talento do seu meninu? – Tonho percebeu o frozô engolindo um seco. – Mas é claro, quantos contos de réis vosmecê quer casar?
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– Não – Ele sentou cruzando as pernas e colocando a viola sobre elas. – Minha viola é minha vida, não fico apostando mixaria. Quando num tinha nada apostava a vida nela, depois apostava o que tinha. O coronel ficou vermelho novamente. – Que acha de uma apostada de gente grande e não essas de Zé dend'agua? – houve um riso geral. Pedro tomou fôlego. – E qual seria? – Uai, tudo. Tudo o que eu tenho, tudo o que ocê tem. Tudo. Fazenda, boi, dinheiro, tudo – Tonho tocou um acorde triste. – Eu não vou apostar tudo em duelo de violas. – Ah, que pena. O que cê acha então de só uma das fazenda, ou ocê tá cum medo? Pedro respirou, deu alguns passos e se virou para Tonho. – E que garantia eu tenho que vosmecê vai me entregar suas terras? – Uai, é só nós fazer um contrato. Se for o caso mando alguém levantar o escrivão. Pedro estava em uma sinuca de bico. Todos os homens importantes de Don Inácio estavam ali, se ele não aceitasse seria tachado de covarde e os acordos firmados no “fio do bigode” iriam abaixo. Ele não podia correr o risco de perder sua propriedade. Então uma onda de raiva tomou conta. Como
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assim ele poderia supor que Antônio não ganharia? O menino tivera aulas com os melhores professores desde os sete anos. E, alias, já tinha visto Tonho tocar. Nenhuma viola bonita podia fazer um homem melhorar e, mesmo que os dedos tivessem cicatrizado, ele sabia que iam ainda ser duros e pouco produtivos. – Pois bem – Disse Pedro – Mande chamar o escrivão! – Houve um rompante entre os que assistiam. Um duelo de viola valendo fazendas. Para alguns aquilo era loucura, para outros confiança e ainda havia aqueles que entre os dentes amaldiçoavam os dois homens ricos, gastando e apostando levianamente o que possuíam. O escrivão chegou. Redigiu o contrato segundo os termos acordados entre os dois e ele foi assinado com quatro testemunhas chamadas: O próprio escrivão, Dr. Calixto, o pároco e o médico de Don Inácio. A partir daí as violas foram afinadas e os violeiros começaram. O garoto começou, chamando uma série de acordes em uma progressão menor seguidos de harmônicos ligeiros. Após essa série, compassada e previsível, ele alternou os tempos quebrando em frações menores e mais complexas. Tonho imitou o garoto, mas adicionou ponteios velozes entre os harmônicos. A multidão extasiada bateu palmas. O garoto seguiu por uma linha de ponteios rápidos e depois uma sequência de acordes. Não satisfeito emendou uma sequência
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de músicas em versão instrumental, arrancando aplausos dos presentes. Tonho esperava por esse momento. O mulato tocou acordes lentos, em um tom maior. Passou em seguida para os ponteios e harmônicos, também chegou a fazer alguns trechos instrumentais de canções. Foi então que ele dificultou a situação. Tonho acelerou a série de ponteios a um nível absurdo, não se via seus dedos, enquanto realizava essa sequência ele começou um processo de troca de afinação, afinando as cordas enquanto tocava, passou minutos assim, enquanto martelava as cordas apenas com a mão esquerda ele afinava outras em diferentes tons, passando assim ponteio por ponteio por todas as afinações centrais. Quando ele finalmente parou, só havia o silêncio no coreto e na praça. Antônio olhava assustado para Tonho, sem compreender como ele podia tocar com uma mão enquanto com outra trocava as afinações. Grossas lágrimas desceram pelo rosto do menino e ele destruiu a viola branca contra a coluna do coreto. Apesar do que se possa imaginar, Tonho estava guardando sua viola, sem se atentar para o “ataque” de seu adversário. Levantou-se e caminhou serenamente até Pedro. Agachou-se e muito próximo de sua orelha sussurrou: “Vosmecê tem até o fim do mês”. Ele foi até onde os gêmeos deixaram Currupio, os presentes abriram espaço, ele montou no marchador e saiu na madrugada a caminho da fazenda.
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Muita coisa aconteceu em Don Inácio depois do duelo. Dois dias depois do duelo, Antônio foi encontrado em uma encruzilhada, na fazenda, enforcado. Dizem que não aguentou a vergonha de perder as terras do pai. Transtornados pela dor do suicídio do filho, Pedro e D. Lucinda entregaram a fazenda e se mudaram para o Rio de Janeiro, passando a viver da renda de títulos e de uma propriedade de café em São Paulo. Eles morreriam em um acidente de barco três anos depois. Tonho anunciou seu noivado com Tereza, eles se casaram em Março. Possuíam a maior fazenda das redondezas, em Don Inácio só havia sítios agora. Tiveram dois filhos: Miguel e Andreia. Tonho construiu nos anos seguintes um hospital, mais duas escolas. Doou o terreno para aumentar o cemitério municipal e pagou os custos da reforma e ampliação da Igreja após o incêndio. Criou um orfanato e amparava todos os trabalhadores de sua fazenda. Todos possuíam casa própria. Tonho passou a ser conhecido como “Pai de Don Inácio”, pois tratava a cidade como a um de seus filhos. Mesmo que ele tenha se tornado um homem admirado, não havia tranquilidade no sono de Tonho. Ele acordava frequentemente com pesadelos onde o homem com a capa preta levava seus filhos, matava sua esposa, queimava o orfanato e outras crueldades. Martelava em sua cabeça que havia uma dívida por pagar. Os cabelos grisalhos começavam a tomar conta do bigode e cabeça de Tonho. Seus filhos já eram crescidos. Miguel era
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médico como o avô, Andreia era diretora da escola que levava o nome de Vó Nenê. Tornou-se um hábito da cidade no fim da festa de Santos Reis uma exibição de violeiros e Tonho fechava a noite sempre com uma apresentação singular. Não duelava mais e ensinava a aqueles que queriam conhecer os segredos da viola. Na última noite, em um desses anos, chegou à cidade um rapaz muito bonito, terno branco, fala macia e um estojo de viola no lombo de seu tordilho. Esse rapaz passou a noite nas barracas, elogiando as comidas e a hospitalidade de Don Inácio, construindo amizades com peões e trabalhadores e deixando as pessoas importantes da cidade de fora. Aproximando-se da meia noite, com viola em punho, o rapaz foi até o palco montado para evento observar os outros violeiros e esperar sua vez para a apresentação. Nesse ano, Tonho estava programado para tocar no meio do evento para que todos pudessem apreciá-lo. Como combinado, Tonho subiu no palco. A velha viola vermelha, com a inscrição Desiderium desgastada pelo tempo em suas mãos. Houve um momento de nostalgia com aquela praça, aqueles sorrisos na multidão e Tonho decidiu tocar o tema que lhe garantiu sua vingança, tocaria numa tentativa de reconciliação com o passado. Assim o fez, tocou a canção da mesma maneira. Não houve um só ouvinte que não aplaudisse de pé Tonho.
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O rapaz do terno branco tocaria após Tonho. Ele se aprontou e retirou sua viola do estojo. Era negra como a noite, fosca e contrastava com o branco do terno do rapaz. Cravelhas, ferragens tudo negro, mas ali, na mão do instrumento, grafada em cursivas prateadas, a palavra: Imperium. O rapaz soou o primeiro acorde, os violeiros ali reconheceram, “Rio Abaixo”. Depois de alguns floreios e harmônicos o rapaz começou a tocar a peça de Tonho, copiou todos os detalhes, todos os truques mas feitos na afinação encorpada. O garoto estendeu o truque de Tonho passando por afinações que eles não conheciam, produzindo sons lindos e únicos. Quando terminou alguns segundos se passaram em silêncio antes que se ouvisse os aplausos. Tonho não se conteve, aquela viola era como a sua, mesmo corpo, só se modificava a cor e o nome. No resto exatamente igual. O mulato subiu novamente ao palco e na coxia cumprimentou o rapaz. – Parabéns. Será que posso dar um abraço nocê, violeiro? – Mas claro que pode. Mestre Tonho cascavel, não pede, ordena – Tinha a voz grave e quase rouca. No meio do abraço Tonho sussurrou: – Acho que nós tem o mesmo construtor de instrumento, meninu. Né, não? O rapaz olhou de olhos arregalados para Tonho e depois os abaixou envergonhado.
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– Fique assim não, fio – O velho mulato olhava nos olhos do violeiro – Isso num é vergonha. Que cê acha de nós conversa com calma. Cumpanha eu até minha casa, pode ser? O rapaz balançou a cabeça em afirmação. IX Os dois seguiram a pé, em silêncio. O rapaz carregava o estojo pesaroso. Tonho então resolveu contar sua história, para que o rapaz soubesse que não era o único. Contou tudo, tudo o que fez de bom e de ruim e tudo que deixou de fazer. A certa altura do caminho o rapaz parou e olhou profundamente para Tonho. Colocou a mão no ombro do mulato e abaixou a cabeça. – Eu sei que foi difícil pra você – Ele olhava para o lado agora – É difícil pra mim também. Esse caminho nosso é solitário, mesmo quando temos alguém. Parece que não vamos conseguir, mas nós temos essa ideia estúpida de seguir com a nossa palavra, não é mesmo? O mulato tinha lágrimas nos olhos. – Há sempre um momento de esquecimento – Continuou o rapaz – Vamos esquecendo desse contrato e levando os dias com uma tranquilidade incomum. Mas nós... bem… nós sabemos que vamos ter que chegar até o final. Até a dívida ser
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paga. O ruim... o ruim mesmo é quando chega – Virou a cabeça e os olhos, até então castanhos, estavam verdes. Um verde que Tonho conhecia bem demais. O mulato deu alguns passos pra trás e tropeçou, caindo. Ele olhou para os lados procurando ajuda e percebeu, para seu desespero, que estavam sós em uma encruzilhada. “Maldito sete pele, ele voltou para a paga!”, ele pensou. O rapaz olhava para Tonho com calma e certa ternura. Com a expressão de pai que precisa, mas não quer punir seu filho. – Eu disse que voltaria quando você alcançasse seu desejo – Sorriu. – Vosmecê está um pouco atrasado. Já cumpri meu desejo há muito tempo. Tonho tentava se levantar, o homem com os olhos verdes estendeu a mão. Ele aceitou. A idade trazia algumas desilusões. – Vocês humanos sempre pensam que sabem o que querem – Bufou – Mas eu não vou explicar como funciona o contrato, você já o fechou. Apenas quero a paga. – Ocê acha que eu sô tonto. Minha alma já é sua – Pelo canto dos olhos tentou encontrar mais alguém na rua. – Odeio as crendices, Tonho. Eu não posso comprar algo que você ganhou dele – apontou pra cima, deu alguns passos, as roupas foram escurecendo e mudando até se tornarem a capa preta e o chapéu do dia em que Tonho o vira pela
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primeira vez – “ De graça recebestes, de graça dai”, Mateus, dez, oito. Você não me paga com ela, ela é só a matéria prima para o seu desejo ser moldado. Minha paga é outra. – Não, ocê num vai ter minha família. – Não quero sua família. – Pode levar o dinheiro também e tudo quanto é trem de valor. – Também não quero isso, não me serve – Ele se aproximou de Tonho. Tonho começou a pensar no que ele poderia querer, queria que ele fizesse o serviço dele, queria que roubasse alguém, que fizesse mais pactos pra ele. A cabeça do mulato girava. – O que cê quer?!!!!!!!!!! – O que eu quero, Tonho? Bom, o que eu quero é simples. Aliás, eu posso tudo, o que eu poderia querer, não é mesmo? Conhecimento. Poder. Luxuria. Ora, eu sei de tudo o que passa no coração de cada homem. Eu estava lá quando padre Gabriel se deitou com o sacristão, ele quebrou um voto mas o fez por vontade, por desejo. Eu conheço cada vingança, imaginada ou concretizada, cada luxuria escondida na noite ou em portas fechadas. Vi D. Lucinda se tocando, pensando em você com seu Zé Ferreira do lado. Cada réis escondido no colchão, cada surra tomada ou dada, as moedas que os diretores do seu orfanato levam mês a mês, escondidas nas bolsas. Cada estupro, cada assassinato, cada mutilação, cada
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mentira. Estava lá, todas as vezes que o Coronel Pedro se deitou com o pequeno Antônio e marcou a faca as costas dele. O mulato engoliu seco, forçando o vômito a voltar. – Tudo o que é fruto da mentira e cada fruto do egoísmo. É minha sentença por não acreditar que vocês poderiam ser úteis. Então Tonho, o que eu quero como paga é muito simples. Eu quero que tudo o que você possua ou que digam que é seu seja meu, eu quero controle. Não vou tocar na sua família, nem na sua fortuna. Só quero o controle do que é seu, só isso. Dado por espontânea vontade. – Ocê só quer isso? – Só. O violeiro tremia, o momento que ele esperava havia chegado, a paga era simples, mas mesmo assim ele implorou por perdão. Tonho estendeu a mão, o homem de capa preta a apertou com firmeza. – Feito – A voz soou mais grave e rouca do que nunca. Quando Tonho percebeu estava na encruzilhada, perto de sua casa. Não havia ninguém, mas ele sabia que não estava sozinho. Nunca esteve... nunca estaria...
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X Epilogo As regras do sobrenatural não são as mesmas a que nós estamos acostumados e não são fáceis de entender. Em todas as histórias o mal precisa de algo físico para concretizar seus planos, sangue de uma virgem, um desenho intrincado cheio de runas antigas, a união carnal com um mortal. Mas o mal que depende desses artifícios é quase sempre um mal novo, ou um que é regido por regras impostas depois da “Queda”. Regras criadas para impedir uma expansão desordenada. O Tinhoso, o Sete-peles, o Cramunhão, O Capa Preta, Aquele que desvia, o Inimigo, Satanás ou o nome que o Pai lhe deu: Lúcifer, joga pelas regras da criação. Ele só precisa de uma palavra, um sim ou um não. Assim como a palavra cria ela também aprisiona. Tonho nunca poderia imaginar o que fez. Apesar de seus esforços para a caridade, educação e bem-estar do povo de Don Inácio ele sentenciou a cidade. A partir do seu “feito”, o homem da capa preta começou a controlar a cidade. A Don Inácio do Seu Tonho Cascavel agora era dele. Os relatos de fenômenos sem explicação aumentaram. Surgiram lendas de espíritos vingativos, curupiras na mata, mula sem-cabeça, lobisomens nas noites de lua cheia, assassinatos, roubo e perversão. O mal passou a frequentar as ruas de Don Inácio e a se esgueirar por seus
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becos. Estampar-se nos seus líderes. Ele cegava-os com a luz que portava e aumentava a sombra na cidade. Tonho, de um simples peão, tropeiro e fazendeiro, virou lenda, nome de rua e tinha estátua na praça da matriz. Qualquer um no país sabia que Don Inácio era a cidade de Tonho Cascavel. Já idoso, com a catarata a embaçar a visão, uma equipe de TV foi a cidade mostrar o habilidoso violeiro, filantropo, empresário, ainda lúcido, registrando as modas instrumentais que fizeram sua fama e gerenciando os negócios junto do neto. O rapaz era sobrevivente do acidente que matou os filhos e a mulher de Tonho. Manoel apoiava o avô e já tinha ouvido todas as histórias do velho violeiro, sabia de cor e salteado os caminhos que trouxeram seu avô até aquele ponto, apesar de não acreditar na história do pacto. Don Inácio crescera de maneira absurda. O calcário fizera Tonho criar uma indústria para mineração. Vendeu-a décadas depois a um grupo multinacional. O polo industrial era alimentado pelas quatro universidades. O turismo crescia em torno da área permanente de preservação que Tonho criara antes do boom ambientalista. Ele podia mesmo ser chamado de dono da cidade. Tinha negócios em várias áreas, mas também era honesto, orgulhava-se de nunca ter sofrido processo trabalhista, cuidava de sua Don Inácio com carinho. Às vezes, tarde da noite, ele acordava gritando. O neto ia até o quarto do avô, acalmava o homem e ouvia os conselhos do senhor: “Não confie em ninguém com fala mansa”, “nunca
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feche negócio sem saber o preço”, “se afaste das encruzilhadas” e “nunca toque na Desiderium”. O neto ouvia atento, acalentava o avô e esperava-o dormir assim como faria com uma criança. Observava um tempo o rosto marcado do avô e se pegava imaginando o que faria quando o velho Tonho Cascavel se fosse. A idéia de ficar sozinho torturava Manoel pois já havia perdido mãe, pai, tio e avó. Oito anos não era uma idade para se ficar sozinho, mas tivera sorte. Foi criado pelo homem mais incrível do mundo. Duro, correto, sistemático como diziam em Don Inácio, mas que lhe ensinou como ter um coração puro e justo. Encheu sua vida de amor e agora Manoel enchia a do velho. Olhou no canto do quarto para a velha viola vermelha do avô. “Desiderium”, a palavra estava quase apagada. O velho nunca deixava Manoel tocar na viola, guardava o instrumento em uma caixa de vidro, a chave vivia em seu pescoço. O pobre homem agora se esquecia constantemente das coisas básicas pelo Alzheimer que o visitara no último ano. Manoel também tocava, se levantou e foi até o pedestal onde a viola estava. Olhou com fascínio. Histórias, amores, o império do avô, tudo debaixo daquelas cordas. Pegou a viola e a tirou do pedestal, ela estava fria. “Deve ser o tempo”, pensou. Sentou-se em um velho banco no quarto de seu avô, acomodou o instrumento, apertou as cordas sem tocá-las, a viola era confortável. Fechou os olhos. Tocou um acorde menor, o som era incrível. Avançou no pontilhado, havia uma sensação de poder
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ao empunhar a viola do avô. Ela era proibida. Manoel perdera as contas de quantas vezes quis tocá-la. Uma vez na infância, Tonho o pegara com ela no colo, o garoto recebeu uma sova e a viola passou a morar no estojo de vidro, o mesmo que o Alzheimer deixara aberto. Manoel passou por uma série de acordes e pontilhados difíceis, o instrumento pedia mais, Manoel obedeceu tocando cada vez mais rápido, mais alto, sentiu a sensação de guizo e cobras nas cordas que o avô usava para descrever como era tocar na viola... – Manoel!!!!! A voz do avô o tirou do transe. O velho estava de pé, tinha os olhos arregalados, lágrimas escorriam pela barba branca e por fazer. A sensação de guizo não foi embora, Manoel olhou para as mãos e viu cobras passeando pelas duas. Ele empurrou a viola e as cobras sumiram, seu avô se aproximou com cuidado, colocou a viola no pedestal. Ela se renovara e “Desiderium” estava legível de novo. Virou-se para o neto e ajoelhado a sua frente, disse: – Calma, nós vamos consertar isso. O rapaz não sabia porque, mas estava chorando. – Ele não vai ter você... – Ele quem vô? – O Diabo, meu filho, o Diabo... Na luz fraca da Lua Manoel percebeu que os olhos de Tonho estavam verdes, muito verdes.
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UTÓ PICA Nathália Andrade
QUARTA-FEIRA Eu não consegui dormir essa noite. Acordei com olheiras enormes e escuras, cabelos desgrenhados, corpo amuado e mãos trêmulas. Hoje completei 18 anos, e serão feitas minhas decisões principais. Estamos em 2051, as coisas mudaram muito da época de meus pais, infelizmente não posso ter a opção de escolha como eles. Eu clico na tela branca e pequena ao lado de minha cama,
Utópica – Nathália Andrade
nela seleciono a roupa que vou usar, sempre de cores neutras e modelos um pouco sem graça. Seleciono uma calça branca reta com pregas no cós, e uma blusa simples bege e um tênis branco. A roupa sai passada e dobrada do pequeno compartimento debaixo da tela. Me visto com rapidez, sento e calço o tênis, o próprio calçado amarra o laço sozinho, preciso nem ter o esforço de fazer toda a parafernália de o "coelho entra e sai da toca"; meu pai me ensinou quando eu era criança, mas desde meus dez anos os sapatos fazem por si só. Vou ao banheiro, abro a boca e encaixo a pequena maquininha para limpar meus dentes. Fecho novamente os lábios e ele começa a escovar. Enquanto isso eu lavo meu rosto, ao lado um vaporizador seca minha face e lábios, retiro a pequena maquininha da boca, que já está completamente seca e limpa. Desço para tomar meu comprimido da manhã. Meu pai faleceu faz dois anos, moramos eu e minha mãe desde então. Escolho a quantidade de nutrientes e calorias para ingerir. Estou de dieta e pego apenas o comprimido de 300 kcal. Coloco na língua e engulo, não sei se o gosto é bom ou ruim, pois não sinto mais sabor há uns quatro anos, desde quando foram criados os comprimidos alimentícios: -Bom dia - Diz minha mãe, indo em minha direção num abraço. - Feliz aniversário!
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Utópica – Nathália Andrade
-Obrigada, mãe. Mas não acho que seja algo realmente bom... Não dormi nada. -Eu sei, é o dia das decisões principais... Vai dar tudo certo! -Duvido muito. -Não fique assim, vamos... Deixa eu comprar um bolo hoje, largue um pouco essas pastilhas ridículas. -Não são pastilhas ridículas, são vitaminas que já me fornecem toda a proteína que preciso e como não tem excesso, eu não engordo. -Não conseguiria ficar sem sentir o sabor da comida… Se bem que ultimamente a comida está cada vez mais sem sabor. Falou entristecida. -Não quero perder tempo com comidas… -Filha! Um bolo, só hoje? Ela me olhava esperançosa, eu não estava animada naquele momento, não entendia a alegria dela: -Tudo bem, mãe – Falei sorrindo – Mas faço isso por você. -Obrigada, obrigada! - Disse animada. - Irei na melhor confeitaria de cidade. -Ainda existem confeitarias nesse lugar? -É raro, mas ainda tem! Darei um jeito, não importa. O importante é ver você feliz ao saborear um bolo. -Eles nos dão tanta alegria assim? -Em certos momentos de nossa vida sim, filha.
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Utópica – Nathália Andrade
Ela pegou um pacote de torradas e manteiga. Ela odiava os comprimidos, tomou uma vez e detestou. -Vou pedir o "MOVVE" – Sussurrei desanimada. -Já vai? Não prefere ir mais tarde? -Daqui a pouco a organização "VIVA" liga, prefiro ir e evitar uma conversa por vídeo, falada ou mentalmente. -Infelizmente não permitem um acompanhante. -Não se preocupe, mãe. Vou levar o lenço do papai comigo. -Ainda tem o cheirinho dele, não é? -Espero que nunca saia. Apertei levemente o dispositivo preso em minha nuca, em minha frente apareceu a tela grande de holograma. Mentalmente chamei o "MOVVE" o transporte público mais usado; é um tipo de autocondução. Em menos de 5 minutos escutei o chamado na rua, dei um beijo em minha mãe e saí pela porta. Sentei no assento configurável individual, as portas se fecharam. Estava sobre quatro rodas, o assento permanece em posição vertical, e em alguns segundos o meu modelo se ergueu em duas rodas se juntando a mais cadeiras. O painel que nos separa se abre, e de repente ao meu lado aparece outras pessoas. Todos sentados em suas respectivas cadeiras. A velocidade é rápida, então não demora muito para o meu assento se desprender do grupo e parar no meu destino.
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Utópica – Nathália Andrade
Lá estava o prédio gigantesco de cor amarelo-claro, com o letreiro bem chamativo: "VIVA". Eu temia esse lugar, não tinha escapatória, ali seriam feitas as decisões de meu futuro. A organização foi criada para tornar-nos uma sociedade perfeita. Mesmo todos sabendo que a utopia não existe e jamais existira. Eles criam essa realidade falsa e imaginária nos controlando com regras idiotas, desnecessárias e doentias. E pelo jeito o plano deles está funcionando com a sociedade. Não temos mais garra de correr atrás do que queremos, as pessoas estão cegas, apenas vivendo um dia após o outro. Acomodados com os diversos serviços tecnológicos mais avançados possíveis. Entrei. Uma máquina me pediu para ligar o meu dispositivo que fica em minha nuca, mostrando minha identidade. Permitida minha entrada. -Setor de decisão na ala nove, segundo andar. - Disse a máquina. Entrei no elevador, ainda com o dispositivo ligado, porém apenas para a minha visão; apertei o botão do segundo andar mentalmente. Não que eu não queira apertar com os dedos, mas é que não tinha essa opção. Fui em direção a ala nove, havia mais alguns recém-adultos sentados nos assentos. Um robô humanoide em pé na entrada da ala checou minha identidade novamente.
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Utópica – Nathália Andrade
-Sente-se - Disse o robô com voz irritante - Será chamada em exatos dez minutos. Coloquei o cronograma em meu dispositivo. Enquanto esperava, entrei na internet para passar o tempo. Fucei nas várias redes sociais que tinha, a maioria inútil. Pessoas que nunca nem vi pessoalmente me mandavam mensagens de parabéns. Pareciam os dez minutos mais longos de minha vida, vários jovens entravam e saíam, e a sala de espera foi ficando cada vez mais vazia, sobrando somente eu. Meu cronograma vibrou: -Agatha Andrade – Disse o robô – Pode entrar na sala. Eu entrei na sala de cor branca e amarelo suave, havia uma humana. Que sorte, não seria uma máquina a decidir meu futuro. -Bom dia – Disse a mulher num sorriso forçado – Parabéns pelos seus dezoito anos. -Bom dia, obrigada… Eu acho. -Sente-se. Me sentei, não conseguia conter meu corpo tremer, dobrei as pernas e balancei os pés para tentar amenizar o nervosismo. -Bem-vinda a VIVA. Hoje você receberá suas decisões, já recebemos seu currículo escolar e já foi feita a decisão para seu emprego.
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Eu não conseguia falar, já estava difícil eu manter minha respiração normalmente. -Colocamos seu perfil com fotos e descrições de sua personalidade no nosso encontro semanal, será nesta sexta. Quem se interessar pelo seu perfil, irá te encontrar na ala 20 do terceiro andar, lá você escolherá um cônjuge. Se não aparecer ninguém ou você não suportar as opções presentes, você terá a chance de ver alguém em nosso catálogo virtual e vir no primeiro encontro da pessoa, como o seu. -Quantas chances eu tenho de encontros? -Esse é a primeira tentativa, que é a sua exposição em nosso catálogo virtual. Se ninguém aparecer você ganha a chance de escolher no catálogo. O pessoal que escolhe por catálogo é sempre alguém que não tenha recebido ninguém no encontro ou não conseguiu gostar de nenhuma das pessoas. -Então se eu não gostar de nenhum do meu primeiro encontro de sexta, tenho a última chance no catálogo? -Exatamente, a escolha por catálogo é sua última opção. -Muito estranho… -Não é, adotamos essa prática há sete anos, e a harmonia e imagem de família tradicional está cada vez mais forte. O nosso controle de natalidade ainda está muito alto, então até os próximos cinco anos é proibido que você tenha filhos, para evitar isso já vamos infiltrar o chip em seu corpo.
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Utópica – Nathália Andrade
Era muita informação para uma só conversa. Senti uma picada em meu braço direito, virei meu rosto num grito de dor: -O que é isso? – Perguntei. O robô da voz irritante estava do meu lado. -O chip para evitar a sua gravidez – Falou a mulher com naturalidade. -Podia ao menos avisar? – Perguntei um pouco exaltada. -Não faz diferença. Muito bem, no seu perfil escolar e de acordo com os mestres de educação, sua melhor área era em química. “Droga!” -Você trabalhará na área de fabricação de medicamentos. -Pensei que para isso teria que ter um maior conhecimento em medicina. -Querida, acha que estamos em 2017?! Hoje em dia ninguém mais cursa algo, você receberá outro chip em sua memória com todas as informações para esse trabalho; e aprenderá em minutos. É como se você tivesse estudado o assunto há anos. -Eu tenho escolha? -Não. Se não aceitar, você não terá um salário, você recebeu durante todo esse tempo um apoio em dinheiro e sua mãe recebe a aposentadoria. O emprego garantido é o apoio que o governo oferece.
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Utópica – Nathália Andrade
-Ok. -O seu apoio mensal era de R$950,00. Na sua área você ganhará mensalmente R$4.562,00. -Nossa, é um bom dinheiro. -Baseado no custo alto de vida atualmente seria o mínimo. Se subir de setor, o salário também aumenta. -Ok. -A empresa é a LOREN QUÍMICA. Fica apenas há dez minutos a pé de sua casa e dois minutos de MOVVE. -Eu conheço, é perto. -Começa o trabalho amanhã, das 9:00 até as 17:00. -Ok. -Não esqueça a data de encontro para o suposto cônjuge, será nesta sexta. É obrigatória sua presença, senão aceitar você perde o emprego e um membro de sua família também perde o ganho mensal. No caso sua mãe. Se o encontro falhar tem até uma semana para encontrar o cônjuge no catálogo online. -Mas porque preciso ser obrigada a ter um cônjuge agora? -Para manter a harmonia e organização de nossa sociedade, assim você terá nosso total apoio. -Nem filhos vou poder ter no momento... -Escolha sua, prefere perder tudo? -Ok, o encontro será aqui no VIVA?
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Utópica – Nathália Andrade
-Aqui no VIVA, das 18:00 às 20:00, deve cumprir o horário corretamente, ala número 20 no terceiro andar. -Ok. -Agora o chip de conhecimento para o novo trabalho. Estou te avisando para ficar preparada. O robô irritante se aproximou com mais cautela perto de mim, fechei os olhos, senti a pressão forte em meu cérebro, uma dor irritante e latejante na cabeça me fez tombar para o lado. Era tão assustador e horrível saber coisas que não tinha ideia que sabia. Mais dor insuportável, eu sei que gritei muito. Eu escutava meus gritos como se eu estivesse bem distante. Senti minha mente ser invadida da forma mais horrível possível, parecia que não tinha fim; até que de súbito acabou: -Pode se retirar – Disse a mulher. QUINTA-FEIRA Acordei com os olhos inchados de tanto chorar, dormi no sofá da sala ao lado de minha mãe. Eu comi o bolo que minha mãe comprou em uma das últimas confeitarias que ainda sobrevivem nessa época tão controladora, o bolo estava fantasticamente delicioso. Sentir o gosto de chocolate depois de tanto tempo me fez desistir dos remédios alimentícios.
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Utópica – Nathália Andrade
Fui até a geladeira e peguei mais um pedaço de bolo, minha mãe continuava dormindo. Terminando, me preparei para o novo trabalho, deixei um bilhete em cima da mesa e fui caminhando até a LQ. Liguei meu dispositivo de nuca para seguir corretamente o caminho até meu trabalho, e coloquei um pouco de música. E realmente em dez minutos eu já estava lá, o prédio era imenso, me curvei para ver a altura dele, mas a luz do sol não me permitia ver tudo. Na entrada tinha uma máquina de identificação, liguei o holograma e foi permitida minha entrada. Uma jovem moça muito sorridente me aguardava próximo ao elevador: -Agatha Andrade? – Perguntou ela estendendo a mão. -Isso mesmo – Correspondi ao aperto de mão. -Hoje é seu primeiro dia, será apenas de treinamento. Seja bem-vinda. -Obrigada. -Acompanhe-me. A porta do elevador se fechou em nossa frente, a moça ainda sorrindo para mim falou o número do andar e então a máquina subiu.
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Utópica – Nathália Andrade
SEXTA-FEIRA O meu trabalho não teve nenhum tipo de dificuldade, o treinamento foi praticamente inútil, eu já tinha tudo armazenado no chip do cérebro. Hoje era um dos dias que mais temi, desde que a notícia foi espalhada pelo mundo: Encontros conjugais obrigatórios. Lembro de ouvir meu pai ainda vivo, me consolando, que até eu fazer dezoito anos eles desistiriam dessa ideia absurda. Infelizmente ele estava errado, e hoje viverei meu pesadelo. Eu chorei muito durante toda a noite, que novidade, não é mesmo!? Durante toda a madrugada senti as mãos de minha mãe acariciando meus cabelos, sussurrando que tudo daria certo. Cheguei um pouco adiantada no encontro ridículo organizado pelo VIVA. A sala não tinha o mínimo de um aconchego, era apenas uma sala de espera fria e desoladora. Eles nem ao menos tentam fazer com que encontremos alguém bacana, que dependendo dê certo. O tempo foi passando, e ninguém chegava. IUPI!, vou ter a chance de poder escolher um humano num catálogo online e me casar, que fascinante! Meu Deus, isso é tão doentio. Depois de uma hora sozinha na sala mais triste que já fiquei, um rapaz entrou na porta:
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Utópica – Nathália Andrade
-Com licença – Disse ele. – Nesta sala está a Agatha? - Ele olhou um papel em suas mãos um pouco trêmulas. – Agatha Andrade? O que um humano ainda faz carregando um papel na mão?! Ele realmente estava perdido. -Oi, sou eu. – Falei num aceno ridículo e constrangedor. -Prazer, sou o Rogério; vi você no catálogo. Que maneira mais linda de começar um encontro. -Venha, pode sentar. – Falei apontando para a cadeira. -E então, já veio alguém? -Ainda não, pelo jeito não sou atrativa – Dei um riso nervoso. -Não diga isso. É que está sendo difícil pra todos nós... Você sabe, passar por isso. Esse negócio todo de família tradicional. -Sinceramente, é um pesadelo. -Um pesadelo real. - Dava pra ver o desconforto dele. -Queria viver dentro de meus sonhos. -Talvez um dia quem sabe… Inventem mais uma nova tecnologia que dê para viver dentro de seus próprios sonhos. -Eu seria a primeira a adquirir, com certeza. -Seria muito caro para adquirir como as demais. -Até que não estou ganhando mal em meu emprego. -Foi posta aonde?
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Utópica – Nathália Andrade
-Fabricação de medicamentos. -Gostou? -Nem um pouco. -Detestei o meu, fiquei na parte de ajustes eletrônicos e mecânicos. Ficarei mais na parte do MOVE. -Que droga! Comecei a balançar minhas pernas por causa da ansiedade. E então ficamos num silêncio constrangedor por uns 2 minutos: -Eu não quero te enrolar, nem nada. - Disse Rogério de súbito - Vou ser sincero, estou morrendo de medo, meu tempo está curto. Não encontrei ninguém, e ninguém me quis… Não posso perder o emprego, estou sozinho. Moravam eu, meu pai e minha irmã. Ela já tem vinte e um anos, se mudou faz um tempo. -E seu pai? -Faleceu. -Você precisa de alguém não é? -Sim, Agatha. E você tem todo o direito de tentar com mais alguém, mas vamos ser realistas, isso não é um conto de fadas… Não existe mais amor nos casamentos. Somos obrigados. Olhei para meus pés. Eu ainda tinha alguma chance? Segurei as mãos de Rogério e olhei com seriedade para ele.
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-Vamos esperar juntos esse encontro até o final. Eu ainda preciso ver se algo me espera, senão sairemos daqui juntos. É uma promessa. Ele sorriu. De alívio e gratidão, e de mãos dadas esperamos até o horário encerrar, ninguém mais entrou pela porta, não tive a chance de ter um namoro normal, com alguém que se tenha sentimentos verdadeiros ou que, pelo menos, eu conheça há algum tempo. Bom, não fazia diferença, nunca idealizei ninguém: -Somos oficialmente futuros marido e mulher. -Obrigado – Sussurrou ele – Vamos sobreviver. SÁBADO No dia seguinte, usando calça e blusa brancas eu me casei. Não teve maquiagem, nem madrinhas saltitantes e coloridas e muito menos flores. Os únicos convidados eram minha mãe, e a irmã de Rogério acompanhada de seu esposo. Assinei um papel cheio de letrinhas miúdas, tudo foi devidamente gravado em vídeo. Não podíamos enganar a lei. Naquele dia eu senti um pouco de alegria. Depois da “cerimônia”, fomos todos para minha casa, agora também de Rogério e teve um banquete delicioso, e não podia faltar o fantástico bolo de chocolate.
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Senti falta de meu pai. Eu queria ele ali conosco jantando e comemorando o “casamento perfeito”, mas pensando melhor ele estaria infeliz ao me ver passando por isso. Pelo menos ele não precisou vivenciar isso e sofrer junto a mim. Mais tarde, fomos para o meu quarto, que tinha uma nova cama, maior e mais espaçosa. Se não desse certo havia mais quartos na casa, poderíamos dormir separadamente: -Vai dar tudo certo – Ele falou para mim – Podemos manter isso. É um casamento de aparências, mas nossa amizade não. -Eu sei, vamos tentar fazer funcionar. Naquele dia eu e Rogério passamos a noite acordados conversando, alternando pedaços de bolo, com risadas e desabafos, um sentado em cada lado da cama. Conheci meu marido só faz algumas horas, nem sabia se era um assassino. Precisava conhecê-lo; e assim foi a nossa noite de núpcias. CINCO MESES DEPOIS Eu não queria levantar da cama, tenho vontade de viver em meus sonhos eternamente. Toda vez que o despertador toca sinto meu coração tremer de medo e angústia. E eu não tenho para onde recorrer, eu não posso simplesmente correr para um campo lindo e florido sentar na grama sem me preocupar com o dia de amanhã.
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Eu estou presa, num mundo onde eu não tenho escolha. Abra os olhos! Falo para mim mesma. É pela sua mãe, Agatha! Por ela, levante dessa cama e vá viver uma vida de mentira. Abro os olhos, pisco algumas vezes e olho para meu quarto. Não muitas cores ali, não tem minha personalidade ali… Se é que ainda tenho uma personalidade. Coloco minhas mãos sobre meus olhos, e então começo a chorar. Mas esse choro eu tenho todos os dias logo pela manhã e ao anoitecer. É a maneira que descarrego meus sentimentos. Uma batida na porta: -Acorda, flor do dia, está atrasada. - Era o Rogério. -Já vou. - Tento abafar o barulho do choro. Limpo minhas lágrimas com o antigo lenço do meu pai. Precioso lenço de seda estampado. Olho para o armário e seleciono mais uma roupa e calçado que não gosto; precisava apenas cobrir meu corpo. Fui até o banheiro e mecanicamente eu escovei os dentes, lavei o rosto e penteei os cabelos num coque. Me olhei por um segundo no espelho, será que sou bonita? Bom, não tenho tempo para isso. Desci apressada para o café da manhã, Rogério tinha razão, eu estava atrasada: -Bom dia – Disse Rogério. -Bom dia, minha mãe já acordou? -Saiu cedo, foi no mercado.
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-Costumes não mudam, ela adora ir ao mercado logo cedo. -Coisa de gente mais velha… Não diga que falei isso dela. Falou rindo. Eu esbocei um sorriso um pouco forçado, ele percebeu. Droga! -Está tudo bem, Agatha? -Tudo sim… Bem que minha mãe podia fazer lasanha para o jantar. - Mudei de assunto. -Nossa, a lasanha dela é maravilhosa. -Tem alguma coisa pra eu levar pro almoço? - Perguntei mastigando um pedaço de bolo. -Fiz um sanduíche para você, e tem garrafinhas de suco na geladeira. -Obrigada, já ia esquecendo: chegou um pacote para você, está no meu quarto. -Sério? Será que é do Fernando? Ele disse que me mandaria um presente. -Tome cuidado, Rô. Sei que aqui dentro de casa estamos seguros novamente, mas lá fora, precisamos manter as aparências. Precisam ver como farão com o cônjuge dele. -Eu sei, eu sei. Mas é que não vejo a hora de voltar a ver o Fernando e ele morar com a gente. Sim, Rogério é homossexual e se tornou o meu melhor amigo.
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-Temos que ver sobre isso de morar também, o cônjuge precisa estar de acordo. -Se tivermos sorte, ele encontrará alguém como você. Não aguento de ansiedade! -Controle-se homem! – Falei dando um beijinho em sua testa. -Vamos, estamos atrasados. Ao sair pela porta, na rua eu e Rogério nos beijamos, na boca como um casal apaixonado, vizinhos, sociedade, câmeras, e todo o mundo nos via. -Tenha um bom dia, querida – Disse ele num sorriso amável. -Até mais tarde, amor. – Falei numa piscadela. E cada um foi para um lado, para continuar vivendo uma vida de mentira, que não escolheu. Um emprego indesejado que era preciso suportar para sustentar nossa vida e família. Liguei o dispositivo de nuca, selecionei uma música qualquer, o som ecoava alto em meus ouvidos e mente, pessoas e mais pessoas passavam próximo a mim sem se olharem, andavam mecanicamente. Não tinha sorrisos, nem nenhum tipo de semblante a não ser o de desânimo. Eu lembrei de meu pai enquanto caminhava olhando para meus tênis amarrados, ele não estaria feliz com toda a situação de agora. Algo precisa ser normal, arranquei com força a porcaria do dispositivo que amarrava meu tênis e desamarrei meu laço. Me ajoelhei:
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“O coelhinho saiu da toca, daí ganhou uma gravatinha, ele deu uma voltinha e formou um lacinho”.
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