Morte

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MORTE



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Capa: Petter Editoração eletrônica e Capa: E. Reuss Ilustrações: Lucas Siqueira e Youil Samara


SUMÁRIO A FLORESTA DAS COISAS RUINS ........ 8 ORGIA DE NINFETINHAS SUECAS & O CAMINHÃO DE PIROCA ................ 21 CABEÇA NAS NUVENS ........................ 48 DOZE PERGUNTAS .............................. 76 HERE IN HEAVEN ............................... 89 REUNIÃO DE FAMÍLIA ........................ 95 ÚLTIMAS PALAVRAS ......................... 104 SERÁ QUE VEREI ELA HOJE? ........... 125 DELÍRIO MATINAL ............................ 150 ENTRE EM CONTATO ........................ 165


Algumas pessoas acreditam que a morte é o fim de tudo, outras pensam que é só mais um degrau no caminho para algo muito maior. No que você acredita? O que todos concordamos é que a morte é inevitável. Não importa a maneira como você viveu sua vida, lobo ou cordeiro, a sua vez vai chegar e nem sempre depende de você. Mas fique tranquilo, morrer em si não é algo que se deva temer, mas a maneira como isso acontece... Ah, isso já é uma história completamente diferente.

V. E. Simeoni



A FLORESTA DAS COISAS RUINS Petter

Observo as árvores. O que parece ser serenidade, na verdade, é uma briga. Que até mesmo criaturas imóveis possam fazer parte de uma competição muda e constante pela luz, competição essa que chega a ditar a forma, a deformar os


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seus corpos, mostra a essência cruel de uma floresta. Éramos uma família difícil. Também competíamos desesperadamente, apesar de contrastarmos com as árvores por não podermos parar de caminhar. Na nossa viagem sem fim passávamos por vilas e campos, mas, na maior parte do tempo, andávamos mesmo era na floresta, que era cheia de lianas, estas plantas que trazem uma sugestão aracnídea e ofídia aos mesmo tempo. Uma coisa que precisa ser entendida é que a floresta era um lugar realmente perverso. Vivendo em um ambiente como aquele, ou era-se como éramos, ou não se era coisa nenhuma. Tendo nascido ali, vendo coisas mágicas e perversas desde sempre, nada era muito mágico e muito perverso para mim. Éramos nômades por que não havia outra forma de viver: os perigos estava sempre atrás, e a frente sempre guardava mais. Quando finalmente saíamos da floresta, de vez em quando, era inusitado ver a falta de bizarrices. Neste caso, nós passávamos a ser o mais bizarro e o mais terrível, e isso era bom. Mas não ficávamos muito tempo em terra limpa. Dava agonia. Sabíamos que, apesar de tudo, éramos da floresta, como as lianas e as árvores e a escuridão que elas criavam.

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Não seguíamos mapas na floresta. Às vezes víamos plaquinha de madeira nas árvores com algo do tipo "Aqui habita fulano. Pare, recue e nunca mais volte." Recuávamos. Quando o declive ficava mais íngreme, a densidade de árvores aumentava, ficando difícil passar entre elas, e os troncos começavam a se embaralhar na nossa visão (às vezes o tronco da frente parecendo estar atrás dos outros) sabíamos que estávamos chegando em uma zona pesada, raiz da floresta, de onde quem entrava não conseguia sair, e sempre escolhíamos não entrar. O perigo era já ter entrando sem se dar conta. As coisas realmente grandes estavam lá. Esqueçam isso. Deixe-me descrever a família. Havia a Mãe, que nunca teve jeito para feitiçaria, apesar de tentar até o fim da vida, e que por isso tinha que se juntar com o grupo para sobreviver. Era claro para mim que ela não gostava disso. Havia os meus quatro irmãos, Jorge, Estrela, Mamão e Olipimpum. Todos escolheram os seus próprios nomes porque o Pai e a Mãe não haviam se importado em fazê-lo. Além desses, havia existido mais três irmãos, mortos em brigas fraternais bobas. O Pai já se mostrava cansado da vida. Logo, tornaria a família lenta, e então teríamos duas

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opções: matá-lo ou ser fiel a ele e a sua lentidão, o que mataria parte da família, senão toda ela. Eu não o mataria, então seria este o trabalho do Tio. Eu não poderia, como meu dever, permitir, logo teria que me meter no meio. Há muito tempo já observava os seus padrões, me preparando. O Tio. Ele era alto e de aparência severa. A gente chamava ele de Tio, apesar de eu duvidar da nossa relação sanguínea. Imagino que ele tenha sido um dos poucos viajantes que meus pais encontraram e que acabaram não agredindo. Desta forma, havia um entendimento, uma relação anestesiada entre os adultos. A maior forma de afeto aqui era a não agressão. O Tio era realmente apenas um cara que um dia se juntara ao grupo sem dizer uma palavra, como se sempre estivesse estado ali, e aceitara o seu cargo. Para falar a verdade, eu duvidava até mesmo da relação biológica dos meus pais comigo, dos meus irmãos, enfim, de todos, uns com os outros. “Pai” e “Mãe” pareciam mais denominações hierárquicas do que qualquer outra coisa; eu os chamava como se chamaria um tenente ou um professor. O meu papel era bem claro. Desde muito cedo eu escutava o Pai dizer "Eu cuido de você agora. Quando eu ficar velho e perdido você cuida de mim da mesma forma, entende? Velho nenhum dura muito sozinho". Eu era, afinal, um seguro, uma aposentadoria, que ia aos poucos sendo A Floresta das Coisas Ruins - Petter


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lapidada com raras e modestas demonstrações de afeto. O Tio era um tatuador. Seu portfolio era o seu braço, que ele saia mostrando e oferecendo: "Olha aqui, veja só! Quer uma dessas?”. Era uma das poucas ocasiões em que falava. Essa, além de pilhagem, era a forma como supríamos regalias. Muitas vezes entrávamos em uma casa para que o Tio tatuasse alguém, e, depois de receber as moedas, pilhávamos tudo. Eu adorava gritar feito um animal enquanto derrubava os enfeites das prateleiras e desenhava nos quadros com carvão. Enquanto isso, os adultos faziam coisa mais sérias. Por que não pilhar tudo já de início?, o leitor poderia perguntar. Por que o Tio realmente gostava de tatuar, e se sentia lisonjeado quando encontrava alguém que quisesse tatuagem sua. Era a sua peculiaridade, e respeitávamos isso, afinal, todos tínhamos as nossas próprias pequenas estranhezas. Quando não encontrava quem quisesse tatuagem, o Tio tatuava mesmo assim, prendendo o miserável enquanto fazia seus pequenos furinhos. Às vezes inclusive me chamava para tentar. Se existia esta imposição artística por parte de meu Tio, por vezes seus desenhos também salvaram vidas. Ele detestava quando o Pai matava alguém recém tatuado pois não conseguia suportar a ideia da tinta fresca apodrecendo em poucos dias. “O meu público agora é A Floresta das Coisas Ruins - Petter


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feito de vermes!,” gritava. Quando gostava muito de uma tatuagem, conseguia impedir que o tatuado fosse morto pela família em meio à algazarra de destruição. Na verdade, por vezes gostava tanto do que criava que trazia a pobre criatura tatuada conosco, por uma coleira de corrente, para, de vez em quando, olhar para a sua obra, até se cansar dela. De início, tatuava eu e meus irmãos, já que não podia perder-nos. Aliás, me agradava isso. Eu sabia que isso diminuía a chance de ele nos matar em um dos seus raros ataques de temperamento. Na verdade, creio que tenha sido o intrincado tribal que desenhou em meu irmão Jorge que o salvou da morte uma vez em que defecou no pé do meu Tio. Aquela tatuagem tribal tinha dado realmente muito trabalho, e, talvez não por coincidência, Jorge era o seu sobrinho preferido. Eventualmente, a Mãe convenceu o Tio a parar de nos tatuar. Foi aí que ele arranjou Nariz, um homem que já havia nos seguido algumas vezes, pedindo tatuagens. Quando os negócios do meu tio enfraqueceram, para satisfazer a necessidade da mão, ele prendeu o pobre do Nariz na coleira, e o levou atrás de si para sempre. Com o tempo, Nariz foi tatuado dos pés à cabeça, se tornando uma obra ambulante do Tio, pode-se dizer. Chamo-o de Nariz por mero motivo narrativo e por ser a sua única característica discernível, pois não o chamávamos de nada na A Floresta das Coisas Ruins - Petter


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época. Se um dia havia dito o seu nome, ninguém se lembrava. De início, Nariz escolhia suas próprias tatuagens, mas ele não era alguém de personalidade. Mal olhava nos olhos das pessoas com as quais conversava, sempre falava como se estivesse sugerindo, como se talvez estivesse errado, mesmo quando sabia que estava certo. Por isso, quando o Tio disse que um pássaro que cobrisse o ombro seria ótimo desenho, Nariz não disse não. Com o tempo, o Tio fazia o que queria com Nariz. Certo dia, estávamos em uma casa de árvore abandonada, comendo restos de lobo. O único que não comia era a obra do Tio, que estava nos observando, sentada em uma cadeira, viva. Sombra cobria o rosto de Nariz. Olhando para os seus braços apoiados nos braços da cadeira, eu sentia estar vendo um desenho vivo, e não Nariz. Há duas semanas o Tio havia coberto o último pedaço de pele rosa, e agora Nariz estava soterrado sob os desenhos. Nariz colocou o pescoço para frente, tirando o rosto da sombra. Olhos abertos, vazios. Começou a piar. Correu para cima do Tio com os braços esticados e abanando. Começou a bater o nariz na cabeça do Tio. Este se livrou de Nariz, mas o tatuado agia de forma absurda sem descanso. Depois, se acalmou. Pegou um pedaço de

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madeira. Achou um pedaço de rocha e começou a raspá-lo com uma pedra. Enquanto fazia isso calmamente, comecei a olhar as suas tatuagens. O pássaro no ombro era uma das poucas exceções. O Tio andava obcecado por caveiras. Tinha achado um crânio e alguns ossos no caminho, e desde então cobrira Nariz com os mais variados desenhos envolvendo esqueletos. Em especial um desenho central, que cobria todo o peito e barriga, o desenho da morte. Foice, capuz e tudo mais. Nariz se aproximava, com um caminhar quase majestoso, segurando o cabo que na ponta tinha uma pedra em formato tosco de lua, como se desenhada por criança. O Tio ainda não tinha entendido a situação. Aproximou-se do Nariz, que o pegou pelo pescoço e começou a asfixiá-lo, levantando o Tio contra a parede. Mesmo com o resto da família tentando derrubá-lo, as mãos continuavam em volta do pescoço do Tio, apertando, apertando. Enquanto sofria, pouco antes de ficar com a visão embaçada, o Tio mantinha o foco de visão na testa de Nariz, testa esta que tinha uma textura de cobra. As mãos saíram do pescoço do Tio para se tornarem inúteis. Nariz passou a rastejar como se elas não existissem, botando a língua para fora. O Pai pegou Nariz e o jogou pela janela.

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Seguimos o dia caminhando. Já havíamos vistos coisas mais estranhas. Naquela noite, enquanto os outros dormiam, fiquei de vigia. Escutei o barulho de corrente se arrastando. Quando levantei a cabeça, vi Nariz furando o peito do Estrela com a sua foice disforme. Não o vi chegar. Era como se tivesse visto uma sequência de painéis: num momento não estava ali e então estava. Nariz vestia agora uma túnica que tapava parte da sua cabeça, seus ombros e braços. O nariz mal aparecia. Tentamos, mas flechas e facões não adiantaram; entravam na pele, mas era só. Logo entendemos que este era um caso de fuga. A morte não nos seguiu de imediato; ficou do lado do corpo do Estrela, observando-o. Então, quando estávamos já longe, exaustos de correr, tomando fôlego, ela apareceu novamente, puxando o cadáver do Estrela por uma corrente presa ao pé. Não atacou, apenas ficou perto da Mãe. Quando todos se cansaram de tentar esfaquear, chutar, gritar, se sentaram, observando-a. A morte se sentou entre a Mãe e eu, assim, bem perto de mim. Acabei dormindo, sem mais forças. No dia seguinte, porém, a morte já não estava tão inofensiva. Acordei vendo o cadáver da Mãe. Os dias se seguiram assim. Era impossível se distanciar dela, mesmo com o seu corpo atravessado por muitas facas e flechas. A morte andava conosco, comia conosco, dormia conosco. Todo dia, A Floresta das Coisas Ruins - Petter


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levava alguém. Estrela. Mamão. Olipimpum. No quarto dia, pensávamos em soluções com ela ali, escutando tudo. Ela trazia todos os cadáveres consigo, puxando-os atrás de si. O fedor era forte. Para mim, Vô Mantú era, até então, um canto de pássaro. De vez em quando, escutávamos os pássaros cantando estas palavras, como se estivessem buscando acasalamento. Mas agora, toda vez que o Pai, já exausto, chorava perguntando como íamos nos livrar da morte em pessoa, um pássaro falava “Vô Mantú”. Notei que aquilo era uma resposta. O pássaro olhava diretamente para o Pai, afinal. Passamos a seguir estes pássaros, que nos levou até a casa de Vô Mantú. Só o fato de Vô Mantú ter um lugar seu já nos espantava. Quando alguém para na floresta e decide morar em um lugar, fincando o cajado fundo na terra, é porque tem poder. Claro, existem as casas que estão sempre mudando de dono, mas a de Vô Mantú tinha uma plaquinha com riscos incontáveis que aparentavam dizer há quantos dias estava ele ali ou a quantidade de desafiadores que matara. A casa de Vô Mantú ficava em um pântano. Os pássaros cobriam o seu telhado, parecendo prontos para levá-lo para o céu, ou então o telhado eram os pássaros, sem qualquer telha embai-

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xo, era difícil dizer. A casa em si era uma coisa de madeira escura tão decrépita quanto o seu dono. A fumaça que saía dela não era madeira sendo queimada, mas sim saída do próprio Vô Mantú, sabe-se lá como. Lá dentro, a casa parecia estar sempre em movimento, fazendo barulho, mas era difícil ver as pequenas criaturas que espreitavam. A princípio, não parecia apropriado recorrer a um cego quando o problema era tatuagem. Outra questão era a fala de Vô Mantú: apenas uma rápida interrupção entre uma tosse constante. Vô Mantú parecia sempre à beira da morte. Se já não bastasse a tosse, ainda mastigava o talo de uma planta enorme, babando um caldo espumoso pelo queixo enquanto o fazia. - Quem diz que até mesmo a sua personalidade não vem de uma tatuagem? Quantas tatuagens você tem? – Disse, depois do Pai explicar a situação (a morte esperava do lado de fora da casa). - Você podia ser uma outra pessoa que nem lembra mais antes de fazer a tatuagem que define você hoje. Talvez as suas tatuagens não cheguem ao ponto de transformá-lo em outro ser, pois você não é tão fraco quanto o outro que o persegue agora, mas podem, sim, ter modificado quem você é. Veja se tenho alguma tatuagem.

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Seria uma estupidez. – Esta fala demorou muito mais do que aparenta, fragmentada entre tosse e mastigação. Vô Mantú nos disse que, sim, seria possível mandar a morte embora. Isso foi um alívio. Vô Mantú exigia primeiramente um sacrifício, porém. Um dos grandes. Nenhum animal, mas sim um humano. E não qualquer humano, precisava ser alguém com o qual o pedinte se importasse. Foi aqui que o Tio apontou para o Pai. Ele não o mataria, claro, porque não se importava com ele. Passou a lança para mim. Me aproximei. A cara do Pai retorcida. Pai, tinha de ser feito. Pai, o homem ilustrado vai nos matar, não somente o Tio, que, afinal, é muito mais útil a nós do que você, mas também vai matar, matar todos nós, e bem, Pai, eu nunca gostei tanto assim de você. Vamos falar a verdade. Fazer a verdade. Enfiei o cabo. Apesar deste pensamento de desapego, eu talvez estivesse mentindo a mim mesmo, por que Vô Mantú realmente se satisfez com o meu ato. Talvez eu não fosse apegado ao meu Pai, mas sim à ideia, a obrigação de protegêlo. E numa floresta onde tudo é desordem, a quebra de um dos meus poucos princípios talvez tenha tido gosto para o Vô Mantú, que gozou ali mesmo, no segundo do sacrifício.

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Vida salva por Vô Mantú é uma vida dele. Opondo a Morte, que sempre coleciona cadáveres, Vô Mantú junta gente viva para si. Sabíamos disso. Ele havia sido honesto no acordo. Ser escravo de Vô Mantú é melhor do que a morte.

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ORGIA DE NINFETINHAS SUECAS & O CAMINHテグ DE PIROCA Sevla 7


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1º semana: Ichi O sol bate forte enquanto caminho o mais rápido que posso pelo centro da cidade entre uma multidão de pessoas, todas andando apressadamente enquanto tentam aproveitar da forma mais eficiente possível cada minuto restante da liberdade concedida no meio de suas obrigações diárias e rotineiras, que consistem na maior parte do tempo em fazer tarefas desagradavelmente tediosas enquanto convivem com pessoas pelas quais fingem empatia. Este é um fenômeno conhecido pelo seguinte nome cientifico: Horário de almoço. Procuro pelo restaurante que marquei o endereço no verso de uma nota fiscal enquanto conversava com o produtor. Por estar segurando o telefone com a mão que uso para escrever precisei escrever usando a que restou, percebo tarde demais que ambidestria não é uma de minhas virtudes. Olho para o verso do fino pedaço de papel amarelado e tento decifrar aquela mensagem quase que criptografada enquanto busco alguma lógica básica, como por exemplo, aquela que diz que várias letras juntas geralmente formam palavras e essas por sua vez com sorte formam o endereço de compromissos onde você deveria estar as 13:00hs de uma Quinta-Feira. Orgia de Ninfetinhas Suecas & O Caminhão de Piroca – Sevla 7


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Encontro o local indicado entre uma travessa e um café tradicional ao estilo Italiano, observo o papel onde anotei e comparo se os nomes são parecidos, não parecem (para felicidade do proprietário) mas é este lugar mesmo. Em uma primeira impressão, aparenta ser apenas uma grande padaria, mas por estar em um local privilegiado pelo grande movimento de pessoas acabaram expandindo seus negócios para também atender a grande demanda de trabalhadores vindos das empresas instaladas na região. Desta forma o velho proprietário (descendente alemão, vindo de uma cidade do interior), após certo investimento pôde se dar ao luxo de acrescentar ao final do nome um “Padaria & Restaurante”, tornando-se mais uma opção de Self-Service da região. Segundo o produtor era um excelente estabelecimento, afinal, o suco era de graça e serviam gelatina e um licor de abacaxi como cortesia. Entro no lugar e após pegar uma bandeja, prato e talheres sigo até o bufê para escolher o que comeria, tento usar a escolha das comidas que iriam para o meu prato como uma forma de demonstrar segurança, responsabilidade e produtividade, mas acabo não resistindo às batatinhas smile que eram o diferencial dos almoços às quintas, era uma oportunidade que não aparecia todo dia da semana e acabo cedendo ao desejo. Orgia de Ninfetinhas Suecas & O Caminhão de Piroca – Sevla 7


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Com o prato pronto pego a fila da esquerda do caixa, enquanto aguardo reparo que a atendente da fila da direita parece mais animada, percebo tarde demais meu erro que custará mais alguns minutos de atraso... Que horas eram agora? Olho o relógio em cima do caixa que marca 13:27hs (atrasado, novidade para eles mas quase uma rotina a essa altura). Após duas pessoas serem atendidas a fila para de andar. Movido pela curiosidade olho pelo lado para ver o que houve, sobre o balcão apenas a bandeja e nenhum sinal de sua proprietária, a caixa olhava para a esquerda onde ficava a geladeira com os refrigerantes e lá estava a dona daquela comida que atrasava meu compromisso, por mais que a geladeira estivesse bem organizada o olhar dela percorria de canto a canto enquanto procurava algo específico, um dos funcionários da padaria ao observar a dificuldade da cliente vai até ela para tentar ajudar, ao se aproximar eu o escuto dizer: - Oi posso ajudar? - Oi! – Diz a cliente um pouco envergonhada e agitada – Tou procurando uma coca, é rapidinho. - Aqui – Diz o rapaz enquanto aponta para a prateleira ao lado dos chás.

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- Sim, mas eu queria uma com o meu nome na latinha, será que tem? - Qual o seu nome moça? – pergunta o rapaz um pouco impaciente após receber um olhar recriminador da caixa que a aguardava no balcão enquanto a fila crescia cada vez mais, então a cliente respondeu para o rapaz um pouco baixo e não pude ouvir o que era. - Ah aí a senhora tá querendo demais! Nem eu sabia que existia esse nome, pega essas duas aqui que se misturar os nomes da mais ou menos esse seu ai. Ofendida ela pega uma lata de chá e volta pro caixa, enquanto pega sua bandeja responde algo sobre refrigerante engordar e que estava cortando da dieta. A fila prossegue e enquanto aguardo fico olhando de forma hipnotizada para o meu prato, as batatinhas eram realmente felizes, a vida de uma batatinha deve ser realmente satisfatória, sem se preocupar com o que as pessoas acham de você, sem precisar lidar com inconvenientes... Pondero virar uma batatinha. A caixa diz “Próximo” e é a minha vez. - Boa tarde – Coloco o prato sobre a balança. - Mais alguma coisa? – Perguntou a caixa após marcar o valor em uma folha de papel. - Tem suco do que? - Laranja – começa a responder a atendente. Orgia de Ninfetinhas Suecas & O Caminhão de Piroca – Sevla 7


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Penso nos benefícios da laranja, o ar condicionado do lugar faz meu nariz escorrer (uma consequência do choque térmico entre o calor do lado de fora e o frio aqui dentro?), talvez eu precise de um pouco de vitamina C. Aguardo a atendente falar os outros sabores disponíveis, segue um constrangedor silêncio entre nós, pelo visto era o único sabor. - De laranja por favor. Acomodo o copo sobre a bandeja enquanto caminho procurando a mesa onde estaria o produtor e o CEO, me incomodo com o ato de equilibrar o copo ao mesmo tempo em que ando e começo a ficar com medo de ele cair, antecipadamente o sentimento da vergonha de um desastre chega até mim. Encontro no fim das mesas um sujeito corpulento (não poderia dizer se forte ou gordo) com uma porte que lembrava um gorila, vestia um terno desajustado e falava sobre algo que não conseguia escutar, lá estava ele, Otto Spencer o produtor. Ao seu lado um sujeito inexpressivo e distraído mexendo no celular, evidentemente mais velho e com um cabelo liso ao redor da cabeça de forma que lembrava uma tigela ou a casca de uma cebola, só poderia ser o CEO. Reviso mentalmente a minha aparência: calças escuras de um material que lembra jeans com um corte formal (semi-casual), camisa social Orgia de Ninfetinhas Suecas & O Caminhão de Piroca – Sevla 7


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de um material escuro e de aparência opaca feito de um tecido grosso (bom para dias frios, o que não era o caso de hoje) com os 2 botões superiores desabotoados, não tive tempo de cortar o cabelo então passei um gel e penteei de um jeito que tivesse esperança de parecer mais organizado do que realmente era. Olho para o prato, as batatas olham pra mim e sorriem, sigo em frente. Otto na mesa me encontra com o olhar e acena, sento à mesa e cumprimento ambos. - Marcamos de almoçar e não jantar juntos – Diz Otto rindo - Sabe como é o transito nessa cidade né, mesmo saindo mais cedo sempre acaba aparecendo um inconveniente no transporte pra atrapalhar a vida de todo mundo – Mentira, estava em casa vendo bobagem na internet e acidentalmente perdi a noção do tempo. - Esse aqui é o nosso CEO, não é ele que está organizando mas sabe como é né, sempre presente pois é assim que um líder tem que agir. Desculpa qual era o seu nome mesmo? – CEO para de olhar para o celular e me encara por alguns segundos, volta a mexer no celular em seguida. Tento recuperar o assunto da conversa. - Sobre o que conversamos no telefone, estão com um projeto onde eu poderia participar né? Achei interessante quando soube. Meu nome é... Orgia de Ninfetinhas Suecas & O Caminhão de Piroca – Sevla 7


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- Exatamente – Otto interrompe enquanto come o que sobrou da refeição – Estamos com várias pessoas participando já, vamos ter uma publicação onde cada um vai contribuir com algum material dentro do tema que decidiram, quando juntar tudo vai dar praticamente um livro, vai ser bem legal. - Tenho interesse sim, sempre tive vontade de trabalhar com esse tipo de coisa e você disse no telefone que não tem problema não ter experiência antes – respondo enquanto pondero se deveria falar mais ou comer mais, meu prato completo e o deles quase vazios, guardo as batatinhas no bolso – Ah eu queria saber se, tipo, ahn... – penso – vai ter alguma... remuneração? - Oi? - ... Ser pago? O CEO que estava indiferente enquanto mexia no celular começa a rir, Otto ri junto, ambos riem e olham para mim. Começo a rir junto como se estivessem rindo de uma piada e não de mim, quando parece que vão parar começam a rir novamente, uma lagrima escorre dos olhos do CEO de tanto rir. - Vai ser uma boa chance de você praticar, veja assim, todo mundo é voluntário e vai fazer isso porque gosta, entendeu Elvis? – Responde

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Otto enquanto tenta parecer sério abafando o final do riso. - Elvis? - Esse cabelinho penteado assim esquisito, não parece o Elvis? – Pergunta Otto olhando para o CEO enquanto ri. - Entendo... – Pondero as escolhas – É uma pena não ser remunerado, mas na minha posição com toda minha inexperiência acho que não posso exigir muito também. - O dia que isso tudo render algo pra nós dá até pra pensar nisso no futuro, mas por enquanto sem chance. - E quanto aos outros participantes? - Estão bem, estão produzindo e tendo várias ideias enquanto estamos aqui só batendo papo, no fim o resultado ficará ótimo e você vai gostar de conhecer o trabalho dos outros participantes, tudo isso irá contribuir muito para nossa comunidade, falo aqui por mim e pelo nosso CEO que estamos muito felizes e interessados pelo trabalho de todos – Enquanto isso o CEO continua a mexer no celular enquanto dá uma pescada de sono, toma um gole do refrigerante para despertar. - Vai ser interessante conhecer o trabalho dos outros, afinal tudo fará parte de uma só obra

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– Reviso mentalmente o que preciso para começar a escrever – A propósito qual será o tema? - Ah sim estava me esquecendo – Responde Otto enquanto limpa a boca com um guardanapo – Como estamos na 4º edição o tema será sobre a morte, pois 4 é morte para os chineses e etc. - Então todo mundo estará escrevendo sobre a morte dos chineses? - Não é sobre chinês morrendo, é sobre a morte para os chineses. - E qual a diferença? – Pergunto, Otto joga o guardanapo dentro do prato. - É sobre o ato de morrer ou o que significa a morte e não sobre alguém morrendo, independente se é na China ou na casa do caralho, entendeu? - Entendi, só não entendi direito a parte sobre os chineses mesmo, se são eles que vão ler. - Presta atenção – Otto se ajeita na cadeira, o CEO continua mexendo no celular – o número 4 significa morte pros chineses, tem prédio que nem tem o 4º andar por causa disso, como estamos na 4º edição o tema vai ser morte, fora isso tem nada a ver com os chineses ou escrever para chineses, é apenas sobre a morte. - Certo... – Penso por alguns segundos – O tamanho da história pode ser qualquer um?

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- São contos na verdade, o combinado é que desta vez tenham no máximo 5 mil palavras no total. - Parece bom – Procuro as palavras dentro da minha mente – 5 mil palavras é mais ou menos de que tamanho? - 5 mil palavras são mais ou menos... – Otto gesticula, com as mãos faz parecer alguém que segura uma bola média feita de fumaça – Mais ou menos assim. - E isso – Imito o gesto com as mãos – é mais ou menos quanto? - Isso são 5 mil palavras. - OK! – Desisto de tentar entender – Acho que é um bom tamanho, vai servir pra escrever. Recolhemos nossa sujeira da mesa, pegamos os papeis com o valor do almoço e seguimos para a fila do caixa, o CEO continua mexendo no celular (claramente um sujeito bastante ocupado) e de relance vejo em sua mão imagens de gordinhas de biquíni, decido não cuidar da vida alheia. Pago a minha conta e um doce-de-leite em barra e seguimos para a saída. - É isso ai Elvis, estamos contando com você! – Diz Otto, enquanto se prepara para ir ao estacionamento do restaurante.

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- Pode deixar, assim que chegar em casa já vou me preparar, só não sei quando isso vai ser porque eu vim de metrô... - ... E vai voltar de metrô – Interrompe Otto. - Sim é que começa o horário de pico agora e pode ser que chegue mais tarde do que o planejado. - Toda hora é hora de pico por aqui, vai acostumando Elvis, nos falamos depois – Responde Otto enquanto olha as horas no relógio – Ah eu estava me esquecendo, presta atenção nesse vocabulário, aqui conversando até dá pra relevar mas em um texto ou algo assim ficaria parecendo uma coisa desleixada, tem que melhorar isso ai.

2º semana: Ni

O telefone toca, são 5:00hs da manhã e acordo com o som que ele faz repetitivamente, fico esperando deitado enquanto ele continua a tocar até que finalmente para. O telefone toca, são 5:05hs da manhã, me levanto e saio pelo escuro enquanto procuro aquele aparelho despertador que serve para Orgia de Ninfetinhas Suecas & O Caminhão de Piroca – Sevla 7


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atender chamadas, olho pelas frestas da janela e percebo que o Sol ainda não nasceu. Atendo o telefone. - Alou? – Em seguida fico em dúvida se falei algo ou apenas bocejei alto. - Elvis, Elvis! Otto Spencer aqui, como tá indo a história? – Afasto o telefone do ouvido e encaro-o por alguns segundos, volto a colocá-lo no ouvido. - Parece que o sol não nasceu ainda. - Ainda não, pensei em te ligar mais cedo porém achei melhor dar um tempinho e te esperar acordar, mas deixando o papo furado de lado, como anda o conto? - Bem, como posso dizer – Minutos após acordar sinto que não conseguiria nem dizer meu próprio nome com precisão – Acho que estou com um tipo de bloqueio criativo. - Como assim? Fez nada ainda? - Fiz... – Tento lembrar o que fiz enquanto dou tapinhas no rosto para despertar – Fiz rascunhos, anotações, tive ideias, filtrei possibilidades e esse tipo de coisa. Tive uma ideia que até gostei mas não deu muito certo. - O que houve? - Era inspirado em um livro que eu gostei, só que emprestei o livro e não tenho como usar ele de referência pra algumas coisas. Orgia de Ninfetinhas Suecas & O Caminhão de Piroca – Sevla 7


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- Pede ele de volta então, explica que está precisando usar ele. - É que é complicado. - O que tem de complicado nisso? - É que sinto mais falta da pessoa pra quem emprestei do que do livro em si. - Já que é assim então fale sobre outra coisa, sobre os medos e essas coisas. - Não é tão simples assim, quanto mais penso mais sinto que esse assunto se torna intangível, é de onde vem o bloqueio, às vezes minha vontade é encontrar a pessoa que sugeriu esse tema e encher ela de tapa. - Faça como eu disse então, fale sobre os medos, é como cagar pra dentro, inclusive foi por isso que fiz faculdade. O silêncio da madrugada, encaro o telefone novamente, me belisco para checar se não estava sonhando, fico um pouco mais confuso ao perceber que de fato estava acordado. - Desculpa? - Um medo tão grande que dá vontade de morrer, imagina que você tomou umas latinhas e está dirigindo tranquilamente pelas ruas sem fazer mal algum, então a polícia te para e nota que você bebeu, depois disso te levam para a delegacia e ai você caga pra dentro, contra sua vontade. Orgia de Ninfetinhas Suecas & O Caminhão de Piroca – Sevla 7


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- Eu não sei muito bem o que achar disso tudo que você está me contando... - É assim que levamos a vida enquanto nos imunizamos de nossas fraquezas, por isso fiz faculdade, pra ter um diploma e ter direito a uma cela exclusiva caso algo aconteça. - Ok – Tento recobrar um pouco da sanidade da conversa e voltar pro assunto que deveríamos estar discutindo nesse momento – Eu vou tentar agilizar as coisas sobre a história nessa semana, melhor assim o que acha? - Faz o que achar que funciona, mas que esteja pronto dentro do prazo. - Vou jogar uma água no corpo e já tentar colocar umas ideias no papel. - Nos falamos depois, até mais.

3º semana: San

A campainha toca e desperto deitado no sofá, passei a noite anterior assistindo filmes de qualidade duvidosa por algum motivo que eu mesmo não sei explicar, gosto de acreditar que assistindo filmes ou séries ruins estarei afiando o lado criativo de minha mente no aspecto crítico, Orgia de Ninfetinhas Suecas & O Caminhão de Piroca – Sevla 7


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ensinando a mim mesmo quais coisas são más ideias e quais foram boas porém mal aproveitadas, pois não há filme bom se não existir um filme ruim e assim pode ser que valorize mais quando encontrar um bom filme. A campainha toca novamente, me levanto e procuro as chaves sobre a mesa entre a pilha de coisas que deveria ter organizado há meses, encontro uma caixa de cigarros lacrada de quando parei de fumar, olho o verso e há uma figura de um rapaz com o tórax aberto e a pele esverdeada com os dizeres “MORTE – O uso deste produto leva à morte por câncer de pulmão e enfisema”, lembro que deveria estar escrevendo um conto sobre este tema, encontro a chave enquanto a campainha toca pela terceira vez. Vou até a porta e olho através do vidro, do outro lado do portão há um sujeito alto e corpulento vestindo um sobretudo preto e com um capuz projetando uma sombra sobre seu rosto, em sua mão esquerda uma vassoura dessas baratas que se vende pelo bairro. Concluo que minha hora chegou e a Morte veio para me varrer para debaixo do tapete da existência usando utensílios baratos de quintal, aceito meu destino e abro a porta enquanto digo às palavras que melhor traduzem esta sensação: - Pois não? Orgia de Ninfetinhas Suecas & O Caminhão de Piroca – Sevla 7


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- EU SOU A INSPIRAÇÃO QUE VEIO LHE BUSCAR PARA ESCREVER LOGO ESSE DIABO DE CONTO – Olho sem entender procurando uma lógica naquilo tudo – Sou eu o Otto caralho, vim a caráter vestido de Morte para te ajudar – Responde Otto Spencer enquanto tira o capuz. - Eu jurava que a Morte carregava uma foice por aí e não uma vassoura – Digo enquanto passo a chave e abro o portão. - Eu sei, mas onde eu arrumaria uma foice? – Questiona Otto enquanto entra em casa - Sem contar que deve ser caro pra porra, se a polícia me vê por aí carregando isso eu iria assombrar a delegacia mais próxima por uns meses então não valeria a pena, além do mais de longe parece uma foice. - De longe parece uma vassoura. - Sabe o motivo de eu estar aqui certo? - Espero que não seja para jogar xadrez, não tenho um tabuleiro. Recebo Otto em casa, aponto para a cadeira em frente à mesa para ele se sentar enquanto vou até o fogão e esquento o bule de água que tinha deixado no dia anterior, pego o café instantâneo e o preparo enquanto Otto fala dos assuntos mais aleatórios provenientes das fontes mais questionáveis do mundo. Levo o café a mesa e me Orgia de Ninfetinhas Suecas & O Caminhão de Piroca – Sevla 7


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sento enquanto lembro de forma pessimista que a história que deveria estar escrevendo não estava fluindo muito bem. - Como pode perceber vim hoje para discutirmos a respeito do conto, aquele que você ficou de escrever na nossa reunião, lembra? - Sim lembro, vou ser sincero e dizer que continuo com alguns problemas para escrevê-lo, achei que seria fácil mas... - Mas tem que fazer logo se não vai ficar em cima do prazo – Responde Otto enquanto bebe um pouco do café – Eu vim aqui hoje pois preciso do título da história. - Entendo – Na verdade entendo nada, mas não quero parecer o burro da conversa – Mas não é um pouco estranho decidir o título antes de fazer a história? - É estranho também não ter uma história de onde se possa tirar um título – Responde Otto impaciente – Então de algum lugar tem que começar, decidi que é bom ter logo um título. - Nessa discussão eu perdi, admito – Continuo achando que decidir um título antes da história é insanidade, mas dependendo se for um título mais abrangente pode ser que nem incomode, só consigo pensar em como gostaria que essa conversa acabasse logo – E que título você sugere? Orgia de Ninfetinhas Suecas & O Caminhão de Piroca – Sevla 7


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- É simples, é só dar às pessoas aquilo que elas querem e pronto. - As pessoas querem coisas que não precisam pra impressionar pessoas que não gostam – Penso por alguns segundos e termino – Ouvi dizer. - Então é isso, não tem segredo. - Mais ou menos. - O que as pessoas querem? – Pergunta Otto enquanto me olha nos olhos como se a resposta fosse óbvia – Putaria é claro. - Eu não sei se putaria e morte combinam – Digo receoso enquanto espero a reação do Otto – Além do mais acho que necrofilia é um assunto meio nojento. - Esquece a necrofilia, credo que ideia doentia! – Otto me olha com um olhar de desaprovação – As pessoas gostam de gatinhas jovens e sedentas por sexo. - Desculpa, não estou conseguindo acompanhar. - Faça um esforço por favor, estou aqui te dando uma ajuda de qualidade imensurável. - Ok, então prossiga. - Existem duas coisas que as pessoas gostam: Putaria e memes de internet – Diz Otto enquanto se apoia na mesa, demonstrando a serieOrgia de Ninfetinhas Suecas & O Caminhão de Piroca – Sevla 7


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dade da situação – Se você tiver essa visão de empreendedorismo afiada como a minha pode ter certeza que essa é a solução óbvia – Diz Otto se aproximando como se fosse contar um segredo do qual tivesse medo que as próprias paredes escutassem – Eu tava no trabalho e vi um vídeo de umas safadas loirinhas que eram uma beleza, um monte delas em uma suruba frenética, todas novinhas e daqueles países que só tem pornô top – Ele olha para o teto enquanto tenta lembrar – Da Suécia, aquelas gostosa da Suécia, se quiser depois te passo no celular. - Olha – Tento juntar as peças e entender o que está acontecendo, o sentido parece estar bem e inclusive disse que quando voltasse iria passar mais tempo com o Otto – Eu jurava que estávamos discutindo aqui sobre o título do conto, mas não tenho mais tanta certeza, é como se você estivesse sugerindo que uma história sobre Morte fosse chamada de “Orgia das Ninfetinhas Suecas”. - Oh é isso! – Diz Otto eufórico e animado – Excelente nome, a “Orgia das Ninfetinhas Suecas”, mas tem algo de errado nisso. - É claro que tem algo de errado! – Respondo sem paciência, desejando que isso tudo acabe logo.

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- Sim, falta o meme de internet que todos gostam – Diz Otto incrédulo, já não sei mais o que responder quando de súbito ele bate na mesa e diz – Encontrei a resposta! O título vai ser “Orgia de Ninfetinhas Suecas & o Caminhão de Piroca”. Aqui jaz o título do meu conto.

4º semana: Shi

Desde criança nunca fui fã de lugares muito cheios de gente mesmo tendo vivido o tempo todo em uma grande e populosa cidade, a forma como lido com isso é através da música: A partir do momento que coloco os fones de ouvidos e ligo as MP3 do celular passo a me importar menos com esse tipo de coisa, seja nas ruas ou no transporte público. Esqueci de carregar o celular antes de sair de casa e a bateria acabou faz 15 minutos, sigo em frente sem música e sem celular na esperança de encontrar Otto no lugar marcado, se tiver alguma mudança de planos e ele não puder aparecer ficarei sem saber pois com meu celular descarregado vai ficar difícil fazer contato.

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Caminho pelos arredores procurando o endereço, são quase sete da tarde e as luzes das ruas se acendem como uma árvore de natal enquanto o céu escurece sobre uma multidão que se forma pelos bares e estabelecimentos do lugar. Como é sexta-feira esse é o horário que muitos aproveitam para se reunir com os amigos do trabalho e esquecer dos problemas enquanto bebem sem receio de acordar no dia seguinte com dor de cabeça por causa da ressaca. A propósito, isso é algo engraçado de se pensar a respeito, pois todos estão inclinados a sacrificar a própria disposição nos poucos dia que teriam livres do que nos dias em que trabalham (chamados “dias úteis”, embora ninguém chame os finais de semana e feriados de dias inúteis), a graça reside no fato de que se não fosse pelo trabalho muitos desses problemas que os trazem até aqui não existiriam e assim segue a grande espiral descendente nas regiões “produtivas” da sociedade. No meio da grande avenida ao lado do velho parque da cidade encontro o lugar marcado, um clássico bar cujos banheiros conseguem ter um espaço menor que o das cadeiras que são usadas para se sentar às mesas, a região é valorizada e cada metro quadrado é valioso para os donos de estabelecimentos. Otto espera à mesa sozinho enquanto toma uma dessas cervejas de marca desconhecida e sabor genérico, que acabam venOrgia de Ninfetinhas Suecas & O Caminhão de Piroca – Sevla 7


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dendo apenas por ter um nome estranho junto com um preço acima da média, dando a entender que é melhor que as demais. Me aproximo, cumprimento, peço algo para beber para a garçonete. - Acho que falhei no que prometi – Digo enquanto olho para a calçada, observando as pessoas que passam pelo lugar – No começo confesso que achei que seria simples, mas me enrolei na minha própria falta de atenção e organização, tive ideias, tive rascunhos mas... - Não dá pra entender todo esse atraso – Responde Otto enquanto coloca o copo sobre a bolacha de cerveja da mesa – Todo mundo conseguiu fazer, até acharam o tema fácil inclusive, simplesmente escreva algo sobre morte e pronto. - Mas o que é morte? - Como assim o que é morte? - Morte é algo tão amplo e vasto, quando pensamos em morte geralmente pensamos na dor da perda de alguém próximo e querido, para quem ficou sobrou a dor, a saudade e a melancolia, mas quem conheceu realmente a morte foi quem morreu. O que é legitimamente a morte para quem está vivo? A garçonete traz uma garrafa e enche meu copo, agradeço enquanto ela segue para outra mesa para atender outros clientes, continuo a observando e a sigo com os olhos em cada moviOrgia de Ninfetinhas Suecas & O Caminhão de Piroca – Sevla 7


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mento, como reage, como lida com as situações, que detalhes deveriam denunciar quem é experiente ou não nessa profissão, como saber se a pessoa estava satisfeita com esse trabalho? - Essa moça, por exemplo – Discretamente aponto para a garçonete – Se eu viesse aqui nesse mesmo lugar todo dia durante um mês inteiro, se em todos esses dias ficasse atentamente observando ela, no fim quem entenderia o real sentido dessa profissão, eu ou ela? - É uma forma esquisita de colocar a situação Elvis, não entendo qual a relação disso com a morte, mas acredito que ela teria muito mais a dizer do que nós, pra quem só olha sempre parece mais fácil – Otto bebe um gole e aponta o dedo para mim – e se você fizesse isso provavelmente chamariam a polícia, que ideia de tarado do cacete, espero que não tenha acampado dentro de algum necrotério ou algo assim. - O ponto que quero chegar é que quando falamos de morte falamos do lado teórico, somos apenas pessoas observando e deduzindo a respeito, então no fim o nosso conhecimento sobre morte na verdade pode não ser sobre a morte em si, mas sobre as consequências da morte. - Então a única forma de conhecer a morte é morrendo?

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- Talvez, mas estamos falando de um lado mais literal desse assunto, se fugirmos desse escopo a coisa fica mais interessante pois não é necessário estar vivo para morrer. - Veja bem, vim discutir um conto sobre morte e não sobre drogas. - Ideais morrem, sonhos morrem, empresas morrem, motivações morre, sentimentos morrem... uma infinidade de coisas podem morrer, é sobre o sentimento que se tem por coisas que acabaram e que não estiveram necessariamente vivas no sentido biológico, eles são tão legítimos quanto a falta de algo vivo que morreu. Muitas dessas coisas nunca foram percebidas como vivas até o dia em que fatalmente passaram a estar mortas, estas “mortes” são o mais próximo que podemos ter de conhecer pessoalmente a verdadeira morte. - Pensando assim até concordo com você, mas estamos falando de um costume no uso de expressões e não sobre a vivência da morte – Responde Otto agora mais atento ao fluxo da conversa. - Isso tudo leva a outra situação estranha de se pensar, a possibilidade de morrer figurativamente e continuar vivo biologicamente – Digo isso enquanto Otto esvazia o que restou no copo – Quase como uma união destes dois conceitos, ao Orgia de Ninfetinhas Suecas & O Caminhão de Piroca – Sevla 7


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longo da vida acontecem muitas coisas e entre essas coisas estão nossas frustrações, nossas perdas, nossas decepções. A consequência disso é como se algo dentro de nós morresse, um pedaço de si que deixou de existir, isso vira um vazio que carregaremos pelo resto de nossas vidas. Dito isso, o que aconteceria se alguém perdesse tantos pedaços que nada mais restasse? Será que é possível alguém se tornar um ser que segue com seu dia-a-dia rotineiro mas que no fundo é uma casca vazia devido a uma vida problemática? - Como se fossemos nos despedaçando ao longo de nossa jornada? Um tanto triste pois parece ser um caminho sem volta ou esperanças. - Talvez o contrário, no fim existe algo que contrabalanceia isso e nos serve de combustível, falo do preenchimento desses vazios, coisas que nos marcam tanto quanto nossas perdas só que com um impacto mais positivo, poderíamos chamar isso de morte da morte? - Esse tipo de coisa você pode pensar quando tiver que escrever sobre o contrário da morte – Otto afasta a garrafa vazia, olha para o relógio e sinaliza com as mãos que está de saída enquanto se levanta – Quanto ao resto o que acha de escrever sobre isso no conto que deveria ter feito? - Acho que isso é o que tenho a oferecer, precisava ter quantas palavras no máximo mesmo? Orgia de Ninfetinhas Suecas & O Caminhão de Piroca – Sevla 7


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- 5.000 Palavras. - Então é isso.

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CABEÇA NAS NUVENS E. Reuss

Ele descascava a fórmica azul-celeste da mesinha do computador com o empenho cauteloso de alguém que coça a casca de uma ferida. Três horas se passaram desde que ele sentiu a vontade de ir ao banheiro e resolveu desligar o ventilador de teto, e podia jurar que conseguia


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enxergar a névoa de vapor do seu próprio suor. Tudo que Gilberto precisava fazer era deixar a hiperidrose fazer o seu papel, exatamente assim, suando e arrancando a casca de alguma coisa. Aquilo ali parece a Rússia, ele pensou, olhando para uma forma estranhamente cartográfica que se manifestara no espaço negativo da fórmica descascada. A umidade em suas nádegas já impregnara todos os tecidos e materiais limítrofes, desde o poliéster reciclado da sua bermuda de surfista alaranjada até a almofada da sua cadeira giratória, tão empapada de suor gluteal que o formato do seu corpo ficara gravado em impressões esbranquiçadas se sobrepondo e revelando mudanças milimétricas em sua postura no decorrer dos anos. Uma camada espessa de suor agora brotava daquela linha horizontal que se formava em sua testa quando ficava apreensivo e ele começava a escorrer como se tivesse um vazamento na cabeça. Seu rosto empapado brilhava com o dobro da intensidade da luz que chegava da tela do computador, quase como se emitisse luz própria. Em alguns pontos da madeira a cola ficava mais densa e a fórmica se desprendia em pedaços irregulares que acabavam por invalidar qualquer tentativa meticulosa de esculpir um continente. O Azerbaijão parece uma pomba, ele pensou, tentando afastar o desejo incontrolável de esvaziar a Cabeça nas Nuvens – E. Reuss


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bexiga, mas quase que inconscientemente começava a imaginar um marceneiro vestindo um macacão azul-petróleo com manchas amareladas de cola Titebond e polvilhado com pó de MDF recémserrado que espalhava cola distraidamente com uma espátula sobre um painel de madeira, e ele sentia ódio. Um ódio horrendo daquele homem que na sua imaginação usava um relógio g-shock amarelo-ouro de camelô e que não conseguia manter um ângulo fixo de aplicação com a espátula, enquanto com a mão vazia ele ajeitava o cabelo ralo de neném que cobria o topo da sua cabeça arredondada. Em momentos de estresse, a incontinência urinária era inevitável e o tempo adquiria uma forma de transcorrer totalmente irregular progredindo lenta e rastejantemente como se fosse o equivalente reptiliano de sua própria dimensão. “Deus do céu!”, ele teve de gritar, interrompendo tudo o que estava fazendo, incluindo algumas funções vitais, e correndo para o banheiro. Seu psiquiatra atribuía aquelas explosões urinárias a bexiga neurogênica, mas dizia que o seu verdadeiro problema era a Paralisia do Lobo Temporal. Gilberto não tinha dúvidas, suas alucinações religiosas e às vezes a incapacidade de reconhecer alguns rostos não atingiam o nível de desconforto físico de uma vontade de urinar impossível de antecipar e que não dava aviso Cabeça nas Nuvens – E. Reuss


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prévio de quando se consumaria. Ele já se acostumara a se aliviar nos lugares mais inusitados e, quando voltava do banco com a sua pensão por invalidez psicológica, alguns pontos se tornavam urinóis improvisados. E o maior risco de se sofrer de um problema desses é o estreitamento mental súbito que a pessoa sofre nos momentos de apuro e, de uma hora para a outra, seu objetivo de vida se torna urinar em qualquer canto, embora fosse mais comum o alívio discreto em garrafas de água, lixeiras de supermercado e canteirinhos de flores de velhinhas demoníacas. Ele quase arrebentou a porta do banheiro já com a bermuda alaranjada pelos joelhos e com um olhar lobotomizado que colocaria medo em qualquer um que distraidamente se mantivesse no seu caminho. Posicionado em frente ao vaso, a expressão em seu rosto já se tornara orgástica quando ele sentiu algo molhado em seus pés. Ao seu lado, encontrou a banheira transbordando de uma água avermelhada e a cabeça de sua irmã emergindo na superfície. “Aiii, Dai... Que porra é essa?” Ela abriu os olhos e os revirou até encontrar a fonte de sua voz. Magrela em sua meia-idade, sua vida fora vivida apenas biologicamente. Na maior parte do tempo, ela praticava uma fuga constante, uma imersão em qualquer coisa que

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pudesse afastá-la da constatação de que ela, de fato, existia. Seu cabelo lembrava uma rama de algodão sujo, já perdendo a vitalidade de antigamente e começando a embranquecer ao redor das têmporas, emoldurando olhos e lábios de uma tilápia morta. “Psiii... Quietinha”. Ele pegou uma toalha de banho e amarrou com força ao redor dos cortes em seu pulso, “o que eu já te disse? Nada de tiro na cabeça... nada de overdose... e principalmente... nada disso” Ela sussurrou alguma coisa. “O que?”, ele disse, aproximando os ouvidos da boca da irmã. “Então me mata”. E os dois se olharam com uma cumplicidade que, embora tenham vivido a vida inteira sob o teto da mesma casa, nunca haviam compartilhado. Pois na duração daquele olhar, ele finalmente percebera aquela coisa obscura, um desejo ou uma necessidade violenta de se render ao caos, de mergulhar tão profundamente em sua indiferença com a vida que a morte naquele momento pareceu para ele o estado natural das coisas.

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Um guarda de trânsito obeso de nariz pontudo e um globo ocular maior que o outro o encarava firmemente enquanto ele tentava desvencilhar a bolsa de couro em sua mão dos braços da catraca. Quando finalmente se livrou sob os berros desesperados de uma jovem vestindo uma camiseta rosa e uma calça lamê, cuja dependência em metadona se manifestava tanto visível quanto olfativamente em seus dentes enegrecidos, ele correu desesperadamente em direção à escada rolante que levava à plataforma de embarque. Enquanto descia, ele enxergava por cima de seus ombros a barriga resoluta do guarda de trânsito se aproximar num ritmo que fazia a escada rolante parecer propelida a jato. Centenas de linhas de ônibus diferentes deslizavam na sua frente, cada qual levando a um destino assustador diferente. Ele decidiu por dois ônibus antes de entrar no terceiro e de se projetar horizontalmente para fora do mesmo assim que percebera que ele estava a instantes de ser carregado para o lado oposto da cidade. O guarda ficara visível novamente e estava falando no walkie-talkie, e Gilberto, sentado no chão da plataforma sob o que parecia ser uma poça de óleo de motor ou chorume fecal, não pôde deixar de observar o problema de sobrepeso do qual o guarda de trânsito sofria, algo fisicamente improvável que poderia muito bem se enquadrar Cabeça nas Nuvens – E. Reuss


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numa categoria de obesidade do tipo “maçã no palito”. Gilberto se virou e viu deslizar na altura de seus olhos um motorista cadavérico, já com a face levemente inclinada para estibordo e os olhos exibindo um ofuscamento embriagado e um ar de "quanto tempo você levou, hein?". "Se você arrancar esse ônibus agora", ele sussurrou para o motorista, "eu faço valer a pena", com um sorriso sedutor no rosto e um panfleto de descontos para colchões King Size em sua mão, que ele guardava em sua bermuda há meses. O motorista, ignorando completamente a propina e olhando para a bolsa de couro, revelando uma calvície que parecia ser decorrente não só da velhice mas também de uma espécie de sarna ou peste que consumia o couro cabeludo, logo levantou a vista lentamente com uma cara de nojo (talvez por causa do cheiro de merda) e olhou para um relógio que se projetava do teto como um adereço suicida, marcando 16:58. “Próxima parada: Jardim das bruxas” Aquilo havia soado de algum lugar sombrio e com uma acústica particularmente “de gelar a espinha”, embora, como de costume, ele não descartasse uma fonte interna, algo situado num

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espaço milimétrico na junção temporoparietal. O ônibus arrancou, mas para os passageiros aquilo mais se pareceu com um salto. Quando percebeu, já havia sido lançado para o banco nos fundos do ônibus, acoplado hermeticamente ao colo de um homem de gravata tão amarela que o resto de sua vestimenta se tornava irrelevante. Naturalmente, ele se deslocou para o banco do lado, e a cabeça do homem de gravata amarela em seu ponto mais alto agora ficava na altura de seus mamilos. Seu rosto revelava alguma ascendência indiana, cabeça achatada e estranhamente afundada no pescoço, como se algo extremamente pesado houvesse caído sobre ele e transformado seu corpo inteiro numa massa disforme e achatada nas extremidades. Para o seu alívio, um diálogo intenso se iniciou, afastando aos poucos a suspeita de uma motivação sexual. Ocasionalmente, bolsas, mochilas e bebês em braços despreparados eram lançados contra os bancos, lataria sem forro e piso de borracha do ônibus, às vezes se prendendo a cordinha-de-puxar-que-apita, fazendo soar um gritinho histérico para o motorista, que parava em uma fração de segundo aquela lata sísmica e começava a gritar emputecido contra quem quer que fosse o “filhadaputa” que continuava a puxar a cordinha e se recusava a descer. Numa

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dessas paradas e manifestações de ódio, o homem da gravata amarela aproveitou: “Eu sou psicanalista e um defensor assíduo do bicameralismo da mente... Vim do ovócito da minha mãe e me considero desde os confins da minha existência um ser duplamente personificado e qualificado para falar daquilo que é duplo" "Você não parece psicanalista... Está mais para um... Não sei... Você tem aquela cara de quem trabalha num porto..." "E não só isso", disse, olhando para os lados e abrindo a calça. “Tem até aquele cheiro de... Tainha e... Cacete!", tentando desviar a atenção, o que se mostrou mais difícil do que ele esperava. "Isso... Esse negócio aí... É um..." “Isso tudo é só para te mostrar que eu sei do que estou falando” “Mas do que é que tu tá falando?” “De você. Eu sei o que você fez... Com a Dai... Seu pai me disse” “Meu pai está morto... Péra... Que dia é hoje?” “Seu pai que me contratou e disse que você tem esses problemas de enxergar rostos...” “Sérião, só me diz em que ano estamos”

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“Rostos que você não reconhece, mas sente que estão armazenados em algum lugar da sua memória... No lado contrário do seu cérebro... Eu sei que você sente que deveria prestar atenção neles, mas eles não passam de meras criações...” “Tem banheiro nesse ônibus?” “Já falamos sobre isso. A esclerose? O hipocampo? Giro Fusiforme? Lembra? Lembra daquelas celulazinhas que se acendem quando você vê um abacate e que se apagam quando se vê um carro?” “Vai usar essa garrafinha térmica?” “Eu sei tudo sobre você, mas você está obviamente muito... muito afetado por isso tudo. Gostaria de falar sobre outra coisa?” “Dá pra descer aqui? Essa maldita cordinha não apita mais? Ô motorista...” “Vamos falar sobre seu pai, então”, disse o homem da gravata amarela, já fazendo anotações num caderninho tão cheio de anotações que tinha aquele aspecto esponjoso de cadernos usados até a sua última folha. “Quê que tem meu pai?” “A morte dele foi no mínimo... traumatizante” “Vi ele sendo triturado pelo moedor de cevada da fábrica”

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“Tragédia”, disse, balançando negativamente a cabeça, “só uma criança!” “Foi o dia mais... mais caralhudo da minha vida. Uma morte violenta tem a mesma carga libertadora que... sei lá...” “Uma ascensão cármica? ” “Prefiro morrer da pior forma imaginável do que ter uma morte insignificante” “Sei... In-si-gui-ni-fi-can-te”, repetiu, enquanto anotava. “Sabe... A natureza não tá nem aí pra um presunto embaixo da terra. Aquilo ali vai ser destroçado e virar um pedaço de carne preta com um cheiro de azedo-micose nojento que vai ser infinitamente comido e cagado por zilhões de bactérias que transformam aquele alimento com seus ânus bacteróides em matéria orgânica, prontinha pra virar uma vida nova.” “Aham... Só fala um pouquinhozinho mais devagar” “Eu quero morrer uma morte com sentimentos, nem que seja ódio” “Estamos falando da Lei de Talião aqui...?” “Tem nada a ver com justiça... Embora lá na época do Tiradentes os caras moíam pra valer, e aquilo eu invejo... invejo mesmo. Não existe intimidade maior do que aquela entre um homem e a cabeça decepada do seu inimigo. Aquele olhar Cabeça nas Nuvens – E. Reuss


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satisfeito de uma multidão frente às tripas vomitadas de um homem embaixo duma tábua de carvalho e duzentos quilos de pedra. Aquele desarme psicológico medonho quando se vê o último nervo segurando a perna se rasgar na tua frente, uma constatação de que depois do primeiro corte a vida se torna um fardo... E de que o fim dela é a libertação que todos esperam...” “Divino” “Todos... Todos, eu disse. Até aquele carrasco mais filho da puta. E quando os gritos param, é aquela coisa: um alívio geral, mesmo que os mais fortes emitam um semblante de satisfação, seus esfíncteres sofrem um relaxamento perigoso que deixa até o mais constipado com uma preocupaçãozinha” O homem respondeu com um aceno delicado e tirou um saco de amendoim salgado de dentro de sua mala. “E onde que a Dai entra nessa história?” “A Dai?” “Hummm... É”, ele disse mastigando e olhando para a bolsa presa entre as pernas de Gilberto. “Foi o último pedido dela... Ela queria ver como é passar um tempo sem pensar na morte” “Mas só a cabeça?”, oferecendo um pouco do amendoim a Gilberto. Cabeça nas Nuvens – E. Reuss


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“A cabeça foi por conveniência, mas dizem que é aqui que vive a alma... Não?”, cutucando a própria testa, “Hummm, gostoso pra caralho isso, né?” Gilberto olhou pela janela e viu um muro de pedras marrom-acinzentadas cobrindo toda sua visão, rejuntadas não só por cimento, mas também por uma espécie de limo que consumia a superfície lisa e brilhante das pedras como se fosse uma sarna rochosa. Encostando o nariz no vidro e formando um círculo de vapor condensado a sua volta, ele pôde enxergar um arco de ferro fundido negro, apenas uma manifestação de sua presença, cuja silhueta podia ser facilmente confundida com uma daquelas alucinações visuais de alguém que ficou olhando catatonicamente para uma lâmpada incandescente por horas a fio. Mas se tivesse de apostar, diria que lá estava escrito "Jardim das Bruxas". O ônibus estava parado e a porta escancarada, o homem de gravata amarela já não falava mais, apenas se escondia sob a lapela de um paletó que agora ficara visível.

Ele foi acordado por um homem usando um crachá da polícia civil e um colete preto minúsculo estrangulando suas axilas. Ele batia seus punhos fechados de forma bastante símia no topo da mesa. Cabeça nas Nuvens – E. Reuss


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“Finalmente! Sério, pensei que você tava empacotando... Sei lá, vai saber, esses viciados... Não ia ser o primeiro a morrer aqui, sabia?” Gilberto levantou os olhos semicerrados para o delegado, tentando se acostumar à fluorescência gélida da sala. “Não... Cara, que nojo...”, o delegado disse, “Olha, eu sei que você tá cansado e provavelmente mucho chapado, mas seu nariz tá, assim... Como que eu posso dizer? Escorrendo pra caralho. Tipo torneira aberta...”. Gilberto tentou se limpar com as mãos algemadas. “Não! Não faz isso, bróder... Deus o livre! Fábio, dá um lencinho pra ele, qualquer coisa!” “Tenho não, chefe”, uma voz que se aproximava mais de um arroto respondeu. “Não tem?”, o delegado encarou Gilberto com uma expressão de piedade misturada a repulsa e continuou a falar evitando olhar fixamente para o seu rosto, “Fazer o que? Agora Gilberto, presta atenção... Precisamos saber apenas uma coisinha mínima... Já sabemos que você matou a Daiana... Daiana do que mesmo Fábio?” "Daiana Tomazzetti. Dois zês e dois tês. ZZÉTTI.". Gilberto seguiu a voz gutural e pôde ver no espelho a sua frente um punhado de cabelos brancos ameaçando cobrir uma careca pálida

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e manchada sendo engolido pela penumbra da sala. “Isso... Daiana Tomazzetti. Queremos saber porque você a matou, e que fim você deu na cabeça dela, Gilberto” "Daiana, hum... Não conheço nenhuma Daiana", Gilberto respondeu com os olhos voltados para o chão. Não só porque ele era incapaz de fazer contato visual quando mentia, mas porque aquele policial não parecia humano. Nem fodendo. Sua voz se assemelhava muito pouco a uma voz humana, pendendo mais para os movimentos pulsantes de um sistema digestivo alienígena amplificados por um estetoscópio, e ele exalava aquele cheiro... Do que é esse cheiro mesmo? Têm a acidez lacrimejante do vinagre, mas uma emanação pestilenta característica de um corpo em decomposição colocado em formaldeído tarde demais. A ânsia não tardou a vir, e ela seria facilmente suportada se Gilberto não tivesse levantado os olhos e visto o guarda de trânsito balofo através da porta semiaberta da sala, que atravessava o corredor com um ritmo característico de um leão-marinho esclerosado. Para a surpresa de todos, um jato cor de lama espumosa esguichou de sua boca em direção ao colete do delegado, que se levantou tarde demais xingando um número incontável de figuras religiosas.

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Gilberto, que até momentos atrás tinha evidências mais do que suficientes para duvidar da realidade de tudo aquilo que se passava em sua memória, foi tomado por uma onda de estupefação e tudo ficou em silêncio, pois no meio do vômito ele enxergava pequenos pedaços de amendoim salgado. E ele sabia agora. O que antes não passava de uma névoa suspeita encobrindo uma mente cada vez mais confusa, agora havia se tornado uma certeza aterrorizante. Tudo aquilo era real. "CÊ TÁ LOUCO!?", o delegado gritou. Gilberto fungou, lutando para desobstruir suas passagens nasais. "É o que parece".

Gilberto terminou de engolir os últimos amendoins do pacote e agora ele se sentia um novo homem. Não exatamente um homem com uma carga de energia renovada, mas com uma carga de energia desconhecida, provavelmente cósmica ou de algo muito próximo da morte. O peso da pequena bolsa de couro parecia aumentar a medida que ele avançava pela trilha coberta por pedras que cortava o coração arborizado do Jardim das Bruxas. Sobre ele, árvores imponentes se curvavam numa tentativa maquiavélica de

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cobrir o luar, que rasgava os lençóis de folhas e presenças animalescas no topo das árvores e chegava ao chão como riscos tremulantes de luz branca que em um instante pareciam revelar coisas que eram engolidas pela escuridão momentos depois, deixando apenas uma impressão fantasmagórica de sua presença no ar. Ele parou para ouvir o som dos passos novamente, que soavam leve e sorrateiramente as suas costas. Retalmente contraído, ele continuava a caminhada trôpega enquanto ouvia suspiros e estalos próximos demais para serem mais uma de suas alucinações auditivas. Ele podia sentir uma presença fluir como uma rajada de vento frio e cortante, um frio que deixara de ser uma sensação física há muito tempo e que agora vertia dos confins da solidão humana. Ele tomou coragem para se virar e se deparou com o olhar embevecido de Daiana. Sua íris branca como a lua que agora rasgava com mais facilidade o lençol vegetal pairando sobre eles e um olhar que parecia destinado a olhar para ele por toda a eternidade, como se não tivesse outra escolha. “É tão...”, assoando o nariz na manga do mesmo vestido de crochê branco que ela vestia quando morreu, “desconfortável... ficar presa... assim”. “Presa? Onde?”

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“Não sei se é presa, mas tudo parado... É tão desconfortável... Eu consigo sentir, tipo, meu pulmão? Sabe? Meu coração? Até o intestino, que a gente acha que não sente?” “E você sente agora?” “Pois é... a verdade é que não sinto... e é isso que é tão estranho” Ele se aproximou e tocou seus cabelos pretos com a ponta dos dedos, investigando de perto os poros abertos de uma pele que a cada segundo assumia um rigor e uma palidez próprios da morte. “Desculpa Dai”, olhando para os pés, como de costume, tentando esconder em vão aquele sentimento que para os vivos era tão difícil esconder, ainda mais quando vertia na forma de lágrimas. Ela o puxou pelo queixo, fazendo-o sentir a pele congelante de seus dedos. “Brigada, Gil”, ela olhou dentro de seus olhos, e a ausência de íris não dificultou em nada a tarefa de lê-los. Se abraçaram e a lua se escondeu sob uma nuvem que até então permanecera invisível, conferindo uma coloração arroxeada a sua luz, que pintou aquele abraço apertado e imóvel como se fosse a silhueta de alguma figura não humana, solitária e atenta. Naquele momento, eles se sentiram tão próximos um do outro, que pareceu

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impossível para eles desfazerem aquele abraço. Daiana olhou com seus olhos esbranquiçados para a silhueta negra de uma estátua que se projetava de um chafariz no centro do Jardim das Bruxas. Na escuridão em que estavam, qualquer um poderia confundir o contorno de um anjo de granito com um ser alado à espreita, asas estiradas para fora e a cabeça levemente inclinada para os céus como se estivesse se preparando para içar voo e levar com ele a alma dos mortos. De dia, a visão era ainda mais aterradora. Suas asas rachadas, a cabeça pendendo de um pescoço fino e erodido prestes a se quebrar e os olhos cobertos por uma camada repugnante de limo e poeira passavam a impressão de uma figura não esculpida, mas que irrompera espontaneamente do silêncio e das trevas. Ainda assim, aquele era o único lugar no mundo em que Daiana se sentia feliz. “Você não vai se sentir muito sozinha aqui?”, ele disse. “Não esquenta, Gil”, era o que ela sempre dizia quando não queria que ele a visse chorar, “agora continua, eu sei que pra você é importante” “Pra você também, né?” Ela concordou com a cabeça, mostrando um sorriso que em vida seria a mais bela manifesta-

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ção de felicidade que ele já vira em seu rosto, mas que agora emitia uma lugubridade inevitável daquilo que está prestes a se tornar adubo.

Ele acordara novamente, agora com a bochecha esquerda mergulhada no vômito sobre a mesa e, a sua frente, a faxineira caminhava de um lado para o outro com o esfregão, fazendo aquela mistura de vômito com desinfetante aroma soft lemon exalar como o perfume natural de um banheiro de posto de beira de estrada. O delegado se limpava com um paninho de louça, só de calças pretas, chinelos e uma camiseta branca com os dizeres "17º arrancadão de chevettes". Quando ele percebeu os olhos abertos de Gilberto, sorriu emputecido. “Encontramos o seu tênis ensanguentado...” “Um bilhete de suicídio também...”, a sombra no espelho começou a falar, “que dizia:”, e pegou um saco plástico dentro do seu bolso contendo um pedaço de papel. Fodam-se todos vocês, tô indo pro inferno. “Com um bom advogado, talvez você consiga convencer o juiz que foi suicídio assistido, não?”

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“Ou que você é retardado”, os dois se complementavam com uma musicalidade curiosa. “Só precisamos de uma confissão...” “E da cabeça da Daiana Tomazzetti” E quando a faxineira girou o esfregão entre os dedos como um baterista profissional e começou a batucar no balde de vômito, ele teve certeza que aquele era um musical em versão samba-debreque, à la Moreira da Silva. Após uma introdução de 4 compassos tocada em uma flauta que o policial nas sombras havia materializado de dentro de seu casaco, o delegado começou a cantar: Nessa birosca mal cheirosa vou te contar (arpeggio num violão invisível) Que cabeça de mulher você não corta, Você apenas suporta, No máximo uma tesourada na aorta, Depois enterra na horta... (breque) Porque esse bicho... só serve de adubo, (Só serve de adubo!) Negócio desses eu até encubro, Por que tenho pena... do nego maluco, Que ‘guenta de tudo (Até ser chifrudo!)

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Não quero saber... Se morreu de diabete, De pancada de raquete, Degolada com machete... Ou se usasse, Navalha ou gilette, Martelo ou canivete, Pro diabo se a culpa te acomete... Só quero a cabeça, Da Dai Tomazzetti! (Dai Tomazzetti!) Quando terminou de levantar a cabeça da superfície da mesa, um pedaço daquilo que há instantes havia jorrado para fora do seu estômago se descolou do seu rosto e caiu sobre a mesa. “Eu.... HÃHÃÃÃMMM HUMPFFF... COFF HUMPF SNARL... posso te dar uma confissão”, um escarro no final como se fizesse parte da pontuação. “E a cabeça?”, o delegado perguntou, debochando. Gilberto negou com a cabeça. “Vem cá, Fábio. O que o gordinho disse mesmo?” “O gordinho disse que ele carregava uma bolsa de couro pelo terminal e que ele tava aginCabeça nas Nuvens – E. Reuss


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do assim muito estranho se jogando pra fora dos ônibus e tal” “E o que mais, Fábio?” Fábio parecia pensativo. “Esqueci, chefe.” “Porra...”, o delegado suspirou, “ele falou que você pegou a linha exclusiva do Jardim das Bruxas, Gilba” Gilberto tentava esconder a apreensão que crescia a medida que os olhos diabólicos do delegado começavam a mudar a trajetória em sua direção, já se preparando para mais uma tentativa frustrada de blefar que se resumiria a olhar para os próprios pés num dar de ombros um pouco convincente demais. “Não vai fazer a gente procurar por ela, né?” “...” “Talvez podemos aliviar as coisas pro seu lado...?” Depois de alguns minutos imersos no silêncio e no cheiro de vômito com desinfetante, o delegado se levantou, lançou as algemas para Fábio e saiu pela porta.

“Fábio, me diz como que a gente vai relatar aqui a ocorrência?”

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Fábio estava sentado na mureta de pedra que envolvia o chafariz no centro do Jardim das Bruxas, segurando uma toalha com alguns cubos de gelo em volta do tornozelo. “Só não fala sobre eu ter me esborrachado” “Como não? O tropeço é a essência... Olha... O que tu acha: às 14 horas vírgula o investigador Fábio Gonçalves da Cunha e o delegado Leonardo Tavares se deslocaram por via pública até o recentemente recuperado parque municipal Jardim das Bruxas vírgula local indicado pela testemunha Marcelo Lombo (tô me referindo ao bacon de farda aqui, Fábio) como o local de desova escolhido pelo principal suspeito no homicídio de Daiana Tomazzetti ponto” “Muito bom” “Após a constatação acidental por parte do investigador Fábio Gonçalves da Cunha vírgula que tropeçou em um monte irregular de terra recém arada e acabou torcendo bravamente o tornozelo em nome da Polícia Civil vírgula o delegado Leonardo Tavares tomou conhecimento do aspecto suspeito da terra e solicitou que o perito técnico Jarvílio Nunes efetuasse uma escavação vírgula enquanto seu parceiro o investigador Fábio Gonçalves da Cunha se contorcia brutalmente na grama molhada e proferia palavras de baixo calão ponto”

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“Não sei se...” “Após a referida escavação ter sido concluída vírgula foram encontrados dois objetos especificados abaixo na lista de coleta de evidência dois pontos 1) Um saco plástico contendo um pó acinzentado vírgula o qual fora descrito na ocasião pelo investigador Fábio Gonçalves da Cunha como um pó que “fede a bacalhau” vírgula em suas palavras ponto e vírgula e 2) Uma faca para carnes modelo Tramontina com manchas secas de coloração avermelhada ponto Diante de provas tão esclarecedores formou-se a hipótese de que o suspeito houvesse cremado a cabeça da irmã e optou-se por não solicitar a análise laboratorial do material vírgula esperando que o suspeito pudesse prestar esclarecimentos em relação ao material encontrado em interrogatórios subsequentes ponto” “Ótimo... Só que assim pareceu que ele queimou a cabeça da irmã.” “Mas foi o que ele fez.” “Ele decepou antes.” “Questão de lógica, Fábio... Lógica” “Acho que seria melhor assim ó...”, pegando a folha do relatório em suas mãos, “Diante de provas tão esclarecedores vírgula os investigadores responsáveis formularam a hipótese de que o suspeito vírgula um homem mentalmente per-

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turbado e com um histórico de perturbação da tranquilidade urbana vírgula houvesse decepado a cabeça da irmã utilizando o referido objeto reconhecido como evidência número dois vírgula e logo depois vírgula sofrendo de um enevoamento súbito de suas ideias vírgula resolvera incendiar a cabeça de sua irmã com o intuito de ocultar sua obra...” “Enevoamento...” “Quê?” “Nossa... “ “Que foi?” “Que merda de relatório” “Você acha?” “Deixa como tá, agora cada um assina aqui... Assina Fábio, assina direito isso aí e... Pára Fábio, pra que assinar assim com esses arcos afeminados? Que assinatura é essa rapaz? Olha esse éfe... Vem Jarvílio, assina aí, se tiver espaço do lado dessa assinatura de boiola”

No presídio Santa Augusta, ele ria desesperadamente ao ler a notícia de um jornal contrabandeado. “Homem degola irmã em ritual de magia negra”, em fonte negritada 36 pontos ao lado de uma foto 3x4 de um pacote de granito

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despedaçado e de uma faca Tramontina ensanguentada. E ele nem precisou se esforçar tanto assim para ter um vislumbre do futuro. Mesmo sob o tik-tik-tik estridente de um frango-d’água que o seu colega de cela emitia, um ornitólogo cinquentão viciado em imitações de pássaros e acusado de exterminar dezoito estagiários do Centro de Zoologia da universidade em que trabalhava depois de descobrir que um deles havia administrado LSD-25 por engano ao avestruz pelo qual, segundo testemunhas, ele havia deixado a esposa. E assim, como se fosse uma daquelas memórias inconvenientes que resolvem retornar no momento exato em que você para de tentar se lembrar delas, ele enxergava uma criança com um uniforme de escola azul enlameado, que talvez fosse ele mesmo, correndo pelo Jardim das Bruxas em direção ao chafariz, desviando das jabuticabeiras e fazendo “vruuummm” com um aviãozinho de brinquedo. E nada em sua vida inocente o prepararia para aquilo que ele estava prestes a ver, a não ser que ele tivesse visto as tripas de seu pai serem espremidas para fora de um moedor de cevada. Depois de todo aquele tempo, um cimento de má qualidade não era capaz de cobrir homogeneamente uma cabeça em decomposição, e nem prendê-la a base do pescoço decepado de um anjo decrépito. Os olhos provaCabeça nas Nuvens – E. Reuss


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velmente estariam embaçados, brancos e reluzentes como se tivessem se desprendido da lua, olhando diretamente para a face aterrorizada do menino. “Tadinho...”, diria a Dai, vendo aquele menino gritar diante da sua cabeça flutuante na bacia de água mijada do chafariz. E mesmo com uma vontade de urinar desconsoladora e encarcerado no que parecia ser um aviário superlotado, ele só conseguia ficar feliz pelo menino, pois, quem quer que ele fosse, Gilberto sabia que aquele seria o dia mais caralhudo de sua vida.

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DOZE PERGUNTAS Elison L. Gomes

A igreja católica do bairro São José já estava abandonada por mais de sete anos e não parecia que seria restaurada um dia. As paredes, outrora brancas, agora estão cinzas, rachadas e com mofo em diversas áreas. Os vitrais que inspiravam os fiéis estavam quebrados e as únicas coisas que ainda pareciam superar o tempo eram os bancos de madeira.


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Embora abandonada pelo povo, uma pessoa insistia em visitá-la. Ora rezar, ora para realizar um estranho ritual de ocultismo. Naquele momento, essa pessoa realizava um ritual de invocação. Já falhara incontáveis vezes, mas ainda não desistiu de tentar. Afinal, invocar a Morte não seria algo fácil. Sabia disso desde o princípio e, mesmo conhecendo artes ocultas, já esperava não conseguir na primeira ou segunda tentativa. Esta seria sua quadragésima, mas as perguntas em seu íntimo precisavam ser respondidas. Havia momentos em que duvidava até de todo o ocultismo e se imaginava apenas como um grande idiota supersticioso. Hoje, a crença já não é mais tão forte e, às vezes, parece uma chama prestes a se extinguir. Pensava agora se não deveria desistir de tudo e passar a viver a vida como outro qualquer. Casar, ter filhos, contrair dívidas e esperar pela Morte da forma tradicional. Ria agora das próprias roupas, estava vestindo um paletó cinza escuro como se estivesse indo para um casamento. Ou talvez para o seu próprio enterro. Sempre lhe passara pela mente que a Morte poderia não gostar de ser invocada por um simples mortal e poderia ali mesmo lhe dar o seu

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fim. Se assim fosse, pelo menos estaria vestido adequadamente. A verdade é que estava perdido em tantos pensamentos, que mal percebia o quanto estava agindo de forma automática enquanto preparava o ritual. Tudo já estava pronto e a hora era a ideal: Meia-noite. Bastava-lhe falar as palavras certas e realizar o ritual. Ele decidiu que seria a última tentativa. Ajoelhou-se. Palavras estranhas em um idioma ainda mais estranho foram pronunciadas em voz alta e reverberaram por toda a igreja. O ritual estava terminado. Olhou para os lados a procura de alguém, mas não encontrou quem desejava e o fracasso já lhe pesava nas costas. Quarenta completos fracassos. Levantou-se e, de olhos fechados, chorou. Chorou muito. Algo que não se vê de um homem do alto de seus trinta e três anos. Enxugou os olhos com a manga do paletó e virou-se para a saída. – É isso. Acabou. – Falou para si mesmo. – Vejo que lhe falta fé até em si mesmo. Uma voz soou às suas costas e ele se virou. Deu de cara com um homem magro de cabelos curtos e vestido com um terno absolutamente preto. Parecia ter por volta de 25 ou 30 anos, mas tinha uma espécie de aura imponente. O estraDoze Perguntas – Elison L. Gomes


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nho estava justamente no altar, onde anos atrás o padre José falava os seus sermões. – Sente-se. – Pediu educadamente o estranho. O homem em pé, feliz e aterrorizado, sentou-se. – Responderei a doze perguntas. Agora, por favor, acalme-se Fernando. Você terá sete minutos para se acalmar e refletir sobre o que deseja perguntar. O coração de Fernando estava tão acelerado que parecia querer atravessar-lhe o peito. Estava suado e tenso, mas ao mesmo tempo extasiado de ter finalmente conseguido. Fechou os olhos com medo de que quando os abrisse o estranho de preto não estivesse mais lá e de que tudo não tivesse passado de uma alucinação. Inspirou e expirou profundamente para tentar apaziguar a guerra entre a mente e o seu corpo. Voltou a abrir os olhos e o homem ainda estava lá. Ainda de pé no altar e olhando diretamente para ele. Aguardando. – Desculpe pela forma como o trouxe. – Fernando gaguejava. – Com certeza o senhor é muito ocupado. Me sinto honrado em estar na sua presença e poder lhe dirigir a palavra. Doze perguntas para a Morte é bem mais do que eu mereço.

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Fernando parou um pouco para dar a oportunidade de o estranho fazer qualquer comentário, mas como havia apenas silêncio, perguntou: – Apenas para esclarecer uma pequena dúvida em meio a tantas, tenho certeza que nas minhas últimas tentativas de invocá-lo não foram diferentes da de hoje. Então, o que fiz de diferente para ter sucesso que eu próprio não percebi? O estranho sorriu. – O seu ritual não deu certo. Nenhum dos quarenta funcionou ou funcionaria. Estou aqui por admirar o seu esforço e desejar falar com você. A resposta chocou Fernando. Não apenas por estar fazendo algo inútil, mas principalmente pelo fato de que a Morte tinha algo para lhe falar. O que a Morte poderia querer com alguém como ele, isso ele não conseguia entender. – O que deseja falar comigo? – Disse com um misto de curiosidade e medo. – Você trabalhou bastante para conseguir fazer uma invocação. Portanto, julgo ser justo dar-lhe a preferência e permitir que me pergunte o que tanto deseja. Quando terminar de responder suas próximas dez perguntas é que revelarei o que desejo lhe falar.

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Doze perguntas parecia muito, mas agora que o tempo mal passou e lhe restavam apenas dez começava a se angustiar. Precisava pensar bem no que perguntar de agora em diante, mas sempre houve duas perguntas específicas que ele queria fazer. – Existe uma pergunta que quase todas as pessoas fazem em algum momento da vida e não posso deixar de pergunta-la. Tenho certeza que sabe a resposta, então me diga: Qual o sentido da vida? – O sentido da vida é simplesmente viver e aprender. Vocês costumam ensinar aos seus menores que todos os seres vivos nascem, crescem e morrem. Alguns se reproduzem antes de morrer. O ensinamento, porém, não está inteiramente correto. – Continuou. – Todos os seres vivos deste planeta nascem, crescem, podem se reproduzir ou não e transformam-se. – Neste caso a morte é realmente uma passagem para algo mais além como céu e inferno? – A morte, como vocês chamam, é apenas o fim de uma etapa da vida. Alguns dizem erroneamente, que a morte é o fim da vida, mas isto é errado. A vida não acaba em momento algum, você apenas termina uma etapa e inicia outra. – E qual a missão dos humanos na Terra?

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– A missão é aquela que cada um pode dar a si próprio ou, se permitirem, algo que lhe é dado por alguém superior. Como existe o livre arbítrio, cada um pode escolher o que desejar como sua missão. E assim como o sentido da vida é viver, há uma missão no instinto de cada ser vivo: sobreviver. Isso é necessário para que a etapa inicial da vida seja feita da melhor forma possível. Fernando ficou confuso. Achou uma explicação simples demais. Se o sentido da vida é apenas viver e a missão é qualquer coisa ou simplesmente se manter vivo, então qualquer um poderia ter a vida que quisesse e fazendo o que bem entendesse com os outros. Exceto se realmente houver um castigo para o mal e um prêmio para o bem. – Existem, realmente, um paraíso e um inferno? – Não. Assim como também não existe um purgatório. – Mas então, o que seria a vida além da morte e como separar o bem do mal? – Perguntou Fernando com uma revolta contida. – São duas perguntas. Sobre vida além da morte, você não entendeu o que falei a pouco. Vocês falam em morte, mas é uma transformação. Uma espécie de metamorfose. Não existe morte. Existe apenas vida. E o que vocês cha-

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mam de morte é apenas o fim de uma etapa da vida e início de uma nova etapa. Fernando estava prestes a abrir a boca para falar, mas o estranho levantou a mão sinalizando para ele esperar. E assim ele o fez. – Quanto sobre separar o bem do mal, isso não é feito premiando um e castigando o outro. Todos nascem puros e são seres puros na etapa final da vida. Um pai não separaria seus filhos, pelo contrário, procura sempre a união. Assim... Fernando interrompeu. – Quer dizer que tanto faz ser uma boa pessoa, rezar e fazer o bem, quanto ser um assassino? – Fernando estava quase gritando. – Eu iria comentar justamente isto, antes de você me interromper com esta nova pergunta. Existe uma diferença entre quem se comporta bem e quem se comporta mal. Isto é um sinal que o bom conseguiu uma boa vida e aprendeu bem nesta fase. O mal não, ele não aprendeu a viver da melhor forma possível em uma comunidade e, portanto, chegará a nova etapa da vida sem estar completamente pronto. Fernando parecia não entender, mas o estranho continuou. – O mesmo acontece com alguém que tem um fim repentino desta etapa, como um acidente ou ser assassinado. Na nova etapa de vida vocês Doze Perguntas – Elison L. Gomes


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não têm um corpo como este, mas sim algo melhor e que consegue assimilar com plenitude o conhecimento do que é bom. Porém, causar sofrimento aos outros não é viver. E pessoas assim e outros que encerraram esta etapa precocemente precisarão de mais ajuda na nova etapa daqueles que chegaram a nova etapa com qualidade e que estarão dispostos a ajudar. Fernando tentava assimilar tudo aquilo, mas não sabia se conseguiria. Entretanto, algo agora lhe causou uma enorme dúvida. – Você diz que meu ritual de invocação falhou e que não existe morte. Mas se isto é verdade, quem é você? – A morte não é uma entidade Fernando, nem sequer existe, pois é apenas uma palavra criada para definir a transformação que ocorre no fim da primeira etapa da vida. Esperava que você, a esta altura, já imaginasse quem sou. Eu sou o que você costuma chamar de Deus. Fernando ficou pálido, e a única cor em seu corpo além do branco parecia ser o cinza de suas vestes. Demorou algum tempo para o sangue lhe voltar e com ele a cor típica da pele, mas não demorou a ele lembrar que estava chamando Deus de você. Demorou a falar e a gagueira inicial havia voltado. Gaguejou um pouco uma nova pergunta,

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mas falhou em emitir algo compreensível. Pigarreou e tentou novamente. – Deus? O onipotente, onisciente e onipresente Deus? Deus da Bíblia? De outro nível? – Fernando tentava se controlar e fazer uma pergunta coerente. – Como assim, Deus? Deus sorriu. – Fernando, você já leu todos os livros considerados sagrados pelos humanos e praticamente todos os livros de ocultismo que existem. Esses livros são inspirados na ideia de um deus ou de vários deuses, mas não foram ditados por mim. Há pessoas maravilhosas em algumas dessas histórias e alguns ensinamentos muito importantes com os quais concordo. Fernando observava a tudo sem piscar, ainda não conseguia acreditar que aquilo realmente estava acontecendo. – Porém, também há muita fantasia e diversos pontos desses livros que não concordo. Você me pergunta qual deus eu seria, mas a verdade é que sou o deus de quando não havia nada. O deus que criou estrelas, planetas, entre tantos outros seres vivos e não vivos. Se as contas de Fernando estavam certas, faltava apenas mais uma pergunta a se fazer, mas havia tantas dúvidas. Era impossível escolher uma mais importante, então decidiu pergun-

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tar algo que considerava bobo, mas em seu íntimo era uma das coisas que gostaria de perguntar se um dia tivesse a oportunidade de falar com Deus. –Deus, não desejo lhe faltar com respeito, mas para que criar tantos planetas, galáxias e estrelas para permanecerem vazias no universo? – Fernando não se conteve e tentou emendar outra pergunta. – Existe vida nesses planetas? – Novamente duas perguntas, mas apesar de lhe ter avisado que responderia apenas doze perguntas, a resposta sua décima segunda pergunta também responde a última. Não criei estas coisas para permanecerem vazias e muitas já não estão, mas um ser humano como você, mesmo com toda a tecnologia já inventada, não conseguiria enxergar. E se você conseguisse ver, veria vida. Mas não se preocupe, na próxima etapa da vida você e todos os demais verão. Com isso não haveria mais perguntas, pensou Fernando. Acabou. Ele estava abismado com tudo o que acontecera naquele pequeno período de tempo e como podia se considerar o homem mais sortudo do mundo e ao mesmo tempo o mais desgraçado por não ter feito perguntas melhores. Agora sabia que existia um Deus, mas continuava sem saber o que fazer.

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Não pedira provas, pois a própria presença dele era algo sobrenatural. Conseguia sentir que tudo aquilo era verdade, mas agora não havia religiões para seguir, apenas viver e esperar essa nova etapa da vida chegar. Estava, de certa forma, feliz e triste. Mas Deus ainda estava na igreja. – Fernando, meu filho, fiquei impressionado pela sua necessidade de saber a verdade sobre a vida e essa é uma das razões de eu estar aqui. Mas como disse antes, gostaria de falar algo com você. Apenas agora Fernando se lembrou de que Deus queria falar algo para ele. Tentou descobrir com uma pergunta, mas ainda não havia chegado a hora. – Eu gostaria de lhe pedir algo Fernando, algo que mudaria a sua vida e que poderia lhe trazer tanto alegria quanto tristeza. – Ficarei honrado em servir-lhe meu Deus. – Gostaria que você se tornasse meu profeta e espalhasse a verdade para aqueles que a buscam, mas para isso você teria que me acompanhar para aprender mais sobre tudo e poder informar as boas novas a todos. Fernando, que até então mal tinha um motivo para viver, ficou extremamente feliz.

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– Deus, se entendi bem, esta vida que temos e termina em uma transformação para outra etapa é algo tão simples quanto uma lagarta que se transforma em borboleta. Bem, há algum sentido no que acabo de falar? Deus desceu do altar e ficou de frente para Fernando. – Você realmente adora perguntas e sim, há bastante semelhança, pois são etapas de uma vida, mas ainda há muito que quero lhe mostrar e ensinar. Podemos ir? – Perguntou estendendo a mão para Fernando. – Sim, Deus. – Aceitou Fernando, dando a mão para Deus. E, como se nunca estivessem estado naquela igreja, simplesmente desapareceram.

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HERE IN HEAVEN Alef

- Por favor, ligue o rĂĄdio para mim e sintonize na 782 am. "[...] voltamos a apresentar para vocĂŞs o MTV Unplugged Eric Clapton[...]"


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Carmélia sorri e se retira do quarto. Edson fecha os olhos tentando ouvir a melodia que soava no rádio, presente de um amigo. Ele estava cansado, sua idade era avançada e ele tinha uma doença degenerativa. Os remédios não faziam mais efeito, seu corpo estava no limite. Mesmo sabendo de sua condição delicada, Edson mantinha esperanças. Afinal, tinha recursos para ter o melhor tratamento disponível, conseguidos com seu enorme esforço para levantar o seu império de cosméticos. Na tentativa de melhor ouvir o rádio virou a cabeça, pois seus ouvidos não eram mais os mesmos. Uma das suas músicas preferidas estava tocando. Virar o rosto não foi o suficiente, ele teve que puxar o rádio mais para perto para ouvir melhor, o que em sua condição, lhe custou grande esforço. Would you know my name if I saw you in Heaven? A bela letra da música causa um aperto em seu coração, letra e melodia, eram das mais belas que ele já ouvira na vida. O seu tempo se esgotava e, por isso, o som do rádio soava ainda mais especial. Ele descobriu o câncer há algum tempo, foi um duro choque. Não se deu por vencido, buscou tudo o que os seus recursos lhe permitiam

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alcançar. Mas, ainda assim, ele sabia que sua hora estava próxima. Da forma que ele podia e sabia, clamava aos céus para que tivesse uma morte tranquila, para que seu sofrimento tivesse fim. I must be strong and carry on 'Cause I know I don't belong here in Heaven A música continuava tocando e Edson se emociona mais a cada segundo, suas lágrimas rolam por seu rosto até molharem o lençol, sua mente lembra de eventos em sua vida e comparando à vida de outros ao seu redor, era evidente como lhe faltou tranquilidade em sua jornada. Isso o machucava, o arrependimento de tantas coisas que deixou passar o machucava. Ele lutou o quanto pôde para deixar sua família em uma situação confortável, mas ao custo de não estar com eles nos momentos mais importantes. Sempre pensava a respeito quando se via mergulhado em reuniões de negócios intermináveis e nos sonhos de madrugadas solitárias diante de pilhas de papéis que analisava para tomar uma decisão importante. Instantes depois, limpava seu rosto como uma criança limpa o rosto sujo de chocolate, Here in Heaven – Alef


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na mesa ao lado de sua cama vê seu pequeno tesouro, uma foto na qual ele abraçava sua filha e sua esposa, Clarisse e Ana, ambas afoitas e preocupadas com o marido em frente à casa de luxo em que residem, no Jardins. Edson sorri e como um lençol cobrindo uma pessoa, vê a tranquilidade envolver o seu corpo pouco a pouco. As decisões que foram tomadas por ele não podem ser desfeitas. Amar era algo que Edson sabia bem, sabia também que ele abandonaria a quem ele amava, mas que ao menos teria deixado meios para protegê-las das adversidades da vida, sabia que sua missão estava completa. Edson descobriu o que era amar. Enquanto ouvia a música, Edson ficava cada vez mais desnorteado. Ele pegou a foto no criado-mudo e a abraçou. Beyond the door there's peace I'm sure And I know there'll be no more tears in Heaven Quando Edson foi internado trouxe consigo um cigarro, pagou para um jovem enfermeiro para que lhe trouxesse um isqueiro. Ele esperava pelo momento certo para acendê-lo. São 23h de Here in Heaven – Alef


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um sábado de julho, Edson desnorteado pelos efeitos dos remédios, consegue retirar o pequeno cigarro e o isqueiro e o acende. O fim da música se aproximava, assim como os últimos minutos do empresário... Uma luz surgia conforme os versos finais se aproximavam. Would you know my name if I saw you in Heaven? Would it be the same if I saw you in Heaven? I must be strong and carry on 'Cause I know I don't belong here in Heaven O alarme de incêndio é acionado. Carmélia, tem seu jantar interrompido pelo alarme, e se pergunta quem foi o retardado que fumou ou acendeu algo próximo do alarme. Ela vai verificar os internados e, na mesma velocidade em que vai até eles, seu apetite desaparece. Há algo diferente no quarto de Edson. Carmélia entra e vê a brasa de um cigarro em uma das mãos do paciente e na outra uma foto. O rosto de Edson tinha um semblante de tranquilidade. Ao ver a cena, imediatamente liga para os médicos, que vêm o mais rápido possível. Mas era tarde demais.

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[...] Vocês curtiram hoje o disco de Eric Clapton, até logo pessoal! Fiquem com a próxima programação! [...]

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REUNIÃO DE FAMÍLIA Fábio Guastaferro

Hoje é um dia especial. Vou rever muita gente e conhecer outro tanto. Quase toda a minha família vai se encontrar aqui. Tem gente que vejo quase todo dia, outros que vejo só de vez em quando e alguns que nunca


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vi. Estou bem animado mesmo tendo que me despedir da Tia Cotinha, que vai viajar. A minha família é grande, mas não moram todos juntos, tem gente espalhada pelo Estado inteiro e até em outros Estados, tem gente morando até fora do país. Mas os que moram aqui na minha cidade são poucos, eu, meu pai e minha mãe. Tem também a tia Cotinha que já morava aqui desde que nasci. A tia Cotinha é tia do meu pai, só que ela mora num bairro muito distante e raramente vem aqui em casa ou a gente vai a casa dela. Alguns dos meus amigos também estão na reunião. Um deles é o Guilherme. Antes a gente brincava mais, mas agora que mudei de escola vejo pouco o Gui. A gente brinca mais só quando as nossas mães se encontram pelo bairro. Antes eu ia à casa do Gui jogar Wii e ele vinha aqui em casa jogar futebol de botão. Quem gosta de futebol de botão é o meu tio Quinho. Ele se chama Marcus, mas quando ele era pequeno todo mundo o apelidou de Marquinhos e acabou que virou Quinho. Ele é irmão do meu pai e acabou de chegar. Com ele chegaram meus dois primos. A Amanda e o Gil, de Gilberto. Eles são mais velhos que eu e não me dão muita ideia.

Reunião de Família – Fábio Guastaferro


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Tenho outro amigo o Matheus, este é o meu melhor amigo. Ele é da minha escola, e a gente sempre anda junto no recreio. Ele senta perto da porta, e eu sento depois. Às vezes a gente brinca fora da escola também, quando o Matheus vem aqui em casa, ou eu vou a casa dele. Ele acabou de chegar com a sua mãe. A mãe do Matheus é amiga da minha mãe, mas não é a melhor amiga, elas só se encontram por causa da gente. A melhor amiga da minha mãe é a Vanessa. Acho que a minha mãe fala com a Vanessa todos os dias ou quase todos os dias. Vieram também o pai e a mãe da Vanessa e o irmão também, agora não me lembro o nome deles, acho que o irmão se chama Pedro. Meu pai não gosta muito do Pedro não. Já ouvi ele dizendo aí, aos cotovelos, como minha mãe diz, que o Pedro é trambiqueiro. Por falar em trambiqueiro chegou também a tia Dota. Não sei o nome dela, só sei que a chamo de tia Dota desde que nasci. Ela não é daqui, mora no interior, já fui algumas vezes na casa dela, mas atualmente a gente não vai mais lá. Desde que ela fez uns trambiques com o meu pai. Tia Dota é casada com o tio Nando, que também é chamado de tio Fernando, mas eu gosto mais de Tio Nando. Eles chegaram numa caminhonete enorme que eu ouvi a minha mãe contar que é também um dos trambiques da tia Dota.

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Quem anda fazendo o maior sucesso por aqui é o Jorge, Jorge Henrique. Todo mundo, na verdade, chama o Jorge Henrique de Jorge Henrique, ele não tem apelido. Nenhum apelido pega nele. O Jorge Henrique nem é mais tão bebê, ele já anda para todo lado, sobe nas coisas e fala de tudo, até palavrão. Só não tem tamanho. A mãe dele se chama Andreia, na verdade, é tia Deia, ela é irmã da minha mãe. Mas elas estavam brigadas. Eu vi o Jorge Henrique quando ele ainda era bem pequenininho e parecia um joelho. A tia Deia disse que só veio aqui hoje por causa da a ocasião. Pensei que o pai do Jorge Henrique ia vir também, mas fiquei sabendo agora que ele se separou da tia Deia. Escutei a minha mãe contando numa turma de pessoas que ele tinha costume de bater nela. A minha mãe tem fama de fofoqueira, dizem que é por isso que ela e a tia Deia brigaram. Mas eu não gosto que chamem a minha mãe de fofoqueira, fofoqueira mesmo é a Marcela, a outra prima minha. Ela sim brigou no colégio e teve até que trocar de cidade depois que um vídeo dela apareceu na internet. Ela nem veio aqui hoje, vieram só os pais dela, o Tio Marcio e a tia Marlene. Eles agora moram em outro Estado e vieram somente para essa reunião. Meu pai briga direto com a minha mãe porque a minha mãe vive contando a história da Marcela. Reunião de Família – Fábio Guastaferro


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Agora a pouco teve o maior alvoroço, um primo do meu pai que mora nos Estados Unidos chegou. Ele veio direto do avião aqui para a casa. Chegou com uma mala bem grande e disse que tem uma surpresa para mim, mas só vai me dá amanhã, quando tudo acabar. Ele se chama Paulo André, Paulo para uns, André para outros. Meu pai ficou muito feliz porque tinha muito tempo que eles não se encontravam. O Paulo André foi morar nos Estados Unidos antes de eu nascer, antes do meu pai casar com a minha mãe. O meu pai até morou com ele uma época num país perto dos Estados Unidos, acho que se chama Europa. Depois o meu pai voltou para o Brasil e casou com a minha mãe. Ouvi minha mãe contar numa roda de pessoas que o Paulo André é gay, e gosta de ser chamado de Paulinho, mas é só a minha mãe que chama ele assim. Uma vez ouvi a minha mãe contar para a Vanessa que o meu pai só não virou gay graças a ela e graças a mim também, que nasci. Não entendi direito, mas o meu pai não é gay. Bom, não sei bem o que é gay, acho que é homem que se veste de mulher, e meu pai nunca usou as roupas da minha mãe. Só os chinelos. Chegaram algumas pessoas que eu não conheço. É tudo gente velha. A minha mãe disse que são todos amigos da tia Cotinha, lá da igreja.

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O único que eu conheço é o Sr. Manuel, lá da padaria. Ele tinha brigado com a minha mãe, porque disse que a minha mãe não paga a conta do mês, e por isso ela fez um escândalo, mas parece que tá tudo bem, ele até abraçou a minha mãe. Eu e o Gui queríamos jogar vídeo game, mas a minha mãe disse que devemos ficar aqui, e nem correr eu posso. Ela disse que essa reunião é muito séria e de muito respeito. Que tenho que me comportar. Eu fiz até uma pelotinha com umas meias para brincar de gol a gol com o Gui e com o Matheus, mas aí quem brigou foi o meu pai. Ele sabe que eu adoro futebol, mas disse que eu deveria me concentrar aqui, e também era para parar de correr com os meninos. Estou doido para o meu primo Carlinhos chegar. Ele tem um tablet cheio de joguinhos. Eu também tinha um tablet, mas fui brincar com ele dentro da piscina e ele estragou. A gente vai sempre ao clube, eu jogo no time infantil de futebol de salão. Sou o atacante. Minha mãe fala que eu sou muito bom de bola, mas o meu pai disse que eu sou fofoqueiro igual a minha mãe. Que se eu jogasse bola igual falo, seria um craque. Tem algumas pessoas aqui que eu não conheço. Um deles é o seu Marino. Ele é bem velhinho e anda numa cadeira de rodas. A minha

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mãe disse que o Seu Marino me conhece, desde quando eu era pequenininho, mas eu nunca o vi na minha vida. Ele tem a testa toda enrugada e cheia de manchas marrons, até parece uma máscara de borracha derretida. A minha mãe disse que ele já namorou a tia Cotinha, mas foi o tempo que até a minha mãe era criança. Quando a minha mãe era criança, ela me contou que se parecia muito comigo. Que gostava muito de conversar. O meu pai falou que a minha mãe é fofoqueira desde quando aprendeu a falar, e que eu sou igual a ela, que fico contando tudo da vida dos outros, mas não é bem assim. A minha professora disse que sou um menino até muito quietinho, mas que às vezes, só às vezes eu converso na sala de aula. Chegou o Seu Walter. Ele é o homem do escolar. Ele é amigo do meu pai. Por isso que eu estou neste escolar. Se não fosse o Seu Walter provavelmente o meu pai que iria me levar para a escola. Uma vez o Seu Walter bateu a van com a gente dentro. Foi a maior gritaria, mas só a Alessandra, a menina que sempre vai na frente que machucou o nariz. Eu bati o joelho bem forte, mas só chorei porque todo mundo tava chorando. Minha mãe disse que o Seu Walter é roda dura igual ao meu pai, mas que eles são cismados que são bons motoristas. Meu pai e minha mãe cha-

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ma o Seu Walter de Waltinho, mas ele exigiu que todo mundo na van o chamássemos de Seu Walter. Eu já acostumei. Parece que ele vai ficar pouco tempo, escutei ele falando que tem um compromisso importante. Mas pela cara que a minha mãe fez vi logo que era mentira. Além de roda dura, a minha mãe fala que o Seu Walter é mentiroso. Escutei meu pai comentando que vai chegar um tio-avô. Ele é irmão da tia Cotinha. Disse que ele é bem velhinho, e que está fazendo um sacrifício danado para estar aqui hoje. O meu pai disse que dos velhos, este é o último que sobrou. A minha mãe falou que era bobeira ele fazer todo esse sacrifício. Meu pai não gostou e falou que a língua da minha mãe e uma língua de cobra. Eu já vi língua de cobra e a língua da minha mãe não parece nadica de nada com uma língua de cobra. Acho que eu meu pai queria dizer, igual a uma língua de sogra. Quem gostaria de estar aqui hoje é a minha vó Isa, a sogra do meu pai. Ela adora essas reuniões de família, mas agora ela em um lugar muito, muito longe, chama Mato Grosso do Sul. Depois que ela mudou para lá a gente nunca mais viu ela. O meu pai disse que ela foi se juntar aos outros parentes da minha mãe que vivem

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no Pantanal, mas pelo que eu sei, é só a minha vó que mudou para aqueles lados. A minha vó Isa, que se chama Isadora morava aqui na mesma cidade que eu moro. Quando eu era pequeno, ela morava aqui pertinho, e vinha sempre com uma amiga dela, a Dona Lolinha, ela também se mudou para o Mato Grosso do Sul, meu pai me disse que ela foi morar com a Vó Isa. Atualmente é proibido falar deste assunto em casa, foi a minha mãe que proibiu. Sabe aquele homem ali, ele tá aqui desde a hora que eu cheguei e tá sempre perto da tia Cotinha mas não fala com ninguém. Nunca vi sujeito mais estranho. Ele me disse que tá com a tia Cotinha desde ontem, mas deve tá pirado porque a tia Cotinha tá ali naquela cama de madeira, cercada de flores. Minha mãe disse que essa festa é para ela, é uma festa de despedida porque a tia Cotinha também vai para o Pantanal. Não sei quem esse homem é, mas sei de uma coisa, ele vai ficar muito triste quando souber que a tia Cotinha não vai para lugar nenhum com ele.

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ÚLTIMAS PALAVRAS Fabiano dos Santos Araújo

Lá dentro pouco importava que dia da semana fosse, que horas o relógio marcasse, qual era o mês atual, ou qual o ano... Tudo parecia sempre estar igual. As pesadas cortinas dos quartos bloqueavam completamente a visão do mundo exterior, jamais deixan-


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do saber se lá fora era dia ou noite, se fazia sol ou chovia. O som estridente de uma das rodinhas do carrinho de limpeza ecoava pelos corredores silenciosos e diariamente, a promessa de acabar com o barulho estridente era repetida por quem o empurrava. Por mais incômodo ou desagradável que aquele som se mostrasse, ele tinha a sua utilidade, avisava a presença do doutor chegando... A maioria dos funcionários do hospital mal lembravam o nome verdadeiro dele, os mais novos só o conheciam como Doutor Morte. O humilde faxineiro não gostava do apelido, ao menos no princípio, hoje era irrelevante. Todos os dias ele percorria os corredores da ala onde ficavam os pacientes terminais e em estado grave, por vezes no cumprimento do seu serviço ele era a última pessoa que falava com muitos destes. Com o passar dos anos a prática ficou tão comum, e sua atuação trazia tanta paz e conforto no momento final daqueles pacientes, que os próprios médicos incentivavam a sua visita. Não que ele tivesse alguma habilidade especial ou macabra, que encerrasse rapidamente com o sofrimento.

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Ninguém sabia ao certo o que ele tinha de especial, mas em sua simplicidade e presença, ele trazia conforto aos desesperados, alívio às dores da alma e paz aos corações dos aflitos. Havia quem dissesse que quando seu rosto magro virava para alguma porta dos quartos e seus olhos azuis se fixavam nela por um instante, logo o “descanso” daquele sofredor chegaria ao fim. O que era motivo de contestação de muitos, pois haviam três pacientes que eram visitados com grande frequência. Sempre que o doutor terminava a limpeza dos corredores com algum tempo de sobra, se dirigia a um dos quartos. Hoje iria ao quarto de Ava Amélica. Ele jamais entendeu o nome dela, mesmo conhecendo sua fama há muitos anos. Senhorita Ava, como gostava de ser chamada, fora por muitos anos uma famosa cantora, sua fama chegou a ser internacional. Mas por muitos anos o seu desconhecimento do grande público quase chegou ao nível de sua fama. Mesmo com toda a debilidade atual, Senhorita Ava possuía ainda uma bela voz aveludada, algo pesada e grave. O doutor ainda se lembrava dela nos tempos de sucesso. Naquela época havia quem afirmasse que sua voz amolecia o mais petrificado dos cora-

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ções. E realmente, ele mesmo sempre se emocionava com suas canções, mesmo não tendo uma pedra batendo no peito. A cada visita o doutor fazia algo especial para cantora. Trazia um dos discos gravados por ela, para que juntos pudessem ouvi-los e se lembrar daquela época de suas vidas. O quadro clínico de Senhorita Ava não permitia algumas extravagâncias, como manuseio ou manter proximidade com objetos velhos e consequentemente cheios de poeira, cada disco trazido pelo doutor, parecia mais limpo e mais conservado que o anterior, alguns pareciam estar lacrados por décadas, dando a sensação de que naquele quarto a vitrolinha portátil, tão limpa quanto era possível que ficasse, tocava as músicas daqueles discos pela primeira vez. A outra particularidade no quadro dela, que motivava o doutor a trazer os discos a cada visita, era que ela não poderia conversar por longos períodos de tempo. Trazer os discos era o melhor que ele podia fazer por ela. Talvez a única forma encontrada por ele de lhe dar atenção. – Nem sei o que eu lhe dizer doutor. Bom dia? Boa noite? Boa madrugada? Ele sorriu ao vê-la sentada o esperando. – Faz alguma diferença? – Não... Mas não posso ficar sem falar nada. Últimas Palavras – Fabiano dos Santos Araújo


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– Diga “oi”. É rápido e poupa sua voz. – Bobagem... Fico em silêncio por horas todos os dias, falar alguma coisa me ajuda a viver um pouquinho mais. Eu me sinto viva de verdade, ao menos por um instante... – disse Senhorita Ava sorrindo tristemente e fazendo uma pausa. – Oi! Assim está bom? – Ainda está contando os dias Senhorita Ava? – É a única coisa que ainda tenho para contar. Hoje é o dia do Canário Negro, 85º dia. O último dia... – Quer dizer o último disco, não é mesmo? – É... Isso mesmo... – Não diga isso. Só por ser o último disco que gravou, não será o seu último dia. – Algumas vezes eu gostaria que fosse, resolveria uma porção de coisas... Mas, sabe de uma coisa? – O que? – Espero cada vez menos que seja este dia. Veja as cartas que tenho recebido ultimamente. Parece que meu trabalho está sendo redescoberto. E pelos jovens! Quem diria... Eles não ouvem minhas músicas como elas foram gravadas. Mexem aqui e ali, mas quem se importa? Mesmo quando eu me for, que espero que não seja logo, ainda lembrarão de mim. Últimas Palavras – Fabiano dos Santos Araújo


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– É bom ouvir isso. – É melhor ainda lhe contar. Mal tenho tempo de responder as cartas que chegam. Eu nem sabia que alguém ainda mandava uma carta que não fosse uma cobrança. – Quando começamos? – Agora mesmo! O doutor ligou a vitrola, colocou o disco e a música começou bem baixinho, afinal, haviam pessoas nos outros quartos. Ao som da música iniciou o seu trabalho. Desta vez, foi especialmente difícil, pois neste disco estavam as músicas que mais lhe emocionavam. Por isso evitava que ela o olhasse no rosto, para que não notasse sua emoção aparente. Sempre que podia, olhava discretamente para ela, e ele mais uma vez percebia algo que há tempos vinha notando, de alguma forma que ele desconhecia, quando a música começava a soar no quarto, ela não apenas a ouvia, parecia na verdade, a viver. Algo muito além do que simplesmente cantar, ou neste caso acompanhar o som com os lábios. Ao fim da última música, ele silenciosamente desligou a vitrola, guardou o disco e virou-se para Senhorita Ava. Ela sorriu fazendo menção de lhe falar algo, provavelmente agradecer.

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Em resposta, o doutor apenas abanou a cabeça negativamente. Afinal, haveria mesmo algo para se falar naquele momento? A felicidade e satisfação que ela demonstrava, falavam mais do que milhares de palavras que poderiam ser ditas em uma vida inteira. Ao sair, o doutor fez uma reverência e sorriu para ela.

O serviço avançava e as visitas também. Chegara a visita de João Caesar. Ele não gostava de ser chamado assim. Sempre que alguém lhe chamava pelo nome, recebia em resposta um sonoro: – Pode me chamar de Jotacê. Algumas vezes o doutor não entendia o motivo de lhe chamarem para visitar alguns pacientes, e este era o caso com o rapaz. Ele era um esportista famoso e por isso era bem mais forte e resistente do que o doutor jamais fora em seus melhores dias. O seu caso trazia uma semelhança com o caso de Senhorita Ava, ele pouco podia conversar. Mas não era por um problema em sua voz, mas sim em seu coração. Havia um pequeno defeito em uma válvula cardíaca, descoberta devido a um cansaço acentuado que vinha apresentando, o que acabava Últimas Palavras – Fabiano dos Santos Araújo


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tornando conversas mais longas algo extremamente cansativo. Apesar do nível de seriedade do problema de Jotacê, era um dos casos menos graves daquela ala do hospital. Em uma cirurgia seria feita a substituição da válvula e após a recuperação poderia seguir com sua vida como se praticamente nada houvesse ocorrido. Normalmente durante as visitas do doutor, eles pouco falavam, o rapaz estava sempre ocupado respondendo aos fãs. Ele não o fazia por maldade ou desprezo, mas sim para que naquele instante pudesse voltar a viver um pouquinho de sua vida. – Bom dia doutor! Tem alguma coisa aí pra mim? – Bom dia João... Antes que o doutor morte pudesse terminar a frase, seus olhos fitaram o rapaz que já se preparava para corrigi-lo, antes que ele pudesse fazê-lo, se apressou para chama-lo como ele esperava ser tratado. – Bom dia Jotacê. Trouxe o de sempre. Do carro de limpeza ele retirou um pacote plástico lacrado, contendo um notebook. Por ordens dos médicos de Jotacê, teria que ser assim, pois ele estava tão ansioso para sair, que mal respeitava o repouso e as orientações médiÚltimas Palavras – Fabiano dos Santos Araújo


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cas logo que ficou internado. Passava dias à fio ligado, falando com seus fãs e amigos pela internet. Acabou ficando debilitado e a internação que inicialmente era para prepará-lo, acabou o debilitando mais a cada dia, adiando ainda mais a cirurgia. Enquanto ele se fortalecia e se preparava, só poderia usar o computador enquanto o doutor estivesse fazendo o seu trabalho. No restante do dia ele deveria repousar. Com o pacote em mãos, o rapaz o rasgou, retirou o notebook dele parecendo uma criança com um brinquedo novo. – Valeu doutor! – Por nada amigão. Jotacê começou a cuidar de sua vida digital acompanhando as mensagens que recebera dos fãs e amigos, enquanto o doutor iniciava o seu trabalho, mas ao fazê-lo, ele notava uma coisa, o som normalmente constante do teclado estava reduzido e espaçado hoje. Estaria ocorrendo alguma coisa de errado com o rapaz? Como de costume, o doutor terminou a limpeza, virou-se para o Jotacê para avisá-lo que iria sair pouco antes de pegar o computador. Pela primeira vez ele estava com o notebook desligado

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e fechado, o observando aparentemente há algum tempo. Na hora que o doutor avisava que ia sair, era sempre a mesma novela: ele pedia mais alguns minutos, por não ter conseguido terminar de falar com todo o pessoal, e para lhe ajudar ele retornava um pouco depois quando a bateria já estava acabando. Ele acabava sempre ficando uns quinze ou vinte minutos a mais do tempo que deveria ficar. – Você não precisa me devolver ele agora. Ainda poderá ficar com ele por mais tempo. – Tô sabendo... Mais tarde mexo nele... – O que é então, rapaz? – A enfermeira veio hoje mais cedo. E só agora parece que a minha ficha caiu... – Será quando? – Amanhã nesta hora, eu acho... – Está com medo? – Não... Jotacê fez uma breve pausa, respirou fundo e prosseguiu. – Sim. Tô sim, doutor. Não é muito... Mas eu tenho medo. – Isso é normal... Qual é a preocupação? Você é tão...

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– Você é tão forte e jovem, é um caso bem simples garoto! Você vai se recuperar facilmente, logo estará em sua vida normal, fazendo novamente o que sempre fazia... Faltou alguma coisa? Errei? – Não esqueceu nada, é verdade... Mas, você errou. Errou no que achou que eu tinha para falar com você. – O que é então? – Você é tão corajoso! – Corajoso? – Sim. Você ouviu bem. Corajoso. – Viu os meus vídeos, não viu? Eu sabia que ia ver! – Não, não vi... Desculpe. – Que balde de água fria... Então do que está falando doutor? – Daqui. De onde te conheci. Não me lembro de te ver triste nenhuma vez. Nunca reclamou. Não me lembro de te ver fraco. Mesmo que o seu corpo estivesse assim. Jotacê apenas sorriu. O doutor não sabia se ele já havia falado demais e estava descansando, ou se o fizera por não ter o que falar. Talvez fosse a segunda opção, pois ele parecia muito bem naquele dia.

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– Você se dedica ao computador todos os dias, mas tenta fugir deste quarto e do seu problema. Você tenta manter a esperança de todos que acreditam em você e no que você faz, no que é para eles. Não se preocupa em se prejudicar com isso, precisa que eles acreditem que é possível ir além. Seu trabalho não é de esportista, mas sim, mostrar que é sempre possível ir além. É isso que você faz todos os dias. Jotacê estendeu as mãos para o doutor e apertou com força as dele, agradecendo pelo que acabara de ouvir. – Acho que já chega. Você não pode ficar cansado, sabe disso. – Estou me despedindo, pois não vou te ver mais, doutor. – Não diga... – Besteiras? Eu não disse. Você disse que trabalha só nessa ala. Depois da cirurgia vou para outra ala do hospital, esqueceu? – Agora você acertou. Mas quem disse que não vou te ver. – Eu sei. Mas têm outros precisando de você. Não esquenta comigo, fez um bom trabalho. Obrigado. E adeus. – Por nada... Jotacê reabriu o computador e continuou digitando, logo que foi possível, novamente no Últimas Palavras – Fabiano dos Santos Araújo


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ritmo costumeiro. O doutor deu um tapinha em seu ombro e deixou a fonte do notebook com ele antes de sair. Ele entendeu que Jotacê agira daquela forma pois não sabia outra maneira de se despedir. Jotacê sempre se encontrava com as pessoas, sempre as levantava, mas nunca se despediu delas, pois elas sempre o acompanhavam, mesmo que em pensamento.

O quarto seguinte ao de Jotacê quase sempre estava com as luzes apagadas, ou com uma só acesa. O doutor não sabia quem era a pessoa que estava dentro dele. Sempre que passava em frente a porta, tinha a impressão de ver três pessoas observando o paciente no leito. Nunca pediram que ele visitasse esse quarto e ele também não constava na lista dos quartos que era responsável pela limpeza, por isso jamais soube quem estava lá. Do quarto de Jotacê, normalmente ele seguia até o quarto de Neto. Na verdade, o menino neste quarto não se chamava Neto. De fato, possuía o mesmo nome que fora do pai e do avô antes dele. Mas ao fim de seu nome havia o número romano III, indicando que era o terceiro da linhagem familiar com aquele nome.

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O doutor não se sentia confortável em chamá-lo de Terceiro, e o seu nome era complicado demais para que ele se lembrasse. Por isso resolveu chamá-lo de Neto. A roda do carrinho continuava cantando quando ele entrou no quarto. Desta vez o som estridente pouco incomodou o doutor. Agora ele tinha um significado especial. Não importava o horário em que ele chegasse ao quarto de Neto, sempre que ele abrisse a porta, o garoto estaria sentado na cama o aguardando com os olhinhos brilhando, o som não o incomodava ou acordava. Outra coisa que o doutor havia notado, que era o motivo que mais lhe comovia, o som da rodinha era um som que significava felicidade para o garoto. E isso dava um significado especial àquele ruído, naquele exato momento do dia. Talvez fosse por isso que ele sempre acabava deixando para depois o conserto da rodinha. – Já acordou? Não acha ainda é cedo? O garoto sorriu ao vê-lo entrando pela porta. – Mas não é mais cedo... Eu já aprendi a ver as horas no relógio de ponteiros... Você me ensinou, esqueceu? É claro que o doutor não havia se esquecido, e ouvir que ele já sabia que hora o relógio marcava, o deixava muito satisfeito. Ele sorria abrindo Últimas Palavras – Fabiano dos Santos Araújo


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os lábios o máximo que eles lhe permitiam demonstrando sua alegria. Ele abaixou-se para pegar alguns pacotes no carrinho. Entregou sete ou oito para o garoto. O rosto do menino se iluminou, era como se fosse o dia do aniversário dele e ele percebesse que o presente que ele queria ganhar estivesse chegando a suas mãos. Ao se aproximar, o doutor percebeu que o garoto passava a mão na cabeça algumas vezes, o couro cabeludo estava novamente vermelho demonstrando irritação, o incomodo que isso lhe causava era evidente, e como das outras vezes ele não falava sobre isso. Nas raras vezes que sua mãe vinha o visitar, normalmente quando tinha algum negócio a tratar na cidade, o menino colocava uma peruca, pois ela não “suportava” ver o próprio filho “naquela situação”. A mãe dele vivia em um mundo de aparências, e por isso, a vida, a vida de verdade, em suas nuances, seus altos e baixos, a incomodava. Todas as vezes que a mãe de Neto vinha, a mesma coisa se repetia. O doutor nem se dava ao trabalho de questionar o garoto, apenas se perguntava: Por que nos importamos tanto com quem não se importa conosco? Por que gostamos de quem não gosta de verdade de nós?

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– Doutor! O senhor conseguiu! – É claro que consegui. Eu prometi isso, não foi? – Eu pensei que não ia conseguir terminar essa série de livros. – Por que? – Vou tomar meu remédio depois de amanhã. A enfermeira falou ontem. O doutor se lembrou de como ele sempre ficava ao tomar a sua medicação. Sempre lhe fazia muito mal, mas era necessário para que ele vencesse a doença. – Doutor. – Quer alguma coisa? – Vem aqui. Ele apenas se aproximou do garoto e este o abraçou juntando o pouquinho de força que tinha, da forma mais apertada que pôde. – Eu estou sujo, filho... – Não agradeci os livros. Daqui a pouco o senhor vai embora... Tem que ser agora. Não importava se ele estava mesmo sujo, algo mais importante e sublime ocorria entre eles, o doutor apenas fechou os olhos e retribuiu o abraço na mesma intensidade. As palavras lhe faltaram naquele momento. Quem diria, ele que sempre tinha alguma coisa para falar, que sem-

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pre tinha a coisa certa e necessária a se falar, ficou mudo. Mas será mesmo que ele precisava dizer alguma coisa? Os dois tinham tudo naquele breve instante. – “Meu Deus, às vezes precisamos de tão pouco... Tão pouco...” – pensou ele enquanto abraçava Neto.

Com uma respiração profunda, que podia ser ouvida por todo quarto, ele abriu os seus olhos lentamente. Por mais fraca que a iluminação fosse, ainda assim, sentia seus olhos doendo. O ambiente a sua volta foi tomando forma e nitidez, ele percebeu que tinha companhia ao seu redor. Eram três pessoas. Todos eram rostos familiares. A uma primeira olhada, se eram mesmo quem ele pensava, pareciam bem melhor do que ele se lembrava, ele não se sentiu desconfortável com as visitas, ao contrário, não podia estar em melhor companhia. Se ele tinha visitas em seu quarto, significava apenas uma coisa: que ele estivera doente e como sinal de gentileza e amizade, vieram ver o seu estado. O problema era que ele não se

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lembrava como, quando ou se havia ficado doente ao ponto de ficar acamado... A última lembrança ainda era clara em sua mente, era que ele havia cumprido mais um dia de trabalho, retornou para a sua casa e foi dormir, como costumava fazer diariamente. Se ao menos a sua esposa estivesse ali... Ao olhar com mais atenção teve certeza de quem eram as visitas. Ao fundo, no sofá ao lado da porta, Senhorita Ava fez-lhe um aceno, seus olhos mal podiam acreditar no que viam. Ela estava muito bem, se fosse possível, parecia estar com alguns anos a menos... Estava muito bem vestida, como nas capas dos seus discos. Um belo penteado, e um grande sorriso no rosto. A um ou dois passos da cama estava Jotacê, também com excelente aparência, apresentava uma pele saudável, corada, parecia algo bronzeada. Ele também lhe sorriu quando percebeu que era observado. Vestia roupas leves e claras semelhantes a roupas indianas. E, por fim, ao seu lado esquerdo, colado ao colchão estava Neto. A um primeiro olhar ele parecia estar usando novamente a peruca, mas a impressão se desfez rapidamente, o balanço dos fios era muito natural e as sobrancelhas do garoto pareciam ter crescido novamente.

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O doutor estendeu o braço para que o garoto pudesse tocá-lo, mas este hesitou. Ele claramente demonstrou querer fazer isso, mas por algum motivo não podia, e isso o entristecia. Por mais tolo que o doutor se sentisse, com isso, somente naquele momento aceitou que agora ele é que estava em um leito de hospital. Apenas aceitara isso ao ver o escalpe no braço, quando o estendeu para o garoto. Olhando em volta viu que estava ligado à vários aparelhos. – Este é o motivo da visita? – perguntou o doutor com uma voz fraca. Os três balançaram a cabeça positivamente ao mesmo tempo. Por algum motivo não podiam lhe responder verbalmente? O silêncio intrigava o doutor. O som estridente e compassado dos aparelhos que ressoava pelo quarto, foi se tornando cada vez mais descompassado. Com um esforço, olhou a cama e a si mesmo deitado nela, continuou fixando sua vista no quarto e em seus detalhes, nos aparelhos com suas luzes piscantes e seus sons, nas pessoas tão queridas que o acompanhavam e finalmente, para o vulto do faxineiro que passava pelos vidros da porta e olhava de relance para o seu

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quarto enquanto empurrava o carro de limpeza com sua rodinha barulhenta. O doutor começou a se sentir cansado e fraco pela primeira vez desde que despertara. Curiosamente naquele momento o quarto pareceu frio. Os aparelhos apitavam ainda mais estridentes. O cansaço cresceu, e ele sentiu sono, seus olhos estavam cada vez mais pesados, em breve ele adormeceria. Juntando o pouco de força que lhe restava, olhou brevemente para as visitas ao seu redor. Frio, fraqueza, cansaço e sono cresciam ainda mais, estavam a um passo de dominá-lo. Mas ele precisava olhá-los uma vez mais antes de adormecer. Tinham uma aparência tão bela, tão saudável, mesmo que ele tentasse enxergá-los acima de suas dores e limitações, nunca tinha os visto tão bem. E isso o agradava, isso o fazia feliz, o deixava realizado... Com um soco e um grande baque a porta se abriu e algumas pessoas entraram correndo em sua direção. Por algum motivo passaram pelas visitas simplesmente as ignorando. Talvez não fosse nada tão sério, pois se fosse, teriam sido retirados de lá. Vendo as pessoas entrando e vindo em sua direção, o doutor sorriu. Sorriu não por achar

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algo engraçado, não apenas por se sentir feliz, mas por entender finalmente o que se passava com ele. Quem eram as pessoas que entravam no quarto. E o motivo real das visitas que recebeu. Sorrindo com uma expressão serena se entregou dizendo cada palavra mais baixinho que a anterior: – Quando eu acordar, nos veremos outra vez... Se entregou ao sono, ao cansaço, a fraqueza e ao frio que sentia. O fez, não por desistência, não por medo, não por falta de vontade de continuar a lutar. Mas sim por que era a hora para isso. E principalmente por saber que em breve acordaria novamente, não sabia o porquê, apenas sabia. Quando seus olhos se abrissem novamente, ele sabia que haveria três visitas ansiosas para falar com ele. Sobre tantas coisas, sobre tantos lugares, sobre o que mais pudessem. Daqui a pouco. Daqui a pouco...

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SERÁ QUE VEREI ELA HOJE? V. E. Simeoni

Alguém já partiu seu coração? É claro que sim, chega a ser uma pergunta meio boba. Acho que uma pergunta justa seria quantas vezes já partiram seu coração? Esse é o preço que se paga mesmo sem saber quando se ama alguém. De todo tempo que eu venho vagando por essa Terra,


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vi isso acontecer mais vezes do que posso contar e depois que você me conhecer melhor vai entender que isso quer dizer muita coisa. Porém essa não é uma história sobre mim e sim sobre um jovem chamado Oliver Garbalan, a única coisa que ele queria era acreditar no amor.

O despertador tocou às cinco e meia, fazia muito frio aquela manhã, o que tornava vencer a preguiça para sair debaixo das cobertas um bom desafio. Ainda assim se sentia animado e isso era tudo o que precisava. “Será que verei ela hoje?” Oliver se alongou, calçou seus tênis e pegou os fones de ouvido, afinal se é para correr de madrugada que seja ouvindo Bryan Adams cantando Summer of 69. Antes de sair ele deu de cara com uma loira no corredor, estava usando um roupão roxo claramente maior que ela. Pela cara de sono, a noite dela deve ter sido bem agitada. Havia dois anos que Oliver dividia um apartamento com seu irmão, durante essa época várias mulheres como essa vieram e se foram, algumas ficavam por uma noite, outras por alguns dias, contudo nunca passava disso. Não dava para entender o que Estevan tinha de tão especial para as mulheres o rodearem como moscas no mel, para falar a ver-

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dade sentia uma pontinha de inveja. A moça o cumprimentou com um sorriso, ela tinha uma pinta do lado esquerdo da boca que lhe conferia um charme especial. Pelo menos essa é simpática, pensou ele ao se despedir da visitante. Do lado de fora ainda estava escuro quando ele seguiu pelo mesmo percurso que fazia diariamente. As sessões de corrida começaram quando o elevador do prédio quebrou e ele percebeu que subir alguns degraus fez seu coração quase explodir dentro do peito. Reconhecia que estava sedentário, bastava se olhar espelho. Só que não imaginava que estivesse tão ruim assim. A princípio até tentou frequentar a mesma academia que seu irmão, mas o barulho e o jeito que as pessoas escaravam ele o fizeram optar pela corrida. Conforme a corrida foi se transformando em hábito, o que era obrigação se tornou um prazer. O sol começava a clarear quando ele chegava à ponte Francis Castelo, da ciclovia dava para ver os carros passando apressados indo em direção a cidade vizinha. Vocês acreditam em amor à primeira vista? Estevan dizia que era uma bobagem que inventaram para vender CDs. Diferente dele, Oliver acreditava na possibilidade e passou a acreditar com mais vontade depois de conhecêla. “Será que verei ela hoje?”, esse era sempre o primeiro pensamento dele ao abrir os olhos de

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manhã. Seu coração já começava a bater forte e a ansiedade o fazia apertar o passo. Se ela estava lá, nada disso importava. Mesmo com uma expressão distante no rosto, ela transformava aquele nascer do Sol em uma pintura de cores quentes com uma beleza simples que era só dela. Não sabia seu nome, só sabia que poder estar ali naquele momento fazia qualquer coisa valer a pena. Toda vez essa cena se repetia e toda vez ele continuava a correr para depois se odiar por não conseguir falar com ela, é assim com os covardes. Só lhe restava imaginar como seria se tivesse dito alguma coisa ou se a tivesse chamado para sair. Ao se aproximar do final da ponte o relógio marcava seis e meia, hora de retornar se não quisesse se atrasar para o trabalho. Fazer o trajeto de volta costumava ser suave, nessa altura os músculos estavam afinados no ritmo certo. Ao chegar ao apartamento, a loira de cedo se despedia de Estevan com um beijo. "Alguns caras ficam com toda a sorte mesmo", pensou ao abrir a geladeira.

"Será que verei ela hoje?". Sexta-feira e o ciclo se repetia novamente, tênis calçados e alongamento feito, pronto para outra rodada. Dessa

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vez nenhuma estranha passeava pelo apartamento.

Do lado de fora uma neblina fina cobria a rua, o dia estava mais frio do que ontem. Oliver colocou os fones e começou a correr fazendo o mesmo trajeto de costume. Ao se aproximar da ponte o seu corpo começava a dar sinais de ansiedade, hoje tinha prometido a si mesmo que falaria com ela. Até aprendeu uma cantada para o caso de não ter nada de bom para dizer, "tiro certo" segundo Estevan. Infelizmente a garota da ponte não apareceu para ouvir. Por um lado isso

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o decepcionava, mas por outro se sentiu um pouco aliviado. Oliver parou no lugar onde ela costumava ver o nascer do Sol, sem dúvida uma bela vista. Não dava para explicar, estar ali transmitia uma sensação de paz que era difícil de encontrar em outro lugar. Ao se virar para ir embora ele percebeu que estava sendo observado. Parada no acostamento bem ao lado dele, uma van branca com vidros fumês. Não dava para ver quem estava atrás do volante. - Oi? Posso ajudar? – perguntou Oliver. Nenhuma resposta, antes que pudesse abrir a boca de novo a van deu partida e arrancou pela ponte até sumir de vista. Ele ficou ali parado tentando entender o que acabara de acontecer, como não havia o que entender, desistiu e foi para casa. Nós sempre nos cruzávamos no meu caminho para o hospital, claro que o garoto nunca reparou em mim e era melhor assim. O porteiro do prédio, que estava tirando uma pausa para um cigarro, avisou que o elevador havia sido consertado, com certeza uma boa notícia. No apartamento, dava para sentir o cheiro agradável vindo da cozinha. Estevan tomava uma xícara de café enquanto lia o caderno de esportes.

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- Com fome? – perguntou sem desviar a atenção do jornal. - Quase desmaiando – Oliver se sentou à mesa e pegou uma maçã. - Alguma sorte com a moça da ponte? - Ela não apareceu hoje. - Hum. Estevan cortou um pedaço do bolo e colocou café na xicara. - Hoje tem uma festa na boate de um amigo meu, não tá afim de vir comigo? Posso te apresentar... - Não gosto desse tipo de lugar... - Você precisa viver um pouco, só que pra fazer isso você tem que começar a sair de casa... Oliver ficou em silencio. - Vamos cara, deixa seu vídeo game descansar por uma noite. Eu preciso de um parceiro e você precisa conhecer mulheres de verdade, vai ser divertido. - A gente vai mesmo ter essa conversa de novo? - Depende, você vai acordar pra realidade? – Estevan suspirou, ser pragmático era sua maior qualidade e também o seu maior defeito – Que tal um trato? Hoje vamos à festa e se você não curtir, prometo que não digo mais nada.

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Um dos problemas de se ficar velho é que o tédio te pega com muita facilidade, basta um pouco de tempo ocioso para o meu céu escurecer. Então sempre que eu posso tento me ocupar com alguma coisa, o que para maioria das pessoas é trabalho, para mim significa diversão. Naquele sábado eu estava trabalhando como barman em uma festa quando vi os dois irmãos chegando. Estevan usava um blazer cinza listrado e um sorriso malicioso. Oliver em contrapartida se vestia de maneira simples e claramente não estava à vontade. Eles circularam na boate, cumprimentaram algumas pessoas e beberam um pouco até que finalmente se engajaram em uma conversa com uma dupla de garotas. Durante o tempo em que Estevan e as garotas conversaram, Oliver ficou quieto olhando para os próprios pés. Seu irmão, que até que tentou abrir várias brechas para ele, todavia foi inútil. Uma das garotas fez um sinal sutil para amiga que logo entendeu e deu uma desculpa esfarrapada. Assim que elas se foram, os irmãos discutiram alguma coisa e Oliver foi embora com a mesma cara amarrada que tinha desde que havia chegado. Estevan veio até o bar, puxou uma cadeira e pediu uma coca com rum.

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- Algum problema com o seu amigo? – perguntei. - Acho que todos. Fazer o que, tem gente que não tem salvação. - Uma pena hein, agora você vai ter que beber pelos dois então. - Eu faço o sacrifício.

Oliver saiu da boate se perguntando o que deu nele para aceitar ir aquele lugar. Tudo não passou de uma grande perda de tempo, o pior foi se sentir invisível perto da sombra de Estevan, aquelas garotas mal olharam para ele. Depois de um algumas horas vagando pelas ruas sem rumo, ele encontrou um ponto de ônibus vazio. O cansaço se tornara maior que qualquer frustração, tudo o que queria agora era recostar a cabeça e ir para casa. - Você sabe se o ônibus que passa por aqui vai para zona leste? – alguém perguntou. Assim que a viu um arrepio subiu da base da espinha até a sua nuca. A garota da ponte parada bem ali o encarando com dois grandes olhos azuis. Ele até tentou dizer alguma coisa, porém as palavras morriam antes de chegar à boca, de uma maneira quase cômica ele disse “sim” balançando a cabeça. Será que Verei Ela Hoje? – V. E. Simeoni


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- Ainda bem – ela se sentou ao seu lado – Nossa que frio danado! Esse sereno só faz piorar. Moço, você tá legal? Parece pálido. Sua cabeça começou a ficar pesada ao mesmo tempo em que seu abdômen se enchia de uma pressão nauseante. Parecia que o jantar queria fazer o caminho para fora, mas por sorte, antes disso acontecer tudo escureceu. Sabe qual é a ironia? Toda vez que imaginava esse primeiro encontro, ele chegava como quem não quer nada e dizia algo esperto que a fazia rir. Ao despertar minutos depois, estava deitado no banco com a cabeça no colo dela. - O que aconteceu? - Você desmaiou e me deu um baita susto. Se sente melhor? - Desculpa... A minha pressão deve ter baixado... O ônibus? - Passou quando você estava apagado. O motorista nem se deu ao trabalho de parar. Pelo visto o cretino queria terminar o turno mais cedo. O colo dela estava tão confortável que demorou um pouco para ele se tocar que precisava levantar. - Desculpa... - Você está vermelho, sabia? – ela tinha um sorriso perfeito.

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Ah sabia, essa última frase o fez corar até as têmporas esquentarem. - Eu passei pela Praça do Cruzeiro quando estava vindo para cá, isso quer dizer que a Estação da Fé deve ficar naquela direção – ele apontava para rua da frente – É meio longe, mas de para pegar o metro para qualquer lugar da cidade. Estava pensando em ir para lá, se você quiser... Sabe... Pode vir junto... - Pra mim parece ótimo – ela se levantou energética – A propósito, como você se chama? - Oliver. - Meu nome é Dalila. A gente já se viu em algum lugar Oliver? Tenho a impressão que te conheço. “Claro e desde então você não sai da minha cabeça”, pensou. - Não. Então subiram a rua. No começo ele ainda estava meio nervoso, conforme eles caminhavam a conversa foi fluindo de uma maneira tão informal que parecia que eles se conheciam há tempos. Em outras circunstâncias, andar por quadras e quadras debaixo do sereno frio seria algo que Oliver detestaria fazer, mas naquela noite não importava. Havia alguma coisa naquela garota, algo que a tornava diferente das outras, difícil de explicar. Será que Verei Ela Hoje? – V. E. Simeoni


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Dalila disse que se formaria como veterinária em dois anos, lidar com animais era mais fácil do lidar com gente, segundo ela. Filha caçula de uma família grande, ainda não tinha se acostumado a morar sozinha e sentia falta dos pais. Como ele, a garota adorava ler e tinha um espaço especial no coração para romances policiais. Por hora ela trabalhava como secretária em um escritório de advocacia, de vez em quando fazia uns bicos como babá para completar a renda e era por isso que às vezes acabava voltando tarde para casa. A entrada para o metrô era um grande arco de mármore cinzento que se curava até o chão como uma concha, um par de escadarias levava até o subsolo. Como nas ruas, não havia muitas pessoas circulando pela estação, uma das vantagens de se pegar o metrô quase à meia noite. A garota pulou a catraca com facilidade enquanto Oliver depositou duas moedas, uma para cada um. - Escoteiro – a moça mostrou a língua. Um mapa na parede exibia a cidade inteira com todas as linhas de metrô, uma espiada rápida e eles sabiam para onde ir. Já que o vagão dela chegaria primeiro, ele ficou para lhe fazer companhia.

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- Amanhã vai ser a minha folga, estava pensando em dar um passeio no parque, o que acha de me acompanhar? – perguntou Dalila. Aquilo estava realmente acontecendo? A mulher que não saia dos seus sonhos realmente o estava convidando para sair? Seria essa uma piada de mau gosto da vida ou talvez um desvio cósmico? O vagão que a levaria embora acabara de encostar, não adiantava ficar pensando em bobagens. A boca dele ficou seca e o seu estômago se contorceu de novo, o máximo que conseguiu emitir foi um “siiii”. - Vou entender isso como um sim – disse, sorrindo – Amanhã te espero aqui às duas, ok? Ela o beijou no rosto e subiu no vagão, então as portas fecharam-se atrás dela. Voltar para casa, entrar no apartamento, deitar na cama, tudo foi vago como em um sonho. Vai ver é porque estava vivendo um sonho. Oliver estava tão extasiado que nem notou o sujeito de cabelo rastafári o seguindo desde que saíra do metrô, muito menos que esse mesmo sujeito entrou em uma van branca estacionada na quadra de cima.

Uma hora da tarde e Oliver já estava na Estação da Fé esperando por sua acompanhante, Será que Verei Ela Hoje? – V. E. Simeoni


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trazia consigo uma única azaleia lilás, a flor ideal se você quer fazer uma boa impressão sem parecer desesperado. Pelo menos foi isso o que Estevan disse para ele. O vagão das três chegou atrasado, as portas se abriram e uma massa de gente se espremeu para fora. Dalila apareceu no meio deles vestindo um casaco e um par de botas de cano curto. - Demorei muito? - Só um pouquinho – lhe entregou a azaleia. Quando viu a flor o rosto dela se ascendeu com um sorriso. - Nossa que fofo – a moça deu-lhe um beijo no rosto, então pôs a flor e a colocou na orelha – E aí? Fiquei bonita? Ficara linda, mas Oliver, não conseguindo se expressar com palavras, se limitou a assentir positivamente como um idiota. De lá eles foram até o Parque Central, uma mancha verde no emaranhado de cimento e aço que era a cidade de Laguna. Esse é o lugar ideal para fazer um piquenique, passear com o cachorro ou simplesmente dar uma volta. O Outono dava seus suspiros e um tapete de folhas se estendia por todo o parque. Sabe aquela cara que todo mundo faz quando quer beijar alguém? Ah, eu imagino que sim. Mesmo que você nunca a tenha visto em outra Será que Verei Ela Hoje? – V. E. Simeoni


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pessoa, já deve tê-la estampado no próprio rosto sem saber. Infelizmente, o nosso protagonista tinha a malicia de um abajur e dificilmente notaria que a garota queria beijá-lo. Tenho certeza que a conversa estava muito interessante, porém Dalila se cansou de papo furado e o beijou com vontade. Estar com outra pessoa nunca pareceu tão sem igual, tão certo. Há muito tempo Oliver não se sentia feliz daquele jeito, foi uma tarde formidável. Oliver resolveu que duas casquinhas de sorvete seriam uma forma perfeita de encerrar o dia. Cá entre nós, eu sou obrigado a concordar, qualquer coisa fica melhor com sorvete. Dalila ficou esperando próxima a fonte enquanto o rapaz ia a uma barraquinha comprar o sorvete. Mal sabia que estava sendo espionado através de uma lente telescópica pelo homem do cabelo rastafári, que fotografava todos seus movimentos a distância. Entre um clique e outro, a câmera começou a tremer em suas mãos e, apesar do frio de bater o queixo, suor começou a escorrer pelo seu rosto. Ele engoliu seco, voltou para van e sumiu de vista. O casal foi de mãos dadas até um ponto de ônibus e lá pegaram uma circular que fazia a linha 101 – Bairro Ouro Branco. Coincidentemente, eu me encontrava sentado na parte tra-

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seira desse mesmo ônibus. Tá bom, não havia coincidência nenhuma nisso, o que eu posso fazer? A curiosidade sempre levou a melhor sobre mim. Oliver nem reparou direito em mim, por que o faria? Dalila por outro lado, ficou me encarando até que ele questionasse se havia algo errado. A moça o beijou no rosto e disse que não era nada. Será que ela se lembrava de mim? Pouca gente se lembra.

Pode acreditar quando eu digo que o terceiro encontro é o mais importante. As pessoas costumam mostrar o melhor de si até o terceiro encontro, além desse ponto esconder os defeitos com meias verdades se torna complicado. O terceiro encontro deles seria no dia seguinte, Oliver pretendia pedi-la em namoro após um bom jantar romântico. Ao menos esse era o plano até a campainha da frente acordá-lo durante a madrugada. “Aquele babaca do Estevan deve ter esquecido a chave novo”, resmungou enquanto colocava os chinelos. Ao abrir a porta ele deu de cara com uma Dalila que parecia a personificação da aflição, as lágrimas desciam sem parar pelo seu rosto, deixando um rastro de maquiagem borrada. Sem

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tempo para palavras, antes que ele dissesse qualquer coisa ela o abraçou. - Tenho tanto medo – disse ela soluçando. - O que aconteceu? - No ônibus... Era ele... Tenho certeza... Não quero que te afastem de mim... Nada daquilo fazia sentido, então ele colocou os braços em torno dela e a apertou contra o peito. O que poderia fazer além disso? - Ninguém vai te afastar de mim, eu prometo. Eu... Eu te amo... Dalila levantou os olhos, mesmo naquela situação ela continuava linda. Os dois se beijaram. Se existia alguma forma de paraíso além da vida, ele duvidava que chegasse perto desse momento. O resto ocorreu naturalmente, nunca ninguém o havia tocado da maneira que ela tocava, com tanta ternura. Assim foi a primeira vez de Oliver. Mais tarde na cama a garota dormia tranquilamente, nem parecia a mesma pessoa que apareceu aos prantos na porta dele. O que estava havendo? Quem era “ele” e por que ela tinha tanto medo? Essas perguntas matavam qualquer chance de pegar no sono. Talvez de manhã ela estivesse disposta a dar algumas respostas. Ainda assim, uma parte dele não queria respostas porque tinha medo delas. Será que Verei Ela Hoje? – V. E. Simeoni


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Era quase de manhã, era melhor deixá-la dormindo e ir preparar o café. O problema é que a geladeira estava vazia, Estevan deve ter se esquecido que era a vez dele de fazer compras. Aliás, pelo cheiro que vinha da lavanderia, também se esqueceu de pôr o lixo para fora. Sem problema, Oliver juntou os sacos de lixo, pegou sua carteira e desceu pelo elevador. As portas se abriram na garagem do prédio, um lugar amplo e mal iluminado, a caçamba de lixo que os moradores utilizavam ficava lá. - Ei você – uma voz sussurrou assim que ele colocou a cabeça para fora do elevador – Psiu! O “psiu” veio de trás de um Ford Celta que estava estacionado perto da caçamba de lixo, não dava para ver o dono daquela voz. - Oliver, certo? - Quem quer saber? Foi então que um homem magro usando um penteado rastafári saiu das sombras, vestia um moletom azul e no ombro carregava uma bolsa masculina. Mesmo por trás dos óculos redondos dava para ver o temor no rosto dele. - Não importa, a gente precisa sair daqui agora, aquela... Coisa quer você – Pegou o rapaz pelo braço e começou a arrastá-lo para algum lugar.

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- Ei! Tira à mão – Oliver se soltou e empurrou o estranho – Do que você tá falando? O Rastafári olhou em volta como se estivesse esperando que algo muito terrível acontecesse a qualquer momento, sua camisa estava úmida por causa do suor. - Seu idiota, será que não entende? Vieram outros antes de você e todos acabaram moídos em pedaços. Estou arriscando meu pescoço para salvar essa sua bunda gorda! O que você faria em uma situação dessas? É difícil dizer até que aconteça de verdade. No caso do nosso protagonista, havia uma dúvida entre correr de volta ao elevador ou ouvir aquele maluco. A história do Rastafári podia ser insana, mas o homem não estaria tão apavorado se não acreditasse nela. - Quando meu editor me mandou fazer uma matéria sobre uma lenda urbana eu quase ri na cara dele, então as peças foram se encaixando – a bolsa que carregava foi aberta – Estou investigando isso há semanas, o padrão é claro! Essa coisa existe... – um baralho de passos pesados ecoou pela garagem – Ah Deus... – seu rosto embranqueceu. Em uma disparada frenética o Rastafári saiu correndo pela garagem e não foi o único, o caminhar pesado que o assustou agora lembrava

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o som de uma britadeira martelando o asfalto. O que quer que fosse atingiu Oliver com tanta força que o arremessou para longe, antes de perder a consciência ele ouviu um grito agudo e depois um barulho de vidro se espatifando.

Quando recobrou a consciência, estava de volta ao seu quarto. Tudo fora um sonho? A dor na nuca e nas costelas, provavelmente trincadas, diziam que tudo que ocorreu na última hora foi bem real. Isso levantava outra questão, como voltara ao apartamento? “Não importa”, pensou ele. Pensar naquilo não fazia diferença, agora tudo o que importava era achar Dalila e dar o fora dali. “Fui para o térreo assistir o nascer do Sol, quer me fazer companhia? - Dalila”, dizia o bilhete em cima do criado mudo, embaixo do nome, um coração desenhado com dois olhos e um sorriso. Antes de sair ele passou no quarto de Estevan para pegar a arma que o irmão escondia numa caixa em cima do guarda-roupa. Ao que tudo indicava, Estevan ainda não havia voltado. Menos um problema para se preocupar. Oliver saiu do apartamento e pegou o elevador até o quinto andar, a partir daí a única maneira de chegar ao térreo seria através de um

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lance de degraus que ficava no final do corredor. Degrau após degrau ele subiu até a porta que dava para o térreo, cada passo fazia sua costelas protestarem. Lá em cima Dalila contemplava o pôr do Sol como na primeira vez que ele a viu, a mesma expressão melancólica, o mesmo olhar distante. - Eu te falei que eu já fui casada? Meu marido se chamava Vito, o tipo de italiano grande que a maioria das pessoas não quer se meter. O que a maioria das pessoas não sabia, é que Vito tinha um coração gentil. Se estávamos juntos eu me sentia amada, me sentia feliz. - Você pode me contar essa história depois – Oliver caminhou na direção dela – Nós temos que sair daqui – seu pé bateu em alguma, era a bolsa do Rastafári. - Um dia isso mudou – ela continuou – Vito ficou distante, então simplesmente parou de voltar para casa – ela agora chorava – Eu não entendia por que ele me deixou e depois de um tempo eu parei de tentar entender. Foi quando eu comecei a ver o nascer do Sol, era única coisa que ainda me dava alguma alegria... Tão quente... Tão brilhante... - Não... O que estava dentro da bolsa fez o seu coração gelar, impossível, não poderia ser verdade.

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No meio das anotações do Rastafári, ele encontrou um jornal com uma matéria sobre uma garota que se jogou da ponte Francis Castelo há uma década atrás, o nome dela era Dalila Belluci. A matéria dele se chamaria O mistério da Dama da Ponte, pena que nunca seria publicada. - Eu pensava que nunca seria amada de novo, aí eu te encontrei e pude sentir isso outra vez... Eu te amo Oliver e quero que fique comigo para sempre – ela se virou – Você me ama? A pele dela inchava, tomando a forma grotesca de um cadáver depois de vários dias na água. Dalila então explodiu em um grito, um misto de dor e alegria, sua voz se distorceu até soar como um uivo sinistro. Uma poça escura se formou ao seu redor, alguma espécie de líquido vazava por todos os orifícios. No lugar dos olhos, agora repousavam dois pequenos círculos brancos. - Você me ama? – repetiu a criatura. “Vieram outros antes de você e todos acabaram moídos em pedaços.”, as palavras do Rastafári martelavam sem parar na em sua cabeça. Nada nesse monstro lembrava a mulher meiga que roubou seu coração, se aquela mulher existiu, ela estava morta há anos. Ainda assim... A criatura foi para cima de Oliver, o mesmo barulho de passos que deixaram o homem do ras-

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tafári apavorado. Com aquelas mãos inchadas e oleosas a criatura o agarrou pelo pescoço e o suspendeu acima da cabeça como se fosse feito de papelão, o rapaz gritou ao ser arremessado. Atingir o chão foi ruim, o baque seco que o braço fez ao se quebrar foi pior. “Moídos em pedaços”, seria esse o seu fim? Ficar ali se contorcendo no chão não ajudaria muito se a intenção fosse sobreviver, ele tinha que se mexer e rápido. Oliver sacou o revólver de Estevan e puxou o gatilho. Click. Nenhum disparo, ele abriu o tambor da arma, vazio. - Merda – resmungou ao se levantar com dificuldade. Aparentemente a criatura estava pronta para mais um round e Oliver sabia que provavelmente esse seria o último. Restavam poucas opções, para chegar à única saída disponível teria de passar pela criatura. - Você me ama? O desespero tomou conta de Oliver, era melhor morrer do que ouvir aquela pergunta outra vez. O rapaz se levantou e mancou até o parapeito, ao olhar em volta não havia nada além de outros prédios. “Ah merda, não acredito que vou fazer isso”, pensou. O prédio vizinho ficava a uns três metros de distância, saltar três metros era tudo o que precisava para sobreviver. Oliver se

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afastou e então, ignorando a dor, correu o melhor que pode e saltou. Por um instante pareceu que daria certo, faltou tão pouco. Ele despencou do quinto andar, durante a queda dava para ouvir o rosnado frustrado da criatura, “Você me ama?!”. Eu me aproximei, o pobre garoto havia pousado no gramado do prédio vizinho. Hemorragia interna, coluna fraturada, um pulmão perfurado, esse era o fim para ele. - Não se preocupe filho, tudo vai acabar logo – eu disse. Oliver olhou para mim, lágrimas encheram seus olhos e então eles perderam o brilho.

Como eu disse antes, às vezes ter o coração partido é o preço que se paga por amar alguém. No fundo, senti um pouco de pena de Oliver, ele só queria acreditar no amor, pena que o amor que encontrou não era o amor que procurava. Quem sou eu? Hum, acho que me despedir sem me apresentar seria rude. Muitas vezes eu sou a enfermeira gorda que troca seu soro de manhã, às vezes eu sou o barman simpático que adora jogar conversa fora ou talvez eu seja aquele velhinho sentado no fundo do ônibus cuidando da própria vida. Mas a maioria do tempo eu sou só aquele arrepio que sobe pela sua espinha Será que Verei Ela Hoje? – V. E. Simeoni


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antes de uma surpresa desagradável, muito prazer, meu nome é Morte. A gente se vê qualquer dia desses.

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DELÍRIO MATINAL Luiz Mariano

Estava eu me arrumando para ir à faculdade, para a aula da manhã, perturbado com um livro que lera há alguns dias. O livro me dizia que não havia Deus, nem Jesus, nem toda a parafernália que vem junto: céu, santíssima trindade, hóstia, a turma toda. O livro era ambicioso, inteligente e tinha acabado de me convencer. Eu estava ateu? Era a verdade.


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Católico durante décadas, e agora descrente. O fato é que eu nunca tinha pensado muito, ou evitava raciocinar sobre a minha religião, no caso, católica. Mas tal era a situação que eu simplesmente não conseguia conceber ser possível que um dia eu tivesse acreditado em tudo isso. E eu nem tinha precisado ler “Deus, um delírio”, do Richard Dawkins. Bastou um pouco de luz, reflexão, honestidade intelectual. Resolvi então fazer o seguinte: como um gesto de despedida, ou, nem sei mesmo porque, só de bagunça, imaginaria que subitamente tivesse voltado no tempo. Na época do “cara”, vulgo Jesus, o primeiro hippie, como gostava de dizer. Que ele tenha existido, eu não tinha muitas dúvidas; agora, que ele era Deus, filho de mãe virgem e salvador do mundo, já era um conglomerado de saltos de fé sem muita razão aparente. Pois bem: minha derradeira conversa com o tal redentor do mundo se daria no breve caminho para a faculdade, em torno de meia hora de caminhada. Afinal, Deus ou não, uma coisa eu não podia negar: ele deve ter sido uma figura única. Realmente. Tirando todo o marketing e o poderio, no sentido negativo, da igreja católica, esse cara foi uma coisa extraordinária! Ele no mínimo foi tão carismático, ou tão convincente pra sua penca de discípulos, que os pobres coitados surtaram, criando a parada toda em torno dele, acreditaram Delírio Matinal – Luiz Mariano


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piamente; e assim continuam uns dois bilhões de pessoas até hoje. Inclusive eu, até pouco tempo atrás. E mesmo que ele tivesse sido completamente mal entendido, como diz Nietzsche no “O Anticristo”, ainda assim, é inegável que o cidadão dividiu a História em dois, para o bem e para o mal. Um dos maiores seres humanos, sem dúvida. Me preparei para a conversa. Qual o local, a situação? Alguns dias antes da paixão, uma madrugada. Os discípulos dormindo e nós dois numa caminhada noturna. Eu, um viajante do tempo, querendo saber se ele é Deus ou não. Ele, Jesus Cristo, momentos antes de ser crucificado. Pouco importava se nesse momento eu fechava a porta de vidro do bloco onde eu moro e me dirigisse para a saída do condomínio. Para essa conversa, eu não precisaria nem abrir a boca. É claro que os passantes estranhavam a minha cara fechada, o meu passo frenético; isso era o de menos. A ideia me consumia. Resolvi tomar a dianteira: - E aí Jesus. - E aí Su. - Peraí. Como você sabe meu apelido? - Ué. Se eu sou um produto da sua cabeça... Faz sentido né?

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- Tá, tá; mas é que, tipo, tu não tá falando como um Deus. O Jesus da bíblia não fala assim. -Bom, aqui estou falando com você – Logo depois disso Jesus abriu um sorriso largo, desses que desarmam – Pois então, qual é o grilo? Me peguei pensando em outra coisa completamente nada a ver com o grande papo agendado. “Qual era o grilo? Jesus falando desse jeito? Bom, sem rodeios, pensei. Desembucha!” - O negócio é o seguinte, Jesus. Qual é a moral de tu ser Deus? Não bastava ser um grande homem? Não posso te seguir como um modelo, um exemplo de conduta? - Bom Su, acontece que Deus enviou seu filho amado... - Taí, isso daí eu também acho um negócio totalmente nada a ver com a vida. Como assim? Que Deus é esse que manda o filho para a morte? Eu acho isso o fim da picada. - Eu vim à Terra para que todo aquele que crer em mim tenha a vida eterna. - Tu é um alien? - Como assim? - Ué, tu falou que “veio à Terra”, isso quer dizer que você pode ter vindo de outro planeta... - Pode ser. Mas o que eu quero dizer é que sim, eu sou Deus, e homem. Você quer explicar

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eu ser Deus ou não racionalmente? Deixa eu te dizer uma coisa, Su: um cientista poderia perguntar para você: “tua mãe te ama?” Ao você dizer sim, e se ele te pedisse provas? Precisa de evidência? Onde entra o método científico nisso? Ou você vai me dizer que os genes dela a induzem a “amar” a cria, para a continuação da espécie e propagação do DNA? - Falando em DNA. E Maria ser virgem? - Porque não? - Ah, vai me desculpar velho, mas é muita coincidência a virgindade de Maria antes e depois de você ter nascido ser defendida justamente pela igreja católica. Sabemos muito bem que ela não é muito fã dos prazeres sexuais. - É verdade. Mas sabemos também que a sua época é prodigiosa em desvincular o sexo da ternura. Ascetas existem em numerosas culturas. Acredite, minha mãe é virgem. Poderia não ser, mas é. - Esse negócio de ter que acreditar em você não tem cabimento. Não basta o cara ser bom? Por que precisaria ser cristão para ser bom? Gandhi era cristão, por acaso? - Se você tem um amigo, e você sabe o caminho para ter uma vida plena, você vai indicá-lo ao seu amigo, certo? Minha vida, meu agir, é o caminho.

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- Bom, então vamos todos achar que somos deuses... E a santíssima trindade, onde fica? - Acreditar em mim significa vivenciar meu ensinamento. Você sabe que o que eu disse vive em comunhão com o que faço – argumentou Jesus. Resolvi abrir a caixa de Pandora de vez: -Quero ver você se sair dessa agora. Afinal, porque você não se casou? Ou vai me dizer que viveu até agora sem nenhuma experiência sexual! -Você sabia que segundo Pierre Bordieu a sexualidade é uma invenção histórica? Veja, mesmo dentro da ótica do teu século eu posso muito bem ser homossexual. Isso não interfere no que eu fiz e falei. -!? -O que houve? – disse Jesus, sorrindo zombeteiro. – Você acha que eu iria ao inferno se fosse homossexual? -Alguns cristãos diriam que sim, e inclusive citariam versículos da bíblia! – disse eu, alarmado. -Vamos supor que esses cristãos fossem brasileiros do teu século, certo? Eles usariam como fonte um conjunto de livros escritos ao longo de mais de mil anos, boa parte feita há dois milênios atrás, por numerosos escritores diferentes, em Delírio Matinal – Luiz Mariano


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três línguas, que passou mais de dez séculos copiado à mão, para então Gutenberg tê-lo imprimido, e alguns quinhentos anos depois chegar à mão deles em português. -Você acabou de dizer que a bíblia não serve como referência. Ela não é a tal da “palavra de Deus”? -Gandhi disse uma vez que um dos livros que o influenciou foi “a desobediência civil”, de Thoreau. Algumas pessoas seguem outros pelas suas ações. E você, Su, viu sobre a minha história em algum lugar? -Vi. Na bíblia... Mas espere um pouco, lá mesmo na bíblia existem coisas que você fala que eu não concordo! Então eu vou criar um “Jesus pessoal” que não me contradiga? Não basta a minha consciência? Ou você vai se contradizer aqui? -Na bíblia existe a minha vida narrada por outros. Sócrates nada escreveu, e o Sócrates de Platão é diferente do Sócrates de Xenofonte. E sobre contradição, Lucas não falou que eu seria um sinal de contradição? -Você está se repetindo. No céu não ensinam a fazer um discurso? – Desafiei. -Sobre céu, vida após a morte, gosto do que Santa Terezinha diz, de que a vida aqui na terra é como um instante entre duas eternidades, ou,

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como diz Messiaen, como um desabrochar entre duas asas de uma borboleta. A Beleza, pensei. Boa. Diante da beleza, o que fazemos? Contemplamos. Da mesma forma ocorre com um pensamento belo. Uma vez, indagando à minha mãe sobre o porquê de tantas “ave-marias” num terço, ela disse que são como rosas. Com várias rosas se forma um buquê. Mas, não perdi o fio da meada: -E missa, padre, bispo, hóstia, pra quê essa coisa toda? Você não é um adepto da simplicidade? Esse Deus das igrejas majestosas não me convence. - Parafraseando Fernando Pessoa, o rito é o nada que é tudo. Você, como um homem da palavra, sabe do poder do símbolo. - Você ainda não respondeu a minha pergunta. Não basta você ser só um homem? Aliás, por que aqui, e não na Austrália, por exemplo? Por que nessa época? Por que vir numa forma humana e não como um ornitorrinco? Isso não é especismo? E digo mais: por que você não é uma mulher? A lua brilhava o caminho, enquanto nossas sandálias pisavam na areia. Jerusalém era uma cidade bonita, pensei. As construções eram simples e bem acabadas. Nesse momento, lembreime do jogo “Legend of Mana”, se não me engano

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feito para Playstation, onde reza a lenda que as coisas iam se desenrolando conforme o personagem fosse trilhando seu rumo. Não era um mundo dado, era um devir, que dependia do jogador. Mas eu nunca joguei esse jogo, só li um tempão atrás sobre isso. Nesse momento, Jesus (e uma buzina) interromperam meus pensamentos: - Vou te responder sobre eu ser Deus mais tarde. Sobre essas questões de lugar, homem, especismo... Você já viu um leopardo? Como pode existir um ser vivo tão gracioso? Qual a razão dele ser tão terrível, tão bonito? E mais, e se eu te dissesse que existiram bilhões de pessoas que passaram suas vidas sem poder escutar Bach, Beethoven? E se eu te dissesse que eu existo muito antes de adquirir essa forma humana? - E nós todos? Não existíamos também? - Todos existiam, e todos existirão. A eternidade é um “agora”, lembra-se de Santo Agostinho? - Tá, e me diz uma coisa: E aquilo lá que eu li numa das bíblias, que essa história de um deus só fazia parte de um projeto de centralização política, um só rei, um só deus e um só povo? - Mas a crença num deus único não depende necessariamente da política, certo? Em alguns lugares sim, em outros não. O que eu queria te

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dizer, Su, é que daqui a poucos dias eu vou ser crucificado. Vou dar a minha vida por vocês. - Para nos salvar do que? Já te falei que não acredito em pecado original e na história toda de Adão e Eva. Isso é conversa pra boi dormir, até Darwin até vai, mas depois de Darwin não tem mais essa. Então, para nos salvar do que? - Para salvar da vida mesquinha – Respondeu Jesus. Aquilo me atingiu como uma porrada. Fiquei mudo. A universidade não estava longe. Eu já não tinha certeza mais de nada. Certezas... - Não espere de mim uma prova concreta de que Deus existe, ou de que eu sou Deus, Su. Na verdade, quero te pedir uma coisa: dentro de poucos dias, como você bem sabe, serei morto e crucificado. Você pode impedir que isso aconteça, sendo um viajante temporal, mas eu te peço: não faça. Simplesmente veja. E um adendo: não fique para ver a ressurreição. - Mas como?! Você quer que eu não tenha a confirmação? Pensa só o seguinte, se eu tiro uma foto de você ressuscitado, as pessoas, eu mesmo, teriam certeza absoluta! - Você acha mesmo que as pessoas acreditariam por causa de uma foto? Muitas delas diriam que é photoshop, Su. As pessoas escolhem no que querem acreditar.

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- Mas por quê? Por quê? Por que você tem que morrer? Desse jeito, essa coisa toda tensa e medonha? – Eu já estava emocionado, abalado, pensando no que viria. - Não pense, Su. Apenas vá e observe. Adeus. – E Jesus se despediu com um sorriso triste.

Eis que lá estou, de repente, no dia fatídico, o povaréu gritando “crucifica-o!”, os discípulos talvez escondidos, os doutores da lei exibindo seus podres sorrisos, o pobre do Jesus vendo a

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cena calado, o olhar de compaixão desnorteante. Mas o que era aquela multidão? Como podiam eles condenar justamente o salvador delas, daquele jeito? Eles, que poucos dias atrás tinham exaltado a entrada de Jesus em Jerusalém, com ramos e vivas... Que Deus se entregaria à morte dessa forma? Não fazia sentido. Pilatos estava lá, e notei ele tremendo. Está decretado: será morte por crucificação. Ouço muitos vibrarem. Passo por entre os soldados romanos, eles não me percebem. Vejo-os xingando, cuspindo em Jesus, açoitando com força, os jatos de sangue polvilharem o chão. Há cheiro de enxofre no ar, ou é só meu delírio? Não dá para acreditar. Eles riem, batem, maltratam a pele, os músculos cortados, os ossos arranhados. Eu já começo a querer crer que algum deus exista, só para que termine aquela tortura. Mas, fiel ao pedido do mestre, me mantenho calado, assistindo ao horror. As horas passam. Eu perco a fome, a garganta fica seca. Tinha resolvido sair daquele lugar, parar pra respirar e ganhar forças, e quando volto, Jesus está carregando a cruz. Ensanguentado, machucado, e segue com aquela madeira pesada, brutal. Ele caminha devagar, cada passo são dezenas de dores por várias partes do corpo, internas, externas. Olho as fisiono-

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mias das pessoas que o circundam. Todos atordoados, alguns riem, outros sem graça, uns chorando. A crueldade rosnando ao redor. Onde estão os apóstolos? Onde está Pedro? Mateus? Seus amigos, seguidores, todos o abandonaram, não é possível! Subimos no monte onde ocorrerá a morte. Será que vai acontecer igual a um dos evangelhos, em que mortos ressuscitam e mais coisas milagrosas do tipo? Nada. Está lá o homem, todo vermelho de sangue, pelado, na verdade. Sem a túnica branca. As bocarras de cicatrizes, bocas medonhas, carne lanhada. A coroa de espinhos também está ali; um discípulo está lá perto, junto com o que deve ser Maria, mãe de Jesus. Lá está aquela figura, com os soldados romanos agora meio ressabiados, não com medo, mas talvez parecendo apreensivos. Lá, naquele lugar, está acontecendo, eu vejo, estou bem perto. Eu posso ver, poderia até tocar. Mas não toco. E ele morre. Jesus morreu. Fico sem chão. Ele morreu! Não pode ser. Não pode ser? Ah, me desculpe Nietzsche. Não pode ser, não, não, não. O que o cara queria? Ele queria salvar a galera, porra. Ele queria lutar contra a injustiça, caralho. Não, velho. E agora? Quer saber? Voltei a ser católico. É isso mesmo. Ilógico, sem explicação muito certinha, assim mesmo. Porque algo me diz que nem tudo é

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explicável, ou precisa ser. Porque os mesmos que insistem que se deve seguir a razão em tudo, são os que não sabem que há jogos em que todo mundo ganha e ninguém perde, como frescobol. Porque prefiro buscar a sabedoria. Porque às vezes é preciso de uma espada para fazer o corte. E, neste instante, entrei no prédio da faculdade.

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E N TRE E M C O N TA T O

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