Fantasia Urbana

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“A mente estava sonhando O mundo era seu sonho” JORGE LUIS BORGES

Sabe aqueles momentos tediosos em que você fica preso na fila de um banco contando os segundos para fugir dali? Sabe quando você percebe que não tem jeito, você conta os ladrilhos no chão ou fica de olho no ponteiro do relógio torcendo para ele andar mais depressa... Mas e se houver outra maneira? Que tal mergulhar bem fundo naquele abismo da sua imaginação onde o fantástico encontra o mundano logo ali na esquina?

Bem-vindo a fantasia urbana, a melhor fantasia.

V. E. Simeoni



SUMÁRIO Acho que já vi seus olhos ............................................ 6 Peccatori .................................................................. 64 Jabes ....................................................................... 126 Nossa família .......................................................... 134 Na lua de sangue .................................................... 187 A travessia .............................................................. 241 A loira do Bonfim .................................................. 250 Madame Eva .......................................................... 301 Conventículo ......................................................... 329


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ACHO QUE JÁ VI SEUS OLHOS E. REUSS __________________________________________________

Esse tic-tac dos relógios é a máquina de costura do Tempo a fabricar mortalhas MARIO QUINTANA


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Inspirado na obra de Edward Bulwer-Lytton

Na rotina burocrática do Hospital Santa Catarina, as fichas de internação psiquiátrica assumem o papel glorificante de padronizar a loucura, curando neuroses e fobias por meio de um labirinto impenetrável de

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palavras. Três médicos com cara de guaxinim avaliam o estado psicológico de seus pacientes e carimbam suas respectivas fichas. Em uma, lê-se que o paciente sofre de episódios de catatonia e personalidade esquizóide. Mas os detalhes ficam por conta dos enfermeiros da ala de internação psiquiátrica, que encaram com normalidade a manta de crochê de 220 kg da mesma paciente, trabalhando na mesma peça há treze anos por conta de sua incapacidade de aprender a fechar um ponto rococó. Assassinatos também ocorrem nessa ala e, mais uma vez, os boletins de ocorrência fazem seu trabalho e registram episódios isolados de fúria em que o autista mata o bipolar enfiando três tubos de cola colorida por sua narina. Ignoram, no entanto, que o autista dizia ser Pitágoras, e que sua fúria fora induzida pela presunção do bipolar por afirmar ser a mesma pessoa. Hoje Pitágoras é um novo homem, nascido de uma combinação letal de ansiolíticos com longas sessões de tortura psicológica. No dia do seu aniversário, um grupo seleto de pacientes da ala psiquiátrica fora convidado para o pequeno auditório em que se realizavam as reuniões dos Alcoólicos Anônimos. Todas as quintas um amontoado de seres e suas sombras se reuniam ali e lançavam verdades para o meio da roda, se lambuzavam com a desgraça alheia e sofriam uma overdose de Acho que já vi seus olhos – E. Reuss


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realidade. Naquela noite, as verdades dolorosas foram pisoteadas por sapatos alegres, pelo menos o que sobrou delas. Lá dentro, a vida assumiu uma leveza raramente vista e os pacientes podiam quase usufruir da sensação de normalidade. A mulher sobre o palco segurava um acordeão em frente a uma faixa na parede que dizia “Um dia de cada vez”. Sentado na última fila de cadeiras, um paciente misterioso: “Roberto, sem sobrenome”, dizia sua ficha. Uma ficha que tentava, mas não conseguia decifrar sua identidade. Apenas os dizeres “alucinose alcoólica aguda” no campo “análise clínica preliminar” e uma folha anexada com a condenação do tribunal. Fora do papel, Roberto era um homem maduro, magro, com grandes ossos e uma face alongada, traços que lembravam os de um pelicano. Um brilho saudável e sereno era capaz de refletir pelo universo a grandeza que um dia seus olhos tiveram o prazer de encarar. Ele tinha uma pele bronzeada e vestia uma camisa azul de mangas curtas, a mesma que todos os pacientes daquele auditório vestiam. Às suas costas, Pitágoras havia se aproximado lentamente. - Olha essa festa, Beto... Que coisa mais degradante – Ele disse.

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Roberto olhou a sua volta e viu um punhado de cabeças solitárias espreitando por trás dos encostos das cadeiras de plástico. No lado direito do salão, alguns pacientes se juntaram em torno da mesa de pinguepongue, que era usada apenas nas festas de aniversário como apoio para duas garrafas de refrigerante quente, dois pratos de salgadinho e um rolo de papel higiênico, substituto barato para o guardanapo. Pitágoras sentou ao seu lado. Era um homem alto e tinha grandes olhos pretos, cravados em um rosto largo emoldurado por cabelos brancos. Ele tinha uma expressão jovem, ombros e braços largos, e uma estrutura rígida como se tivesse sido esculpido em granito. Uma escultura perfeitamente simétrica, mas que poderia muito bem servir como símbolo de uma tristeza amarga, o tipo de sofrimento que apenas poderia resultar de uma vida de solidão. - O que aconteceu com a tradição das orgias e de comer pasta de azeitona no umbigo das convidadas? – Pitágoras suspirou. - O século XXI é desgastante. - É, não é? Se tivessem pelo menos me deixado contratar um músico de verdade... Malditos depressivos

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que não podem ver uma corda de guitarra que vão logo fazendo fila para se matar. Sobre o palco, ouviu-se o som agudo da interferência no pequeno amplificador. - Olá – Disse a acordeonista, com entusiasmo – Vamos cantar parabéns para o nosso amigo... Ela tentou decifrar o nome escrito em um pequeno pedaço de papel. - Pitágoras! – Do meio da plateia, um jovem com algum tipo de deficiência mental se levantou e apontou para o aniversariante. - Juninho, seu filho da puta – Pitágoras sussurrou. Juninho era uma criança com 33 anos de existência. Faltava-lhe o senso crítico e moral para viver em sociedade, mas Roberto sabia que ele tinha algo que o diferenciava do resto da humanidade. Não eram os olhos esbugalhados, as mãos e pés minúsculos ou a baba constante no canto da boca. Ele carregava em seu código genético a fórmula secreta para a felicidade, mantida em segurança no interior de cofres helicoidais camuflados em estruturas semelhantes a recifes de corais gigantescos. Blocos de informação carregados de risadas histéricas, de

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uma curiosidade infantil e de brincadeiras incompreendidas. Roberto enxergava os olhares arrependidos na face das pessoas quando percebiam o tempo que perderam procurando a felicidade. Bastavalhes ter investigado aquilo que Juninho tinha de sobra, e que todos os outros tinham de menos. - Pitágoras? – Ela falou, tentando achá-lo no meio da plateia. Sua voz suave atravessou o ruído da estática e das vozes do auditório e escorregou pelo chão, entre dezenas de pernas contorcidas. Nesse momento ela parecia ter agarrado a atenção de Roberto e, aparentemente, sua alma – Onde você está? Ela o viu se encolhendo na cadeira, de forma desengonçada, e sorriu desconfortavelmente. Finalmente, seus olhos encontraram os de Roberto. O mau humor de Pitágoras não parecia ter a afetado e, de repente, seu entusiasmo moldou sua música. O acordeão ria descontroladamente, não como uma resposta mecânica aos dedos da musicista, mas como a voz de sua alma, percorrendo suas veias até o instrumento, onde encontrava a passagem segura para o mundo físico. Roberto escorregou para a ponta do assento, dominado pela música, imerso nela, voltando

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sua atenção para o mais belo “parabéns pra você” que ele já ouvira. - Pitágoras, quem é essa mulher? – Ele falou, sem tirar os olhos do palco. - Sei lá... Uma dessas ciganas maconheiras. Roberto se levantou e caminhou até o palco, puxado por uma força invisível. Talvez fossem os remédios, mas Roberto podia ver o azul de seus olhos e o vermelho de seus lábios refletidos pelo auditório, como se ela fosse um prisma humano e toda a luz naquele momento convergisse de propósito para fluir através dela. Roberto podia vê-la melhor agora. Seus cabelos negros estavam torcidos para cima, amarrados em um nó desengonçado e presos por uma caneta. Seu rosto era pálido, mas algumas sardas pintavam seu nariz e seus olhos de amarelo dourado. Ela vestia um vestido verde musgo pelo joelho e chinelos brancos. A acordeonista era um conjunto de peças tediosas unidas em harmonia, resultando em uma beleza incomum e estranhamente hipnotizante. No momento em que ela terminou de cantar, Roberto se sentou na fileira da frente. Em meio às palmas, ela sorria para a platéia.

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- Oi – Ele disse. A acordeonista olhou para baixo, para dentro dos olhos de Roberto e continuou sorrindo. - Oi, querido. Tudo bem? - É, bonito... – Ele gaguejou – Bonito instrumento. - Obrigada. - É cedro? - Que? – Ela olhou para o acordeão em seu colo – Ah! É, não, é álamo. - Populus Alba... lindo. Ela franziu o cenho. - É importado – Disse, passando os dedos pela madeira até chegar ao logotipo dourado em forma de “A”. Roberto percebeu um espaço vazio entre os acordes de onde saíra as teclas do Si Bemol. De repente, o auditório mergulhou em um silêncio desconfortável. Os protagonistas, a frente do salão, guiavam os olhares da platéia de um lado para o outro. A acordeonista percebeu o silêncio e rapidamente se ajeitou na cadeira, desnorteada.

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- Espera – Ele falou, antes que ela pudesse pegar o acordeão – Como é o seu nome? Ela sorriu e, antes que as palavras deixassem sua boca, Roberto sentiu seu ombro quase ser deslocado por um par de mãos gordas e negras. O cheiro indistinguível de fritura e de luvas de látex atingiu suas narinas antes mesmo que Roberto reconhecesse os dedos roliços do enfermeiro Salame, responsável não só pelas sessões de tortura psicológica mais aterrorizantes da ala psiquiátrica, mas também pelas risadas descontroladas dos pacientes quando viam a formação de gordura em suas costas semelhante a um amontoado de salsichas. Enquanto era arrastado em direção a cozinha, Roberto viu a expressão de choque no rosto da acordeonista e prometeu a si mesmo reencontrá-la. Naquela mesma noite, os registros de Roberto e Pitágoras foram apagados. Isso porque Roberto não fora mais visto depois de entrar na dispensa da cozinha e Pitágoras sumiu em uma ida ao banheiro, logo depois de um longo discurso sobre a transmigração da alma. Para os médicos de plantão naquela noite, a lembrança compartilhada de um homem sendo arrastado pelo chão do auditório não passava de um raro episódio de alucinação coletiva.

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... A gritaria abafada no interior da igreja, os lençóis de névoa esbranquiçada cobrindo a luz pálida ao lado da porta principal, um vira-lata do outro lado da rua que passou sem perceber a presença de alguém na escuridão. Tudo muito sereno e deslocado, de forma que o mundo parecia que deixaria de existir a qualquer momento. Deitado na calçada, Pitágoras tinha a respiração pesada e dormia como uma criança. - Acorda – Roberto chutou seu braço direito. Pitágoras acordou em um ímpeto de desespero, gritando e rolando pelo chão – Calma. - Que porra foi essa? – Pitágoras se encostou contra uma mureta – Isso não foi um sonho. - Calma. - Calma o cacete. Foi LSD, por acaso? Eu tava no banheiro! Foi, não foi? - Calma. Demos um salto, apenas. - Salto? - Um salto temporal... A sensação ruim já vai passar.

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Pitágoras ficou sem palavras e vomitou o que restou do salgado de queijo em seu estômago. Roberto começou a caminhar sem rumo, deixando-o para trás. Ele seguiu estudando as fachadas apagadas dos prédios. Moraria alguém ali? Ou seriam abandonados? Ele não saberia dizer, mas talvez se ele esticasse os braços e tocasse no cimento usado para erguer esses monstros de concreto ele poderia olhar para dentro da alma daqueles que os criaram, apenas tragando as lágrimas e gotas de suor misturadas na areia. E então pensou em como as faces das pessoas eram diferentes das dos prédios, sempre mais verdadeiras que o seu interior. Roberto veria suas almas despidas, projetando-se como se fossem suas sombras, antes mesmo de enxergar os seus olhos. Em um momento da caminhada, Roberto ouviu passos rápidos se aproximarem as suas costas. - Conheci um comerciante de tapetes uma vez, no meio do Sinai – Disse, sem olhar para trás – Atravessamos o deserto inteiro em cima de uma carroça, carregada de pequenas esculturas de ouro... Cabras selvagens, brilhantes, centenas delas... - Você está me explicando como vim parar aqui?

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Roberto assentiu. Ele estava tentando, mas temia que isso fosse impossível. Afinal, Roberto sabia que na história da humanidade poucos foram bem sucedidos ao explicar a própria imortalidade. - Hoje o chamariam de alquimista, charlatanismo puro. Mas a verdade é que ele aprendeu a condensar a alma. Alma, espírito e matéria, tudo feito de um mesmo elemento, o ouro. E cada uma daquelas cabras era uma alma, transformada em escultura para que a maldade contida nelas não pudesse escapar para o nosso universo. Perguntei se ele conseguiria fazer o inverso... Em vez de condensar uma alma, elevar a matéria ao plano espiritual. Questão de simetria, ele disse, os deuses vinham fazendo isso há milênios... Roberto percebeu que os passos de Pitágoras se silenciaram. Ele olhou para trás e viu a paisagem noturna redundante, indivisível. “Talvez aquilo ultrapassou a sua cota diária de loucura”, pensou e sorriu. De repente, ouviu o grito familiar de um acordeão. À distância, ele mal conseguiu distinguir a silhueta de um prédio de dois andares engolido pela escuridão. Um letreiro rosa parecia flutuar sobre o chão, onde se lia “Harém das Quimeras”. Roberto se aproximou e viu, sentado ao lado da porta, um homem

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tocando um acordeão e algumas mulheres de aparência suspeita vestindo saias e blusas curtíssimas, algumas com perucas e óculos escuros tentando ocultar seus traços mais masculinos e os traumas de infância que atormentavam suas vidas. O instrumento tinha uma voz familiar, um uivo penetrante e agudo. Roberto viu, estampada sobre as teclas do instrumento, a letra “A” dourada. O acordeonista levantou os olhos, e revelou grandes círculos pretos de mágoa prestes a estourar por baixo da crosta quebradiça que revestia o seu rosto. Com toda a normalidade, ele interrompeu o choro profundo do instrumento, como se toda a tristeza que habitava sua alma pudesse ser interrompida facilmente para ajudar um estranho. - Estou procurando uma acordeonista que toca um instrumento igual ao seu... Sabe como posso encontrála? Ele assentiu e apontou seu dedo em formato de galho para o outro lado da rua. Roberto viu uma pequena casa de madeira com o “A” familiar pintado em preto sobre a porta. Roberto agradeceu o homem e atravessou a rua. Logo abaixo da marca, a pequena placa dizia “Anastásio Acordeões - e outros objetos”. Acho que já vi seus olhos – E. Reuss


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Depois de bater na porta, ele ouviu um grito indecifrável e decidiu entrar. Olhos enormes, cheios de vida, brilhando mais do que a luz emitida pelo abajur ao seu lado, descansavam na penumbra da pequena oficina. Eram os olhos de um homem pequeno com uma estatura que lembrava um travesseiro, vestindo pijamas e pantufas brancas, sentado ao lado de uma estrutura de metal com vários orifícios. Um pequeno bigode grisalho e disperso com uma tonalidade amarelada nas pontas quebrava a monotonia de sua face, em uma tentativa frustrada de tornar sua aparência menos infantil. - Fole furado? – Perguntou com sua voz áspera enquanto afastava um braço mecânico acoplado à estrutura de metal. - Não, não... Preciso encontrar alguém que toca um de seus instrumentos. A face do pequeno homem se acendeu em felicidade. - Maravilha! Esse é o melhor lugar do mundo para encontrar alguém. Venha. Ele agarrou o abajur sobre a mesa e atravessou a sala. À medida que eles caminhavam, o cômodo aumentava de tamanho. A luz iluminava apenas alguns metros de chão na sua frente, mas Roberto sentia em seu rosto uma Acho que já vi seus olhos – E. Reuss


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brisa constante, soprando com a determinação dos ventos que carregam em suas costas a topografia do deserto, uma lembrança errante da desolação e da imensidão do universo. - Como é o nome dele? - Dela... Eu não sei. - Hum – Ele parou bruscamente – Por sorte não tenho muitas clientes mulheres. E continuou a andar, desviando de alguns obstáculos invisíveis até chegarem a uma escada. Eles entraram em um cômodo pequeno, iluminado apenas pelo abajur. Mais a frente, Roberto viu uma estante, onde incontáveis gavetas de 15 por 15 centímetros separavam as peças. - O acordeão tem 2000 peças diferentes – Ele disse, percebendo a curiosidade no rosto de Roberto. Ele se abaixou e abriu uma gaveta em que se lia “Registro de Clientes” na etiqueta – Como é o seu nome mesmo, meu filho? - Roberto. - Prazer, Anastásio – Disse, sem olhar para trás – Ela deve estar aqui, em algum... lugar... Acho que já vi seus olhos – E. Reuss


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Anastásio remexia os papéis, vidas materializadas em folhas A4 e aprisionadas em envelopes de papel pardo, protegendo seus segredos com dobras perfeitamente simétricas. - Aqui! – Ele gritou – Olívia, olhos azuis como safira e regados de inocência. - Olívia! – Roberto sentiu seu estômago arder. - Rua das Hortênsias, nº 25... – Anastásio levantou seus olhos pensativos do papel – Rua das Hortênsias... Ele se levantou e abriu uma das gavetas. A palavra “Sampo”, escrita em letras maiúsculas na etiqueta, ficou suspensa no ar, flutuando como uma aurora boreal de caracteres refratados, um misto de significados que finalmente conseguiram atravessar a barreira dos sonhos. O Sampo se referia a um pacote de papel, entregue por Anastásio com certa hesitação, como se houvesse algo compartilhado entre eles, não só a substância dos sonhos da qual os dois eram feitos, mas a cumplicidade que existe entre uma vida e uma memória perdida... Aquilo que conecta um homem ao seu próprio passado. No papel, Roberto leu “Olívia Brizola” e o endereço que acabara de descobrir no campo do destinatário. Um selo postal mostrava uma cabra

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selvagem em uma postura pomposa com os cascos mergulhados pela metade em um riacho. - O que é isso? Anastásio deu de ombros. - Vivo recebendo essas encomendas. Roberto concordou e agradeceu. Voltou acompanhado por Anastásio pelo mesmo caminho, mas dessa vez ele pareceu mais curto. A Rua das Hortênsias era uma passagem estreita entre duas avenidas intensamente movimentadas. Ao seu redor, os prédios se projetavam como silhuetas cadavéricas, tentando engolir o pequeno aglomerado de vida que brotara do terraço de concreto. As casas, que do alto das coberturas dos prédios comerciais pareciam miniaturas de isopor, ainda possuíam grama em seus quintais e suas calçadas não sobreviviam por muito tempo à força das raízes. Roberto avançou pela pequena travessa até encontrar o número 25. A rua, mergulhada na escuridão, era um palco de sombras dançantes tentando atrair a atenção de Roberto para o espetáculo da morte. Espíritos vaidosos, carentes, pedindo que Roberto os deixassem entrar

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apenas por um segundo. Ele olhou para as casas e lojas vazias, isoladas de todo o universo, e pensara ter visto olhos familiares. Na escuridão de sua própria mente, ele não conseguia escapar das fisionomias conhecidas. Encarava os rostos e os reconhecia, apenas para descobrir logo em seguida que na verdade ele recordava de gerações passadas da mesma pessoa. Em um ponto de sua vida, a morte começara a pregar peças... Mas como não pregaria? Sendo que entre as pessoas que conhecia, os mortos eram a imensa maioria. Olívia morava em um prédio de dois andares com uma fachada delicada de paredes nuas. Os tijolos tinham uma coloração viva, um alaranjado que poderia facilmente ser encontrado na natureza. A base da construção fazia contato direto com a grama e, pouco a pouco, ele parecia afundar em um mar esverdeado cheio de vida. Ele entrou pela entrada principal e bateu na primeira porta que viu. Sentiu um perfume familiar, que geralmente inundava o universo dos sonhos, logo mascarado pelo odor de queimado que atravessa por baixo da porta. Ela se abriu e, pela abertura, Roberto enxergou a silhueta de um homem tomado pelo brilho ofuscante da fumaça. Passaram-se alguns segundos até que a fumaça se dissipasse pelo corredor e se colocasse

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acima do nível de suas cabeças, encobrindo a iluminação das lâmpadas e tornando o corredor ainda mais escuro. O homem tinha cabelos brancos compridos, na altura dos ombros. Ele usava um tapa-olho improvisado feito de fita crepe sobre o olho esquerdo e vestia uma calça marrom escuro com manchas de comida e queimaduras do cigarro. Não vestia sapatos e nem camisa, e seu corpo pálido brilhava com a luz anêmica, que realçava sua barriga inchada e o peitoral esquelético. Ele soltou um grunhido, que substituiu qualquer forma de cumprimento convencional. - Estou procurando por Olívia – Roberto tentou espiar para dentro do apartamento. - Ela não mora aqui. - Sabe qual o apartamento dela? O homem respondeu que não com a cabeça. Roberto agradeceu e caminhou até as escadas que levavam para o segundo andar. - Roberto – Ele o chamou pelo nome. Roberto parou no meio das escadas e se virou. Viu o homem de tapaolho espreitando sua cabeça pela porta, enquanto a

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fumaça continuava a se projetar para fora do apartamento – Agora é tarde demais. - Tarde pra que? Ele sorriu. - Não esqueça que no Limiar os espíritos têm um propósito, mais vasto do que qualquer uma de suas preocupações medíocres. Sua voz era nasalada e distorcida, tinha o tom pungente da voz que ecoa na própria consciência. O homem fechou a porta e Roberto ficou paralisado, mergulhado em seus próprios pensamentos. Recordou de uma época em que o seu conhecimento ainda não era absoluto e em que o medo ainda era um sentimento palpável. Roberto continuou subindo as escadas até o segundo andar. O som da voz de Olívia, alegre e delicada, inundava o corredor escuro. Ele bateu na porta do apartamento três. - Pera aí, tem alguém aqui. A porta se abriu e ele viu os olhos de safira. - Oi! – Ela disse, surpresa.

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- Não sei se você se lembra de mim, do hospital... - Claro que lembro! – Ela sorriu, com o telefone em uma das mãos e uma dose de conhaque na outra – Como te liberaram tão rápido assim? - Meu problema não era tão grave como pensaram. - Que bom! E nem pensou em trocar de roupa? Ele olhou para as roupas do hospital e se arrependeu de não ter passado em uma loja de departamentos para se trocar. - Só um minuto – Ela disse e voltou a falar ao telefone com entusiasmo, gesticulando agitadamente com as mãos. Roberto a ouviu discutir sobre amostras grátis de antiácido e sobre uma receita de Fluoxetina que não daria para o mês todo. “Mas esse aí me dá gases”, ele a ouviu sussurrando na cozinha e, logo em seguida, seu rosto apareceu na porta. - Pode entrar, fica a vontade! Só fecha a porta, temos gambás. Ele acenou com a cabeça e entrou na pequena sala de estar. Um tapete bege estendido sobre o piso de tacos de madeira tentava simular os pelos de algum animal selvagem. Dois sofás alaranjados ficavam de frente um Acho que já vi seus olhos – E. Reuss


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para o outro e, no centro, uma mesa de vidro com algumas revistas em cima. “Sanfoneiro Contemporâneo”, “Dietas Histéricas”, “Disse-meDisse”, lia-se nas capas. Roberto folheava um artigo sobre pescadores de mexilhões que desenvolveram claustrofobia, quando Olívia entrou na sala e sentou-se no sofá a sua frente. - Era meu analista – Ela enrolava os cabelos soltos nos dedos enquanto falava, definitivamente um reflexo de sua hiperatividade – Agora me diz... O que você tinha? - Um caso simples de confusão mental, tudo por causa da minha dieta baseada exclusivamente em Doritos e Anfetaminas. Nada que um prato de sopa de abóbora não resolvesse. Olívia arqueou as sobrancelhas e arregalou os olhos como se quisesse dizer “como assim?”. - Tenho uma coisa pra você – Roberto colocou o pacote de papel sobre a mesa de centro. - Um presente? – Ela se levantou para alcançar o pacote e começou a abri-lo – Espera! Não é uma coisa, tipo, doentia, né? Roberto deu de ombros.

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- Acho que não. - Que bom... Uma vez tive um namorado que me deu um teste de drogas caseiro. Ele morreu, coitado. - Drogas? - Não, diabetes – E voltou a abrir o pacote – Eu ficava histérica quando ele voltava para casa com a mochila cheia de brownies e cupcakes roubados da padaria. Quando ele não arrombava o lugar só para comer o glacê dos bolos de casamento. Roberto não falou nada, mas lembrou de ter lido em algum lugar sobre uma padaria que amanheceu sem as coberturas de suas mais famosas tortas, atribuindo a culpa ao recente aumento na população de formigas gigantes. O laço do pacote se desfez depois de algum esforço e ela rasgou o papel com cautela. De dentro do pacote, ela tirou um amontoado de tiras de papel protegendo um objeto no fundo. - O que é isso? – Ela disse, investigando três botões de cerâmica com hastes de metal soldadas uma com as outras pela ponta.

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Olívia olhou para Roberto, esperando uma resposta. Ele se limitou a um dar de ombros quase imperceptível. - Ah! O si bemol! Ela correu até o seu quarto e voltou com o acordeão nas mãos. Roberto percebeu o “A” reluzente sobre o teclado e o espaço vazio em meio aos acordes. Ela removeu alguns pregos que acoplavam o castelo ao fole e instalou as teclas em seus respectivos lugares. Depois de montar o acordeão, fitou-o por alguns instantes com os olhos brilhantes. - Não vai tocar? – Disse Roberto. Olívia apertou uma das teclas e o acorde inteiro se encolheu. Ela sorriu, achando graça de um acorde há tanto tempo perdido. Assim que ela estendeu o fole, o instrumento tomou fôlego e cantou alegremente. Seus olhos se encheram de lágrimas, refletindo o símbolo de ouro do acordeão. Um choro sutil, sem som e sem soluço, escorrendo pelo seu rosto pálido e impregnando as fendas de seus lábios. Para Roberto, um sinal de tristeza, mas o sorriso em seus lábios molhados tornava árdua a tarefa de ler as emoções, principalmente para uma alma vazia como a sua. - Me desculpa – Disse Roberto, desconfortável. Acho que já vi seus olhos – E. Reuss


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Ela sorriu e se jogou para trás no sofá. - Não liga não, eu sou assim. - Assim como? - Sensível para a música – Ela secou as lágrimas na fronha da almofada – Meu analista me disse que é como se eu tivesse uma capacidade sinérgica para captar o humor das pessoas através da música. Eu sinto minhas emoções em termos de altura, timbre e frequência e decomponho tudo em acordes e progressões harmônicas. Ele me diz que é um tipo de autismo, mas eu não acredito... Roberto ficou sem palavras. Ela era fascinante. Sua loucura era fascinante. - Às vezes eu sinto que eu consigo decompor uma pessoa as suas notas básicas e transformá-la em um acorde – Ela continuou – Na verdade, já fiz isso, mas evito dizer pra ele. Tenho medo que queira me internar. - Fez isso com o si bemol? Ela concordou com a cabeça. - E isso me deixou louca. Porque todos os si bemóis na verdade são a mesma pessoa. No fundo, eu digo...

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Todos são compostos pelas mesmas notas, sem diferenças... O que muda são as progressões, as relações de tensão entre um acorde e outro. E sem considerar os com sétima, ou com nona, esses são pessoas completamente diferentes! - E você, quem é? - Eu? Sou o si bemol – Ela disse, e seus olhos brilhantes exprimiram toda a melancolia daquilo que ela queria dizer. Mais uma vez ela afundou a cabeça na almofada para secar as lágrimas. Quando revelou o rosto, a pele ao redor dos seus olhos estava coberta por uma mistura lamacenta de lágrimas, rímel e corretivo para olheiras. - Você consegue descobrir que acorde sou eu? – Disse Roberto. - Claro... – Ela corou até que suas bochechas atingissem a cor de seus lábios. - E? - Pra descobrir eu preciso te beijar... Ela sorriu e Roberto sorriu de volta. Seus lábios se encontraram em um beijo longo, sob o pretexto de

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revelar um acorde. É claro que seria mais do que isso, Olívia escutara o dó menor de Roberto assim que ele entrara no apartamento. Para eles, o beijo de repente tomou o lugar das palavras. Palavras ardentes, selvagens, comunicadas através de seus corpos. Olívia e Roberto diriam que fora o acordeão que os aproximou. Anastásio teria certeza de que fora o Sampo. Todos estariam certos, pois o Sampo toma a forma de tudo, inclusive do amor, que agora habitava o nº 25 da Rua das Hortênsias.

O Acordeão No início, o Acordeão era apenas um instrumento de trabalho. Habitava os fundos de um guarda-roupa, em um emaranhado de casacos de inverno e pijamas velhos, umedecidos em lágrimas brotadas de memórias que já foram esquecidas há muito tempo. Naquela noite, o Acordeão acordou de um sono profundo, exausto. Ele se sentia derrotado, era um acordeão de teclas amareladas e fole endurecido, faltavalhe o si bemol e o tônus musical dos instrumentos mais jovens. Em desespero, ele viu as portas do guarda-roupa se abrirem e sentiu os dedos macios de Olívia. No Acho que já vi seus olhos – E. Reuss


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momento em que foi tocado, ele sentiu a música voltar a preencher o vácuo do seu corpo de álamo. Olívia começou a tocá-lo e o ar fluiu pelos seus pulmões de cetim. Roberto era fascinado pelo talento de Olívia, e ela se deliciava com as suas palavras. “Como ele pode saber tanto?”, ela se perguntava. O Acordeão teria a resposta se pudesse ser compreendido. O Acordeão deixou o seu lar antigo para trás depois de alguns meses. Nesse período, o fole adquiriu mais rugas do que havia contraído em sua vida inteira. Agora ele vivia ao lado do sofá da sala e dormia sobre o tapete de pelos. Sentava-se com Roberto e Olívia e conversavam por horas, de vez em quando se intrometendo na conversa para derramar sobre eles alguma melodia doce. O Acordeão estava mais vivo do que nunca. A Música, na verdade, é que estava mais viva do que nunca, caindo junto com Olívia em gargalhadas contagiantes, se dissipando pelo universo. A música, às vezes, pode habitar os próprios instrumentos, calada pela mordaça da realidade e servindo apenas como um pano de fundo para um jogo de palavras vazias. Mas quando ela é convidada para dentro da alma, ela caminha pelos corredores intermináveis da consciência dançando sobre um

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punhado de memórias tristes como se zombasse delas. Isso não quer dizer que eventualmente ela não se depare com um poder superior, capaz de torcer sua voz e levar para a alma apenas os acordes menores e as palavras que machucam. Esse poder habita o Limiar, uma região nas profundezas da consciência onde os instintos e os desejos reprimidos dos homens se acumulam em reservatórios de maldade durante todas as suas vidas. Roberto, sem perceber, manteve a conexão com o limiar viva através de seus sonhos. O acordeão de repente adoeceu. Sua voz enfraqueceu e adquiriu um tom anêmico. Música e musicista choraram no chão do apartamento, o lamento transbordou pelas janelas e invadiu a Rua das Hortênsias.

O Sonho O corredor do primeiro andar do prédio de Olívia estava imerso em uma fumaça densa e sufocante. A porta do apartamento estava encostada e abriu com facilidade. O salão era escuro e imenso e suas paredes laterais estavam encobertas por estantes de livros. Os fundos do cômodo terminavam no infinito e Roberto via apenas a

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escuridão de onde olhos familiares o encaravam. A sua frente, uma fogueira queimava com centenas de livros na sua base e iluminava a face doentia do Guardião. Roberto reconheceu seu cabelo cor de palha, a fita crepe sobre o olho esquerdo, sua calça suja com a braguilha aberta e seu corpo cadavérico. Mas o olho exposto estava diferente agora. No seu interior queimava uma chama ardente e eterna, um reflexo não do fogo à sua frente, mas sim de toda a maldade aprisionada nas profundezas do Limiar. Preso a uma corrente ao seu lado, um cachorro preto como a substância da noite latia para Roberto e se lançava contra ele com força suficiente para partir o próprio pescoço. - Mil perdões, Roberto... Minha cadela não tem modos – O guardião lançou nela um livro com a capa de couro, com algumas centenas de páginas, que acertou o animal ao lado do rosto e fez jorrar um jato de sangue pelo ar. O cachorro, desnorteado, pareceu não se importar com a dor e começou a beber o próprio sangue no chão – Vê como esses animais são idiotas? Acham que é da natureza deles levar porrada... Balançam o rabo comemorando a dignidade de se viver preso a uma corrente.

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Ele se comunicava com o olhar, mas mesmo assim ainda mexia seus lábios como uma marionete, rindo e arregalando o seu olho sem vida. - Uma coisa curiosa... – Ele disse, escarrando como um velho tuberculoso e cuspindo um líquido negro no fogo – Essa fogueira deve estar queimando há mais de um século. Roberto se aproximou das chamas em silêncio e ouviu um ruído destoante, semelhante ao tamborilar da chuva nas janelas, invertendo pacientemente o papel do fogo em uma substância gelada e úmida, disfarçada de entidade gasosa e ardente. - Isso é uma ilusão – Roberto disse, baixo demais para que alguém pudesse ouvir ou para que seus lábios sequer se movessem. - Você devia ter orgulho do universo que você criou... Roberto atravessou a mão pelo fogo e as chamas se apagaram instantaneamente, como se temessem ferir a fonte de sua energia cósmica. - Você devia passar mais tempo aqui dentro, explorando o Limiar – O guardião olhou para a porta

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do apartamento, pensativo – Nós ficamos muito solitários, às vezes... Valdete e eu. O cachorro balançava o rabo, batendo no chão de pedra como se fosse um metrônomo marcando o compasso distorcido das trevas, enquanto gotas de sangue pingavam de seu focinho ensanguentado. Roberto pegou um dos livros parcialmente queimados na base do fogo. - O que são? – Ele disse. - O que são os livros, se não memórias? Mensagens contidas em átomos de tinta, carregando as passagens de uma vida. Roberto folheou as páginas queimadas. Ele reconheceu as palavras e os cenários fluindo através das páginas no mesmo ritmo em que fluíam na sua mente. Eram extratos de sua vida, gravadas em uma consciência de papel. Roberto foi sugado pelas páginas em que Olívia tocava sua música e passava as mãos em seus cabelos. Ele se ajoelhou sobre vidas incineradas, segurando em suas mãos o que poderia ser o último registro de seu amor por ela. O fogo ardia e suas memórias escorregavam para fora de sua mente, penetrando nas espirais de fumaça e se dissolvendo em

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uma mistura esbranquiçada de poeira, celulose e sentimentos humanos. - Você não pode apagá-la – Ele disse. Sua voz tinha um tom firme, autoritário, mas seus olhos revelavam seu desespero. - Eu posso fazer muito mais que isso! Posso queimar Olívia nessa fogueira, posso sugar sua alma e transformála em um par de olhos obedientes. Posso impedir qualquer tentativa sua de destruir a nossa imortalidade, Roberto. Estou no controle agora... Você entende isso? – Ele olhou para a biblioteca – E tenho muito que queimar ainda. ... Roberto abriu os olhos e viu o veludo negro através da janela cravado de estrelas grandes e brilhantes, derramando uma luz pálida e leitosa sobre o rosto delicado de Olívia. Ela estava ao seu lado, mergulhada em seu próprio universo dos sonhos, silencioso e obscuro. Roberto ouvia sua respiração calma atravessando a abertura entre seus lábios imóveis e resistiu ao desejo de beijá-los pela última vez. Pensou que, se aquele momento pudesse ser vivido pela eternidade, aí sim a imortalidade valeria à pena. Roberto

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riu de si mesmo, da própria ingenuidade, imerso em um oceano de esperanças e sonhos como fazem os mortais. De repente, perder todas as lembranças de Olívia parecia ser a única saída. Ela era perfeita demais para ocupar um lugar idêntico a todos os outros em sua coleção de olhos familiares, talvez o esquecimento fosse o destino perfeito. O desespero se ergueu subitamente do fundo de sua mente. “Talvez tudo seja uma ilusão...”, ele pensou, “Talvez eu seja a consciência reprimida de um software extremamente avançado programado para fazer projeções cósmicas em escalas assustadoramente gigantescas e minha noção de tempo esteja atrelada ao ciclo de vida de uma nebulosa planetária”. Roberto não dormiu mais naquela noite. Pela manhã, ele esperou Olívia na cozinha, com uma xícara de café aquecido a exatos 65 graus Celsius e com uma fatia de bolo de laranja coberta uniformemente por uma fina camada de geleia de maçã. Ela apareceu na porta, vestindo uma camisola cinza com alças de seda e um par de pernas pálidas. A camisola retorcida revelava parte de um de seus seios, um verdadeiro exercício de autocontrole. Pensou em engolir as palavras e passar suas mãos pela pele lisa, sobre as manchinhas do frio em sua perna até chegar a sua virilha. Quase podia sentir a

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textura áspera dos pelos arrepiados em sua coxa. Sua beleza era intimidadora e Roberto não teve coragem de machucá-la com as palavras. Sentaram de frente um para o outro e viram uma mosca pousar sobre a geleia do bolo, uma pequena partícula de vida violando o equilíbrio gravitacional entre seus corpos e escavando suas almas em busca de uma tripa de palavras para quebrar o silêncio. Conversaram sobre o acasalamento dos insetos, danças tântricas, barbitúricos, inversão geomagnética e sobre a nova estátua de Joaquim Nabuco na praça das figueiras, que teve a cabeça destruída por um grupo de neonazistas. Eles perderam a noção do tempo e conversaram por horas, enquanto nas profundezas de sua mente duas forças poderosas batalhavam impetuosamente pelas vielas estreitas que permeavam o inconsciente de Roberto, por onde fluíam correntezas violentas de uma seiva de memórias. Ele podia sentir a fúria do Guardião do Limiar, tentando acumular detritos nos canais a fim de entupi-los, sendo traduzido no mundo físico como lapsos violentos de memória em que ele se esquecia momentaneamente de Olivia. Roberto achou melhor se despedir. Ele nunca se despedira de alguém, apenas se afastava provisoriamente

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até que os olhos voltassem para atormentá-lo. Pensou se diria “adeus” ou se pediria desculpas. No fim, se limitou a dizer um “eu te amo” mudo, sem direito a resposta. Mentiu, dizendo que precisava ir ao banheiro e, de repente, se viu nadando em um mar de águas agitadas, inconstante, imerso em dúvida e arrependimento. Caminhou por uma planície sem paisagem, cuja distância era impossível de ser mensurada na ausência do tempo À distância, ele viu um círculo luminoso brotar da escuridão e caminhou até que o letreiro de neon estivesse visível. “Harém das Quimeras”, ele leu e atravessou a rua, em direção à pequena loja de acordeões...

... E outros objetos Do lado de fora, Roberto podia ouvir o gemido de um acordeão. Uma nota aguda vibrava persistente e então entrava em um longo decrescendo melancólico. Ele bateu na porta, mas não houve resposta, apenas o sopro fanho do instrumento. Roberto testou a maçaneta e abriu a porta, reconhecendo o formato cilíndrico de Anastásio apoiado sobre o monstro de ferro. Na base da máquina, pedais de bicicleta acoplados a um sistema de

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canos levavam ar para o topo da estrutura. Anastásio pedalava com vigor e fazia um acordeão desmembrado soltar gritos de desespero. - Anastásio? – Roberto o chamou. - Shhhh – Anastásio pediu silêncio e continuou pedalando. Com uma das mãos ele acionou um botão que fez soar um diapasão preso à parte alta da estrutura. Anastásio pedalava, mas seus olhos imóveis revelavam a concentração inflexível de seus ouvidos. Com um esmerilho, ele lixava a parte interna do acordeão e voltava a acoplá-lo à máquina, fazendo soar um tom diferente. A cena era hipnotizante, um momento de intimidade entre o músico e seu instrumento. - Como estamos, guri? – Disse depois de algum tempo, enquanto pedalava. Ele usava minúsculos óculos de armação redonda proporcionais ao seu rosto e as mesmas vestes brancas de sempre. - Bem... - E Olívia? - Quem? – Nenhum vestígio daquele nome havia sobrevivido, nem a fina substância de um passado compartilhado.

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Anastásio franziu o cenho. - Precisa de um lugar pra dormir? Talvez fosse isso que ele viera procurar, Roberto já não lembrava mais. - Sim... Quero dizer, se você tiver espaço. Anastásio sorriu um sorriso capitalista, mas amigo. - Tenho espaço de sobra. Ele se levantou e fez sinal para que Roberto o acompanhasse. Atravessaram o abismo mais uma vez guiados pela luz do abajur. Naquela noite a escuridão parecia mais densa e silenciosa, e, mais uma vez, Roberto ficou imaginando se no vácuo do universo haveria uma sensação de desolação como aquela. No meio do caminho, Anastásio quebrou o silêncio. - Não se preocupe com isso agora, por favor, não quero parecer interesseiro ou coisa parecida. Mas nós definitivamente temos muito trabalho a fazer. Roberto assentiu. Enquanto caminhavam, ouviu um zumbido suave, eletrônico, que cresceu em intensidade rapidamente até adquirir a fúria de um motor a jato. - Que barulho é esse?!? – Ele gritou, atordoado.

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- O Dínamo! Ele mantém a fábrica viva. - Fábrica? - Se você prestar atenção... – Anastásio parou – Você consegue ouvi-los trabalhando. Roberto se concentrou e a sinfonia barulhenta imediatamente pareceu ter adquirido uma constância leve e macia. Ela não incomodava mais e Roberto podia ouvir o som delicado de centenas de mãos trabalhando. Ele olhou a sua volta e enxergou os olhos brilhantes cravados na escuridão imensa do salão, um agrupamento de estrelas flutuando em um céu horizontal. - Eu estou vendo! – Ele disse. - E são muito mais. Alguns têm os olhos vendados, pois não suportam qualquer raio de luz. A escuridão os ajuda a atingirem a perfeição. Roberto se aproximou das estações de trabalho que Anastásio se recusava a iluminar. - O que eles fabricam? - Balanças portáteis. Vendíamos para o exército sueco, mas o boom na indústria de fast food nos fez mirar um novo público: mulheres cada vez mais gordas e

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histéricas. Tenho gráficos interessantíssimos que mostram um crescimento de 400% nas nossas vendas no mesmo ano do lançamento da batata frita congelada, em 1945. Roberto tateou uma mesa a sua frente e pegou uma das balanças que havia acabado de ser montada. Ela tinha um aspecto antigo, com um grande visor circular onde uma agulha vermelha apontava para a escala de pesos. No centro, ele leu “Rosa de Jericó”, talvez o nome da marca, e viu o “A” idêntico ao do acordeão de Olívia estampado como um logotipo. - Antes disso, fabricávamos gaiolas de ferro reforçado para proteger caixões recém enterrados da ação dos ressurrecionistas, por toda Inglaterra. Caíram em desuso depois de 1830. Agora fabricamos apenas as balanças. Depois são exportadas para diferentes regiões temporais por meio de um sistema subterrâneo que usa o entrelaçamento quântico como meio de transporte. Elas estão fazendo bastante sucesso em 1956. - São muito bonitas – Disse Roberto, fascinado. - Nosso controle de qualidade é rigoroso. Tivemos um problema sério com o Ministério de Emparelhamento Tecnológico depois que um dos

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funcionários usou um parafuso torx para prender a base... Recebemos uma notificação dizendo que os clientes não estavam conseguindo abrir a balança, já que o parafuso só foi inventado onze anos depois – Anastásio soltou uma risada descontrolada – Bom, agora você pode assumir um posto de trabalho. Roberto recebeu de Anastásio um kit de boas-vindas contendo pequenos frascos de medicamentos. “Fluoxetina, Paroxetina, Melatonina e Vitamina D”, Anastásio disse. - Você vai precisar – Completou. Depois de algumas explicações sobre ritmo circadiano e zeitgebers, Roberto assumiu um posto de trabalho na fábrica de balanças e viu os últimos fótons de luz do abajur sendo engolidos pelo véu da escuridão, como se a fábrica fosse um imenso receptáculo invisível, presa em um instante sem duração e incapaz de emitir ou absorver qualquer tipo de radiação eletromagnética. Roberto sentiu o tempo deixar de ser uma variável.

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830 balanças e 300 pílulas de vitamina D’epois... E o ruído contínuo do Dínamo já havia incorporado o mundo físico. Incontáveis vezes, Roberto interrompia o seu trabalho e pensava se era possível que todo esse ruído enclausurado talvez estivesse se esvaindo e descendo as encostas de um portal para uma dimensão desconhecida, onde se acumulava em gigantescos oceanos de som, sinfonias e gemidos unidos por correntes marítimas violentas que se diferenciavam apenas pela melodia de suas águas. A previsibilidade sonora daquele lugar era irritante. Tão irritante, que o som de um acordeão cantando na região mais profunda de sua mente soou como uma explosão nuclear a centímetros de seu ouvido. - Vocês estão ouvindo? – Roberto falou pela primeira vez em muito tempo, hesitante, pensando que talvez ele tivesse errado alguma palavra. Ele ouviu alguns pares de mãos ao seu lado pararem de trabalhar. - Beto? - Pitágoras? – Roberto perguntou, reconhecendo sua voz regular e melodiosa. - O que você está fazendo aqui?

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- Balanças. - Há quanto tempo? - Sei lá... E você? - Desde o dia que eu te deixei falando sozinho. - Ah, é... - Me desculpa por aquilo, minha paciência para a loucura tinha se esgotado... Depois fui parar no Harém com mais um bando de loucos. Foi difícil convencê-los de que eu era fiscal da vigilância sanitária, já tinha até enfiado um rolo de notas de dois reais na bunda de um deles. O acordeão continuava a soar. - Espera. Você ouve a música? - Pensei que a fábrica tinha isolamento acústico – Disse Pitágoras. Roberto ouviu o som do Dínamo e da voz de Pitágoras se diluírem no silêncio de sua mente, trechos desconexos que, mesmo na velocidade do som, não conseguiam ultrapassar um corpo em queda livre no vácuo da própria consciência. A música fluía através dele e, por isso, soava continuamente, se recusando a ser

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aniquilada. Às vezes a música pode ser resgatada por meio das memórias, mas Roberto já não as tinha mais. Restava a ela que percorresse o caminho mais longo, através de fios sutis de simpatia magnética entre duas almas conectadas. A quilômetros de distância, no número 25 da Rua das Hortênsias, duas almas tão entrelaçadas que em sua singularidade se comunicavam pelo universo e formavam com Roberto uma ligação tão forte que era imune à fragilidade das memórias. E Roberto sentiu a fúria do Guardião do Limiar, crescendo em intensidade no ritmo em que suas memórias retornavam das cinzas. Em uma dessas lembranças, Roberto foi fisgado pelo cheiro de xampu de maçã e do edredom recém lavado, pela fumaça ardente que penetrava suas narinas logo depois de ter deixado os pulmões de Olívia, uma troca de gases quase sexual, orgiástica, contendo a memória acumulada de corpos alheios. Cercado pela escuridão, ele enxergava apenas um feixe de luz, cujo ponto de origem ele não conseguiria definir, materializado acima deles pela fumaça espessa do cigarro. - Tá acordada? – Ele disse.

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Ela se manteve em silêncio e respondeu com uma longa baforada em seu rosto. Roberto riu e respirou a respiração de Olívia, sua pneuma. - Deixa eu te perguntar uma coisa... – Ele ajeitou as costas no travesseiro – Para que se vive? A ponta do cigarro de Olívia ardeu e lançou uma sombra bruxuleante na parede. - Depende que tipo de vida você vive... - Como assim? - Sabe, tem a vida que se vive individualmente, e essa não tem espaço para a imaginação ou para o abstrato... Essa existência é vazia e, ironicamente, é uma vida cheia de outras vidas, máscaras que escondem suas caras frustradas e depressivas. E tem a nossa vida, a vida entre dois pontos apaixonados, que num plano poderia ser colocada num espaço de cinco anos que teríamos infinitos pontos dentro da reta, infinitos instantes que podem ser revividos continuamente. Nesse caso você vive pelo outro, cada geração vive pela próxima, como um conjunto de engrenagens construindo o tempo...

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Quando terminou de falar, Olívia pensou se aquilo tudo teria feito sentido, mas se limitou a bocejar e fechar os olhos delicadamente, cedendo lentamente ao sono. - E se eles morrerem? – Disse Roberto. - Podem morrer, mas o amor sobrevive... - E se não morrerem? – Roberto continuou, mas Olívia estava cansada demais para tentar entendê-lo – Alguns se recusam a morrer. - Um imortal? Não sei se eles são capazes de amar... - São – Ele falou, com propriedade. - Não sei, acho que a morte é essencial... O que ele estaria disposto a sacrificar? – Roberto foi pego de surpresa. Ele nunca havia pensado sobre sacrifício – E além do mais, pra que um imortal vive? - Essa era a minha pergunta – Ele pareceu decepcionado – Se vive para continuar vivendo, eu acho... Procurando por um estímulo que não existe. - Viver para continuar vivendo? Parece mais melancólico do que morrer. - Pior é quando se tem vários motivos para morrer.

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- É só encontrar o motivo certo – Disse Olívia, com uma voz sonolenta. - Motivo certo? - É, Beto. Morrer pelo mesmo motivo que se viveu... – Ela bocejou – Por alguém. E fechou os olhos, ao mesmo tempo em que Roberto abrira os seus. A escuridão se revelou a sua frente e o Dínamo voltou a soar cadenciosamente. Ele ignorou o fato de que Pitágoras estava esperando por uma resposta e correu em direção à saída da fábrica de balanças. Não pensou, no entanto, que seus olhos arderiam como se estivessem sendo cobertos por sal e vinagre assim que visse a luz. Com os olhos lacrimejando, ele cambaleou pelo cômodo e derrubou os acordeões, algumas cadeiras, uma lata de spray de laquê para bigodes e se enroscou na cortina de uma das janelas, trazendo ao chão consigo não só a cortina, mas o trilho de metal que a prendia na parede, quebrando mais alguns objetos no processo. - Que que está acontecendo? – Anastásio gritou do outro lado do cômodo, acordado pelo caos da fuga de Roberto. Roberto falou alguma coisa, que foi totalmente abafada pelas camadas sobrepostas da cortina. Anastásio Acho que já vi seus olhos – E. Reuss


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o ajudou a se desvencilhar do tecido e Roberto se levantou respirando agitadamente, tentando recuperar o fôlego. - Vou encontrar Olívia – Seus olhos lacrimejavam menos agora – Eu sei o que tenho que fazer. - Claro que sabe – Disse Anastásio, avaliando o estrago em seu estúdio – Antes de ir, tenho uma coisa pra você. Anastásio mergulhou na escuridão e, depois de alguns minutos, retornou com um pacote nas mãos. Era o Sampo, com o nome de Roberto estampado ao lado do selo postal. - O Sampo te confere um desejo – Disse Anastásio – Mas você deve saber o momento certo de abri-lo. Roberto concordou e saiu pela porta. “Ou talvez eu esteja entrando?”, ele pensou. Sentiu como se estivesse mergulhando no Éter, na quinta essência do universo, em tempestuosos redemoinhos que formavam os arcos de suas próprias impressões digitais. Pensou por um momento nas placas de emergência dos aglomerados humanos, ostentando com leds pomposos a palavra “saída” como se a passagem fosse uma escolha, como se o espaço além daquelas portas conteria uma tristeza Acho que já vi seus olhos – E. Reuss


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maior, mais constante, do que aquela que permeava o espaço de dentro. Roberto caminhou pela calçada através dos pilares de luz solar que brotavam das pequenas aberturas entre as nuvens. A lua se recusara a descer de seu camarote celestial e ficaram, lado a lado, ela e o sol, espreitando através das massas de vapor o que estava prestes a acontecer lá embaixo. Chegou à Rua das Hortênsias algumas horas depois. Quase não a reconheceu sob a luz. Passou ao lado de algumas casas das quais ele não se lembrava, casas abandonadas com avisos de despejo da prefeitura. A cidade havia crescido desordenadamente em uma explosão de vida, quase uma epidemia de fertilidade e sexualidade sem causa aparente. Era comum encontrar casas abandonadas e destruídas, famílias despejadas cedendo suas raízes para a construção de um novo aeroporto, de um novo centro de pesquisas clínicas ou de um novo cemitério para acomodar a profusão de cadáveres. Construções que, por sinal, existiam apenas no papel, uma fantasia política criada apenas para alimentar o tédio de funcionários públicos que sempre sonharam em construir alguma coisa.

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Roberto acompanhou a numeração das casas até chegar ao número 25. O mesmo prédio de dois andares com paredes nuas, mergulhado em um mar esverdeado cheio de vida. Ele atravessou o corredor do primeiro andar, sem fumaça, inodoro, e subiu as escadas em direção ao apartamento de Olívia. A porta, entreaberta, deixava escapar uma luz exausta e amarelada. - Olívia? – Ele disse, antes de entrar. Viu o acordeão descansar ao lado do sofá e sorriu para as lembranças que o rodeavam. Seguiu em direção ao quarto de Olívia e se deparou com o seu corpo paralisado e sem vida sobre a cama. Ele se aproximou do cheiro da morte e encontrou apenas os olhos vazios, que nem de Olívia eram mais. Provavelmente já estariam aprisionados no limiar. Na sua têmpora esquerda, ele viu um buraco de bala e o sangue pintando a lateral de seu rosto. Algo embrulhado em um cobertor descansava sobre o seu peito. - Olha pra ela, Roberto – Uma voz soou as suas costas – Presa em algum lugar na escala evolutiva. Assim, tão mortinha, parece uma toupeira com paralisia cerebral... - O que você fez? – Roberto disse e se virou para o Guardião. Agora o seu olho esquerdo estava destampado e um globo esbranquiçado semelhante a uma pérola ocupava o seu lugar. Acho que já vi seus olhos – E. Reuss


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- Eu? Você fez isso... No colo de Olívia, o embrulho soltou um choro inocente e indefeso. Roberto e o Guardião se viraram atônitos para o som. Um som puro e abafado, mas com força suficiente para unir duas almas, ressoando pelo quarto como gritos internalizados, distorcidos pelo universo dos sonhos. Roberto se aproximou do embrulho e desfez as camadas de cobertor que abafavam o choro e escondiam os olhos úmidos. A paisagem era estranhamente familiar. Mais familiar do que todos os olhos que já o amaldiçoaram, pois tudo que ele viu eram recortes de lugares pelos quais ele já caminhara. Ele viu as palafitas perfurando as margens do lago Zurique, as grandes muralhas da Constantinopla, as populosas aldeias Sami e suas renas no norte da Lapônia, os castelos de Rhön olhando através das nuvens, os longos caminhos de pedra que atravessavam o império persa, as estupas budistas construídas nos desfiladeiros do platô tibetano, o céu negro e ácido sobre as ruínas de uma cidade engolida pela fúria do Momotombo, as paredes de barro e os corpos empilhados na escuridão de uma senzala, e, cada vez mais, as imagens se agrupavam, formando um vórtice de memórias indistintas. O cordão prateado ia além do turbilhão e seguia em direção à Rua das Hortênsias. Não houve pausa nem Acho que já vi seus olhos – E. Reuss


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corte, a projeção das memórias continuou até se mesclar com as lembranças de outra vida, unificando passados de forma que pareciam ter sido vividos por uma única pessoa. Bastou ver o espírito da música dançar ao som do acordeão para saber que sua alma e a de Olívia estavam unidas no corpo da criança. O recém-nascido parou de chorar e lançou um olhar pacífico para Roberto, como se reconhecesse o próprio pai. O momento era aquele, Roberto nunca desejou com tanta intensidade, nunca sentiu um amor tão autêntico, fluindo pelas suas veias em ondas de frustração e de ódio, uma mistura homogênea e inseparável. Ele rasgou o Sampo e viu, de relance, que a cabra selvagem sumira do selo postal. Do pacote, Roberto retirou um revólver pimenteiro, provavelmente de meados de 1800, com a letra “A” em ouro estampada no cano. Ele sentiu o metal frio em sua mão e seu corpo transferindo energia para as partes delicadas e inofensivas que, em conjunto, trabalhavam para impulsionar a morte em cápsulas de chumbo. Quando atingiram o equilíbrio térmico, arma e atirador se tornaram um só, indivisíveis. Aquele era o Sampo, a materialização de um sonho. - Você não devia subestimar o poder dos mortais – Roberto disse, com o revólver em punho.

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- O que você está fazendo? - Eles têm um poder tão vasto e destrutivo quanto a nossa imortalidade... Impenetrável para nós, é claro, assim como a morte, mas acho que estou começando a entender... O Guardião parecia confuso. Pela primeira vez ele perdeu o controle do Limiar e, para ele, a incerteza era repulsiva. - Nossa imortalidade é só uma forma prolongada de egoísmo, por isso eu não entendia o sacrifício... – Roberto continuou. - Espera, espera... Sacrifício? Você acha que vai me matar com essa... Coisa? “É claro que não”, Roberto pensou. O jogo de ideias verbalizadas acabara... O Guardião do Limiar sentiria o seu universo desmoronar como um castelo de cartas erguido no olho de um furacão. As memórias se acumulariam em ruínas esfumaçadas e negras, entulhos de vida ardendo pela eternidade, enquanto algumas almas penadas que se recusavam a ceder à escuridão caminhariam em meio aos escombros como velhos doentes e arqueados, carregando em suas mãos antigas latas de óleo enferrujadas usadas para catar o que restou Acho que já vi seus olhos – E. Reuss


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de suas vidas. O Limiar tomado pelo caos. Roberto armou o cão do revólver e atirou contra a própria cabeça, fazendo as quatro balas no barril atravessarem seu crânio de cinco mil anos e descansarem em algum ponto úmido e aconchegante de sua massa encefálica. ... Podiam ser vistas pelo menos quatro camadas de cores diferentes na lataria da Kombi que atravessava a Rua das Hortênsias, repintada tantas vezes que a cor original se tornou indecifrável, um enigma que refletia a incógnita por trás do homem que a dirigia. Anastásio cantarolava “retalhos d’alma”, acompanhando o acordeão melodioso que se lançava do rádio. - É ou não é um gênio? – Ele disse. Pitágoras, sentado ao seu lado, acordara de um estado de transe profundo, induzido pela vibração quase sísmica do automóvel. - Quem? - Alberto Calçada. Ele usa um dos meus... – Disse Anastásio, se referindo aos seus instrumentos – Consegue sentir?

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Pitágoras fez uma careta indisposta, cansado demais para continuar a conversa. Ficaram alguns minutos em silêncio, até que a música atingiu um ponto melancólico onde decrescia até se tornar inexistente, como se assumisse sua própria derrota, sua própria condição de canção que eventualmente cairia no esquecimento e se tornaria uma daquelas melodias que nunca foram cantadas. - O que ele ta fazendo? – Disse Anastásio. Pitágoras olhou para os fundos da Kombi. - Nada... Engolida por uma sucessão interminável de caixas de papelão cheias de balanças portáteis, a criança olhava para as formações de ferrugem no teto, uma placa de Petri gigante cultivando os resíduos decompostos de todas as vidas que já esqueceram um pedaço de si no centro daquela lata retorcida. - Já deve estar pronta – Disse Anastásio. Pitágoras se curvou e pegou um bloco de ferro descansando aos seus pés. Ele separou as duas partes em que o objeto se dividia e, hesitando, encostou na

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pequena cabra de ouro que se projetava do metal, temendo que estivesse quente. - Dá pra ele... - Acha mesmo uma boa ideia? - Pelo menos ele tem uma escolha... Pitágoras removeu a escultura do molde de ferro e a entregou para a criança, que usou suas mãozinhas descoordenadas para investigar o objeto. Anastásio viu os pequenos olhos familiares pelo retrovisor, hipnotizados pela superfície brilhante da escultura, e sorriu diante da lembrança daqueles mesmos olhos refletindo o céu azul do Sinai. Cravados em um rosto coberto de areia e queimaduras do sol, aqueles olhos vagaram pelo deserto ao seu lado há cinco mil anos e enxergaram, com a mesma curiosidade infantil de agora, a maldade de toda uma vida aprisionada em uma pequena cabra de ouro. De repente, as memórias se dissiparam e Anastásio pode ver, dentro dos olhos da criança, ruídos se agrupando e formando extensos lagos de som, abrigando bolhas de acordes em harmonia. E em uma delas, um si bemol e um dó menor, ligados por fios sutis de simpatia magnética, que soariam pela eternidade através das Acho que já vi seus olhos – E. Reuss


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conexões entre vidas e instrumentos... Um gigantesco fractal se aproximando lentamente do infinito.

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PECCATORI V. E. SIMEONI __________________________________________________

“Os covardes morrem várias vezes antes da sua morte, mas o homem corajoso experimenta a morte apenas uma vez” WILLIAM SHAKESPEARE


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“Aquele prometia ser um dia de merda” foi a primeira coisa que Chris pensou assim que colocou os pés para fora da cama. Essa previsão se repetia diariamente ao se preparar para ir ao trabalho e na maioria das vezes ele estava certo.

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Não me entendam mal quando digo que ele é uma pessoa infeliz, pois ele era. Desde que seu pai teve uma crise de meia idade e resolveu mandar tudo para o inferno, todas as responsabilidades caíram sobre o pobre rapaz. Sempre saia de casa antes de o sol nascer a passos de gato, pois queria evitar o risco de acordar sua mãe e ter que aguentar a velha logo de manhã. Ela até que era legal se estava sóbria, algo que acontecia cada vez mais raramente nos últimos meses. Ao esperar o ônibus, Chris pensava como a vida era injusta com ele. O máximo com que um adolescente de quinze anos deveria se preocupar eram besteiras como garotas e a puberdade. Ele estava acima do peso, sem grana e ainda tinha que acordar todos os dias de madrugada para chegar a um emprego que odiava, sem contar a mãe alcoólatra. Às vezes ao passar pela ponte Coelho Matos que ficava logo depois da parada do ônibus, imaginava como seria se resolvesse pular. Olhando para baixo era uma bela vista, deveria ter uns quinze metros. Será que a queda o mataria ou quem sabe talvez o choque contra a Peccatori – V. E. Simeoni


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água tirasse sua consciência enquanto a água entrava devagar em seus pulmões? Claro que não demorava muito tempo para abandonar essa ideia, afinal de contas para pular ele precisaria ter muita coragem ou quem sabe covardia de sobra e ele não possuía nenhuma das duas coisas. Aquele com certeza seria um dia de merda... ... Pizza de lá Nonna ficava localizada onde a parte velha da cidade acabava para dar lugar à orla fluvial. De um lado velhos armazéns infestados de ratos que já deveriam ter sido demolidos há anos, do outro uma paisagem digna de um cartão postal. Um contraste até interessante para os mais observadores. Chris descia sempre em um ponto que ficava a umas oito quadras da orla e isso era sinônimo de uma caminhada que sempre o deixava de mau humor. “Maldito ônibus que só faz metade do caminho”, resmungava consigo mesmo. Até então aquela manhã estava sendo como todas as outras, mas havia algo diferente no ar. Peccatori – V. E. Simeoni


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Um cheiro de algo podre que a princípio era suave, mas conforme ele se aproximava da pizzaria ficava cada vez mais forte. Aquilo o fazia lembrar de uma vez em que sua mãe atropelou alguma coisa quando eles voltavam do mercado. Na época jurava para mãe que conseguia ouvir um choro cada vez que eles entravam no veículo, mas é claro que ela fazia questão de ignorar o filho sempre que podia. Algum tempo depois o fedor ficara insuportável ao ponto que não dava mais para fingir que não estava lá, quando finalmente encontraram um cachorro preso embaixo do peito de aço do carro, ou pelo menos o que restou do animal. - Ei Chris! Aqui! Seus pensamentos foram interrompidos por uma voz familiar, era Sabrina que estava parada na calçada com um cigarro aceso na mão. - Por que você está aí parado sonhando? Já é quase hora de começar o expediente e é melhor andar depressa porque o Júnior está puto... – ela disse antes de dar uma última tragada e jogar a bituca no chão.

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Escutar aquele nome fez com que o garoto estremecesse, se já achava que o dia iria ser ruim agora tinha certeza. - Você está sentindo esse cheiro? Sério, parece como alguma coisa que... - Morta eu sei, já tem umas duas horas que o Júnior está tentando falar com o dono do prédio da frente, a gente acha que o cheiro vem de lá. Ele olhou para o outro lado da rua – onde estava a velha fábrica abandonada de tecidos – e desde que tinha começado a trabalhar na Pizza de lá Nonna nunca tinha visto uma alma viva entrar naquele prédio. Mesmo os drogados que costumavam zanzar por aqueles lados evitavam aquele lugar, como se houvesse um mau agouro ou coisa do tipo que afastava as pessoas. Os dois atravessaram o estacionamento e entraram pela porta dos fundos de onde já podiam ouvir Júnior aos berros. - Não interessa a porra do regulamento, ou vocês despacham alguém para resolver isso ou vou lá e toco fogo naquela merda – veias saltavam de seu pescoço – Só tenho algumas horas para abrir o restaurante e

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ninguém vai querer comer aqui com esse cheiro empesteando tudo! Júnior era um tipo de gerente – sem falar sobrinho da dona da pizzaria - que se levava a sério demais e como todo bom idiota que recebia um pouco de poder nas mãos, era o pesadelo de quem tinha o azar de cair no mesmo turno que ele. Certa vez Sabrina contou que um entregador novato acabou cometendo o erro de misturar todos os pedidos ferrando com quase todas as entregas da noite. O “senhor gerente” ficou tão puto que quebrou o braço do pobre infeliz antes de mandá-lo para o olho da rua. No final das contas, a tia do Júnior torrou uma boa grana para abafar o caso, mas mesmo assim era o tipo de coisa difícil de esquecer. Chris fazia de tudo para ficar invisível no radar do chefe e evitar qualquer “incidente” desagradável, uma política que vinha dando muito certo até então. - Filha da puta! – disse ao bater o telefone no gancho – A prefeitura vai demorar pelo menos dois dias para mandar alguém da vigilância sanitária para dar uma olhada na fábrica. Dá para acreditar nisso?

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Sabrina e Chris trocaram um olhar, ele não falava com nenhum dos dois. Um silêncio desconfortável tomou conta da sala fazendo com que os próximos cinco minutos aparentassem ser muito mais tempo. - Hum vamos ter que resolver essa parada – ainda falava sozinho – Ainda tem algumas horas antes do resto do pessoal chegar. Deu uma batida na mesa que fez com que os dois tremessem. - Sabrina pegue esse dinheiro – tirou duas notas de vinte do bolso – e me traga alguns litros de desinfetante, algo perfumado. Ela trabalhava lá há mais tempo que qualquer um e sabia que deveria pegar dinheiro sem fazer perguntas e sumir antes que pudessem piscar. - E você como se chama mesmo? O rapaz deu um pulo, sua boca ficara seca. - Esqueceu seu nome? Ah tanto faz, me espere lá fora porque também tenho um servicinho para você. O menino seguiu para fora conforme ordenado enquanto começava amanhecer. Minutos depois Júnior

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apareceu com um alicate em uma das mãos e um saco de lixo na outra. Ele passou por Chris a passos largos estampando uma cara de poucos amigos e só parou ao perceber que o rapaz ainda estava imóvel. - O que você está esperando? Um convite? Em pouco tempo estavam na frente da fábrica, o fedor ficou mais forte do que nunca. - Quero que entre lá – partia a corrente do portão com o alicate – e coloque o que quer que esteja fedendo dentro desse saco. O garoto olhou para a corrente caída no chão e em seguida para o prédio que era bem mais sinistro de perto. - Isso não é invasão ou sei lá? Acho que podemos ter problemas se... - O único que vai ter algum problema aqui é você se ficar aí enrolando – jogou os sacos e o alicate aos seus pés – Vou ao banco depositar um dinheiro e é melhor que isso esteja feito assim que eu voltar, capiti? Sem esperar uma resposta, virou as costas e foi embora. Parece que não existiam muitas alternativas

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para Chris além de recolher aquela tralha do chão, soltar dois ou três palavrões e tentar manter seu emprego. Havia duas entradas, uma que provavelmente era usada para descarregar caminhões e outra porta menor na lateral - Chris optou pela segunda. Ao tocá-la a porta se abriu devagar. “Não está trancada... coisa estranha.” pensou antes de entrar. A luz do sol entrou revelando um escritório que há muito tempo não via nada além de merda de gato e muita poeira. Falando nos felinos, era isso que ele esperava encontrar lá dentro, um maldito gato ou quem sabe um monte deles. É bem comum eles se juntarem para trepar em cima dos telhados, o mais provável é que algum deles deu o azar de pisar em uma telha quebrada abrindo um buraco que levou todos para uma morte dolorosa no chão. Estar sozinho ali era assustador e ele só queria terminar logo com aquilo e ir embora. Contornou uma mesa e desceu por uma escada em espiral que ia para o andar de baixo, uma grande área iluminada unicamente

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pelos poucos buracos no telhado que deixavam alguma luz passar. Várias máquinas, que ele não tinha a menor ideia para que servissem, estavam distribuídas de maneira simétrica por todo aquele andar como vagões em um trem cargueiro. - Qualquer dia desses eu mando aquele cuzão ir para puta que pariu e largo esse emprego – reclamava enquanto abria o saco de lixo. Assim começou a procurar, esgueirando-se por pequenos corredores sombrios e aparelhos enferrujados tentando encontrar a fonte daquele cheiro. Estava pensando em desistir no momento em que uma voz ecoou pelo andar. Cos i know love doesn´t live here you´ve gone away – cantarolava baixinho – Love doesn´t live here but i´m left to stay... O primeiro impulso de Chris foi se virar e sair correndo por onde ele tinha vindo, seu medo era tanto que só precisou de três degraus para subir a escada. Estava quase na porta do escritório quando a expressão séria que Sabrina fez ao lhe contar sobre o entregador lhe atingiu como uma bolada no estômago. Peccatori – V. E. Simeoni


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Ele olhou seu relógio e já tinha se passado meia hora, o tempo para tentar convencer a si mesmo já havia passado. “Quem quer seja, é impossível que seja tão ruim quanto aquele filho da puta, certo?” And i thought... it was me and you who gave it all... Reuniu toda a força de vontade que tinha - pouca coisa por sinal - e voltou descendo devagar. A voz que cantava aquela canção soava um tanto triste, dando curtas pausas entre um verso e outro. Quanto mais ele se aproximava, mais alta ficava a música e mais forte seu coração batia. Yes, I thought it was me and you who couldn´t fall... Estava tão perto agora que podia escutar claramente a melodia. Engoliu seco e segurou o alicate bem forte nas duas mãos para que o suor não o fizesse escorregar. But it´s all over now... Avançou em um salto, pensava que estava preparado para tudo até dar de cara com aquela estranha figura presa em correntes. Over now...

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Ao se dar conta da presença dele, ela abriu um sorriso. Mesmo com o semblante abatido, ainda era a mulher mais linda que ele já tinha visto na vida, cabelo ruivo cacheado, pele clara e um corpo de violão completavam um conjunto que ele só tinha visto em revistas. Estava amarrada em uma das pilastras por correntes, quem quer que seja que a tenha colocado lá queria garantir que não saísse tão cedo. - Olá rapazinho, qual é o seu nome? - Caralho... - É um belo nome - deu uma risada acompanhada de uma tosse - Você tem um pouco de água aí? Sinto tanta sede... Chris balançou a cabeça em uma negativa. - Desculpa. A prisioneira deu um longo suspiro e baixou a cabeça encarando o chão, não precisava ser médico para perceber que ela não estava nada bem. - Me chamo Christian, o que aconteceu aqui? Quem é você e por que te prenderam aí? -Meu nome é Marie...

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Aquilo estava longe de ser um filme onde todos sempre sabem como agir e o que ele, que nem conseguia lavar suas cuecas direito, deveria fazer? - Marie certo? É melhor eu ir buscar ajuda e... - Não me deixe sozinha! – seus olhos se mexiam alucinadamente nas órbitas – Sei que ainda está por aqui, posso senti-lo. Se a ideia de haver mais alguém naquele lugar já era o suficiente para deixá-lo apavorado, esse alguém ser um psicopata que prende as pessoas com correntes o deixava à beira de borrar as calças. Chris olhou ao seu redor assustado e mais uma vez pensou em sair correndo como se sua vida dependesse disso. Porém tentou afastar esse pensamento, pois por mais bundão que fosse não poderia simplesmente deixála, já que ainda tinha um pouco de consciência. Foi aí que se lembrou do alicate e do porquê de tê-lo trazido, então tratou de tentar cortar a corrente. - Você falou que tem mais alguém aqui, é o cara que te prendeu? A mulher fez uma negativa e tossiu.

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- Esse foi embora depois de matar os três traficantes. Estou falando do Dependente que eu feri, mesmo sem hospedeiro, ele ainda está por aqui. “Maravilha! Ela perdeu o juízo.” – pensou – “Pelo menos não parece ser perigosa”. Ela continuou: - Sempre ouvi que eram carniceiros, mas aquilo... Quando a corrente caiu, ele tentou inutilmente segurá-la antes dos dois desabaram no chão. Em outras circunstâncias teria sido uma bela história, o dia em que uma gostosa caiu em cima dele. - Minha bolsa – sua respiração ficou mais pesada – Por favor... A minha bolsa, ela deve ter caído embaixo daquela calandra. Seu dedo apontava para a máquina atrás de dois caixotes velhos. “Essa porcaria de bolsa parece ser mais importante para ela do que se mandar logo daqui... Ah inferno”, então ele colocou a ruiva cuidadosamente junto à pilastra e tratou de ir buscar a tal bolsa. Engraçado que o cheiro que até então estava insuportável nem incomodava tanto agora, talvez o nariz esteja se acostumando. Peccatori – V. E. Simeoni


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Tentou ver embaixo da calandra, mas não encontrou nada além de escuridão. Então se curvou enfiando o braço por debaixo da máquina, apalpando às cegas. - Dona, acho que não tem nada... Agh! Dentes cravaram em sua mão causando uma dor lancinante que fez com que ele a puxasse com toda força até ouvir um guincho. De repente sua cabeça começou pesar e tudo rodava, foi aí que ele caiu no chão e viu algo que lembraria até o ultimo dia de sua vida. Três corpos presos no teto com braços abertos que formavam um círculo, nenhum deles tinha rosto. As faces haviam sido arrancadas deixando os crânios vazios e sem expressão. Em meio ao círculo pousava um tentáculo que mais lembrava uma mistura de pata de aranha com foice, era de um vermelho escuro. O conjunto formava um tipo de afresco pagão feito de carne e sangue. “Então é daí que vem o cheiro” – foi a última coisa que pensou antes de apagar. Assim que entrou na casa pela porta da frente, notou que a mão que girou a maçaneta não era sua. Aquelas

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mãos eram delicadas, dedos finos e unhas pintadas, mãos de mulher. Chris não entendia o que estava acontecendo, ele não passava de um passageiro em um corpo que não era dele. No momento que a dona daquelas mãos cruzou a porta, uma criança de bochechas rosadas veio ao seu encontro. - Mamãe você trouxe cereal? – perguntou ansiosa. Nenhuma resposta. - Por que essa cara? Tá triste? – indagava a criança e novamente sem uma resposta. O pequeno crânio foi envolvido pelas mãos que com um estalo quebraram seu pescoço, a garotinha nem teve tempo para sentir medo. - Querida! É você? – uma voz vinha pelo corredor – Vem aqui, acho que o Davi sujou a fralda! Por um instante, ela se admirou no espelho que ficava ao lado da porta da sala como se fosse a primeira vez que via o próprio reflexo e então de repente mudou. Em um bater de coração sua pele foi rasgada de dentro para fora e ela passou de uma dona de casa de meia idade para algo monstruoso.

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Tinha quase três metros, uma pele vermelha coberta por uma couraça feita de ossos e pequenos tentáculos descendo por toda a extremidade das costas. - Meu bem a coisa tá feia! O monstro abriu a boca cheia de presas e disse com uma voz feminina. - Já estou indo querido! Naquele instante, a impressão que Chris teve era de que a criatura estava olhando diretamente para ele através do espelho, talvez soubesse que tinha mais alguém dentro da sua cabeça. ... Sua camisa estava ensopada de suor, o coração quase saia pela boca. “Puta merda que pesadelo foi esse!?”. Ao acordar notou que não estava mais na fábrica e sim voltara à cozinha da pizzaria, sem falar que não estava mais sozinho. Um cara esquisito falava ao celular. - Isso mesmo, uma equipe de limpeza para dar um jeito na fábrica – uma pausa - Só equilíbrio é

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verdadeiro... Entendi o que quer dizer, é quase um plano B. Ao perceber que ele tinha acordado, desligou o celular. - Gordelo do céu, você grita como uma menininha – Disse, em um tom bem humorado - Juro que achei que ia se mijar. Quem diabos era aquele cara e o que tinha acontecido? Lembrava-se de corpos... Gente presa no teto... Será que tinha sido um sonho? O estranho deu uma ajeitada no cabelo loiro e em seguida bebeu um generoso gole de coca. - Meu nome é Percival, mas todo mundo me chama de Per, prazer! Apresentações à parte, nós precisamos levar um papinho sobre essa marca na sua mão. - Marca? Que marc... aí meu Deus... Sua mão estava quase com o dobro do tamanho, veias se estufavam para fora em um roxo escuro. - Se eu tentar explicar o que aconteceu provavelmente você vai achar que sou doido – agarrou um saco que estava ao lado da mesa – É mais fácil mostrar.

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Abriu o saco e despejou em cima da mesa algo que só poderia ser descrito como repugnante. À primeira vista, aparentava ser um porco com uma crina de pelos grossos, mas algo estava muito errado. O rosto era humano, o rosto de um homem velho castigado pelo tempo. Sua língua pendia para fora da boca e os olhos estavam semiabertos, sem vida. - Esse é o safado que te mordeu. - Minha nossa... - Isso é um Escarlate ou demônio se preferir. Deu um pouco de trabalho para pegar esse merdinha, mas não deixe a aparência te enganar porque eles podem ficar bem grandes se conseguirem encontrar um hospedeiro. Devolveu a criatura ao saco. A conversa dos dois foi interrompida pelo bater da porta, era Júnior e ele não parecia nada feliz. - Mas que porra você está fazendo deitado aí no chão? Por que ainda sinto cheiro de carniça?! Quem é esse idiota? - A fábrica... Tanta coisa aconteceu...

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Júnior disparou pela cozinha e agarrou Chris pelo colarinho o suspendendo do chão, estava tão perto que dava para sentir seu hálito. - Me responde porra! Não conseguiu responder, só baixou a cabeça em silêncio. Enquanto isso Per observava a cena enquanto bebericava sua coca. - Está me achando com cara de otário?! Por sua culpa não vamos abrir hoje e a titia vai ficar brava comigo! Com um empurrão fez com que Chris se estatelasse no chão. Um dos armários balançou bruscamente derrubando vários pratos sobre o pobre rapaz que tentava se proteger cobrindo a cabeça. - Por favor, você precisa escutar. - Vou te ensinar a não me sacanear moleque – disse, pegando o rolo de massa. Tudo aconteceu em câmera lenta, o rolo desceu em um golpe que fez Chris se encolher. O segundo foi mais forte e fez lágrimas acompanharem a dor. - É isso que acontece com quem se acha esperto! – mais uma pancada.

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Chris rezava baixinho para aquela agonia terminar, serrando os olhos e esperando a próxima onda de dor chegar, mas para sua surpresa – e a de Júnior – o desconhecido agarrou o rolo de massa no ar. - Já foi suficiente amigo – Per não esperou que ele abrisse a boca, apenas mandou um chute bem no meio das bolas do “senhor gerente”. Depois de um passo para trás, Júnior tentou se apoiar em alguma coisa, só que caiu sobre os joelhos gemendo. Despreocupado como se estivesse passeando na praia, Per foi até o freezer e pegou mais duas garrafas de coca. - Que tal esfriar a cabeça - com um truque de malabarismo girou uma das garrafas na mão segurandoa pela ponta. Os olhos de Júnior acompanharam todos os movimentos até receber uma garrafa na cara e ficar sem abri-los por horas. Após tomar um gole da outra garrafa, foi em direção a Chris que ainda estava de boca aberta. Ajoelhou-se ao lado do rapaz tirando uma caixinha de madeira do bolso, dentro havia pequenas bolinhas de gude dos mais variados tipos. - Você tem sorte de ter essa capa de gordura te protegendo – pela primeira vez usava um tom sério – Se Peccatori – V. E. Simeoni


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não fosse por isso teria alguns ossos quebrados, vamos dar uma olhada nessa sua mão. Per pegou seu pulso e esmagou umas das esferas deixando um pó brilhoso cair sobre a ferida. Por mais que pudesse soar esquisito, imediatamente a dor passou dando lugar a uma sensação de conforto, do tipo que se sente ao adormecer. - A organização para qual eu trabalho foi contratada para eliminar um Escarlate que havia escapado ao ser transportado para o Aeroporto Central. Meu chefe designou uma agente chamada Marie Vargas para o serviço, pelo visto vocês já se conheceram. - A ruiva das correntes, ela estava muito mal e... - Infelizmente já era tarde. Isso deprimiu Chris, afinal, mesmo não conhecendo a moça direito ele tinha tentado de verdade ajudar. Às vezes tentar não é o bastante. Per passou a mão por baixo da mesa e puxou a alça de uma bolsa de couro, ao abrila um celular rolou para fora junto com alguns CDs. Quem ainda usa CDs hoje em dia? - O celular dela, tudo sobre a investigação que estava conduzindo está aqui. Aparentemente o Escarlate estava

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fazendo negócios com traficantes de runas encantadas e ela ia eliminá-lo quando algo deu errado. Seu rosto ficou sombrio. - O Escarlate criou um Dependente e isso era uma coisa que ela não previu, esse foi seu erro. Arremessou-lhe um guardanapo e fez um sinal para que cobrisse a ferida. - Entenda uma coisa, essas criaturas desprezam humanos e só fazem isso como último recurso, o que me faz pensar que ele desconfiava que tivesse alguém na sua cola. Um Dependente nasce quando um humano é mordido por um demônio e sobrevive tempo o suficiente para se transformar. Entende o que eu digo? Queria não entender, estava sendo muito pior que um dia de merda. - Essa ferida na sua mão vai crescer como um câncer e com o tempo você vai se tornar uma daquelas coisas – dizia apontando para o saco de lixo – Começa com você podendo ver algumas das memórias dele e pouco a pouco seu corpo começa a mudar. Muito... Muito pior.

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- Nós precisamos da língua de um Escarlate mestre para te curar antes que não exista mais retorno, mas graças à investigação da Marie eu sei o que ele quer e para onde ele vai. Agora só resta saber, você vem comigo? ... Eram quase nove da manhã quando os dois entraram no carro de Per e subiram pela orla. Ainda estava meio difícil de a ficha cair para Chris, pois além de desempregado, provavelmente seria acusado de cúmplice de agressão. Para piorar ainda mais as coisas tinha todo aquele papo sobre traficantes de runas e demônios, algo bem difícil de engolir até se lembrar da coisa porca com cara de gente. No fundo tinha certeza que teria pesadelos o resto da vida por causa daquela merda. - Melhore essa cara Gordelo, quem sabe pode até ser uma aventura. Você e eu, parceiros como Batman e Robin. - Robin é um viadinho... - Exatamente! – soltou uma gargalhada.

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Chris fez uma careta e cruzou os braços. “Quem esse babaca acha que é?”. - Você disse que sabia para onde o Escarlate vai, é para lá que vamos? Ele apanhou um jornal que estava dobrado no banco e jogou no colo do garoto. - Segunda página, no topo. A manchete dizia “Palhaço Pingo vai a julgamento pelo assassinato da esposa – Ídolo infantil dos anos noventa dizia que vozes o mandaram cometer o crime”. Chris lembrava vagamente de chegar da escola e assistir o programa do Palhaço Pingo. Para falar a verdade nunca deu a mínima para o Palhaço com suas brincadeiras idiotas e só assistia por causa dos desenhos. Aparentemente não era só ele que pensava assim. Não muito tempo depois o programa foi cancelado e o palhaço fora substituído por um bando de cachorros falantes. Há anos ninguém falava no Palhaço Pingo, pelo menos até agora. - Você já ouviu uma conversa sobre esse cara ter feito um pacto com o Diabo para ficar famoso? – perguntou Per.

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- Ouvi, tinha gente que dizia que se você ouvisse os discos dele ao contrário dava para escutar mensagens do capeta. - Não era só um boato, se você faz um pacto tudo o que se deseja vira realidade, pelo menos até chegar a hora de pagar a dívida. O preço sempre acaba sendo mais alto que o combinado. O carro contornava uma rotatória. - Nosso palhaço preferido está com um pé aqui e outro no inferno e é justamente por isso que o Escarlate precisa dele, para ser um portal. - Como assim portal? - Ele quer trazer os amiguinhos para fazer uma festa no nosso mundo e acredite quando digo que não vai ser divertido ter milhares dessas coisas andando por aí. - Ah Deus... Sentiu-se enjoado de repente. - O carro... Encosta o carro... Na hora só teve tempo para abrir o vidro e colocar tudo para fora.

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- O julgamento será daqui dois dias, tenho certeza que essa é a chance que o Escarlate precisa para abrir o portal e é aí que vamos pegá-lo. Mas antes quero passar na agência para pegar uma coisa e selar sua mão. “Selar sua mão”, ele não entendia o que raios isso significava e não queria saber. Só precisava encostar a cabeça e fechar os olhos por alguns minutos, não conversaram durante o resto do trajeto. Cinquenta minutos depois e estavam no centro da cidade, um lugar infestado de prédios para qualquer lado em que se olhava. Per estacionou no meio fio e abriu à porta e o garoto o seguiu. Eles entraram em um dos arranha-céus espelhado, facilmente deveria ter mais de cem andares. Chris não costumava andar por aqueles lados e para falar a verdade era a segunda vez que ia ao centro, sendo a primeira em uma excursão da escola. Ao entrarem pela recepção uma mulher negra que usava uniforme de segurança olhou para Per dos pés a cabeça, não escondendo uma certa desconfiança. - Bom dia dona Berta, seu cabelo está lindo hoje – disse sorrindo.

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Ela nem se deu ao trabalho de responder, isso não desanimou Per que retrucou seu silêncio com uma piscadela marota. Todos ali ficavam encarando a dupla como se eles estivessem deslocados, vai ver é porque realmente estavam. Existiam dois elevadores no final do corredor, um com um fluxo constante de engravatados e outro que mantinha as portas sempre fechadas. Esse segundo tinha um pequeno orifício no lugar do botão que o chamava para descer, Per inseriu uma daquelas bolinhas de gude pelo buraco e as portas se abriram. Um cara de meia idade usando um terno preto ficou observando a cena com curiosidade enquanto os dois entravam. Depois de Per digitar uma sequência no painel de andares como se fosse uma senha e inserir mais uma bolinha na fresta, a porta tornou a fechar. O elevador chegou ao seu destino e eles se encontraram em um andar de paredes brancas. Logo depois do elevador um corredor se bifurcava em um T com corredores que seguiam até perder de vista. - Vou ter uma palavrinha com o chefe, coisa rápida. Se estiver com fome tem uma cozinha no final daquele corredor – Per apontava para direita.

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Fazer uma boquinha não soava tão ruim já que era quase hora do almoço e a fome começava a dar as caras. Chris passou por várias salas durante o caminho, algumas possuíam largas janelas com vidro fumê que tornava o que acontecia por detrás daquelas paredes um mistério. A cozinha, que não tinha paredes e era simples de tudo, estava conjugada com o que lembrava uma dessas áreas de relaxamento que tem em quase toda grande empresa, com direito a poltronas e até uma mesa de bilhar. Na geladeira não havia nada além de um saco de pães de forma, mortadela e todo o resto estava coberto por latinhas de refrigerante. “Por que isso não me surpreende” pensou Chris antes de fazer um sanduíche digno de um gordinho esfomeado. Sua vida tinha sido bem complicada nas últimas horas, talvez aproveitar um bom lanche valesse muito mais do que pudesse imaginar. Seu pai sempre dizia “às vezes para se aproveitar o arco íris você precisa resistir à tempestade”, pena que o idiota não seguiu o próprio conselho.

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Enquanto comia uma coceira começou a subir pelas costas. De primeira tentou ignorar, mas logo o incômodo tornou-se insuportável. Dava para sentir que algo estava estranho e então tirou a camiseta para ver o que era e para o seu horror vários fios escuros brotaram ao longo de seu dorso. Grossos demais para serem cabelos, eram como os pelos da criatura porco. Antes que ele pudesse sentir o amargo daquela situação, um bater de saltos anunciou que alguém se aproximava. Uma mulher de traços suaves, não precisava dizer nenhuma palavra para deixar transparecer um ar de altivez. Mesmo um sobretudo que parecia ter saído de um livro sobre a segunda guerra, suas curvas eram evidentes. Os dois se encararam por um instante, ele vermelho de vergonha por estar sem camisa e ela firme como um bloco de granito. Aquele momento constrangedor terminou quando ela desabotoou o sobretudo tirando um espada rapieira da bainha. - Ah merda – as palavras saíram em um suspiro. A mulher era tão rápida quanto era bonita, antes que pudesse se dar conta ela já estava sobre ele pronta para Peccatori – V. E. Simeoni


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fatiá-lo ao meio. Por pura sorte Chris conseguiu rolar por cima da mesa de bilhar e caiu sentado do outro lado, a mesa foi cortada como papelão. Nunca na vida ele quis estar em forma como naquele dia, por mais que tentasse não conseguia diminuir a distância em relação a sua caçadora. E onde raios estavam todos? Mesmo clamando por ajuda ninguém apareceu. Aquela cena lembrava os filmes de terror dos anos oitenta em que a vítima fugia desesperada e o assassino, apesar de andar calmamente, sempre conseguia alcançála. Ele tentou chamar o elevador apertando os botões do painel desesperadamente, mas a porta não se abria sem as bolinhas mágicas. Dessa vez a lâmina passou tão perto de sua cabeça que deu para sentir a brisa que vem depois do golpe que ela errou por centímetros. A espada ficou presa no painel e essa foi à deixa para continuar correndo mesmo sabendo que cedo ou tarde não teria jeito de escapar, pois já estava ficando cansado. Ele dobrou o corredor o mais depressa que pôde só para dar de cara com um beco sem saída, esse era o fim. O

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estalar dos saltos agora soavam como o martelar de pregos no seu caixão. - Que isso moça, não precisa fazer isso! – implorava de joelhos. A mulher continuou indiferente a qualquer apelo, brandiu a espada pronta para terminar o serviço. Então o inesperado aconteceu, as luzes começaram a piscar e pela primeira vez desde que havia surgido, a estranha disse uma única palavra que saiu quase como uma oração. -Avohay... O vidro da sala ao lado se espatifou arremessando estilhaços em todas as direções e uma sombra passou entre os cacos voando para cima da mulher. Os dois rolaram pelo chão até que ela foi arremessada para longe só parando quando seu corpo encontrou a parede. Mesmo não tendo antecipado aquela virada dos acontecimentos, ela não se deixou esmorecer. Um movimento com a espada fez a lâmina ganhar um brilho prateado. - A escuridão não vai te ajudar – ela dizia solene.

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A luz tinha um brilho de uma lua cheia em um céu sem estrelas, a sala foi tomada pela claridade que revelou quem era o atrevido que a desafiara. Para o espanto de Chris era ninguém menos que Per, só que dessa vez parecia diferente sem o sorriso debochado no rosto. - Você me conhece Aurora, eu tenho vergonha se não for no escurinho – ele estava entre Chris e a mulher chamada de Aurora fazendo uma posição de combate, na mão uma faca curvada como uma garra de urso. - Você tá legal? - Claro que não, essa piranha quase me matou! E que porra toda foi essa? Sem tempo para explicações, a mulher deu uma investida contra Per que usou a faca para desviar a lamina da rapieira e com o braço livre lhe deu um gancho no queixo. Ela balançou por um segundo, mas logo se recuperou para mais um ataque e assim um balé mortal teve início. Enquanto um atacava, o outro se esquivava e lançava seu contra golpe, uma luta tão veloz que Chris mal conseguia acompanhar direito.

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- Me entregue o menino e isso termina aqui. É arriscado demais deixá-lo viver – Ela disse ofegante. - Não vai rolar, a segurança dele é minha responsabilidade, mas você pode tentar. - Com você tem sempre que ser do jeito difícil – disse ela brandindo a espada – que assim seja. Mesmo que os dois lutassem no mesmo nível ficava mais e mais evidente a cada golpe que ela estava vencendo. A arma de Per era excepcional, mas não deixava de ser só uma faca, limitando-se apenas a usá-la para desviar os golpes da rapineira. Ele não precisava de habilidade e sim de sorte para vencer. Conforme o combate se desenrolava, ambos começavam mostrar sinais de cansaço, seria uma questão de tempo para alguém cometer um último erro. - Gordelo – ele disse sem olhar para trás – Se a gente sair dessa prometo que te levo em um bordel para comemorar. Foi quando ele terminou de rasgar sua camiseta que agora não passava de trapos revelando uma tatuagem perturbadora. Correntes subiam pelas suas costas, entre Peccatori – V. E. Simeoni


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seus ombros havia um cadeado com os dizeres “Peccatori”. A luta foi decidida em uma última cartada no momento em que Per a atacou e ela em um rápido giro atirou o sobretudo sobre ele. Um instante foi tudo que Aurora precisou para lhe tirar a faca com um golpe vertical que foi seguido por uma estocada que o atravessou no estômago. O rosto da mulher se encheu de uma satisfação cruel que rapidamente fora substituída por surpresa quando seu oponente lhe agarrou o braço, ela torceu a lâmina fazendo Per golfar um punhado de sangue e mesmo assim ele não afrouxou o aperto. Os dois caíram no chão quando ele começou uma sessão de estrangulamento com a mão livre. Aurora até tentou desferir vários socos em seu rosto, os primeiros sendo murros fortes e decididos, mas a força foi diminuindo conforme a vida ia se esvaindo de seu corpo. - Avohay – disse a voz imponente – Se você matar nossa cliente não haverá pagamento e se não houver pagamento o chefe não vai ficar contente.

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Quando Chris percebeu havia um velho fumando ao seu lado, o infeliz surgiu do nada. Per estava tão imerso na luta que não ouviu as palavras do velho. - Avohay! Ele então soltou a moça e deu dois passos para frente antes de cair inconsciente no chão. - E você senhorita Bongiovani, não estava aqui só para supervisionar a missão? Quem disse que poderia interferir com o trabalho dos meus agentes? Aurora, que estava roxa, usou toda sua força de vontade para se manter consciente. Ela conseguiu puxar a espada do corpo dele e então voltou a cair. - O moleque – puxava o ar que não vinha – foi mordido... Precisa morrer... O velho deu uma boa olhada em Chris e então disse categórico. - Quem vive e quem morre aqui não é decisão sua, se o chefe o quer vivo, então ele vai continuar assim. Agora faça o favor de se retirar, de agora em diante vamos tratar direto com seus superiores.

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Aurora não ficou nem um pouco feliz com aquelas palavras, porém limitou-se a se arrastar pelo corredor até desaparecer. - Malditos inquisidores – o velho pensava em voz alta – E você rapaz, trate de fazer alguma coisa útil e me ajude a levá-lo à enfermaria. Não foi preciso falar duas vezes e Chris apoiou Per nos ombros seguindo o velho. ... A enfermaria parecia asseada e bem provida em suprimentos médicos com um equipamento médico digno de dar inveja a qualquer hospital público, o que não é lá um grande elogio. Como tudo naquele andar, estava vazia, sem nenhuma enfermeira ou médico. Per sangrava por todo o chão, sua barriga tinha um talho do tamanho de uma lata de cerveja. Chris o colocou em cima da cama enquanto o velho ajeitava o equipamento para aplicar soro, depois disso ele simplesmente sentou em uma das cadeiras e acendeu mais um cigarro.

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- E agora? O senhor não vai fazer nada?! Ele precisa de cirurgia ou sei lá... Olha o tamanho desse negócio – seus dedos tremiam ao apontar para o ferimento. O velho deu um suspiro impaciente e tirou os óculos. - Ele é um Avohay, não precisa de porra nenhuma além do soro. - Mas... - Quantos anos você tem? - Dezesseis... - Está ferido? - Não... - Então cale a boca porque eu sei o que estou fazendo. Odiava se sentir tão incapaz, a maioria das pessoas que ele conhecia nunca tinha parado para olhar duas vezes quando ele estava na merda. Per tinha acabado de salvar sua vida. - O que é um Avohay? Aquela doida o chamou da mesma coisa. - Avohay é um cara que foi amaldiçoado a viver para sempre nesse mundo de merda, não é uma entidade, não

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é ser mágico e muito menos um anjo - tragou o cigarro – É só um cara que não pode morrer. Está aí uma coisa bem difícil de engolir, mas naquela altura do campeonato onde demônios pareciam porcos cruzados com gente e elevadores abriam a base de bolinhas de gude nada mais surpreendia. - Se ele não pode morrer, então por que o soro? – Chris fez questão de soar cético. - O fato de estar vivo não garante que ele continue útil, seu corpo gasta energia demais para se remendar. Sem glicose ele pode até não morrer, mas vai ficar vegetando o que para mim dá na mesma. - E se... - Estou cansado garoto – ele limpava as lentes – Acho que você também está. Que tal ser bonzinho e ir dormir um pouco? Prometo que vou cuidar de tudo por aqui. Realmente estava exausto, mesmo achando que dificilmente conseguiria dormir se deitou cama ao lado, minutos depois o sono o arrebatou.

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Lendas dizem que duas pessoas podem compartilhar laços tão poderosos que transcendem a necessidade do uso de palavras, a maioria das vezes lendas não passam de puro romantismo barato para encantar os mais ingênuos. O que essas lendas diriam sobre ter laços com demônios? Chris não precisou de palavras para saber que o dono daquele corpo desejava a moça que estava correndo sozinha na orla, porém não do jeito que você está pensando. Ele olhou em volta para ter certeza que não seria interrompido e então pulou tão alto que parecia por um momento que iria voar. Tudo que veio depois foi fragmentado em imagens confusas, o terror dela quando ele a dilacerava e o barulho dos ossos se partindo entre os seus dentes. A criatura sentia nojo do ser humano por causa de sua existência vazia, mas adorava a maneira que eles choravam antes que a vida lhes fosse tirada e mais ainda do gosto de sua carne. Porém ele não podia deixar a diversão o distrair de suas obrigações, ainda mais agora que seu corpo começou a mudar de novo e seus tentáculos ficaram maiores e diferentes de uma maneira que lembravam patas de aranha.

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Precisava comer para mudar, mudar para ficar mais forte, mais forte para cumprir sua missão. ... Chris acordou sentindo cheiro de café fresco e deu um pulo quando viu Per tomando uma caneca ao lado de sua cama. Sem nenhum sinal de ferimentos ou coisa parecida, nem parecia que tinha acabado de ser atravessado por uma espada. - Vai um cafezinho aí? - Caralho! O velho rabugento não estava mentindo, você é imortal mesmo... - Eu costumo escutar muito isso – colocou uma muda de roupas em cima da cama – Te explico melhor o que aconteceu no caminho, você tem um compromisso para o qual já está atrasado. - Compromisso? - Isso mesmo, assim que se vestir vamos sair. Do outro lado da enfermaria o velho rosnou. - As duas mocinhas querem ter a bondade de fazer silêncio, estou tentando assistir TV.

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- Pelo visto você já conheceu o Chaim, um amor de pessoa não acha?! – levantou a voz só para provocar o velhote que respondeu mostrando o médio. Per fez um sinal para o garoto tornando-o seu cúmplice da brincadeira e Chris começou a rir sem perceber. Pouco antes de deixarem a agência, o tal do velho Chaim entregou um relógio para o garoto. - Você deve usar esse relógio e não vai tirá-lo não importa o que aconteça, entendeu? O pôs em volta do pulso e passou a admirá-lo, um belo relógio sem dúvida. - Obrigado. O velho estalou os dedos de forma impaciente. -Entendeu? Não serve só para ver as horas, é um talismã que vai impedir o Escarlate de sentir a sua presença ou ver dentro dessa sua cabecinha gorda. Estou falando sério garoto, usar esse relógio pode ser a diferença entre continuar respirando e ter aquele monstro comendo a suas tripas. - Ei Gordelo é hora de ir! – chamava Per da porta.

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Ele também ganhou um “presente”, uma grande maleta prateada que tinha mais de um metro e meio de largura e pelo visto era bem pesada. Chris trocara seu uniforme da pizzaria por uma camisa xadrez e uma calça caqui. Era uma roupa confortável, apesar de ele não se imaginar vestindo aquilo de novo. Pouco tempo depois os dois voltaram ao carro e desciam a avenida principal. - E aí? – o garoto começou. - E aí o quê? - Você disse que explicaria o esquema do avôpai. - Avohay – pensou um pouco – Sei lá, não tem muito para explicar. Vamos dizer que eu era um cara normal assim como você e acabei fazendo muitas coisas erradas por causa da garota errada e irritei as pessoas erradas que me amaldiçoaram a ser assim. Fez a curva do trevo e o carro entrou na rodovia. - Falando em voz alta soa bem idiota. - Hum esperava um pouco mais de detalhes... As luzes piscando, foi você?

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- Ah, com certeza – agora sua voz começou a soar igual a do velho Chaim – quando se está na estrada tanto tempo como eu, você aprende um truque ou dois. Ele não escondia o quanto a expressão de surpresa do garoto o divertia. - Aliás, meu chefe não ficou nada contente com o nosso encontro com a Aurora. - Vocês pareciam se conhecer. - Já trabalhei com ela algumas vezes, péssimo gênio. Mas é o que dizem “uma boa mulher é diferente de uma mulher boa e normalmente uma mulher boa não é uma boa mulher”. Aquele papo teria de esperar, pois o carro tinha acabado de parar em frente a um prédio que ficava na beira da estrada. Depois de trocar duas palavras com um cara na portaria, aparentemente um conhecido, Per estacionou o carro perto da entrada. Letras estilizadas compunham o letreiro que dizia “Boate Gruta Azul”, não preciso dizer do que realmente o lugar se tratava. - Promessa feita é promessa cumprida – disse Per com um largo sorriso. - Isso é uma zona! Peccatori – V. E. Simeoni


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- Zona não, casa de relaxamento. - Sou menor, não posso entrar aí... - Com dinheiro se pode ir a qualquer lugar. Per desceu do carro e fez sinal para que o seguisse. Antes de atravessarem a porta da recepção, Chris agarrou seu braço. - Espera... - Você não vai dizer que não curte a fruta, né? - Não é isso – Chris olhava para os próprios pés – É que eu ainda não... - Ah então é isso, não precisa ficar nervoso, é só você... Como posso te explicar? – pela primeira vez estava sem palavras, ele coçou a cabeça então disse – Você já andou em um carro velho em dia frio? O rapaz fez um sinal afirmativo com a cabeça. - Uma dama é como um carro velho em dia frio. Você não pode simplesmente subir e esperar que ela já saia andando, entende? – colocou o braço em volta do garoto e seguiram pela porta – Precisa esquentá-la primeiro antes de subir, você quer que ela se divirta também, não quer?

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Mais uma vez ele só balançou a cabeça. - Você tem que relaxar para tudo dar certo – tirou uma chave com o número dezenove do bolso – Tem uma paraguaia linda te esperando nesse quarto, já está tudo acertado. Entregou a chave para Chris e lhe deu um tapinha no ombro. - Agora vai lá e me deixe orgulhoso! Apesar do frio na barriga não ter passado, Chris se sentia mais confiante e foi para o quarto dezenove. Lá dentro estava tudo meio escuro, mas nada que pudesse impedi-lo de enxergar a deusa que estava deitada em cima da cama, simplesmente perfeita, qualquer adjetivo que fosse menos que isso seria uma injustiça com a beleza da moça. Ela fez um sinal para que Chris se sentasse ao lado dela e ele obedeceu com certa relutância. Seu perfume era embriagante, ele poderia ficar se deliciando naquele aroma o resto da vida que seria feliz e mesmo assim seria feliz. - Oi coração – uma voz sedosa. Gaguejando ele devolveu o comprimento. Peccatori – V. E. Simeoni


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- Como estamos com vergonha – ronronou como a gata que era - a Marin aqui sabe o que você precisa. A mão dela foi para o seu membro que quase explodia dentro das calças, em seguida ela lhe deu um singelo beijo no rosto.“É agora! Puta merda é agora!” por dentro ele vibrava, porém quando a mão dela tocou suas costas ele se lembrou dos malditos pelos. Então impediu que ela abrisse sua camisa e se levantou para ir embora. - O Janick me falou do seu pequeno probleminha, não precisa ficar assim porque querido – ela segurou seu braço - Você é o meu tipo. - Janick? - O amigo que te trouxe aqui. - Ah... - Minha irmã também tinha problemas hormonais, não precisa ter vergonha – ela desceu a camisa revelando a trilha de pelos, passou os dedos pela crina – Adoro homens peludos, é mais másculo. Talvez ela só estivesse dizendo àquilo para que ele se sentisse melhor, e quer saber? Não importava mais porque o que se seguiu foram os três minutos mais

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incríveis de sua vida, sorte que tinha tempo de sobra para uma segunda ou terceira rodada. Per ficou esperando no bar da boate enquanto jogava conversa fora com a garçonete, o clima descontraído acabou quando a programação foi interrompida para um boletim especial. - Família é massacrada em Laguna. A polícia não revelou detalhes, mas a principal suspeita é a mãe que está desaparecida – anunciava a âncora. - Minha nossa... Esse mundo está perdido – falou a moça. Per mexeu o limão dentro do copo de coca. - Está perdido mesmo. ... Finalmente chegou o dia do julgamento, no instante que chegaram ao fórum estava claro que alguma coisa não estava certa. Estacionamento e calçadas quase vazias com pessoas se aproximando e depois dando meia volta como se tivessem esquecido o que tinham ido fazer ali.

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- Encanto de runas para espantar curiosos, muito esperto – murmurou Per – Deve o mesmo encanto que ele usou na fábrica. - Faz sentido, mas por que eu consegui entrar na fábrica então? - O seu medo daquele chefe idiota era muito mais forte que qualquer feitiço. Dentro do porta-malas estava a maleta que Per recebeu na agência e ao abri-la revelou uma katana de aparência nobre e imponente, sua bainha era feito de madeira nobre com inscrições em uma língua estrangeira. - A Espada do Eco Silencioso, fundida a partir dos ossos de um Escarlate – o metal avermelhado refletia a luz – Só pode haver um! Chris tinha um enorme ponto de interrogação no lugar do rosto. - “Eu sou Connor Macleod do clã Macleod”... Continuou com a mesma cara de quem não estava entendo nada.

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- Porra... Devo estar mesmo ficando velho – resmungou Per – Antes que eu esqueça, tenho uma coisa para você. Pegou um revolver preso embaixo de um fundo falso no bagageiro, checou o tambor para conferir se estava carregado e tirou a trava. - Ele vai estar nos esperando, o talismã não vai deixálo sentir você, então quero que se esconda – entregou a arma para o rapaz – caso eu não consiga pará-lo você vai ter que fugir e se não conseguir, quero que use isso, entende o que eu digo? Cada palavra, só não tinha certeza se teria coragem quando chegasse a hora. - Vamos lá. - Per... Chris olhava para ele com os olhos cheios de água, tentava segurar as lágrimas. - Só queria agradecer sabe... Por me salvar e tudo mais.

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- O que é isso Gordelo você já é meu parceiro lembra? Vamos sobreviver a essa merda toda e a próxima visita a Gruta Azul vai ser por sua conta, fechado? Ele limpou os olhos e então guardou a arma no bolso. - Fechado. O interior do fórum estava coberto de teias por todos os lados, aqueles que tiveram o azar de estar no prédio naquele dia foram transformados em estátuas feitas de casulos humanos. Não havia mais nada que pudesse ser feito por essas pessoas, às vezes é só uma questão de puro azar. Os dois passaram pelos corpos em silêncio e alguns deles continuavam do mesmo jeito que estariam em um dia comum, o que fazia pensar que eles nem viram o que aconteceu antes de serem mortos. Outros já não tiveram tanta sorte, presos em um eterno misto de surpresa e pavor. Nenhum sinal do Escarlate até então, a calmaria só aumentava a expectativa do que estava por vir. Per fez um gesto para que Chris não fizesse barulho e se escondesse, então abriu a porta do tribunal. Quase que imediatamente após colocar os pés para dentro do salão, um enorme pedaço de mármore veio voando em sua Peccatori – V. E. Simeoni


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direção o dando uma fração de segundo para desembainhar a espada e parti-lo ao meio antes que o esmagasse. Uma arma poderosa, mármore ou não, o corte foi limpo e certeiro que não deixava dúvida. - É um belo brinquedo esse seu, assim que terminar aqui conversaremos – era o Escarlate em toda sua perversidade. Aparentemente eles não eram os primeiros a tentar frustrar seus planos aquele dia, em uma de suas mãos ele a segurava. Aurora tinha um tufo de teias nos lábios que a impedia de gritar, mas não evitava que chorasse, toda a coragem havia lhe sido roubada pelo monstro. Dava quase para sentir seu desespero quando o Escarlate abriu a enorme boca e arrancou sua cabeça do pescoço, as pernas ainda resistiram em um último chacoalhar antes que ele atirasse o corpo para longe. “Isso promete ser uma pedreira” – pensou Per. No banco dos réus, preso por teias como todos os outros, o Palhaço Pingo assistia tudo com indiferença. Seus olhos eram vazios e um fiapo de saliva pendia pela sua boca como se estivesse chapado.

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- Ainda dizem que inquisidores são o melhor que a santa igreja tem a oferecer – o Escarlate desdenhava – E você homenzinho, também é cão da igreja? - Na verdade trabalho para a mesma agência que a ruiva que você deixou para morrer na fábrica, eu e você temos contas a acertar. -Ruiva? Ah sim a ruiva – deu uma risada com aquela voz grave – lembro que ela feriu um de meus servos e isso é admirável, tenho de admitir, mas também lembro de como chorou para que não a deixasse para morrer sozinha no escuro. -Ela fez muito mais que isso, se não fosse por ela eu teria conseguido chegar a tempo de te impedir. Para falar a verdade você é bem maior do que eu esperava... Bem maior. - Seu tolo, quer tanto ter o mesmo destino dos outros? Mesmo depois do aviso que deixei na fábrica você ainda teve coragem de vir atrás de mim? - Aviso? Aquilo só me deu mais vontade de te fazer comer suas próprias tripas. A criatura soltou um rugido que fez as paredes tremerem e então desembestou como um rinoceronte

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em direção ao imortal. Se a intenção era intimidar, aparentemente não tinha funcionado, pois Per nem se mexeu. Ele tomou posição, a adrenalina subia aguçando seus sentidos de uma maneira que não existia mais nada no mundo além dele e seu adversário. Cada passo do Escarlate fazia o chão trepidar... Tão perto... Já podia sentir gosto de seu líquido espinhal... Tão doce... Iria esfolá-lo vivo por horas... Tão... Quando o monstro estava em cima de Per pronto para transformá-lo em pedaços, ele se jogou de costas no chão passando entre as pernas do Escarlate. A velocidade era tanta que o demônio não teve como parar e saiu capotando por cima dos bancos do tribunal. Não iria acabar tão fácil assim, ele tentou se pôr de pé para o próximo ataque e desabou. Alguma coisa estava errada, foi aí que notou que algo estava falando, sua perna havia sido decepada e jazia ao lado do homenzinho. Pernas não eram necessárias para quem tinha oito patas de sobra nas costas, agora passou a se mover como uma aranha ardilosa. Deu um longo salto, ágil demais para um monstro daquele tamanho, e com suas patas

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derrubou Per no chão para depois tentar pisoteá-lo furiosamente. O imortal desviou dos tentáculos rolando no chão, girou as pernas e se levantou cortando duas patas do monstro que urrou. Mal imaginava Per que o Escarlate tinha uma carta na manga, os tentáculos jorraram fios de teia o prendendo, primeiro as mãos e depois o tronco. A única coisa que ele conseguia pensar naquela hora era como se sentia aliviado da teia sair dos tentáculos e não da bunda dele. - Desgraçado! – Chris entrou na sala atirando. Apesar das balas não causarem nenhum dano na criatura além de pequenas pontadas, ele tinha conseguido chamar sua atenção. - O prato principal pode esperar um pouco – disse o Escarlate. Ele puxou o gatilho até a arma não fazer nada mais do que cliques secos, então se virou para correr, mas foi capturado antes de conseguir dar o terceiro passo. O demônio o encarava com certa curiosidade, se não fosse pela cara monstruosa podia até se dizer que ele estava se divertindo.

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Repentinamente o braço que segurava o revolver foi arrancado em um único puxão. No mesmo momento em que perdeu o braço, Chirs teve um turbilhão de imagens e memória invadindo sua mente. Pessoas correndo pelo fórum, a mulher que corria na orla e uma multidão de criaturas iguais aquela se empurrando em uma ravina árida, aquilo era demais para seu cérebro aguentar. Pelo visto ele não era o único, o Escarlate guinchou em agonia antes de deixá-lo cair no chão. O sangue jorrava do lugar onde antes estava o braço, ele se arrastou até o seu membro decepado e só então notar que o talismã tinha ficado no braço que agora não era mais seu. - Criança idiota, não percebe que ele mentiu para você?! – estranhamente o monstro estava apavorado – não existe cura, nunca existiu. O Escarlate mancou até o banco dos réus e usou a unha comprida para cortar a garganta do Palhaço Pingo. Os olhos do homem começaram a brilhar e uma onda de vento tomou conta da sala quando um vórtice se abriu sobre ele.

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- Ninguém vai impedir o ritual, o portal vai se abrir e essa terra de ninguém vai se transformar no próximo círculo do inferno! Chris estava mais confuso do que nunca quando uma lâmina atravessou seu coração. E então tudo fez sentido. - Sinto por isso por Chris, mas tem de ser assim – murmurou Per no seu ouvido – Precisa ser o sangue de um Dependente para fechar o portal, só o equilíbrio é verdadeiro. Sua vista começou a ficar embaçada e dava para sentir o sangue subindo pela garganta. - Você me matou... Você... Enquanto o vento começava a soprar mais forte ele sentia energia queimando como fogo dentro das veias e seus olhos brilhavam agora. Chris não queria morrer, “cedo demais para isso” pensou, engraçado como naquela hora ele não conseguia sentir raiva, estava mais para algo diferente... Tristeza? Talvez fosse isso, pesar pela vida que ele poderia ter tido. Tudo terminou com uma grande explosão que varreu o Fórum do mapa.

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No dia seguinte as autoridades tentavam encontrar uma explicação para o que tinha acontecido, o que teria explodido o fórum? As teorias iam desde um vazamento de gás a ataques terroristas, mas isso não importava mais, só restava ficar de luto pelos mortos e tentar esquecer o episódio. ... Horas depois saiu debaixo dos destroços, ele estava ferido, mas pelo menos ainda estava vivo. Aqueles humanos idiotas ficaram tão perplexos tentando entender o que tinha acontecido que nem notaram quando ele se escondeu nas sombras até que o melhor momento surgisse. O Escarlate tinha conseguido sobreviver à explosão causada pelo ritual falho, sua hospedeira não tivera a mesma sorte. Agora ele tinha sido reduzido ao que sempre fora, um monstro porco com cara de gente. “Não faz mal” pensava, era questão de tempo até o próximo portal aparecer e ele só teria de ser paciente. De um beco escuro observava uma garçonete colocando o lixo para fora, não seria a sua primeira escolha como hospedeira, mas teria que servir por enquanto.

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- Achou mesmo que eu iria me esquecer de você? – disse a voz atrás dele. Per tinha a aparência de quem acabara de sobreviver a um incêndio. O pequeno monstro tentou fugir, todavia uma pisada foi tudo que preciso para que ele não pudesse correr mais. Doía, mais do que qualquer dor que ele havia experimentado antes e assustava, assustava muito. - Lembra do que eu disse sobre te fazer comer suas próprias tripas?

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Epílogo

Chaim entrou no bar, puxou um banco e pediu uma dose de uísque puro para o irlandês que estava atrás do balcão. - O bispo ligou de manhã, ele ficou aborrecido em saber da morte da Aurora – acendeu um cigarro – Também ficou muito satisfeito com o saldo final da missão. - Bom para ele. - Você não aparece na agência há dias, quanto tempo isso vai durar? - O tempo que eu achar que for preciso. - O garoto já estava morto desde o momento em que foi mordido e você sabia disso. Se servir de consolo, fechar aquele portal e matar aquela coisa salvou muito mais gente. Nenhuma resposta, só silêncio. Chaim então abriu a pasta que carregava consigo e deixou um arquivo no balcão.

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- O chefe mandou mais um trabalho, um menino desapareceu em São Valentim há algumas semanas. Tem muita gente sumindo por aqueles lados ultimamente, então talvez seja um trabalho mais complicado do que parece. Antes de ir embora, Chaim parou na porta, acendeu um cigarro e deu uma longa tragada. - Hum... Parece-me que até você tem um coração. - Às vezes esse é o problema.

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JABES LUIZ MARIANO __________________________________________________

"o mito é o nada que é tudo" FERNANDO PESSOA


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“Jabes invocou o Deus de Israel: Se vós me abençoardes, alargando meus limites, se vossa mão estiver comigo para me preservar da desgraça e me poupar da aflição!... E Deus lhe concedeu o que tinha pedido.”

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Do alto dos meus 40 anos, folheio um caderno de memórias de minha mocidade, meus vinte anos. “Suzano – Jabes”, diz a capa. Meu nome, e o nosso amigo Jabes. Jabes, como poucos ateus sabem (além de mim, claro), aparece no meio de um livro indigesto da bíblia, o tal de crônicas. Uma montoeira de genealogias, nomes pra lá e pra cá. Quase nenhum comentário sobre os cidadãos. E, no meio do nada, um tal de Jabes ganha primazia; um cara qualquer, que fez uma oração lá e se deu bem na vida. Fácil, não?! Esse caderno era pretensioso: tinha a intenção de anotar os “milagres fantásticos” que me aconteceriam. Tudo isso por causa de um momento terrível que eu estava passando na época – tal como o que estou vivendo agora, desempregado, sozinho, desanimado – um homem solteiro na flor da idade, Recife escaldante, minha cidade querida, e as mulheres todas fáceis, despudoradas, menos as que eu queria. Da mesma forma que hoje, eu mamava nas tetas dos meus pais: não trabalhava, era um bom guitarrista, mas não sabia me posicionar na rede de músicos aqui do nordeste. Parecia até que eu era de outro lugar. Reservado, recatado. E todo mundo só calor e barriga tanquinho.

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Mas estava eu falando do caderno. Bem; na época era espírita, nem fervoroso, nem desapegado; acreditava platonicamente, sem participar. Sofria de ansiedade, me sentindo inútil, estava só, já não conseguia mais pegar todas nas baladas. Me aparece então um livro de um escritor protestante, algo sobre esse tal de Jabes, que contei a história. Basicamente a coisinha dizia que, se eu rezasse uma tal oração pequena lá, milagres aconteceriam! Bastava que eu acreditasse no “poder da oração”. Nunca acreditei nessa coisa de oração, mas fazer o quê? Estava clamando por água no deserto. Vi uma miragem e segui em frente. No estado em que eu estava, aceitava qualquer ajuda. Gnomos? Bora. Santo Daime? Manda ver. Ritalina? “É nóis.” E assim, desafiei o livro: iria crer, cegamente, durante um mês. O próprio autor dizia isso, “se em um mês não tiver resultado garantimos seu reembolso”, algo assim. Não, mentira... Mas, enfim, ele me convidava a desafiar deus, ou a tal da aleatoriedade universal. E eu deveria também tomar nota dos milagres. Antes de começar, pasme, fiz uma lista dos milagres que poderiam acontecer. O mais impossível era arranjar uma namorada. Sim, senhores. Minha autoestima estava nesse estado. “Ora Suzano, mas aí fica muito fácil!” Aí

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que estava o segredo: a percepção do que seria milagre ou não dependia do ponto de vista de quem faria a oração. Pois. Já no primeiro dia, 12 de fevereiro (que passou a ser “abençoado”), o primeiro MILAGRE! Sim, em caixa alta. Joguei futebol de botão com meu irmão, Rogério. Pode rir o que quiser, mas você faz noção de quantos anos eu queria jogar com ele? Era um modo de nos aproximarmos, de curtirmos a companhia um do outro, rirmos juntos... e praticamente não tínhamos isso, eu sempre o convidava, ele sempre arranjava uma desculpa e, mesmo quando confirmava que iria jogar comigo, um outro amigo o sequestrava para alguma balada qualquer. Pois desafiei a deus: após meu irmão simplesmente ME CONVIDAR para jogar mais à noite, duvidei, fiz questão, inclusive, de escrever isso no caderno. E nós jogamos. Jogamos futebol de botão. Inacreditável. No dia seguinte, um impasse: se na oração se dizia que eu não sentiria aflição, foi o que senti. Saí com meus amigos e fiquei sem carona, tive que passar por um lugar perigoso, medo à tona. E agora? Cadê, Jabes? E ainda foi mais por sacanagem dos amigos, tudo bem, eles se deram bem, mas e eu? De novo, sozinho. Bom, resolvi ver pelo copo metade cheio: não fui assaltado.

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Passo os dedos nas páginas. Aflição, angústia continuavam a rondar; mas uma surpreendente dose cavalar de acontecimentos inesperados, pequenos e salientes, pipocava. Jabes neles! E, exatos um mês após começar essa loucura, aconteceu. Eu simplesmente fui convidado para tocar com os melhores músicos de Recife, num dos lugares mais badalados, tocando um repertório que quase nunca vejo por aqui, e que sou extremamente fã: Pink Floyd. Mas, como isso? Como, eles me convidaram? Eu nunca tinha tocado muito na cena musical, só em apresentação de escola de música, e olhe lá... e eles me convidaram. Se isso não é ver duendes, eu não sabia mais o que era. E o show foi no mesmo mês, deu tudo certo, tudo lindo, poético, as pessoas na plateia em êxtase, acertei todas as notas nos solos... A sequência de pequenos milagres continuava, até que: fui chamado para substituir o guitarrista da banda “Gonzagsom”. Quer saber a data? 12 de abril. Sim; mesma data. Mesmíssima data. E essa era uma banda que tocava Luiz Gonzaga com uma roupagem estilizada, inovadora, forte, densa. A essa altura do campeonato eu não estava mais tentando descobrir o porquê, ou sobre a falta de critério com a escolha de qual oração que devia ser atendida (“e as crianças desnutridas da África?”). Não Jabes – Luiz Mariano


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Suzano, a tua vida tinha virado de cabeça para baixo, em dois meses tinham acontecido mais graças que em vinte e poucos anos... Algumas aflições? Joga pra debaixo do tapete! Em time que está ganhando não se mexe. Maio chegou e com ele a notícia atômica, cósmica, de que David Gilmour iria fazer um show em Recife. Gilmour. Recife. Não vinha a essa coisa calorenta desde o quê, há 10 anos? Veio para cá um dia? Eu não sabia. Só tinha certeza de uma coisa. Jabes. Era muita coincidência, e eu tinha aprendido a não acreditar em coincidências. Um minuto de oração fervorosa e pronto, uma borboleta lá na Nova Zelândia trazia o David fuckin Gilmour pra cá. O mesmo que tinha me dado uma palheta há cinco anos, quando fui em São Paulo, entrei no camarote, e ele deixou que eu tocasse na sua guitarra. Não acredita? Nem eu. E junho? Também teve milagre. Um que acontece uma vez na vida (ou várias, dependendo do Jabes...). Sabe aquelas mulheres que você é amigo, mas sabe que nunca vai beijar? Aquelas musas, que se parecem com princesas? Tão fodamente bonitas, que você não consegue nem ficar à vontade, mesmo sendo sua “amiga”? Pois é. Eis que, você, meu caro amigo qualquer, desempregado, solteiro e derrotista, diz que

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vai à livraria, ler um livro. Ela diz que vai também, e lá te rouba um beijo de repente, e é isso. Você ficou com uma ninfa, e agora? Agora vem julho, é o que diz o caderno; e David Gilmour. E Suzano no hotel conversando com David Gilmour. E David Gilmour dedicando uma música pra Suzano, no show do dia seguinte. Você pode até não acreditar que isso é milagre, meu caro. Mas que dá vontade, ah, dá. É... Dá vontade de ser crente de novo. Acreditar piamente. Fadas e gnomos. Mas espere, tem mais! Chegamos ao fim de nossa jornada. Eu, artista e virgem, me coloco num desafio: não iria me masturbar enquanto não conseguisse trepar com uma mulher. E, no mês após David Gilmour, Não só trepo, como começo a namorar a mulher da minha vida, minha primeira namorada, a mulher que mais amei. Sim; o milagre mor, o milagre maior, a prova que Deus existe, a coroação de Jabes. E que me foi roubada no mês seguinte por um motorista bêbado que subiu na calçada, quando voltava do mercado, na minha frente.

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NOSSA FAMÍLIA ROSCA J. R. TUDOR __________________________________________________

"Eu nunca bebo... vinho" DRÁCULA DE BRAM STOKER


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Eu sou o Haroldo, macho e hétero

Passei as férias visitando meu avô paterno. Eu gostava do velho, mas isso era uma espécie de castigo disfarçado. Meu nome é Haroldo, que é nome de velho ou viado. Imagine quando eu estava na terceira série e os colegas

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descobriram o personagem criado por Chico Anísio. Minha mãe, amante de História, insistia para eu explicar aos meninos que esse foi o nome de um grande rei viking. Meu pai dizia para abrir a cabeça do garoto mais forte da turma com um tijolo e tudo se resolveria. Acontece que, para mim, era difícil explicar qualquer coisa, pois, além de nessa idade a zoeira sempre ganhar da razão, eu não tinha muita afinidade com a fala. Já na primeira série ganhei o apelido de Aranha, que veio de Boca de Aranha, originado do fato de eu nunca falar, consequentemente ali estaria cheio de teias de aranha. Minha falta de comunicação não era originada de burrice. Não entenda mal, eu era burro, mas o maior problema foi a extrema timidez devida principalmente a meu porte físico. Isso explica também minha dificuldade em resolver as coisas na base da violência, como meu pai sempre estimulava. Até a quarta série eu era baixinho, menor que qualquer menina da minha classe, e muito gordo. Não um gordo engraçado e simpático, era idiota demais até pra isso. Com o tempo a coisa não melhorou. Da quinta pra sexta série fui submetido a um tratamento de hormônios para ganhar altura, o que funcionou. Não fiquei alto, mas pelo menos entrei na média. Porém engordei ainda mais e minha feiúra também aumentou. Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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Meu pai foi um renomado major da Força Aérea Brasileira. Conseguiu uma faixa preta de Caratê e uma série de troféus antes dos 17 anos além de quase ir para as Olimpíadas. Suas menores notas estavam acima de 8 e meu avô sempre contava orgulhoso como meu pai tinha todas as meninas em suas mãos. Contava ainda mais orgulhoso como ele conquistou minha mãe, que era a garota mais bonita do bairro. Sim, meus pais foram um casal de cinema. Nem comecei a falar sobre minha irmã mais velha. Se sou assim é porque a fizeram com tudo de melhor e sobrou eu, a placenta. E Placenta era como as amigas de minha irmã me chamavam. Doía como minha irmã sempre me tratava bem e defendia de todos. Nunca entendi se era por compaixão ou amor verdadeiro. Mas doía para valer minha estupidez com ela. Mesmo assim não tirava o sorriso de seu rosto. Sendo a vergonha de meu pai e o fardo de minha irmã vocês podem começar a entender como minha autoestima se desenvolveu. Não bastando isso minha mãe era a professora de História em minha escola. Mãe super protetora, que achava que eu podia ser tudo que quisesse, bastava ter vontade. Realmente me esforçava e obviamente ela percebia isso, pois burro era só eu, mas não faltou por tentar incentivar. Tudo para ela era uma questão de método e, sem querer me fazer de vítima, fui Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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sua melhor cobaia. Tenho certeza que ela se frustrava pela maneira que minha irmã aprendia tudo sem sequer se esforçar ou alguém a ensinar. Ta, não era essa maravilha toda, mas lembremos que dois anos depois de ela nascer eu vim ao mundo, então talvez o fato que nosso contraste a fizesse parecer mais maravilhosa para todos pode explicar um pouco de seu amor para mim. Quase reprovei a oitava série. Graças a um mutirão de pessoas me ajudando a estudar intensivamente por um bimestre inteiro, mais a recuperação, cheguei ao primeiro colegial. E é nesse contexto que estou passando as férias com meu avô. Ele é um policial militar velha guarda, já aposentado há muitos anos. Sua carreira foi brilhante, dentre seus dois diplomas o que mais tem orgulho é o de Matemática, conseguido antes de entrar para a PM, e que me ajudou a estudar para a matéria que eu tinha mais dificuldade. Realmente consegui ser ruim em tudo que meus parentes eram geniais. Passar as férias por ali foi uma tentativa de meus pais me afastarem da internet, videogame e amigos fracassados. O que eles não esperavam é que esses dois meses me mudariam tanto que eu voltaria sendo outra pessoa. Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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O livro das palavras não escritas

Eu estava na varanda aproveitando os últimos raios do Sol. Admito que negligenciei isso por muito tempo, e o campo me ensinou como na cidade grande fazemos tanta coisa sem de fato nada ser feito. Sempre estava ocupado demais com algo que não precisava ser feito ao invés de aproveitar o prazer de viver. Todos os dias eu passava incontáveis horas na internet, lendo sobre tudo e aprendendo nada. Ler os livros de meu avô foi uma experiência que me arrependi muito em não fazer antes. Uma coisa era ler em sites aleatórios, mas agora tinha o poder de segurar O Saber em minhas mãos. Mesmo alguns desses antigos livros trazendo conhecimento datado ou errado eles eram tácteis, como pequenos monumentos para o Conhecimento, documentos autenticados a respeito das coisas. Nas cinco semanas que eu estive aqui consegui ler oito livros inteiros e já estava terminando o nono quando meu avô me chamou. - Haroldo, vem cá um pouco - O velho apareceu na porta que dá pro quintal com o avental todo sujo de qualquer coisa que deveria ser de comer - Deixa esse livro um pouco e vem me ajudar a terminar a comida.

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Daqui a pouco seus olhos cairão e você nunca mais conseguirá ler. Sem muita pressa terminei o parágrafo, marquei a página e fui para cozinha. - Daqui a pouco não tem mais livro pra você ler – Praguejou meu avô com bom humor enquanto mexia a panela. - Sopa de novo, vô? - Com esse frio você quer comer saladinha? É sopa de novo. Mas sopa não é tudo igual. Essa aqui tem mais carne, bacon e pimenta. Bom pra fazer crescer uns cabelos no seu peito. Sem entender a relação entre esses ingredientes e cabelos no peito perguntei o que eu precisava fazer para ajudar. Meu avô fechou um pouco a cara, ensaiou dizer alguma coisa, voltou a mexer a sopa e quase um minuto depois me disse em tom bastante sério: - Me agrada muito ver você empenhado numa atividade tão produtiva quanto leitura, mas com esse campão todo me dá um bocado de tristeza ver menino tão novo parado na sombra o dia inteiro.

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- Não tenho com quem andar por ai. O senhor mesmo ta toda hora reclamando de dor nos joelhos e, além de tudo – caprichei na tentativa de carisma – Sol dá câncer. - Larga de ser bocó, rapaz. Vai aprontar. Do lado de lá da rua tem as filhas do Gersinho que ficam em casa sozinhas o dia inteiro. Você tem que ir lá mostrar toda educação e cordialidade que te ensinei. - Mas eu não conheço elas. - É o que acontece quando você fica o dia inteiro lendo ao invés de cortejando. Contra fatos não existem argumentos. Eu realmente queria chegar nelas, mas se nem em festa eu conseguia imagine ir até sua casa e puxar conversa. - Mas, vô, elas são novinhas demais pra mim. Não sei se dá certo. O velho por um instante parou de mexer a panela e me lançou um olhar de compaixão, daqueles que amolecem a alma. - Você tem quatorze anos e elas onze e treze. A mais nova deve ter mais pelinho na buceta do que você no corpo inteiro. E são bem bonitinhas. Mais bonitinhas Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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que sua mão, que ta mais calejada de bater punheta que as minhas de trabalhar com a enxada. Passamos o jantar debatendo minha inaptidão com mulheres e possíveis soluções para esse problema. Impressionante como tantas palavras sábias e sensatas soaram tão vagas e absurdas para mim. Hoje entendo como aquele homem estava muitos níveis acima dos garotos mais pegadores de minha turma. Era outra divisão sobre conquistar fêmeas. Os garotos mais avançados de minha idade faziam aviõezinhos de papel enquanto meu avô projetava naves espaciais. Não foi a toa que eu, o maior derrotado da molecada, não conseguia entender nada que ele se esforçava em ensinar. Eu já terminava de escovar os dentes para ir dormir, quando meu avô me chamou novamente: - Se depender de você ficará lendo até final de janeiro e nada de aproveitar o campo, por isso te faço uma proposta que espero que aceite. Fez uma pausa enquanto abria um tampo bem escondido na escrivaninha, tirando um livro bem grande, com capa de couro tingida num amarelo lindo e vívido.

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- Esse é aquele livro da sua avó. Amanhã vai se apresentar pras meninas, convidar elas pra ir até a cidade tomar sorvete, eu os levo. Se fizer isso te dou esse livro. Meus olhos quase lacrimejaram de emoção. Ouvi um monte de histórias sobre esse livro, tanto sérias quanto piadas. Resumindo, a vida da minha avó era muito dura. Ela perdeu o pai na Revolução de 1932. Sua mãe morreu quando ainda era bem pequena e terminou num orfanato. Esse livro foi a única coisa que conseguiu manter. Também ouvira histórias sobre ele, de que você só consegue ler quando estiver pronto, caso contrário só verá páginas em branco. Quando minha avó finalmente conseguiu sua vida mudou totalmente. Concluiu os estudos em uma boa universidade, conheceu meu avô, constituiu família e teve uma exemplar carreira jurídica. Ela sempre dizia que esse livro não só salvou sua vida como também a fez melhor que poderia sonhar. Eu e mais todo o resto da família pensávamos que era só uma história inventada pelos velhos, mas assim mesmo aceitei o plano mais pelo livro do que por qualquer expectativa de me divertir com as garotas.

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Despertar

Lembro de ter aberto o livro e passado os olhos demoradamente por cada página, mesmo no começo não vendo nada imaginava o que poderia estar escrito ali. Até um momento que minha cabeça foi inundada por um monte de sons, imagens e sentimentos totalmente desconexos que misturavam extremo prazer com muita angústia, quando então perdi totalmente os sentidos. Acordei e, apesar de meus sentidos estarem totalmente nublados, sabia que não reconheceria aquele lugar, e nesse instante meu corpo inteiro começou a doer. Uma dor parecida com a ardência que sentimos após realizar grande esforço físico, mas muito mais forte. Doía demais e eu não conseguia gritar. Então senti um bolo se formando dentro de minha barriga, como se antes estivesse em jejum e do nada aparecesse comida ali. Veio uma vontade de vomitar tão forte que até rolei na cama. Senti meu corpo batendo numa meia grade ao lado do leito e algo espetado em meu braço se soltando dolorosamente. Quando caí no chão frio, vomitei uma pasta avermelhada que parecia creme de milho com sangue, dava pra encher um balde com aquilo tudo e o Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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cheiro era nojento. Após sujar todo chão e derrubar um monte de coisas, vi uma médica ou enfermeira entrando correndo no quarto, seguida por minha mãe. Então entendi que estava num hospital. Depois desse episódio minha memória ficou totalmente fragmentada. Recordo apenas de estar deitado na mesma maldita cama, mas ao menos sabia que era um hospital. Meus sentidos iam e voltavam, não sabia quanto tempo passava desacordado, só que era muito. - Oi moça, faz tempo que estou aqui? Eu não enxergava a enfermeira, mas conseguia sentir que uma mulher estava do outro lado do quarto. - Haroldo, espera um pouco que vou chamar alguém. Rapidamente todos meus sentidos voltaram ao normal. Alguns segundos depois entraram meus pais, me olhando com uma expressão de felicidade que nunca vi antes apontada para minha direção, e logo atrás veio um médico muito simpático e falante que explicou como fiquei desacordado por um mês e meio, perdi muito peso e assim mesmo estava bem. Meus pais choravam e riam felizes. Disseram que minha irmã me Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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visitou todos os dias e ficava conversando comigo. Depois da aula ela voltaria para me visitar. “AULA?” pensei. Foi nesse momento que entendi quanto tempo realmente tinha apagado.

Voltando para casa

Tive alta no hospital poucos dias depois. Eu não apenas estava recuperado como também diferente. Meu corpo inteiro secou de gordura e meus músculos se desenvolveram. Também escutava sons, enxergava cores, sentia cheiros e sabores que nunca sonhei que existiam. Até me sentia bem viril! Os médicos tentaram me segurar no hospital para entender o que houve, mas meus pais decidiram que era melhor terminar minha recuperação em casa. Eu era outro garoto, e ninguém conseguia explicar como aconteceu. Apenas fiquei muito feliz de sair do hospital. Passei alguns dias em casa, saindo apenas para o quintal. Pouca gente lembrou que eu existia, mas meus poucos amigos apareceram eventualmente para me visitar.

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Primeiro a aparecer foi o Magno, que não me reconheceu. “Nossa cara, que bomba você tomou?” Perguntou umas dez vezes durante a conversa. Sempre o achei tranquilo e agradável, mas no momento os cacoetes, repetições e falta de higiene que todos apontavam ficaram totalmente evidentes para mim. Percebi que ele era o cara mais chato que eu já conheci. Como nunca percebi isso antes? Não é a toa que sou o único amigo que ele tem. Todos o evitavam, agora eu entendia o motivo e tudo que queria é que ele fosse embora. Depois de três minutos, talvez menos, todo assunto exauriu. Outrora tenho certeza que poderíamos passar horas falando sobre qualquer besteira, mas eu não tinha vontade de perder meu tempo com esse cara. - Magno, quero descansar. Vai embora. Eu nunca teria falado isso. Falei com tom extremamente seco e autoritário, sem nem pensar no que estava dizendo, ou como o fazia. Por um momento achei que ele começaria a chorar, mas no fundo eu não ligaria nem se cortasse os pulsos na minha frente, só não desejei isso porque achei que seria nojento ver meu quarto banhado no sangue daquele cara. Mas contrariando minhas expectativas ele abriu um sorriso extremamente amistoso e feliz enquanto dizia que “é

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melhor te deixar descansando”. Sem nenhuma cerimônia ou rancor se levantou e foi embora. Algumas poucas horas depois do Magno ir embora veio minha melhor, e única, amiga fêmea. Raquel também era a garota de quem eu era o melhor amigay. Batia punheta todo dia pensando nela. Todos os dias sonhava ser seu namorado. E todo momento desejava estar com ela, mesmo quando a via com outros rapazes. Mas no momento que ela pisou em minha casa toda essa vontade passou. Não me entendam mal, não virei viado, mas aquilo é mulher pra gente comer escondido e nunca mais olhar pra cara. Seu olhar embasbacado, cheiro de cio misturado com cigarro vagabundo e falta de banho mostraram outra garota. Ela conseguia feder mais que o Magno, que era muito fedido. Quando passou nosso choque inicial me esforcei para manter o interesse no monte de bosta que ela falava como se palestrasse na ONU. Sempre achei que ela tinha o dom de falar coisas inteligentes de um jeito bonito, mas comecei a entender o quanto ela não dizia nada. Então, antes que morresse de tédio, comecei a transformar tudo que ela dizia em putaria. Eu não estava sendo genial ou eloquente, mas qualquer coisa que eu Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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dizia funcionava em fazê-la sorrir toda sem graça. Isso nunca aconteceria antes. Então quando aquilo começou a me divertir resolvi tacar o foda-se e ver o quão longe conseguia levar aquela situação. Primeiro fui chegando cada vez mais perto com nossos rostos, falava umas besteiras e continuava me aproximando. Até que resolvi parar de gastar palavra e roubei um beijo. Foi meu primeiro beijo. Uma porcaria de beijo, mas tinha que ver como era. Antigamente ela era cheia de “não me toque” comigo. Aparentemente só comigo e mais uns otários, como o Magno. Olhando esse momento não da para imaginar nas quantas vezes me humilhei tentando sequer ficar com essa garota, mas na primeira, e última, vez que tentei a roubar um mísero selinho a desgraçada ficou mais de mês sem olhar pra minha cara. Rachel tentou falar alguma coisa, mas tapei sua boca para ouvir onde meus pais estavam. Ela ainda achou graça da maneira rude como a calei. Mais um pouco de força e acho que arrancaria seus dentes. Isso foi o sinal que faltou para ter certeza que essa garota faria tudo que eu quisesse. E fez. Peguei nos seus peitinhos, os coloquei na boca, meti o dedo dentro de sua calcinha e nesse momento minha mãe veio ver se tudo estava bem. Ela se espantou quando viu a Raquel com a boceta virada pra porta e meus dedos ali dentro.

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- Haroldo, o que vocês estão fazendo? – Alguns meses antes eu ficaria apavorado com essa cena, só que a cara de espanto de minha mãe foi a coisa mais engraçada que eu vira até então. No momento me esforcei para segurar o riso e conseguir responder com total calma e seriedade. - Tentando transar – E isso soou muito melhor do que você consegue imaginar. - Tudo bem, usa camisinha – E minha mãe, como num passe de mágica, simplesmente ignorou o que viu, saiu do quarto e fechou a porta. A garota deitada em minha cama também parecia estar em profundo transe, não tomando conhecimento algum da interferência. Ignorei o conselho de minha mãe, pois eu queria gozar dentro de Rachel, e não tive nenhum impedimento. Pelo contrário, tudo que eu fazia a agradava. Quando saciei todos meus desejos e fiquei cansado de sua presença. Ela simplesmente se vestiu para ir embora, como se atendesse minha vontade. Tentou me dar um beijo na boca, mas só de pirraça levantei o rosto, beijei sua testa e disse que “você é minha melhor amiga, não quero estragar essa amizade”, como se depois de tudo que fizemos seria um beijo a fazer diferença. Ela sorriu afetuosamente, como se estivesse apaixonada, e a mandei embora com a mesma indelicadeza que fiz com Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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o Magno. Ela ficou ainda mais meiga e acenou carinhosamente antes de sair do meu quarto e ir embora. Como se ela estivesse olhando para o grande amor de sua vida. Dimas é o meu amigo brigão e aparentemente o único que toma banho. Não diria que era um cara muito valente, mas burro pra caralho eu garanto que sim. Ele conseguia arrumar briga todo dia no colégio. Quase sempre batia, pois repetiu duas séries e mesmo pra sua idade era um dos maiores. Mas ele não brigava por nenhum motivo que prestasse. Só me defendia quando eu era atacado por algum de seus desafetos, sempre usando da desculpa de que “você tem que aprender a se defender sozinho, e aqui ninguém vai te matar, então é bom pra praticar em segurança”. Ele não era um cara ruim, mas me tratava bem por ser afim de minha irmã desde que estudaram juntos, e ainda tinha sonhos de conquistá-la. Também achava que se não me tratasse bem não conseguiria mais comer a Raquel, e isso era um engano, pois ela continuaria dando pra ele de qualquer jeito. Pelo menos até o dia anterior daria. Quando Dimas apareceu lá em casa, no dia seguinte a visita de Rachel, foi muito estranho. Senti o medo crescer dentro dele, como se fosse uma bexiga que eu

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enchesse a cada gesto que fazia. Em um momento fiquei com receio dessa bexiga estourar, mas percebi que conseguia com simples gesticulação ou palavras manipular seus sentimentos. Fiz ele morrer de ciúmes da Raquel contando que a comi. Depois fiz sua libido quase explodir enquanto falava qualquer coisa sobre minha irmã e querer me dar um soco quando insinuei que nunca o deixaria tê-la. O tranquilizei apenas colocando fraternalmente a mão em seu ombro e quando nos despedimos com um abraço ele pareceu totalmente devoto a mim, como se pronto para fazer o que eu quisesse. Grandes amigos! Ensinaram tudo que eu precisava para encarar o ambiente escolar. Meu eterno pesadelo. Mas, enfim, estava desperto.

Volta às aulas

Quando minha mãe entrou no quarto para me acordar já estava quase pronto. Eu nunca estava pronto para ir à escola, tão pouco motivado. Nunca tive motivos para gostar daquele lugar. Além de não me dar bem com os estudos também não o fazia com meus Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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colegas. Mas desta vez não ia para estudar ou me dar bem com alguém. A idéia era ver até onde eu conseguia levar meus novos dons sem me complicar. Seria um tipo de playground e essa era minha motivação. - O que é isso, Haroldo – Minha mãe ficou espantada – Vai virar estudante modelo? Devolve meu filho – E me lançou seu sorriso mais meigo. Antigamente me sentia feliz com isso, agora me dava vontade de fazê-la sofrer. - Se quiser tiro o uniforme e fico deitado até a hora do almoço, sua escolha. Ela me lançou aquele olhar de repreensão carinhosa, e isso me fez decidir por realmente fazê-la sofrer. Pena que minha imaginação me abandonou, senão começava naquela hora. Depois do café matinal minha mãe me levou até a escola. Como de costume desci na entrada frontal enquanto ela dirigia até o estacionamento de funcionários, que ficava na esquina atrás do grande prédio de cinco andares que abrigava o colégio. Até hoje entrar na escola era um ritual bastante previsível. Quase todo mundo me ignorava, e quem me notava parecia estar rindo de mim ou planejando me sacanear. Mas

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nesse dia tudo começou diferente. Que ninguém me reconheceu estava evidente, mas atrair olhares simpáticos era uma grande novidade. Desde que passei por essa mudança até ontem eu provei o gosto de poucas pessoas. Agora eu conseguia sentir dezenas ou até centenas de pessoas ao mesmo tempo. Uma orgia. Um banquete. Já sabia, graças a minha mãe, para qual sala me dirigir. No caminho evitei o Magno diminuindo meus passos quando o vi ao longe rumando para o banheiro. Logo depois cumprimentei Dimas rapidamente, quando o vi galanteando uma roda de garotas, e mantive firme o passo para que não tivesse tempo de resolver ser legal comigo. Com a Rachel foi mais complicado, pois estávamos na mesma classe. Porém ela teve seu uso. Entrei na sala e as pessoas ainda estavam de pé logo antes do professor aparecer alguns passos atrás de mim. Como ela estava perto da porta, e próxima do grupo das gatinhas da sala, resolvi cumprimentá-la estrategicamente. Consegui dosar um beijo no rosto com calor o bastante para passar uma imagem de carinhoso ao mesmo tempo em que não demorei a seu lado, para também parecer despojado, me dirigindo

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rapidamente para o lugar vago mais longe dela. Funcionou perfeitamente! - Quem é esse cara? Aluno novo? – Cochichou euforicamente uma das garotas para Rachel e as amigas, tentando não ser ouvida por mais ninguém. Eu ouvi. - É o Haroldo, vocês não se lembram dele? – Retrucou Rachel, indignada com a falta de atenção da colega, ao mesmo tempo em que se esforçava para esconder o ciúme. - É o irmão da Catarina, aquele que estava no hospital – Disse Bia, a inspiração das bronhas de grande parte do colégio. Pele bronzeada, cabelos castanhos claros cacheados, lindos olhos verdes que pareciam um par de esmeraldas e aquele corpão de jogadora profissional de vôlei. Também tinha Glauco, seu namorado que era maior que um gorila alfa, notando perfeitamente como a namorada ficou atiçada com minha presença e durante quase toda aula senti em minha orelha direita seu olhar de ódio. Eu nunca tinha sentido aquilo em minha vida, pois de fato nunca fui odiado, apenas desprezado ou algum sentimento de repúdio que, se me fez sofrer, para os outros era apenas um tipo de esporte. Mas não Glauco, esse é o primeiro cara que senti querer me matar de verdade, e isso só ia piorando quando as três meninas Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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passaram a aula inteira cochichando coisas gostosas sobre mim, eu ouvia perfeitamente. Só imaginei como ele se sentiria caso conseguisse escutar pelo menos metade do que escutei sua namorada dizer. Em momento algum senti raiva do rapaz, sequer a merecida pena. O que sentia era totalmente diferente. Naquele momento alguns sentimentos outrora comuns, como raiva, ódio, medo, vergonha ou paixão, já não faziam mais sentido algum, apenas lembrava vagamente de como eram. O que senti naquele momento foi apenas tesão e fome, misturados, não como sentia antes, mas como um novo sentimento. Então decidi que meu teste seria esse casal.

O amor morde

Eu precisava arrumar uma maneira de me aproximar de Bia e termos um pouco de privacidade. Começava a ficar angustiado, como nunca fiquei antes, parecia ansiedade, mas era um pouco diferente. É igual quando você está com fome e sente o cheiro de comida, naquele instante antes de começar a comer quando mais nada vem a sua cabeça a não ser dar a primeira garfada. Eu Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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não queria comer ela, pelo menos não literalmente, apenas tê-la perto, a fazer queimar de tesão e então tomar esse calor para mim, como fiz alguns dias antes com Rachel. E falando em Rachel: - E ai, astronauta, quando volta pra a Terra? A aula já acabara e se tratava de alguma coisa chata sobre estruturas celulares. Sentada sobre minha mesa estava Rachel me encarando. Lembro que participei da aula ativamente, fazendo várias perguntas e demonstrando muito interesse, por mais que aquilo não me interessasse. Admito que foi gostoso ver o professor de Biologia ficando animado quando me interessei tanto em sua aula. Sua animação me saciava, mas com não mais de meia hora ele parecia não se aguentar de pé, e pouco antes dele passar mal eu já tinha perdido a vontade de interagir com a aula. Passei a ter certeza que se eu forçasse demais as pessoas isso podia prejudicá-las. Mas queria mais é que se foda, pois só pensava na Bia. Precisava muito me resolver com aquela garota, mas eu também tinha que dar um sossega no namoradinho dela e um jeito em Rachel, cujos feromônios enchiam meu nariz. - Se você quiser volto agora, só pra te ver – Continuei olhando para o nada enquanto dava tom de apatia para Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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minha voz, mas com o dedinho da mão fiz um discreto carinho por baixo da cocha dela e isso bastou para fazer a garota quase pegar fogo de tesão – Que aula é agora? - Literatura. O que acha da gente ir beber água no quarto andar, fumar um cigarro e eu te fazer um carinho? O professor saiu mais cedo e temos uns vinte minutos. Eu não estava com sede, vontade de fumar ou ser carinhoso com ela, mas tinha que me afastar um pouco de Bia para pensar melhor no que fazer. O quarto andar era totalmente vazio no período matutino. A noite o meu colégio virava uma faculdade meia boca, e o quarto andar servia para abrigar as classes a mais. Quando saímos no corredor todas as outras salas estavam em aula e nossos colegas de classe tinham se dispersado, por isso tive uma ideia melhor que o quarto andar. Eu sabia que ela não queria apenas alguns beijos. Queria mais, mas tinha medo do inspetor nos pegar fazendo o que queríamos. - Acho melhor a gente ir pro quinto andar – Propus apenas por costume de dizer alguma coisa. A verdade é que ela iria para onde eu a levasse.

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- Mas lá não tem bebedouro e nem janela – Ela ia dizendo, quando parou, pensou, fez falsa carinha de susto, deixou escapar um sorriso e prosseguiu – Haroldo, o que você ta pensando em fazer? Se pegarem a gente ta fodido! - Relaxa! Você ta comigo – Também disse isso por costume de falar. Ela realmente ia para onde eu quisesse. Honestamente eu queria mesmo é ser pego. Seria muito engraçado ter que lidar com a situação como tive que fazer com minha mãe. Talvez desse certo. Talvez desse merda. Ninguém sabia. E nesse momento entendi o que Dimas queria dizer com na escola ninguém te matará, da pra praticar com segurança. Se me pegassem o que aconteceria? Não seria expulso, pois minha mãe era professora e ela que se resolvesse com o Diretor. Suspensão? Passaria algumas manhãs em casa. Convenceria fácil a Rachel de cabular aula para fazer sexo. Provavelmente também arrastaria Bia e uma amiguinha delas. Quando chegamos numa pequena sala contendo apenas alguns moveis e material de manutenção e limpeza não demorei pra virar a Rachel de costas antes que viesse me beijar com aquela boca carente de escovação e ainda cheirando café da manhã. Sem Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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nenhuma cortesia a curvei sobre uma mesa num canto, abaixei nossas calças e com a mão cheia de cuspe dei uma lustrada na cabeça do meu fabuloso. Ela era tão putinha que, mesmo sem a compelir mentalmente, implorou como em um filme pornô para que a enrabasse, e mesmo achando isso um anti-clima fiz como pediu e devorei seu buraco mais sujo. Novamente eu estava a machucando bastante e ela apenas entorpecida pelo prazer de me satisfazer engolia o choro ao máximo. Ficamos pouco tempo nessa safadeza, quando ouvi passos e cochichos vindos do corredor. Rachel parecia não ouvir, e na altura que ela gemia e chorava até eu tive dificuldade. Não era a voz de adulto, provavelmente eu seria flagrado por alguns colegas, então resolvi caprichar mais na cena, torcendo para já entrarem com uma filmadora em mãos. Comecei a dar uns tapas firmes, sem delicadeza, na lomba da minha sujinha, também comecei a empurrar mais fundo para fazê-la gritar e chorar mais, o que funcionou muito bem. Não poderia ser melhor, pela porta entraram de supetão Bia e Glauco. Bia arregalou os olhos de espanto enquanto tapava a boca com a mão para conter o riso, já Glauco ficou totalmente alterado e isso tornou meu dia melhor que eu poderia sonhar.

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- Sua filha da puta – Gritou Glauco, furioso – O que ta fazendo com ele? Nesse momento eu entendi tudo, e Bia, já se desfazendo do riso, também. Ele estava comendo Rachel escondido da namorada e o ciúme que sentiu foi mais do nosso depósito de porra que de sua namorada. Quem diria? - E ae, Glaucão? Bia? Vieram dar um role no quinto andar? Chega mais que aqui é tudo em casa – Puta merda, eu sou incrível. E funcionou. Pelo menos ele mudou de raivoso para apenas cabreiro. A Bia mandou um olhar de profunda raiva e vergonha para cima de seu namorado. Rachel ficou atônita, nem quando eu dava mais umas bombadinhas ela fazia mais que engolir o choro se esforçando para não gemer. Então resolvi sair de dentro dela e lidar com a situação, afinal ela era só um passatempo enquanto eu pensava em como chegar na Bia, e isso acabara de ser resolvido. No momento a Bia parou de olhar pro namorado e grudou os olhos no meu pau. - Não fica constrangido, irmão! Aqui o amor é livre, e sei que você gosta da Rachel.

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Quando falei isso ele mudou de cabreiro pra envergonhado. O cara realmente estava mais preocupado em garantir a foda que a namorada, o que eu entendia e agradecia. Dizia a boca pequena que Bia ainda era virgem, assim suponho que Glauco precisava de alguém que saciasse sua libido e essa pessoa era Rachel. Eu acariciava a bunda da Rachel com uma mão enquanto que com a outra fiz um gesto para que Glauco se aproximasse dela. Ele se aproximou. Eu disse pra ele “vai em frente cara, domina essa garota, porque é isso que ela quer de você”, e ele foi. Nessa hora a Bia começou a chorar e saiu correndo antes que eu tentasse a impedir. Mas foi estranho porque ela estava quase dominada por mim e eu senti que algo cortou a conexão. Então ela saiu correndo até a porta quando parou atônita e sussurrou apenas uma palavra: - “Catarina?”

Catarina

Meu nome é Catarina, tenho 16 anos e estou começando o terceiro ano do ensino médio no colégio particular aonde minha mãe dá aula de História. Meu Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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pai é major da Força Aérea e tenho um irmão dois anos mais novo chamado Haroldo que amo muito. Essa é a descrição de vida de uma garota normal. Porém nunca fui uma garota normal. Não tive a fase de adolescente revoltada ou sequer tenho problema com o fato dos meus pais amarem mais meu irmão que a mim. Honestamente eu amo estudar num colégio de elite e ter uma família comum. Até entendo o fato de meus pais amarem mais meu irmão, que sempre teve uma vida muito difícil e precisou de muito mais apoio. Amo o mundo a minha volta, não quero queimar meu sutiã, pintar o cabelo de azul, ficar chapada ou fazer sexo com todo mundo. Eu sou careta e gosto de ser assim. Mas, como eu disse: não sou uma garota normal. Não me acho especial por essa anormalidade. Olívia, a única amiga que realmente deixei me conhecer, e que Deus a tenha, dizia que eu carrego um fardo, mas eu encaro isso como um dever. Para começar a explicação, desde pequena eu tenho três amigas “imaginárias”, o que seria normal se algumas vezes elas não se tornassem reais. Não sou louca, gostaria de ser. Minhas amigas se chamam Fé, Devoção e Luz, e nada disso se trata de um culto extremista. Se as pessoas conhecessem Deus, como eu conheço, parariam de cultuá-lo, pedir coisas ou

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atribuir a Ele os rumos de suas vidas. Deus não está nem ai para como as pessoas vivem, mas ele fica extremamente puto quando a ordem natural do Universo é perturbada. Você já viu Deus emputecido? Deus emputecido funciona assim: Ele manda a Luz falar comigo, e eu faço uma visita a aquilo que emputece Deus. Se não der para fazer aquilo parar de emputecer Deus eu faço minha amiga Devoção despejar toda sua ira. Se esse algo reagir e tentar me ferir a Fé me protege, e a Devoção continua despejando sua ira. Uma de duas coisas sempre acontece: A Luz aparece para me avisar que Deus não esta mais puto, faço a Devoção parar e vamos todos embora felizes e satisfeitos. Ou aquilo que emputecia Deus deixa de existir e vamos embora felizes e satisfeitos. Duas coisas sempre acontecem: Deus para de ficar puto e minhas amigas e eu vamos embora felizes e satisfeitas. Não tem escapatória disso. Se algo pode ser chamado de Vontade Divina isto sou eu e minhas amigas. Às vezes esse processo é tortuoso. Vocês já ouviram o ditado de que Deus escreve certo por linhas tortas? É

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mentira, nem escrever ele escreve. Deus nunca sabe direito o que quer e Luz é a única criatura em todo universo que consegue entendê-lo. Tenho pena da pobrezinha, ela sofre muito. Minhas outras amigas também têm seus dons.

Eu e minhas amigas

Fé é aquela amiga que sempre ouve e te conforta. Ela é meio quietinha na dela, não é de falar muito, mas nunca me deixou na mão. Quando a Fé vem ao mundo material o faz em forma de uma linda armadura negra brilhante. Antigamente ela era branca, mas depois que conheceu Rock entrou numa fase mais dark, mas ainda bem que não ficou muito tempo na fase Hard Rock, pois eu estava cansada de vestir lantejoulas e penas. Em minha festa de debutante ela virou um vestido que achei cafona, mas todos amaram, então acho que tudo ficou bem. Devoção é minha amiga mais porra louca e divertida. Quase tudo que aprontei até hoje foi ela que começou. Fé e Luz ficam bravas com ela, mas no final Devoção sempre acha um jeito de ser meiga e dizer coisas Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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carinhosas e todos se acalmam. Mas Devoção tem um lado “profissional” meio barra pesada e é extremamente belicosa. Ela nunca começa uma briga, sempre fica extremamente fria durante as confusões e geralmente fico com um pouco de medo. Mas Devoção sempre me ouve e não a deixo exceder na dose. Ela costuma se materializar como uma arma. Já virou lança, martelo de guerra, faca, revolver e um dia até virou uma ogiva nuclear, quando fui conversar com uns rapazes no Oriente Médio sobre o quanto eles estavam emputecendo Deus. Ainda bem que Luz apareceu a tempo. Mas Devoção é bem criativa e já se materializou como espelho, cortador de unhas e até como calculadora para me ajudar colar numa prova. Por fim Luz, nossa boa velhinha. Velhinha boca suja e mal humorada. Toda manhã Luz me acorda até mesmo antes da luz de verdade bater na janela. “Tem que acordar cedo para fortalecer sua mente, não virar uma moleca preguiçosa e imprestável”, sempre repete gritando na minha orelha cada vez que reclamo. Ela também é um bom parâmetro na hora de aprontar alguma coisa, pois se alguém puder sair machucado ela intervém, caso contrário bota pilha, deixando seu mal humor ir embora e parecendo uma pivéta. Luz nunca vem ao mundo material, diz que não gosta, pois sempre Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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que tentou as pessoas só enxergaram suas sombras, seja lá o que isso signifique de verdade. Mas o que mais gosto, ao mesmo tempo que desgosto, é como Luz dá palpite em tudo. Na escola é bom, pois ela acha que não tenho que perder tempo estudando, então sempre me assopra as respostas em todas as provas. Mas geralmente ela cansa um pouco com essa mania. É assim desde que me lembro por gente e nunca me acostumei.

Pecados do avô e sangue do irmão

Há alguns meses Luz apareceu para dizer que “Deus está puto, mas não sabe com o que”. Vocês nunca entenderiam o significado de Deus assumindo que não sabe alguma coisa então não me esforçarei tentando explicar, pois poderia escrever uma enciclopédia falando só disso, mas, para resumir, Ele não é onisciente. Esse aviso veio em agosto, quase perdi meu ano letivo viajando o mundo escondida de minha família para tentar descobrir o que emputecia o Divino. No final descobri que o problema estava mais perto que gostaria.

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Deus não sabe sobre um monte de coisas, mas se tem uma coisa que o deixa absurdamente puto é um certo livro que nem nome tem. É um livro o qual batizamos entre nós de Manual do Fuzuê. Esse livro é uma espécie de portal inventado há nem Deus sabe quanto tempo por alguma entidade desconhecida por motivos ainda mais obscuros. O grande problema é que ninguém o usa para fazer algo que preste, sempre fazem algo para desmoronar a ordem natural do Universo, que Deus tanto ama. Ele sempre fica sabendo que alguma coisa ta fodida, mas nunca exatamente o que. Você não conhece Deus, mas tenho certeza que consegue imaginar como fica seu humor nessas horas. E isso se agrava pelo fato de que além de Ele não saber o que está errado, quando descobre não pode fazer nada. E, antes que me esqueça, Deus está longe de ser onipotente. Porém, pasme, Ele realmente é onipresente, que significa que sente tudo de errado que acontece, mas geralmente nada pode fazer, como sentir coceira dentro do gesso. Estou com minhas amigas Fé e Devoção, andando no meio de alguma savana africana, atrás de alguma pista sobre a fonte do mau humor de Nossa Suprema Divindade. A uns vinte metros a minha direita vejo um casal de leões fornicando, mais ao longe um rio com várias zebras e rinocerontes bebendo água e no horizonte Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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o Sol se despede num dos poentes mais lindos que já vi em minha vida. Devoção faz uma piada suja com a cara da leoa, Fé a repreende e o tanto de mosquitos me atazanando é o que mais incomoda. Bem que Fé poderia virar uma daquelas roupas de apiário. Eis que Luz aparece com semblante visivelmente abatido: - Mocinhas, eu tenho uma notícia muito triste. Encontramos a origem do distúrbio, é aquele livro. - Como isso pode ser triste, Luz? Agora podemos sair do National Geographic Channel e resolver o problema – Diz Devoção eufórica. - Não é simples assim e dessa vez será bem desagradável. Catarina, o problema é seu avô. - Como assim “meu avô”? Explica direito – Não posso acreditar nisso. Como meu avô seria um problema? - Calma, moleca, eu explico – Luz tenta apaziguar Seu avô está com o Manual do Fuzuê, fazendo coisa errada. Deus mandou a gente ir lá agora para resolver.

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- Calma Catarina – Fé tenta apaziguar – estarei do seu lado – como eu odeio quando ela fala esse jargão, ainda mais agora. Não consigo acreditar nisso. Haroldo! Meu irmão estava com meu avô passando férias em sua casa. Começo a chorar pensando em seu nome. “Calma”, alguém pediu quando viram as lágrimas descerem em meu rosto. Sinto o abraço reconfortante que só Fé conseguia me dar, fecho meus olhos e espero que Devoção nos leve, num instante, até a chácara de meu avô. Já é noite e sinto meu coração pesar como nunca. Um ar nojento vem de dentro da casa e penetra em meus pulmões. A porta está lacrada com algum feitiço, eu não reconheço seu autor. Percebo como ele é poderoso. Devoção pega em minha mão, “derruba a porta” ela diz, e juntas a chutamos com toda nossa força. A porta estilhaça e ouço uma risada muito alta vindo da sala. É a voz de meu avô. - Entra aqui meninas, e já cheguem tirando a roupa, pois na casa do Velho Antunes é Carnaval – Ele berra e

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ri de forma embriagada, mas sei que não é bebida que fala por ele. - Vô, o que ta acontecendo aqui – Tento manter a calma enquanto me aproximo da porta. Quando entro na sala sinto meu coração partido. Tão triste que nem consigo chorar. Vejo duas meninas, com não mais de quinze anos, Haroldo e meu avô. Os quatro estão nus e fornicando no chão. Se eu fosse uma menina normal isso me seguraria por algumas décadas num tratamento psicológico, mas eu não sou normal e a situação não se trata da simples depravação de um velho pervertido. Os olhos dele são a coisa mais aterrorizante que já vi e sinto minha alma se desfazer. Fé me abraça e vira minha armadura. Posso sentir como ela começa a sofrer em meu lugar. Meu avô ri insanamente enquanto continua seu ato vil com a garota menor. Meu irmão e a outra garota parecem nem tomar conhecimento da cena e continuam seu coito. Os garotos não estão normais, seus olhos parecem mortos e os corpos se movem mecanicamente. - Catarina, você virou uma mulher muito gostosa, não quer se despir dessa sua amiguinha frígida e vir aqui

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provar do piu-piu do vovô? Faço com você igual fazia com sua mãe, quando seu pai estava longe demais para cuidar da fêmea. Acho até que você é filha minha e não dele – e continua rindo. Eu sei o que devo fazer. Devoção segura minha mão, beija minha face e diz: - É melhor fazer agora e acabar logo com isso – Ela vira uma lança curta toda feita de um metal tão polido que seu reflexo é mais forte que a luz incidida sobre ela. - Isso, suas putinhas, matem um “velho indefeso”! Espeta essa vadia no meu cu – Ele fica de quatro com a bunda virada para mim – Vem, suas safadas, mostra como são pervertidas e me fodam com toda força! O desgraçado não para de rir. Sinto mais nojo dessa cena grotesca que tristeza pelo que farei. - Fale onde está o livro – ordeno. - O livro da sua avó? Lambe meu cu que eu falo – O chuto com toda minha força, fazendo com que bata a cabeça na parede. A criatura ri sem sentir qualquer dor pela minha investida. Ele se levanta e para de rir armando uma carranca séria e terrivelmente assustadora. Com uma voz baixa e Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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aveludada, porém carregando uma força descomunal, emite sons que não sei dizer se seriam ou não uma linguagem. Sinto Devoção apertar minha mão e gritar na minha orelha “AGORA”. Empurro a lança sobre o coração do velho e Devoção não consegue entrar nem dois centímetros. Ele fica quieto, abre um sorriso perturbador enquanto parece me derreter com seu olhar. - Foi bom para você? – Riu de maneira seca e suave. Minhas mãos parecem feitas de gelatina e quase largo Devoção, mas não desisto, empurro com cada vez mais força, até que a carne cede. Enquanto a lança aos poucos o atravessa vejo escorrer sangue por sua boca. Ele fecha os olhos lentamente e quando os abre estão normais. - Obrigado mocinha - sussurra engasgado, já com sua voz natural. Seu corpo amolece e cai a meus pés, criando uma poça de sangue. Fé chora baixinho e pela primeira vez Devoção fica calada. Elas se desmaterializam. Fé chora como uma criança enquanto Devoção nos abraça. Estou com medo de olhar para os garotos. Uma das meninas tosse baixinho, quando Fé se recompõe e pede carinhosamente “vai olhar seu irmão”. Abaixo a seu lado, ele está desmaiado junto das garotas, não parecem

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nada bem. Respiram com dificuldade e estão muito pálidos. - Tudo ficará bem – Diz Luz. É hora de voltar para casa. Em breve meus pais receberão uma ligação dizendo que meu irmão está internado num hospital e eu devo estar com eles nesse momento. Eles também esquecerão do meu avô. Acreditem, essas coisas são feitas direto. Todas as pessoas que conhecem meu avô se esquecerão dele. Um dia algumas lembrarão que existiu e se perguntarão onde está. Nesse momento lembrarão que ele morreu dormindo, bem velhinho e de um lindo velório. Se você tiver lembranças bagunçadas sobre alguém que deveria lembrar perfeitamente ou se ficar muito tempo sem pensar numa pessoa especial, pode ter certeza que foi feito com você. Nunca entenderei o que aconteceu com meu avô. Será que ele foi possuído? Há quanto tempo? Seria verdade o que disse de minha mãe? Porque um ser tão poderoso se deixou matar tão facilmente? O que ele realmente fazia com Haroldo e as meninas? Por que o fez? Onde está o Manual do Fuzuê?

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Tocado pelo Mal

- Acho que você terá de matar seu irmão. Sinto muito – Me diz Luz visivelmente abatida. - Você está louca. Deus está louco. Não vou matar meu irmão. - Não cabe a você decidir, garota. Ele foi tocado por um mal muito grande e não podemos arriscar. - Nem sabemos quem tocou meu irmão e as meninas. Não dá para dar um remédio sem saber qual é a doença. - Só estou dizendo. A propósito, as meninas estão prenhas. Não sabemos se de seu irmão ou avô. Você também vai deixar essas crias virem ao mundo? Eu não quero pensar em infanticídio agora, mas uma das coisas mais chatas do mundo é quando Deus fica ansioso e Luz sem saber intermediar nossa relação. Meu irmão não está nada bem e sei exatamente o que ele tem, só desconheço o motivo. Ele está se transformando num vampiro. Você certamente não faz a mínima idéia do que é um vampiro. Já deve ter pensado em seres imortais com

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super poderes, que sugam o sangue das pessoas e, dependendo do autor, viram cinza ou purpurina quando expostos ao Sol. Bom, não é nada disso. Vampiros são mortais que no máximo vivem poucas décadas a mais que uma pessoa normal. São tão fortes quanto um ser humano pode ser. Eles não bebem sangue e sim sugam a energia das pessoas. Vampiros são pessoas que tem uma doença espiritual chamada Vampirismo. Muitas pessoas passam suas vidas inteiras sem tomar conhecimento que tem vampirismo. Algumas nascem com isso e outras são infectadas por algum outro doente ou um vampiro. A doença se manifesta em diferentes intensidades e na maioria dos casos a presença da pessoa é apenas desgastante para os outros, mas em alguns raros casos onde existe uma ligação muito forte entre o doente e outra pessoa essa última pode ter sua vida inteira consumida. Apesar de existir no mundo mais gente com vampirismo que com câncer ou AIDS poucos chegam a virar vampiros, e a causa disso não segue nenhuma lógica. Esses poucos vampiros geralmente são muito perigosos. O que os torna realmente perigosos é a maneira como conseguem saber exatamente como as pessoas se sentem. Alguns ouvem até seus pensamentos.

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Vampiros muito poderosos conseguem até manipular a mente das pessoas apenas com sua vontade. Para piorar, muitas pessoas viciam em ter contato com infectados por vampirismo e, principalmente, por vampiros. A única coisa boa que tenho a dizer sobre vampiros e vampirismo é que ambos são curáveis na maioria dos casos. Mas como pouco sabemos sobre todos os aspectos da doença não conseguimos nem criar um procedimento padrão e alguns casos são totalmente indecifráveis. Meu irmão está se transformando numa dessas criaturas. Sei que a coisa certa é o matar enquanto ainda está fraco, enfermo e provavelmente não tem noção de sua condição. Poderia até forjar sua morte. Pensariam que morreu de enfermidade. Tenho certeza que aquilo que possuiu meu avô é responsável pela transformação de Haroldo, então minha esperança é descobrir como curar o garoto. Eu amo meu irmãozinho e quero o melhor para ele nem que tenha que dar minha própria vida por isso. Através de Luz fiz um acordo com Deus, que me permite buscar a salvação para Haroldo enquanto ele

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não fizer mal para os outros, mas se isso acontecer eu devo o matar imediatamente. Assim começou minha busca. Meus pais pensariam que eu estava vivendo minha vida normalmente e visitando meu irmão todos os dias. Ele também lembraria das visitas, mas eu estaria colhendo informações. Conheci o mundo inteiro pelos seus piores lados e assim mesmo nada disso adiantou. Não fui rápida o bastante e poucos dias depois de começar a busca recebo a notícia de que meu irmão está machucando as pessoas e se tornou um perigo muito grande. Agora é hora de pagar a Deus minha parte do acordo.

A morte da Esperança

“Meu irmão já está morto”. Repito esse mantra em minha mente durante toda viagem. Quando apareço dentro da escola continuo repetindo. As pessoas ficam atônitas quando me veem, pois o jeito que apareci do nada quebrou parte da manipulação de memória. É o que falei de Deus não ser onipotente. Uma colega de

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classe tenta falar comigo, assustada, mas não tenho tempo para lidar com isso. Agora não quero saber e pouco me importo com qualquer outra coisa que não seja Haroldo. Tirar a vida de meu avô é algo que nunca digeri, mesmo naquela situação, mas matar meu irmão não tem desculpa. Tem que ser feito, eu sei, mas entre uma repetição e outra do mantra a ideia não se torna mais fácil de aceitar. Quero me matar e depois cuspir na face de Deus quando o ver pessoalmente. Deus não tem face, mas gostaria que tivesse, para poder cuspir nela. Sei exatamente onde ele está. Luz explicou que uma menina poderia morrer se eu não chegasse a tempo, então subo correndo as escadas, pulando de quatro em quatro degraus. Chego a tempo. Ouço vozes dentro do depósito, que está com a porta aberta. Reconheço a voz de meu irmão. Sinto O Mal olhando com desprezo para o que resta de minha alma angustiada entre o amor e o dever. Grandes tentáculos vermelhos de fogo e sangue abraçam todo o lugar. É maior do que aquilo que possuiu meu avô. Isso não é uma possessão, é O Mal vivo. Meu irmão é O Mal.

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Deus Falhou

- Catarina – Disse Bia enquanto saia da sala chorando. Catarina sentiu que chegou a tempo de salvála. Haroldo ainda não acostumado com seus poderes confundiu os sentimentos de Bia. Enquanto achava que a perdia resolveu apertá-la com mais força, mas o fez do jeito errado. Como um garoto que esquece o que é o Amor pode entender o funcionamento de um coração partido? Não se mata uma pulga com tiros de canhão, isso pode afugentar o pequeno artrópode, ou o jogar para longe antes de o atingir. Foi isso que aconteceu com Bia. Os joelhos de Catarina tremiam de medo frente à imagem de Haroldo. Ela estava cada vez mais longe de sua racionalidade e o mundo a sua volta se nublava com o miasma criado por seu irmão. Ela já viu vampiros poderosos antes, mas Haroldo além de ser distintamente mais poderoso também carregava a imagem do irmão que tanto ama e não quer perder. Assim mesmo Catarina resolveu aceitar seu dever com Deus.

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Bia se entregou nos braços de Catarina. Fé abraçou as duas e conseguiram romper o laço, salvando a garota. - Minha irmã linda, que saudades – Brincou Haroldo ainda sem entender tudo que fazia – To louco pra fazer um incesto com você. Caralho, já ta pegando a Bia? Vamos comer junto essa virgem, eu meto na bocetinha e você lambe nosso suquinho, o que acha? Catarina nem conseguiu sentir nojo, ainda estava perdida entre senso de dever e o medo, mas já entendia que seu irmão não estava ali, e sim o monstro mais perigoso que já enfrentou. - Bia – Catarina envolveu com as mãos a face da garota e ordenou com toda calma e suavidade – Sai daqui agora, não fala nada, só vai pra sua casa o mais rápido que puder, implora pros seus pais te mudarem de escola e nunca mais chega perto de ninguém que está nessa sala – Nesse momento Bia foi contaminada por todo medo que Catarina sentia e saiu correndo. - Beleza, Catarina – Disse Haroldo, rindo - Entendo que você já tem suas peguetes e não quer as trair com a Bia. Por mim tudo bem, se eu soubesse que a Fé era tão gatinha assim a gente já tinha fechado acordo faz tempo.

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“Ele consegue ver Fé”, pensou Catarina horrorizada. De fato ela nunca conseguiu ver Fé sem ser se materializando em forma de armadura ou roupa, mas agora Fé tinha tomado forma de uma garota e estava táctil, bem ao seu lado, e hipnotizada por Haroldo. - Não encosta nela – Berrou Devoção ao lado de Catarina. - Quem está aqui? – Se espantou Haroldo. Ele escutou a voz de Devoção, mas não conseguia vê-la. “Essa é a chance”, pensou Catarina. Ela agarrou Devoção e partiu com toda sua fúria para cima do irmão. Não funcionou, tudo que ela conseguiu dar foi um soco com a mão vazia ao invés de Devoção estar materializada como uma arma. Haroldo a olhou estarrecido. - Sua vagabunda! – Gritou Rachel histericamente enquanto pulava em cima de Catarina, que ainda estava atônita tentando entender o que aconteceu entre ela e Devoção. Rachel, agarrada nas costas de Catarina, começou a dar socos, mordidas, arranhões e puxões de cabelo. Catarina não conseguia achar Devoção, mas escutava a

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amiga gritando ao fundo. Fé, materializada em forma de garota, abraçou Haroldo, ignorando tudo que acontecia. Glauco estava desorientado, por um instante também não sentia mais a influência de Haroldo, que já o ignorava totalmente, conseguindo apartar Rachel e a aquietar num canto. Haroldo ria sem parar, enquanto falava um monte de sacanagem, beijava e começava a tirar a roupa de Fé. A mente de Catarina começou a divagar sobre influência de Haroldo e demorou alguns segundos até começar a recompor suas ideias. Catarina não entendia o que aconteceu com Fé e não acreditava que Haroldo, ou qualquer um, pudesse dominar a amiga com tanta facilidade. - Fé, o que você tá fazendo? – Perguntou Catarina, que não conseguiu segurar as lágrimas quando a amiga simplesmente a ignorou. Catarina sentia que perderia Fé para sempre se não fizesse alguma coisa. Nesse momento conseguiu finalmente encontrar Devoção. - Calma! Agora estamos juntas – Catarina sentiu Devoção segurar sua mão e seus sentidos voltaram. Sentiu a amiga crescer em forma de lança em suas mãos – Vamos acabar com essa demência e recuperar Fé. Nossa Família – Rosca J. R. Tudor


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Catarina empunhou Devoção em ambas as mãos, segurando a lança com toda firmeza que tinha e sem nenhuma cerimônia a espetou ferozmente na direção do coração de Haroldo. Catarina não conseguiu terminar o golpe, Devoção simplesmente desapareceu de sua mão. Devido a sua impulsão não conseguiu parar a tempo e esbarrou com força no corpo de Haroldo, que a segurou firme em seus braços. - Calma! Calma – Implorou Haroldo em tom sério e preocupado enquanto tentava segurar Catarina em seus braços. Ela debatia para se livrar dele e chorava totalmente desesperada. Ambos caíram sobre seus joelhos, com Haroldo abraçando forte a irmã e pedindo “calma” em seu ouvido – Não sei o que aconteceu contigo, maninha, mas agora está tudo bem. Fé também se ajoelhou para abraçar a amiga. Catarina estava ainda enojada por ver o irmão e a amiga nus e a abraçando, mas também se sentiu reconfortada pelo carinho oferecido pelos dois. Não sentia mais o miasma, não via os tentáculos, sua amiga estava carinhosa e seu irmão amável, isso era tudo que ela poderia querer no momento.

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- O que ta acontecendo? – Catarina não encontrava mais Devoção. Fé a abraçava junto do irmão que demonstrava nítida e irrefutável preocupação. - A gente tava só se divertindo – Respondeu carinhosamente Haroldo – Então você e a Fé chegaram nervosas. Mas agora você pode ficar calma, estamos todos entre amigos. - Desculpa por te bater – Rachel se sentia constrangida, deixando lágrimas de humilhação descerem por sua face. - Não, Chel, eu que perdi o controle, não tinha o direito de agredir o Haroldo – Respondeu Catarina, abraçando a garota seminua e até se acostumando – Mas, por que ta todo mundo sem roupa? – Catarina perguntou com honesta ingenuidade. - Bom – Haroldo falou devagar, fez uma pausa, abriu um sorriso largo e meigo que fez Catarina começar a rir enquanto suas bochechas coravam. Então no auge de sua simpatia completou – Todos estamos sem roupa, menos você. Glaucão, fica de olho no corredor pra gente!

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Agradecimentos

Quero agradecer ao colega E. Reuss por toda a paciência com a correção, diagramação e dicas valiosas. Aos colegas V. E. Simeoni e Fabio Guastaferro por ajudarem na pré leitura, com dicas igualmente valiosas. Ao colega Petter pela bela gravura e por também ajudar com suas dicas durante a parte de criação. E agradecer ao amigo Thomaz Valvassori, por me fazer desistir de uma ideia ruim para retomar esse conto (que eu havia abandonado) e acompanhar todo seu processo criativo.

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NA LUA DE SANGUE THOMAZ VALVASSORI __________________________________________________

“Não é preciso ter olhos abertos para ver o sol, nem ouvidos afiados para ouvir o trovão. Para ser vitorioso você precisa ver o que não está visível” SUN TZU


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Happy Hour

O bar ficava numa das avenidas centrais da cidade, era o ponto de encontro de um moto clube e de vários universitários carentes nos fins de semana. Ainda não havia escurecido, e o ar da noite de Julho já deixava claro

Na Lua de Sangue – Thomaz Valvassori


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o inverno que eles teriam. Era uma sexta feira e, apesar disso, a avenida estava parada, ainda não era o horário de saída das fábricas e não se podia vislumbrar nem um décimo de como ficaria. Dentro do bar estava escuro. Não que a falta de luminosidade espantasse clientes, mas o ambiente era soturno. Não havia clientes costumeiros, só um oriental sentado na mesa do canto. Já estava ali há pelo menos uma hora bebericando uma cerveja irlandesa cara. Parecia com todo oriental, mas tinha nariz pequeno e arrebitado e o tom de cabelo um pouco acima do castanho, carregava um bag para instrumentos de corda, uma guitarra talvez. A garçonete, uma loira vestindo uma camiseta do Kiss cortada abaixo dos seios foi até ele. Na esperança de uma gorjeta mais gorda estampou seu melhor sorriso e jogou o cabelo displicentemente. - Mais alguma coisa samurai? Quem sabe algo pra beliscar enquanto espera sua banda? - Não meu anjo. Agradeço. E pode ficar tranquila, não vou te incomodar com solos ruins de guitarra hoje. - Desculpe – ela sorriu enquanto limpava a mesa - É que vi a sacola e presumi que você fosse tocar. Normalmente ninguém chega antes das nove, só mesmo músicos pra passar o som. Na Lua de Sangue – Thomaz Valvassori


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- Não se desculpe, só continue sorrindo assim. Será que você poderia me fazer um favor? Leva isso pro barman pra mim. – ele então estendeu uma corrente grossa de ouro com a medalha de São Bento pendurada nela. - Tá bom. Levo. Mas já vou te avisando, o Porpeta não é gay, muito menos gosta de joias – disse aquilo com uma ponta de sarcasmo, como se alguém já tivesse se interessado pelo barman. Enquanto a garota saia pisando com força o chão com o salto, o oriental analisava o bar. Não era grande, deveria ter uns 100 m² com duas mesas de bilhar no centro, várias mesas de aço espalhadas aleatoriamente e o balcão ao fundo, próximo aos banheiros. O palco era pequeno. Um semicírculo que ficava uns 15 cm acima do nível do piso, havia colunas de caixas, amplificadores e uma bateria parcialmente montada. Enquanto olhava a bateria sua companhia se sentou, visivelmente contrariado. - Bom. Culhões eu sei que você tem japa. Mas tomara que você não saiba com quem tá se metendo, senão, vou ter certeza que você, ao invés de macho, é burro. – o homem que dizia isso deveria ter quarenta anos, era careca e com certeza o apelido Porpeta não era à toa.

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- Então eu vou esclarecer. Eu sei quem você é, eu estou com seu amigo e também sei que a essa hora matar você seria mais fácil que derrubar minha cerveja – enquanto falava isso o oriental não sorria e levava a mão que não estava à visível até a cintura, encontrou ali ao cabo de um pequeno punhal, segurou-o firme e continuou falando – É tudo simples, quero você e os outros quatro babacas da sua turma no antigo distrito industrial, amanhã às dez da noite. Sei que vocês vão me rastrear fácil até lá. - E por que eu ia te obedecer anãozinho? Na boa, você não serve nem como aperitivo pra mim. Sem pestanejar e nem esperar o final da frase o rapaz puxou o punhal cravando-o na mão esquerda do gordo e o prendendo na mesa. - Maldito! Você furou minha mão seu loco! Eu vou matar você seu filho da puta! Ah! Ah! – Com a mesma velocidade o rapaz se levantou indo para as costas do Porpeta, colocou seus dedos na glote, arrancou o punhal da mão dele e o direcionou para o coração do monte de banha. - Nós vamos fazer assim – disse o rapaz sussurrando – Você vai se levantar, limpar esta bagunça, pegar o

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telefone, ligar praquelas putas dos seus amigos e passar meu recado. Por que se você for mal educado de novo, eu acabo o serviço e acho outro menino de recados. Você me entendeu fofo? – terminando a frase, deu dois tapinhas na cara do Porpeta. O garoto então bateu a cabeça do gordo na mesa, colocou o punhal no cinto, pegou o bag e saiu tranquilamente do bar. A garçonete que voltara agora do estoque viu a situação do patrão e correu para ajudá-lo. - Acho melhor você nem chegar perto de mim sua puta! Mexe essa bunda branca e liga pro Florestan, diz pra ele vir pro bar agora! Acho que a encrenca o seguiu de novo.

A Caçada

Ricardo corria ofegante pelo acostamento da rodovia, suas pernas já estavam doloridas, mas ele devia correr pelo menos mais cem metros até o pontilhão. Mesmo a rodovia cortando a cidade, o espantava o fato de ser tão deserta a noite, havia pelo menos vinte minutos que ele corria e pouquíssimos carros passaram. Estava

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começando a se arrepender de ter dado ouvidos ao japonês. Apesar de ter quase a mesma idade de Ricardo, ele com certeza já passara por coisas terríveis. “Faça exatamente o que eu disser e tudo vai dar certo”, ele disse. Japonês desgraçado, onde será que ele terá se metido, deveria interceptar ele e o monstro há pelo menos dez minutos. Foi então que seus ouvidos perceberam passadas mais pesadas atrás de si, um vulto grande e negro vinha se aproximando. O sangue gelou nas veias de Ricardo. Cada vez que ele acelerava o ritmo o vulto também se aproximava. Antes mesmo de completar esse pensamento uma sombra do tamanho da sua cabeça o acertou com força no ombro fazendo-o rolar até o pontilhão. Ao levantar, Ricardo começou a identificar a mesma figura que atacara seu acampamento há duas semanas. As piores férias do mundo. Seguir as ideias do seu irmão nunca dava em coisa boa. Aquilo devia ter pelo menos uns dois metros e meio de altura, estava encurvado, mas era completamente diferente do que se ouvia nas lendas ou se via nos filmes. Não tinha tantos pelos no corpo, era como um cão deformado com muitos dentes fora do focinho, muito musculoso e sua pele parecia coberta de gosma, como uma lesma. A mão cheia de garras agarrou Ricardo pelo colarinho e bem

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próximo do seu rosto urrou em uma mistura de rosnado e voz. Abriu o focinho, lambeu o rosto de Ricardo, emitiu um uivo alto e se preparou para abocanhar a cabeça do rapaz. Nesse instante um zumbido rasgou o silêncio e o monstro urrou. Mais três zumbidos ressoaram em seguida e o cão caiu largando o rapaz. Pulando então de uma fenda abaixo da estrutura de suporte do pontilhão uma figura escura andou calmamente em direção aos dois. - Japonês filho da puta! Essa coisa quase me matou! Você disse que daria tudo certo e esse puto quase me matou! – Ricardo não conseguia se controlar, e no meio da ira percebeu que a figura de preto estava rindo. - O cãozinho está no chão, não está? Então no meu ponto de vista, deu tudo certo. Agora quando você acabar com seu chilique bem que poderia me ajudar no interrogatório – deu mais alguns passos na direção do monstro – E da próxima vez que você me chamar de japonês, eu juro, juro que quebro seu braço. Meu nome é Akio, Akio Kimura. Indo em direção da criatura, Akio se abaixou e retirou uma faca de caça do tornozelo, com lâmina larga e cabo

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preto. Olhou bem para o seu trabalho. Quatro flechas, todas em pontos que imobilizavam os membros; não havia tanta graça em caçar aquele animal, aquilo só vivia pelo desejo de sua fome. Mas como eles começaram a ameaçar o equilíbrio na sua cidade, não havia outro caminho a tomar. O oriental percebeu que a transformação do lobisomem estava caminhando para um estado intermediário, quase humano. Agachando-se perto do monstro, com uma voz suave e clara, ele disse: - Olá, meu nome é Akio. Eu tenho algumas perguntas a fazer se você não se importar. Está claro? – antes de terminar a pergunta Akio fez um corte longo nas costas do cão. A pele chiou como se a faca estivesse quente e na mesma hora se abriu uma ferida. Para um corte superficial foi bastante feio, junto do corte se abriram feridas de queimadura e algo parecido com pus – Olha. Machucar você é bem divertido. Ricardo vem cá! Você devia tentar isso. Infelizmente Ricardo já estava ocupado demais vomitando pra participar da festa. - Para cara! Eu falo o que você quiser, mas para com isso – entre soluços e ânsias a voz parecia quase humana agora.

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- Bom, assim nós vamos nos entender melhor. Qual o seu nome, de onde vocês vêm, quantos são? - Meu nome é Edvaldo, sou de Goiás. Meu bando tem cinco membros. Nós nos cansamos de passar fome, comendo carne morta, então passamos de cidade em cidade, mas esse moleque conseguiu fugir e ficamos para matá-lo. Agora por favor, me solta. - Eu bem que gostaria Ed. Posso te chamar assim, né? Mas eu não sou um caçador normal. Sabe, você nem é meu tipo de presa, acontece que você e seus amigos só se meteram na cidade errada. Eu não ligo para o que os caçadores – fez grandes aspas com as mãos nessa palavra – fazem com vocês, mas você deveria se preocupar com o que eu vou fazer. Agora eu vou tirar as flechas das suas pernas, mas se não se comportar e entrar no caminhão eu corto elas e te arrasto. Entendeu? - Sim – respondeu o lobisomem que nunca tinha sentido medo na vida depois da transformação, mas aquele homem, pequeno, de voz agradável, lhe dava arrepios. Ele não tinha os olhos de uma presa. Naquele instante, Edvaldo era a presa. Sentiu uma forte fisgada e pressão no local onde estavam as flechas. Levantou-se e percebeu que exatamente como aqueles que ele caçou, não conseguia correr. Queria fugir dali. Desaparecer, Na Lua de Sangue – Thomaz Valvassori


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ficar o mais longe possível daquele homem, mas não tinha forças. Percebeu que estava diante de um terror que ele não conhecia, nem mesmo quando estava perto de outros caçadores. Então caminhou com a cabeça baixa até o caminhão, sentou-se e esperou. Durante o caminho Ricardo parecia mergulhado no silêncio, não dizia nada, não olhava pra lugar nenhum. As pessoas normalmente respondem a situações extremas de formas diferentes, a forma como ele respondia aquela situação não incomodava de verdade Akio, mas ele não conseguia para de pensar no que Sophia havia lhe dito: “Apesar de você não compreender as emoções, deveria pelo menos fingir que se importa. Assim ninguém vai ficar com a imagem do japonês homicida-porra-louca. Vão ver bondade, assim como eu vejo”. Aquilo realmente era incompreensível pra ele. Ele estava caçando pelo cara, dando uma oportunidade de vingança e ainda tinha que se importar com ele, tinha que brincar de Oprah no mundo das Trevas. Se Sophia não fosse tão linda, o fizesse sentir coisas que não entende, traduzindo, mexesse tanto com ele, certamente o nerd ia ganhar uma coronhada, não um afago. - E aí? Satisfeito até agora? – boa Akio, pensou ele, comprometimento com o próximo dois por cento.

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- É. Tirando o fato de estar perto da morte duas vezes em uma semana, eu estou bem – franziu o rosto numa expressão de nojo e sarcasmo – Cara, como você consegue fazer isso sempre? Toda vez encarar essas coisas e ainda viver fazendo piada? - Minha mulher diz que eu nasci quebrado. Eu tento explicar que é um lance de família, sabe? Mas não parece convencê-la. - Peraí, mais gente da sua família faz isso? Vocês são o quê? O clã psicopata? - Vou deixar a ofensa a minha família passar porque você quase morreu, mas não faz isso de novo – sorriu – A cada duas gerações nasce alguém com predicados para o trabalho. Antes de mim foi o meu avô, foi ele que me treinou. Morreu logo em seguida. Meu pai nem sabia que ele fazia isso. As coisas que eu caço também só aparecem a cada duas gerações, é uma balança entre Caos e Ordem. Como no budismo, eles surgem como Causa e nós somos o Efeito, sacou? - Entendi. E o que você caça. Ouvi você dizendo que o lobisomem não era sua presa. E que você nem sabia o que os caçadores faziam com eles.

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- Eu caço um ser sobrenatural natural do Japão chamado Youkai. Pra resumir, tudo o que é sobrenatural no Japão é youkai, nem todos são maléficos, mas os que são eu pego. Os piores e mais perigosos são as Kitsunes. O Espírito Raposa. A intenção das kitsunes maléficas é dominar o mundo e escravizar os seres humanos. Vieram alguns pra cá com a imigração japonesa e eu sou, até onde eu sei, o único caçador deles nesta região. Você é nerd, então se fizer algum comentário do tipo: “igual aos mangás”. Você vai tomar uma surra. O que os lobisomens, vampiros, fadas, sacis e outras coisas daqui do ocidente são, nem de longe são o que o mais doce youkai maléfico é. Os seres ocidentais são controle populacional, são predadores. Os youkais controlam, deturpam, e sugam o viço e a alma humana. Entendeu? - Acho que sim. Você já conheceu algum outro caçador do ocidente? - Já. Tive um amigo há alguns anos. Fábio. Mas essa é uma história sobre a qual não quero falar, ok? - Tranquilo... Ah, Akio. - Fala garoto. - Obrigado, obrigado mesmo.

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As piores férias na pior cidade do mundo

André terminava de colocar algumas roupas dentro da mochila e de mastigar uma bolacha recheada. Era alto, 1,90m talvez, cabelos cacheados cortados na altura da nuca, tinha um ar hipponga. Os olhos verdes eram como os da mãe e seu sorriso era definitivamente do pai. Estava visitando a família em mais um feriado prolongado, adorava rever a mãe e o irmão caçula, as coisas estavam tensas na faculdade de direito; estágio, provas finais, monografia e ainda havia as duas gatas que conhecera no bar da cidade. Duas gatas lindas dispostas a acampar com ele e o caçula. Só de tirar o Ricardo de casa, do seu santuário de livros de engenharia e mangás, já poderia considerar o final de semana inesquecível. Mal pensara a respeito e o irmão entrou. Era mais baixo que ele, uns 10 centímetros, estava definitivamente acima do peso, o cabelo liso e loiro caia sobre os lindos olhos azuis. Seria muito bonito se perdesse peso e consertasse a mania de se vestir como um nerd de 13 anos. - Vamos Ricardo, você vai gostar cara.

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- Não sei não André. Eu, você e duas minas desconhecidas em um acampamento perto daquela merda de cidade. Sem falar na pilha de trabalhos que eu tenho que concluir. Duas páginas de exercícios de cálculo IV Dé. Duas. - Eu tenho uma palavra pra você Rico. Buceta. - Tá legal, já faz uns seis meses que eu terminei com a Alice. Mas não tô tão na seca assim. - Sério?! – disse André cruzando os braços no peito – Eu não transo há uma semana e já tô subindo pelas paredes. - Tá, agora eu me senti ridículo. Vou arrumar minhas coisas. Não demoraram mais do que meia hora para encher o velho Willis do pai. Era com certa nostalgia e alegria que faziam aquilo, o pai adorava acampar, quando vivo acampava o tempo todo. Já conheciam a Serra da Canastra, São Tomé das Letras, Chapada Diamantina, litoral fluminense, as serras gaúchas e muitos outros lugares por que o pai os levara. Esse era o tipo de férias favoritas da família. Checaram mais uma vez os itens de segurança e partiram para a cidade vizinha.

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As cidades não ficavam mais de cem quilômetros de distância uma da outra e mesmo assim eram muito diferentes. Enquanto a cidade dos meninos tendia mais para o agronegócio com uma base da Aeronáutica, a vizinha era um pólo industrial. Nela havia até mesmo um antigo distrito industrial desativado bem no centro do que chamavam “Cidade Velha”, a estrutura da cidade crescera em volta deste primeiro pólo desenvolvido pelas famílias de imigrantes japoneses. A indústria têxtil era a base para a economia dali, mas com o tempo a siderurgia e a construção civil também se consolidaram como fonte da renda do município. Eles cortaram a cidade no sentido do “Centro Novo” até um bar frequentado por universitários e motociclistas chamado Moinho. O nome não era sugestivo, mas era o público que chamava a atenção. Muitas mulheres vestidas no estilo femme fatale rock’n roll. Um verdadeiro oásis. Desceram do jipe ainda com o corpo dolorido e cansados da viagem. Assim que entrou no bar André foi calorosamente recebido por uma morena linda. Seios médios, cintura fina, lábios carnudos e boca grande, estrutura de modelo. Ao lado de André parecia uma criança, chegava ao máximo a altura do peito dele. O rapaz a puxou de lado levando-a até o caçula e a apresentou:

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- Rico. Essa é a Juliana – disse o nome dela entre um sorriso e uma piscada de olho. - Prazer. Seu irmão fala muito de você – ela tinha a voz um pouco aguda, mas agradável, com um ligeiro sotaque de Minas. - Eu tenho certeza que ele falou. Deve ter reforçado o lado que eu sou um nerd que cursa engenharia, adora mangás e que mal consegue acompanhá-lo no jogo de handball – Ricardo segurou a barriga formando uma razoável pochete de gordura e sorriu encabulado para a morena. - Não. Mas me disse que tinha um senso de humor incrível, lindos olhos azuis e que se achava menos do que realmente era – terminou a frase com um largo sorriso. - Droga Dé, ela é muito gente boa pra você. Não deixe ela escapar, por favor, você não tem muita sorte. Quase sempre são piranhas metidas a juízas. - Tá vendo, eu sabia que você era sensacional. Por isso mesmo estou levando minha melhor amiga com a gente pra fazer companhia a você – apontou então para uma loira encostada no balcão falando com um gordo careca que gesticulava muito – Ah, só a título de curiosidade,

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ela tem fetiche por cérebros, loirinho. E é louca por mangás. Fica a dica. - Acho melhor você parar de babar maninho e nós irmos até lá conhecê-la – a alegria de André era nítida perante a cara de tacho que o irmão fizera quanto viu a loira. Mas havia muitos motivos para isso. Maria devia ter pelo menos 1,70m, cabelo tingido de loiro, olhos castanhos; mas o corpo, nossa, o corpo era maravilhoso; coxas fartas, seios grandes, tudo proporcional. Não era linda, mais seu sorriso e sua simpatia compensavam qualquer defeito. Mal percebera que o levaram até ela. Vestia uma camiseta do Motörhead, com jeans claros; o cabelo estava preso em um coque com uma piranha. Quando ela sorriu e começou a conversar o ambiente se iluminou. Não havia mais banda, outras meninas, seu irmão e Juliana, nada. Só ela e aquele sorriso magnífico. Ele até percebeu que os seus lábios se moviam entre o mostrar de dentes, mas estava longe demais, mergulhado em contemplação pra perceber. - Eu disse que gostei da sua camiseta. “Death Note”, né? Adoro esse mangá também.

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- Desculpa. – limpou os olhos antes de continuar falando. – Pra mim é difícil conceber uma menina linda como você conhecer mangás. Pra ser sincero tive que parar de olhar... - Pros meus peitos – interrompeu ela. - Não – abriu um grande sorriso e tirou a franja dos olhos – Pro seu sorriso. Então ela sorriu de volta e a conversa fluiu de política a mangás, bandas de rock e carreira e o quanto esperavam que esse fim de semana fosse ser roubada e estava ótimo até agora; tirando o gordo que não parava de cantá-la desde o momento em que chegou ao bar e só parou por que o moto clube pediu gentilmente para que ele saísse. Algumas horas depois, várias cervejas depois, André foi chamá-los para começarem a subir até a área de camping próxima as cachoeiras da região. Entraram no jipe, Ricardo e Maria continuaram sua animada conversa, esperando o fim do trajeto. Chegando à área de camping, enquanto André e Ricardo armavam as barracas, as garotas conversavam animadas abrindo mochilas e preparando o jantar. Maria olhava com entusiasmo para Ricardo e ele não

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conseguia entender o que ela via nele, apenas ficava feliz com isso. A noite chegou tranquila com uma bela lua cheia, um céu claro o bastante pra inspirar André a tocar um pouco de violão. Embalados pelas músicas e o som dos risos de Juliana. Ricardo e Maria observavam a bela lua encostados em um grande jequitibá. André e Juliana com certeza não se importariam em ficar sozinhos. Com certeza não se importavam. - Adoro a lua assim. Grande, luminosa, traz esperança você não acha? – a frase saiu com suavidade, seguida de uma longa pausa. Maria usava um vestido escuro na altura dos joelhos e segurava uma xícara de café nas mãos. - Também gosto – apesar de continuar a conversa não conseguia parar de olhá-la. Ela prendia sua atenção. Queria decorar cada traço do seu rosto, cada detalhe, as sardas próximas aos olhos, a cicatriz pequena no queixo. Foi interrompido por ela nesse exercício contemplativo. - Acho que você é o cara mais fofo que já me olhou sabia. Você não fica olhando como se eu fosse um pedaço de carne, algo pra ser desejado. Você me olha com ternura – andou em direção a Ricardo, levando a

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mão direita a sua franja, tirando os cabelos do olho – E o melhor de tudo, você nem consegue ver que é especial – sorriu daquela forma encantadora e o beijou. Primeiro foi suave, doce, depois foi ficando mais apaixonado, forte, brusco. Ricardo a apertou firme em seus braços e colocou uma mão em sua nuca enquanto a outra apertava sua cintura, o beijo e o calor dos corpos foram aumentando, ficando cada vez mais voraz. Desceu a mão pela coxa da loira e segurou entre ela e a dobra das nádegas, as mãos dela escorregaram para debaixo da camisa dele. Ele começou a levar a mão pra dentro do vestido buscando uma área mais sensível, ela acariciava o volume da calça dele com vontade, foi quando ouviram o primeiro grito.

Sala de Guerra

O caminhão Wolkswagen estacionou em uma fábrica no meio do distrito industrial antigo. Pelo pórtico da entrada, Ricardo deduziu que fora construído no meio do séc. XX. Aparentava ter, além dos dois andares à vista, mais dois andares no subsolo. Akio desceu rápido e foi até a carroceria apontar o caminho para o

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lobisomem, Edvaldo caminhou com certa dificuldade devido aos ferimentos, mas dirigiu-se a entrada da fábrica, desceu os degraus até o segundo subsolo como o japonês havia instruído. O galpão onde se encontravam era amplo, havia uma antiga escrivaninha ao fundo com um mapa da cidade na parede, livros em uma grande estante de madeira, uma bancada contendo vários tipos de armas e no fundo da sala um conjunto de três celas de aço. O restante do galpão não podia ser observado com clareza devido a pouca iluminação. O lobisomem foi colocado na última cela da fileira, próximo à parede oeste. Depois de trancarem a cela Ricardo observou uma enormidade de plantas desta parte e de outras do antigo distrito sobre a escrivaninha. Havia várias anotações em japonês, várias marcações e muitos cálculos, fotos de vários homens estavam presas às paredes com anotações em papéis coloridos. Horários eram marcados em fotos de bares, restaurantes, casas e vários outros imóveis. Dois livros puídos estavam sobre a mesa abertos, neles Ricardo só conseguiu distinguir a palavra lupus, deveria estar escrito em grego ou latim, bem, pra ele não fazia diferença. Vários desenhos parecidos com a forma apresentada pelo lobisomem na noite do ataque a Ricardo e naquela mesma noite também estavam ali, ao lado destes dois livros uma Na Lua de Sangue – Thomaz Valvassori


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agenda, com páginas não pautadas, com várias anotações também em japonês no que parecia ser um comentário dos livros, pois, havia também, a palavra lupus em meio aos ideogramas. - Há quanto tempo você os está estudando? perguntou Ricardo retirando algumas das anotações da mesa. - Estou seguindo pelo menos dois deles desde que encontrei você há uma semana e meia. E ao que eu verifiquei houve pelo menos mais dois ataques. Dois acampamentos, próximo ao local em que vocês estavam – retirou algumas fotos de uma gaveta do lado esquerdo da escrivaninha, havia muitas partes de corpos humanos, barracas rasgadas, e carros parcialmente submersos na represa próxima. Aquelas imagens causaram vertigem imediatamente, fazendo com que ele tivesse que se apoiar na escrivaninha – Você tá bem garoto? Não achei que fosse te perturbar tanto, não tenho muito tato pra essas coisas – levantou-se da cadeira e encheu um copo com água, empurrou o copo para Ricardo e continuou – Não se preocupe, vamos resolver isso logo. Estas com certeza foram às últimas vítimas deles. Vamos terminar essa caçada.

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- Não me leve a mal Akio – disse bebendo um grande gole de água – Não tenho nem mesmo como te agradecer a ajuda, mas eu não gostaria que isso acabasse em mais mortes. Eu já não durmo há semanas. Sonho com meu irmão, Juliana e Maria! Escuto o grito deles, vejo aquelas coisas mastigando meu irmão vivo! Vivo! Ele chorava e gritava e eu não pude fazer nada! Mas mesmo assim não aguento mais ver tanto sangue, ver tanta carnificina – desabou na cadeira e inspirou fundo, limpou os olhos e percebeu que o oriental o observava com um misto de curiosidade e empatia. - Eu sei que você está cansado e entendo se quiser ficar de fora. Mas eu tenho que pará-los, porque eles não vão parar. São como viciados, tem um apetite voraz e nunca se satisfazem, eu não vou condenar mais pessoas a ter lembranças como as suas. Foi até a cela onde estava Edvaldo. Ele estava deitado na cama de cimento, havia um colchão lá, não parecia ser tão desconfortável. O lobo agora estava sem nenhuma das flechas, se podiam ver agora as marcas de uma juventude sob o sol do cerrado, a calvície começava a se projetar no alto da cabeça e nas entradas. Ele era baixo, menor que Akio e não parecia ameaçador daquele jeito. Ricardo permaneceu na escrivaninha olhando para

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as anotações de Akio, tentando entender o que ele planejava para aquela noite. Enquanto Ricardo estava absorto em seus pensamentos Akio voltou para a mesa e se concentrou na melhor abordagem para falar com o garoto. Havia coisas que ele ainda não contara e que provavelmente mudariam a vontade de Ricardo de participar da ação no dia seguinte. - Você sabia que os lobisomens não têm controle sobre eles mesmos nas primeiras duas semanas após sua criação? – entregou uma página com algumas anotações para Ricardo e continuou – Enquanto estão nessas condições são marionetes assassinas de seus criadores, quem os morde tem controle total sobre eles e se esquecem de tudo o que ocorre após a transformação. Isso é chamado “Lua de Sangue” e ela acontece toda noite durante esses quinze dias. - Por que você tá me contando isso? Eu não quero fazer especialização em lobisomens. - Você deve conhecer seu inimigo. Aquela gosma que você viu no nosso amigo lupino significa que ele tinha acabado de se transformar, o que te dá vantagem por que recém-transformados eles são mais fracos. Provavelmente precisaria de mais umas duas flechas para

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parar um lobo que já estivesse transformado há mais tempo. - Você tá planejando usá-lo de isca – disse Ricardo. - E depois eu vou matá-lo. - Posso te perguntar uma coisa com sinceridade Akio? - Manda garoto. - Você se importa em como eles se tornaram esse monstros? Ou se eles ainda têm família? Sabe quem eles eram e como é a vida deles? - Não penso nisso Ricardo. Minha preocupação é que eles não machuquem nem transformem mais ninguém. Esse bando não têm regras. Aqui quando mesmo acidentalmente um lobo é criado todo o clã toma conta. É o jeito como ele mantém os caçadores fora da cidade. Eu nunca me importei com isso até agora, mas começo a me preocupar. Tem uma coisa que eu não te contei. - Vai por mim, nada do que você me disser pode me deixar mais atordoado do que o que eu passei esta noite. - Assim que eu encontrei você, comecei a seguir o bando e a registrar a atividade. Então, peguei o nome e foto de desaparecidos aqui na cidade com um contato

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na polícia. Queria ter certeza que não havia nenhum outro sobrevivente – sentou-se na cadeira e esfregou as mãos na coxa, olhou para os pés e completou a frase Mas há. Aquela menina. Maria. Ela sobreviveu e com certeza foi contaminada. Ricardo começou a ver tudo girar. Maria viva. Maria um monstro. Tomou o resto da água que havia no copo, levantou-se. Akio com certeza ia querer matá-la. Não ele não podia deixar as coisas assim. Ele tinha de encontrar uma saída. Maria e seu sorriso. Maria e sua alegria. Maria agora sua inimiga? Ricardo ficou entre o desespero e a esperança. Lembrou-se do cheiro do cabelo de Maria, e da suavidade dos lábios. Akio empurrou três fotos para Ricardo sobre a mesa. Em uma delas Maria estava com seu jeans claro e uma camisa de flanela fumando um cigarro do lado de fora do Moinho. Na outra era arrastada por um gordo careca para o galpão nos fundos do bar, pela luz na foto era entardecer. E na última havia o mesmo gordo recebendo mercadorias e Maria limpando mesas no Moinho. Ricardo observou as fotos e se lembrou de que não trabalhava nenhum gordo careca no bar. O dono era um velho motoqueiro, sabia disso porque ele havia dado uma rodada grátis de cerveja a eles, dissera que as

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meninas eram as melhores funcionárias do bar. Mas lembrou daquele gordo. Era o cara que importunara Maria a noite toda. - Eu conheço esse cara – Ricardo apontava freneticamente para a imagem do gordo na foto. - Deveria mesmo, ele é o dono do bar onde as meninas trabalhavam. - Não Akio. Ele não é o dono. Ele é o cara que importunou Maria a noite toda. Ficou enchendo o saco perto dela. Só parou porque era difícil encarar vinte motoqueiros. - Então, isso pode explicar o fato dela ter sido transformada e não morta – Akio colocou um punhal no cinto, pegou um bag de guitarra, colocou uma katana dentro dele e caminhou na direção mais escura do segundo subsolo. Um forte farol cegou Ricardo por alguns momentos e ele percebeu que o japonês vinha pilotando uma moto em sua direção. - Você me disse que sabe atirar, né? – disse Akio empurrando uma sacola no peito de Ricardo. - Sei, meu pai era tenente da Aeronáutica e ensinou a mim e ao André. Aliás, atiro bem até.

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- Então escolhe algumas dessas e se acostume com elas. Enquanto isso eu vou fazer uma visita ao nosso amigo acima do peso. Quero que ele dê um recado pra mim. Arrancou com a moto e saiu por uma rampa na parede leste que Ricardo ainda não notara. Ricardo sorriu e abriu a sacola que mais parecia com saco de presentes de Natal do Rambo. O japonês não brincava mesmo em serviço.

Todo cão tem seu dono

A garçonete havia telefonado há menos de dez minutos e já haviam três homens sentados na mesa da gerência no Moinho. Ela não gostava deles, mas desde o ataque há quase duas semanas passava quase todo seu tempo ali. Ela não sabia o que fazia, nem com quem fazia, mas sempre acordava nua e coberta de sangue. Eles diziam que faz parte “pirar” nas primeiras transformações. Mas que ela tinha sorte. Florestan era seu criador e ele nunca maltratava os neófitos.

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Na mesa estavam Porpeta, Samuel e Messias. Eram o bando de Florestan, seus homens de confiança. Não chamariam a atenção em nenhum lugar comum, pareceriam com qualquer bando de amigos, juntos, tomando cerveja no bar, relaxando. Porpeta era quem “tomava” conta do bar e dela. Era gordo, careca, mas muito forte. A inteligência não era sua característica mais brilhante, mas era astuto. Samuel era alto, um típico lutador de MMA. Havia tatuagens de tribais nos dois braços, raspava o cabelo, barba por fazer, obedecia cegamente Florestan, não discutia suas ordens como o Porpeta, era um cão leal. Messias tinha uns 17 anos no máximo. Negro, franzino, usava camisa social e calça jeans, estava sempre com seu tablet na mão. Esse era o grupo que esperava Florestan. Ele não havia chegado ainda, mas eles discutiam sobre o “incidente”. - Sério Porpeta, um japa baixinho furou sua mão e quase te fez mijar nas calças? – Samuel não se continha, gargalhou alto e apontou para a mão enfaixada de Porpeta – Eu ia adorar ter visto, ele não faria algo assim comigo, eu teria esmagado a cabeça do inseto. - Será mesmo Samuel? Ele era rápido e posso te dizer com certeza que sabia alguma coisa dessas artes marciais

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que torcem você – levantou-se enquanto falava e caminhou até o freezer de cervejas. - O que eu sei – disse Messias – é que ele também conhece informática. Todas as câmeras que eu instalei foram desativadas, não tenho nenhuma imagem dele. Será que ele é aquele caçador de Araraquara? - Não. O cara de Araraquara era negro, e tinha o hábito de atirar primeiro, conversar depois. Lembro-me de você gritando Messias: “por favor, não me mata. Eu sou só um garoto”. Você e o Porpeta são duas bichinhas mesmo. - Isso não vem ao caso agora. O que precisamos fazer é achar aquele puto e pegar o Edvaldo ou o que sobrou dele. Alguém quer ceva? -Eu também concordo com isso – a voz grave vinha da porta do bar. Lá estava um homem de terno e gravata, cabelo liso, grisalho, estatura mediana, um rosto tipicamente latino. Caminhava usando uma bengala, mas não mancava. Aproximou-se da mesa, Samuel automaticamente cedeu seu lugar. A garçonete se aproximou trazendo uma taça de vinho e um charuto em uma bandeja.

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- Obrigado Maria – disse com um sorriso – Como sempre você é gentil e atenciosa. Agora me falem do nosso amigo oriental. - Ele entrou aqui, pediu pra vadia... - Não a chame assim Stephano, ou eu arranco a sua língua – soltou uma nuvem de fumaça na direção de Porpeta. - Cara você irrita demais o chefe, ele até tá te chamando de Stephano – Messias não conseguiu segurar a língua frente à bronca tomada pelo balofo, aquilo era muito divertido. Maria também não conteve o sorriso, Porpeta não perdia a oportunidade de humilhá-la, em parte por ela não ceder às investidas dele, em parte por ela ser a preferida de Florestan. - Desculpe Florestan. Eu dizia que ele pediu a Maria que me entregasse a medalha do Edvaldo – colocou a grossa corrente com a medalha de São Bento na mesa – e pediu que eu fosse falar com ele, me disse que devíamos encontrá-lo no distrito velho amanhã, às dez da noite. Eu resisti no início, mas ele foi persuasivo – mostrou a mão enfaixada – O que vamos fazer chefe? - Devemos esperar aqui alguns minutos. Eu pedi uma audiência com o líder da matilha dessa cidade. Na Lua de Sangue – Thomaz Valvassori


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Foram longos quarenta minutos, todos estavam quietos. Messias mexia sem parar em seu tablet, Porpeta bebia com um apetite voraz, Samuel fumava em um canto do bar e Florestan, no balcão, tentava puxar conversa com Maria. - Você não parece preocupada? – perguntou Florestan. - Não tenho motivos pra estar Florestan. Ele está atrás de vocês não de mim – passava o dedo sobre a borda do copo de cerveja no balcão. - Você é ingênua ou burra? Ele está atrás do bando e você faz parte dele agora. Ele vai atacar primeiro e fazer perguntas depois. Além disso, você ainda estará sobre a “Lua de Sangue”, vai ser só uma arma em minhas mãos. Maria fechou a cara visivelmente contrariada, a ideia de que Florestan a controlava sem que ela pudesse fazer nada a enojava, era como ser estuprada mentalmente. E quem garantiria que não era de verdade? Enquanto esses pensamentos passavam pela turbulenta cabeça de Maria uma voz se ouviu na porta antes que ela pudesse retrucar com Florestan. - Boa tarde meus amigos. Atrapalho?

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A voz era de um senhor, devia ter seus sessenta anos. Mulato, de cavanhaque, vestia calça jeans e camisa de um time de futebol da cidade. O cabelo era bem cortado, e as mãos evidenciavam um tempo de trabalho no campo. Caminhou calmamente até o grupo que agora se reunia perto de uma das mesas. Olhou a todos, demorando-se nos olhos de cada um por alguns segundos. Seu olhar exibia um poder que sua aparência não carregava. Ele tinha autoridade, tinha força e isso era nítido nos seus olhos vermelhos. Era como olhar para um muro, um bloqueio. - Então? Vocês pediram uma audiência, não pediram? – puxou uma cadeira e estendeu uma pequena agenda na mesa – Sobre o que será? Devo avisá-los que a falta de tato em não se apresentarem não será deixada de lado. - Perdão Senhor. Mas houve contratempos que atrasaram nossa apresentação – disse Florestan – Fomos visitados por um caçador hoje, queríamos conselhos. - E como era esse caçador? - Era um oriental...

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- Akio Kimura – interrompeu o senhor da cidade – O que vocês fizeram para irritá-lo? Ele não costuma se meter nos nossos assuntos. - Não sabemos senhor. Mas por que vocês permitem a presença de um caçador aqui na cidade? – interpelou Messias. - Criança, não me interrompa. Deixe que seu senhor faça as perguntas – levantou-se da mesa e colocou a caderneta no bolso – Espero que também não esteja sugerindo que não sei administrar a minha cidade – sorriu e começou a caminhar pelo bar – Voltando ao assunto do caçador. Vocês irritaram o caçador que matou três dos quatro chefes da cidade, ao mesmo tempo, em meio ao conselho de guerra, ele não tem medo e é mais psicótico que um neófito sob a “Lua de Sangue” – pousou os olhos em Maria nesse instante – Já que querem meu conselho, aí vai: Saiam da cidade. - Obrigado senhor, agradeço ter nos oferecido seu tempo. Apesar de achar que nos ajudaria a dar cabo do caçador – disse Florestan. - Eu não tenho interesse em enfurecer este caçador. Com ele aqui nenhum outro se mete nos nossos assuntos e eu sei por experiência que só algo muito grave o faria

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caçar nossa espécie. Ele nos acha inferiores, um desafio fácil – olhou para Porpeta que estava num canto próximo ao balcão – E acho que não o culpo – puxou o telefone celular do bolso teclando algumas vezes – Bem, se era só isso, já vou. Ele caminhou em direção à porta, mas não sem antes olhar com bastante atenção pra Maria. Saiu do bar sem mais conversa. O clima ficou tenso após a saída do velho. Todos estavam sem coragem para começar a conversa. Então Messias começou: - Acho que esse velho é incompetente. Até parece que um caçador sozinho conseguiria matar três chefes. Ele deve estar se cagando de um bando novo na cidade e achou a desculpa perfeita pra nos amedrontar. - Não acho que seja isso Messias – disse Florestan – Mas não vou deixar um caçadorzinho de merda me botar medo. E outra, depois que eu arrancar a cabeça desse moleque, vou tomar essa cidade pra nós. Chega de correria, aqui nós vamos nos estabelecer. Maria ouviu aflita a última frase, algo no velho dizia a ela que aquele caçador não seria um páreo tão fácil como Florestan esperava. Ela se lembrou da noite do Na Lua de Sangue – Thomaz Valvassori


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ataque e fechou os olhos tentando se lembrar dos olhos de Ricardo. Com eles bem vivos em sua mente tentou se acalmar, mas estremeceu. Com certeza a lua estava se levantando. E ela ficou aterrorizada de novo.

Preparativos para a festa

Akio já estava a algum tempo preparando as provisões para a noite. Como já havia enfrentado lobisomens antes ele recolheu o equipamento necessário. Sua roupa de caça era simples. Consistia em uma calça militar preta guarnecida com vários Metsubushi nos bolsos, uma antiga armadura de couro parecida com uma camisa de manga longa, luvas com proteção nos nós dos dedos terminando em Nekode, coturno militar, uma NinjaTo e vários Shurikens. Junto às costas presa no cinto também havia uma Tanto, na coxa direita uma Desert Eagle .50 e como retaguarda havia um Walther PPK em um coldre no peito. Resolvera não levar Ricardo e aquela era a hora de dizer isso a ele. O garoto estava sentado na escrivaninha e lia o relatório que Akio havia dado a ele. Passava a mão

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sobre os cabelos loiros e seus olhos estavam fundos, ele não estava em sua melhor forma afinal. - E aí garoto? Queria falar contigo. - Fala – parecia desanimado e alguma coisa certamente o preocupava. - Eu não gostaria que você fosse hoje. Não acho seguro e há o risco de você travar ao vê-los transformados novamente – sentou-se na frente de Ricardo usando a mesa como cadeira. - Eu agradeço. Acho que não ia conseguir mesmo. Mas eu queria te pedir um favor Akio. - Se eu puder ajudar... - Por favor, não mate a Maria. Ela não tem culpa e eu sei que você pode ajudá-la nesse novo modo de vida. Ela é uma boa garota. - Não posso te prometer muita coisa Rico. Ela ainda vai estar sob a “Lua de Sangue” e eles certamente vão usá-la como bucha de canhão – levou a mão ao bolso para olhar o telefone e segundos depois o colocou no bolso.

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- Bem, aprendi a confiar em você japonês, quero dizer Akio – sorriu amarelo e coçou a cabeça. - Relaxa moleque. Acho que amigos podem se chamar assim. Né, mesmo, “alemoa”. Riram durante um tempo. Após dias juntos Ricardo finalmente ria. E aprendia que podia confiar em Akio. Apesar de tudo eles estavam se tornando amigos. Ainda com esse pensamento vivo observou o japonês ir até o mesmo local no fundo do galpão e perguntou: - O que você tem em mente? – Ricardo já não estava falando, gritava devido à distância entre os dois. - Agora, agora, estou me trocando pra festa. Mas logo eu vou colocar nosso enfeite bem no centro pra que os nossos convidados possam se divertir bastante. - Tá. Mas você não vai me contar sua estratégia? – já tinha ficado evidente que Akio cobria todos os detalhes, mas essa certeza só aumentava a curiosidade de Ricardo. - Não brow, não vou. Mas relaxa que eu vou fazer meu melhor, ok? Ricardo observava Akio sair da escuridão e ele realmente parecia preparado para tudo. Todo de preto, via-se a espada nas costas e duas pistolas, uma na coxa Na Lua de Sangue – Thomaz Valvassori


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direita e outra no peito. Agora que Akio usava uma roupa um pouco mais justa podia perceber que o japonês não era magro como ele pensava, mas que exibia um porte atlético, com músculos definidos. Era como em filme chinês de segunda, quando só se percebe que o herói não é um frango no momento em que ele se prepara para o embate final. Parando ao lado de Ricardo, Akio estendeu uma Glock 33 pra ele, sorriu e disse: - Garoto, o negócio é o seguinte. Essa arma tem balas de prata no pente e aqui tenho mais dois pentes. Se a coisa engrossar ou eles vierem pra cá não banque o herói. No fundo do galpão, de onde eu vim de moto ontem, há um Civic com o tanque cheio. Volte pra sua cidade e ligue pra esse número ok? – estendeu um cartão com um número de celular e entregou um aparelho – Agora eu tenho uma festinha pra preparar. Atravessou o galpão em direção às celas, apanhou uma mochila que estava no chão, sacou a pistola da coxa, abriu a cela de Edvaldo e se colocou em marcha com o lobisomem. Os dois desapareceram na escadaria e Ricardo desabou na cadeira, engatilhou a Glock e começou a sua espera.

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Olá lobinhos! Hora de debutarem na minha cidade

Já eram dez horas da noite e o bando estava no distrito velho. Eram cinco figuras na escuridão. Dois dos lobisomens eram gigantescos, dois menores e o último tinha uma silhueta mais delgada. Mas todos tinham o mesmo aspecto, grandes cães sem muitos pelos, com dentes escapando do focinho. A falta de gosma no corpo indicava que já haviam se transformado há um tempo razoável, cheiravam o ar com gana, como se sentissem o cheiro de um rodízio na esquina. Percorreram alguns metros e encontraram um gravador no chão com uma etiqueta dizendo “me ligue”. Um dos lobos menores regrediu a uma forma intermediária sendo seguido pelos outros, menos aquele da silhueta mais delgada. Ele se aproximou do gravador, apertou play, uma voz agradável e controlada ecoou pelo local deserto. Porpeta reconheceu-a de imediato. - Boa noite lobinhos! Espero que tenham achado fácil o Distrito, sei que vocês não são daqui e fiquei inseguro se vocês encontrariam o local. Agora, sem mais delongas,

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vamos aos negócios. Seu amigo está aqui, sugiro que vocês o encontrem rápido porque ele pode morrer de maneira realmente dolorosa se não fizerem isso. Espero que eu não vá deixá-los esperando muito por sua morte. Abraço. - Esse cara só pode tá de brincadeira – vociferou Messias. - Eu vou mastigar esse idiota, pedaço por pedaço e fazer a pele dele de tapete – Porpeta socou o chão enquanto proferia a frase. - Calma meninos, vamos nos separar – disse Florestan – Porpeta e Messias, vocês vasculham o lado norte. Eu, Maria e Samuel, o sul. Se não encontramos nada em meia hora nos reunimos aqui de novo, combinado? Todos responderam afirmativamente e só então notaram a sombra pequena em cima de um dos prédios. O olhar percebeu mais rápido do que a audição e duas shurikens se cravaram no rosto de Samuel cegando-o do olho esquerdo. Louco pela dor causada pela prata no shuriken Samuel irrompeu pelas escadas se transformando em sua forma completa antes mesmo que os outros pudessem impedi-lo. Assim que ele passou pelo pórtico do prédio, uma carga de C4 foi detonada

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prendendo o lobo sozinho com Akio no prédio. Samuel não se preocupou com isso, subiu as escadas com velocidade e ao chegar ao terraço encontrou o caçador oriental sorrindo. Samuel saltou sobre Akio, que deslizou por entre as pernas do lobo e rasgou sua barriga com as garras da nekode. Colocando-se de pé mais rapidamente do que o lobo imaginara, sacou a desert eagle e deu dois tiros nas pernas de Samuel. O lobo estacou frente a força da arma associada à prata das balas. Regredindo a forma intermediária, arrastou-se até a borda do terraço, mas antes de conseguir chegar até lá sentiu a lâmina fria da espada de Akio cortar-lhe o braço direito, enquanto uma corrente o prendia pela cintura. Seu instinto natural como lutador foi uma reação para imobilizar seu oponente. Akio, prevendo o movimento de Samuel, girou o braço esquerdo dele em um doloroso golpe de aikido forçando o membro até que ele se deslocasse. O grito de Samuel foi medonho e misturou-se a um uivo soando abaixo deles. Akio segurou o lobo pelo queixo e sussurrou em seu ouvido: - Isto é pela refeição no acampamento – puxou a espada que agora repousara nas costas e cortou a cabeça do lobo lentamente. Prendeu com um cadeado a

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corrente ao corpo ainda quente do lobisomem e ligando a outra ponta a um ferrolho no terraço jogou o corpo de Samuel para a escuridão. Prendeu um bilhete na boca escancarada que jazia sem o corpo e arremessou a cabeça em direção a seus companheiros que tentavam loucamente entrar no prédio.

Enquanto a batalha ocorria no terraço, Florestan, Porpeta, Messias e Maria lutavam com os entulhos tentando entrar no prédio. - É perda de tempo. São muitos escombros – disse Messias - Mas nós vamos continuar, ele não tem pra onde ir e se Samuel não o matar nós vamos – Porpeta segurava um grande pedaço de concreto dizendo isso. De repente ouviram um grito forte do telhado e Maria em sua forma completa uivou o acompanhando. Olharam pra cima e viram um objeto grande sendo arremessado na direção deles. Era um corpo que parou a menos de três metros do chão preso em uma corrente. O corpo era de um licantropo em forma intermediária, enquanto observavam o corpo outro objeto menor foi jogado em sua direção. Era a cabeça de Samuel. Na Lua de Sangue – Thomaz Valvassori


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Florestan se aproximou de onde ela havia caído e retirou um pedaço de papel da boca ensanguentada dele. Com um pouco de esforço conseguiu ler o que estava ali, mesmo manchado de sangue: “cinco lobinhos foram passear, além do Goiás para matar. Florestan chorou buá, buá, buá. Pois só quatro lobinhos ainda vão brincar”. A raiva subiu como um foguete pelo corpo de Florestan, em segundos ele estava em sua forma plena. Olhou para o terraço e viu a forma escura do corpo de Akio arremessando algo na direção de outro prédio próximo e deslizando em uma tirolesa para lá. Florestan mandou uma mensagem mental a Maria e os dois saíram em disparada na direção do prédio. No meio do trajeto Florestan observou uma sombra, próximo ao lado esquerdo da construção para a qual Akio se dirigiu. Ciente do perigo que o caçador representava, ordenou a Maria que se dirigisse até lá e atacasse. Mais que depressa a lobisomem seguiu para onde estava a figura atracandose com ela. No momento em que aterrissou sobre ela o chão cedeu sobre suas patas e ela caiu em um fosso. Florestan correu para lá e se deparou com a licantropo dentro de um buraco de uns nove metros de profundidade. Com um pouco mais de cuidado ajudado pela qualidade que a visão de sua forma plena proporcionava ele percebeu que não era um buraco

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escavado e sim um cilo de grãos abandonado. As paredes de metal não davam margem para que Maria escalasse. “Maldito japonês”, pensou ele. Ele calculou tudo. Separou-nos, prendeu a única vantagem que eu tenho em um buraco e matou o membro mais forte do bando. As palavras do senhor local marcaram sua mente “saiam da cidade”.

Porpeta e Messias estavam preocupados, não sabiam se saiam de onde estavam e procuravam Florestan e Maria ou se voltavam ao bar. A única certeza que tinham é que não queriam estar ali, não com aquele japonês homicida a solta. Ele não só matara Samuel, mas o fizera com requintes de crueldade. Escrevera alguma coisa naquele bilhete que fizera Florestan surtar. E Florestan nunca perdia a calma. Agora o chefe estava em algum lugar daquele distrito velho e os dois ali sem saberem se estavam sendo observados pelo oriental. - Cara na boa, vamos dar o fora daqui? – disse Messias. - E encarar o Florestan quando ele encontrar a gente? Nem a pau! Vamos tentar encontrar o chefe! – dizendo isso, passou para sua forma plena. Mal terminara a

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transformação e percebeu que a mesma figura de preto do telhado caminhava tranquilamente em direção aos dois. Porpeta não pensou duas vezes e correu na direção dele, Messias o seguiu instantaneamente, o instinto de matilha o impedia de fugir. Akio observou os dois lobisomens correndo em sua direção, levou uma das mãos aos metsubushis na calça e retirou a espada das costas com a outra. Assim que o lobo menor, mais rápido que o outro, estava em uma distância segura ele arremessou dois metsubushis no focinho dele. Instantaneamente o lobo menor começou a se contorcer, parecia que haviam jogado ácido no seu rosto, ele rolava e se debatia no chão urrando de dor. O lobo maior investiu contra Akio, o oriental se esquivou traçando um corte diagonal no licantropo. Porpeta sentiu a espada rasgar seu peito e o efeito da prata que havia nela foi sentido. Ele tombou com o peito para cima, viam-se suas costelas e muito tecido muscular exposto, ele arfou, olhando para o lado, viu Akio sacar a arma que estava no coldre do peito. Deu dois tiros no abdômen de Messias e mais dois em cada perna. Então o caçador andou até ele. Sorriu e estocou a espada em seu coração transformando tudo em escuridão. Akio caminhou em direção a Messias e deu um último tiro na cabeça do lobo. Agora só restava Florestan. Na Lua de Sangue – Thomaz Valvassori


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Florestan ouviu tiros vindos da direção em que estavam Messias e Stephano. Seu corpo se retesou e ele saiu em disparada. Percebeu então o quanto a raiva o havia feito se distanciar dos dois. Ele e Maria eram muito mais rápidos que os outros e por isso eles não devem ter tentado segui-los. Ao chegar ao local de onde havia partido encontrou mais dois corpos sem cabeça próximos ao corpo de Samuel. Florestan mudou pra sua forma humana. Nu e coberto de sujeira ele contemplou o trabalho do caçador oriental. Enquanto observava a cena dois objetos caíram próximos aos seus pés. Eram as cabeças de Messias e Stephano. Virando-se Florestan observou o homem responsável por aquilo. Tinha um rosto agradável e estampava um sorriso gentil. - Eu avisei que ia matá-los – a voz era firme e limpa como na gravação da fita. - Vejo que é um homem que cumpre suas promessas, japonês – disse Florestan puxando os cabelos pra trás. - Acho justo você me chamar de japonês, afinal de contas eu vivo chamando vocês de lobinhos – emitiu um leve riso.

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- Desculpe se não trato com o devido respeito o homem que matou meu bando, minha matilha. É que eu fico meio ranzinza depois de uma morte na família. - Não se preocupe lobinho. Eu tenho cães em casa, sei como vocês são temperamentais. O chefe da matilha deu um salto em direção a Akio se transformando durante o mesmo. Akio desviou-se do ataque e sacou a Ninja-To. Florestan começou a correr em círculos ganhando impulso na esperança de saltar sobre Akio, percebendo a intenção do licantrope Akio atira uma pequena chuva de shurikens nele, infelizmente a atitude não teve o efeito esperado, “ele é rápido” pensou. O lobo se atira sobre o oriental, mas Akio lança uma metsubushi contendo enxofre nos olhos dele. Cego, Florestan ataca. Quando abre os olhos vê Akio com a espada levantada sobre a cabeça, as pernas levemente flexionadas formando um ângulo de 45 graus. Lembrava alguém levantando uma taça. Aquela imagem lhe era bem familiar, vinha dos filmes de samurai assistidos na infância. “Ele se encontra na mesma posição tomada pelo duelista nas primeiras cenas de “Os sete Samurais”, quando eles procuravam integrantes para o embate na vila”, pensou ele. Florestan entende que, para o caçador, esse seria o momento

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decisivo. Sobre as quatro patas toma velocidade. Uiva de confiança, tomado pelo desejo do sangue de Akio, se lança em um ataque mortal. Então, antes que a garras de Florestan consigam encontrá-lo, Akio dá um passo para o lado com uma velocidade anormal deixando que a cabeça de Florestan fique exposta a lâmina de sua NinjaTo. O golpe é preciso e o lobo tem sua cabeça cortada. Akio respira aliviado e agradece por todos os dias treinando com o avô. As saudades do velho se unem a um sentimento de gratidão e tranquilidade. O caçador oriental agora deve acertar os detalhes finais.

Não leve a mal, mas isso não é novela das oito

O sol já estava nascendo quando Akio se aproximou da beirada do antigo cilo da fábrica de cereais carregando uma mochila. Observou no fundo do mesmo uma garota loira deitada, nua. Retirou uma escada de cordas da mochila e com dois dedos na boca assoviou de maneira estridente pra garota. Ela olhou pra cima tentando se cobrir, ele jogou a mochila e disse:

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- Tem algumas roupas aí que devem te servir. Vou jogar uma escada. Não se preocupe temos um amigo em comum que ficaria chateado se eu te machucasse. A garota ainda assustada vestiu o que havia na mochila, um par de calças jeans, camiseta branca e um jogo de calcinha de algodão e sutiã esportivo preto. Com certeza fora uma mulher que separou a roupa, pois havia até mesmo um par de rasteirinhas na mochila. Alguns minutos depois uma escada de corda fora jogada e ela começou a subir. Não tinha medo, sabia que se o caçador quisesse matá-la seria mais prático atirar nela dentro do buraco e cobri-lo. Quando emergiu do fosso Maria se assustou ao ver Akio. Estava coberto de sangue em algumas partes do corpo e retirava um par de luvas que pareciam ter garras na ponta. - Que bom que você está bem garota. Tem um loirinho muito chiliquento louco pra saber se te matei ou não – sorriu com a brincadeira – E aí? Pronta pra vêlo?

Durante o caminho até o galpão Akio e Maria não conversaram. Ele mandara uma mensagem para que Ricardo o encontrasse na porta do armazém

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abandonado. Quando Ricardo viu Akio voltando e percebeu a silhueta de uma mulher ao longe com ele disparou numa louca corrida. Tropeçou em escombros, gritou como um louco, mas foi quando estava frente a frente com ela que seu coração acelerou. Eles não se detiveram nem por dois segundos, se uniram em um beijo misturado a choro e risos. Akio olhava a cena sem embaraço e sorriu ao imaginar sua Sophia ao vê-lo em casa. Depois de alguns minutos Akio interrompeu o casal: - Acho que agora não sou mais um japonês porra louca, né “alemoa”? - Não cara. Você é o cara que me fez o homem mais feliz do mundo – disse Ricardo abraçado com Maria – Mas o que vai acontecer com Maria agora? - Fiz uns acertos com o senhor dos lobisomens aqui da cidade. Ele vai conversar com ela, explicar os costumes e tal. A única coisa que ela não pode fazer é se afastar pelo próximo ano. Então fizemos uns arranjos com alguns outros amigos e deixamos o bar no nome da Maria. Ele vai passar a ser ponto de encontro dos membros da matilha, mas é ela quem vai gerenciar.

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- E quanto à gente? Podemos ficar juntos? – perguntou Maria. - Loirinha isso eu não sei. Acho que podem se você aguentar o cabeça de mangá aí. Mas é bom conversar com o velho. Ele está esperando vocês na saída do distrito. - Obrigado Akio. Muito obrigado cara – Ricardo já avançava para abraçar Akio. - Ô cabeça de bagre, tá maluco? Aqui não é novela das oito não! – riu para Ricardo o empurrando – Só me faz um favor? Vê se não perde a menina. Porque eu duvido que você encontre outra igual. - Pode deixar velho, não vou perder – abraçou Maria e se colocaram a caminho do portão. Akio caminhou em direção ao armazém, desceu as escadas e chegou até o galpão no segundo subsolo. Foi até a sala de armas retirou o uniforme de caça, colocou jeans e camiseta. Arrumou uma mochila com algumas coisas e subiu na moto. Antes de ligá-la pegou o telefone no bolso, discou o número e ao ouvir a voz do outro lado da linha dizendo alô, respondeu:

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- Amor? Já terminei por aqui. Tô voltando pra casa meu anjo – ligou a motocicleta e partiu sentido Centro Novo. Havia um sentimento diferente nos poucos que ele conhecia e isso o deixava confortável. Lembrou-se do avô e sorriu dentro do capacete, voltar pra casa era sempre a melhor parte.

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A TRAVESSIA ANDRÉ __________________________________________________


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Havia, alguns anos atrás, uma moça chamada Narcisa. Os olhos azuis, feito o sol dançando com o mar, atraiam imensamente os homens. Eram tão lindos que não foram poucos os que mergulharam neles enlouquecidamente, buscando no leito dos olhos o que todos buscam no outro: o coração. Mas ela nunca se apaixonou, nunca deixou que esses marinheiros A Travessia – The Legend


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ensandecidos chegassem a essa arca que bate em nosso peito esquerdo. Deu um fora, ao final, em todos os pretendentes. E não pensem que ela era só exterior. De fato, era bastante inteligente, de modo que fica difícil dizer qual mar de suas qualidades se sobressai em profundidade: a beleza ou a astúcia. Contudo, como é de se esperar, dar de uma vez dois grandes poderes a alguém é testar-lhe uma qualidade (ou seria defeito?) não muito cultivada nos dias atuais: o caráter. E nesse teste, (in)felizmente, a moça não teve sucesso até agora. “Não, não quero compromisso agora”. Outro homem em sua vida foi dispensado. Chamava-se Pedro. Rapaz alto, cabelos lisos em forma de cogumelo. Os óculos caiam-lhe muito bem, já que, a um só tempo, atendiam a duas necessidades: a principal, a do útil, pois tinha leve miopia; e a da aparência, pois as lentes, de fato, realçavam a beleza e a inteligência. Narcisa o dispensou, tão logo ele quis botar-lhe no dedo um anel de noivado. Se não queria namorar, muito menos desejava o casamento. Dessa vez, entretanto, um homem a havia feito estremecer, mesmo que levemente. O seu orgulho e altivez extremos se mantiveram no lugar, não ruíram. Mas foi a primeira oportunidade em que ela, ainda que ligeiramente, descobriu o sentimento de dependência em relação a alguém. Em outras A Travessia – The Legend


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palavras, amou, se é que se pode utilizar esse substantivo nobre para tal sensação sentida pela moça. Ela não cedeu, como já se disse, e recusou o pedido. O rapaz chorou, implorou para que ela, ao menos, pensasse no caso. Estava, de fato, apaixonado por ela. Mas ela, prontamente, disse que “não”. Um dia, numa atitude digna de coragem (para uns) e de loucura (para outros) apareceu no prédio da moça, querendo falar com ela. O porteiro, com um ar de pena, pois sabia que a moça estava em casa, disse: - Ela não está no momento, Sr. Pedro. - Não está, né? Vejamos se não está. Saiu, então, para fora do pilotis e se pôs a gritar, com toda força que a loucura da paixão pode ceder à voz: - Narcisa!!! Deu um intervalo de uns 5 segundos, aumentando dessa vez a força: - Narcisa!!!!!! A voz já desistia da tarefa, já estava meio rouca. Contudo, conseguiu dar um último grito:

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- Narcisa!!!!!!!!!, Narcisa!!!!!!, Narcisa!!! O som, talvez se apiedando das tentativas do rapaz, ajudou-o com o eco. A moça acabou escutando. Assustou-se um pouco, mas manteve-se calma. No momento, se arrumava em frente do espelho, admirando a própria beleza. Estava linda de fato, ia sair com as amigas. Fitava-se, como num lago que, querendo render-lhe tributo, mantém a todo custo suas águas tranquilas e serenas, para que o reflexo não se turve. Pedro desistiu, enfim, e para sempre... Foi dito que, finalmente, um homem havia sido capaz de atingir a moça, como uma saraivada de flechas em que uma, ao menos, consegue acertar o alvo. A princípio, Narcisa não deu importância ao sentimento, afinal, o orgulho, como também já se disse, era sua marca. Contudo, o sentimento não se dissipava. Era como se o eco do grito houvesse penetrado na moça e não conseguisse sair dali, ricocheteando e ganhando força em sua alma. Por que incomoda tanto? A verdade é que se passaram meses, sem que o sentimento sumisse. Pelo contrário, cresceu. Ao ponto de que ela tentou, decididamente, apaixonar-se por um homem. Mas não conseguia. Muitos, achou feios. Alguns, achou bonitos. Poucos, lindos. Mas nenhum tão belo como ela própria.

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Acreditava, portanto, que para se apaixonar por alguém, era preciso que esse alguém fosse como um espelho. Desesperou-se. Como ter a vontade de amar, mas não conseguir amar? Como? Como? Um dia, atormentada, Narcisa pegou o carro e se dirigiu ao grande lago que banhava a cidade. Era uma noite bastante fria, era mês de junho. Foi andando pelos caminhos que circundavam o lago. Lugar bonito, calmo, frequentado, ironicamente, por aqueles que escolheram andar de mãos dadas, aos beijos e abraços, pelas trilhas que vão reto, que dão meia-volta, que fazem curvas, ao sabor do formato do lago. O lugar estava deserto, era um feriado local. Narcisa deteve-se na beirada de um píer. Ajoelhou-se e mirou a própria imagem no lago límpido e bem iluminado, como já fizera várias vezes em casa, diante do espelho. A imagem, longe de ser aquela estática do vidro, era embaralhada pelo vento. Ela, com o tempo, foi se acalmando. O vento também foi se aquietando, de modo que, eventualmente, ela pode ver o belo rosto sem qualquer perturbação: - De que forma? De que maneira? De que jeito? Os mesmos questionamentos, mas, dessa vez, mais calmos e serenos. De súbito, ela viu a imagem de um

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homem na água. O susto quase a lançou no lago. Virouse e pensou: - Mas como ele chegou sem eu perceber? Vendo-a trêmula e com o rosto amedrontado, o homem logo disse: - Não tenha medo, vim te ajudar. Ela estranhou. Ajudar com que? Não, não poderia saber do problema, ela nunca revelou o dilema a ninguém. Ficou olhando-o. De fato, o rapaz tinha uma aura que transmitia certa paz. E os olhos, os olhos eram lindos! Não eram azuis como o dela, mas meio amarelados, cor de mel. Seduzida pela primeira vez, hipnotizada, ela perguntou como ele poderia ajudar, se aproximando dele: - Tudo que tem a fazer é olhar fundo nos meus olhos por 1 minuto. Ela o achou louco. Poderia estar bêbado, não fosse o aspecto arrumado, a voz normal, o jeito confiante. Decidiu entrar na brincadeira. Cingiu-lhe o pescoço, ficando a um palmo do rosto do rapaz: - Você tem os olhos lindos. Não vai ser problema.

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- Os cantos das sirenes de Homero também eram lindos. Ela sorriu, sem entender estas últimas palavras, deulhe um longo beijo no rosto e começou a olhar para ele nos olhos. A princípio, não sentiu nada, a não ser a própria admiração pela beleza deles. Contudo, percebeu que o brilho dos olhos se intensificava, ao passo que as luminárias fraquejavam. Logo, as luzes de todo o parque se extinguiram, exceto aquelas duas em frente de Narcisa. O brilho dos olhos do rapaz começou a ficar insustentável, como dois sóis. Mas são tão lindos! Quase ao fim dos 60 segundos, o brilho, já supremo, irrompeuse num clarão. Ela passara no teste... Narcisa estava à espera para atravessar a rua. O trânsito estava caótico, embora ela estivesse tranquila. No entanto, era preciso o semáforo fechar. Logo, ouviu ela a sinalização sonora. Já ia atravessando quando um braço forte a reteve. Sentiu o vento que um carro invadindo o sinal deslocara. O moço disse: - Desculpe, foi o único modo de... - Muito obrigada!

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O rapaz a conduziu até o outro lado. Olhou-a por alguns segundos. Viu que ela era linda. Ao fim da travessia, ela, de óculos escuros, disse: - Não se preocupe, consigo ir daqui. Muito obrigada... - Pedro, meu nome é Pedro.

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A LOIRA DO BONFIM FABIO GUASTAFERRO __________________________________________________

“Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura.” FRIEDRICH NIETZSCHE


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29/05/14 - Fugir. Lembrar de: “Meu nome é José Cardoso, e este é o meu último dia na Terra.

A Loira do Bonfim – Fabio Guastaferro


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Natasha disse que de hoje não passa. Que vamos fugir juntos, e juntos vamos viver para sempre. Não vejo a hora de sair daqui com a mulher que eu amo. Já passou da hora de sair deste lugar detestável cheio de gente doente. Já estou cansado de ficar nesta maldita maca, ouvindo de todos tudo o que eu não posso fazer. De repente inventaram uma doença que não existe e aquela gorda maldita me colocou neste hospital horrível. Mas isso tudo vai acabar. Em breve tudo vai mudar. Esta noite Natasha prometeu me ajudar a fugir, e juntos vamos sair deste lugar deplorável, desta cidade suja e mesquinha, quero mudar até deste país Miserável. Com a Natasha qualquer lugar do mundo ou fora dele vai ser o melhor lugar para mim. Mas antes de ir embora tenho que pôr fogo nestes papéis, Não quero deixar nada sobre Natasha para ninguém. Já basta o que falam dela. Só eu sei o quão verdadeira é esta mulher.” ... 14/01/14 - Pegar o carro na oficina. - Pagar a taxa da cooperativa.

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- Comprar os peixes para a Márcia. Lembrar de: “Jornada dupla hoje, trabalhar até as 6 da manhã.” 20/01/14 - Pegar o carro na cooperativa de taxi. - Pagar a prestação atrasada da TV. - Depositar o dinheiro do Pedrinho. Lembrar de: “Não tinha percebido como a vizinha nova é gostosa. Mesmo parecendo um pouco mais velha é uma mulher de chamar a atenção. Que bunda que ela tem. Odeio quando chove e esses porras de passageiros entram no taxi sujando tudo. Os malditos conseguem sujar até o teto...” ... 29/01/14 Lembrar de: “A Márcia ficou “amiguinha” da Tânia, a vizinha gostosa. Não sei se é bom ou ruim para mim. Bom porque estou sempre vendo aquele bundão rebolando, ruim porque não posso dar na cara que aquela mulher me enche de tesão. A Márcia acabaria A Loira do Bonfim – Fabio Guastaferro


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comigo. Maldita mulher. Se ainda fosse pelo menos gostosa como era antes, dava para dar umas metidas nela sonhando com a Tânia, mas gorda do jeito que está, ela me dá mais nojo do que prazer. Prefiro bater a santa punheta de cada dia e sonhar com aquela bunda enorme da Tânia sentando na minha cara.” ... 05/02/14 - Médico às 14 horas. Lembrar de: “Será que a Márcia percebeu as encaradas que ando dando na Tânia? E a safada ainda corresponde. Mulher perigosa. Sabe que eu a como com os olhos e ainda fica me fustigando. Quando não é com um olhar atravessado é com um decote ousado ou um rebolado. Mas ela sabe que eu não posso fazer nada, por isso me provoca, fica me testando. Aposto que se eu meter as caras, ela me denuncia na hora para a Márcia. Ela é o tipo de mulher que adora ver o circo pegar fogo, com os bombeiros de férias e os hidrantes cuspindo gasolina. Essa safada está me fazendo esfolar o pau todos os dias. Hoje passei lá pelos lados do cemitério Bonfim e vi uma loira maravilhosa. Engraçado que aquela área não é A Loira do Bonfim – Fabio Guastaferro


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de aparecer mulher daquele nível. Lá é o reduto das mulheres de quatro bolas, duas em cima e duas em baixo. É muito difícil ter mulher fazendo ponto ali. Provavelmente estava perdida, pena que não deu para pegar. Mas que deu uma vontade tremenda de chutar a velhota que estava no carro para colocar aquela loiraça, deu.” ... 07/02/14 - Trocar o óleo do carro. - Pagar o luminoso do táxi. Lembrar de: “Passei novamente lá pelos lados do Bonfim e vi novamente a loira andando próximo do muro do cemitério. Reduzi o carro para apreciar melhor aquelas coxas quando me surpreendi com ela fazendo sinal para que eu parasse. Encostei próximo ao passeio e destravei as portas de trás. Sem falar nada aquela beldade entrou no carro, e foi aí neste momento que aconteceu. Nunca acreditei em amor à primeira vista, mas naquele momento, naquela troca de olhares através do retrovisor interno do carro, no instante em que os meus olhos se encontraram com os olhos dela, eu me perdi

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naquele mar azul com uma bola preta cintilante no meio. Fiquei paralisado de amor, fiquei sem ação, sem palavras, completamente perdido. Não consegui dizer nada, apenas toquei o carro na direção do centro e, sem que eu percebesse o som de sua voz, ela me disse o seu destino. Eu não conseguia notar mais nada, vi apenas seus lábios vermelhos e carnudos se movendo e exibindo dentes de uma brancura maravilhosa. Tive que decidir se dirigia ou ficava maravilhado observando aquela deusa pelo retrovisor. Eu não andaria cem metros sem me acidentar se não me concentrasse no transito. E assim levei aquela loira maravilhosa para o alto das Mangabeiras, outro ponto conhecido de prostituição da cidade. Se antes eu suspeitava que ela fosse puta, agora eu tinha quase certeza. Deixei-a próxima a uma conhecida boate de stripper, ela desceu do carro e pagou a corrida para mais. Antes que eu lhe entregasse o troco escutei, finalmente, a sua voz agradecendo seguida do barulho da porta do carro batendo. Nunca tinha visto uma mulher tão bonita como aquela. Acho que estou apaixonado.” ... 09/02/14

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- Trocar o óleo do carro. Lembrar de: “Passei a noite e o dia inteiro pensando naquela loira. Vou dar umas voltas lá pelas bandas do cemitério para ver se a vejo por lá. Provavelmente deve morar por ali, naquele bairro. Hoje a Márcia veio com uns papos estranhos pro o meu lado. Falando da Tânia, dizendo que admira muito a mulher, que a acha bonita. Para mim, essa gorda maldita está jogando verde para colher maduro. Aposto que a Tânia deve ter falado alguma coisa sobre mim para despertar esse interesse na Márcia.” ... 10/02/14 - Trocar o óleo do carro. - Médico retorno às 17 horas. Levar o cardiograma. Lembrar de: “Pegar o exame de cardiograma no laboratório. Voltei ao Bonfim hoje. Dei duas voltas no cemitério e nas ruas do bairro até que apareceu um passageiro que me levou para o outro lado da cidade. Desta vez, nada

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da loira. Acho que fui cedo demais. Vou voltar lá depois, só que mais tarde. Hoje dei uma encarada na Tânia, ela correspondeu, sorriu e fez biquinho com a boca gostosa. É uma safada mesmo. Me deixou morrendo de tesão.” ... 15/02/14 Lembrar de: “Passei todos esses dias pensando naquela loira. Até dei umas voltas lá pelo Bonfim. Estou me acostumando a andar na região. Ontem levei um cara lá para ver as “bonecas”. Como um homem casado pode se interessar por aquele tipo de coisa. Fico na dúvida se ele come o traveco ou se o traveco que come ele. Deve acontecer as duas coisas. Como eu estava na região, acabei pegando o mesmo cara na volta, com um maldito fedor de perfume barato. Queria sugerir a ele passar na rodoviária e tomar um banho, aquele cheiro de puteiro iria denunciá-lo em casa, mas deixei para lá. Isso não é problema meu. A chata da Márcia inventou uma briga do nada comigo. Disse que eu estava olhando para a bunda da Tânia. Provavelmente é verdade, ela deve ter me pegado olhando em um momento de distração, viajando no A Loira do Bonfim – Fabio Guastaferro


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sobe e desce daquelas nádegas. Mas, porra! Eu sou homem, tenho que olhar mulher mesmo. Antes desejar uma mulher do que ir dá o cu para os travecos do Bonfim. Quase disse que se ela não emagrecesse eu iria comer outra mulher, já estou cansando de ficar na mão. Mas não quis estender a falação.” ... 17/02/14 - Trocar o óleo do carro. Urgente!! Lembrar de: “” ... 22/02/14 - Pagar a prestação da TV – Atrasada de novo. - Depositar o dinheiro do Pedrinho. - Comprar os peixes para a Márcia. - Futebol, cinema ou kart? Preciso fazer alguma coisa para sair de casa. Lembrar de: “Depois de muito rodar pela região do cemitério do Bonfim finalmente coloquei aquela maravilha de mulher dentro do meu carro novamente.

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Já tinha dado várias voltas em torno do cemitério e nada, quando retornava à rua do muro de trás do cemitério lá estava ela, no mesmo local de antes. Deve morar bem próxima dali, pois o quarteirão que circulei era pequeno e quando ela apareceu não tinha 5 minutos que eu tinha passado por ali. Desta vez já fui ousado e aproximei o carro dela, quase parando destravei as portas. Ela se abaixou olhando para dentro do carro e sorriu, o sorriso mais lindo do mundo e eu derreti, fiquei novamente sem ação, sem palavras, completamente encantado. Ela perguntou, sem que eu percebesse o som de sua voz, se o carro estava livre. Eu gaguejei que sim ao mesmo tempo que balançava a cabeça em sinal de positivo. Ela entrou no carro, sentou no mesmo lugar que havia sentado na outra vez e me olhou pelo retrovisor. Os nossos olhos se encontraram e me perdi completamente outra vez. Acho que cheguei a babar antes de responder um sonoro “Sim senhora”. Era o destino que eu ouvia sem perceber o som. Era para o Mangabeiras que deveria tocar. Tentei arrancar com o carro desligado, não percebi quando o motor morreu. Novamente tive que me decidir: Ou esquecia um pouco aquela mulher ali atrás ou seria impossível tirar o carro do lugar. Com um

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tremendo esforço foquei na direção e parti rumo à Avenida Afonso Pena. Após alguns minutos relaxei um pouco, mesmo sentindo o meu coração explodindo no peito de pura emoção, as mãos suando, a gagueira, a incrível necessidade de falar alguma coisa sem saber direito o que deveria falar. Eu já tinha me sentido assim antes, há muito tempo atrás. Senti isso apenas uma vez, quando encontrava com a Aline, uma namoradinha dos tempos do colégio. Acho que foi a única vez que me apaixonei. E agora acontecia de novo. Eu tinha que falar com aquela mulher. Agora que todos os meus sentidos haviam voltado a funcionar normalmente, eu conseguia sentir o doce perfume de flores do campo que enchia todo o taxi. Sentia minhas mãos suando ao deslizar no volante e os batimentos do meu coração. Formulei por diversas vezes o que iria falar com ela, mas acabei dizendo algo totalmente diferente e sem sentido. Perguntei o que uma mulher como aquela estava fazendo em um lugar como aquele. Ela se limitou apenas a sorrir e eu fiquei mais sem graça do que piada em enterro. No próximo sinal que parei eu resolvi novamente falar, desta vez com mais cautela, comentei sobre o

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tempo que estava seco e frio para aquela época do ano. Ela sorriu novamente, mas desta vez me olhou diretamente nos olhos pelo retrovisor. Senti certa cumplicidade da parte dela e que, sem dizer nada, concordava com o que eu dizia. Também me senti mais à vontade e confiante e quando chegamos ao nosso destino me ofereci para levá-la de volta se fosse preciso. Desta vez pude ouvir claramente a sua voz de harpa de anjo dizendo que iria sair tarde e que talvez eu já estivesse descansando quando ela fosse voltar. Retruquei dizendo que tinha acabado de começar o turno, o que era mentira, e que pretendia trabalhar por 12 horas naquela noite. Ficamos combinados de encontrar então ao final da madrugada, entre às 4:30 e 5:00 horas da manhã eu iria pegá-la naquele mesmo lugar que agora ela descia. Tinha certeza que ela era puta, mas como perguntar para uma mulher se ela é puta? Como propor um programa para uma mulher sem ela se insinuar, sem ela deixar pistas ou mesmo avisar que é uma mulher da vida. Ainda mais naquela noite que ela mais parecia uma colegial do que uma garota de programa. Ela vestia um moletom daqueles da GAP ou HardRockCafé branco, que pouco destacava os seus peitos, mas dava para notar que era uma loira bem peituda. Uma calça de brim A Loira do Bonfim – Fabio Guastaferro


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branca atochada no rego, e uma sandália que subia pelas canelas. O seu cabelo era volumoso e estava amarrado em um rabo de cavalo. Quase não tinha pintura no rosto, apenas um batonzinho que realçava o vermelho de seus lábios e um contorno de lápis preto em volta dos olhos que deixava ainda mais destacado aquele azul anil. Fiquei observando ela caminhar em direção à casa noturna. A porta estava um pouco movimentada e eu não notei se ela havia entrado. Resolvi rodar. Eu tinha mais de 5 horas para trabalhar antes de voltar aquele ponto de encontro para levar aquela deusa para casa ou para qualquer lugar onde ela quisesse ir. Passei a noite rodando e pensando nela. Ela não parecia ser uma mulher muito nova, mas também não era uma mulher velha. Provavelmente uma recémformada, que ganhava a vida na profissão mais antiga do mundo. Uma mulher bonita como aquela não precisava fazer esforços para ter dinheiro. Ela tinha uma mina de ouro no meio das pernas, bastava saber explorá-la. Trinta minutos antes do combinado eu já estava na porta da boate. E ainda esperei mais de uma hora até que ela aparecesse. Ela não saiu da boate, veio da parte de cima do quarteirão, onde antes eu a tinha deixado. Quando entrou no carro sem dizer nada eu senti a sua A Loira do Bonfim – Fabio Guastaferro


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presença como se ocupasse todo o taxi, ela tinha uma presença de espírito gigante. Olhei para trás com o maior sorriso do mundo e ela, de uma forma meiga, mas firme, me repreendeu dizendo que me esperava no mesmo lugar de antes, que quase me abandonou. Na hora sugeri que ela anotasse o meu celular, e passei o meu cartão avisando que poderia me ligar qualquer hora do dia e da noite, que eu estaria pronto para atendê-la, mesmo se estivesse de folga. Ela percebeu a intenção de cantada e apenas me encarou, senti as minhas bochechas queimarem de vergonha. Constrangido liguei o carro e toquei na direção do Bonfim sem ela falar nada. Chegando à rua de trás do cemitério por onde corre por quase 1 km o muro alto e branco, perguntei a ela onde morava e que iria deixá-la na porta de casa, se possível dentro de casa, deitada na cama sob as cobertas. Ela sorriu o riso mais lindo do mundo de novo e disse que poderia me deixar logo à frente, no mesmo lugar que eu a havia pego antes. Conclui que ela morava em alguma casa do outro lado da rua, já que do lado que estávamos só havia o paredão branco. Encostei do lado contrário ao do muro, mesmo sendo na contra mão. Ela pagou, com uma nota que passava o valor da corrida e recusou troco deixando uma gorda gorjeta. Fiquei sem graça de aceitar e insisti em A Loira do Bonfim – Fabio Guastaferro


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devolver o dinheiro. Ela praticamente ignorou e se despediu com um sorriso e um “bom dia”. Fiquei parado, esperando ela ir a alguma direção, mas ela ficou me olhando, esperando eu ir embora também. Foi aí que num impulso que eu não sei de onde veio, eu a chamei e perguntei o seu nome, assim de uma forma seca. Ela me encarou novamente com aquele olhar hipnotizante e eu fiquei sabendo o seu nome sem nem mesmo ouvir o som da sua voz. Natasha, ela se chama Natasha. Liguei o carro e fui embora. Antes de chegar ao final do quarteirão eu estava me xingando de burro e idiota. Porque não perguntei mais coisas? Porque não rendi mais a conversa? Ela estava ali parada, ela queria com certeza mais alguma coisa, mas eu, idiota que sou, fui embora correndo de vergonha. Poderia pelo menos ter combinando de pegá-la amanhã. Agora já era tarde. Voltar lá provavelmente não a encontraria mais. Sem contar que sentia os meus olhos pesarem de cansaço, também o céu já mudava a sua coloração. Era o sol ameaçando sair no horizonte, e eu estava completando as tais 12 horas que disse que faria naquele turno.” ... 23/02/14

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- Depositar o dinheiro do Pedrinho. - Pagar a prestação da TV. Lembrar de: “Rodei praticamente na região do Bonfim, sempre que saia de lá voltava para lá. Nada da Natasha. Provavelmente não trabalha todos os dias, ou deve ir para outros lugares em horários diferentes, ou nem deve morar por ali, uma mulher daquelas não moraria naquele lugar. O Bonfim é um bairro antigo e simples e Natasha é mulher de zona sul. Provavelmente é sua avó que mora por ali.” ... 25/02/14 - Depositar o dinheiro do Pedrinho. - Levar a Márcia no médico. - Fazer feira depois do serviço. Lembrar de: “” ... 04/03/14 - Aniversário do Pedrinho - Depositar o dinheiro do Pedrinho. A Loira do Bonfim – Fabio Guastaferro


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Lembrar de: “Briguei feio com a Márcia hoje. Esqueci de mandar o dinheiro do Pedrinho para pagar o Aluguel. Fiquei de mandar mais este mês, pois ele faz aniversário aí já mandava o presente junto, para evitar ficar andando com dinheiro para cima e para baixo, resolvi mandar tudo junto, mas a gorda não entende. E ainda vem com assunto da Tânia no meio, dizendo que fico dando de cima das amigas dela. A mulher é gostosa, mas sei que é confusão, por isso estou evitando. Aposto que a Tânia notou isso e agora que perdeu audiência comigo quer me queimar com a minha mulher. Sonhei com a Natasha. Penso nela todos os dias. Todos os dias vou ao Bonfim e no alto da Afonso Pena lá no Mangabeiras procurar ela próximo da boate, mas a mulher sumiu. Não tiro ela da cabeça. Hoje que sonhei com ela, chegou a dar saudades. O sonho foi maravilhoso, sentia ela segurar o meu pau enquanto enfiava toda a sua língua em minha boca. Não me lembro bem dos detalhes mas parece que ela me fez um boquete, só que ela estava numa posição estanha, os pés e as mãos no chão, como se fosse um animal, tipo uma vaca ou cachorro chupando o meu pinto. Acordei com o pau rachando de duro, igual uma pedra, provavelmente devo ter dado umas cutucadas na gorda

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a noite, e ela acordou com a macaca, pronta para a briga.” ... 10/03/14 -Comprar os peixes da Márcia. - Pagar o boleto da Cooperativa. - Futebol com os amigos. Lembrar de: “Faz um tempão que não bato uma bolinha, mas ainda tenho a experiência de outrora, talvez não tenha a habilidade que tinha antes, mas conheço as manhas da gorduchinha. Bater uma bola vai ser ótimo. Estou praticamente trabalhando no Bonfim, passo pelo cemitério no mínimo umas 20 vezes por turno. Nada da Natasha. Anteontem achei que a tinha visto entrar num outro carro, outro táxi. Não é possível que ela esteja fazendo isso comigo. Estou sempre por ali pronto para atendê-la e ela vai entrar em outro táxi. Se pelo menos eu tivesse pegado o telefone dela. Estou completamente apaixonado por ela, agora sonho com a Natasha até acordado.”

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... 13/03/14 - Passar na cooperativa para pagar o boleto. - Comprar uma bolsa de gelo. - Ir ao médico. - Passar no supermercado para comprar cera para o carro. - Passar no Bonfim entre 8 e 10 da noite. Lembrar de: “” ... 16/03/14 - Ir ao médico. - Passar a cera no carro. Lembrar de: “Aquela porrada que levei na perna machucou mesmo. Pelo jeito vou ter que ficar de molho em casa alguns dias até recuperar, trabalhar com dor tá foda. Acho que vi Natasha esses dias no Bonfim. Vi pelo retrovisor do carro, e quando voltei ela já não estava mais

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lá. Esta mulher está me enlouquecendo, só não parei ainda de trabalhar porque vou todos os dias ao Bonfim atrás dela.” ...

22/03/14 - Fisioterapia. - Pagar a prestação da TV. - Depositar o dinheiro do Pedrinho Lembrar de: “” ... 24/03/14 - Fisioterapia. - Pagar a prestação da TV. Lembrar de: “Hoje eu vi a Natasha. Hoje foi um dos melhores dias da minha vida. Fazia tempo que não me sentia tão feliz e realizado. Eu amo essa mulher, agora tenho certeza disso. Quando tiver tempo escrevo sobre o nosso maravilhoso e demorado encontro.”

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... 25/03/14 - Fisioterapia. - Depositar o dinheiro do Pedrinho. Lembrar de: “Vou ver a Natasha hoje de novo. Ela não me deu o seu telefone ainda, mas estamos caminhando bem. Hoje a gorda da Márcia falou umas merdas comigo, mas eu nem ouvi direito, ela disse que estou parecendo um doente. Doente está ela, obesidade mórbida. Quase falei isso com ela, mas não quis render. A Márcia é uma das últimas pessoas que quero ver ultimamente, até a sua voz me irrita. Por isso vamos falar da Natasha. Ontem, dia 24 de março foi o melhor dia da minha vida. O dia que mudou o meu destino. Sei agora que quero viver par sempre com aquela mulher. Naquele dia saí cedo para trabalhar. Não estou aguentando ficar em casa. Passei na fisioterapia e depois no café, fiquei no ponto do centro da cidade próximo a rodoviária até dar a hora de eu ir para o Bonfim. Fiz poucas corridas e quando o dia foi começando a escurecer tomei o rumo do cemitério. Já tinha rodado bastante pelo bairro, passei pela rua de trás do cemitério umas 20 vezes, fiz algumas corridas próximas sempre A Loira do Bonfim – Fabio Guastaferro


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voltando para a região. Já era quase 10 horas da noite quando vi lá longe aquela beldade. Uma loira alta se destacava no passeio a uns 200 metros à frente. Até parecia uma miragem naquela rua comprida. Acelerei o carro com medo de alguém chegar à minha frente e roubar o meu prêmio há tanto tempo cobiçado. Encostei o carro e ao me ver ela sorriu, como se já tivéssemos intimidade. Destravei a porta e ela entrou, sentando no banco de trás. Desta vez não olhei pelo retrovisor, já me virei no banco e olhei diretamente para ela, bati com força naqueles gigantescos olhos azuis. Cheguei a sentir calafrios de emoção. Ela estava sedutoramente linda naquela noite. Estava vestida para matar, para dominar, fazer legiões rastejarem aos seus pés atendendo a qualquer que fossem suas vontades. Usava uma calça branca apertada que realçava seus quadris empinando aquela bunda redondamente maravilhosa. Mesmo a noite estando um pouco fria ela usava apenas um corpete que fazia seus peitos se avolumarem no decote, hipnotizando até cegos. No pescoço, uma gargantilha que descia até próximo do colo do seio. O cabelo estava solto, volumoso, mas extremamente charmoso e sedutor. Era a mulher mais linda do mundo, e naquele momento, a mulher mais linda do mundo sorria para mim. A Loira do Bonfim – Fabio Guastaferro


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Ainda embriagado pela sensação do encontro, gaguejei perguntando como ela estava e para onde queria ir. Ela falou sem que eu percebesse o som de sua voz, eu estava totalmente concentrado naquela visão do paraíso, mas sabia que iríamos novamente para o alto da Afonso Pena. No caminho, já mais relaxado, comecei a puxar papo, fazendo diversas perguntas. A primeira delas foi se ela morava por ali, na região do Bonfim, e se ela trabalhava na Afonso Pena. Queria perguntar também se ela fazia programa e quanto ela cobraria uma noite. Estava disposto a vender o táxi, tudo que eu tinha dentro de casa, me endividar até a décima geração para ter uma noite com aquela beldade, mas não tive coragem de perguntar isso. Ela também estava mais á vontade comigo, mas se desvencilhava das minhas perguntas, muitas vezes me deixando com mais dúvidas, ou respondendo com outras perguntas. A nossa conversa rendeu e eu acabei falando mais de mim do que fiquei sabendo sobre ela. Mesmo andando devagar logo chegamos ao já conhecido destino. Parei na porta da boate de stripper, na cara dura. Queria ver se ela iria entrar naquele lugar. Ela não tinha me respondido precisamente o que iria A Loira do Bonfim – Fabio Guastaferro


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fazer por ali, e eu estava com vergonha de ficar perguntando demais. Ainda mais quando ela mostrava tanto interesse em mim. Ela pagou a corrida e desceu exatamente onde parei. Quase que desci e fui abraçá-la para me despedir, mas fiquei quieto, olhando-a de dentro do carro, esperando qual rumo ela iria tomar. Ela ficou ali parada no passeio, também olhando para mim e sorrindo, quando já passava quase dois minutos naquela situação meio constrangedora ela tomou a iniciativa e se abaixou olhando para dentro do carro, perguntando se eu poderia buscá-la por volta das duas e trinta da madrugada. Respondi prontamente que sim, e quase perguntei por que ela iria sair mais cedo hoje, mas fiquei na minha, não era da minha conta e eu hora nenhuma queria ser indiscreto com aquela mulher. Ela me orientou a parar do outro lado da avenida, na direção que voltava para o centro. Sem perceber, após concordar com a cabeça, eu dei partida no carro e ela ficou ali no passeio, olhando eu virar no primeiro quarteirão. Ao retornar para a Avenida e passar em frente à boate ela já havia sumido. Será que ela entrou? Porque pegar ela do outro lado da Avenida? Nesta região é comum diversas garotas de programa fazerem pontos na beira da avenida, e Natasha

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do jeito que estava vestida parava até avião no céu. Seria ela uma dessas garotas de beira de asfalto? Impossível! Ela era bonita demais até mesmo para estar dentro daquela boate. Ela tinha que ser garota de catálogo, acompanhante de luxo para altos executivos, não era concebível ela ser mais uma puta do alto da Afonso Pena. Fiquei rodando por ali naquela região. Neste intervalo fiz diversas corridas e a última me levou para longe. Voltei correndo, inclusive recusando passageiros, já estava atrasado no horário que tinha combinado com Natasha. Quando passei na frente da boate olhei tanto de um lado quanto do outro e não a vi. Cheguei a suar frio, achando que ela tinha ido embora e eu tinha pisado na bola com ela. Não poderia ficar novamente tanto tempo sem vê-la. Precisava pelo menos pegar algum contato, já estava disposto a declarar o meu amor a ela. Quando, após fazer o retorno, avistei ao longe, aquele corpo maravilhoso todo vestido de branco parado na beira do meio fio. Tinha dois carros encostados próximos a ela, provavelmente eram homens atrás de programas e provavelmente achavam que ela estava fazendo ponto. Encostei logo atrás e dei um pequeno toque na buzina.

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Ela olhou na minha direção e veio até o carro, desta vez ela entrou na porta da frente. Nem a olhei direito e já desviei do carro à frente saindo para o fluxo da avenida, descendo na direção do centro. Quando já estávamos a alguns quarteirões de distância comecei a puxar assunto, perguntando como foi à noite e se ela estava bem. Já rumava para o Bonfim planejando como iria pedir seu telefone, quando ela mudou o rumo do nosso destino, pediu para deixá-la no bairro Carlos Prates, próximo do bairro Bonfim. Na hora fiquei tão intrigado que quase perguntei por que ela tinha alterado o trajeto, se ela morava lá, ou o que iria fazer naquele bairro. Não aguentei e acabei soltando um “Pensei que você morasse no Bonfim”. Ela sorriu e desconversou, dizendo que o Bonfim e o Carlos Prates são bairros da área dela, que ela está sempre por ali. Ela desceu de frente para uma casa bem velha, que parecia até uma casa abandonada. Despediu-se com um beijo no meu rosto e perguntou se eu poderia pegá-la no dia seguinte por volta das 21 horas, nos muros de trás do cemitério do Bonfim. No momento do beijo quase a puxei e lhe beijei a boca, mas fiquei paralisado com a sua atitude. Sugeri que poderia pegar ela ali naquela rua, e perguntei novamente se ela morava ali ou se morava no

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Bonfim. Ela fechou o sorriso, senti que era devido a minha insistência em perguntar onde ela morava. Repetiu que me esperava no Bonfim no local combinado. Foi então que lhe pedi o número de seu telefone. Ela me deu uma desculpa super esfarrapada, dizendo que perdeu o celular e que ainda não tinha arrumado outro, provavelmente iria mudar o número, mas assim que tivesse ela me passaria. E que eu não deveria me preocupar em encontrá-la, poderia deixar que ela me encontraria. Na hora me senti desejado e quase sai do carro e a abracei, mas ela foi logo abanando a mão, dando tchau, ainda no passeio se despedindo de mim. Não queria arrancar, queria vê-la entrar na casa sã e salva mas foi um movimento automático meu, liguei o carro e arranquei. Quando cheguei à esquina olhei pelo retrovisor e ela continuava ali, parada no passeio, no mesmo local que a tinha deixado. Ao terminar de descer a rua, notei que, se traçasse uma linha reta, daria diretamente atrás do muro do Cemitério do Bonfim. No dia seguinte – 23 de março, estava eu por volta das 20:00 rodando as já conhecidas ruas do bairro do Bonfim. Parei bem em frente ao ponto marcado e fiquei esperando ela aparecer 30 minutos antes do combinado.

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Recusei duas corridas neste interim, uma delas para um bairro longe, que iria me render uma bela grana, mas valeria à pena esperar. Passou 20 minutos quando a vi chegando, ao longe caminhando ao largo do muro do cemitério, a maravilhosa loira do Bonfim. Não arranquei o carro, sabia que era ela, mas porque ela vinha de tão longe, porque não marcou próximo de onde estava. Porque andar aquele caminho todo. Dava quase uns 300 metros. Quando chegou, foi logo abrindo a porta da frente e entrando, e sem nenhuma cerimônia me beijou no rosto. Fiquei tão surpreendido que não consegui esboçar reação nenhuma. Senti-me pegando uma namorada na casa de seus pais. Sem dizer nada fui arrancando o carro devagar e perguntei se o destino seria o mesmo de sempre. Ela disse que sim, mas por enquanto não. Fiquei sem entender, com cara de confuso e ela perguntou se eu estava ocupado, e o que iria fazer nas próximas duas horas. Respondi que estava à disposição dela, ela então sugeriu pararmos num bar, dentro de uma galeria no centro. Ela disse que iria chegar mais tarde ao seu compromisso e que se eu poderia lhe fazer companhia até dar a sua hora. Concordei de imediato nem acreditando naquela proposta. Toquei na direção do centro muito à vontade com ela. Natasha também já estava bem à vontade e

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falante. Falava da noite de Belo horizonte, das pessoas que a fascinava, da vida em sociedade. Confesso que não entendia muito o porquê daquele papo sem nexo, mas eu só queria saber da companhia daquela mulher, e quanto mais ela falava, quanto mais ela ficava à vontade comigo, melhor. Paramos próximo da entrada e caminhamos até o restaurante de braços dados. Senti-me desfilando com aquele mulherão. Não tinha um homem que não olhava para ela, e eu me sentindo o homem mais macho do mundo por ter conquistado a fêmea mais desejada. O bar - restaurante estava vazio ainda aquele horário, sentamos num canto em meio à penumbra e ela escolheu uma bebida de dose que eu nem sei dizer o nome direito. Eu pediria uma cerveja se não estivesse trabalhando, pedi apenas uma água tônica. Sugeri que deveríamos marcar, além daquela noite, outro encontro, mas que eu não estivesse trabalhando e ela não tivesse compromisso. Ela sorria sempre que eu falava, e falava sempre sorrindo. Eu me sentia o homem mais feliz do mundo ao lado da mulher mais linda do mundo. As horas passaram voando e ela falava de tudo menos dela, já eu só falava de mim e dos meus problemas. Só não falei do meu sentimento por ela, mas isso já era

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visível, ela já tinha notado como eu olhava para ela. Apesar de que, qualquer homem olhava para ela daquele jeito, logo, eu não era novidade. Quando me dei por conta, já era mais de duas da manhã, se ela tinha algum compromisso tinha perdido, e eu também já não pretendia trabalhar mais aquela noite. Inclusive já me entregava aos primeiros copos de cerveja. Ela estava bebendo desde a hora que sentou e a bebida parecia que a deixava bem mais relaxada, sempre me tocando. Nas mãos, nas pernas, às vezes me abraçava, sempre com um clima de brincadeira, e sempre que ela se aproximava a vontade de agarrá-la e beijá-la era enorme. Foi num clima descontraído que soltei quase sem querer que estava apaixonado por ela. Ela ficou séria, me olhou nos olhos com aqueles olhos azuis gigantes e disse que eu não poderia me apaixonar por ela. Eu era um homem casado, pai de família, tinha responsabilidades e pessoas dependendo de mim. Que ela não serviria para mim, que iria acabar com tudo. Mas falava de uma forma tão sedutora, tão sexy, que me fazia desejar isso. Desejar que ela explodisse com tudo, que fodesse a minha vida, desde que ficasse comigo para sempre. Eu

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trocaria qualquer coisa por aquela mulher. E não apenas pensei nisso. Eu disse isso a ela. Ela sorriu um sorriso largo, segurou o meu rosto com as duas mãos espalmadas e me beijou, um longo e apaixonado beijo. Quanto tempo que eu não beijava uma mulher. A última vez que beijei assim, de forma apaixonada, sentido o contato das línguas se tocando foi quando o Pedrinho sofreu aquele acidente de moto, e eu e a Márcia quase que morremos de medo de perdermos nosso filho. Quando ele saiu do CTI e estava fora de perigo fomos para casa, então eu beijei a gorda como antigamente. Mas não era hora de pensar na Márcia, não naquela hora. Eu só queria curtir aquele momento, sentir o gosto quente da saliva daquela mulher. Sua língua tocando a minha, entrando na minha boca de uma maneira delicada e ao mesmo tempo avassaladora. Num rompante a envolvi em meus braços e a beijei um longo beijo. Não acreditava que estava beijando aquela mulher. Naquele momento estávamos nós dois, ali, num canto se beijando como um casal adolescente que ainda não conhece as virtudes e penúrias do amor. Quanto mais eu a beijava mais eu puxava ela para cima de mim e ela correspondia, me agarrando e me beijando com beijos quentes e molhados.

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Mesmo em um canto mais reservado, o nosso pega estava chamando a atenção. Vez ou outra eu dava uma olhada ao redor, e sempre tinha alguém olhando para gente. Ainda mais que comecei a explorar o corpo dela, tocando-lhe principalmente aquelas coxas maravilhosas. A suas pernas ficavam quase que totalmente de fora naquela minissaia, e quanto mais eu subia a minha mão mais ela me beijava e gemia, me tentando a colocar a mão por baixo de sua roupa. Já sentia o calor que emanava pelo meio de suas pernas quando o garçom se aproximou perguntando se estávamos bem servidos e se queríamos mais alguma coisa. Ela meio sem graça pediu mais uma dose. A partir deste momento, era só a gente começar a se beijar o garçom vinha. Percebemos a nossa inconveniência e eu propus irmos para um local mais reservado. Ela disse que sim, que iria para um lugar mais reservado, um lugar chamado “Quarto de minha casa”, mas que, infelizmente, iria sozinha. Justificou dizendo que já tinha feito loucuras demais por uma noite, mas que ainda tinha que resolver seus problemas. Providenciamos de sair e já no carro, ela pediu para deixá-la no alto da Afonso Pena. Não resisti e perguntei o que ela fazia naquele local. Ela respondeu meio que se desvencilhando que eram negócios e que com o tempo ela me explicava. Ela não era puta. Não A Loira do Bonfim – Fabio Guastaferro


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podia ser uma puta, talvez trabalhasse com elas, mas eu não conseguia imaginar uma mulher daquela batendo ponto na Afonso Pena. E agora eu já não permitiria isso. Só de imaginar outro homem tocando e beijando aquela mulher já ficava louco de ciúmes. Ela logo desviou o assunto da conversa falando sobre o local em que estávamos. Novamente falava sobre as pessoas e a noite de Belo Horizonte. Ela começou a me fazer perguntas mais pessoais, como por exemplo, a minha relação com a minha mulher, e eu fui contando tudo para ela. Quando estava quase dizendo que já pretendia me separar da Márcia para ficar com ela chegamos ao destino. Parei bem na porta da boate e perguntei se ela iria entrar ali, ainda mais naquele horário, eram quase 4 da manhã. Ela disse que tinha que resolver alguns negócios naquelas redondezas sem definir local algum e completou dizendo que eu poderia ir embora descansar. Na hora neguei, retrucando que iria ficar ali aguardando ela, ou melhor, que iria com ela onde é que fossem os seus negócios. Que aquele horário era perigoso demais para uma mulher como ela ficar andando sozinha. Ela fechou o tempo, com um tom enérgico disse que sabia muito bem se cuidar, que era melhor eu ir embora.

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Falou também que tinha o meu telefone e que me ligaria para combinarmos um encontro antes mesmo do que eu esperava. Na hora me senti repreendido, e realmente ela tinha razão, eu estava cansado. Além do mais, não tínhamos nada, foi apenas alguns beijos, para ela, talvez não tenha significado nada. Eu não tinha que ficar no pé da moça, ainda mais agora que havia iniciado o processo da conquista. Hoje, antes mesmo de eu levantar da cama, já tinha três chamadas no meu celular e uma mensagem. Na mensagem estava escrito. “No mesmo horário e no mesmo local. Ass: Natasha.” Na hora retornei ao número que ela ligou, chamou até desligar. Tentei umas quatro vezes e nada. Daqui a pouco vou encontrá-la, desta vez, um encontro verdadeiro. Sinto-me um adolescente andando nas nuvens. Mas tenho que ser super discreto, ninguém pode imaginar. Sou um homem casado, e isso daria um bafafá danado.” ... 27/03/14

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- Fisioterapia. - pagar a prestação da TV. - Depositar o dinheiro do Pedrinho. Lembrar de: “O encontro foi maravilhoso. Ontem antes de sair, quase que aquela intrometida da Tânia coloca tudo a perder. Cismou de me elogiar na frente da Márcia dizendo que estou mais bonito, com um semblante mais alegre, mais jovem. A Márcia já veio perguntando por que iria trabalhar com aquela roupa, e eu quase não consegui uma desculpa convincente. Dei uma rateada, mas larguei as duas olhando atravessado e fui correndo encontrar Natasha. Tirei o dia de folga, fiquei me preparando para o encontro. Fui até no barbeiro. Como não fui trabalhar deixei para sair de casa um pouco mais tarde, o que despertou ainda mais a atenção da Márcia. Fodas para a Márcia, ultimamente eu mal tenho notado aquela mulher. Passei as duas últimas noites sonhando com Natasha. Na primeira, antes do encontro quando nos beijamos pela primeira vez no restaurante, sonhei a noite inteira que a beijava. Podia até sentir o seu cheiro, o seu toque.

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Já nesta noite, depois de nos vermos, sonhei a noite inteira que continuávamos a transar. O estranho é que não me lembro bem como terminamos o encontro. Lembro nitidamente de encontrá-la próximo do muro do cemitério, e ela estava linda, completamente linda. Novamente toda de branco, mas com tons de dourado na roupa. Uma verdadeira princesa. Fomos para o motel mais caro da cidade. Cheguei a propor irmos a um restaurante, mas ela já foi logo dizendo que não queria garçons atrapalhando o nosso encontro. Porque não vamos direto para um lugar “mais reservado”, ela disse. Topei de imediato e toquei para um motel mais afastado, provavelmente um dos mais caros que tem por aqui. O encontro foi de um casal apaixonado que não sei via há vários meses. Ela me beijava como se fosse me devorar, e eu correspondia chupando sua língua e lambendo seus lábios. Em instantes estávamos nus, antes mesmo de acendermos as luzes do quarto, e ali mesmo, na entrada comecei a penetrá-la. Acho que gozei nas primeiras estocadas, lá dentro dela mesmo, mas não perdi a ereção. Fazia anos que eu não trepava daquele jeito. Para falar a verdade, acho que nunca transei daquele jeito. Ela era tão boa de cama quanto bonita. Eu

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realmente estava despreparado, ou então ela tinha muita experiência. Dominou-me o tempo todo, e ditava o ritmo da transa, sempre sugerindo e mudando as posições. Devemos ter transado num ritmo insano por uns 40 minutos quando dei a primeira parada. Ela abraçou a mim dizendo que não poderia ficar muito tempo, mas queria tomar novamente o meu liquido vital. Confesso com certa vergonha que já estava bem cansado foi ela que fez todo o esforço, devo ter gozado umas três vezes aquela noite. Quando ela se despediu eu estava praticamente dormindo, dizendo que voltaria a me ligar. Eu mal conseguia falar de tão cansado que estava. Tentei protestar a ideia de ela ir embora naquele momento, mas ela se foi, e eu fiquei praticamente desmaiado. Nem sei como cheguei em casa. Estava estafado. Não me lembro de como saí do motel, o quanto paguei nem o que disse a Márcia quando cheguei.”

03/04/14 - Fisioterapia.

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Lembrar de: “Hoje faz uma semana que não vejo a Natasha. Mas parece que estou vivendo uma overdose dessa mulher. Mesmo não encontrando ela, penso nela todos os dias, todas as horas, todos os minutos, todos os segundos. Dormindo e acordado. Vejo a Natasha em tudo quanto é lugar e sonho com ela todas as noites, diversos tipos de sonhos, de eróticos a pesadelos. Outro dia sonhei que ela se deitou entre eu e a Márcia, fiquei imaginando como ela entrou, assustado com tamanha ousadia de se deitar comigo na mesma cama em que a Márcia estava deitada, mas a sensação de perigo me fez enlouquecer de prazer. Meti nela ali mesmo. Enquanto a Márcia roncava eu gozava. Outro sonho louco que tive foi ela dizendo que iria morar aqui em casa, comigo, com a Márcia e com o Pedrinho. Eu não aceitava misturar essa vida, ou era Natasha, apenas Natasha, ou mais nada. Outro dia tive um pesadelo com ela, enquanto a penetrava, ela por cima, sentada em mim, senti pelos grossos e grandes em suas pernas, abaixo dos joelhos roçando nas minhas costelas até a minha pele ficar irritada. Mas eu não me importava, estava concentrado demais no sexo, sentindo a buceta dela mastigando o meu pau.” ...

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04/04/14 - Lembrar de: “Ontem vi a Natasha, não foi sonho, não foi delírio, foi real. Foi maravilhoso. Venho rondando o Bonfim todos esses dias, agora fico indo e vindo do Carlos Prates para o Bonfim e vice e versa. Já até tirei a placa do Taxi, para não ser incomodado com passageiros inconvenientes. Fico a atravessar a Avenida Pedro II de um lado para o outro atrás da Natasha. Ontem em uma de minhas “rondas” vi ela, ali parada, como da primeira vez, do lado do muro do Cemitério, toda de branco, no mesmo horário de sempre esperando um taxi. Senti o coração sair pela boca, deu até suadeira. Acelerei o carro por medo de algum taxista intrometido parar na minha frente e levar embora a minha mulher. Encostei bem a sua frente e sai todo esbaforido em sua direção. Cheguei gritando e choramingando ao mesmo tempo porque ela tinha sumido, o que tinha acontecido, que eu estava ficando louco de tanto procurá-la. Ela não disse nada, apenas pegou o meu rosto entre as palmas de suas mãos e beijou a minha boca como da primeira vez. Na hora desarmei. Quase que entrei em transe. Meu Deus, como era bom. No momento que senti sua língua

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penetrando em minha boca me senti em paz, tranquilo, completamente pleno e feliz. Ela me pegou pela mão como se eu fosse um garotinho e disse: “Vamos”. Não sei como cheguei ao Motel, ou como sai. O que tenho na memória são flashes de lembranças com muito sexo, muita bebida e até drogas. Meu Deus, ela deve ter me dado algo para fumar ou cheirar porque foi uma noite muito louca, muito louca mesmo. Acho que estivemos em dois ou três lugares diferentes. Inclusive em um deles tinha outras pessoas, homens e mulheres, mas não me lembro de transar com outras pessoas, apenas com Natasha. Também não me lembro com detalhes do sexo com ela, mas não me sai da cabeça ela me sugando, me sugando pela buceta. A sensação que eu tinha era que eu era totalmente sugado pelo pau através da buceta dela. Outra coisa estranha foram os chifres, onde foi que ela arrumou aquela fantasia com chifres? Estava super sensual e me dominava de um jeito que eu não conseguia reagir. A orgia terminou com a Márcia me dando um sabão. Encontraram-me pelado dentro do carro, parado dentro

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do estacionamento de um conjunto habitacional nas proximidades do Bonfim. Provavelmente estive na casa de alguém que mora ali com a Natasha, ela foi embora e eu sem condições resolvi dormir no carro. A falta da roupa se explica porque transamos no carro. Só pode ser isso. O foda foi que alguém me viu ali dormindo peladão, ligaram na central de taxi e a central ligou para a minha mulher. A Márcia fez um escândalo querendo saber o que eu fazia ali pelado. Como eu ia dizer para a minha esposa que estava numa orgia louca com a mulher da minha vida? Ela já está cismada dizendo que ando estranho estes dias, que tenho o sono agitado. Fico roçando a rola nela a noite e murmurando palavras desconexas. Que estou muito avoado, não estou trabalhando direito, não estou me cuidando, não vou mais à fisioterapia, não faço mais meus compromissos, até as reuniões da Cooperativa que eu costumava frequentar já não vou mais. Cismou que estou doente, e depois desta, disse que vai me internar.” ... 05/04/14

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Lembrar de: “Sou o assunto principal da rua. Vou de maníaco sexual a drogado. A intrometida da Tânia só fica falando que eu tenho um caso com outra mulher. Mas a velhinha que mora abaixo diz que se eu tivesse outra mulher não andaria tão desleixado como estou ultimamente. A Márcia já acha que estou usando droga. A louca já está afirmando que sou usuário de crack. Que porra, ela nunca me viu nem bebendo direito e agora me acusa de ser usuário de crack. Qualquer hora vou partir a cara desta gorda no meio.” ... 07/04/14 - Pagar a prestação da TV (cacete, esqueci dessa porra). Lembrar de: “Márcia agora cismou que estou doente, que não posso trabalhar e que devo pedir um afastamento. Já não ligo para mais nada, para ninguém. Saio de casa assim que acordo e vou para o Bonfim. Fico lá o dia inteiro, parado em frente ao muro do cemitério, ou então na casa do Carlos Prates. A Márcia me seguiu hoje. Veio com um amigo – Agora ex-amigo – para ver aonde eu ia e o que eu fazia. Disse que estava trabalhando, mas eles protestaram, perguntando por

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que eu não pegava passageiro nenhum. Fiquei puto. Que vão tomar conta da vida deles e me deixem em paz. Toda loira que eu vejo na rua eu acho que é a Natasha. Outro dia desci do carro e tentei agarrar uma menina. Ainda bem que consegui me controlar, imagina se sou preso por tentar estuprar uma adolescente. Aí que a Márcia ia ter razão de me internar. Sonho com a Natasha todos os dias. Um sonho mais estranho que o outro. Teve uma noite em que sonhei que andávamos de mãos dadas na lua, éramos gigantes e fazíamos a lua girar sob nossos pés. Natasha estava com aqueles chifres estranhos, mas estava mais linda. Ela parece que fica ainda mais sexy quando usa aqueles chifrinhos. ... 21/04/14 Lembrar de: “Encontrei com a Natasha num dia desses aí. Para falar a verdade eu não sei bem se eu encontrei com ela ou se sonhei que encontrei. Ultimamente a Márcia não anda me deixando sair de casa. Já sentei a mão na cara dela, mas aquela mulher não aprende. A próxima vez que ela ameaçar chamar a polícia para mim eu mato ela, eu juro.” A Loira do Bonfim – Fabio Guastaferro


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... 25/04/14 Lembrar de: “Sempre que encontro com Natasha me sinto fraco. Estou velho, não consigo acompanhar uma mulher como aquela. Ainda mais agora que ela se mudou aqui para casa. A gente transa todos os dias, quase toda hora, em qualquer lugar. O único inconveniente é a Márcia dizendo eu estou doente e que vai me internar. E como se não bastasse chamou o Pedrinho para me dar conselhos. Desde quando um fedelho presta para me dar conselhos. Só porque faz uma faculdadezinha de merda acha que pode falar da vida dos outros.” ... 05/05/14 Lembrar de: “Tive um mal súbito e desmaiei na rua. O problema é que acabei batendo o carro, ainda bem que não machuquei ninguém. Passei uns dias no hospital e os médicos não souberam dizer o motivo do meu desmaio e das fraquezas que ando tendo. A Márcia não para de insistir que enlouqueci. Que fico me masturbando o tempo inteiro e em qualquer

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lugar. Ela quer me internar, me amarrar numa camisa de força e me tratar com eletrochoques. Eu vou acabar matando essa mulher, só assim para ela me dar sossego. Tive uns sonhos muito estranhos com a Natasha. Nem sei se posso chamar aquilo de sonhos, estão mais para pesadelos. Ela está sempre me sugando com aquele bucetão, e quanto mais ela me aperta dentro de si mais vontade tenho de entrar. Mas o que me incomoda mesmo são as asas. Não tinha reparado como são feias aquelas asinhas. Outro dia sonhei que ela estava mastigando um pedaço do rosto da Márcia. Sua boca cheia de sangue, seus dentes quadrados enormes, seus olhos escuros com as bordas azuis. Ela tinha partido a cabeça da Márcia e mastigava uma parte da bochecha, pingando uma gordura amarelada. Com uma mão ela segurava o pedaço de cara da Márcia e com a outra segurava o meu pau, me masturbando, apertando o meu pau. E eu sempre gozando, sempre que a Natasha me toca eu gozo. Estou cansado destes pesadelos, quero a minha mulher de volta. Preciso ir até o cemitério ver o que aconteceu com ela. “ ...

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15/05/14 Lembrar de: “Putamerda, Pedrinho veio morar de novo com a gente. Largou a faculdade e o pior é que escutei a gorda falando com a bunduda da Tânia que a culpa é minha. Já que não estou em condições de trabalhar não temos condições de manter o menino estudando em outra cidade. Menino é o caralho! Ele tinha que trabalhar para se manter. Falei isso para elas, mas estão me ignorando dizendo que estou louco e doente. Pelo menos uma coisa boa aconteceu. Consegui dar uma fugida anteontem, eu acho, e encontrei com a Natasha. Ela disse que vai voltar para me ver, e que estes pesadelos que ando tendo é a pressão do stress do dia a dia.” ... 26/05/12 Lembrar de: “Estou no hospital. Estou aqui desde que me encontraram desmaiado na rua pela segunda vez. Encontrei Natasha de novo. A gente estava tendo que se encontrar dentro do cemitério. Sem carro e sem dinheiro fica difícil ir a bares, motéis e fazer orgias. Mas

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a Natasha é super compreensiva e começamos a nos encontrar dentro do cemitério mesmo. Essa mulher é tão perfeita que até aqui no Hospital ela vem me ver. Os médicos não sabem dizer direito o que eu tenho. Sinto uma fraqueza tão grande que tem dias que nem consigo ficar em pé direito. Parece que fiquei dias e dias sem comer e sem dormir. A minha mente também às vezes me engana, às vezes penso que estou em casa, às vezes acho que estou no cemitério com a Natasha, às vezes acho que estou no corredor do hospital sem precisar me levantar da cama. O pior é que aqueles pesadelos que eu estava tendo, agora estão cada vez mais reais. A Natasha agora fica direto com aquelas irritantes asinhas pequenas nas costas. Aquelas pernas cabeludas horríveis e os chifres. Antes eu achava sexy, mas agora já estou enjoando. Fantasia é legal, mas o tempo todo fica chato. Pelo menos ela tira quando eu peço. Mas fico com vergonha, não quero ficar incomodando a mulher que amo. Ela vem me prometendo que vamos sair daqui. Que vamos viver juntos. Que ela vai cuidar de mim para que eu fique bom, e que vamos morar juntos. Ela disse que quer sair do país e quer que eu vá junto. Inclusive ela já tem muita coisa preparada. Pediu para que eu tenha

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paciência que, em breve, ela vem me buscar e juntos vamos fugir para o paraíso.” ... 28/05/14 Lembrar de: “Estou me sentido melhor hoje. Estou bem mais disposto, e fiquei melhor ainda depois que a Natasha esteve aqui. Mesmo o meu corpo não correspondendo ao meu astral. O que me deixou mais animado foi a notícia que Natasha trouxe. Ela justificou o seu sumiço dizendo que estava preparando tudo para irmos embora. Que é para eu me preparar. Amanhã, dia 29 de maio ela vem me buscar. Estou estourando de ansiedade. Não aguento mais ficar aqui. Não aguento mais esse pessoal se lamentando. Sem saber direito o que está acontecendo. Ela me disse que tudo vai mudar. Tenho certeza que quando eu estiver com ela eu vou melhorar. O que eu realmente preciso é dela. Esse hospital, essa mulher gorda e chata, esse menino mimado, esse povinho fuxiquento, esse clima de velório, isso tudo que está me matando. Preciso sair daqui, e a Natasha já sabia disso antes mesmo de mim. Isso que é amor. Sou o homem mais sortudo do mundo. É amanhã, amanhã é o grande dia.”

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Declaração do Óbito.

José Cardoso Marianno – Casado – Profissão: Taxista. Masculino – 49 anos, há nove sabia ser hipertenso e não fez tratamento. Estava em tratamento hospitalar com acompanhamento médico desde o dia 20 de maio de 2014. O falecido apresentava uma parcial perda de suas funções vitais com rápidos desmaios, principalmente à noite. Apresentava agitação psíquica e foi diagnosticado com esquizofrenia. Às 21 horas de hoje deu entrada na UTI. Encontravase inconsciente e com parada cardiorrespiratória. Às 21:13 teve o óbito verificado pelo médico plantonista após o insucesso nas manobras de reanimação; Observações: Durante o procedimento de reanimação foi notado ereção do órgão genital do paciente e, no momento do óbito, foi percebido a ejaculação do mesmo. O Corpo apresenta pequenas escoriações e contusões na região do rosto, nos lábios, pescoço, costelas e nas costas abaixo das omoplatas, que também tem grandes

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marcas com vermelhidão, aparentando unhadas. O seu membro sexual apresenta escoriações e assaduras provenientes de um excesso de masturbação. Distúrbio que, segundo a família, acompanha José nos últimos três meses.

Dr. Marco Aurélio C. O. Mendes.

Belo Horizonte, 29 de maio de 2014

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"When i'm walking, brother, don't you forget It ain't often that you ever find a friend" FLEET FOXES - MYKONOS


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Texto encontrado nos destroços de um ônibus que ia em direção a Foz do Iguaçu. Todos os passageiros foram identificados pelas famílias, menos um. Nenhum vestígio da sua estadia foi encontrado e não se sabe, por carecer de detalhes, se saiu após a colisão ou antes. A Operação é AUTORIZADA. ENCARREGADO C. A. BRÁS.

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Quando ela vem, as luzes se apagam. As luzes dos postes se desfocam, piscam algumas vezes e se vão, e quando você olha, sem saber o que está acontecendo, ela já está lá, te encarando. E você não sabe o que ela quer, mas consegue perceber pelo seu olhar que ela sabe exatamente o que veio fazer. E assim começam todas as luzes ao redor a bruxulear também, como se concordando com os postes, e os faróis de carro a perder o foco, e logo até mesmo a própria lua está coberta com nuvens. Quando ela vem, as luzes se apagam. Seu nome é Madame Eva. Pelo menos é como a chamam pelos grupos de estudo sobre assuntos paranormais, por pensadores livres, por esotéricas, hippies e toda gente que sabe mais do que deveria, e seu poder todos desconhecem. Sabem por que vem, e sabem o que acontece quando vem, além das luzes se apagarem. Sabem da sua predileção, que é tão forte, tão compulsiva, que poderia ser chamada de fome. Madame Eva não é o tipo de mulher que fala muito, mas mesmo assim seus motivos são bem óbvios para quem sabe como olhar. Está estampado no seu rosto, mas infelizmente, na maioria das vezes que nos visita, naquelas vezes em que as luzes se apagam de repente, as pessoas que a veem não são versadas nas artes ocultas, nos poderes da terra e no que há além. Por isso não Madame Eva – Thiago Geth Sgobero


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entendem o que se passa, e conversam com Madame Eva como conversariam com um ser humano comum. Não que exista algum problema, Madame Eva sempre foi simpática com qualquer um, e talvez seja por isso que sempre procura os mais simples de mente, os não versados, os que não sabem pra onde olhar e que conversam sem pensar duas vezes. Madame não tem nenhum outro pré-requisito para aparecer. Não escolhe gênero, não escolhe classe social, não escolhe idade. Pode aparecer para um mendigo, para um homem podre de rico na sua cobertura, para um classe média, favelado, bandido ou o que seja. Madame só está lá quando quer, e quando sabe o que está por vir. Normalmente fala sobre as suas vidas, sobre o que querem ser, o que foram e o que seriam se tivessem feito algumas coisas em específico. E então, quando a pessoa está no meio da conversa, quando derrama lágrimas, quando ri ou até quando se apaixona, ela vai embora. Uma lâmpada pisca e acende novamente, e quando olham, Madame Eva já não está mais lá. Você vê, existem algumas regras ancestrais para os da raça de Eva. Não é qualquer um que pode ser tomado de suas emoções por ela nem por qualquer outro da sua estirpe. Há um regulamento bem rígido, e por isso os da

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sua espécie são vistos como mau agouro e com desespero pelos que os conhecem. Madame Eva tem o tato de não revelar nada às suas vítimas, mas todas terminam da mesma forma. Um dia após o contato, morrem em algum acidente ou catástrofe. Na maioria das grandes tragédias da humanidade, Eva estava presente. Ela tem uma peculiar curiosidade, talvez um fetiche exótico e cruel, ou quem sabe, algo pior, talvez ela goste de ser uma espécie bizarra de voyeur, talvez ela sinta algum prazer, quem pode dizer? Ela fica até o final. A maioria dos da sua raça prefere se afastar quando a morte assoma a sua vítima, como uma última mostra de respeito ou pra mostrar que sabem o suficiente para encararem a morte como corriqueira. Mas Eva gosta de ver sua vítima quando ela está partindo desse mundo. Às vezes até segura as suas mãos, diz algo nos seus ouvidos e fica com eles até o minuto final, como se os estivesse velando, chorando por eles. Mas não chora, assim como não vela, assim como não sente nada. O meu nome é Jaime Santiago, ou era, e eu vi mais do que qualquer um. E sobrevivi. Ou não. ...

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Vinte pessoas morriam sufocadas na torre norte do World Trade Center. Eva estava com elas, e ouvia tudo o que diziam. Já estava lá antes de o avião aparecer. Era um escritório pequeno, com apenas três funcionários. Era aniversário de alguém. Sem aviso, várias outras pessoas entraram, provavelmente amigos da aniversariante, uma jovem de apenas vinte e um anos. Madame Eva conversara com ela na noite anterior, no domingo. Era uma jovem alegre, pensava em ser jornalista e era poeta. Tinha sonhos tão grandes que chegaram a quase satisfazer Eva em poucos minutos. Conversaram por mais ou menos quarenta minutos, e no final, a jovem lhe beijou. As luzes se acenderam, apagaram e se acenderam de novo, e ela já não estava mais lá. Mais tarde, Alisson Wilbert acordava na cadeira do jardim frio e escuro, crendo que tudo fora um sonho de bebedeira. Um sonho que tinha parecido real, e por não se lembrar de como tinha amado tanto, sentou-se num canto do jardim e chorou. Naquele dia onze, Alisson Wilbert fazia aniversário. Seus amigos trouxeram um bolo de chocolate, o único que ela comia, e estavam cantando parabéns. Ela estava feliz. E ali, nas sombras, Madame Eva observava. Ninguém parecia perceber a massa prateada se aproximando rápido demais do prédio. A felicidade a Madame Eva – Thiago Geth Sgobero


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tudo melhorava, todos riam e todos comemoravam, e o sorriso no rosto de Alisson parecia implicar que ela já não se lembrava mais da noite anterior, como era de costume. Eva não gostava de deixar vestígios, pela sua natureza. Seria crueldade. Todos riam, homens e mulheres, amigos e amigas, pretendentes e casuais. Tudo estava ótimo, não havia nada melhor do que a amizade na América. E aí vieram os gritos e o barulho. Era como se um avião gigantesco vinha voando logo acima do prédio, e os gritos só pioravam as coisas. Era como se um avião gigantesco estivesse em rota de colisão com o prédio e todos estivessem observando, apavorados, inertes, inúteis. Eva percebeu que levou apenas um instante para Alisson abandonar essa ideia como crença e perceber que era exatamente isso que estava acontecendo. Foi tudo bem rápido. Um estrondo, paredes caindo, muito fogo e muitos destroços. Algumas pessoas gritavam pelas suas mães, seus filhos, alguma histérica perguntava onde estava o seu bebê e outro pedia que lhe buscassem a perna. Era um horror. Os vinte do pequeno escritório, os vinte amigos, perceberam que os andares de baixo estavam em chamas, e a fumaça subia lentamente para onde eles estavam. Ouviam de vez em quando algum grito vindo do mesmo andar, ouviam Madame Eva – Thiago Geth Sgobero


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janelas se despedaçando e gritos morrendo na imensidão do ar lá embaixo. As pessoas estavam pulando. Por Deus, pensava Alisson, as pessoas estão saltando! Isso foi o que a trouxe para a realidade. Seria aquela morte que passaria nos jornais, encontrada soterrada nos escombros, segurando a mão dos seus amigos, sem poder sair. Alisson morreria ali. Em Madri, fazia frio. Várias pessoas estavam amontoadas em um vagão de trem destruído. Alguns não tinham face, outros pernas, outros vida. Um homem, Ramón de Velas, estava encolhido em um canto mais ou menos intacto do vagão, com os pulmões perfurados por estilhaços de aço e um dos olhos inchado. Havia uma barra de ferro entrando na sua barriga, e pela forma que suas pernas estavam tortas e sem jeito, sem mencionar sem movimento, a barra deveria ter esmagado a sua espinha. Com socorro imediato, só Deus sabe se sobreviveria ou não, mas Eva estava ali, e ela sabia que De Velas iria morrer. Ele estava agarrado a ela, sem entender muito do que estava acontecendo. Eva não deixava vestígios. Assim, De Velas cria que ela era apenas uma sobrevivente como ele, e em sua cabeça a via assim. Ela estava com uma calça jeans rasgada até os pés, mostrando uma perna ensanguentada, sangue esse vindo de algum rasgo Madame Eva – Thiago Geth Sgobero


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misterioso que ele não tinha energia para procurar. Seu rosto era uma confusão de sujeira, sangue e fuligem, e em uma de suas mãos faltava o polegar. O que De Velas achava estranho era o rosto e a atitude da mulher. Ela sorria e acariciava sua cabeça, como faria a sua mãe. Dizia-lhe que ele sairia dali, que ia ficar tudo bem, que não precisava se preocupar. Ele não acreditava. Estava morrendo, não era tão estúpido a ponto de não perceber isso. Estava com uma barra de ferro fincada no estômago e esmigalhando sua coluna, ele podia dizer, e não conseguia respirar sem sangrar. Como algum bombeiro iria tirá-lo dali? Sem chances, estava morto, mas as palavras ajudavam. Seria a mulher algum tipo de anjo? Tolice. De Velas estava trabalhando até tarde noite passada quando percebeu que as luzes estavam falhando. Algum problema com os geradores, provavelmente, nada que iria parar o jovem, nada que iria impedi-lo de trabalhar, de enriquecer outras pessoas, de dar seu suor pra nada. Seu sonho era pintar, era usar seu talento como trabalho, não como hobby. Queria viver uma vida de artista, sempre pensando na sua próxima obra, e aproveitando cada minuto de sucesso que tivesse. Não importava se fosse pobre ou que não comesse em um dia ou dois, só se importava em viver a vida de um artista, de se dedicar Madame Eva – Thiago Geth Sgobero


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completamente à arte e nada mais. Às vezes se perguntava se o que lhe faltava mesmo era coragem pra largar tudo e pelo menos tentar a se dedicar mais ao seu ofício. Mas não, ali não era lugar de sonhar acordado, tinha trabalho pra fazer, e era bom fazer depressa, ou as luzes podiam acabar de vez. Quando voltou os olhos para a mesa, para seu importantíssimo papel, mais uma vez as luzes piscaram, primeiro uma vez, depois duas, e se apagaram. A porta da área de serviço se abriu, e de lá de dentro saiu uma bela mulher, uma funcionária da limpeza, vestida como tal. Pálida, cabelos cortados no estilo Chanel, rosto reto e sério, vinha trazendo um balde quando cruzou com a mesa de De Velas. Olhou pra ele, como quem não quer nada, e falou sobre o tempo. Nada mais precisava ser feito. De Velas falou para a moça sobre seus medos, sobre seus defeitos, sobre suas vontades e principalmente sobre seu amor às artes. Não sabia por que dizia, simplesmente saiu falando. A mulher parecia ser daqueles tipos simples que não se importam de ouvir alguém falando e falando sem parar das suas vidas, pelo contrário, parecia gostar. Depois de conversarem por mais de meia hora, as luzes começaram a piscar. Piscaram uma, duas, três vezes e voltaram a funcionar, e quando tudo estava iluminado, De Velas

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levantou sua cabeça dos papéis e percebeu que havia dormido. Respirava mais rápido. O sangue escorria no seu peito, e sua camisa branca estava vermelha e pegajosa. Se apertava na mulher com toda a força que tinha, e não se soltaria dela por nada. Era como se ela fosse seu último recurso, sua ilha de segurança, e tudo ficaria mais fácil com a sua presença. Não queria morrer, e Deus, como estava com medo! A mulher continuava acariciando sua cabeça, o confortando, e ele conseguiu juntar suas forças para perguntar porque ela fazia aquilo, e quem era ela. Ela só juntou seu dedo indicador aos lábios, fez um breve som de shhhh e não era mais a mesma. Seus trapos não estavam mais lá, seus dedos estavam intactos, e sua face estava limpa. Usava um vestido negro e liso, e seus olhos eram azuis e profundos. Ela disse que estava na hora, e foi embora. De Velas já não respirava mais. ... Na comunidade ligada aos assuntos paranormais, Eva é bastante conhecida. Não é algo que é espalhado pelos quatro ventos, mas pelo Brasil existem alguns grupos que estudam causas consideradas impossíveis pelas pessoas comuns como estudariam uma ciência. A filosofia desses grupos; que são vários; incluindo o Lua Madame Eva – Thiago Geth Sgobero


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Cheia, o Para Normais e a Associação dos Assuntos Paranormais Brasileiros, ou APABRA; incluem a procura de novos casos de manifestações. Têm vários agentes espalhados pelos estados, alguns deles famosos céticos e acadêmicos apaixonados pela racionalidade no exterior, e um dos seus trabalhos é dizer que as suas organizações não passam de fraudes. Não precisam que outras pessoas acreditem neles, só precisam ser públicos para que quem precise saber deles saiba. Nessas associações, talvez mais especificamente na APABRA, é bastante conhecida a forma de atuação de Madame Eva, assim como a sua verdadeira identidade e o que pode ser entendido pelos humanos da sua natureza. É sabido que a sua raça é antiga, mais antiga do que se pode imaginar, e que seu poder é tremendo quando usado, mesmo que isso seja raro, e mesmo que não entendam exatamente o que é que ela faz. Madame Eva talvez seja a mais influente nesse grupo, assim como a mais ativa, e talvez por isso seus hábitos peculiares não são mal vistos pela sua esparsa comunidade, pelos de sua raça ou família. É conhecido pela APABRA o nome dos seus irmãos mais ativos no Brasil, e nenhum deles é tão ativo e distinto como Madame Eva. A comunicação com qualquer um deles é estritamente proibida, e qualquer um que fale com eles fora do seu conhecido modus Madame Eva – Thiago Geth Sgobero


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operandi, ou em palavras mais claras, qualquer um que não for morrer no dia seguinte, acaba encontrando sua morte de qualquer jeito pelas mãos dos agentes de campo. Talvez esses seres são os únicos de origem paranormal que nenhuma das organizações ousa controlar. O mais conhecido, além de Madame Eva, é o intitulado Vice, pois pelo pouco que é sabido, é o mais ativo depois dela. Sua área de atuação é mais vista em hospitais do interior do Rio Grande do Sul, e embora seja o Vice, é o mais observado, talvez por ser o único dos irmãos a restringir suas atividades ao Brasil, sem ocasionalmente aparecer em outros países. O mais discreto dos três irmãos é o chamado Outro. Sabe-se que gosta de atuar em zonas de conflito, em qualquer lugar. Não o monitoram muito, nem procuram. Não têm a coragem. Mesmo com cada um tendo a sua peculiaridade, a comunidade hoje chegou ao consenso de que Eva seria realmente a mais respeitada dos três, talvez até alguma espécie de líder, da forma estranha que a sua raça lida com a liderança. Existem, sim, relatos esparsos de grandes poderes eclodindo simultaneamente no sul do país, onde o Vice mora e onde os três provavelmente se

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encontram, e a assinatura de Eva, sua energia particular, sempre prevalece. Mas isso vai mudar. Esse ônibus vai se acidentar, eu sei, porque falei com Eva noite passada. Esse ônibus vai cair de um penhasco, e todos vão morrer. Todos devem morrer, e eu também devo. Devo, mas não vou. Vi o que há pra ver, e algo mais. ... Valério Carmo tinha câncer no pulmão. A ironia era tão grande que às vezes, durante as solitárias madrugadas daquele hospital nojento, começava a rir e não conseguia parar até cair no sono. Não sabia se existia alguma coisa depois da morte, se havia algum Deus ou deuses esperando por ele, mas se existisse, quando passasse para o outro lado iria cumprimentar a entidade tomando conta do destino dos homens pela maravilhosa piada. Valério era um psicólogo do fumo, ajudava as pessoas a largarem seu vício, e durante vinte anos havia mostrado seu livro de fotos de pessoas amarelentas morrendo para centenas de fumantes. Valério nunca havia acendido um cigarro em toda a sua vida, ele dedicara vinte anos do seu tempo salvando as pessoas do seu destino, e agora morria numa cama de hospital, com dores no corpo todo. Seu algoz, o câncer, deveria estar em alguma Madame Eva – Thiago Geth Sgobero


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campanha de vingança contra ele, para que ele parasse de lhe tirar as almas ou algo assim. Valério ia morrer. Na noite passada, um médico novo havia chegado. Não era hora do seu remédio, Valério nunca o havia visto. Era alto, com o cabelo loiro cortado justo, no estilo militar. Usava óculos redondos, naquele estilo que os jovens estavam chamando de Harry Potter, por conta daquele filme idiota sobre um moleque gritando aquelas porcarias em alguma forma de latim vomitado por algum lunático. O doutor tinha um largo sorriso, e seus olhos traziam conforto. Não sabia por que, mas nos olhos do médico novato não via pena ou simpatia, via apenas a certeza da morte se aproximando. Era o olhar “é, meu amigo...”. Sabe, quando alguém está com problemas na vida, perdeu a mulher, o emprego e a dignidade, e está enchendo a cara de cachaça em algum bar porcaria numa viela? Sempre aparece algum camarada que entende perfeitamente o que está acontecendo e diz “É, meu amigo...”. O médico devia ser algum tipo de psicólogo. Nem sequer olhou para os equipamentos, nem tampouco fez algum tipo de exame inútil. Sentou-se na cama e começou a conversar. Dizia que conhecia um monte de gente morrendo ali no hospital, e que não conseguia

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compreender como alguém que iria encarar a morte conseguia permanecer parado no mesmo lugar, conseguia permanecer são, sóbrio, dono de si. Valério respondia como conseguia, jogando aquele velho clichê, “a gente faz o que pode, fazer o que? Ainda temos esperança” e blábláblá. Até que não conseguia mais falar aquelas coisas. Ele olhou para o médico com os óculos Harry Potter e disse uma frase que resumia todos os seus sentimentos, medos e incertezas. “Todo mundo diz que tem um jeito, a verdade é que ninguém tem. Estou morrendo de medo”. Fechou os olhos para tentar conter as lágrimas, e quando os abriu de novo, já era manhã. A ironia, a doce e bela ironia. Naquela noite, Valério acordou sobressaltado. Dez minutos depois estava morto. ... Já disse quem sou eu nesse manuscrito. Sou Jaime, e desejo que quem leia isso se lembre de mim. Não, eu não estou entre os mortos e despedaçados desse acidente, eu fui além. Eu transcendi, fui iluminado, ou melhor, me acenderam, pois a luz já estava comigo. O agente dessa iluminação foi o mais improvável possível. Nunca pensei que tudo o que está em mim seria revelado um dia por uma das criaturas mais reservadas e Madame Eva – Thiago Geth Sgobero


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antigas nessa existência. Eva é, como seus irmãos, um ser quieto, das sombras, que corre atrás das cortinas do mundo tirando só o necessário para si. Quão melhor seria a convivência entre todas as criaturas, divinas, imortais ou mortais, se fossemos todos como ela e os seus? Seríamos a perfeita demonstração da paz, e embora não exista amor entre todos, o ódio não seria jamais consumado. Deus olharia para nós e se diria satisfeito. Sem guerras, sem ambições, sem hostilidades, sem necessidade de controlar poder, de retê-lo, de demonstrá-lo! Que existência pacífica e ideal teríamos! Os músicos fariam sua música e não se preocupariam com nada mais, os deuses seriam apenas deuses, e fariam o que quer que fazem os deuses, e os anjos deliciar-seiam com o seu esplendor individual sem nunca incomodar os demônios, roendo a ponta da sua maldade como algum osso velho. Não iríamos precisar de mortais enfiando os narizes nos assuntos extraordinários, e assim, os homens poderiam desfrutar do que as entidades místicas têm a oferecer. Não, é tudo utópico, é sonhar alto demais. Temos que lutar, temos que discordar, temos que nos provar sempre os mais corretos, os mais sábios e os mais merecedores do nosso lugar ao sol. É a natureza da vida, seja mortal, divina ou vil. Assim somos, assim permaneceremos.

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Antes de transcender, antes de ser iluminado, eu era um homem comum. Não era imortal, não a minha essência como homem, nada disso. Meu ser, quem eu realmente sou (ou como me descobri sendo) não deixaria de existir quando meu corpo morresse naquele acidente. Eu sou divino, sou algo mais que humano, mas não sabia disso. Passei de vida a vida, de mortalidade a mortalidade, e cada memória adquirida nesse life-leaping hoje vejo com clareza. Quando percebi que os conflitos entre deuses e entidades poderosas estava chegando a um ponto que arriscaria a minha existência, tomei a decisão que muitos do meu tipo também tomaram. Desisti da minha consciência, e vaguei sem lembrar de nada por incontáveis vidas. Disso não me arrependo, mesmo que algumas ações que cometi foram vis, foi necessário me proteger, para de novo me lembrar e renascer em um tempo melhor, mais calmo. Foi isso que Deus me disse, e como ele mesmo fez eras atrás, quando foi ameaçado pelo complô que terminou no Massacre dos Portões. Quando se lembrou de quem era, mesmo que parcialmente, terminou morto pelos soldados romanos, como era esperado. Ascendeu aos céus, e de volta ao seu trono, ainda reina. Vivi várias vidas, e tenho na lembrança algumas memórias que deveriam ser pra sempre enterradas. Madame Eva – Thiago Geth Sgobero


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Matei, não apenas um, matei aos milhares, e me envolvi em vícios terríveis, mas tudo pela causa da sobrevivência. Não devo me arrepender, e não o farei. Quero deixar registrado como tudo aconteceu. É o que eu devo fazer, é o que é necessário fazer, e algo bom pode sair disso tudo. Quando o próprio Deus lembrou-se de si mesmo e se disse encarnado como seu filho, o que foi escrito sobre Ele permanece até hoje. Esse é o protocolo para esses casos, devo dar minha versão, mostrar os fatos e enumerar as circunstâncias. Assim irei concluir o Rito, e serei livre de qualquer responsabilidade, a não ser a de retornar ao meu criador. Como Jaime, voltava àquela cidade mineira para ver a família da minha esposa, que morava comigo na Argentina. Tinha uma vida boa, feliz, e era honesto. Jaime provavelmente foi a encarnação mais prodigiosa que tive, a mais honesta e sóbria, o mais amoroso de todos e o mais preocupado com o mundo. Jaime chegou perto do meu verdadeiro ser. Imagino que a causa de tamanha bondade era pressagiosa. Era como se o corpo soubesse o que iria acontecer, como se o seu cérebro, no momento que fora ligado, já sabia a carga que carregava e o seu destino, e por isso tinha decidido ser uma pessoa boa. E por Deus, eu era bom.

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Em Uberlândia, estava hospedado na casa dos meus sogros. Aquela velha rotina de sempre, beber umas cervejas com o cunhado, bebericar whisky com o sogro, falar da rotina e de Buenos Aires com a sogra e por aí vai. Eu gostava daquilo tudo, era contato humano, e eu estava feliz com ele. Como antes de abandonar a consciência, adorava a companhia dos familiares, e mesmo aqueles churrascos intermináveis e jantares chatíssimos me davam um grande prazer. Era oficialmente um homem de família. Todos me adoravam, era o genro que pediram a Deus. Era engenheiro, não tinha a cabeça nas nuvens e não me faltava dinheiro. Minha sogra adorava se bajular pras suas peruas de estimação, e meu sogro me dava tapinhas nos ombros. Era o paraíso. Por pouco tempo. Pessoas comuns não sentem efeitos colaterais grandes quando se deparam com Eva. Eu não era uma pessoa comum. Eu dormia em mim mesmo, meu poder era enorme, porém velado. Acontece que noite passada fui acordado, e bem na hora, diga-se de passagem. Se dormisse mais, era provável que nunca mais acordaria. Estava na garagem externa da casa, sentado no capô do meu carro e bebendo uma cerveja. Me lembro de pensar em como a cerveja brasileira era ruim, e como

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era ridículo o hábito de bebê-la gelada. Não fazia sentido, era como beber café gelado ou coisa assim. Estava completamente relaxado, não pensava em nada específico, quando vi que a lâmpada começava a falhar. Ela piscou algumas vezes e se apagou de repente. Olhei pra cima, em sua direção, procurando ver alguma falha ou qualquer coisa, e quando olhei pra baixo de novo, havia uma mulher ali. Estava vestida com um vestido negro, bem simples, sem ornamentos, e tinha a pele branca e pálida. Seus cabelos eram curtos, e seus olhos não deixavam qualquer emoção escapar. Por um momento ficamos ali, parados, olhando um para o outro. A morena avançou alguns passos, e a última coisa que eu pensei como Jaime fora “la conosco”. Eva agora estava mais perto, e seu rosto não me dizia nada. Quando parou, seus olhos estavam mais largos, suas sobrancelhas se levantaram, e sua boca abriu-se por um leve momento. Ela disse: - Você. E aí eu já me lembrava de tudo. Tudo saiu de foco, senti meu velho poder correndo de novo pelas minhas veias, e me senti um estranho usando aquela aparência. O poder se espalhava pouco a pouco, e junto com ele, ia também se espalhando uma fúria

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incontrolável. Estava perdendo o controle de mim mesmo. Era apenas um efeito colateral, acontecia com todos, aconteceu mesmo até com Ele. Eu sentia fúria e nojo de mim mesmo, como pecador, e sentia uma necessidade absurda de reparar todos os meus danos, me livrar das marcas do meu passado, mas todos os que se envolveram comigo nas minhas vidas passadas estavam mortos. Todos, exceto a minha família. Era hora de pegar o martelo e fazer a obra de Deus. Quando entrei na casa com um martelo, ninguém desconfiou, ninguém viu que eu era outra pessoa, e que eu trazia morte em minhas mãos. Meus olhos se inflamavam, o branco característico da minha ordem começava a se destacar, e eu me sentia renovado, era eu de novo, e voltaria a brilhar nos Campos, fazendo a Formação vibrar com a minha palavra de ordem. Vi o velho sentado no sofá, e antes que ele percebesse, o martelo já estava cravado no seu crânio. Não sentia ódio do velho, sentia ódio de mim, e matá-lo me dava um prazer enorme, pois matava também a Jaime. Procurei pela minha sogra, e a encontrei debruçada no fogão. Quando olhou pra mim, o que viu provavelmente foi a besta. Meus olhos brilhavam como gemas ardendo, minhas mãos ensanguentadas seguravam um martelo ainda com pedaços do seu marido. Ela não conseguia Madame Eva – Thiago Geth Sgobero


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nem suplicar, e gemeu de leve quando a acertei nas costas. Seu grito foi maior quando a puxei pelos cabelos, e quando ateei fogo neles, já berrava. Seu rosto derreteu diante dos meus olhos, e eu sorri, pois vi que o que fazia era bom. Eu ainda estava na forma humana, percebi, e demoraria algum tempo até recuperar meu esplendor e voltar pra casa. Tinha impulsos humanos, e não pude deixar de notar que a minha excitação estava chegando ao nível de excitação física, sexual, e resolvi que deveria satisfazê-los, para completar o ritual de purificação e ser verdadeiramente eu de novo. Minha esposa estava no banheiro, preparando-se para se vestir, e eu a encontrei completamente nua quando entrei. Ela me disse pra fechar a porta, e minha excitação aumentava a cada instante. Me despi, e disse que iria possuí-la. Ela disse que não, que os pais iriam ouvir, e eu disse pra ela não se preocupar com isso. Agarrei-a pelos cabelos com truculência, e ela gritava protestos e tentava me arranhar com as unhas grandes. A puxei até a cozinha, onde o rosto de sua mãe ainda estava fumegando. Quando ela viu o que acontecia, gritou como uma louca. Ali a possuí. Meu poder retornava, pois quanto mais satisfazia meus desejos humanos, mais puro me tornava, e ao clímax, tinha a pobre mulher sob meu controle. A deixei Madame Eva – Thiago Geth Sgobero


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ali e fui me vestir com as roupas do meu sogro, um toque mais elegante, e quando voltei, a pobre garota estava catatônica, olhando para o chão e para o rosto da sua mãe. Minha semente agora não era mais humana, e queimava dentro do ventre da mulher. A libertei do meu encanto, sabendo que ela estaria completamente insana daí em diante. Desci ao porão para pegar o dinheiro da família, e resolvi que deveria me esconder em algum canto do Brasil até ter meus poderes de volta. Saí da casa, deixando pra trás minha esposa, e quando olhei pra trás, a última visão que tive foi da mulher mastigando com uma expressão infantil algo que parecia ser o olho esquerdo do seu pai. Estava coberta de vômito. Fui-me embora. O despertar é sempre violento para alguém como eu. Deus é pura bondade e conhecimento, uma entidade que sabe de tudo e tudo vê, mas eu sou um ser de violência. Luto contra o mal e contra os que nos opõem, mesmo não gostando de lutar, mas devo, porque é assim que eu sou. Comprei a passagem para Foz do Iguaçu, longe de tudo e todos, e na fronteira da Argentina, caso algo saia errado e eu seja encontrado pela polícia. Foi aí que percebi o que estava pra acontecer. Não precisei de dois minutos pra compreender. Eva fora me visitar, o que significava que eu, como Jaime, estava pra morrer Madame Eva – Thiago Geth Sgobero


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em um acidente. Esse acidente seria causado por ela, mas ela não tinha como saber disso, só sabia que eu morreria em um acidente, e isso pra ela bastava. A sua aparição é que causaria a morte de Jaime, pois ela me libertaria, e daí surgiria a necessidade do isolamento, e portanto a viagem. Era um paradoxo, e hoje eu penso em quem pode estar envolvido nisso. Deus? Lúcifer? As Hordas Infernais? Algum deus rancoroso? Mesmo que tudo tenha acabado de forma satisfatória, eu poderia morrer naquele ônibus. Ainda estava enclausurado no corpo mortal, e sua morte reiniciaria o ciclo. Isso não poderia ocorrer, precisava entender o que se passava, precisava saber por ordem de quem aquele paradoxo se iniciava. Precisava sair do ônibus. Com um esforço enorme, reuni meu poder ao redor do meu corpo, e assim, envolvido na luz sublime, consegui ultrapassar as barreiras da carroceria daquela sentença de morte ambulante. Fugi de lá, estou vivo agora. Escrevi esse manuscrito com a minha vontade, sentado sobre algum corpo, e usando o papel de algum caderno meio chamuscado, e aqui ele se encontra, de acordo com o que me foi designado. O Rito está concluído, e agora que já passei minha história pra quem quiser ler, posso continuar em destino ao meu isolamento, para poder me reerguer e subir novamente Madame Eva – Thiago Geth Sgobero


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aos céus. Sou o Arcanjo Thiago, assim nomeado por mim mesmo em honra ao discípulo, meu amigo. Comando a Formação, e deixo aqui a palavra divina de um abençoado e versado nas artes dos céus. A família de Jaime está no paraíso agora, a exceção de sua esposa, que se encontra ainda no plano mortal, completamente insana. Se agi com violência exagerada, não importa. Se senti prazer ao assassinar alguém, não importa. Estou acima das leis e da moral dos mortais, pois não tenho eu também o sangue do cordeiro? Não serei tombado, não cairei em desgraça, e nem me tornarei um demônio. Sou o Arcanjo Thiago, e comando a Formação. E quem duvidar do que eu digo e me chamar de assassino, terá o mesmo destino de todos os que morreram pela minha mão. Amém. Fim do manuscrito. Muito é estudado por nós sobre os arcanjos, e essa é a primeira vez que temos contato com um de sua espécie. As teorias conhecidas sobre essas criaturas maravilhosas se confirmam ao examinarmos o manuscrito. Sua perspicácia é tremenda, a ponto de com um simples olhar dirigido a Madame Eva conseguiu desdobrar informações impossíveis de serem descobertas por qualquer outro que investigasse. Seus olhos são como ferramentas de

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busca por palavras específicas em uma biblioteca recheada de enciclopédias, e todos nós estamos honrados por participar de experiência tão revigorante como essa. É realmente maravilhoso. 13 de Junho de 2012. APABRA. Carlos Brás. ... O sol coroava as cachoeiras do Iguaçu. O Arcanjo estava escorado na grade, vendo a beleza criada por Deus e se orgulhando por ser parte viva d’Ele. Conseguira um feito inédito, e seu nome a essas horas estava sendo cantado por toda a formação nos céus. Era o primeiro a enganar Madame Eva, o primeiro a ver um de sua espécie de perto e permanecer vivo para se lembrar. Era provavelmente o ser mais sortudo do universo. ... Os três caminhavam lentamente em direção as plataformas metálicas da foz. Eram a elegância em pessoa, e andavam abertamente no sol, ocasião raríssima. A cerimônia ia bem. Tudo deveria ser como o protocolo. Ocasiões assim deveriam ser tratadas com seriedade, e a rigidez, que já era parte da vida deles, deveria ser ainda mais rígida. Naquela tarde, alguém deveria morrer.

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... Carlos Brás segurava o manuscrito diante dos olhos. Alguma coisa estava errada com ele. Alguma coisa ruim estava pra acontecer com aquela coisa. As letras estavam se apagando, escorrendo, como se a tinta da caneta estivesse derretendo. Um canto do papel pegou fogo e queimou a mão de Carlos. Ele chorou sem saber por que, mas se sentia aliviado. Pegou seu chapéu e foi pra casa, e lá, sozinho, passou a noite inteira rolando na cama fazendo força para esquecer tudo o que havia lido. Algumas coisas eram demais pra saber. ... Thiago, por sua natureza de arcanjo, não demorou nada para perceber o que estava acontecendo. Ali estavam Eva, o Vice e o Outro, olhando pra ele, vestidos com seus trajes formais. Eva com um vestido azul e roxo, ornamentado com corações estilizados, os irmãos com sobretudos negros e azuis, com detalhes também de corações estilizados. Eva disse a última coisa que ele escutaria. - Você se enganou. Eu nunca falho. As cachoeiras foram perturbadas por metal retorcido e ossos naquela manhã. Madame Eva – Thiago Geth Sgobero


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CONVENTÍCULO PETTER __________________________________________________

“O maior feiticeiro seria o que se enfeitiçara até o ponto de tomar suas próprias fantasmagorias por aparições autônomas. Não seria esse o nosso caso?” NOVALIS


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conventículo (Latim conventiculum, -i, pequena reunião, local de reunião) Substantivo masculino 1. Reunião clandestina que só maquina o mal. 2. Assembleia de feiticeiros, bruxas ou afins.

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Quando a mente, alimentada pela insônia e pela noite, depois de muitas voltas, acaba vagueando para onde sempre quis ir, é comum se imaginar em uma vida alternativa como membro do Conventículo. Existem pessoas que são mais insistentes: estas se afundam em erudição, buscando livros que já se tornaram apenas páginas raras e frases avulsas, ou velhos boatos dos quais a pouca verdade precisa ser extraída com habilidade. Pensam que, de alguma forma, podem um dia chegar ao Conventículo com esta paleontologia equivocada. Mas sabemos que isto nunca acontecerá. Então digamos que exista uma pessoa que não pensa muito em ser um membro do grupo. Alister Raluri, por exemplo. Este aqui sim é um senhor apropriado. Alister Raluri nunca parou para pensar seriamente neste assunto obscuro, não por que o grupo seja desprezado por ele, mas por que ele é alguém ocupado (ocupado com coisas importantes), com muitas atividades e responsabilidades e idéias e pensamentos intrincados. Claro que Alister já se perguntou brevemente sobre o Conventículo e até (secretamente) o admirou. Mas o bilhete que ele tira de dentro do seu nariz sem a menor dificuldade enquanto tenta limpá-lo só chega quando ele não está esperando, porque o bilhete só aceita ser

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achado quando o seu efeito for um espanto total seguido de um possível desajuste cardíaco (Alister não chega a tanto). Pois bem, agora Alister tem uma carta que treme em suas mãos, e ele não sabe se ela treme sozinha ou se isso é coisa das suas mãos. Só há um logo elegante e enigmático na frente desta pequena carta fechada, mas ele já parece ter certeza do que se trata. Sabe que até mesmo as palavras guardadas ali dentro são apenas uma formalidade. Ele então não se pergunta: “Por que eu?”, pois sempre soube que é uma pessoa apropriada. Alister abre o envelope. Ali está um convite para que compareça ao Vulkhglz (por sorte está apenas escrito, pois Alister não saberia pronunciar o nome) em tal dia e tal horário. O convite é um poema genial (alguns grandíssimos escritores fazem parte do Conventículo) que Alister bem sabe que foi escrito só para esta carta e que pode desaparecer para sempre se ele queimá-la. Mas onde é o Vulkhglz? Alister é bem informado, bem relacionado, bem vivido, mas nunca ouviu falar no tal lugar. Ah, bem deveria ter sabido que não seria assim tão fácil entrar no Conventículo! Aqui Alister ainda tem uma opção audaz. Há muitos séculos conta-se a história de um certo Tomas Thrust, Conventículo – Petter


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alguém que fez o inimaginável: recusou o convite. Isto enlouqueceu os membros do grupo, em especial por que nunca haviam se dado conta desta possibilidade. Mas isto não foi tudo. Thomas Thrust não só desdenhou o Conventículo. Ele também saiu por aí falando a quem quisesse ouvir (e todos queriam ouvir) que o havia feito. Isto lhe deu um status surreal. De certa forma, ele estava acima do Conventículo: tinha agora seu clube individual, o mais restrito. Muitos jovens da alta sociedade local se esforçaram de todas as maneiras possíveis para se tornarem seu primeiro aprendiz, por mais que Thrust não tivesse dado nenhum sinal de que pretendesse expandir o seu grupo e nem tivesse o que ensinar. Deu-se então uma rixa com o Conventículo que só teve fim com o desmembramento do clube Thrust. Mas Alister Raluri não é Thomas Thrust. Alister começa a procurar. Usa todas as suas artimanhas. Por sorte e merecimento é amigo de governantes, conhece policiais, é estimado por entregadores e motoristas. Nenhum desses conhece o Vulkhglz. (E Alister, a cada pergunta, se envergonha ao tentar pronunciar esta palavra incerta e difícil, como se ela realmente não quisesse sair.) Já desesperado, ele começa a perambular pelas ruas, pois faltam só duas horas para a hora marcada. Tenta pensamentos laterais porque sabe que é preciso Conventículo – Petter


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inteligência para fazer parte do grupo. Pensa que talvez o local não seja físico, mas mental: uma idéia, um estado de espírito. Não chega a lugar nenhum. Entra em parafuso. Faltando cinco minutos, Alister desiste e, mesmo que custe a admitir, chora atirado no pavimento em algum lugar que já nem sabe onde é. Abre os olhos embaçados e vê uma roda preta. Esta roda preta, com uma calota tão elegante e detalhada que mais parece uma obra de William Morris (e talvez seja), faz parte de um coche riquíssimo. O cavalo que o leva é sem dúvida indomável, um animal da estirpe de Sleipnir ou Scadufax, mas que se restringe imóvel porque trabalhar para aquele coche é algo maior que qualquer liberdade e egocentrismo. Não há cocheiro. Alister abaixa a cabeça e entra. Dentro da cabine um sono o ataca. Passa por túneis que se distorcem em formas só possíveis em outros mundos; vê também coisas incríveis e soluções perfeitas que não conseguem sobreviver à transição de realidade. A situação é trágica, pois acorda com a triste sensação de que perdeu algo muito importante que já nem sabe o que é. Saindo do coche, se vê de frente a uma casa bastante distorcida que por ser feita de pedras e ter pequenas Conventículo – Petter


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torres se parece muito com um pequeno castelo. As pedras são de todos os tamanhos e a textura criada por elas é uma bagunça, criando curvas ao invés de retas. Alister procura não olhar muito os detalhes e ângulos da casa, pois sabe que eles não farão sentido e possivelmente darão um nó no seu cérebro. Entra. No saguão a única iluminação recai sobre uma escada circular que desce. Desce por ela por um bom tempo. (Quando voltar, notará uma estranheza: desta vez, apenas três voltas já bastarão para completar a subida.) Lá embaixo chega a uma sala de estar bastante detalhada, do tipo realmente elegante, mas distorcida como em um antigo filme expressionista. Um homem alto, com uma capa preta que cobre muito do seu corpo magro, veste um chapéu pontiagudo que faz sombra sobre o seu rosto que é também pontiagudo. O homem se aproxima. Alister vê o seu rosto com maior clareza agora, mas desvia o olhar. ... Agora, depois de toda a cerimônia que, contendo a essência da magia, é impossível de ser recontada, Alister escuta Matias Parloop, o homem escolhido para ser seu mentor. É de uma aparência completamente

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desinteressante. Descrição apropriada para ele seria uma que mostrasse os seus mínimos detalhes em longos parágrafos entediantes. - O senhor deve ser sóbrio na escolha da sua forma de expressão. Evite coisas espalhafatosas como raios e explosões. A tecnologia e a falta de obscuridade podem ser fatais para a magia. Aprenda a apreciar a arte da alteração sutil e despercebida da realidade. Mas registre tudo em papel! Quando a magia se mistura e se perde na realidade temos um grande problema. Tenha em mente que quanto mais complexo o encanto mais problema ele pode trazer. O faz-tudo de Lucian é um bom exemplo dessas duas máximas. - Quem? - Lucian, o Holandês mudo. Quando ainda não era mudo era um dos membros mais capazes do grupo. O ego lhe instigou uma megalomania criativa, porém. Na sua época mais ativa fazia este ponto de encontro parecer um circo. Um dia pensou ser capaz de dar vida a uma criatura, e estava certo. Da sua magia saiu Puque, um ser notável. Puque tinha uma proporção questionável, mas, tirando isso, se passava facilmente por um humano legítimo. Lucian dizia ter a criatura sob controle, podendo fazer com que deixasse de existir quando bem Conventículo – Petter


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quisesse. Lucian já era bastante velho, mas mantinha uma mente voraz, por isso passou a usar Puque como ferramenta para fazer o que já não podia: entre outras coisas, enviava-o a todo tipo de lugar para caçar artefatos raros. Em uma dessas vezes Puque não voltou. A princípio Lucian, quando questionado, afirmou ter desfeito o feitiço Puque, mas logo a sua consciência e a sua honra pesaram. Contou o que de fato ocorrera, antes de renunciar ao seu posto respeitável no grupo. Explicou que havia exercido muito esforço mental na construção de uma arquitetura mágica e que isso, aliado a sua idade avançada, permitira que Puque se desvencilhasse da conexão (subordinação) mágica. Levantamos uma questão, porém: antes disso já havia uma pressão para que Lucian se livrasse de Puque, e era inegável a relação que havia se desenvolvido entre os dois (não detalharei o assunto; apenas digo que Lucian era um tanto egocêntrico e gostava muito de suas próprias obras). O que impedia que Lucian tivesse liberado Puque na sociedade deliberadamente? Sua honra, disse Lucian. Então se seguiu uma discussão acalorada que teve seu ápice ultrajante e fim quando alguém usou alguma magia. Lucian então ratificou que se retiraria do grupo naquele momento. Não era o suficiente, decidimos. Foi

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daí que ficou mudo. Lucian era um mago vocal, o tipo que só consegue exercer poder pela voz. “Outro caso é o de William Rigo, grande arquiteto e mago que espalhou muitas construções mágicas por Bruxelas, simplesmente porque gostava do nome. Não sabíamos o que era real e o que era construção da sua mente na cidade. Quando morreu, muitos prédios sumiram; muitas pessoas em andares superiores caíram. A cidade perdeu um terço do tamanho. Deixou ainda algumas construções de magia independente e hoje ainda em Bruxelas podemos encontrar igrejas distorcidas.” Alister escuta o seu tutor por algumas horas no que acaba se tornando mais um longo relato de anedotas e mexericos relacionados a magos do que propriamente uma aula. - Oh, já é hora – Diz Mathias, lhe entregando uma lista de exercícios. ... Alister tenta manter segredo. Não obstante, Julia, sua mulher, nota que há algo acontecendo. Alister é o tipo de gente que raramente sorri; quando o faz, parece forçar e distorcer a estrutura do deu rosto. Agora, sorri com Conventículo – Petter


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freqüência, até mesmo quando não tem motivo. Também fica por muito tempo olhando compenetrado para uma vela na mesa de estar. Quando Julia vai dormir, ela consegue escutar o marido murmurando coisas incompreensíveis em outro cômodo. Por fim ele diz que devem se mudar para a velha casa de campo, acreditando que lá tudo funcionará melhor. Esta é uma frase ampla. O que Alister não explicou a sua esposa é que “tudo’’ quer dizer, neste caso, magia. A magia está mais propensa a se manifestar em terras antigas, que tenham muitas camadas de história, como é o caso da casa de campo. Julia se nega. Exige a verdade em troca da mudança para a casa no campo. Depois de muita pressão, Alister cede e lhe conta tudo. Julia promete silêncio, mas se vê na obrigação de contar tudo para o seu pai, pois recontar a fantástica história para si mesma não lhe satisfaz mais. Histórias competentes tendem a se expandir e a se espalhar, se modificar, são coisas vivas. Por isso não se deve culpar Julia — luta contra uma força natural. O pai de Julia, por sua vez ainda mais fraco e sem compromisso, dissemina o conto pelo mundo, com tanta vontade que dá a parecer ter sido ele mesmo quem viveu os acontecimentos relatados. A história se alastra rapidamente, sendo modificada e extrapolada até chegar aqui. Esta versão, então, não é

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verdadeira, e talvez seja preciso garimpar a pouca verdade contida neste texto. Esta recontagem é, de certa forma, a vingança de todos os rejeitados pelo Conventículo (que compreende quase todo o mundo). É possível dizer que se trata de uma distribuição causada tanto por curiosidade quanto por crueldade, pois, uma vez que a história se difundiu ao ponto de se transformar em livros no topo das listas de mais vendidos e centenas de clubes impostores, o esperado acontece. Nenhuma das pessoas mencionadas na história pode ser encontrada, exceto pela mulher de Alister. Julia vai para o interior, mas não encontra a casa de campo. Hoje há uma série de excursões ao Vulkhglz, já comumente chamado de Vulque, que pode ser encontrado em uma rua no centro da cidade, de onde turistas saem levemente decepcionados. Só veem uma casa antiga e sem elegância, sem nenhum resquício da sensação inexplicável de estranheza e leve equívoco que os primeiros visitantes juravam sentir.

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