Escritores e contistas da OS
1ª Mostra EcOS
Fórum Outer Space - Literatura e HQs
© 2014 Escritores e contistas da OS & Fórum Outer Space Literatura e HQs
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1ª Mostra EcOS. / Escritores e contistas da OS. – Brasil: Fórum Outer Space - Literatura e HQs, 2014. Bibliografia. ISBN XXXX-XXXX-XX. 1. Literatura. 2. Contos.
“Um crime bem sucedido e favorecido pela sorte é chamado de virtude.” Sêneca
Desde que Caim usou uma pedra para derramar o sangue do próprio irmão, o crime vem sendo um dos assuntos que mais desperta todos os tipos de sentimentos nas pessoas. Raiva, angustia e horror seriam a resposta para a grande maioria, mas o que poucos tem coragem de admitir é que, às vezes, escondido nos cantos mais sombrios da mente, existe uma certa fascinação que nos deixa acordados durante a noite e não nos permite desviar o olhar. Essa coletânea traz as mais diversas histórias sobre crime escritas pelos usuários do fórum Outer Space. Boa diversão.
SumĂĄrio 1
Primavera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Lago . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
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Clic . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Palimpsesto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Matadores de DragĂľes . . . . . . . . . . . . . . .
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A pianista, o Assassino e um Avohay . . . . . . . . 143
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Caracol . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191
Conto
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Primavera Thiago G. Sgobero
“Do you think you’re better everyday? No, i just think i’m two steps nearer to my grave.” Keep Yourself Alive (Queen)
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Conto 1. Primavera
Primavera estava coberto de sangue, como sempre acontecia naquela época do ano. A chuva caía e os corpos também, era a hora da faca, a hora do soco, a hora do horror e da miséria. Tinha dois nomes e dois batismos, um pela mãe e o outro pela estação. Um deles abandonava toda vez que a primavera chegava. Alguma coisa dizia que aquele nome não era o certo. Não era o seu. Ele não sabia o que era. Cenas do resto do ano corriam na sua cabeça, e todas elas pareciam irreais, estúpidas e sem sabor. Queria viver num mundo onde sempre fosse primavera, onde o sol brilhasse o tempo todo e a chuva castigasse quando o calor ficasse insuportável. Todo dia primavera, todo mundo primavera.
Não, Primavera era seu nome. Sempre na mesma época
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voltavam a estampá-lo no jornal, sempre na primavera o Marcelo Resende começava a gritar, e todos gritavam sempre pela mesma coisa. Captura. Ou morte. E ele ria da ironia. As pessoas queriam matá-lo porque ele matava pessoas. Ele ria, porque não podia chorar na primavera. Era tudo tão lindo, tão mágico e perfeito, a liberdade e o sangue, o gozo sexual enquanto os outros se retorciam de agonia embaixo dele, tudo, tudo era perfeito na primavera. Se queriam matá-lo, que tentassem. Não trocaria a sua estação por cautela. A cautela podia ir à merda. Havia um homem sentado numa cadeira e outro com uma faca. O outro era Primavera, e o um, alguém qualquer. Não mentia pra si mesmo, não tentava dizer que era bom por dentro e que era o que era porque não conseguia se controlar. Era ruim, era estragado, e nada mudaria isso. Não tentava dizer que tinha um código, aliás, achava Dexter a coisa mais imbecil do planeta. Era um assassino de verdade, um que queria matar e que não ligava para códigos ou coisas ridículas que poderiam melhorar sua imagem pra ele mesmo. Gostava de pensar que um homem é o que é, e não deve se envergonhar disso. A primeira vez que alguém enfia a faca em outra pessoa já faz dela um assassino, ponto, e códigos e o diabo a quatro não fariam a coisa ficar melhor. Um homem numa cadeira e Primavera em pé, um olhando para o outro, um chorando e o outro rindo
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Conto 1. Primavera
e balançando os braços. Era de meia idade, a vítima, com cabelos que começavam a tender para o grisalho, e vestia uma calça jeans e uma camisa polo. Uma pessoa normal e completamente aleatória, Primavera ignorava completamente quem ele era e o que ele tinha feito de bom ou ruim. Estava ali para matar, não para julgar. O homem, depois de olhar o bastante para perceber que estava bem fodido ali e que aquela coisa não ia acabar bem, começou a uivar feito um cachorro. Primavera continuava rindo. – Então, deixa eu te contar uma coisa – Ele disse – Talvez eu te alegre. Olha aqui. Três dias atrás um molecote se sentou aí onde você está, sabe? Então. Esse molecote acordou com um olho roxo aí, porque eu bati nele, e começou a chorar igual a você. Ele disse que faria qualquer coisa, sabia que o negócio estava ruim pro lado dele e queria me chantagear. O moleque era meio baitola, não sei qual era a dele, ele tava com uma daquelas bolsas de puta que ficam no ombro e cruzam o peito, sabe? Pois é. O garoto chorava e dizia que me dava dinheiro, disse que me dava a bunda até e abriu a boca dizendo que chupava o meu pau. Eu não sou viado e não tô interessado em ganhar uma chupada aqui, eu digo pra ele, e ele continua chorando. Mas vai escutando. Primavera segurou a faca com força e a colocou na frente do rosto do homem. Ele a torceu no ar, como uma chave de
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fenda, enquanto sorria e arregalava os olhos. – Eu girei a faca desse jeito pra ele e ele se mijou todo, meu Deus do céu. Eu odeio quando as pessoas se mijam assim, é uma bela bosta. Fica tudo fedendo e tudo pregando, eu não gosto. Fiquei irritado e segurei a cabecinha dele, e aí ele começou a gemer, sabe, a fazer uns aaaai, aaaaaaai e chamar a mamãe e dizer que tava morto e morto e morto, o baitolinha. Eu arranquei os lábios dele, e acho que ele tava tão fora de si que foi por isso que não mexeu muito. Eu encostei a faca nele e deslizei e o beiço saiu voando, dá pra acreditar? E ele ficou com aquela língua passeando pra lá e pra cá lambendo os dentes e procurando o beicinho, e eu falava cadê o beicinho? Cadê o beicinho? Tanto que ele chegou a se cagar. Sério, ele se cagou bem aí nessa cadeira. Claro que eu lavei pra você sentar, eu sou um cara legal. E eu não curto bosta, então eu enfiei a faca na barriga do ridículo e deixei ele agonizando o dia inteiro. Morreu feio o menino, coitado. Primavera chegou mais perto e o homem abaixa a cabeça, evitando contato com os olhos. A máscara era simples, um retalho velho que cobria a metade de baixo do seu rosto. Havia uma florzinha roxa presa entre a sua bochecha e o tecido. Sua ideia de bom gosto ou de piada. – Você não mijou, isso é bom, mas deixa eu te contar já o que vai acontecer aqui, e se você mijar, nós vamos ter problemas,
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Conto 1. Primavera
tá entendendo? Primeiro eu vou cortar suas orelhas e você vai ter que comer uma. Só uma, posso até passar azeite pra descer mais legal, mas você vai ter que comer, são as regras. Todo mundo aqui come alguma coisa. Teve uma que comeu um peito, isso foi legal de ver. E aí depois eu vou arrancar alguns dedos e as metades da frente do seu pé, porque me deu uma curiosidade hoje e quero tentar pra ver no que vai dar. Você vai me ajudar, não vai? Claro que vai. Você tá amarrado aí, vai fazer o que? Dançar a conga é que não é, né? O homem não esboçou reação. Só chorava baixinho e quieto, como se soubesse que fazer qualquer coisa só iria piorar sua situação ainda mais. Homem e homem, homem e estação. Nada a fazer além de chorar e se desesperar. O que você faz quando a tempestade de primavera vem? Você se afoga ou aguenta. O homem estava com o pé dentro de um bueiro numa enchente e sabia que não tinha saída dali. Fez suas pazes com Deus. Pelo menos morria na primavera, não é? Não é? – Então, vamo nessa? O homem respirou pesado e Primavera riu, jogando a cabeça pra trás e fazendo o som ecoar pela galeria de concreto. – Claro que vamo nessa. Eu é que mando aqui, eu sou o rei da galeria. O rei. Primavera se abaixou e começou a trabalhar no homem. Quando a lâmina entrou na sua orelha, ele começou a gritar
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feito uma hiena e a se remexer na cadeira, que estalava e rangia e dava sinais que ia quebrar. Não ia. Já aguentara gente pior e por muito mais tempo. Quando a orelha saiu, Primavera encostou a faca no nariz do homem, e ele gritou mais alto e se remexeu ainda mais. – Olha o narizinho! Olha o na-ri-zi-nhô ! O homem urinou nas calças. Primavera parou de falar, fechou os olhos e suspirou. – Porque vocês sempre fazem isso? Porquê ? O homem deu um pulo na cadeira e soluçou alto. Ainda não disse nada. E continuou sem falar até morrer, duas horas depois ... João Madeira caminhava de um lado para o outro da sala com o telefone na orelha. Um monte de gente falava na sua cabeça ao mesmo tempo, um monte de mulheres com vozes que não eram legais, insistindo em ficar sempre no mesmo tom, sempre no mesmo estilo de voz. “O senhor aceita plano de garantia extendida? O senhor gostaria de um adicional nesse cartão de crédito?”, tudo igual, todas pareciam ser a mesma pessoa, sentadas naquelas cadeiras abomináveis e com aqueles foninhos com canudos de plástico. João sabia como aqueles lugares eram, conhecera gente o bastante pra ter uma boa noção.
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Conto 1. Primavera
Na sua cidade, o rito de passagem de todo jovem sem dinheiro era trabalhar no call center. João fora um jovem pobre, mas não pobre o suficiente pra trabalhar naqueles currais. Se lembrava da história de um amigo que conhecia um camarada, o Marcos, que passara em todas as entrevistas do call center e estava pronto pra começar. Ele, animado, se sentou no cubículo que mal acomodava suas pernas, olhou para os lados, para o gado companheiro, e foi embora pra nunca mais voltar. João não gostava mesmo de telemarketing, e agora tinha dinheiro o bastante para falar mal do trabalho pra qualquer um. Sabia que não iria precisar um dia trabalhar lá. Pelo menos isso. – E o senhor vai concorrer a um carro e uma casa assinando o nosso pacote premium, tudo bem senhor João? – Hum – Ele disse – Tudo bem. Ele teve vontade de dizer que era “Senhor Madeira”, mas ficou calado. – Eu posso garantir que os produtos da American Express são os melhores do mercado, senhor, se o senhor quiser eu posso mandar as nossas ofertas pro senhor diariamente por e-mail, pode ser? – Claro, tudo bem. – O senhor pode me passar? – Hum? – O seu e-mail. O senhor pode me passar o seu e-mail?
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– Ah – Ele disse – Passo sim. Ééé... João sem til... Joáo. Eme Dê arroba G-mail. Pegou? Joao Eme Dê. Porque estava passando um e-mail fictício pra uma atendente de telemarketing? Era tão mais fácil dizer não, só não e pronto. Não podia. Sabia que não podia e mesmo assim se irritava consigo mesmo. Precisava ir com a conversa até o final e fazer exatamente o que a moça estava lhe dizendo. Tinha certeza que se algum dia no futuro alguém instaurasse uma ditadura cyberpunk dominada por deuses em máquinas, seria o primeiro a se render à nova ordem mundial ou o primeiro a morrer ajoelhado. Uma vez sua mãe lhe perguntou se ele pularia num buraco se visse todo mundo pulando, e ele, o jovem João, que ainda era Henrique Baro ao invés de Madeira, disse que sim, com toda a certeza pularia. Era o que os outros esperavam dele, não era? – A American Express agradece o contato e o seu tempo, Senhor João, tenha um bom dia! “Senhor Madeiras!” – Obrigado. Bom serviço pra você, Marcela. Pra vocês. A moça deu uma risadinha antes de desligar e agradeceu a cortesia. “Seria mais cortês se ninguém me ligasse”. Estava esperando uma ligação do seu editor, pra conversar sobre os “seus rumos”, ou, como João gostava de dizer, pra falar bosta sobre os atrasos e as preocupações de que sua novel não iria
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Conto 1. Primavera
sair nunca, e quando o telefone tocou, João atendeu. Não era Hamád, era Marcela, e adeus vinte minutos que podiam ter ido pro seu livro. – O telefone tocou de novo, e por um momento João não quis atendê-lo, mesmo sabendo que era o editor do outro lado da linha. O aparelho tocou três vezes e João não atendeu. Cinco. Sete. Não resistiu. – É o meu velho querido camarada que tá falando? – Sou eu, Hamád. – João respondeu – Que foi? – Que foi? Que isso João, que voz é essa? Poxa, eu só liguei pra... – O livro tá caminhando, Hamád, tá indo. – É, mas você sabe como que as coisas apertam pro meu lado, não sabe? – Disse Hamád – Eu tenho gente começando a achar que você está sendo um risco muito alto. A gente move um monte de logísticas e você nunca dá garantia nenhuma, a gente aqui sempre recebe o manuscrito no prazo, mas sabe como que é, né? No último dia do prazo. “Eu entrego a novel, não entrego?”, pensou. Se quisesse, tinha duas outras editoras esperando de portas abertas. Não, não “se quisesse”. Tinha duas outras editoras que corriam atrás dele feito uma matilha de lobos caçando o último homemfeito-de-bife da terra. – Hamád, a novel tá caminhando bem, você não precisa ficar
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preocupado desse jeito. – E quem disse que eu tô precupado? Eu não estou. Eu te conheço bem e sei como você escreve – “Não sabe não” – Mas são os chefões lá de cima que fazem as regras, você me entende. Sabe como é, não sabe? Eu sei que você sabe. E daí pra frente João já sabia exatamente como as coisas iriam. Se jogou no sofá e suspirou alto, mas fora do fone. Não queria que Hamád escutasse. Ele podia tirar conclusões. Cobriu o rosto com as mãos, acendeu um cigarro e se preparou pra não ouvir nem mesmo uma palavra pelos próximos trinta minutos. Piloto automático, ativar. Bye bye, mundo. ... Foram os olhos dele. Os olhos que João jurava ter visto em outro lugar, os olhos tão familiares e tão diferentes. Eles o faziam querer escrever sobre o homem que os carregava, falar sobre sua força e sua majestade, e de como um par de olhos sozinho podia dominar o mundo inteiro se quisesse. Uma par de pernas, um par de mãos, um par de orelhas em momentos oportunos, todos podiam dominar, se assim desejassem, mas aqueles olhos não dividiam seu espaço com ninguém. Não era do grupo “olhos”, “pernas”, “orelhas”, era de um grupo todo seu, o grupo “aqueles olhos”. Jack Nicholson teria inveja daqueles olhos se tivesse a oportunidade de vê-los. Não, pela
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Conto 1. Primavera
ferocidade e dominância deles, eles provavelmente comeriam Jack Nicholson se sentissem alguma hostilidade. Não aceitavam o desafio. Enfim, foram os olhos que fizeram João saber que aquele era o homem que ele deveria ver. Estava sentado numa mesa no seu café favorito, e não bebia nada. Apenas exercitava os olhos em todo mundo que via. O homem dos olhos era jovem, com cabelos negros e e volumosos, penteados para trás. Vestia uma calça jeans azul escura e um paletó castanho claro sobre uma camiseta preta. “Agora só faltam os protetores de cotovelo”, João pensou. Protetores de cotovelo e um martini àquelas horas para fechar com chave de ouro o estereótipo de gente investida no mercado literário. Mas estava errado. O mercado daquele homem era outro. Tinha um jornal em baixo do braço, o Correio, e a manchete gritava Primavera mata três. – Você deve ser o João Madeira – Disse o homem, com um sorriso largo. Seus olhos se abriram mais do que o que seria considerado normal – Arrumei uma mesa pra gente. O lugar fica cheio demais enquanto a manhã passa. – Eu sei – João respondeu – Você... Você é o cara que o Hamád mandou? – Hamád. Engraçado. Vem do que, de Muhammád ou qualquer coisa assim? – Na verdade sim. Muhammád é o nome dele. Você... Deveria
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saber disso, né? – Me mandaram sim. Me mandaram pra te ver, pode apostar. Ver o escritorzão fodão Madeira. O homem tirou um chiclete do bolso e começou a mastigar com a boca aberta. Era a representação perfeita do perigo, e João se pegou ficando arrepiado. De repente uma coisa que com certeza seria desagradável estava prometendo ficar às beiras do insuportável. Sorria enquanto mastigava, e João não sabia o que dizer. Porra, quem saberia o que dizer para uma coisa daquelas? – Eu ah... Muito obrigado? – Não foi um elogio – Disse o homem – Mas pode passar. Me evita de ter que falar. Sabe, eu gosto mesmo dos seus livros. Você poderia dizer que eu sou um fã. Fínias Treelo ou O Violinista foi uma coisa realmente muito boa. A tensão, o medo, e como o sobrenatural estava impregnado nas nossas vidas? A sutileza? Genial, Madeira, genial! Esse é só o meu jeitão mesmo, você não vai se deixar intimidar por mim, vai? João suspirou e olhou para os sapatos, como se acabasse de encontrar ali a saída para todos os seus problemas. A mão correu para o celular, um velho hábito que tinha quando estava desconcertado e sem saber o que fazer. – Acho que... – Você sabe que não precisa se intimidar. Sabe disso, não sabe?
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Conto 1. Primavera
– Sei. – Tenho certeza que sabe. O sorriso do homem ficou um pouco mais cordial, mas João não conseguiu reparar no motivo. Uma leve mudança nos olhos, sim, a sobrancelha estava um pouquinho mais levantada e as bochechas também. Ainda assim ele parecia um predador. Um bem humorado,mas ainda um predador. Uma garçonete se aproximou de João. – Café? Ela sorriu. Se lembraria dele? De todos os dias que ele tomava café ali? Os olhos do predador estavam pousados nos seus, esperando, julgando, avaliando. – Hm? – Ela perguntou, olhando pra ele – Um capuccino, um pão de queijo? Tão fresquinhos, uma beleza. Não, ela não se lembrava dele. Como podia ser? Ele ia lá todo santo dia. E diabos, era famoso, era bem sucedido o suficiente pra ser reconhecido nos lugares. Porque as coisas não podiam ser do jeito que elas deveriam ser pelo menos uma vez? – Eu quero um capuccino, por favor. Com açúcar. E você? – Eu? – Ela disse, com uma risadinha. – Não, é... Ele aí. – A mesma coisa. – O homem sorriu para a moça, que anotou o pedido. Será que ela percebia o olhar de predador? Algumas pessoas comem, se alimentam bem, enquanto outras correm
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e se assustam. A garçonete se parecia muito com uma gazela enquanto ia para a parte dos fundos do estabelecimento. – Fiquei sabendo que você está precisando de umas ideias pro seu próximo livro. É verdade? – Ele disse. – Não, não é muito não. Assim, mais ou menos. – Então temos um bom acordo aqui. Tenho algo que você vai gostar de escrever sobre. Algo que vai chocar seus leitores. Você já chocou alguém com seus escritos, Madeira? João deixou um risinho escapar. – Ah sim. É o meu estilo. Pouco ortodoxo, bizarro demais, assustador demais, onde você arruma essas histórias horríveis e você deveria se envergonhar. Ah sim, eu já choquei pessoas. – Então você está no caminho certo – Disse o homem. Ele não sorria mais. Abrira os braços na poltrona larga como se quisesse abraçá-la. – Vai escrever uma coisa que vai chocar as pessoas o bastante pra elas te darem Pulitzers. Uma história pra chocar um mundo inteiro, essa é a história que você vai contar. – O... Do que você está falando? – “Eu tenho uma história boa o suficiente para um Nebula aqui. Eu só preciso pensar nela” – Que história é essa? – Você vai contar a minha. Os cafés encontraram um homem de paletó castanho claro e outro de camisa casual olhando um para o outro na mesa.
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Conto 1. Primavera
Um sorria, o outro não. Primavera começou a falar de negócios. ... “E o que você faz?”, “Eu sirvo mesas”. Primavera passou a faca pela bochecha da mulher e riu baixinho quando o sangue escorreu. Ele cortou o outro lado, no mesmo lugar. “Agora você parece uma índia”. Ela chorou e disse umas coisas que ele não conseguiu entender muito bem. “Que foi?”. Ela chorou mais. “Ah, você não quer ser uma índia? Porque as pessoas nunca querem ser os perdedores? Sabe, eu era um perdedor quando eu era mais novo, e agora... Agora eu não estou perdendo mais”. Ele passou a faca pela orelha da mulher e a cortou até a metade. Ela gritou, e Primavera acertou um soco no seu estômago. Ela se calou. “Não adianta gritar, meu bem. O que eu tava dizendo?”. Ela começou a soluçar e tentar gritar de novo, e ganhou mais um soco, dessa vez no rosto. “Ah, sobre perdedores, sobre losers. Eu era um coitado, um ridículo, ninguém dava nada por mim. Agora eu mostro pra eles. Mostro pra vocês. Haha, é muito divertido, todo dia deveria ser primavera!”. Ele chegou mais perto e começou a retalhar, a pintar com a faca, e ela não tentou gritar dessa vez. Uma orelha caiu, a outra também, e logo o nariz seguiu o mesmo destino. “Muito cuidado agora”, ele disse, e ela só soluçava e gemia, mantendo o
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volume baixo. “Essa é a parte complicada. Por favor, não mije na cadeira. É difícil me livrar dela depois, e isso parece ser uma moda que está pegando na comunidade das vítimas. Fica bem paradinha, tá? Bem quietinha e você até pode sair daqui.” Ela arregalou os olhos. Sair. Essa era a palavra mágica, e Primavera sabia muito bem como usá-la. A mulher ganhou forças, ganhou esperanças. Adorava ver quando as vítimas desmoronavam. Adorava ver a cara triste que faziam quando percebiam que não, não iriam sair dali andando, nem mesmo se arrastando. “Sim, sim, é só ficar bem quietinha. Sabe, eu gosto muito de rostos. Eles são o meu refúgio, é onde eu me encontro de novo. Eu gosto de fazer meus próprios, e gosto de mostrar pra todo mundo ver. Faz beicinho, pra mim, faz.” Ela chorou mais um pouco. “Faz!”. Ela não teve escolha. Empurrou os lábios pra frente como se quisesse beijar alguém. Primavera os agarrou e puxou mais pra frente com dos dedos e segurou forte, e a mulher só fazia mff mff mff enquanto ele olhava para ela. “São lindos. Espero que você saiba que isso tudo teve um motivo. Não estou fazendo isso a toa. Todo o seu sofrimento tem um motivo”. Ele encostou a faca nos lábios dela e olhou nos seus olhos, que vertiam lágrima atrás de lágrima. “Minha satisfação pessoal”. Ele cortou.
...
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Conto 1. Primavera
– Você não está mesmo me dizendo que é um serial killer – Disse João – E dentro da minha casa. Com o telefone logo ali. Primavera estava esparramado no sofá mastigando alguma coisa que João não o vira por na boca. O homem parecia mastigar tudo o que encontrava só pelo efeito cool que causava, o efeito sedutor eu-não-ligo. João estava em pé, andando pela sala sem nem perceber. – Então você acredita – Disse o homem – E eu achando que essa era a parte difícil. – Não! Eu não acredito não! – Mas foi isso que você disse. Me ameaçou com o telefone e tudo mais. – Ah, qual é, é isso o que eu estou dizendo. Se você fosse mesmo um... Porra, um serial killer... Eu não acredito que eu disse isso. – Eu não estaria te falando que eu sou, a não ser que estivesse me escondendo a luz do dia e não sei mais o quê e blablabla e essa merda toda, você não precisa nem começar. – Você não é! Simples assim, não quero racionalizar sobre isso, eu nem te conheço. – O interessante é perceber como você está falando comigo, não é? Tá falando bastante, é até bonito de ver em alguém como você. Tímido. Fraco. Patético. Você vai acreditar por-
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que eu estou te falando, rapaz. É isso. Eu falo e você acredita, não tem reciprocidade nessa relação. Silêncio. João olhava para o homem, suas mãos tremendo. Abriu a boca pra falar alguma coisa, mas não encontrou a voz. Tímido, fraco, patético. Abriu e fechou a boca mais uma vez, percebendo que estava sendo patético naquele momento. Abaixou o rosto, pra esconder, e estava sendo fraco. Não podia correr de si mesmo. Ele estava certo. – O que, você achou que eu não te conheço bem? Escritor bem sucedido. Casa simples, não anda de carro, conta bancária cheia de dinheiro? Sei quem você é de verdade, Madeira. Sei que sua casa é simples porque você nunca traz ninguém pra cá. Sei que uma casa grande significa impor respeito, e você não conseguiria impor frio em alguém pelado na madrugada. Sei que você não anda de carro porque não aguentaria cinco minutos de trânsito. Você tem medo de que te xinguem. Sei até que você só é um escritor com dinheiro porque trabalha mais do que é saudável com medo da rejeição. Madeira, não estaria aqui se não te conhecesse. João ainda não conseguia dizer nada. Parecia um episódio do falecido Arquivo Confidencial do Faustão que costumava assistir quando era um adolescente sem poder tocar no controle remoto. Se aquilo continuasse, ele tinha medo de começar a chorar a qualquer momento.
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Conto 1. Primavera
– Então – Disse o homem – Pega o telefone, disca pro umnove-zero e diz que o Primavera tá aqui na sua casa. Eles não vão acreditar, mas não vão ignorar também. Vai, liga. Primavera se levantou e tirou o telefone sem fio da base, discou o número e colocou o aparelho no ouvido de João. Emergência, posso ajudar? – Diz alguma coisa, rapaz. A moça tá esperando. Alô? – Se tem algum culhão, qualquer tipo de bolas, essa é a hora de mostrar. Diz só uma coisinha e eu estou preso. Diz! João tirou o rosto de perto do telefone e Primavera o desligou. O assassino abriu os braços e foi caminhando para trás, rindo sozinho, saboreando o fraco João. Madeira se sentou no sofá e apoiou a cabeça nas mãos. “Deus, e o que é que eu faço?”. E existia algo a fazer numa situação daquela? Com um serial killer indo pra cozinha beber uma xícara de café? “Chama a porra da polícia”. – Então você é mesmo o... Primavera. – Ele disse – O que você quer comigo? – Eu quero que você escreva sobre mim. Só isso. E deixa eu passar a sua frente aqui, agora é a hora que você pergunta “Porque eu, tio Primavera?”, não é? Bem, veja só por esse lado, quem é que escreve horror e suspense melhor do que ninguém nessa terra de bosta hoje em dia? Ora, meu homem é João Ma-
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deira. E quem é que vai começar a escrever um livro? Também João Madeira? Isso está ficando bom. Agora me ajude aqui, essa é a última e a melhor de todas: Quem é o cara que chuparia até meu pau se eu gritasse o bastante? João olhou pra baixo e corou. – Resposta Ê-xata! – Primavera riu alto – E você vai ganhar dinheiro pra cacete porque seu livro vai ser um bestseller. Qual o problema, no fim das contas? – Nunca vão me deixar publicar – Disse João – Vão... Sei lá, isso é contra a lei. E o Hamád não ia deixar. Muito mórbido pro público, a editora ia pro saco e tudo mais. É burrice. – Burrice ou não, é desse jeito que vai ser. Você vai ser publicado, pode ficar tranquilo. Eu mesmo garanto isso pra você. E sobre as autoridades, pff. Você vem fazendo o mesmo trabalho por anos, deduzindo paradeiro de assassinos que não existem, criando gente pior do que eu. A diferença é que agora você tem um rosto pra história, que tal essa? Vai colocar meu nome no negócio, igual o Alan Poe com o orangotango e com a menina fujona. Você tem teorias. E eu sou pop agora, não sou? Sou cult, sou moda. Deus, isso vai ser fantástico, fantástico! Por onde você quer começar? João lutou contra o mundo que insistia em rodar e sair do seu foco. Ia vomitar. Nunca entendera o padrão americano de gente vomitando quando coisas grandes aconteciam, não
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Conto 1. Primavera
via a lógica entre uma emoção forte e o vômito. Imaginava se a primeira reação de um americano à morte de sua mãe era um belo esguicho de vômito, se sujava o carpete quando descobria que era corno e coisas assim, era simplesmente cartunesco demais pra ele conseguir entender e compreender, mas agora estava começando a entender. Sentiu o café rodar e rodar, e sua visão começou a escurecer. A única coisa que podia ver era Primavera com os braços abertos, rindo e rindo sem parar, enquanto o mundo inteiro mergulhava numa enorme mancha vermelha, num rio de sangue como o do Overlook. E aí não havia nada além do escuro. Nada além dele e da risada histérica e dos braços abertos. Nada. ... Dias e fotografias. João escrevia o dia inteiro sem parar nem para um cafezinho. Primavera apareceu num dia com uma caixa cheia de fotos, e a partir daquele dia João tinha acreditado piamente no que ele estava dizendo. No começo, naquele primeiro dia, depois que ele foi embora, até brincou com a ideia de que ele era um daqueles copycats que seguiam a trilha do assassino real, mas não. As fotos mostravam o seu rosto e eram muitas para serem photoshop. E se fossem, eram verdadeiras obras de arte. Primavera com Edgar da Silva, ou só Edgar, como diziam os jornais, posando pra foto. Edgar com
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cinco facas enfiadas no rosto e saindo pela parte de trás do crânio e Primavera sorrindo como se aquela fosse a coisa mais engraçada desde Chaplin. Haviam também as tabuletas, ou os Picassos, como o assassino gostava de chamar. Eram o seu toque final numa morte, ele arrancava a pele do rosto da vítima, seus olhos, sua língua e suas orelhas, às vezes os lábios, e pregava tudo do jeito mais estranho possível, esticando a pele e colando os olhos um em cima do outro, criando sua própria vítima do fogo de Guernica numa tábua quadrada. Quando terminava, soltava a placa, cuidadosamente envernizada e bem tratada, em um ponto qualquer da cidade, e esperava pelas notícias do dia seguinte. Nunca falhava. Era famoso, não era? E lá estavam fotos detalhadas das tabuletas sendo construídas, sendo enfeitadas com suas guirlandas sangrentas. Primavera sempre sorria. Era a felicidade pura vestida numa roupa de plástico cinza e com óculos transparentes. Parecia adorar cada minuto do seu trabalho. “Selfies, pelo amor de Deus”, João pensou um dia, “Ele tira selfies com cadáveres”. As outras fotos não eram menos perturbadoras. Primavera segurando uma espinha, Primavera queimando um homem vivo, Primavera fazendo alguém comer a própria orelha e daí pra baixo. O homem era criativo, pelo menos, João podia ver. E era sério. Um copycat copiava, mas não a ponto de ser até melhor que o verdadeiro. E as fotos mostravam mais cor-
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Conto 1. Primavera
pos do que alguém dedicado a copiar poderia produzir. Não, aquele era o homem. Ele sempre chegava sem avisar e só ia embora quando queria, já passara madrugadas inteiras num serão de escrita com João que produziram pelo menos oito mil palavras ao todo, às vezes mais. Quando estavam juntos, as páginas voavam para os ares, e aos poucos João foi começando a perceber que não conseguia trabalhar no romance sem ele. Já estava se habituando às histórias sanguinárias de gente berrando, chorando, cagando e mijando, já não ligava em ver fotos, aceitava tudo como parte do seu trabalho. Uma parte particularmente desagradável, mas que ainda assim era trabalho, e trabalho dos bons. Um dia, enquanto trabalhava, absorto a tudo e com a voz de Primavera, macia e alegre como a própria estação, ditando uma parte particularmente bizarra de quando ele perseguira um jovem nu pelas galerias de esgoto antes de esquartejá-lo, o telefone começou a tocar. João sabia quem era antes de atender. – João! Esse é o meu companheiro. Como vão as coisas? – Vão bem, Hamád, tudo certo por aqui, ‘cê sabe, né. Tudo bem. – Preciso saber se você está precisando de alguma coisa, João. Alguma pesquisa, algum problema particular que você precisa resolver... Sei lá, eu tenho uma secretária aqui pra você que provavelmente vai terminar o livro dela antes de você pe-
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dir alguma ajuda. – Não estou precisando por agora não, Hamád. Estou bem, de verdade. Muito bem. – Quantas palavras? João olhou pra baixo e para os lados, como se pensasse no que dizer, ou melhor, realmente pensando no que dizer pra escapar daquela. Seus olhos encontraram o de Primavera, que não sorria mais. Era a primeira vez que João o via fazendo algo diferente com o rosto, ele parecia estar sorrindo e contente o tempo todo, e poderoso a sua maneira. Agora estava sério, seu rosto era uma máscara de mármore, sua fortaleza fria e mortal. O espetáculo era terrível. Os dois homens se encaravam, e tudo o que João conseguia pensar era nos motivos que levam uma pessoa a colocar um serial killer dentro da sua casa. Não conseguia achar nenhum. – Quantas palavras, hein? Está caminhando depressa? – Hamád continuou – Alô? Alôu! Tá aí ainda, João? – Sim, ainda to aqui. É só que... Primavera ainda o encarava com os olhos frios e tenebrosos, mas agora estava se mexendo. Balançava a cabeça de um lado para o outro, bem devagar, e João se lembrou de uma cena do Karate Kid, a direita, a esquerda, a direita, a esquerda. – Dá uma olhada aí, eu espero na linha. – Não, Hamád – Disse João – Eu não vou te falar.
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Conto 1. Primavera
Silêncio na linha. Primavera abriu o sorriso de novo, mas dessa vez ele estava diferente. Era mais como o de um pai orgulhoso do seu filho do que como o de um louco criminoso. João se pegou gostando da sensação de aprovação, e até quase chegou a sorrir. Não. Não podia. Se sorrisse o maldito não iria embora nunca, vomitaria sequel atrás de sequel e levaria os dois pra cadeia, eventualmente. Era caçado como uma raposa, afinal. – O que você disse? – Perguntou Hamád João desligou o telefone. Sentou-se no sofá, jogou a cabeça pra trás e respirou fundo. “Aí está uma coisa nova”. – E como você está indo, hum? – Perguntou Primavera. “Ótimo. Melhor impossível. Simplesmente fantástico, tentar agradar um serial killer sem motivos é a razão da minha existência. Brilhante.” – Eu não... Ah, Deus. Deus Deus Deus. Ele cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar, enquanto Primavera voltava à programação padrão. Ria como se aquela fosse a diversão do século, e pelo que João sabia dele, podia não ser, mas estava no top três. Mas depois das fotos, rir da desgraça alheia parecia até uma virtude. ... “Incrível a capacidade do corpo humano de resistir”, disse
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o homem, e depois, “não pensei que te veria respirando ainda. Já está bem batida, né?”. A mulher só olhava e deixava umas lágrimas escorrerem, deixando um trilho claro, um caminho de limpeza pelo rosto abatido, sujo e coberto de sangue. Por mais que respirasse, já estava morta. Tinha o cheiro da morte, aquela essência azeda e adocicada, tinha a cara da morte, desanimada e perdida, e tinha, é claro, o que o homem mais gostava. Os olhos da morte. Os olhos que até então corriam de lá pra cá imaginando o que sua dona tinha feito de errado, se tinha servido café frio, se tinha deixado um pouco respingar, qualquer coisa, já não ligavam mais. Sabiam que dali não sairiam vivos, e isso era tudo o que precisavam saber. A garçonete, sentada na cadeira, nem suplicava mais. Não tinha motivos. Se sentia sozinha, com vontade de conversar, mas não tinha ninguém ali. Ninguém além Dele. Do Homem. Ela conhecia o seu rosto. “I-i-isso dói muito, dói pra cacete isso. De-de-de verdade.”. O homem ligou um gravador que carregava na mão, o mesmo aparelho que sempre ficava ligado enquanto ele trabalhava. “Quer falar a respeito? Conta da orelha. Tava gostosa? Azeite demais, sal demais, sei lá, errei no tempero ou tava bacana?”. “Era a-a-a minha orelha, eu achava que era menorzinha, sabe, bem menorzinha do que as mulheres com orelhão de abano na rua, mas ela era grande demais, quase não passou, quase que eu num consigo. Era bem grande”. O trrc do
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Conto 1. Primavera
gravador preenchia os silêncios dos dois, mas não podia captar o significado dos olhares trocados. O homem sorria, entusiasmado, agachado perto da mulher, que escondia o rosto mas não hesitava em falar. Era o choque da violência quebrando o instinto. “E o pé, como anda?”. “Esse já não anda mais. N-não, já-já-já virou... Hrrr... já virou geléia”. “E tá doendo muito, agora?”. “Não, agora parou um pouco, só lateja e-e-e eu tô com frio e tô muito cansada, eu quero ir embora pra minha casa. Não precisa me levar que eu pego ônibus. Eu me viro, já sou quase uma velha”. “Olha aqui pra mim. Olha aqui. Eu vou te levar pra casa, tá? Eu vou te colocar no carro e vou te deixar no colo da sua mãe. Assim que eu terminar aqui, você vai ter uma plaquinha toda sua, envernizada e enfeitada, vai ser quase uma rainha. Você quer isso, não quer? Ver a mãe? Ela vai ficar orgulhosa da menina dela, tão crescida, tão enfeitada”. A mulher gemeu e chorou mais um pouco, sua mente sã lutando com a loucura. “Vai ser b-b-bom ver minha mamãe. Mamãe! Ai mamãe!”. O homem tirou a faca curva e curta do bolso do casaco e chegou perto do rosto destroçado, sem orelhas, sem nariz e com um monte de cortes, sua obra quase completa. Que pena que era hora de ir terminando. “Agora você vai ficar bem quietinha enquanto eu tiro seus olhos. Você fica bem quieta que eu vou arrancar. Se mexer um pouquinho só vai acabar morrendo. Você não quer morrer, quer?” Ela
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chorou enquanto o homem enfiou a faca, e não conseguiu ficar parada. A lâmina correu sua órbita e se afundou no crânio, e aí ela se mexeu muito mais, gritando com a garganta fraca, um uuuhr, uuuhr . O homem saiu de perto e sorriu. Por mais que detestasse ver a coisa chegando ao fim e o desperdício de um bom olho, ainda assim gostava quando eles se matavam sem ajuda. Ela se sacudiu na cadeira o bastante para fazê-la tombar, e quando seu rosto atingiu o chão, a faca sumiu dentro da sua cabeça. O homem batia palmas enquanto ela se contorcia e tremelicava no chão. Dramático. Drama era parte do seu trabalho, uma que ele gostava bastante. Riu. Tinha alguma parte do seu trabalho que ele não gostava? ... O cheiro foi o que fez João ter toda a certeza do mundo. Era ele. O cheiro não mentia. Até aquela sala em particular, aquele cômodo bizarro no meio das galerias de esgoto e dos rios de bosta, ácido e detergente que passavam por ali, o santuário de Primavera estava incrustado e gravado na pedra. O concreto da galeria era cheio de marcas de enchentes antigas e estava sendo devorado pelos produtos que corriam o leito do rio tóxico, e não havia nem um morcego ou um rato ocasional para tirar a sensação de abandono e solidão do lugar. Só baratas. Mas as infelizes sobreviveriam a qualquer coisa mesmo,
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Conto 1. Primavera
comparado a um holocausto nuclear aquele esgoto era um exercício de domingo de manhã. Quando finalmente chegaram no quartel general de Primavera, João já não fazia ideia de onde estava. O barulho em cima dele denunciava que havia carros passando, mas ele nunca tinha ouvido falar sobre um lugar como aquele antes. Num ponto da galeria, eles subiam uma pequena cachoeira de merda e andavam mais alguns metros, ou uma centena deles, até encontrarem uma escada de dez degraus que terminava numa porta de ferro com alguma coisa escrita, provavelmente algum logotipo de uma empresa qualquer já apagado pelos vapores do esgoto. Do outro lado, uma sala relativamente seca, com manchas de mofo na parede aqui e ali, mas ainda assim só com algumas poças d’água. Mais a frente, outra porta dava acesso ao matadouro. A casa de Primavera. – Pensei que tinha gente especializada pra tomar conta desses esgotos, e essa sala sua parece ser de... Alguma empresa, ou sei lá, qualquer merda assim. De quem é o lugar? – Não faço ideia. E nunca me pegaram aqui. Ninguém olha o esgoto, João, e esse é o meu esconderijo do ano. Eu não fico aqui a vida inteira, cê sabe. – Então... Como vai ser o... O que é que você queria me mostrar? – Arte, vou te mostrar arte. Você vai gostar. Somos artistas,
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eu e você, e um artista reconhece boa arte a quilômetros de distância. E o cheiro o atingiu como um soco no estômago. Se lembrava de uma vez que tinha ido num matadouro pesquisar sobre um romance. A primeira coisa que o recebeu foi o cheiro, depois o sangue, e depois as carcaças. Davam um tiro com uma arma na cabeça do boi e o levantavam pela pata traseira pra ter a jugular cortada. A cena o impressionara tanto que ele chegou a desistir do romance. Não podia escrever sobre aquilo, era horror demais. E o abatedouro ainda era legítimo e humanitário. Ali, na salinha de Primavera, já tinha sido recebido pelo cheiro, e podia divisar alguns vultos negros pendurados no teto de concreto. “Por favor não ligue a luz por favor”. Primavera as acendeu, e João não conseguiu mais dar nem um passo. Era o matadouro mais uma vez, um matadouro de gente. Pelo menos duas mulheres balançavam do teto, e três homens. Todos estavam nus e sem rosto, e João podia notar que alguma coisa estava faltando. Alguns detalhes. Se forçou a parar de olhar. – Ainda tá duvidando? – Primavera perguntou. João só conseguiu montar hums e ahs desarticulados que não chegavam perto de serem frases enquanto balançava a cabeça pra lá e pra cá, em sinal de negativa, a esquerda, a direita. Sua cabeça girava e ele estava com medo de vomitar igual os
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Conto 1. Primavera
gringos. – Acho que não, né? Tenho certeza que não. Vem aqui pra você ver as placas. Vem cá. João foi, com a certeza de que se tivesse um rabo, ele estaria entre as suas pernas. Caminharam um pouco, Primavera fazendo questão de passar entre os corpos, acariciando-os com carinho paternal, enquanto João caminhava com as costas grudadas na parede, na falta de outra coisa pra se esconder. A sala basicamente só tinha corpos, paredes e uma cadeira vermelha de sangue no centro. Depois de passar a mão nos corpos frios e suspirar mais alto que uma adolescente apaixonada, Primavera apontou pra um canto com uma porta cinzenta, quase camuflada pela penumbra do lugar e pela sua cor. Dava para uma outra sala que, ao contrário do que João pensava, era muito pior que a anterior. Não pelas molduras de madeira envernizada de madeiras diferentes, pendentes da parede de concreto por cravos largos, nem pelos pedaços de rostos pregados nela. Não eram os rostos, não era a pele esticada e os olhos arregalados, as orelhas ao lado, mostrando a interpretação da terceira dimensão do artista, nem os lábios abertos, fechados ou ao contrário e dilacerados. Não, o pior não era nada daquilo. O pior era o que estava na sala, no centro. Bem embaixo da luz incandescente estava uma mesa simples, uma cadeira e uma máquina de escrever. João tapou a boca com a
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mão e arregalou os olhos. – Você não pode estar falando sério – Disse. Primavera riu. – Me desculpa, senhor geek pau no cu, mas a gente não tem tomada aqui pro seu notebook. – Eu não vou escrever aqui, não mesmo. – João começou a andar na direção da porta – Eu tenho a minha casa e o meu computador, e você já fica lá o tempo todo. Não, não tenho... Eu não posso, não dá. – Qual o problema? Não gostou da decoração? – Não é isso. Quer dizer, é isso, claro que é isso, e... Eu... Só olha ao redor. Esse é o problema. – E eu. João abaixou a cabeça. – Eu só estou te ajudando aqui, se quer saber – Disse Primavera, tentando com todas as forças colocar um rosto sério pra mostrar que se importava, mas falhando. Sorria nas horas mais inconvenientes – Você precisa viver a experiência. Se não viver completamente, como vai escrever? Tem que beber o sangue, enfiar a faca, arrancar uns dedos, só assim pra falar de um matador de verdade. – Não, eu não posso. Não não não, Deus, não! João correu, passou pela porta e esbarrou nos corpos, que respingaram sangue no seu rosto, negro e gelado. Esbarrou
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Conto 1. Primavera
numa mulher com uma faca enterrada no olho, só com um pedaço do cabo de fora, e ele cortou seu braço com uma lasca abandonada. João não parou. Voou para a porta fechada, que deveria estar aberta, mas que ele tinha certeza que não estaria. Claro que não estaria. Chutou com força e ela nem se mexeu. Fechada. Chutou mais e com mais força, e pela terceira mostra de macheza pisou na calça de borracha cinza no chão e caiu no concreto duro. Primavera veio caminhando lá de trás, com uma faca na mão, e parou bem na sua frente. – Eu quero meu livro. Eu estou falando sério. E você vai escrever aqui. – Mas... Mas porque? O que tem de tão especial aqui? Já escrevi a metade no computador, pelo amor de Deus! Primavera não mudou o rosto quando fez. Nem mesmo piscou. Só segurou a faca pela ponta da lâmina, a levantou no ar e a atirou, tudo enquanto olhava nos olhos de João. A faca voou graciosa no ar, deu três cambalhotas e acertou a sua mão. Ela chegou a bater no chão de concreto e quase saiu de novo, mas ficou presa. João demorou alguns segundos pra entender que estava ferido, mas a dor o acordou. Primeiro um incômodo, depois um crescendo monstruoso que culminou num grito feio demais para um adulto. – Você vai escrever aqui, Madeira. – Disse Primavera. – Seu maluco doente!
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– Você vai escrever aqui! O assassino chutou a faca, o que abriu uma espécie de buraco vermelho na mão de João que não queria parar de sangrar. Perto daquilo, a dor da facada era um carinho de uma mãe gentil. – Você vai assistir. João se levantou, segurou a mão ferida e caiu de novo, desmaiado. Na noite fria, Hamád bebia um chá verde e escutava música clássica. Não fazia ideia de que música era, não conhecia nem o nome do compositor e muito menos a orquestra que tocava, só apreciava a obra de arte. Seus olhos estavam fechados, e ele bebericava bem devagar, deixando um ah escapar a cada gole, imaginando se a noite podia ficar melhor. Ela podia sim. Lá embaixo, um homem vestido com uma combinação fantástica de moletom negro como calças e uma blusa de, adivinhem, moletom negro, fumava na chuva. A névoa encobria seu rosto, mas seu sorriso cortava através da cerração e parecia refletir a luz doentia do poste, atacado sem misericórdia pelos insetos da estação, que pareciam achar que podiam chamar seus amigos vagalumes lá de dentro para a liberdade. O homem tinha um nome, um nome que Hamád conhecia dos jornais e da memória, e estava achando aquilo tudo o máximo.
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Conto 1. Primavera
Primeiro o escritor, depois o editor. Ele pulou a cerca e subiu pela janela aberta do segundo andar. Hamád não o ouviu, e sua família estava dormindo. Melhor assim. Um golpe na base da nuca e estava terminado, Primavera carregou o corpo desacordado até a sala, onde, minutos depois, depositou o resto da casa. Todos dormiam, e ele sorriu, ouvindo o som da chuva batendo no telhado. Adorava a chuva, era o arauto da sua estação, a chamada do seu nome nas trevas. Primavera estava vivo e adorava cada momento. A empresária comia um marmitex de uma churrascaria enquanto seu filho fazia uma algazarra na sala com seus brinquedos e seu computador. Do lado de fora, Primavera, encharcado como a Primavera deve ser, tinha a cara fechada. A casa era grande, bem grande aliás, e ele sentia nojo da mulher. Seu marido assistia a TV enquanto conversava com o garoto, e o assassino pensava que nunca havia visto duas pessoas tão idênticas na sua vida. Duas antas quadradas perfeitas, um perguntava algo e o outro respondia “O quê?”, e quando o outro ia responder ao um, era a sua vez de perguntar. Uma simples pergunta demorava cinco minutos para ser compreendida, enquanto a resposta demorava mais outros cinco pra satisfazer quem perguntava. Primavera se censurou, não deveria chamar a criança de burra, especialmente aquela, tão próxima de se tornar órfã. Ele bateu na porta, com a arma na mão, e espe-
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rou. Quando abriram, a única coisa que disse foi “Me digam pra onde querem levar a criança”. Ninguém poderia dizer que ele não tinha um coração, afinal. A última família jantava um belo frango assado na sala de jantar. Um homem já feito, grande, de uns vinte e tantos anos, seu pai e sua mãe. Riam muito enquanto comiam e bebiam, e o pai, de cabelos brancos, tocava os ombros do filho o tempo todo, enquanto a mãe tinha os olhos cheios de lágrimas. Alguma coisa importante estava acontecendo ali. Os três, negros como ébano, celebravam alguma coisa. Primavera entrou pelos fundos e ouviu a conversa. O garoto tinha passado no vestibular para jornalismo, um curso de bosta, até onde Primavera sabia, que formava escritores medíocres, mas ainda assim era uma realização pra alguém. Alguém medíocre. A mãe dizia algo sobre a honestidade do garoto e o pai o elogiava pela sua inteligência, coisa que ele nunca teve. Agora os dois choravam. Primavera entrou num ponto cego, sorrindo e com o rosto mais cordial que conseguiu colocar, ainda carregando a arma. Não gostava dela, não gostava de ter que usá-la, mas Madeira precisava de um epílogo. E a Primavera já estava bem avançada. Quando os três o viram, ninguém disse nada. Primavera sorriu e disse “Parabéns” antes de fazê-los engolir as pílulas. Acordariam num lugar muito interessante de manhã, e com gente ainda mais interessante. E a noite seriam troféus na
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Conto 1. Primavera
placa. A primavera avançava, e Primavera estava pronto para o seu fim, como todo o ano. Estava chegando a hora de dormir. Escopeta nas mãos. Três famílias amarradas na galeria, nenhum grito, nenhum tumulto, nenhum policial. O perfeito fim de estação para Primavera, e a perfeita definição de insanidade para João Madeira. Batia com cautela na sua máquina de escrever, contando as palavras e esticando o momento o máximo que podia. Não estava adiantando muito. A história estava chegando ao fim. E o pior é que sabia que estava boa. Deus, ela estava ótima. – Não faz isso, pelo amor de Deus – Hamád, seu editor, chorava e implorava – Pelo amor do nosso Senhor, não faz um negócio desses. – Espera um minuto aí – Disse Primavera – O senhor deve perceber que tem alguma coisa errada aí nessa frase. Diz o que é. Diz pra mim. – Eu... Eu não... – Diz o que está errado, árabe filho da puta! A coronhada foi leve, mas é de uma escopeta que estamos falando. O nariz de Hamád explodiu em sangue e deixou o chão de concreto cheio da substância maligna, seu vermelho vivo debochando do cinza monótono. – Não vai dizer, não é? – Primavera continuou – Eu digo pra você. Você é um muçulmano. Libanês. Eu sei que é. Da terra
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daqueles banqueiros safados de Beirute, Nuri Chakri e o caralho, não é? Ou daqueles ditadores de bosta, Líbia, Síria, sei lá. Agora você vai me responder, tá muito simples. Vem, vem cá, diz pra mim, você consegue. Ele aproximou o rosto do de Hamád o bastante para seus narizes se tocarem. João digitava devagar, uma mão no teclado negro da máquina de escrever e a outra mexendo nos cabelos com mais violência do que era esperado. Ele tinha um cigarro nas mãos, e cobria sua cabeça de cinza como as mulheres do Egito faziam quando perdiam alguém ou alguma coisa. Ou, segundo Waltari, quando batiam o dedinho numa quina ou alguém sujava o seu pátio. Elas adoravam cinzas. João escrevia e chorava, sabendo que não podia parar e que estava perto demais do fim. – Eu acredito no que você quiser, não faça isso. – Eu quero que você seja real. Não mais um rosto num dos livros que você ignora. Quero que você seja uma pessoa de verdade, que anda, ama, trepa e tem suas particularidades, porra. Pode fazer isso? Porque não reza pra Alá? Só existe um Deus, não é? E Maomé o seu profeta? – Allahu Akbar. – Isso! – Allahu Akbar. Allahu Akbar. Allahu Akbar. João estava suando. Perto demais do fim, perto demais
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Conto 1. Primavera
do fim, e não tinha cavalaria nenhuma pra chegar. Não tinha nenhum policial com a arma na mão disparando pra deter Primavera. Ele sabia o que ia acontecer. Terminaria seu livro, Primavera escaparia de novo e voltaria no próximo ano. Como deveria acontecer. Pensou que talvez fosse melhor terminar logo, afinal. Se terminasse, ninguém sofreria mais do que o necessário. Morreriam rápido. – E você? Esposa? Tá sem o quê? Uma mulher levou a mão ensanguentada pra frente. – Sem os dedos, sem meus dedos. Você tá com o meu anel? Primavera riu. Adorava quando entravam em choque. – Seu anel? – Disse Primavera – Foda-se seu anel. Todo mundo me julgando, todo mundo querendo o que eu faço na hora certa, ninguém me dá a porra de um minuto de sossego. A mulher sem os dedos começou a chorar. Ou, julgando pelos seus olhos inchados, começou de novo. – É sim – Ele disse, chegando perto da mulher de Hamád – Você merece. Ninguém fode comigo na Primavera, entendeu? Ele parou e olhou para os pés. – Que merda – Disse – Espera. Espera um pouco aí. As palavras estavam chegando ao final. Espera um pouco aí. – Eu não posso conhecer você. Eu não posso saber que você é Hamád, eu não te conheço.
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– Não faz isso comigo. Não faz. Não faz isso comigo, disse ele, não faz. – Você... Eu não tenho passado e eu não tenho futuro, eu sou Primavera... E eu não tenho nome, eu não conheço ninguém! Que porra é essa? – João... João, ela disse, e Primavera atirou. Estavam todos mortos. João Madeira estava sentado, olhando para a página manchada de sangue. Estava terminado. Suas mãos também estavam cobertas de sangue, ele todo estava vermelho e fedia, e seus olhos estavam injetados. A primavera estava acabando, e com ela mais um daqueles volumes, mais um livro. Abriu a gaveta. Cinco volumes em couro estavam lá, couro humano, e todos os cinco tinham o mesmo título. Amanhã não é mais Primavera. Abriu um deles no final e leu. Estava igual ao seu manuscrito. Ele riu, entendendo tudo, e jogou o volume pesado do seu colo no chão. Era a escopeta. Riu de novo, mais alto, enquanto lia aquela frase no livro e no manuscrito. Eu quero que você seja real! Ele era mesmo real. Mas só durante a primavera. Amanhã, ele sabia, voltaria a ser um cara qualquer, uma pessoa comum, um escritor com uma editora e de relativo sucesso. Amanhã era outro dia, e não era mais Primavera. Tinha que colocar as últimas palavras no manuscrito. Leu no encadernado e copiou.
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Conto 1. Primavera
Amanhã não é mais primavera, sou eu.
Conto
2 Lago Petter
“The criminal is the creative artist; the detective only the critic.” G.K. Chesterton
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Conto 2. Lago
– A mão dele tremia como se não fosse sua enquanto tentava pegar a carteira para pagar a conta do hotel. Sairia pela porta principal e iria embora. Poderia correr até a porta - deveria correr. Mas sabia que mesmo cruzando a porta do hotel, entrando no carro e se afastando da cidade, aquilo não acabaria. Mesmo quando, depois de horas dirigindo, chegasse à primeira cidade vizinha, não pararia de pensar nas mais variadas possibilidades para os mais simples assuntos. Lago havia lhe mostrado a incerteza de todas as coisas. Caminharia com passos contidos pelo hall e sairia pela porta. Para Lucas, a história está sempre se repetindo. Sempre está se hospedando no hotel e saindo a procura de Daniel Starlin. Sempre encontra o corpo, com o rosto que antes estampava um grande quadro na entrada da Starlin Co., agora irreconhecível em uma massa vermelha, como se modelada por uma criança. Os pedaços pequenos de cérebro ensopados lembram sagu. A única identidade que resta é o broche do emblema da sua firma no peito do terno com a escrita de CEO. O corpo dentro de um depósito de lixo em um beco no centro de Lago. Alguns meses antes, Starlin havia confidenciado a amigos que algo ruim estava para acontecer. Via carros suspeitos, barulhos estranhos quando o silencio permitia, sombras que pareciam não ter um objeto que servisse de origem. Como o pró-
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prio Starlin, que parecia ter surgido do nada dez anos atrás para montar o seu mini-império. Ele tinha seguranças, mas estes não podiam proteger a sua cabeça. De manhã, já havia sumido. Dias depois ligou de Lago para Luis Sireli, um conhecido que não via há quase uma década. Luis disse depois não se lembrar da conversa, a não ser vagamente, como em um sonho cujos acontecimentos se esquece aos poucos, sem esquecer a inquietante sensação de se ter sabido. Disse que nem mesmo teria certeza se a ligação teria realmente acontecido se não fosse pelo toque do telefone, diferente de todas as outras vezes, ainda que fosse o mesmo telefone de sempre. Não atenderia se tocasse daquela forma de novo, confidenciou a Lucas. O som ainda forte na sua mente, como um despertador...
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Conto 2. Lago
Lago ficava em uma área desenvolvida a partir de antigas colônias alemãs. Encontrava-se dentro de um vale, no interior do estado. Entre Lago e Anill, a cidade mais próxima, existia uma serra que precisava ser circundada. Em Anill, pouco se falava de Lago - ninguém parecia se importar. Lucas, entre vários investigadores contratados, o único na pista certa, dirigiu pela estrada estreita que circundava a serra, perdendo seu sentido de direção. A chuva e o crepúsculo vermelho - uma imagem adequada ao momento de transição. No bar cuja parede ajudava a formar o beco onde o corpo fora achado, interrogou um homem de meia idade. Esta é a única parte relevante da conversa (um pequeno trecho entre muita conversa casual que parecia ter a mesma importância para o homem): – Você parece não se importar. - Disse Lucas. – Ah, não é o primeiro caso. - Disse o homem, contando o dinheiro do caixa. - Com o tempo se acostuma até com esse tipo de coisa. Mas não vi nada sobre esse caso em específico. Quer saber o que já vi? Já vi muita coisa. Posso contar. Na verdade, gostaria muito de contar. O que entra tem que sair. – Não, obrigado – Prudente. Mas se manter no seu caso não vai bastar. Aqui, tudo leva pra mesma raiz. Veja o caso do Nico, por exemplo. – Quem é?
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– Primeiro vejamos quem foi. Dois anos atrás, era um espeto. Semana passada era um jovem que já pesava mais de cem quilos. Digo pesava, mas não emagreceu nem engordou. – E o departamento de Anill? – Já aprenderam há muito tempo que os problemas daqui não levam a solução nenhuma. Pensam que o poço não tem fundo, mas sabem que, se tivesse, estaria cheio de esqueletos. De vez em quando aparece alguém novo para repetir todos os velhos erros. Focava agora os olhos em Lucas. – Terno e gravata, rosto sólido, talvez inteligente. Você é certo demais, muito tentador. Jota está aí para distorcer as coisas, e é difícil ver algo mais reto do que você. - Disse, e já começou a anotar o pedido de um cliente que entrara, ao lado de Lucas. - Estamos sem baguete. - Disse ao cliente. – Jota? – A letra mais rara do alfabeto. - Disse, indo buscar mais café no fundo do restaurante. – Lucas encontrou o tal Michel, sobre o qual haviam lhe falado, com os cotovelos apoiados na grade que delineava o seu rancho. Parecia estar lhe esperando. – Starlin? Não. Esse não era o nome dele. – E qual era? – Não tinha. Era um vagabundo que vivia rondando Lago. Eu
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Conto 2. Lago
nunca dava comida pra ele quando pedia, e sempre pedia. – Falo de Daniel Sterlin, dono da Sterlin Co., o empresário... – Esse mesmo. Anos depois cortou o fornecimento de alimentação pras minhas galinhas. Veio aqui pra ver os bichos quando estavam só pele e osso. Até eu consigo ver a graça nisso. Jota um dia decidiu fazer algo com ele. É bom saber que tem um senso de humor. Lucas tentou anotar os pontos relevantes da conversa em um bloco, mas via que tudo o que escrevia saia meio embaralhado. Pensou nos calmantes que tomava. Checaria a biblioteca da cidade mais tarde. No caminho de volta ao hotel, se deu conta de que não havia perguntado nada a fundo sobre Jota. Uma explicação para esse fato curioso seria a de que este esquecimento servia como uma forma de proteção articulada pelo seu inconsciente, num momento em que a sua racionalidade lhe levava cada vez mais a fundo. Era uma posição delicada ser o homem que faz as perguntas; uma sempre leva a outra, camada embaixo de camada. Mas Lucas nunca havia deixado de perguntar, até agora. A terceira pessoa que interrogou naquele dia (que acabava) foi uma mulher chamada Sofia. Os poucos dentes que tinha faziam Lucas desejar que ela não tivesse nenhum. Por isso, todas as respostas para as perguntas de Lucas eram visualmente desagradáveis. Ela perguntou a ele se conhecia a história do
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sono de Vishnu, e falou em microcosmos. Depois se refutou, dizendo que nada dito ali podia ser levado de forma exata. Era noite quando Lucas voltava da casa de Sofia. Decidiu retornar à cena do crime. Era claro o clichê do assassino que retorna ao local do crime, mas esta obviedade talvez servisse para unir Lucas a um culpado que quisesse ser achado. Fosse por um lapso de consciência autodestrutiva (o Demônio da Perversidade de Poe), por querer se livrar do seu perseguidor ou por qualquer outra coisa, lá estava ele. Os flashes dos tiros trocados eram a única luz vista em meio à chuva sutil, substituindo os raios. Moviam-se como figuras estáticas, painéis de histórias em quadrinhos. O barulho das armas parecia ser o único no mundo. Era difícil ver o rosto do assassino. Lucas o acertou, ou assim deduziu pelo fim de qualquer som alheio. Se aproximou a passos medidos, com a pistola ainda apontada para a infinita possibilidade da escuridão. Acendeu a lanterna. O único corpo no beco ainda era o de Starlin, agora com um buraco no peito e uma arma na mão. Lucas entendeu mais essa ironia. Ele agora era o assassino de Starlin, o homem que tanto procurava - um sinal de que andava em círculos. Conseguia imaginar uma risada parecida com a voz de uma ave. No caminho de volta ao hotel começou a suar muito. Tirar o terno e a gravata não havia sido suficiente. Na sua visão, o mundo se dissolvia, cada objeto multiplicado, um so-
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Conto 2. Lago
brepondo o outro. Dois corpos não deveriam ocupar o mesmo espaço, ainda conseguiu pensar. Quando chegou ao corredor que levava ao seu quarto só conseguiu seguir se apoiando no papel de parede encardido do local. Quase na porta do quarto, precisou se arrastar. Algumas pessoas passaram por ele sem olhá-lo. O recepcionista, que lhe atendera horas atrás, olhou, mas não fez nada além disso. Lucas sonhou. Pareceu passar tanto tempo nele que, uma vez entendendo onde estava, achou plausível se perguntar se a subordinação do sonho à realidade não se inverteria. Foi acordado por um gato que miava na sua cara. Estava em uma casa de teto baixo. Uma mulher muito velha, com olhos grandes, sentada ao seu lado. A pele parecia um lençol de ceda depois de usado, todo desarrumado, com dobras infinitas. O pescoço um solo seco, árido. Ela oferecia sopa num grande prato fundo e redondo. Ele tomou a pasta que borbulhava, mas que não queimava a boca. Depois, ela ainda ofereceu doces coloridos e uma carne que Lucas não se arriscou a comer. – Achei você na calçada do hotel. Pode ficar aqui, se quiser, ou não. - Disse ela, enquanto passava uma mão para tirar o cabelo da testa de Lucas. Ele murmurou algo inaudível. – Sono? Contarei uma história. Existem muitas histórias. Já ouviu falar nas sombras vivas, que se rebelaram e passaram
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a controlar o movimento dos seus donos? O dia era sempre final de tarde para elas. Acordou, sozinho no lugar. Lucas levantou, correu pra fora da casa baixa e escura. Quando estava na metade do caminho em direção ao hotel, se deu conta de que estava descalço. – Antes de partir passou uma ultima noite no hotel. Tentou ficar acordado, mas quando cochilou sonhou com um dia comum na cidade grande, tomando café muito cedo, indo para o escritório, assinando papéis, conversando de forma desinteressada com os colegas, escrevendo relatórios; chegando em casa, assistiu o jornal e a novela até o final do dia, até dormir no sofá.
Conto
3 Clic
Helton Laurentino
“Um dos efeitos do medo é perturbar os sentidos e fazer que as coisas não pareçam o que são.” Miguel de Cervantes
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Conto 3. Clic
Preciso correr, e corro. Uma rua, uma quadra, o bairro inteiro. O revolver vazio que chacoalha no meu bolso faz um barulho insuportável, minhas roupas sujas de suor e sangue tem o pior cheiro do mundo, minha cabeça pesa uma tonelada. Desta vez caiu a casa antes de cair a ficha. O destino brinca comigo e me coloca de volta em frente à loja de conveniência da velha gorda. A sede me leva até a geladeira, a necessidade me leva ao álcool. Pego uma garrafa, arranco a tampa e bebo devagar enquanto a velha pega o telefone e disca alguma coisa. Apoio as costas na porta da geladeira e deslizo até chão, descanso. Parece que o álcool torna tudo mais fácil de suportar. Começo a lembrar de como tudo começou há cerca de dois meses atrás. Assisto a mim mesmo como a um filme. Eu sentado num cubículo tão apertado que eu mal podia me espreguiçar, atendendo uma das 50 ligações que compunham minha cota diária. Ligações de pessoas indignadas, pessoas insatisfeitas, pes-
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soas nervosas. Eu era um dos encarregados de alimentar todos aqueles sentimentos com frases carregadas de gerundismo. Não era preciso nenhuma habilidade pra trabalhar com aquilo, o computador locado no cubículo nos mostrava como responder a cada pergunta e evadir toda resposta. Éramos 15 atendentes naquele setor, eu não conhecia metade deles. A maioria não ficava nesse tipo de serviço por muito tempo, tinha gente entrando e saindo da firma todo mês. Na hora do café era comum encontrar um rosto novo rodeado de caras cansadas. Homens, mulheres, comunicativos ou acanhados, havia gente de todo tipo chegando com as mais variadas expectativas. O desfecho, porém, era sempre o mesmo, os sorrisos eram puxados para baixo com o passar das semanas, o entusiasmo não era páreo para aquela morosidade. Eu tinha meu próprio remédio contra aquilo, levantava todo fim de tarde e ia acender um cigarro no terraço. Não era da nicotina que eu precisava, só de uma deixa para poder perambular sem ser importunado, colocar as pernas para funcionar. Foi numa dessas pausas que eu a conheci. Madalena era a garota que trabalhava no cubículo ao lado do meu. Em pouco tempo ela havia conquistado a simpatia de todo mundo, falava com eloquência e gesticulava o tempo todo. De vez em quando eu a encontrava no terraço durante as minhas escapadas. Ela era uma pessoa vivida, falava de via-
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Conto 3. Clic
gens, gastronomia, filmes, sabia de todos os eventos culturais que aconteciam na cidade e frequentava a maioria deles. A minha participação na conversa, além dos ocasionais acenos afirmativos, se limitava a falar mal dos colegas e a perguntar como ia a família dela nos raros momentos de silêncio. Numa dessas conversas eu a convidei para tomar alguma coisa mais tarde naquele dia, me surpreendi quando ela aceitou, geralmente elas sempre tem um compromisso de última hora esquecido na agenda. Saímos depois de todo o pessoal da sessão ter ido embora, um pedido dela que eu não questionei. Ela me disse que conhecia um ótimo Pub ali perto, mas que antes precisava passar em um lugar, eu disse que por mim tudo bem. Fomos até uma loja de conveniência que ficava numa esquina que eu evitaria passar sozinho a noite, a única funcionária do lugar era uma velha gorda de cabelos grisalhos. Madalena entrou e acenou para a mulher. Entrei logo em seguida e vi que ela andava devagar entre as prateleiras, vasculhava com os olhos as poucas gôndolas da loja. Pensei em oferecer ajuda quando ela parou e apontou para algumas barras de chocolate, esfregou as mãos, abriu a bolsa e despejou tudo dentro. Senti como se tivesse perdido algo muito importante naquele momento. Meu coração desembestou a bater, senti um cubo de gelo percorrer minha espinha de cima a baixo. A ideia de alguém ter presenciado a cena me revirou o estômago, olhei
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com discrição ao redor e tudo que vi foi a velha ocupada lendo uma revista de fofocas. Senti alguém segurar meu braço direito nessa hora, instintivamente atirei um soco sem jeito nem força na direção. Percebi que era Madalena tarde demais, ela me encarava sem expressão, com a bochecha direita vermelha e um filete de sangue começando a escorrer do canto da boca. Não sabia o que dizer e não precisei dizer nada, ela sorriu. Um sorriso amplo, daqueles que só a felicidade sincera consegue rasgar no rosto das pessoas. ”Vamos?” ela perguntou. Baixei a cabeça e fui levado pela mão até o caixa. Ela pegou um pacote de balas e perguntou a velha quanto era. ”Três”. Tirou uma nota de cinco, deu a velha e dispensou o troco. Fomos até o Pub sem trocar uma palavra. Ela agarrada ao meu braço com a cabeça apoiada no meu ombro o tempo todo. Eu olhando para o nada, com um turbilhão de sentimentos inquietando a mente. A educação que meu pai me deu não aprovava o que fiz. Apontava o dedo pra minha cara e me mandava repreende-la, e se eu fosse homem o bastante, entrega-la a polícia. Dizia também que eu deveria me envergonhar de ter esbofeteado aquele belo rosto, isto não é coisa que homem faça. Mas a verdade é que a lembrança daquele sorriso insistia em pôr em dúvida tudo isso. Sentamos no balcão do Pub e ela pediu duas cervejas. O garçom pareceu perceber o hematoma que havia se formado no rosto dela e perguntou se
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Conto 3. Clic
estava tudo bem, me olhando discretamente de soslaio. ”Dei de cara com uma porta”, ela respondeu sem dar margem para novas perguntas. Trocamos um breve olhar, desta vez compartilhávamos o mesmo sorriso. A velha rotina não resistiu aos traumas causados por um crime que faria um adolescente problemático gargalhar. Meus dias se resumiam aos minutos que eu passava no terraço fumando um cigarro que eu não gostava falando sobre o que eu não entendia com a pessoa que eu desejava. Tínhamos um pacto de silêncio não declarado, nunca falávamos sobre o que aconteceu naquela loja nem sobre o que viria a acontecer depois. Ela comentava que tinha vontade de sair para algum lugar distante, eu a chamava para sair, esse era o nosso código. Não importava o destino, tinha que ter uma loja de conveniência no caminho, ela era fissurada por esses lugares. Se atentava a disposição das prateleiras, a organização das gôndolas, a fisionomia e os trejeitos do atendente. Eu não me importava com nada daquilo, só me interessava o que vinha depois. A palpitação, o estômago revirando, a espinha gelando, aquele era o combustível que vinha me mantendo vivo durante as últimas semanas. Não importava o valor do artigo, o ato era tudo. Hoje de manhã acordei decidido a fazer diferente. Peguei o revolver calibre 38, herança do meu avô, e meti no bolso da
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jaqueta. Esperei ficar a sós com ela no terraço para mostrar a peça. Eu esperava uma reação diferente da que eu presenciei, por um momento achei que ela fosse correr, mas ela apenas permaneceu parada em silêncio, encarava a arma com um olhar apreensivo. Passaram-se alguns minutos assim quando eu tomei a iniciativa e mandei-a vir comigo mais tarde, uma ordem que ela acatou com um olhar grave e um aceno de cabeça. Voltamos a nos encontrar e ela ainda tinha a mesma expressão apreensiva de antes, sorri e disse que ia ficar tudo bem. Caminhávamos devagar por ruas escuras até que eu avistei o alvo. Uma mercearia. Ela estacou quando nos aproximamos do lugar. Coloquei a mão por cima do bolso do casaco e senti a forma alongada do revolver, com aquilo em mãos eu podia tudo. Puxei-a pelo braço e entramos. O atendente era um sujeito magro, de bigodes longos e que usava um boné de time de futebol. Olhei ao redor e não notei mais ninguém no local, todas as persianas estavam fechadas, havíamos chegado pouco antes do horário de fechamento. Puxei Madalena até os fundos, não queria deixar o homem esperando muito para ir embora. Toquei novamente a arma e senti uma necessidade urgente de vê-la, me certificar que ela ainda estava lá e não passava de uma ilusão. Tirei-a devagar do bolso e a coloquei contra a luz, meu coração acelerou, minha espinha gelou, meu estômago revirou.
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Conto 3. Clic
Ouvi um estampido e minha visão ficou turva. Limpei os olhos com as costas das mãos e vi que era sangue. Madalena estava estirada no chão e tinha um ponto escuro bem no meio da testa, os olhos bem abertos e os cabelos empapados de sangue. Virei-me na direção do barulho e ainda tive tempo de ver a fumaça se dissipando na ponta do cano da arma que agora apontava para mim. “Clic”. Nada aconteceu. O homem apertou o gatilho mais uma, duas, três vezes, nada além daquele ruído saiu da arma. Pensei ter achado engraçada a maneira como ele arregalou os olhos quando nos encaramos. Ficamos assim por algum tempo, até ele desviar o olhar para minha direita e me lembrar de que eu também carregava uma arma. Levantei o braço devagar, procurei manter o cano alinhado, minha mão tremia muito. Eu tinha o homem que matou minha mulher na mira, mas nem um pingo de coragem por detrás do gatilho. Mirei na janela a esquerda dele, fechei os olhos e puxei o gatilho. “Clic”. Tinha me esquecido de que sem balas, sem tiros. “Clic-Clic”. Nada.A certeza de ter uma arma vazia em punhos me encheu mais de coragem do que a perspectiva de uma carregada.Desta vez mirei na cabeça do homem, a tremedeira havia parado completamente. Ele merecia dois tiros, um por mim e outro por Madalena, isso aí. “Clic-BLAM”.
Conto
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Palimpsesto E. Reuss “Tudo que sou, no imaginado silêncio hostil que me rodeia, é o epitáfio de um pecado que foi gravado sobre a areia.” David Mourão-Ferreira
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Conto 4. Palimpsesto
Palimpsesto, s.m.: Do grego antigo παλιµψστ ζ (“palímpsêstos”), designa um pergaminho ou papiro cujo texto foi eliminado para permitir a reutilização.
Comunidade de Guaratiri, 1976. –A viatura da polícia atravessou a rodovia SC-186 em alta velocidade. O veículo rugiu em direção ao portão de madeira da única fazenda de fumo de Guaratiri enquanto desviava de alguns cadáveres de animais esmagados que jaziam sobre o asfalto. Sobre um corpo robusto cravado de músculos e artérias volumosas, pendia o rosto infantil, quase angelical, do policial que guiava o volante. Ao seu lado, uma mulher fardada de cabelos negros olhava para a habitação que emergia
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em meio à planície bucólica como uma minúscula embarcação a deriva no oceano. Um cigarro descansava na linha firme que dividia seus lábios, enquanto seus olhos vagavam pela paisagem em busca do homem que procuravam. No interior da habitação, Otávio Mendes permanecia imóvel afundado no sofá de couro como um navio naufragado. A sua frente, uma mesa de centro de carvalho pesado suspendia na altura de seus olhos uma ampola, cujo rótulo exibia o nome da substância: “Metiltestosterona”. As sobrancelhas espessas e inexpressivas do homem escondiam seus olhos ávidos pelo líquido que estava prestes a entrar na sua corrente sanguínea. Otávio tinha por volta de 40 anos e cultivava uma longa barba grisalha, mas desleixada, que contrastava com seus cabelos crespos de tonalidade mais escura. Preso naquela fazenda de fumo estéril, ele dependia de esteróides para afastar os efeitos da solidão. Seu vício o consumia por dentro, um parasita imortal que provocava descargas colossais de adrenalina e acessos de fúria para logo depois sugar toda sua energia. Naquele momento o esteróide enclausurado sussurrava no seu ouvido palavras sedutoras. Otávio podia ouvir o líquido implorando por liberdade e as batidas descontroladas do seu coração irrompendo no silêncio paralisante. Antes que pudesse pegar a seringa no pequeno estojo de couro deitado sobre o sofá, ele se deu conta de que as batidas que ouvia na verdade vinham
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Conto 4. Palimpsesto
de sua porta. A estreita porta de madeira rangia e gemia como um animal, amplificando o som dos socos do policial. A mulher fardada permaneceu imóvel enquanto descansava sua mão sobre o revólver Taurus preso à lateral do seu corpo. O homem só parou de bater quando ouviu a trava do outro lado da porta deslizar lentamente. A maçaneta girou e pela abertura o policial encarou um homem de traços abatidos e de um olhar doentio muito familiar. Ele conseguia reconhecer a expressão de um viciado a quilômetros de distância. – Bom dia, senhor – O policial saudou Otávio, que o cumprimentou com um aceno ligeiro com a cabeça – Sou o cabo Linhares e essa é minha colega, cabo Assis... Com a mão estendida, o policial esperou o homem a sua frente se identificar e rapidamente levou os olhos para o retratofalado que carregava. Ele se perguntou se os olhos que o encaravam eram os mesmos do desenho, mas não conseguiu responder. Otávio hesitou, mas por fim repetiu o nome que constava no documento de identificação do homem que havia matado há algumas semanas e apertou a mão do policial. – Estamos procurando um homem, deve ter por volta de 40 anos e é suspeito de assassinato... – Sei, sei – Otávio o interrompeu, fitando atentamente o desenho de traços leves que registrava os contornos de seu próprio
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rosto. A ausência de barba e o cabelo curto do homem no desenho tornavam seu reconhecimento quase impossível – mas não vi ele por aqui não. – Tem certeza? Otávio tentou responder, mas foi interrompido pela mulher que se escondia atrás do corpo do policial. – Achamos que ele fugiu a pé por dentro da mata ou se mantém escondido em uma das fazendas da região... Você se importaria se nós entrássemos? – Sim, eu me... – Não vamos levar nem um minuto, eu te garanto – O policial não esperou por autorização. Ele fez sinal para a colega e entrou na pequena sala mal iluminada a sua frente A dupla percorria a sala de estar com cautela. Pequenas nuvens de poeira subiam do carpete marrom escuro à medida que seus pés encontravam o chão. A sala era pobremente mobiliada: um sofá, uma mesa de centro, um banco de plástico amarelado sustentando o peso de uma TV de quinze polegadas e uma penteadeira antiga. Um corredor escuro ao lado do sofá dava acesso aos outros aposentos. – Vocês acham que depois de todo esse tempo fugindo ele ainda estaria na região? – Testou Otávio, temendo a suspeita dos policiais.
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Conto 4. Palimpsesto
– Nunca duvidamos da estupidez desses caras – O policial respondeu – ainda mais vindo de alguém que mata o delegado de polícia e sua família inteira. Otávio sentiu uma pequena contração na bochecha, enquanto gotas frias de suor escorriam pela barba. Seu timbre geralmente firme sacolejou ao ouvir a referência a sua vítima. – Conheci o delegado Tales, era um cara legal – Otávio não mentia muito bem sob os efeitos da abstinência. Ele olhava com frequência para a almofada do sofá, sob a qual havia escondido a seringa e a ampola de hormônio. De repente, ele ficou cego pela avalanche de imagens que corriam em sua mente. Ele viu um rio de sangue e sentiu o gosto metálico na boca, subindo por sua garganta com traços de bile quente. Viu também o corpo do delegado sem a cabeça, que parecia ter sido destroçada por algum animal selvagem. No seu lugar, apenas a extremidade da coluna vertebral que sobreviveu à explosão de um tiro de escopeta. Na cozinha, seus olhos seguiram o caminho de sangue que se formava no vão entre os pisos e encharcava o vestido floral de um cadáver. A mulher do delegado estava deitada de bruços em frente a pia com o cérebro exposto pela fenda em sua cabeça. Otávio estava posicionado no meio da cena, segurando a escopeta sem balas pelo cano e com um cigarro na boca. Ele seguiu o som de água corrente até o banheiro no segundo andar e ob-
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servou a criança na banheira, com os olhos cheios de lágrimas. A fumaça do cigarro se misturou ao vapor e, com a escopeta, ele fez a água virar sangue. Paralisado, Otávio fitava o rosto sem vida da criança, enquanto seus pecados eram lavados pelo rio de águas vermelhas que transbordava da banheira. A policial caminhava em silêncio enquanto Otávio parecia vagar por suas memórias. Ela varria o cômodo com uma expressão desconfiada. – Olha isso – ela indicou com a cabeça algo sobre a penteadeira. Otávio acordou de seu devaneio e se virou rapidamente para o local indicado pela mulher. Ela fitou o colega com um sorriso vitorioso, que provocou arrepios em Otávio. – Vejo que você é um homem religioso – O policial falou sarcasticamente, apontando para o recipiente cheio de rosários sobre o móvel – você precisa de tantos rosários assim? – Minhas súplicas são infinitas. – Otávio respondeu, percebendo o cheiro distinto, mas suave, do cadáver coberto por cal que apodrecia logo abaixo do assoalho. O policial soltou uma risada modesta e começou a se afastar do ponto onde o odor se acumulava. Otávio não pode deixar de rir consigo mesmo ao lembrar-se das histórias que diziam que o povo daquela região era o povo mais acostumado com o cheiro da morte. “Essa rodovia foi asfaltada pelo diabo”, dizia seu avô, “é a única no
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Conto 4. Palimpsesto
mundo em que a quantidade de cadáveres sobre o asfalto é maior que a de veículos”. A estrada mais mortífera do país havia deixado seus habitantes próximos acostumados com o cheiro de carniça. – Bom, acho que terminamos. Informe a polícia se notar algo suspeito – Disse o policial, lançando um olhar desconfiado para a colega. – Farei isso – Ele prometeu com um sorriso brotando em seu rosto antes inexpressivo enquanto fechava a porta atrás dos policiais. Um sorriso que há anos era desprovido de significado. Enquanto voltava para o alento sob a almofada, Otávio não conseguiu conter as memórias de um quarto escuro onde havia deixado sua inocência. Quando descobriu o tráfico de hormônios para bovídeos na fronteira do país, Otávio se deparou com uma solução para sua raiva reprimida. Finalmente ele pode enterrar as memórias que o angustiavam sob uma camada deturpada da sua própria realidade. Ele gostava de pensar que estava escrevendo uma nova vida para si mesmo sobre as páginas que uma vez foram ocupadas por seus pecados. Sentado confortavelmente no centro do sofá, sua mão puxou a seringa sob a almofada. Ele levantou a manga da camisa de flanela que escondia as perfurações em seu braço e injetou o líquido em sua corrente sanguínea. Otávio pode sentir o fluxo pulsante de seu sangue dispersando a substância pelo
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corpo. Ele sentia como se rocha derretida fluísse por suas veias e, por onde passava, seus membros adormeciam. A sensação fez com que Otávio irrompesse em gargalhadas, que logo deram lugar a uma respiração ofegante à medida que adrenalina era liberada no seu sangue. Todo aquele prazer foi interrompido abruptamente por um som metálico nos fundos da casa. Otávio se levantou entorpecido e correu para a janela ao lado da porta da frente. Observando através de uma brecha nas cortinas de linho, Otávio se deparou com a policial apoiada sobre o capô da viatura. Nenhum sinal do homem musculoso. Ao perceber que o som metálico vinha das portas externas que levavam ao porão, uma onda de medo varreu a inércia de Otávio. Nos fundos da habitação, o policial descobriu duas portas metálicas horizontais que davam acesso ao porão da casa. Sua tentativa de destrancar a porta foi em vão. – Luiza, pede a chave para o nosso amigo aí! – Gritou o policial ajoelhado em frente à porta de metal. Ele limpou o suor da testa e depois de alguns instantes de espera voltou a gritar – Luíza? O cabo Linhares se levantou e contornou a casa. A viatura ainda estava estacionada paralela à habitação, mas nenhum sinal da colega. Ele gritou mais uma vez o seu nome e ainda assim ficou sem resposta.
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Conto 4. Palimpsesto
Antes que pudesse suspirar, ele sentiu o toque gelado de uma lâmina em sua garganta e de repente não conseguia mais respirar. O sangue fluía livremente pelo corte profundo em seu pescoço e ele pode sentir o gosto da morte. Suas pernas cederam e ele caiu de bruços na terra quente. Por baixo da viatura enxergou o corpo sem vida de sua parceira e seus olhos se encontraram. Um rosário havia sido colocado delicadamente em sua mão. O homem virou a cabeça o máximo que pode e lançou um olhar frustrado para Otávio, que permanecia em pé sobre ele. O policial bufava como se tentasse recuperar o fôlego e seus olhos brilhavam com lágrimas. Subitamente, a expressão no seu rosto ficou congelada. Era sua vida indo embora.
–Naquela manhã de março de 1996, a rodovia SC-186 rasgava o solo morto e purulento de Guaratiri como uma cicatriz cirúrgica. Às suas margens, o telhado alaranjado da pequena igreja estendia a cruz de ferro coberta de ferrugem para os céus acinzentados. A população vinha diminuindo lentamente desde os anos 70, mas apesar das dificuldades a igreja abria suas portas todos os dias, e o fez durante os últimos vinte anos.
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No interior da igreja, a sacristia funcionava como um pequeno escritório para os negócios de Antônio Vieira e do padre Tadeu, que sentavam em torno de uma mesa de frente um para o outro. A sala era iluminada por quatro janelas que recebiam a luz solar e conferia aos móveis uma aparência monocromática. Antônio tinha olhos opacos e desconfiados, mas que encaravam o sócio com delicadeza. Por baixo da camisa amarrotada, seu corpo exibia os sinais do tempo, que sugara toda a sua vitalidade. Ele era velho, grande e enrugado e tinha uma escassa camada de cabelos brancos sobre a cabeça. Apoiados sobre a mesa a sua frente, um livro de contabilidade e duas taças de vinho retiradas do sacrário distraiam os dois homens. – Calor dos infernos – Tadeu suava por debaixo da bata branca que vestia. Ele era idoso, com um rosto profundamente corroído pelo tempo e desfigurado por um derrame cerebral. Sua pele era morena, e seus olhos revelavam sua ascendência indígena. Sua voz tinha um tom sério, como se suas palavras respondessem a todas as questões essenciais da vida. – Tivemos um bom mês – Antônio ignorou o comentário do amigo – Mais de cem esse mês, só com os dízimos. – Cem mil? – Uma expressão de espanto havia surgido no rosto de Tadeu. Seu colega acenou com a cabeça positivamente – Nossa senhora!
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Conto 4. Palimpsesto
Os homens ficaram em silêncio. Tudo que podia se ouvir era o canto dos pássaros e o ruído de um caminhão atravessando a rodovia, o primeiro que passava durante toda a manhã. Antônio mantinha seus olhos cravados nas páginas do livro, enquanto Tadeu encarava o amigo com um olhar condenatório. O som abafado de uma colisão entre carne e aço seguido pelo grito agudo dos pneus deslizando na estrada invadiu o aposento. Era o som de um animal sendo atropelado. Tadeu desviou a atenção por um instante e olhou pela janela para a mancha de sangue sobre o asfalto. – Tenho medo desse crescimento, Antônio – Ele disse, tornando a olhar o amigo. – Medo de que? – Antônio franziu as sobrancelhas, mas sabia que o amigo não aprovava o rumo que seus negócios haviam tomado nos últimos anos. – Você sabe. – Não, não sei. – Estamos atraindo muita atenção... Devemos aprender com o passado. Antônio fez uma pausa e tomou um gole de vinho quente. O líquido fluiu por sua garganta como água fervente. – Passado é passado – Antônio disse, tentando por um fim à discussão. – O tráfico de hormônios é cheio de cicatrizes.
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– Nós aprendemos com elas e não repetimos os erros, simples. – Não é tão simples assim. – É simples para mim – Antônio deixou o vinho de lado e puxou um maço de cigarros do bolso. Sua impaciência era visível. – Nós podemos ter sucesso ou fracassar, mas é o nome do seu antecessor que será lembrado – Disse Tadeu, fazendo as lembranças de Otávio Mendes emergirem na mente do amigo. Vinte anos se passaram desde que o nome de Otávio apareceu nas manchetes pela última vez, e os detritos de sua história ainda eram visíveis no medo irracional cultivado pelos habitantes de Guaratiri. – Eu não busco reconhecimento, Tadeu. – Antônio disse irritado. Ele atravessou a ponta de um cigarro no fogo trêmulo da vela sobre o vão da janela. – E muito menos dinheiro... Conheço você muito bem, o seu orgulho é mais forte que a minha fé. Antônio não admitiu, mas sabia que ele estava certo. Antônio era uma pessoa de hábitos humildes, vivia em uma fazenda modesta há doze quilômetros da igreja, mas passava a maior parte dos seus dias sentado naquele cubículo. Sua disposição para os negócios não era nutrida pela sua ganância, mas sim pelo sentimento de completude que o tráfico provocava. Ele não gostava de admitir, por isso preferiu ignorar o amigo e continuou fumando seu cigarro em silêncio.
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Conto 4. Palimpsesto
O dia seguiu na monotonia característica do verão sob o calor que transformava o lugar em um inferno sobre a terra, mantendo o maior número de pessoas longe das ruas. A imagem da igreja se liquidificava por trás do calor escaldante que emanava do asfalto da rodovia. Horas se passaram e a igreja persistiu ali, abandonada no que parecia uma pintura de Van Gogh, até que bandos de pássaros retornaram para seus ninhos e superlotaram as árvores que agora balançavam freneticamente para os lados. O céu foi tomado pela escuridão. Tadeu olhava para as formações de pássaros cantando em uníssono enquanto fugiam das nuvens que tentavam cobrir as fendas pelas quais a luz solar conseguia escapar. Em terra, alguns fiéis caminhavam dispersos em direção a igreja, faltava-lhes o senso de unidade que tinham os pássaros. O fim do dia se aproximava e, com ele, a missa das sete horas. Naquela noite, a pequena igreja à margem da rodovia ainda se encontrava aberta. Uma luz ofuscante e pálida atravessava a porta dupla e desenhava na grama molhada a sua frente um triângulo invertido. O seu interior, embora amplamente iluminado com lâmpadas fluorescentes presas ao teto sem forro por fios elétricos, era um cubículo frio e úmido. Duas fileiras de bancos de madeira dispostos em cada lado do salão formavam no centro um pequeno corredor até o altar. Sobre o altar, o padre Tadeu se preparava para fazer a homilia
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para um punhado de almas solitárias, orando sentadas por misericórdia a um Deus que havia se esquecido delas há muito tempo. Sentada à esquerda do salão, uma senhora de vestido rosa e a cabeça coberta por um lenço de linho curvava-se castigada sobre seu próprio corpo. Era possível ouvir o choro acanhado da mulher acompanhado pela percussão suave da chuva nas telhas de barro da igreja. À direita do salão, um homem dormia recostado no banco de madeira, uma garrafa de cachaça repousava ao seu lado. Um silêncio desconfortável imperava no salão. O padre lia para si mesmo uma passagem da bíblia quando um homem entrou pela porta da igreja. Seu bigode amarelado formava uma ferradura invertida que terminava no seu queixo, e sua boca inexpressiva abocanhava um cigarro de segunda. Ele vestia um chapéu de palha e uma camisa jeans com camadas amareladas de óleo. O homem devia ter em torno de 60 anos, mas sua aparência era consumida pelo tempo e denunciava uma vida miserável. O som de suas botas pesadas com saltos de madeira ecoava pelo salão vazio. Ele olhou com repulsa o homem deitado no banco e tentou tolerar o cheiro de álcool que emanava dele quando se sentou no banco a sua frente. Tadeu começou a pregar. Antônio ouvia suas palavras do interior da sacristia com os pés sobre a mesa e uma taça de vinho na mão. O padre lia um capítulo do livro dos Reis so-
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Conto 4. Palimpsesto
bre uma prostituta que matou o próprio filho asfixiado ao se deitar sobre ele. Antônio ouvia abstraído e pensava em sua própria mãe. Lembrou de uma época em que foi consumido pela solidão. Não percebeu quando Tadeu anunciou o fim da missa e permaneceu ali, vagando na sua própria fantasia. Habituado a viver pela metade, a sua outra metade estava acostumada a se perder em um mundo que ele próprio criou. A velha foi a primeira a sair da igreja, caminhou ainda recurvada para a saída e desapareceu na escuridão. Tadeu precisou descer do altar e sacudir o bêbado pelo ombro para acordálo. O cheiro da bebida era nauseante e fez o padre recuar alguns metros. O bêbado acordou e saiu da igreja, cambaleando sob a chuva que agora caia com mais intensidade. O homem no banco da frente encarava Tadeu, que agora estava ao seu lado. – Tem um cigarro, padre? – Disse o homem repulsivo sentado sobre uma camada de cinzas de cigarro – O meu está quase no fim. – Não... não tenho – Mentiu o padre, que escondia embaixo da bata branca um amontoado de cigarros de palha atados com um barbante. O homem lhe deu um sorriso tímido com os cantos da boca. Sobre eles, os pendentes luminosos oscilavam para os lados no ritmo da brisa que invadia a igreja. As sombras se re-
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torciam e conferiam vida a imagem de Jesus crucificado sobre o altar. O clarão repentino de uma trovoada fez as lâmpadas brilharem como estrelas em seus últimos momentos. De repente, o salão mergulhou na escuridão e Tadeu pode ouvir uma pequena explosão seguida pelo som de estilhaços de vidro caindo no chão. O brilho penetrante havia ofuscado sua visão e ele não conseguia mais enxergar o homem a sua frente. Não percebeu sequer a faca de aço carbono em sua mão que, na queda, rasgou os ossos da mão do padre e a prendeu ao encosto de madeira no qual ele estava apoiado. Tadeu gritou de dor, uma dor tão intensa que fez suas pernas cederem ao peso de seu corpo. Na sacristia, Antônio Vieira reconheceu os gritos do amigo. Ele correu em direção ao salão e se deparou com Tadeu ajoelhado de costas sobre uma poça de sangue. – Que porra é essa? – Antônio gritou, tomado pelo terror. Antes que ele pudesse se aproximar, o homem de chapéu de palha tirou um rosário do bolso da camisa e o colocou em volta da faca ensangüentada. Tadeu estremeceu e fitou o rosário, enquanto um turbilhão de memórias desagradáveis dançavam na sua mente. – Você deve ser o sócio do padre, certo? – O homem cravou seu olhar doentio em Antônio – Meus amigos hoje me chamam de Chifre, mas outrora me chamavam de Otávio Men-
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Conto 4. Palimpsesto
des. –Vieira e Tadeu se entreolharam. O desespero nos olhos do padre era visível. Antônio ficou em silêncio por um momento, enquanto sua mente processava as palavras que acabara de ouvir. – O que você quer? – Ele disse. – Nada mais do que me pertence... Antônio franziu a testa, fazendo seus olhos afundarem sob as sobrancelhas. – Quero meus negócios de volta. – Chifre disse com um sorriso determinado. Antonio continuou com a expressão carregada em seu rosto, demonstrando a mesma repugnância que sentia pelos bêbados e viciados que dormiam na igreja. – Vocês foram espertos – Chifre continuou, ignorando o homem que definhava ao seu lado – Simplesmente assumiram meus negócios quando eu tive que fugir. – O que posso dizer? É o livre mercado. Chifre soltou uma gargalhada selvagem. O sorriso em seu rosto evaporou tão rápido quanto havia surgido, dando lugar a uma expressão muito mais ameaçadora. – Uma pena que estou velho demais para competir com vocês – Ele disse – Prefiro negociar usando suas vidas como moeda de troca.
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Antônio engoliu em seco. A ameaça veio sorrateira, mas o atingiu como um soco no estômago. – Eu sou um homem sensato, vocês podem continuar seus negócios em outro lugar – Chifre continuou. Antônio olhava pensativo para a lâmina cravada na mão trêmula do amigo – Eu só preciso do meu espaço de volta... – Podemos te dar isso. – E de todo o seu estoque. – Ah... – Isso mesmo, “ah”! Antônio percebia o caminho que estavam trilhando e o provável destino. A alternativa não era digna de se passar nos aposentos da casa de Deus. Chifre ainda agarrava o cigarro queimado com sua boca enrugada, sedento por uma tragada a mais. Embora disfarçasse seu nervosismo, Antônio podia enxergá-lo, escondido por trás da máscara de assassino impiedoso. – Vou providenciar – Disse Antônio. – Não, não vai. Ele vai – Chifre removeu a faca presa ao banco. O padre soltou um grito agonizante e pressionou a ferida o mais forte que pode – Ele vai cooperar. Não vai, padre? Tadeu se pôs de pé lentamente e fitou Antônio, que acenou positivamente. Ele cambaleou até o altar deixando um rastro de sangue no caminho. Passando pela sacristia, uma
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Conto 4. Palimpsesto
porta levava para um estoque mal iluminado, onde algumas caixas de papelão empoeiradas se empilhavam até o teto. Tadeu empurrou a porta e uma nuvem de poeira se alastrou pelo chão do escritório, fazendo-o tossir. Antônio e o homem de chapéu esperavam no salão principal. – Vou te dizer. Vocês têm um bom negócio rolando aqui – Chifre varria as paredes da igreja com seus olhos gananciosos. Antônio ficou em silêncio. As dobradiças antigas rangiam enquanto a porta da igreja lutava contra o vento que invadia o salão. – Quando comecei a traficar hormônios era tudo muito mais fácil – Chifre continuou. – E agora você quer voltar aos negócios... – Antônio levou a discussão adiante, tragando o seu cigarro. Chifre concordou com a cabeça. – É... Da última vez não deu muito certo – Ele disse. – Esse é o preço que se paga por trabalhar com fazendeiros de merda. Chifre concordou, balançando ligeiramente a cabeça. Depois de uma última tragada, ele jogou no chão o filtro do cigarro queimado. – Você não teria um cigarro sobrando, teria? Antônio fitou o volume no bolso de sua calça.
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– Pode ficar com todos – Ele disse, lançando o maço para Chifre. Tadeu surgiu no altar da igreja carregando com dificuldade uma caixa que ocultava metade do seu corpo. Antônio olhava com compaixão para o amigo, que derrubou a caixa no chão para revelar o seu conteúdo. Tadeu retirou de seu interior uma vela amarela e a quebrou em um dos cantos da mesa sobre o altar forçando as duas extremidades do objeto. Do seu interior, o padre tirou duas ampolas com um líquido transparente. Chifre bateu palmas, enquanto fumava um dos cigarros que acabara de receber. – Onde coloco? – Disse Tadeu, parecendo derrotado. – No Ford ali fora – Chifre apontou para a porta da igreja, onde era possível ver sob a chuva torrencial a caçamba descoberta de uma caminhonete azul. – Ainda bem que chegamos num acordo – Ele disse, satisfeito. – É – concordou o segundo homem. Ambos esperavam Tadeu carregar o veículo. – O que me leva a uma segunda proposta – Chifre disse, sarcasticamente – uma pequena indenização seria justa nesse momento. – Indenização? – Antônio o encarou com desprezo. – Sim...
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Conto 4. Palimpsesto
Chifre quis continuar, mas uma leve tontura tirou sua concentração e as palavras sumiram da sua mente. Por um breve momento ele perdeu o foco. – Sim, uma indenização – Chifre repetiu, com um aspecto mais abatido – trinta mil são o suficiente para eu recomeçar os negócios. A quantia deixou Antônio perplexo. Ele soltou uma risada nervosa. – E se eu não aceitar? – Nesse caso eu saio daqui apenas com o hormônio. Um dia desses, você e o seu amigo chegarão aqui e encontrarão apenas cinzas – Chifre acendeu outro cigarro – Cinzas dessa merda de igreja. Olhe nos meus olhos e diga se estou mentindo. Ele não estava mentindo. Mesmo através da espessa nuvem de fumaça que emanava do cigarro, Antônio podia ver a maldade em seus olhos tão bem quanto ele via que aquela negociação só poderia acabar com um lado satisfeito. O rosto de Tadeu, salpicado com gotas de chuva, exibia claramente sua tristeza. A igreja, os negócios e a amizade entre eles eram as únicas coisas que Antônio aprendera a valorizar. Com tudo isso prestes a ser destruído, Antônio sentiu algo que há anos não sentia. Uma sensação inexplicável de perda, consumindo seu corpo de dentro para fora, como uma besta devorando o que restou da sua alma.
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Antônio retirou um cigarro do maço sobre o banco e o acendeu com seu isqueiro de metal. Ele respirou longa e lentamente através do cigarro, fazendo-o ser consumido pela metade. Antônio olhou enquanto as cinzas pairavam no ar antes de caírem no chão. – Você sabe, comecei o tráfico de drogas ao mesmo tempo em que comecei a consumir – Ele disse. – Não, não sabia – Chifre disse indiferente. – Fui descobrir os hormônios para bovídeos muito tempo depois. Chifre suspirou e olhou no relógio. Tadeu terminara de carregar o caminhão e esperava no vão da porta observando a conversa que se passava no interior da igreja. – Tudo foi por água abaixo quando um garoto de 25 anos de idade resolveu foder com a minha operação – Continuou Antônio – Começou a me seguir e descobriu todos os meus contatos. Meus clientes eram o elo fraco da corrente... e acabaram abrindo a boca. – Eu sei como é. – Claro que sabe – Disse Antônio, dando mais uma longa tragada. – Aconteceu a mesma coisa comigo. – Você sabe o que eu tive de fazer, então.
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Conto 4. Palimpsesto
– Sim você teve que dar uma lição nele – Respondeu Chifre, acendendo outro cigarro e olhando para Tadeu parado na porta da igreja com as roupas encharcadas. A chuva caia torrencialmente – Bom, acho que terminamos por aqui, não seria a hora de darmos uma olhada naquele dinheiro? – Não só uma lição, meu amigo, ele estava prestes a destruir algo que demorei anos para construir. – Eu entendi, você está querendo dizer que quem fode com você no fim recebe uma lição, o que é para me deixar... – Não, não, não. Você entendeu errado – Interrompeu Antônio – Ele destruiu tudo o que conquistei, eu esperava que você fosse entender. – Olha, o caminhão está carregado, pegue o dinheiro agora ou teremos que tapar os olhos do nosso amigo Jesus aqui. – Chifre segurava agora a faca sobre sua perna, de modo que Antônio a enxergasse. – Mas você entende a história? Você consegue perceber o que eu tinha que fazer? – Sim, eu entendi! Você teve que matá-lo! – Chifre sentiu uma descarga de adrenalina sendo despejada na sua corrente sanguínea. A tontura estava cada vez mais forte e gotas frias de suor escorriam em seu rosto. – Isso mesmo, matei ele na sua própria casa. Sabe qual era o nome dele?
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– Não, não sei. – Claro que sabe... Tales – Antônio pronunciou as palavras pacientemente – Delegado Tales. Os olhos de Chifre se arregalaram em choque. Ele sentia seu coração pegar fogo. Ele jogou seu corpo para cima de Antônio antes que ele pudesse perceber. Os dois caíram sobre o banco de madeira, um sobre o outro. O verdadeiro Otávio Mendes segurava a mão do impostor e a noite se encheu de grunhidos e de luzes oscilantes que brilhavam na lâmina da faca empunhada em sua mão. No lado de fora, trovões balançavam os céus, que pareciam vibrar com a ira emanada do interior da igreja. Chifre não tinha forças, ele sentiu seus braços adormecerem e foi jogado no espaço entre os dois bancos. Ele não conseguiu encontrar forças para se levantar e ficou ali, apoiado sobre seus cotovelos, esperando recuperar a sua energia. Pela primeira vez em muitos anos, Antônio se sentia Otávio Mendes. Duas décadas se passaram e as lembranças submersas de sua antiga vida emergiram violentamente. Por um breve momento ele buscou na sua mente pelo nome de Antônio Vieira, mas encontrou apenas a memória turva de um homem frágil que fora morto violentamente com um golpe de foice em sua fazenda. Lembrava apenas de ter escondido seu corpo sob uma camada de cal no porão.
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Conto 4. Palimpsesto
– O delegado era um cara de família, sabe? Mas não o tipo de cara de família que cuidava da própria vida – Otávio olhava o homem deitado com desprezo. Chifre ouvia a história com a respiração ofegante e uma ardência paralisante no peito. Seus olhos oscilavam de um lado para o outro a procura de uma salvação – Eu não precisava matar sua família inteira para mandar um recado para a polícia, mas o que eu posso dizer? Os hormônios afetaram meu julgamento. Otávio tragou a fumaça de seu cigarro e observou ela pairar sobre seus olhos à medida que saia da sua boca. Tadeu estava mais próximo agora e fitava o homem em desespero no chão que mais parecia um suíno prestes a ser abatido. – Você deve estar se perguntando onde quero chegar, não é? – Otávio continuou, o seu timbre grave havia cedido o lugar para um mais sereno e tranqüilizador – Me escondi da polícia em uma fazenda, e lá comecei a curar meu próprio fumo. Uma das melhores ervas que já fumei, na verdade. Sabe por quê? Chifre respondeu com um olhar vazio e confuso. – Porque sobre o fumo eu borrifava uma solução de nitrito de amila, MDPV, testosterona e um coquetel de estimulantes – Ele continuou – Injetar essas substâncias no meio da rua não é uma atividade bem aceita pela sociedade, como você deve imaginar. Fumar torna tudo muito mais fácil... E prazeroso.
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Chifre encarou o monstro na sua frente com terror e seu coração começou a bater descontroladamente. – Você está no que, terceiro cigarro? – Otávio arqueou as sobrancelhas e balançou a cabeça de um lado para o outro como se lamentasse o que estava prestes a dizer – A não ser que você esteja tão acostumado à substância como eu, seu coração deve parar a qualquer momento. Ele estava certo. O homem quase morto não conseguiu conter a raiva fervendo o sangue em suas veias. Ele deixou o corpo cair totalmente no chão, para que pudesse dominar a dor em seu braço esquerdo. Ele podia sentir seu coração latejando e a respiração se tornando cada vez mais difícil. Sua vida se dissolvia e deixava lentamente o corpo que um dia havia ocupado. Seu coração cedeu após uma última contração e uma dor excruciante subiu pelo seu corpo, parando na altura de seus olhos. Debatendo-se em agonia, sua visão se dissipou lentamente até que deu lugar para a escuridão total. Por mais que o odiasse, Otávio esticou o braço para pegar o rosário sob o banco e colocou no peito do cadáver. Otávio Mendes julgava com severidade, mas não gostava de dificultar a passagem dos mortos. –Sob a neblina, a pequena igreja cuspia para os céus longas chamas de luz esbranquiçada. Da claridade surgiu uma figura carregando um cadáver e, ao seu lado, um homem de bata
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Conto 4. Palimpsesto
com um crucifixo dourado reluzente no peito, caminhando lentamente como em um cortejo fúnebre. Antônio puxava o corpo pelo braço, sua respiração estava ofegante. Ele parou por alguns momentos na porta, tentando recuperar o fôlego. A chuva agora caia suavemente e o ar gelado que soprava entrou arranhando sua garganta. Tadeu puxou pelo outro braço do cadáver para ajudar o amigo. Quando se aproximaram da estrada a uns vinte metros de distância da porta da igreja Antônio teve que parar novamente para descansar, tragando mais uma vez seu cigarro. – “Deus é Liberdade” – Otávio pronunciou as palavras gravadas no letreiro sobre a porta – Foi essa promessa que me atraiu pra sua igreja. – E se não fosse você eu não sei o que seria dela – Tadeu observou a igreja com olhos cansados, mas orgulhosos. – Gosto de pensar que foi um sinal do destino. Ou de Deus – Otávio havia enterrado a maioria de suas memórias muitos anos atrás. Como as palavras ocultas de um palimpsesto, elas ficaram na sua mente, vagando lentamente no fundo da sua consciência. Naquela noite, Chifre havia despertado essas memórias que ficaram por tanto tempo adormecidas e ofuscadas pelas mentiras que ele criou para acobertá-las. Tudo o que ele criou com a intenção de manter a decepção e o desgosto longe viraram uma fina camada de poeira e, agora, ele se transfor-
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mou naquilo que ele sempre temeu. Ele mesmo. Otávio continuou carregando o corpo até o acostamento da rodovia, onde parou para descansar mais um pouco. Naquele momento, ele não conseguia mais se lembrar de seus pecados. –Onde o deixaremos? – indagou Tadeu. – Aqui mesmo – Respondeu Otávio. Ele soltou o cadáver e limpou suas mãos na roupa enquanto observava a estrada deserta que sumia no horizonte. – No meio do acostamento? Otávio fitou o cadáver do animal que fora atropelado naquela manhã e percebeu que não precisava responder. Afinal, que diferença faria um corpo a mais na rodovia que o diabo asfaltou?
Conto
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Matadores de Dragões Rosca J.R. Tudor “The Horsemen are drawing nearer On the leather steeds they ride They have come to take your life On through the dead of night With the four Horsemen ride or choose your fate and die.” Hetfield, Ulrich, Mustaine
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Conto 5. Matadores de Dragões
A caça e os caçadores – Filho da puta. Olha o rabo que ele ta comendo! Puta que pariu, eu nessa bosta de vida e o careca, gordo com cara de bobo comendo uma mina que parece miss universo. – Ai, Bob – Se indignou uma voz afeminada, porém não feminina, ao seu lado – para de recalque. Amanha ele vai morrer, e morto ele não fode mais ninguém. Bob parou pra pensar, mas não era sobre morrer no lugar do prefeito. Ele estava viajando nas curvas da ruiva maravilhosa (“e natural”, pensava) que o político levava pra dentro do motel, que ficava na estrada, próximo a entrada da cidade de Franca, interior paulista. Ele pensava que uma mulher dessas motivaria ele fornicar muito mais que um fim de semana inteiro sem parar. Fantasiava como a moça ficaria envolta por seus fortes braços. Imaginava como todo aquele metro e oitenta de ruiva se renderia a sua virilidade. Claro, ela aceitaria se entregar para um homem feio de menos de um metro e setenta, pois o que lhe faltava em tamanho pretendia compensar com testosterona. Na sua fantasia ele entrava no motel, nesse exato momento, atirava bem no meio dos olhos do bastardo e salvava sua princesa, que o recompensaria com sexo voraz e paixão incondicional. Ela contaria sua vida triste. Sobre como sua mãe destruiu sua auto estima, como seu pai a abu-
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sava (talvez não essa parte, pois não lhe era muito do agrado fantasiar com uma mulher que transava com o próprio pai, mesmo que forçada) e como seu cafetão... é melhor deixar sem cafetão, pois ele prefere pensar que ela é no máximo uma pobre moça do interior, criada dentro de uma cultura superficial aonde o alpinismo social é um dos poucos caminhos para uma garota mal nascida alvejar uma vida digna. “É isso! Não tenha medo minha princesa, seu cavaleiro a resgatará!” – Eu comia – Respondeu com firmeza e convicção inabaláveis – Comia gostoso. Casava, fazia um monte de filho. E depois podia morrer feliz. Chegava no Inferno e falava pro Coisa Ruim que ele pode caprichar, porque na frente dele esta um homem que fez gostoso. E é capaz do Cara de Bode me chamar pra ser sócio dele. – Nossa, Bob, você nem conhece a mina. Deve ser a maior piranha, cheia de DST na buceta! Bob olhou para o banco do passageiro e ficou ressabiado em ver como os olhos azuis claros e traços finos de seu companheiro pareciam com uma mulher indignada. Isso sempre lhe deixava receoso, especialmente combinado com aquele jeito de falar mais manso, fazendo sua voz finalmente ficar parecida com a de uma adolescente. Ele amava seu parceiro como um irmão. Amava mais que aos próprios irmãos. Ambos serviram juntos o Exercito, no
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Conto 5. Matadores de Dragões
Batalhão Amazonas, na Calha Norte, aonde mataram muito traficante, FARC e muitos bandidinhos. Jerônimo matou ainda mais que ele. Quem o vê não imagina que ali está um dos melhores soldados que os militares brasileiros já tiveram, e o animal mais perigoso que já andou por aquelas selvas. Mas nenhum amor é simples, nem o entre irmãos. Especialmente quando seu “irmão” está cheio de outro tipo de amor, não correspondido. Se Roberto amava seu amigo como a um irmão, Jejê, por outro lado, tinha muito mais amor no coração. Também amava Bob como irmão, mas via naquele homem o amor de sua vida. “É incesto, mas não mando no meu coração”, repetia todo dia para si mesmo, e ambos viviam num dilema. Bob
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sabia que seu amigo queria virar sua mulher, mas também sabia que se tem um cara nesse mundo que o respeita mais que todos é Jejê. Que respeita também sua masculinidade, e há muito tempo já desistira de seduzi-lo, mesmo que às vezes Roberto não visse as coisas dessa maneira. Jejê não queria ofender seu irmão-amigo, e sabia que “é mais importante resguardar essa amizade que saciar sua fêmea interior”. A suas maneiras ambos tentavam ficar bem com isso, e a verdade é que sua amizade era forte o bastante para que qualquer dúvida ou malestar quase sempre pudesse ser colocado em segundo plano. Agora eles têm uma única e vital missão a cumprir, e toda uma guerra pela frente.
Anarquia, oi! As pessoas pensavam que as manifestações de 2013 já tinham acabado e que o Black Block é a coisa mais radical que poderia surgir no país. Mas aquilo não foi nem o começo. Desde que o Collor congelou as contas de todos os brasileiros um grupo de pessoas insatisfeitas se convenceu que já passava da hora de fechar o puteiro e começar a fazer do Brasil um país de verdade. Claro que no começo dos anos 90 aquelas pessoas eram apenas um bando de filhinhos de papai fumando maconha no Diretório Acadêmico da UNESP de
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Franca e não fazia muita diferença o que achavam. Um dia se formaram, foram obrigados a cair na vida. E o Trem da Revolução parou, acabou o carvão. Mas às vezes as pessoas não vivem na merda para sempre. Grande parte do velho grupo prosperou. Surgiram dali grandes juízes, advogados, delegados, professores, escritores, políticos bem sucedidos e alguns empresários que somando suas nada modestas fortunas já chegavam perto do primeiro bilhão. As pessoas mantiveram contato, viram que valia a pena tirar a velha Maria Fumaça dos trilhos e colocar ali uma locomotiva mais moderna, talvez um trem bala. Planejar uma grande revolução com a cabeça cheia de maconha é muito fácil. Planejar uma grande revolução com a cabeça cheia de maconha e um monte de dinheiro transforma o mais humilde piqueteiro em artista. E aquelas pessoas já não eram mais humildes piqueteiros. Estavam com a cabeça cheia de maconha e tinham tanto dinheiro disponibilizado à Causa que ninguém ali tinha dúvidas de que tocariam fogo no Brasil. E o novo trem não tinha apenas um bando de maconheiros. Com o tempo foram seduzindo mais gente e colocando mais vagões. Arrumaram engenheiros, médicos, biólogos, químicos, hackers, alguns militares e muita motivação. E eles mesmos há muito abandonaram a inocência intelectual e a inge-
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nuidade ideológica para se tornarem líderes em suas áreas, e na sociedade. Alguns diziam que “é impossível a gente não tocar fogo no Brasil”, enquanto outros pensavam em como não queimar demais. Para a liderança da Causa “a hora que você já começa a pensar demais nos efeitos colaterais é que já passou o momento de agir”. E isso foi feito. Ativaram a primeira célula, a ideia era tocar o terror. Para isso não bastava jogar pedra na polícia ou quebrar agências bancárias. Precisavam mostrar que seus inimigos poderiam ser mortos. Mas isso também não bastava, pois no Brasil não era novidade pessoas serem assassinadas, mesmo políticos importantes. Você precisava também manchar o nome da pessoa, o que também não era novidade. Não, o que precisavam é de vitórias justas. Precisavam matar dragões. E não pode ser qualquer dragão, tem que ser um que aterrorize o reino mais encantado de todo mundo do faz de conta. Sim, Franca é uma cidade rica, no estado mais rico da União. Seu prefeito, Carlinhos Amorim, é perfeito para servir de exemplo. Ele é dono de uma parcela considerável dos imóveis alugados pela cidade, dono e sócio das principais fábricas locais, tem muitas terras e, o principal, há doze anos, antes de ser eleito vereador, era dono de apenas pouco menos de meia dúzia de máquinas de pespontar na fabriqueta que a poucos
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anos havia herdado do recém falecido pai. Some a isso todos os escândalos locais, como desafetos executados, aquisições imobiliárias controversas, incontáveis casos de corrupção e associação com poderosas (e consecutivamente suspeitas) oligarquias políticas espalhadas pelo país. E o cara também era o nome mais forte pra suceder ao cargo de governador do Estado de São Paulo pelos partidos da situação. Seria a morte justa e perfeita de um dos dragões mais perigosos de todo reino, e seriam Roberto, Jerônimo e seu esquadrão os cruzados a cravar a lança em seu peito. Seria um grande show para um público sedento por um grande espetáculo. – Já deu a hora, Bob – Falou Jejê com sua voz de caserna, que nada tinha de feminina e tão pouco afeminada – Temos que dormir um pouco. Não era nem para estarmos aqui. – Está certo. Já vimos o que tínhamos para ver. Ele trouxe a mulher para o motel, significa que amanha irá trabalhar. Caso contrário teria arrastado ela e mais algumas pro rancho em Rifaina.
O plano A dupla acordou cedo, mais ou menos cinco e meia da manhã. Não precisavam acordar tão cedo, mas sempre é bom dar tempo pro corpo despertar antes de encarar o inimigo.
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Roberto costumava fazer alongamentos toda manha e meditar um pouco. Aprendera ioga durante uma breve peregrinação pela Índia, pouco depois de deixar o exército. Durante seus exercícios Jerônimo entrou na casa todo suado, ele acabava de voltar de sua corrida diária, aonde ele fez apenas dois quilômetros ao invés dos usuais seis. Afinal, aquilo era só um aquecimento em dia de missão e queria apenas acordar seu corpo, nada mais. Mas não deixou de notar seu amigo fazendo seu diário ritual, e por costume não pode deixar de comentar: – Se você quiser fazer viadagem deixa que como sua bunda, porque fazendo essa merda ta parecendo o Dalsin drag-queen. Roberto estava tão concentrado que conseguiu pelo menos fingir que nada tinha escutado. Seu humor estava tão contido pelo clima de dia de missão que mal conseguiu entender a ironia proposital na frase do amigo. Era hora de finalizarem os preparativos. A missão era invadir a prefeitura, fazer um showzinho lá dentro e matar o prefeito enquanto filmavam tudo. Para isso iriam se encontrar com mais dois colegas, que já estariam para chegar. Eles estavam alojados num pequeno sítio próximo da Rodovia Tancredo de Almeida Neves, que é um lugar bem desolado e próximo da estrada. O Sol começava a aparecer forte no céu, já batendo quase sete horas da manhã. Logo depois Laércio e Ricardo chegavam numa Blazer branca,
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rebaixada e totalmente filmada, que parecia carro de playboy ou bandidinho, e deveria ter sido de um dos dois, afinal retiraram de um depósito de veículos apreendidos pela polícia, em Ribeirão Preto, via um esquema que tinham ali. Como foi dito, a turma dos “maconheiros revolucionários” cresceu muito dos anos noventa para cá. – Meninas – anunciou Laércio, um carcamano baixinho, pouco menor que Roberto. Na casa de seus cinquenta anos era o mais velho do grupo. Ele havia servido por anos como cabo da Polícia Militar do Estado de São Paulo, começando pelo Tático Móvel na Zona Leste da capital paulista ainda no final dos anos oitenta, e mais tarde promovido a sargento, quando chegou a atuar por alguns anos no COE. Depois de ter a vida atrasada por um tenente marrento acabou se cansando do esquema militar e foi trabalhar na iniciativa privada, para um dos membros da Causa, aonde foi recrutado depois de um tempo – Tudo pronto pro show? Logo depois entrou Ricardo, que é primo de segundo grau de Jerônimo. É o mais novo do grupo, ainda chegando aos trinta anos. Ele serviu como fuzileiro naval desde os dezoito anos e desistiu da carreira militar depois das ocupações dos morros no Rio de Janeiro. Ficou extremamente desanimado em ver que todo seu trabalho só serviu pra expulsar gente pobre de suas casas e acabou também sendo contratado como
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segurança por um dos membros da Causa. – Já decidiram como será o plano? – Perguntou Laércio. – O primeiro problema é entrar armado na prefeitura – Organizou Jerônimo com seu tom mais tranquilo e matriarcal – Nosso pessoal de inteligência já olhou o lugar. Não possui detector de metal, tem apenas três GCM e poucos funcionários possuem armas. Lá dentro rendemos facilmente os guardas, quem mais estiver armado, e chegamos rápido na sala do prefeito. Mas na hora de sair podemos esperar muitas viaturas de polícia. A sorte é que hoje não tem nenhum helicóptero da polícia na região. O mais próximo demorará mais de meia hora pra chegar, se for muito rápido, e se vier sozinho nós colocamos ele no chão. Laércio ficou meio cabreiro. Invadir uma prefeitura de cidade média do interior e matar o prefeito na frente de câmeras é uma coisa complicada, mas quatro homens peitando todo policiamento de uma cidade como essa soava como suicídio. E ele não estava lá para morrer. Por isso resolveu perguntar: – Como vocês pensam em peitar toda polícia de Franca? Lá eles terão, na hora da ação, no mínimo uma centena de homens prontos pra responder o chamado antes de terminarmos de matar o prefeito. – O segredo será firmeza e precisão - Isso era o que Roberto ensinava a todo seu pessoal no Batalhão Amazonas – Não im-
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porta que eles sejam a maioria, é uma questão de postura. Temos treinamento muito melhor, mais experiência em campo de batalha e estaremos consideravelmente melhor equipados. Quando os policiais ouvirem nossos brinquedos pela primeira vez adotarão uma postura totalmente defensiva. E nós somos caçadores. Quando nossos oponentes começam a se comportar como presa a vitória já é nossa. Você e o Ricardo não precisam se preocupar em dar combate, a função de vocês é apenas executar o prefeito e filmar tudo. Eu e o Jerônimo somos atiradores de elite, deixem que fabriquemos a guerra enquanto vocês cuidam do prefeito, afinal, é para isso que estão aqui. Isso não tranquilizou muito Laércio, porém ele sabia do histórico dos companheiros e isso o confortava um pouco. Porém ele também acreditava que a morte do prefeito era necessária, e no final mais tinha medo de ser preso ou ter o cadáver reconhecido, o que poderia causar transtornos para a Causa. Para Laércio, morrer é apenas algo que vai acontecer um dia qualquer. – Ricardo – Interrompeu Jerônimo – Você é o encarregado de operar a câmera. Deixe o Laércio dar o espetáculo com o prefeito, pois ele sabe todo roteiro – Sem dizer nada Ricardo acenou com a cabeça. No momento parecia estar mais preocupado checando seu equipamento do que escutando ordens que já conhecia. Mas era disciplinado o bastante para ouvir
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tudo com atenção e inteligente demais para ignorar ordens dadas pelo primo. Roberto retomou a palavra – Teremos que decidir na hora como sair. As duas opções mais viáveis são sair pela porta da frente e voltarmos para o carro em que viemos, ou sair pelos fundos, tanto pela porta de serviço quanto pulando por uma das janelas no térreo e usarmos o carro que deixamos naquela rua, ontem de tarde. De qualquer jeito não nos separaremos em hipótese alguma durante a fuga. Despistaremos a polícia e iremos para um depósito próximo da Rodovia Cândido Portinari, aonde temos um veículo com motorista pronto para nos tirar desse lugar. – E quanto aos efeitos colaterais? – Finalmente perguntou Ricardo. – Não podemos fazer muita coisa – Respondeu Roberto – Podemos ter que ferir ou matar os GCM e alguns policiais caso sequer esbocem nos confrontar. Já os civis tentaremos assustar, mas não poderemos parar a missão caso algum atrapalhe. Por fim qualquer pessoa dentro do gabinete é alvo em potencial caso comecem a complicar. A inteligência da causa levantou histórico desse pessoal, e todos, sem exceção, estão envolvidos em uma ou outra falcatrua. Creio que todo mundo aqui, antes de aceitar a entrar pro time, já estava ciente que causaríamos muitas mortes. Alguém ainda tem algum problema com
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isso? Todos permaneceram quietos. Por mais que desagradasse matar pessoas que nada tinham a ver com os crimes do prefeito ou com qualquer coisa recriminada pela Causa tinham em mente que estavam começando uma guerra. E, como em toda guerra, baixas são inevitáveis.
Plano B – Amor, preciso ir no banheiro, você não quer parar nesse postinho simpático? – Perguntou a moça vestida de noiva sentada no banco de passageiro do velho Maverick. O carro parou num pequeno posto de gasolina, a beira da Rodovia Cândido Portinari a alguns quilômetros da entrada para Franca. Era um posto bem rústico, a maior parte do piso era coberta por cascalho e terra batida, possuía apenas três bombas velhas (álcool, gasolina e diesel) que possivelmente não eram inspecionadas há anos. Sentado num banquinho de madeira, encostado num dos pilares estava um caboclo velho, pitando um finzinho de palheiro enquanto observava os dois carros que se aproximavam. Seguindo o Maverick preto parou também uma Belina “cor de merda”, pensou o caboclo, com quatro ocupantes que o frentista não conseguiu ver direito por causa dos vidros es-
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curecidos, mas nenhum dos dois perto das bombas de abastecimento. A loira desceu do Maverick, chegou a dois metros do velho quando arriou a calcinha, agachou sobre um tucho de grama e começou a urinar. O frentista, sem tirar um sorriso bobo do rosto, não entendeu o motivo que levou mulher a fazer ali suas necessidades ao invés de usar um dos banheiros, que realmente estavam limpos. Assim mesmo agradeceu a Deus por ver uma mulher tão bonita mostrando as intimidades, e resolveu que era melhor terminar de pitar e guardar o causo pros seus colegas de copo. Era uma loira muito bonita, com lábios carnudos, pele bem clarinha, seios fartos que saltavam para fora do decote revelando os rosados bicos do seio e suas coxas... “ah, que par de coxas”, pensou o senhor, já sentindo o brincalhão dentro de suas calças se espreguiçando, como não sentia desde o saudoso carnaval de 1994. Quando a moça percebeu ser observada abriu um modesto sorriso que oscilava entre meiguice e safadeza, então puxou a barriga do vestido para baixo, deixando a mostra o resto dos seios. Então o velho terminou de abrir o sorriso, pois aquilo estava bom demais pra ser verdade. – Por que você ta rindo, velho? – Perguntou a moça em tom angelical. – To tendo um bom dia, moça – A resposta saiu derrapando na garganta. Para quem tem a vida monótona e sem nenhuma
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perspectiva, pode ser muito difícil lidar com momentos de felicidade. A moça abriu um sorriso maravilhoso, mostrando todos os dentes claros e perfeitos e o transformou numa risada jovial e encabulada – Então abaixa as calças e fica de quatro – Concluiu suavemente. – O que? – Perguntou o velho, em vias de começar a gargalhar. – Abaixa as calças e fica de quatro! – Sua fala meiga foi substituída por um tom extremamente duro e áspero. O velho não entendeu muito bem o que acontecia, mas muito mais por estar pensando com a cabeça errada. A mocinha levantou sem guardar os seios, chutando a calcinha de lado ao invés de recompô-la no devido lugar – Amor – falou em voz alta, mas sem gritar, olhando para o carro em que viera – O homem aqui ta me paquerando, mas não quer brincar comigo. Um rapaz de um metro e noventa e muitos músculos cobertos por uma camisa de flanela xadrez, longos cabelos castanhos e uma barba farta que lhe cobria totalmente o rosto desceu do carro preto. Ele chegou perto da mulher e a deu um beijo extremamente libidinoso, e então olhou pro frentista puxando uma pistola da parte de trás da cintura. Olhou fundo em seus olhos dizendo em tom firme e cadência pausada – Abaixa as calças e fique de quatro.
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– Ai, meu filho! Não tenho dinheiro aqui, esse posto é uma merda – Respondeu quase chorando, se levantando, enquanto a moça lhe deu uma solada extremamente forte e certeira nas costas, que fez com que caísse de joelhos no chão. Então ela falou em tom mais firme que seu companheiro, porém de maneira nada pausada – Abaixa as calças! Antes que o senhor pudesse sequer assimilar a ordem ela enfiou uma mão por trás, lhe apertando o saco enquanto a outra, num forte puxão, lhe estourou o botão e o zíper da calça, por fim abaixando e arrancando as calças do velho. E o cabeludo com poucos puxões terminou lhe arrancando também a velha camiseta, bastante surrada e desbotada, do Comercial Futebol Clube. – E agora, velho? – perguntou a moça olhando para seus olhos chorosos – Hoje é um bom dia? O cabeludo aplicou um chute por trás de sua cabeça, que fez com que o velho caísse de peito pra baixo sobre os cascalhos. Quando então a moça abriu a mangueira de uma das bombas e a jogou sobre o frentista, que se encharcava com o combustível. Em meio a risadas sádicas e insanas o casal entrou no carro e ligou o motor. Então a moça atirou um fósforo aceso pela janela incendiando o líquido sobre o frentista, que demorou um pouco pra recobrar toda consciência e começar a gritar de-
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Conto 5. Matadores de Dragões
sesperado, sem conseguir se mover para fora das chamas. Ambos os carros seguiram pela estrada quando, alguns segundos depois, ouviram uma grande explosão seguida de muita fumaça subindo sobre o local aonde se encontrava o posto. “Hoje é um bom dia”, ela pensava enquanto via a cena pelo espelho.
Servir e proteger – Não tem sem requeijão? – Tem que fritar. – Então me da só o enroladinho de presunto e um quibe. O pessoal da viatura I-11605 tinha acabado o patrulhamento na entrada escolar e havia parado fazia nem dois minutos para uma boquinha. O Tenente Machado brigou noite passada com a mulher. Ambos eram pais de primeira viagem e estavam grávidos de dezenove semanas. Valéria sempre foi uma mulher tempestuosa, mas agora seus hormônios se tornavam uma espécie de hóspede indesejado naquele lar. Brigaram feio porque ele saiu pra comemorar o nascimento do filho de um amigão de infância e não jantou em casa. “Você tem que cuidar é de mim”, bronqueou sua mulher. Mas ele também tinha que ter pelo menos alguns minutos livres em seu dia, pois pu-
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lar direto da rotina policial para a doméstica estava acabando com ele. Como dizer quem está certo? Mas durante a manhã Valéria o acordou no sofá com um beijo de “eu te amo e te quero do meu lado”, o que levou o jovem casal a fazerem as pazes durante boa parte da manhã, não sobrando tempo para o café matinal. Era um casal novo, ele com vinte e três anos saíra a pouco mais de um ano da Academia de oficiais da PM e, há pouco mais de um trimestre, foi promovido de aspirante para segundo tenente. Valéria fará vinte anos no mesmo mês que dará a luz. Ela trancou a faculdade de Direito no quarto ano para se dedicar a maternidade. Não tem pressa de se formar porque tem um bom emprego na Prefeitura de Franca, seus pais são donos de um próspero mercadinho de bairro e seu marido tem um bom salário para os padrões da cidade. – Não vai querer levar uns pasteizinhos? Acabaram de sair. Insistiu Adriano, o dono, cozinheiro, caixa e relações públicas da lanchonete. Ele esfregou as mãos no avental e se dirigiu para perto dos policiais. – Vou querer um de pizza e dois de carne. – Não, cabo – respondeu Machado, com voz de troça – Não me leve a mal, Adriano, seus pastéis são deliciosos, mas voa farelo na viatura inteira. Depois se eu faço esses três limparem a bagunça fico com fama de oficial chato. E o cabo ainda joga
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mais comida no estofamento que na boca. Sargento Tavares começou a rir, meio que pra espezinhar o Cabo Santos e meio que pra puxar o saco do novo tenente. “Esse tenente é meio abobado, mas é bom menino. Só ta meio verde ainda. Hora ou outra pega o jeito”, pensava o sargento. – Cadê o Recruta? Perguntou Tavares, se referindo ao Soldado Araújo, que ganhou o apelido de Recruta pela “extrema inaptidão a fazer qualquer coisa que não seja cagada”, segundo constava no senso comum dentro daquela viatura. – No banheiro, parece que ta com caganeira – Respondeu a Dona Paula, avó de Adriano que ajudava todo dia a preparar os ingredientes pra soltar a fornada na hora do almoço. Todos riram por aquilo ser verdade e ter potencial de reforçar a zoeira durante o resto do dia – Já começou o dia fazendo cagada – Disse prontamente Santos, com o intuito de induzir os colegas a focarem as piadas no Recruta e esquecerem um pouco dele. E, com sucesso, todos riram.
Mais um dia no escritório – Entendido COPOM, cambio. Vira ai pra pegar a Cândido. Explodiu um posto lá pro lado da UNIFRAN e os bombeiros vão demorar pra chegar, pois estão ocupados com um incêndio lá no Guanabara e temos que isolar a área. Quase meia
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hora depois que todos já haviam terminado o lanche receberam uma chamada no rádio direcionando algumas viaturas para a explosão no posto. A estrada tem duas pistas largas, mas assim mesmo era bom ajudar a Polícia Rodoviária a conter a situação. Policiamento diurno em Franca não é uma situação que faça os policiais se sentirem desafiados, então é muito provável que, no final, apareceriam mais viaturas além do esperado pelo Comando, afinal, todos tinham certeza que isso seria a coisa mais agitada acontecendo durante todo o dia. “Durante toda semana”, pensavam convictos os quatro policiais. Não que eles fossem do tipo sedento por ação ou alguma espécie de carreiristas, mas poder ajudar de alguma maneira sem ter que trocar tiros é para todos eles a melhor maneira de trabalhar. – É o posto do velho. Qual é mesmo o nome dele? – Perguntou Santos. – Como vou saber, cabo? – Perguntou Tavares, irritado. – É aquele ribeirão pretano chato pra caralho de uma chamada que atendemos lá no Bar do Pereira – Recordou Machado. Foi sua primeira ocorrência onde teve que apontar a arma para alguém, como se esqueceria disso? Machado nunca foi bundão. Teve uma boa quota de brigas, até já tomou facada na perna quando moleque. Mas apontar a arma para alguém que parecia ser idiota e bêbado o bastante pra o obrigar a atirar sem
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a menor necessidade é algo que não sai da memória.
– Puta que pariu – Exclamou Tavares – é aquele velho tranqueira que queria sair no soco com aqueles moleques da Francaninha? Vai tomar no cu, os moleques eram grandes demais da conta! Tudo boleiro profissional. E estavam putos que o time tinha acabado de rebaixar. Mas como você sabe que é ele?
– Ele mesmo – Reforçou Machado – Uma vez tava voltando de Ribeirão e parei no posto pra atender o celular. O velho estava abastecendo outro carro e reconheci.
Por menos que conhecesse o velho, e por mais que tivesse as piores lembranças possíveis, Machado ficou um bocado menos motivado. Já tinha visto defunto o bastante pra saber que nunca se acostumaria com aquilo. Mas também já sabia que não era esse o tipo de coisa que lhe causaria algum trauma. Porém ele nunca tinha visto o cadáver de alguém que em algum momento conhecera vivo. E mesmo que o velho não fosse propriamente um conhecido era alguém que ele se lembrava da voz, do rosto e até do cheiro ruim de cigarro palheiro misturado com birita vagabunda e roupa suja. Esse já não era mais um bom dia, e ainda nem dava nove horas da manhã.
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Hauw Para essa missão Jerônimo e seu pessoal estavam armados com o melhor. A Causa tinha seus contatos e os supriu com material no nível das melhores forças armadas do mundo. Afinal, para a Causa não bastava apenas “aparecer na foto”, tinham que aparecer bonitos. A missão daqueles homens não era apenas matar um prefeito e assustar um monte de gente corrupta. Aquilo era um cartão de visitas. É um novo brigão na vizinhança esfregando um pinto bem grande na cara de todo mundo. Só de saber que usariam o novo modelo do colete Dragonskin, o SOV-4000, que para até tiro de ponto cinquenta todos passaram a se sentir gigantes com dez metros de altura. E junto do colete eles usariam tanto equipamento protetor que se a PM não aparecesse com uma bazuca o confronto seria mais seguro que jogar videogame. E a PM não tem bazuca. Dragonskin para todos, um FAL totalmente modificado, que ficará com Ricardo, uma FN Minimi com mira telescópica que ficaria com Jerônimo, uma Benelli M4 a ser usada por Laércio, mais um Milkor MGL com muitas granadas levado por Roberto. Todos eles estavam portando Taurus de 9mm, menos Jerônimo, que tinha sua Desert Eagle como brinquedo favorito.
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Às oito e meia da manhã, depois de todos se equiparem, regularem os rádios e fazerem seus rituais individuais pré-batalha, fecharam a casa, subiram na Blazer e em total silêncio, focados, não amedrontados, rumaram para fora do portão automático e caíram na estrada. – Hauw! – Com nem vinte metros andados portão afora Jerônimo tentou invocar o bravo espírito de guerreiros de outrora enquanto dirigia sua “carruagem de guerra” rumo à batalha. – Que porra é essa? – Perguntou Roberto enquanto tentava segurar o riso. – Hauw, caralho! – Insistiu Jerônimo no seu tom de mãe brava – Não fode com o clima, gente. Hauw! – Insistiu o motorista com um bocado mais de entusiasmo. – Não, primo. Somos família. Você é também nosso comandante. Mas “Hauw” não vai rolar. Puta negócio de espartano viado – Falou Ricardo, tentando sem sucesso manter um tom sério. – Eu sou viado, HAUW! – A mãe brava aparentemente chamara o pai, ainda mais bravo, e ambos se juntaram na peça motivacional – É Hauw ou enfio esse carro em baixo de um caminhão. Ninguém estava entendendo o momento. Não era do costume de Jerônimo surtar, especialmente durante as missões. Era menos costume ainda fazer brincadeiras, mas Roberto a-
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chava que aquele era um momento totalmente diferente de todos os outros, e apesar dele também não ser homem de surtar e tampouco de brincar nessas horas achou que era essa a hora de cultivar um espírito totalmente diferente: – YOOOO JOE! – Foi sua tentativa empolgada. – Eu gostava de Comandos em Ação – E a adolescente voltou – Eu brincava que a Scarlet transava com o Patrulheiro da Selva, e que eu era ele. Acho que foi a ultima vez que tive vontade de transar com mulher. Mas eu também tinha nove anos e nem sabia o que era transar. Achava que era só ficar esfregando a barriga de um na do outro. Mas o Patrulheiro da Selva? Aquele cara foi inspiração pra vida inteira. Tanta informação deixou todos com um pouco mais de vontade pra judiar do prefeito. – HAUW! – Com algumas tentativas todos conseguiram entoar o grito, como uma unidade. Chega de jogar a Blazer em baixo do caminhão e chega de estatuofilia. É melhor se revigorar à espartana, mesmo não sendo nada animador saber que os trezentos morrem no final, e que eles são apenas quatro. Talvez assim mesmo hoje possa ser um bom dia. Pelo menos agora Roberto sabe que mesmo que a mãe e o pai bravos tenham entrado na Blazer junto da adolescente, o seu velho amigo também trouxe O Líder junto. Com uma pequena besteira conseguiu testar o espírito de sua tropa inteira. Aquelas pes-
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soas estavam sérias e concentradas, assim mesmo conseguiram demonstrar paciência e humor em um momento como esse sem parecerem bobos ou loucos. Sim, hoje realmente será um bom dia.
Chovendo sangue Quando Machado e seus homens estavam a poucos metros do posto receberam uma chamada do COPOM convocando todas as viaturas da região para o prédio da Aeria. A Aeria era o maior orgulho de Franca. Uma empresa dedicada à pesquisa avançada nas áreas da robótica, VANT (veículo aéreo não tripulado) e comunicações. Tinham fechado alguns acordos bilionários com o Governo Brasileiro para impulsionar a capacidade bélica de suas forças armadas. Um ataque a uma empresa desse porte é inaceitável, tanto por seu valor estratégico a nação como pela maneira que alavancou a economia local. Todo francano conhece alguém que trabalha na Aeria, e grande parte da população se beneficia de alguma maneira com o dinheiro trazido para a região. Se essa chamada ao invés de ser pelo rádio da polícia fosse em alto falantes no meio das ruas é provável que boa parte da população se mobilizasse para retalhar a agressão. Cerca de cinco minutos antes da chamada o Maverik e a
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Belina se aproximaram da entrada da Aero. A empresa ficava num terreno descampado de uma região periférica e pouco habitada, próxima ao aeroporto. Alcir, diminuindo a velocidade do Maverik, olhou a uns duzentos metros a entrada. Era uma guarita de concreto reforçada, com uma cancela e armadilha para pneus que seria bem difícil transpor. Porém chamou sua atenção que todo terreno do prédio era rodeado por uma cerca não muito melhor que a usada em um galinheiro, então decidiu fazendo sinal para o outro carro o seguir. O guarda já reparara que os dois veículos saiam do rumo da estrada e passaram a seguir a via de acesso que levava a guarita, quando então o Maverick subiu pela calçada pelo lado direito enquanto a Belina foi pelo lado esquerdo e ambos aceleraram tudo que podiam. Sem entender muito bem os dois seguranças se olharam rapidamente e pularam desesperadamente para dentro da guarita. Os dois carros vararam a cerca sem nenhuma dificuldade. Enquanto o Maverik seguia para a entrada do prédio, a pouco mais de cinquenta metros da guarita, depois de um estacionamento não muito cheio, a Belina deu meio cavalo de pau parando a poucos metros dos seguranças. Dela desceu um rapaz magrelo, vestindo uma calça larga, camiseta branca apertada e carregando uma mochila verde que aparentava ser mais pesada que ele. – Assim vocês facilitam muito minha vida, meus senhores –
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Enfiou a mão na mochila e tirou de dentro dela um cilindro de metal muito parecido com uma latinha de alumínio. Arrancou uma espécie de pino de sua ponta e a jogou por uma das frestas da guarita, e então se colocou a correr, rindo de maneira débil e histérica. Não deu tempo de um dos guardas completar a frase “que porra é essa” e o outro dizer “sai correndo” e uma explosão forte silenciou os dois rapazes. “Realmente a guarita é muito resistente” pensou Hailton, enquanto saia correndo atrás da Belina que se dirigia em direção da entrada do prédio principal. – Vai lá amor. Entra de carro e tudo – Vibrava Mércia enquanto Alcir, seu namorado, acelerava o carro através da porta dupla de vidro e esmagava o balcão junto de sua atendente. O casal então saiu rapidamente do veículo, disparando suas escopetas em todo mundo que estava no saguão principal. Aproximadamente seis pessoas, mais a atendente, caiam mortas no chão, inclusive dois seguranças, sendo que um provavelmente foi atropelado pelo carro. Se arrastando para perto de um dos elevadores estava uma senhora com pouco mais de sessenta anos. Mércia se aproximou dela e com boa dose de inesperada educação perguntou – Por favor, minha senhora. Como faço para chegar ao laboratório de pesquisa computacional? – A senhora mal conseguiu ouvir a pergunta. No momento não sentia nada da cintura para baixo e tinha um gosto
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horrível de sangue por toda boca – A senhora é muito mal educada – berrou histericamente Mércia, enquanto batia ferozmente com a coronha na cabeça da mulher, que em pouco tempo perdeu a vida. – Aqui diz que é no décimo andar, saindo para esquerda do elevador numero um – Disse Anor, motorista da Belina enquanto folheava um folder que encontrara nos escombros do balcão. Anor era um cubano de 56 anos que vivia no Brasil há quase duas décadas. Um homem com fortes traços indígenas, pouco menos de metro e setenta de altura e um sério problema de obesidade. Seguindo ele vinha um oriental alto e muito forte vestindo uma roupa toda preta, que atende pelo nome de Chun, e outro homem, loiro, extremamente claro, ainda mais alto e forte, de nome difícil, que todo mundo tratava por Thor, segurando uma marreta de borracheiro na mão direita e um revolver Magnum 45 na esquerda. Bem ao fundo, entrando no saguão vinha Hailton, ainda rindo da guarita, quando olhou em volta dos companheiros, reparando em toda destruição, falou consigo mesmo em tom bastante desanimado – Achei que eu tinha mandado bem. – Vamos nos dividir – Ordenou Alcir – Vou com Mércia pelo elevador um. Anor e Thor, vocês vão pelo elevador dois enquanto Hailton e Chun peguem a escada de emergência. O cliente encomendou o backup dos arquivos que estão no labo-
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ratório de pesquisa computacional. Não é pra perder tempo com mais nada. Vamos lá! Muito espantava o grupo que um local com pesquisas tão valiosas fosse tão mal protegido. Por enquanto tivera menos segurança que uma agência bancária e isso os deixavam desconfortáveis.
Os quatro cavaleiros Já entrando na cidade, durante o percurso, Jerônimo e seu grupo contaram seis viaturas com sirenes ligadas passando em alta velocidade e nenhuma ia para a prefeitura. Talvez fosse bom sinal. – A prefeitura é logo ali. Não tem lugar para parar na frente – Observou Roberto – Ta me sacaneando que não tem lugar no quarteirão inteiro. – Vamos com calma – Disse Jerônimo – na rua de trás tem a entrada da garagem dos funcionários, entrar por ali chamará menos a atenção. Eles saíram da avenida principal, passaram o quarteirão sem lugar para estacionar, mas na esquina com a rua de trás estava a entrada. Não tinha ninguém ali, então entraram devagar, como velhos dirigindo no domingo, e pararam o carro na vaga mais perto da entrada, como não tinham muito carros
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puderam escolher uma sem ninguém em volta. – Isso aqui já ta dando até remorso – Observou Laércio enquanto desciam do carro, e olhava para todos os lados. Passou por sua cabeça a estranheza de ver ruas tão cheias de carros parados, mas quase nenhum pedestre. – Não acomoda – Roberto deu voz de comando – Ainda nem cutucamos o vespeiro. E não esqueçam que a partir daqui não é pra chamar os outros pelo nome... Jejê é o Zero Um, eu o Zero Dois, Lala é Zero Três e Ric o Zero Quatro. – Igual no Tropa de Elite? – Perguntou Laércio achando um pouco de graça que um detalhe importante como esse só foi combinado a um metro da porta da prefeitura. E também por esperar que usassem algo mais criativo. – Quem você acha que os caveiras imitaram? – Riu Jerônimo – Agora vamos lá. Lembrem-se: Objetividade e tranquilidade. A prefeitura estava um caos. Havia uma fila gigante de pessoas pegando senha na recepção para fazer seja lá o que estavam ali para fazer, e mais tantas outras sentadas aguardando seu atendimento. Quando o quarteto passou pela porta do estacionamento, se embrenhou numa sequência caótica de pequenos corredores até saírem de frente para a mesa da recepção e dois GCM. A situação não poderia ser mais inesperada. Os guardas se entreolharam com cara de “e ai”, as pessoas da fila olhavam um pouco, mas aparentemente desviavam o olhar
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por falta de interesse. Uma moça bem bonita fixou o olhar para Ricardo, tentando enxergar sem sucesso dentro de sua máscara, mas ao invés de medo lhe direcionou um sorriso tímido. Uma ou outra pessoa demonstrou algum desconforto com o quarteto, mas a verdade é que para a maioria dessas pessoas a maior preocupação era sua senha ser chamada logo e “se Deus quiser” darem sorte de resolverem seus problemas rapidamente, o que para muitos não passava de uma grande improbabilidade. – Zero Um, o Terror é uma arma? – Perguntou Laércio, inconformado por ter sido cumprimentado por um dos guardas. – Terror é A Arma, Zero Três – Respondeu Jerônimo. – Então ta – Laércio se dirigiu até a atendente, recebeu alguns olhares de reprovação por cortar a fila e perguntou cordialmente – Bom dia, minha linda. Você pode me informar se é aqui que pego senha pra matar o prefeito? A moça abriu um sorriso constrangido e perguntou se “o senhor pode repetir”. Jerônimo, desconsolado, deixou sua metralhadora apoiada na bandoleira sacou sua Águia do Deserto e gritou com tudo que tinha nos pulmões – Cacete da porra! – Seu grito mais serviu para soltar um barulho forte e distorcido nos fones de ouvido de seus colegas que para ser ouvido pelas pessoas, já que as mascaras abafam muito a voz. Mas antes que os guardas pudessem esboçar alguma reação ele deu
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um tiro na cabeça de cada um. Ele virou para atirar também na atendente, mas ela já estava correndo no meio da multidão e ele não tinha ficado com tanta raiva a ponto de querer matar todo mundo. Já estava satisfeito em deitar os dois “bundões” que prestaram nem para saírem correndo quando os viram, e feliz por finalmente atirar em alguém com essa arma. – Zero Três, Quatro – Comandou Roberto – Avancem rápido para a sala do prefeito. Eu mais Zero Um começaremos a guerra aqui. Roberto saiu pela porta e subiu uma escada que levava até uma rampa de acesso que era o lugar perfeito para cobrir toda entrada principal. Jerônimo se posicionou um pouco mais abaixo enquanto cobria a entrada de funcionários e a secundária. Todas as pessoas já haviam corrido para fora. Eles não se lembravam de já terem visto tanta gente correndo de maneira tão caótica e desesperada. Nem nas imagens das ruas de Nova Iorque durante os atentados de onze de setembro, pois ali o desespero ainda parecia respeitar um fluxo. Laércio e Ricardo subiram para o segundo andar e rumaram direto para a sala do prefeito, que não era um percurso longo. No caminho iam se deparando com funcionários e visitantes que estavam atônitos por provavelmente terem ouvido os disparos e gritos, mas ainda não entenderem exatamente a situação. Quando viram os dois homens inteiramente blin-
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dados portando armas parecia que as fichas iam caindo e as pessoas entrando em desespero de maneira sequencial, como uma fileira de dominós sendo derrubada uma por uma. Eles viram de tudo, se ambos não estivessem concentrados na missão com certeza ririam muito do humor negro. Algumas pessoas se escondiam sob suas mesas, outras saiam correndo aleatoriamente até esbarrarem em alguém ou alguma coisa, dois pularam pelas janelas, que não abriam, então atravessaram com tudo os vidros. Teve até um rapaz que, choramingando, abaixou a cabeça e tentou fingir que nada estava acontecendo. Quando enfim chegaram ao escritório do prefeito deram de cara com o homem, sua secretária e mais um senhor armado. Ele apontava um revolver velho para a direção da porta quando entraram. Tremia mais que epilético tendo ataque durante uma micareta, quando enfim deu um disparo que pegou no peito do Ricardo, que permaneceu imóvel – Cara, o colete é bom demais. Nem senti o tiro – Falou olhando pro Laércio, que parecia estar muito menos interessado em saber se o colete é bom. Então ele mirou sua escopeta bem no saco do homem e efetuou dois disparos rápidos, que o fizeram se dobrar inteiro caindo pra trás enquanto tentava gritar, mas estava com a voz totalmente abafada pela falta de ar. Quando viu o monte de sangue voando a secretária desabou sobre os joelhos enquanto pressionava as duas mãos com toda força
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sobre a boca e nariz para tentar conter o grito, sem nenhum sucesso. Ela conseguiu tempo e lucidez para pensar que era provável que um grito irritasse os invasores, mas assim mesmo não conseguiu controlar o próprio desespero. Foi como se lutasse contra si mesma e perdesse. O prefeito sem conseguiu esboçar qualquer reação não sabia se ficava quieto ou tentava conversar com os homens. Acabou escolhendo o silêncio, pois achou que se aqueles homens quisessem ouvir sua voz deixariam isso bem claro. – Seu filho da puta, meu nome é Morte e eu vim te levar pro Inferno – Vociferou Laércio em um tom tão raivoso e macabro que até Ricardo se assustou. Todos seus companheiros se assustaram, pois ele estava com o microfone aberto no canal de comunicação da equipe. – Zero Três – Falou a mãe paciente – Abre o respirador da sua mascara ou só nós vamos te escutar. Laércio percebeu pela cara de cu do prefeito e sua secretária que a perplexidade da cena era quase tão forte quanto o medo. A moça chegou pensar que estavam falando em outra língua. Assim mesmo, Laércio, com toda sua paciência, abriu a máscara e sem qualquer convicção ou sequer um pingo da empolgação de antes ainda teve energia para falar – Vim te matar – Curto, grosso e pontual.
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Plano C Enquanto via os colegas subirem pelos elevadores Chun resolveu apertar o passo. Queria subir a escadaria o mais rápido possível, mas logo no primeiro andar deu de cara com dois seguranças gordos e armados apenas com revolveres, que tinham mais chance de explodir na cara dos atiradores que de realmente matar alguém. Mas, para Chun, se tem algo mais perigoso que levar armas estragadas para um combate é dar chance pro azar. Antes que os dois homens pudessem ver sua chegada Chun pegou a kusarigama presa na parte de trás de seu cinto e com um movimento extremamente rápido da mão esquerda desarmou o primeiro segurança, quase arrancando lhe a mão. Com a mesma agilidade ele assumiu uma posição de luta bem rente ao chão, saindo da mira do segundo segurança, ao mesmo tempo em que dava dois giros muito rápidos com a corrente e arremessava a bola de ferro com muita força e precisão na testa do oponente, que caiu como um saco de batatas, inconsciente. Quando então desferiu um golpe com o lado cego da lâmina na face do primeiro guarda, que o fez cair no chão nocauteado. Sem perder a passada, Hailton continuou subindo os degraus o mais rápido que podia, enquanto que, sem olhar, ati-
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rou outra de suas granadas feitas de latinha para o corredor do outro lado da porta do primeiro andar. Após uma breve e desconexa gritaria uma forte explosão fez o lugar voltar ao silêncio. Chun usou a lâmina polida de sua arma como espelho, para olhar a situação sem se expor. Só viu fumaça e alguns borrões avermelhados. Logo concluiu que se existisse resistência naquele andar ela já estaria contida. Deselegantemente, mas contida. Dona Naíde segurou as barras. A velha copeira, quando todos entraram em pânico e saíram correndo, resolveu que era melhor recolher as xícaras deixadas pelo escritório. Ela tinha medo que seu gerente estivesse com humor ainda pior que cotidianamente e descontasse nela sua fúria. Quando voltava para a cozinha, carregando sua bandeja a porta do segundo elevador se abre e, de dentro dele, sai um “alemão do tamanho de um poste”, assim pensou Naíde. Ele andou até a senhora, inclinou o corpo até ficar quase na altura da senhorinha de menos de metro e sessenta, a olhou através de seus olhos, direto para o canto mais escuro de sua pobre alma e gritou. Gritou como um animal selvagem. Gritou com todo o ar do mundo. Gritou para seu medo. Gritou com toda força que sustentava os joelhos da copeira. Antes de dar tempo de ela desabar, Thor ergueu seu poderoso martelo na altura do teto e desceu com toda força que tinha sobre a bandeja, esmagando grande parte
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das xícaras e fazendo com que o resto voasse para todos os lados que as leis da Física permitiram. A senhora, caída no chão, queria colocar a mão sobre o próprio coração, mas não conseguia lembrar se ele ficava na barriga ou na testa, “será que fica na minha boca”, pensou. Thor abriu um sorriso largo, carregado por um carisma débil, como de um cão sorrindo após cagar no meio da sala. Tentando soar simpático, Anor se ajoelhou ao lado da senhora, segurou delicadamente sua mão, e com seu melhor sorriso falou – Desculpe meu amigo, senhora. Mas o que ele tentou perguntar é “onde fica o laboratório computacional”? Com a outra mão Naíde apontou um corredor próximo. A dupla agradeceu e seguiu o rumo. Eles demoraram um pouco para chegar ao destino, pois o andar contava com muitos corredores, salas e nenhuma sinalização. Mas ao chegar quase ao final do terceiro corredor principal avistaram ao fundo uma porção de corpos. Poderiam contar mais de cinquenta se tivessem paciência. A maioria vestindo o tradicional jaleco branco. Mais a frente viram uma porta de ferro derrubada, provavelmente com explosivos. Entraram com as armas apontadas quando viram Mércia escorada em uma bancada, sem nenhuma roupa além de seu coturno, cinto com o coldre da arma mais um bocado de sangue a cobrindo. Agarrando-a com força pelo quadril estava
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Alcir com as calças arriadas até o joelho currando a moça com toda vontade do mundo e sem se preocupar o mínimo com o mundo a sua volta – Rave – Gritou Thor com seu sotaque escandinavo e o sorriso mais largo que tinha. Entrava no laboratório, que tinha as luzes piscando, provavelmente por conta da explosão, saltitando marotamente e jogando a mão da marreta para o alto, como se estivesse numa dança, enquanto desabotoava a calça com a mão esquerda. Anor não acreditava muito na cena que se desenvolvia, mas graças a ela seu cérebro conseguiu se focar em procurar pistas na sala, quando viu estar no lugar certo. A sua frente se encontravam os servidores. Meteu a mão no bolso de Alcir, que nem tomou conhecimento, e pegou um mini-HD, no qual começou prontamente a baixar todos os dados do servidor. Alguns poucos minutos depois, enquanto o trio estava com muito menos roupas que antes, com muito mais suor, gemidos e palavrões. Chun entrou dizendo – Olhem o que eu achei... wow... o que ta acontecendo? – E logo atrás Hailton chegava já abrindo um sorriso, colocando a mochila de lado, jogando a mão pro alto e gritando melosamente – Tem chicleteiro ae?! – E sem qualquer cortesia já foi arrumando um buraco aonde se enfiar.
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Enquanto a missão seguia em ritmo de Carnaval, Chun chamou o único comparsa racional para conversar e mostrou pra ele algo que achou num laboratório no caminho. – Você sabe o que é isso? – Nitidamente soou como uma pergunta retórica, que o cubano simplesmente respondeu com um aceno negativo, então Chun prosseguiu: – Isso aqui é um processador quântico de altíssima capacidade e confiabilidade feito pelos americanos. Eu já estudei algo parecido (não falei que Chun é formado no ITA e tem pós pela Caltech. Então, agora você sabe. Como ele acabou nessa vida bandida? Um dia eu conto). E também achei um relatório junto. Folheando por cima deu pra confirmar minha suspeita. Vale uma fortuna se vendido no lugar certo, pois feito desse jeito eu duvido que se ache em outro lugar. – Mas como veio parar aqui – Perguntou Anor, perplexo. – Não sei. Mas com certeza não foram os americanos que deram. – Então podemos vender de volta. – Acho melhor não. Podemos vender pra alguém que não tem a tecnologia. Tenho alguns contatos. – Em quem você ta pensando? – Que tal os iranianos? De todos os países não alinhados aos EUA que com certeza não tem nada parecido eles são os melhores pra negociar. E pagarão muito por isso.
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– O que fazemos agora, com nosso pessoal? Chun viu que o pessoal estava muito compenetrado na fornicação e nem prestaram atenção. Isso para ele foi o limite de sua paciência. Empurrou gentilmente Anor para fora do laboratório enquanto furtivamente pegava a mochila de Hailton. Tirou duas granadas de dentro dela, fez sinal para Anor, que entendeu e retirou os dois pinos ao mesmo tempo, contou dois segundos enquanto se movia em direção a porta e arremessou as granadas sobre a orgia.
O coração de um homem Durante os dois ataques as comunicações de rádio da polícia ficaram uma loucura. Uma hora todas as viaturas deveriam ir para a Aeria, noutra para a prefeitura. Mas para Machado a escolha foi fácil. – Vamos pra prefeitura – Ordenou Tavares a seu tenente perdido entre o dever e o coração – Você não tem que pensar duas vezes, nós sabemos que sua mulher trabalha com o prefeito. E todo mundo vai pra Aeria. Nós vamos buscar sua mulher e seu filho. Machado sentiu um peso enorme tirado de suas costas. Ele já estava indo pra prefeitura, mas não tinha certeza se seus homens achariam aquilo uma atitude individualista e anti-profissional.
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Conto 5. Matadores de Dragões
Agora ele acelerava a viatura com tudo que tinha. No caminho encontraram mais duas viaturas que também estavam desviando seu caminho da Aeria para atender o chamado na prefeitura. Aparentemente aquilo seria todo reforço que o poder público poderia contar. Porém todos ali estavam sendo movidos por motivações pessoais. Provavelmente eram todas as três viaturas da cidade de Franca cujos policiais tinham algum conhecido no prédio público. Eles subiram com toda velocidade a Avenida Major Nicácio, e quando chegaram na Avenida Presidente Vargas, aonde fica a prefeitura, fizeram a curva quase capotando as três viaturas. Em poucos quarteirões haviam chegado à prefeitura, mas não viam ninguém. Na hora que estavam passando com as viaturas por cima da calçada central, o Corsinha que puxava o comboio explodiu. Na sequência, quando colocou a Blazer de frente pro prédio, Machado viu seu para brisa estilhaçando e o Sargento Tavares estrebuchar enquanto seu colete era picotado. Seu sangue jorrou em todo painel e parte do teto. No banco de trás o Cabo Santos gritava de maneira chorosa: “fui atingido, fui atingido”. Nessa hora o sentimento de auto preservação fez Machado esterçar o volante todo para a esquerda, de maneira que quando descesse do carro tivesse alguma cobertura. Na hora nem pensou que isso exporia seus dois co-
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legas já baleados, mas ele também pensou em puxar-los para fora, então seu choque de consciência durou nem meio segundo. Mal terminou a manobra já estava com a porta aberta e sem o cinto de segurança (agora ele entendia porque nenhum colega usava). O tenente se jogou para fora quando viu outra rajada ceifar o que sobrava de vida no Cabo Santos. Só deu tempo de gritar para o Recruta se proteger e a terceira viatura, outra Blazer, explodiu capotando enquanto tentava avançar por cima da grade da prefeitura. Machado não viu aonde ela caiu, pois já estava fora de seu campo de visão. Mesmo com toda essa confusão ele ainda estava muito mais preocupado com Valéria e seu filho do que com o massacre do lado de fora. “Se os caras estão fazendo isso com a polícia imagina o que podem fazer com um monte de civis”. Ele estava lutando para tirar esse pensamento da cabeça quando a traseira de sua viatura abriu igual uma couve flor com uma terceira explosão. Machado nem olhou para o lado, apenas jurava que viu pedaços da cabeça do Recruta voando junto dos estilhaços, mas antes que acontecesse uma quarta explosão tentou correr para uma árvore mais grossa a poucos metros de sua posição. Não tinha esperança de se proteger nela, mas queria sair dali, e a árvore foi o primeiro objeto grande que viu, além de um monte de carros que ali passavam, mas
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seria suicídio tentar a sorte no meio do transito caótico pelo tiroteio. Então ele com um pulo começou a correr a tempo de uma quarta explosão o jogar com tudo para frente, fazendo com que passasse da árvore e caísse totalmente sem cobertura. Seu coração apertou ainda mais quando sentiu quatro picadas fortes subindo em linha reta de sua coxa até o meio do tronco. Ele mal conseguia se mover. Sentia o corpo gelar e aquele mal estar de desmaio tomando conta. Chegou até a puxar sua pistola, mas não atirou, pois na hora pensou que poderia sem querer acertar Valéria. “Ah, Valéria. Tomara que você esteja bem”, ele pensava. Pensava que só queria ver o filho crescer. Queria pelo menos poder olhar pro rosto dele, depois do parto e acreditar que dali para frente tudo estaria bem, pois o pior já havia passado. As pessoas falam que quando morremos vemos toda nossa vida passar diante de nossos olhos. Machado só conseguiu ver a vida que ainda não tivera. Seu coração foi ficando cada vez mais pesado, mesmo sabendo que era o fim e querendo viver preferia que tudo acabasse rápido, que a dor dos disparos recebidos cessasse junto da agonia de ver seus colegas mortos a seu lado. Se para ele o momento de sofrimento durou uma eternidade, aos olhos de Jerônimo e Roberto foram só poucos segundos. Como homens de caráter não estavam felizes em tirar tantas vidas no cumprimento do dever, mas ficaram plenamente satisfeitos com o resultado
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da missão quando o rádio voltou a funcionar e Ricardo comunicou que a missão estava cumprida. Eles voltaram pelo caminho em que vieram. Como não havia nenhuma alma viva nas imediações da prefeitura cometeram a ousadia de usar o mesmo carro que os trouxera.
Ponto de extração – Jejê – Chamou Roberto – Acabei de receber um SMS dizendo que o ponto de extração mudou para uma fazenda próxima de onde pernoitamos. A rodovia que pegaríamos para ir embora esta tomada de policiais. Parece que explodiram um posto de gasolina e logo perto atacaram o prédio da Aeria. – Cidadezinha movimentada, heim? – Pensou alto Laércio. E devia ser o pensamento coletivo, pois todos caíram na risada. – Gente, me fala do bafão com o prefeito – Perguntou eufórica a adolescente – A comunicação caiu e nem sei o que aconteceu depois da “Dona Morte” ir puxar o pé do Carlinhos – E todos riram mais ainda. – Então – Prosseguiu Ricardo – Aquilo era muita sujeira. Sabem a secretária do prefeito – todos gesticularam confirmando – Biscatinha, viu? – A garota é casada, ta grávida, o marido acha que é dele, mas o pai é o prefeito – Laércio falou isso em tom bem gritado, encerrando com uma risada típica de um vilão vitoriano. Até
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Conto 5. Matadores de Dragões
poucas horas os rapazes pensariam que isso é forçado, mas depois da “Dona Morte”, preferiram apenas rir da graça e aceitar esse lado do parceiro.
– E vocês não sabem do que mais – Continuou Ricardo – A mina ficou putaça porque o prefeito, mesmo com duas armas apontadas pra cabeça, continuou negando que comia ela. Ai ela começou a soltar várias palas do cara. Que ele era o drogadão que já sabíamos e que ele também gostava de pegar uns travécos pra meterem na bunda. Inclusive ela mostrou na agenda que ontem a noite ele tinha marcado programa, e o animal ainda anotava na agenda institucional, que a noite ia sair com uma tal de “Silmara Espiga de Milho”, que é o travesti mais caro aqui da região, porque é ruivona de um metro e oitenta com mais de vinte cinco centímetros de giromba, e é o xodó dos enrustidos ali da prefeitura.
Nessa hora Jerônimo começou a se rachar de tanto rir, e quase capotou o veículo. Ninguém entendeu exatamente de onde saiu isso, mas Roberto se esforçou para apenas olhar para o horizonte que chegava longe na estrada e esquecer o que com certeza não seria esquecido tão cedo por Jejê.
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... Depois de rodar uns vinte minutos fora da cidade finalmente chegaram à região rural. Entraram em uma estrada de terra que parecia não ter mais fim. Com aproximadamente oito quilômetros rodados encontraram uma estradinha ainda menor, que levava para um pequeno vale totalmente isolado. Ali havia um helicóptero do modelo Esquilo com as marcas da Polícia Federal e um rosto conhecido, Fernando Cruz, antigo capitão de Jejê e Bob no Batalhão Amazonas, ainda na ativa como Major e também associado à Causa. Um homem com roupa de agroboy desceu do helicóptero e, depois de um rápido cumprimento, levou embora a Blazer. Provavelmente iria a desovar e cuidar de limpar o sítio aonde se hospedaram. Com uma pomposa continência e um sorriso fraternal Cruz recebeu seus homens e lhes deu demorados abraços, um a um, enquanto parabenizava-os pelo sucesso. Conduziu seus homens para dentro da aeronave e, depois de uma olhada demorada para as redondezas e sentimento de dever cumprido, entrou no Esquilo, fechou a porta e a aeronave decolou, ganhou altitude e rumou ao Sul. Os quatro cavaleiros haviam matado o primeiro dragão. Estavam intrigados com os outros eventos paralelos, mas como soldados não se sentiam no direito de esquentar a cabeça com
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qualquer coisa que esteja fora de sua pontaria.
Conto
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A pianista, o Assassino e um Avohay V. E. Simeoni
“Toda alma é uma música que toca.” Rubem Alves
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Conto 6. A pianista, o Assassino e um Avohay
Quando Ellen acordou, a primeira coisa que sentiu foi um cheiro forte de mofo e madeira apodrecida que a fazia lembrar o velho quartinho de ferramentas que ficava nos fundos da casa de seu avô, e como ela detestava aquele velho esquisito. Não demorou muito para perceber que não estava deitada em sua cama macia, mas sim em um chão sujo, rodeada por cadeiras quebradas e um quadro negro trincado. Sua confusão só era menor que a náusea que o odor da madeira podre lhe causava, fazendo o ar ficar mais pesado, difícil de respirar. A boca se encheu de saliva que logo foi acompanhada por uma ânsia terrível que a fez desejar não ter aberto os olhos naquela manhã. – Meu Deus do céu... Eu quero morrer... – disse antes de colocar o jantar do dia anterior para fora. Levantou-se precisando se equilibrar nas próprias pernas e depois de dar dois passos acabou desabando em cima de uma das cadeiras. “Mas que merda de lugar é esse? E como eu cheguei aqui?”, pensou ela, de mau humor. Já perdera a mão várias vezes para a bebida, aliás, muito mais vezes do que ela gostaria de admitir, mas era a primeira vez que não conseguia se lembrar de nada. A sala estava escura por causa das tábuas nas janelas, mas mesmo assim não havia dúvidas, ela estava em uma sala de aula. Aquela sala não recebera a presença de um aluno havia
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muito tempo, pois exibia um claro aspecto de abandono com grossas camadas de poeira que deixavam isso bem claro. Um assobio começou a ecoar próximo da porta e ela rapidamente o reconheceu, era o despertador do seu celular tocando. Sua bolsa estava em cima da mesa maior que provavelmente pertenceu aos professores que um dia lecionaram naquela classe. Tentando fazer força para tentar se acostumar ao cheiro, Ellen abriu o zíper e pegou o aparelho. A bateria estava quase cheia, o que era bom um sinal, mas o aparelho estava fora de área e isso era péssimo. Como iria chamar alguém para buscá-la? Sem falar que já eram 16:15h da tarde e ela havia dormido um dia inteiro, já estava em cima da hora para o começo do ensaio de sua banda. – Maravilha... Agora mesmo que a Bárbara tem um ataque! Ela vai torcer meu pescoço – esbravejou. – Ah, que se dane! Não adianta mais ficar chorando o leite derramado, você precisa se recompor, garota! Bateu com vontade no rosto, respirou fundo e pegou a bolsa com o celular. – Vou começar saindo deste buraco. – abriu a porta e saiu. –Assim que passou pela porta, um flash de luz atingiu seus olhos cegando-a por um instante. Depois de se apoiar na parede e praguejar dois ou três palavrões, sua visão foi voltando aos poucos com pequenas manchas brancas.
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Havia uma luz vermelha piscando em cima do batente da porta da outra sala, mas era difícil de enxergar direito o que era. Apesar de não ter anoitecido ainda, não havia frestas o suficiente para a luz do sol e a penumbra tornava difícil enxergar qualquer coisa. Tirou o celular da bolsa, um Samsung Galaxy que fora um presente de aniversario de seu namorado Douglas. Contudo namorado talvez não fosse o termo mais correto para a relação dos dois naquele exato momento. Umas das poucas coisas que ela se lembrava da noite passada é que estava puta da vida com ele. Os dois tiveram uma briga feia e haviam terminado pela... Sétima? Ou seria a nona vez? Não importava mais, ela tinha saído de casa para tocar com sua banda em uma festa jurando para si mesma que nunca mais iria voltar a vê-lo. Depois disso, suas memórias não passavam de borrões. Ligou a lanterna do celular e se pôs a examinar aquela luzinha vermelha. Era uma lente de uma câmera fotográfica, parecia ser uma daquelas com sensor de movimento, iguais àquelas que tiram sua foto gritando quando se está descendo uma montanha russa. “Agora ISSO está começando a me assustar!” pensou Ellen. Já não bastasse ter acordado em um lugar totalmente estranho e agora corria o risco de ser atacada por algum tarado.
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– Pensando melhor, deve ser alguém de sacanagem comigo, um babaca querendo fazer uma pegadinha – coçou a cabeça, fazendo um esforço para tentar acreditar nas próprias palavras. - Hum... Acho melhor encontrar logo a saída, não quero dar de cara com o dono dessa câmera. Talvez ela estivesse imaginando coisas demais, talvez não fosse nada para se preocupar, mas em todo caso, ela não era o tipo de pessoa que gostava de se arriscar sem um bom motivo. Foi seguindo pelo corredor com a luz do celular iluminando o caminho. O resto do lugar não estava muito melhor do que a sala onde ela acordara, pedaços de azulejo pelo chão, muros pichados e muita sujeira. Nem precisou andar muito para chegar ao que aparentava ser um tipo de hall de entrada, era um salão amplo com lances de escadas que levavam para o segundo andar. Aquele cômodo era bem iluminado com grandes arcos desenhados no teto e detalhes elaborados nas paredes, algo que fazia com que ficasse meio deslocado em relação ao restante do prédio. – Quem entrava pela pesada porta dupla da frente, dava de cara com um enorme letreiro prateado que dizia “E.E Padre Anchieta – Que o Senhor ilumine seu caminho”. “Em dias melhores, talvez esse lugar até que poderia ter sido legal para se estudar” ela pensou enquanto se dirigia para a saída. Tentou abrir as portas empurrando com as duas mãos,
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usando todo o peso do corpo e mesmo assim elas nem se mexeram. Logo iria anoitecer e ela sabia que precisava pensar em alguma coisa depressa. Arrombar a porta estava fora de cogitação, além de ser impossível, ela só se machucaria. Quem sabe encontrar outra saída? Se ficasse zanzando por aí era mais fácil acabar se perdendo, e se encontrasse mais alguma saída, poderia estar trancada como aquela. Com um longo suspiro desanimado, voltou a conferir o celular. Ainda sem nenhum sinal. “Espere um instante, e se eu tentar do terraço? É isso! Em uma área aberta com toda certeza consigo um sinal. Como já sei onde estou, só tenho que ligar para alguém e pedir ajuda” – pensou consigo mesma. As escadas subiam degrau por degrau e se bifurcavam na metade do caminho, porém levavam para o mesmo local. No segundo andar, um pequeno altar estava cuidadosamente posicionado bem em frente às escadas, como se a pessoa que o tivesse colado lá queria ter certeza que não se passasse despercebido. Duas velas acesas em seu topo, o pequeno altar fazia reverencia a um retrato que estava colado bem no centro. Sinistro. Era uma foto de um jovem tentando tampar o rosto com uma das mãos, tinha um semblante que pendia entre o medo e a confusão. Na parte de baixo da moldura havia os dizeres “O primeiro cego a cair no abismo, muitos seguiram”.
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Aquilo lhe deu um calafrio, tanto o altar como a foto eram novos, sem contar as velas acesas que eram uma clara evidência que havia mais alguém ali. Se fosse uma brincadeira, ela não estava achando a menor graça.
De repente o silêncio foi quebrado pelo som de violinos tocando em uma melodia que ela reconhecia muito bem, já a tinha ouvido milhões de vezes. Era a quarta parte de As Quatro Estações de Antonio Vivaldi, Inverno. Desde que se entendia por gente amava música, seu pai lhe ensinou não só a arte de tocar piano como a também ter gosto pelos “grandes mestres” como ele assim os chamava. A sinfonia vinha através de uma porta que estava aberta no final do corredor, junto dela um rastro de luz solar entrava iluminando o caminho. Ape-
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sar de meio hesitante, não havia dúvida, sabia que esse era o caminho para o terraço e sua passagem para fora daquela escola. Sem falar de uma pontinha de curiosidade que ela não conseguia ignorar. Conforme foi avançando em direção à porta, várias fotos surgiam espalhadas em retratos pelas paredes, sendo quase todas iguais. Homens, mulheres e até mesmo um pequeno menino de uns seis ou sete anos, todos com a mesma máscara de pavor na face. Quem quer que seja que tenha tirado aquelas fotos, não fazia distinção de cor, sexo ou idade, pois eram pessoas de todos os tipos. A cada metro, a música ia ficando mais e mais alta e seu coração ia acompanhando o ritmo, batendo cada vez mais veloz dentro do peito até que ela passou pela porta e ele parou por um momento. –Aquela cena era uma pintura feita no alto da barca do inferno. O corpo um jovem bem vestido estava caído no chão com um cutelo enterrado bem no meio da cara. Seu braço direito jazia decepado a poucos centímetros do resto do corpo como se tivesse sido usado em uma tentativa desesperada de parar a lâmina antes que ela chegasse a sua face. Ao seu lado, uma jovem moça de olhos azuis que tinha tido o estômago quase todo aberto na vertical, um corte limpo que começava perto do útero e subia até o tórax. Em uma das mãos segurava um martelo, na outra segurava as tripas, parecendo ter mor-
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rido com os olhos abertos encarando o nada. No centro, lá estava ele com sua camisa branca e um crachá que dizia “Meu nome é Isaque, em que posso ajudá-lo (a)?”. Estava de joelhos, olhando para o chão com lágrimas descendo pelo seu rosto. Diferente de seus companheiros, não tinha nenhum arranhão, a não ser por um olho roxo e uma das lentes de seus óculos que estava trincada. Eles estavam no centro de um campo de futsal rodeado por altas grades de arame que serviam para impedir que a bola fosse despachada para longe por causa de algum chute mais entusiasmado. Vivaldi ainda continuava tocando, agora mais alto do que nunca e Ellen ainda não tinha decidido se gritava, fugia ou simplesmente desmaiava. O tal de Isaque agora soluçava como uma criança, mostrando um abatimento que fazia que ele aparentasse vinte anos a mais. Ele olhou para ela com uma expressão de puro terror. – Corra agora! – gritou desesperadamente. Mas era tarde demais, pois uma enorme mão agarrou sua blusa e a arremessou com força contra o chão. Ela atingiu o solo, tudo foi tão rápido que ela mal teve tempo para entender o que estava acontecendo, não existindo espaço para lógica dentro dela naquela hora, só medo. – Ah coelhinha, por que você demorou tanto? – disse a voz grave em tom desdenhoso. – Juro que estava começando a
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me preocupar, me cortaria o coração se você perdesse nosso pequeno evento. Aquele homem possuía uma presença assustadora- Era grande em proporções que lembrava um urso pardo. Tinha facilmente mais de dois metros de altura, pele negra e ombros largos distribuídos dentro de um fraque, isso mesmo, uma roupa de gala. Até seria uma imagem cômica se fosse o facão em sua mão direita – Antes de qualquer coisa, gostaria de me apresentar, meu nome é Don Abel Bastião Terceiro - fez uma pomposa reverência. – Acho que a gente vai se dar muito bem... Hum, qual é o seu nome mesmo? Ela não disse nada, seus olhos saltavam das órbitas. – O gato comeu sua língua? Não faz mal, vou te chamar de coelhinha, acho que combina com você. Sabe, coelhinha, sou um homem que aprecia observar a natureza do ser humano, gosto de ver como as pessoas reagem quando são colocadas frente a frente com a pior verdade – dizia enquanto colocava correntes nas portas. – Você nunca sabe o quão poderosa é a força de vontade de alguém até essa pessoa fica pendurada por um fio, até onde eu preciso chegar para acabar com toda a sua esperança. Ele se virou para ela e abriu um largo sorriso. – A única coisa que eu tenho certeza é que nunca sei direito o
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que esperar, por essas e outras que eu adoro caçar pessoas insignificantes como você. Então coelhinha, até onde eu preciso chegar para quebrar seu espírito? Ellen continuava sem conseguir dizer nada, ela abria a boca, mas a palavras não saiam. Ele foi se aproximando dela devagar, com um jeito despreocupado como alguém dando uma volta na praia em um dia ensolarado, se curvou colocando seu rosto bem próximo ao dela e disse: – Ah, como sou mal educado, você não deve estar entendendo nada, certo? Eu vou colocar as regras da brincadeira de uma maneira bem simples, vou tentar te matar e você vai tentar sobreviver. Se você sobreviver, você ganha, se você perder, aí o seu retrato vai parar lá na parede junto com os outros. – Cara, você é um doido varrido... Todas aquelas pessoas... – O que é isso, não precisa ser assim - pareceu magoado, mas logo voltou a sorrir. – É claro que sou um cavalheiro justo, por isso vou te dar uma chance de lutar pelo que lhe é precioso. Enfiou a mão dentro do paletó e tirou um pequeno punhal de cabo dourado, a lâmina refletia a luz do Sol que começava a se por. – Aqui, guarde com cuidado – pousou a arma ao lado dela. – Só vou terminar meu assunto com o nosso amiguinho ali, não deve demorar muito, então não me desaponte. Don Abel se levantou e foi ao encontro do pobre rapaz
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que durante esse tempo todo não tinha se movido, estando sobre seus joelhos ao lado dos corpos dos outros dois. Tinha parado de chorar, parecendo resignado com seu destino. Às vezes era melhor assim, às vezes saber a diferença entre as coisas que podemos mudar e as que são inevitáveis separa os sábios dos tolos. Ele olhou para aquele gigante e depois para o facão em sua mão direita, uma mancha escura começou a brotar de suas calças. – Você é uma decepção sabia? Enquanto aqueles outros dois tinham coragem e me deram um bom desafio – apontou para o casal de cadáveres. -você ficou aí parado só assistindo eles morrerem sem fazer nada, não se sente envergonhado? Se iria ou não atingir as expectativas daquele maluco psicótico era o tipo de coisa que Ellen não tinha a menor curiosidade de descobrir. Sabia que se não retomasse rápido o controle de suas pernas, estaria fazendo companhia para aqueles dois coitados. Seu celular já era, provavelmente tendo sido quebrado quando ela foi jogada no chão, e para sair por onde tinha entrado, ela precisaria da chave que estava com o grandalhão. Depois de olhar em volta e pensar um pouco, chegou à conclusão que não tinha outro jeito, tinha de pular a grade e escapar pelos telhados. Já tinha pulado vários muros e grades na sua época
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de escola, quem disse que matar aulas não te ensinava nada? Está certo que não era o melhor plano do mundo, mas na falta de algo melhor, era a única opção que lhe restava. Ela foi rastejando em direção as grades tentando não fazer barulho, a adrenalina pulsava forte em suas veias e a cada metro tinha a sensação que aquele gorilão iria vir para cima dela como um trator passando em cima de uma joaninha. Tentou afastar tais pensamentos, tinha que manter a cabeça fria ou não conseguiria. Olhou para o rapaz com nome “Isaque” no crachá, deveria ser um cara legal que não merecia passar por aquilo, mas, no fim, ninguém merece. Uma parte lá no fundo de seu cérebro sabia que ele estava lhe dando uma chance de sair de lá com vida, mas uma parte de seu coração sabia que ela iria se odiar por ser tão egoísta. Depois de verificar uma ultima vez se não estava sendo observada, tirou os sapatos e começou a escalar a grade. Don Abel continuava seu discurso motivacional, agora batendo a lateral do facão no braço do rapaz: – Vamos lá garoto, onde estão colhões? É agora ou nunca, me mostre um pouco de brio! – sua voz cordial deu espaço para uma visível impaciência. – Sério mesmo, você realmente acha que se me entediar o suficiente, vou esquecer tudo e te deixar ir? Vamos, reaja! O rapaz tirou os óculos e levantou os olhos, seu rosto es-
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tava impassível como se a bronca não fosse com ele. – Faça o que tem que fazer, seu merda... As palavras atingiram Don Abel como um soco no estômago, quem esse inseto achava que era para falar com ele daquela maneira? Era insolência demais vindo de alguém que tinha praticamente desdenhado de sua bondade por continuar sem reação. Em um movimento rápido varou o coração de Isaque com o facão. Não precisava fazê-lo sofrer e ele não merecia uma morte digna, não depois de tamanho desrespeito. Com o fim daquela ladainha, Don Abel poderia se concentrar no prato principal, sua coelhinha. Tudo acontecia enquanto Ellen atravessava para o outro lado da cerca, por um instante ela parou e viu o quando rapaz foi atravessado como um animal. Ela teve vontade de gritar, se debater e simplesmente sumir daquela realidade, mas se limitou a virar o rosto. – Não, porra, você tem que segurar a onda, só mais um pouco, você precisa conseguir... – ela murmurou baixinho para si mesma. Ainda estava na metade da descida, só mais alguns metros e ela teria uma chance. Don Abel logo notou que ela estava fugindo, aquilo deu uma injeção de bom humor, seus lábios se abriram em um sorriso de tubarão. – Coelhinha aonde você pensa que está indo? – deu uma risa-
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dinha. – Isso mesmo minha querida, me dê um desafio! Hum? Na hora em que ele tentou puxar a faca do corpo do rapaz, ela não moveu. Ele se virou e ficou surpreso ao perceber que Isaque segurava a lamina com as duas mãos. Seus olhos tinham um fogo que transparecia o mais puro ódio, mas logo suas forças foram se esvaindo, seus dedos ficando fracos e ele soltou o facão. Sua vida se foi junto com as gotas de sangue que escorriam por seu queixo. – Antes tarde do que nunca, não é mesmo, garoto? – ele tirou a faca em um único puxão e seguiu em uma investida furiosa em direção de sua próxima presa. Assim que Ellen percebeu que ele vinha vindo, começou a descer a grade desesperadamente, faltavam menos de três metros para o telhado. Estava quase lá. De nada adiantou seu esforço, Don Abel era ágil para um cara daquele tamanho e em um único golpe contra a grade conseguiu decepar três de seus dedos, Ellen soltou um grito de dor. A grade balançava como uma arvore em uma tempestade. Ellen não agüentou se segurar e caiu. Quando perguntaram depois como tinha sido, ela disse que não se lembrava de nada, só do baque seco e depois a escuridão. –Era para ser uma festa de despedida do coordenador do curso de contabilidade que estava saindo da faculdade para ir morar na Argentina.
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Tocar nessas festas sempre era cansativo porque o repertório tinha agradar gregos e romanos e ela tinha que virar noites tendo que aprender músicas que detestava. O seu pai sempre lhe dizia que “se fosse para seguir a carreira na música, ela deveria tocar o que ela gostava de ouvir para si mesma e o que o povo gostava para ter o pão na mesa”. Mesmo com todos dos pesares, tocar para universitários sempre pagava muito bem e acabava sendo divertido no final das contas. Poucas horas antes da festa, ela e seu agora ex-namorado, Douglas, tinham acabado de terminar e tudo que ela queria era esquecer-se dele. O motivo da briga era uma estagiária com um jeito de piranha que trabalhava na mesma empresa que ele e a mensagem picante que ela havia deixado em seu celular. O rapaz jurava que não havia nada entre eles e que aquilo não passava de uma artimanha da moça para se vingar por ter sido desprezada. Lógico que Ellen não acreditava naquela conversa fiada e muito menos queria ouvir desculpas esfarrapadas, tratou de pegar suas coisas indo para casa de sua melhor amiga. Bárbara, ou Bárbie, como gostava de ser chamada, não era só sua melhor amiga, mas também fazia o papel de vocalista e baixista de sua banda, além de ser a líder. Não era nada oficial, mas ela acabou pegando o papel para si, o que para Ellen estava ótimo, mesmo a amiga sendo um pouco chata às vezes. As duas saíram cedo aquela tarde a fim de encontrar com
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o resto do grupo e passar o som antes da apresentação. O show foi espetacular, tocaram músicas que ela adorava como Livin’ on a Prayer e muitas outras que levantaram a platéia, fazendo o público foi ao delírio. Depois do final do show, um DJ assumiu a parte sonora e só restava para elas aproveitarem o resto da festa. Naquela noite, Ellen resolveu afogar suas tristezas no bar da faculdade, após algumas doses de cuba libre já se sentia um pouco mais solta. Enquanto bebia, Bárbie se aproximou. – Amiga, você tem certeza que não é melhor ir com calma? Assim eu vou ter que te carregar para casa. – Sorte a sua que sou bem leve – disse Ellen, com um sorriso forçado. – Ficar aí se acabando por causa daquele babaca não vai te fazer nenhum bem, você pode não admitir, mas eu sei que você ainda gosta dele. – Amor – disse dando os ombros. – Amor é uma coisa que só dá certo em contos de fada cor-de-rosa. A vida real é bem mais cinza que isso. – Nossa, que depressão – Bárbie disse, quase ofendida. - você deveria estar se divertindo. Principalmente se fosse com aquele bonitão ali. Apontou discretamente para o homem que estava observando-as de longe. Era um moço de bom porte, pele bronze-
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ada e barba por fazer, lembrava os galãs de romances latinos que ela assistia na sua adolescência. – Não olha agora, mas ele não tira os olhos de você – Bárbie estava realmente empenhada em bancar o cupido. – Sério? Que bom para ele, mas não estou interessada – disse ao virar outro gole. – Como pode dizer uma coisa dessas sem ao menos dar uma chance? Quer saber, depois você ainda vai me agradecer por ser sua amiga – ela falava com um jeito malicioso de quem tinha algo em mente. E de fato tinha, não demorou cinco minutos e o tal rapaz estava do lado de Ellen com seu perfume caro e sapatos de pelica. – Cosmi, essa aqui é minha amiga Ellen, ela toca na mesma banda que eu, mas você já deve ter percebido, não é? – Bárbie deu uma risadinha enquanto Ellen lhe desferia um olhar de desaprovação. – Oi, é um prazer te conhecer, que tal eu te pagar uma bebida? – Claro, o dinheiro é seu – resmungou Ellen. Costumava ser uma pessoa simpática, principalmente porque fazia parte de seu trabalho ser assim. Só que aquela noite ela não estava no clima, em especial se tratando do “Senhor Don Juan” ali que claramente só queria levá-la para cama. Não gostava desse tipo de sujeito.
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Apesar de tudo, Cosmi não era um cara desagradável, muito pelo contrário, era bem charmoso e inteligente. Estava estudando engenharia para um dia assumir os negócios da família, que era dona de uma grande construtora, mas na verdade queria ser um veterinário porque adorava animais. Era difícil saber se aquilo era papo furado para amolecê-la ou se ele realmente estava sendo sincero, algo nele dizia que era um ótimo mentiroso. Ela continuou ouvindo suas histórias enquanto bebia, bebia e bebia. A partir de certo ponto, pouca coisa era clara. Parece que houve um burburinho, depois algum tipo de discussão e alguém a chamou para ir embora ou coisa assim. No dia seguinte ela acordava na escola e seu pesadelo começava. –– Moça, você está bem? – disse a voz preocupada. – Ellen, certo? Parece machucada, sua mão... – Hein? –ainda se sentia meio grogue. – O que tem minha mão? Ela não poderia acreditar nos seus olhos, não queria. Por um segundo que pareceu eterno, seu cérebro não estava conseguindo processar o que estava na sua frente. A imagem de sua mão mutilada fez sua respiração acelerar e o desespero começou a tomar conta, sentiu que iria desmaiar de novo.
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– Mas que porra é essa? Merda! Meus dedos... Com exceção do polegar e o indicador, o resto dos dedos de sua mão direita se foram. – A gente precisa parar esse sangramento, se não você vai acabar desmaiando – ele soava genuinamente preocupado. – Olha para mim, fique calma que tudo vai ficar bem. Era o Cosmi, o mesmo rapaz da noite anterior com seu jeito suave e barba por fazer. Ele rasgou um pedaço de sua camisa e cobriu a mão dela, depois uma tira menor para amarrar o curativo improvisado. – Espera um pouco. O que você está fazendo aqui, ele te trouxe também... Deus! Ele deve estar me procurando, precisamos fugir agora! – Ellen deixava transparecer o mais puro medo em seu rosto, tentou se levantar e ele a segurou. – Ei calma aí, ele quem? Você está falando do seu namorado pirado? – Não! Don Abel, o cara das facas, ele estava atrás de mim e eu subi pela grade, tentei fugir... Mas eu caí... – Cara das facas? Estou andando por esse prédio há horas e não encontrei ninguém além de você até agora. Ele pegou a carteira do bolso traseiro e retirou uma cartela de compridos de um de seus compartimentos. – Aqui, antes de mais de nada você precisa tomar um analgésico. Vai te ajudar com a dor, depois você conta o que aconte-
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ceu. Ellen olhou para os compridos e pensou cuidadosamente se deveria tomá-los. Não sabia se realmente poderia confiar nele, afinal nem o conhecia direito. A verdade é que ele estava sendo a primeira coisa boa a aparecer naquele dia de merda e seu ferimento também começara a doer. Então que se dane, pegou os comprimidos mesmo assim. Os dois estavam no antigo refeitório da escola, dentre várias mesas espalhadas pelo salão, havia pratos de plástico e, como não poderia deixar de ser, muita poeira. Acima dela havia um buraco no teto, ela devia ter caído e atravessado direto pelas telhas gastas. Ellen começou a contar sua história tentando ser o mais breve possível enquanto ele ouvia tudo atentamente em silêncio. – Deus do céu... Juro que se não fosse por esse buraco no teto, diria que você está chapada – ele disse incrédulo. – É por isso que nós precisamos fugir daqui antes que ele nos encontre. O cara é um doido de pedra e já deve estar me caçando por esses corredores. Cosmi ainda ficou um instante assimilando tudo o que acabara de ouvir, até que se levantou e estendeu a mão para ela.
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– Você consegue andar? – Acho que sim – ela se levantou com a ajuda dele – A porta principal está trancada, mas deve haver mais algum jeito de sair. Essa escola é bem grande, só precisamos procurar. – Talvez não, olha o que eu encontrei. Era um mapa, sem sombra de dúvidas era o mapa da escola na tela de seu celular. – Mas como? – Eu achei o mapa pendurado na sala dos professores enquanto estava xeretando por aí, pensei que poderia ser útil e tirei uma foto. Meu celular também não dá sinal de vida aqui dentro, mas acho que isso já ajuda em alguma coisa, certo? E como ajudava, até que enfim a maré estava começando a mudar. O refeitório ficava na ala oeste da escola, eles só precisariam pegar um corredor e andar uns cento e cinqüenta metros, virar à direita e sairiam bem próximo da saída de emergência que ficava nos fundos do prédio. – Essas portas de emergência não podem ser trancadas, se houver um incêndio ou algo assim, sempre tem que existir uma rota de fuga. Uma vez, eu fiz um projeto para um trabalho e me esqueci de pôr... Ela não prestou atenção naquele papo de engenheiro e as três únicas palavras que lhe interessavam eram “rota de fuga”. “Se não conseguir escapar dessa vez, juro que derrubo as
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paredes desse lugarzinho miserável e faço uma saída eu mesma” ela pensava enquanto examinava o mapa. – Está decidido, é por essa porta que vamos dar o fora daqui – disse Ellen. –Os dois andavam devagar, tentando fazer o menor barulho possível e assim evitar um encontro desagradável com Don Abel. Ellen ainda conseguia sentir seus dedos como se eles ainda estivessem lá, como uma piada de mau gosto, eles formigavam e coçavam. Mas estava longe de ser o pior para ela. Como é que tocaria piano agora? Sabia que muitas pessoas continuam tocando mesmo depois de perder uma das mãos ou coisa do gênero, mas nunca era a mesma coisa e isso a devorava por dentro. – Cosmi, você ainda não me disse como veio parar aqui. Ele deu os ombros. – Me lembro da viatura da polícia seguindo a gente quando voltávamos da festa, eles nos mandaram parar. – Espere aí, a gente saiu da festa juntos? – Sim, você não lembra? Depois daquela confusão que o seu namorado aprontou, a Bárbie me pediu para te levar para casa enquanto ela ficava lá para acalmar os ânimos. – Juro que não me lembro disso... Não seio que mais é mais estranho, o Douglas aparecendo na festa ou a Bárbie me deixando ir embora com você que é quase um desconhecido.
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– Ei eu sou um cara legal. – mais uma vez aquele inconfundível charme latino. Ela tentou lembrar-se das coisas que ele dizia, mas tudo continuava muito vago em suas memórias. – Bom – ele continuou. – Estava muito escuro e o policial meteu a luz da lanterna na minha cara, não deu para ver seu rosto direito. Quando desci vidro para mostrar os documentos, senti uma picada no peito e tudo ficou escuro. Ela mordeu os lábios, não tinha idéia do tamanho da influência que Don Abel possuía ou quantos cúmplices o ajudavam em sua “caçada” doentia. A ideia de aquele monstro ter alguém dentro da pólicia era assustadora, mesmo que saíssem de lá, como saberiam em quem confiar? Detestaria ter de ficar o resto da vida olhando por cima do ombro, esperando o momento em que aquele maldito voltaria com sua cara cínica e seu facão. Foi então que um grito ecoou tão alto que decepou sua torrente de pensamentos. – Não, por favor! Não faça uma coisa dessas cara! Juro que não conto para ninguém. – um breve silencio e depois outro grito agonizante. Cosmi arregalou os olhos e se virou para ela como se perguntasse “e agora?”. Ela ficou paralisada, aquela voz, ela conhecia aquela voz.
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Ellen saiu em disparada na direção de onde os gritos vinham. – Não vai por aí – sussurrou Cosmi – A saída fica para o outro lado! Porra! Quando passou pela porta dupla seus temores se confirmavam. Lá estava ele bem no centro do anfiteatro, exposto em cima do palco como uma provocação. Tinha uma placa pendurada no pescoço com os dizeres “Coelhinha, olha o presentinho que deixei para você” acompanhado do desenho de uma carinha feliz feita de sangue. – Ah Deus... – ela disse. Os gritos continuavam sem parar, mas não vinham dele e sim das caixas de som que ficavam em cima do palco. Ele já estava morto. Ela desceu as escadas o mais rápido que pode, subiu no palco e jogou a placa no chão. – Não pode ser... Por Deus, não! - ela começava a chorar de enquanto o abraçava. – Isso não pode estar acontecendo, merda! Era Douglas, seu então ex-namorado, pendurado por grossos fios de arame farpado em uma cruz. Estava todo machucado, os dedos de seus pés se foram. Aparentemente, o assassino havia cortado dedo por dedo com uma faca de cozinha que fez questão de deixar cravada bem em frente do cadáver. Mas não fora isso que o matara, ele
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deve ter se debatido com tanta força enquanto era torturado que os fios de arame farpado fizeram o trabalho cortando seus pulsos. Ele sangrou até morrer. – Você não sabia o quanto era importante para mim... Eu nunca te dei uma chance pra explicar, deveria ter dado mais uma chance para gente – ela caiu de joelhos em frente do corpo. Um flash captou o momento, mais uma vez era como se Don Abel estivesse debochando dela. Cosmi se aproximou e ficou ali parado sem saber o que dizer, já que nada do que dissesse poderia fazê-la se sentir melhor e ele sabia disso. – Você falou que ele apareceu na festa ontem, que houve uma briga – ela soluçava. - Por favor, me fala que o que aconteceu. – Tem certeza? Hum, bem nós estávamos no bar conversando quando ele chegou. Até aquela hora, você não estava me dando a mínima, mas depois que ele apareceu tudo mudou. Ele encarava o chão claramente sem jeito. – Você me beijou sem mais nem menos e para falar a verdade, eu tinha ficado bem surpreso. Mas depois percebi que era só para fazer ciúmes para esse cara, na hora eu pensei “por que não”- suas bochechas coraram. - Esse seu namorado ficou muito puto, ele vinha em nossa direção com uma cara de quem estava disposto a brigar. Pela primeira vez desde que eu tinha te conhecido, você estava se divertindo de verdade.
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Agora foi a vez de Ellen olhar para o chão e se sentir envergonhada. Ele continuou. – Antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, a Bárbie me mandou te levar embora e foi lá segura-lo. Não vi muito bem o que aconteceu porque já estávamos de saída, me parece que os seguranças entraram no meio. Sei lá, acho que ele deve ter seguido a gente e acabou aqui. – Então a culpa foi minha... – Espera um pouco, não tem nada a ver. Ela continuou como se não o escutasse mais, se a intenção de Don Abel era lhe quebrar o espírito, finalmente ele tinha conseguido. – Se não tivesse ficado com esses joguinhos idiotas... Se tivesse parado para ouvir, quem sabe ele ainda estaria vivo... – disse ela entrando em um estado catatônico. Foi quando os gritos pararam e deram lugar a 5º sinfonia de Beethoven. – Merda, deve ser o cara das facas, ele deve estar vindo. Nós precisamos nos esconder agora mesmo! – disse Cosmi, aflito. Entretanto Ellen continuou ali parada olhando para o corpo do namorado, dava a impressão de estar em um mundo bem longe daquele onde não se dava conta do perigo. Cosmi tratou de pega-la pelo braço e a arrastou para debaixo de uma larga tribuna de mogno que estava esquecida do outro lado
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do palco. Don Abel abriu as portas do anfiteatro com um pontapé, se tinha alguém que sabia fazer uma entrada espalhafatosa era ele. Dessa vez carregava uma afiada machadinha junto com um largo sorriso nos lábios. Sua presa estava perto, ele podia senti-la e isso fazia com que a adrenalina da caçada tomasse conta dele. Seus sentidos estavam mais afiados do que nunca, conseguindo até sentir o gostinho, não demoraria muito e poderia ver a esperança deixando os olhos dela. Chegou perto do palco, examinando cada centímetro em busca de sua preciosa coelhinha. Ellen e Cosmi continuavam espremidos embaixo da tribuna, podendo ouvir os pesados passos se aproximando. Cosmi tentava abafar o som de sua respiração ofegando com a mão enquanto Ellen continuava sem reação. – Coelhinha, eu sei que está se escondendo – estava cada vez mais e mais perto. - Esse fraco era seu namoradinho? Nunca tinha visto alguém implorar de forma tão patética, quase o deixei ir por pena – deu uma gargalhada- mas acabei mudando de idéia. Quando ele se preparava para chutar a tribuna para longe, a música parou. Don Abel olhou em volta sem entender. De repente a orquestra clássica parou... E pesados acordes de guitarra e uma voz gutural que gritava “Roots, bloody
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roots! Roots, bloody roots!” passaram a ecoar pelo anfiteatro. Aquela música do Sepultura conseguiu matar completamente o clima. Para que a caçada tivesse sentido, tudo tinha que ser perfeito, qualquer detalhe fora do lugar colocaria tudo a perder. Quem quer que tenha estragado seu momento iria sofrer, pois Don Abel não era o tipo de homem que perdoava. Cravou a machadinha no chão em um gesto raivoso. Saiu da sala com um gosto amargo na boca, mais do que qualquer coisa no mundo, ele queria ver o sangue desse novo adversário derramado no chão. –Alguns minutos depois, Cosmi deu uma espiada para ver se já era seguro sair, as caixas de som faziam silêncio agora. Pelo visto aquele maluco já tinha ido embora e não dava nenhum sinal que voltaria tão cedo. Ele puxou a moça para fora da tribuna. – Ei você precisa acordar – deu tapinhas em seu rosto. – A gente precisa fugir, lembra? Não adiantava, ela continuava como uma boneca sem vida. Cosmi estava cansado, mas o que poderia fazer? Não poderia simplesmente deixá-la para trás , então tratou de carregá-la em suas costas. Os dois voltaram para o caminho que os levaria para a saída e só mais um pouco e estariam a salvo. – Sabe o que é engraçado? Eu nem queria ter ido à festa on-
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tem, só fui porque era melhor do que ficar em casa assistindo algum filme velho de terror – disse Cosmi rindo. – Você gosta de filmes de terror? Nenhuma resposta. – Deixe-me adivinhar, você é do tipo que gosta daqueles romances bem melosos, certo? Era inútil, continuava muda, ele se deu por vencido. Só Deus sabia o que se passava na cabeça dela e ele nem queria imaginar como era perder uma pessoa amada daquele jeito, apenas sabendo que estava fazendo o seu melhor e isso não era o suficiente. Caminharam mais uns cem metros e dobraram o corredor, já podendo ver a porta de emergência. Conforme foram se aproximando, uma nova galeria de fotos estampava o quadro de anúncios pregado na parede. Ele a colocou no chão e começou admirar o quadro. As fotos estavam divididas em duas colunas, “Os que caíram” continha as fotos do rapaz Isaque, o cara bem vestido, a jovem de olhos azuis e Douglas. A coluna seguinte, “Os que ainda lutam” só tinha uma foto. Ellen. Quando ela começou a encarar aquelas imagens, algo a tirou de seu estado vegetativo em um estalo. As peças começaram a se encaixar em flashes e imagens passando em câmera lenta dentro de sua mente, a resposta era tão simples e estava
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bem na sua frente. Tudo começou a fazer sentido naquele momento. Ela tirou a adaga que estava presa em seu cinto e em um salto a colocou contra o pescoço de Cosmi. – Mas o que você está fazendo? Ficou doida de vez? – Era você o tempo todo! Você é o rato que me trouxe aqui! É você que está ajudando aquele desgraçado a matar todos nós. – Não sei do que está falando – sua voz começara a tremer – Você passou por muita coisa nas ultimas horas e não deve estar pensando direito. – As fotos, filho da puta – pressionou a lâmina e o sangue começou a descer. – Todo mundo que passou por essa escola hoje tem uma maldita foto na parede, todos, menos você! O jovem estava com medo, pelo menos isso era sincero, poderia reconhecer aquele semblante atemorizado em qualquer lugar. Será que realmente estava certa? Talvez sua cabeça já estivesse tão ferrada que ela tenha fabricado toda aquela explicação em uma tentativa desesperada de achar uma explicação lógica naquele dia insano. Quem sabe era intenção de Don Abel desde o principio e ela estava dançando a música dele mesmo que sem querer. Por um momento ela vacilou... Já não tinha mais tanta certeza. Foi quando um murro lhe acertou nas costelas e ela de-
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sabou, a adaga saiu deslizando pelo chão. Don Abel tinha se aproximado tão sorrateiramente que ela não tinha notado até ser tarde demais. – Minha nossa! Sabia que essa coelhinha iria dar uma boa diversão! – Don Abel jovial como sempre. – Bah! Você só diz isso porque era eu que estava com a faca no pescoço – Cosmi respondeu de mal humor. – Olhe pelo lado bom, coração, mais um pouco e a vitória dessa rodada seria sua, você quase conseguiu guiar ela até a saída. É uma pena, adoraria ter visto a cara dela quando descobrisse que a porta de emergência está lacrada. – Seu doente... Desde a festa até agora, tudo não passava de uma encenação. – disse Ellen para o Cosmi. – É por aí mesmo, vadia, e eu só perdi por sua causa. O rapaz lhe desferiu um chute no estomago que a fez deitar de vez. – Tsc tsc tsc, não seja rude, lembre que espólios são para o vencedor - pousou a grandes mãos nos ombros do dele como se estivesse fazendo um carinho. - Agora seja bonzinho e me traga uma corda. – lhe deu um tapinha no bumbum antes dele sair. Mostrar medo só daria mais prazer para aquele ogro e Ellen sabia disso. Cansara de ter medo e mesmo que cada parte de seu ser quisesse gritar, não poderia lhe dar esse gostinho. – Não está se esquecendo da música clássica ou de mais alguma
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das suas frescuras? – Ah minha querida – aproximou-se a dela e posou seu sapato sobre a mão enfaixada e ela gritou. – Infelizmente estamos sem tempo para dar atenção a esses detalhes, mas garanto que seu tratamento vai ser todo especial. Quando notou que Cosmi já voltava com a corda, ele aliviou a pressão sobre o ferimento dela. Cosmi como um bom servo, a amarrou e tratou de carregá-la. – Vamos logo Cosmi, a sala 502 já está pronta. –O local que eles chamavam de sala 502 aparentava ser uma mistura de sala de vigilância com enfermaria. Diferente de todos os outros lugares pelos quais eles tinham passado até então, aquela sala era asseada e bem iluminada. Estava equipada com armários cheios de ampolas, seringas e instrumentos médicos, diabos, tinha até um desfibrilador. O que mais saltava a vista era uma cama preparada especialmente para receber as almas infelizes que dessem o azar de chegar até ali. Era reclinável, com amarras que serviam para prender os membros dos convidados mais afoitos. Na extremidade direita estavam vários monitores que mostravam tudo o que acontecia dentro da escola, era assim que ele sempre sabia onde como encontrá-los. Cosmi a pôs na cama e amarrou seus membros com grossas tiras de couro. Ela até tentou resistir, mas já tinha chegado
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ao seu limite. – Você encontrou o intruso que estava mexendo com a música? – perguntou Cosmi. – Infelizmente o covarde desapareceu antes que eu pudesse pega-lo. Quem quer que seja não tem como ir muito longe, pois o portão principal está com a trava eletrônica. Tirou o paletó e puxou uma cadeira para se sentar ao lado da cama. – - Como eu já descartei todos os corpos, essa é a ultima questão que falta ser resolvida. Importa-se de tomar conta disso para mim, coração? Por mais sutil que pudesse parecer, a relação daqueles dois ia muito mais além do que somente cúmplices de assassinato. – Ah, e Cosmi, não se esqueça de levar uma arma e o walkietalkie para o caso de haver algum problema. O rapaz ficou meio contrariado, desejando ver o mestre trabalhar naquela mulherzinha escandalosa, mas mesmo assim não discutiu e saiu para cumprir sua tarefa com uma pistola presa no cinto. – Não fique magoada com ele, coelhinha, é um bom garoto – falava calmamente enquanto colocava uma mordaça em sua boca. – Eu cuido dele desde que era só um trombadinha perdido nas ruas e ele sempre teve esse gênio ruim. Sabe como são as coisas, ninguém gosta de perder, não é?
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Ellen respondeu praguejando mil e um palavrões desconhecidos debaixo daquela mordaça – Agora vamos dar uma olhada nesse seu machucado, imagino que deve estar doendo um bocado. Ele retirou o curativo feito de trapos que cobria a mão dela, a ferida começara a inflamar e a ganhar tons de um roxo escuro. – Olha para isso, está terrível. Vamos ter que cauterizar, a ultima coisa que você vai querer é uma infecção. Don Abel pegou uma caixa de ferramentas que estava debaixo da cama e retirou um daqueles ferros usados em soldas de estanho, um fio preto descia até uma bateria de carro cuidadosamente posicionada junto à caixa. Os olhos dela acompanhavam a ponta prateada que ia para lá e para cá enquanto ele falava, já estava fumegante. No momento em que o aço quente entrou em contato com o toco de seus dedos, ela descobriu um novo significado para a palavra aflição. Não importava o quanto Ellen se debatesse ou gritasse, não poderia fugir daquela dor lancinante. Era o inferno em vida. Aquele calvário não deve ter durado mais que cinco minutos, mas para ela pareceram cindo horas. – O cheiro de carne queimada encheu a sala. – Você está fazendo muito drama, foi uma só picadinha– ele não disfarçava seu contentamento. - Um já foi, agora só faltam
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mais dois. O assassino estava tão entretido em saborear o momento que não notou quando as telas dos monitores de vigilância, uma de cada vez, ficaram escuras. Ele limpou o suor da testa e começou outra rodada de cauterização. Certa vez Ellen assistiu em um programa de TV, uma entrevista com sadomasoquistas que diziam que depois de algum tempo, a dor intensa passa a se transformar em prazer seguido por uma profunda euforia. Como uma droga, eles diziam. Na época ela achou que eles eram só um bando de gente excêntrica querendo aparecer, agora ela tinha certeza que eles eram um bando de retardados mesmo, pois ainda não sentia nada além de agonia. – Don! Don, responde, por favor! A voz angustiada no walkie-talkie era de Cosmi. Aquele clamor por ajuda fez com que a sessão se tortura fosse bruscamente interrompida. – Calma... Calma, fale mais devagar, o que... – Eu preciso de ajuda, porra! Ele está atrás de mim, Deus do céu o que eu faço?... Ah merda – um baque abafado e depois silêncio. – Cosmi! Ei, responda! Cosmi! Não obteve resposta, a expressão de prazer havia deixado
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seu rosto e ele tremia, mas não era de medo e sim raiva. Tanto raiva que inconscientemente esmagou o walkie-talkie em uma das mãos. Don Abel se virou para os monitores em busca de respostas, porém não obteve nenhuma além do seu próprio reflexo. Atirou o que restava do rádio na parede quando subitamente as luzes começaram a piscar. – Esse desgraçado vai implorar para morrer – rosnou. Ele foi até o armário que ficava próximo aos monitores e retirou uma pesada mala de couro. Ao abri-la revelou um verdadeiro arsenal de facas, adagas e laminas de todos os tipos. Escolheu o cutelo para dar fim ao ser atrevido que ousava desafiá-lo. Foi então que as lâmpadas se apagaram e Ellen não conseguia enxergar nada dentro da sala. A porta abriu e fechou em uma pancada violenta. – Ah você veio conhecer a minha lâmina, pode vir – dizia o assassino em um tom desafiador. – Vou obrigá-lo a comê-la, seu maldito! E depois vou tirar uma foto para deixar no meu mural. Passos largos correram pela sala, parecia que vinham de todo lugar e o mesmo tempo de lugar nenhum. Uma ampola se espatifou no chão e Don Abel deu um pulo, estava tenso, não gostava que brincassem com ele.
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Ellen sentiu a presença de alguém perto de sua cama, conseguindo ouvir uma respiração bem devagar. Dedos passaram suavemente por seus cabelos, aquilo era estranho, pois ela não se sentia ameaçada e muito menos com medo. Ela balbuciou alguma coisa pela mordaça. – Cala essa boca, vadia, ou eu corto os dedos da outra mão! Apareça covarde! Você acha que eu tenho medo do escuro? – E quem disse que você precisa ter medo do escuro? - aquela voz era pura malícia. - Você só precisa ter medo de mim. A luz voltou a piscar e lá estava ele bem atrás de Don Abel segurando um objeto cumprido que aparentava ser uma barra de ferro. Era difícil ver direito como ele era, mas a diferença entre os dois era gritante, o vulto tinha quase a metade do tamanho do assassino. O desconhecido acertou um golpe na dobradiça da perna que fez com que Don Abel perdesse o equilíbrio e cai-se de joelhos, era evidente o espanto do monstro que ainda tentou girar o braço e atingi-lo com o cutelo. Foi inútil, em um movimento rápido o vulto desviou da lamina e deferiu outro golpe no estômago que mandou todo oxigênio para fora. Esse último golpe foi seguido por mais dois igualmente mortais bem na cabeça que fizeram o gigante cambalear e depois cair. Ellen acompanhou toda aquela cena de olhos arregalados e estaria de queixo caído se não fosse pela mordaça.
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Assim que a luta terminou, a luzes se estabilizaram e finalmente ela conseguia ver a face do desconhecido. Ele ainda usava a mesma camisa branca – agora com uma enorme mancha vermelha no peito – e sua horrível gravata listrada. Isaque estava vivo e respirando, mas como era possível? Ela o tinha visto ser morto como um porco no abatedouro, ninguém poderia sobreviver a uma facada direto no coração. – Então deve ser assim que Davi se sentiu depois de chutar o rabo de Golias – ele soltou a barra de ferro. – Acho que eu merecia pelo menos uma salva de palmas. Aquele que estava lá de pé não lembrava em nada com o rapaz desesperado que a mandou correr por sua vida, tinha um ar confiante e indiferente que fazia com que ele parecesse muito mais velho. Seus olhos eram estranhos, um deles estava completamente tingido por um vermelho escuro, como se tivesse tido um derrame ocular. Tal detalhe dava um aspecto bizarro de sua aparência. Isaque e aproximou-se dela e soltou as amarras deixando a mordaça por último. – Moça você está b... Ellen rasgou os botões da camisa dele revelando um enorme buraco, por trás de costelas e finas camadas de músculos podia se ver o coração batendo bem devagar. Existia um tipo de casca em volta da ferida que dava a impressão de estar cicatrizando
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de dentro para fora. – Não pode ser... – Ei, nada de tirar as roupas no primeiro encontro –tampou o peito com a mão – é melhor você descansar um pouco, vou procurar um jeito de tirar a gente daqui. Ele foi até o painel de monitores, um daqueles botões deveria ser a chave para abrir o portão de saída. – Isaque, certo? Você voltou por mim... O rapaz continuava encarando o emaranhado de botões e alavancas sem dizer uma palavra. – Como é que você sobreviveu? É simplesmente impossível... – Acredite em mim quando eu digo que quanto menos você souber melhor – virou-se para ela. – Deve haver algum tipo de cartão magnético para abrir o portão, você não viu nada parecido por aí? Antes que os dois percebessem, Don Abel avançou sobre Isaque com a fúria de uma fera e abraçou o rapaz como um urso. A pressão dos músculos desproporcionais fez com que Isaque soltasse um berro de dor, seus pés não tocavam mais o solo. Dava para ouvir seus ossos começando a quebrar. Aquele urro de agonia logo foi substituído por um rugido, ele cravou seus dentes no nariz de Don Abel arrancando-o quase por inteiro.
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O assassino até tentou continuar com a pressão, mas não conseguiu suportar a dor e o soltou sua presa. Isaque caiu no chão vomitando sangue. Aquele ultimo golpe o levara ao limite de suas forças. – Vou enfiar esse facão no seu rabo, filho da puta! – Ellen pulou sobre Don Abel cravando o cutelo nas costas dele. Como uma vaqueira montada em um touro bravo, ela se segurava no pescoço dele se preparando para dar a estocada final. Essa arrancaria a cabeça daquele desgraçado de uma vez por todas. Antes que ela pudesse terminar o pesadelo, ele a pegou com as duas mãos, suspendeu sobre a cabeça e a jogou com toda força contra o armário de remédios. Don estava ofegando, há um bom tempo não tinha um desafio tão formidável, mas por que não estava feliz? Deve ser porque finalmente estava correndo um risco real de morrer. Para o seu azar, ele não era o único que sabia ser sorrateiro. Quando ele olhou para baixo, um eletrodo estava no seu peito e o outro em seus testículos, Isaque os segurava enquanto sorria. – “Afastar” imbecil. Desfibrilador ligado na potência máxima, o aparelho apitou e então soltou a corrente elétrica. A carga foi tão forte que arremessou ambos para longe, caindo inconscientes.
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Ellen se arrastava pelo chão e ainda precisava pegar o cutelo e finalizar aquele monstro antes que ele levantasse de novo... Não conseguiu, desmaiando antes disso. –Wise man say only fools rush in – cantava Elvis no rádio – But i can´t help... Falling in love with you. Aquela canção o acordara no meio de um sonho, mas já não conseguia mais lembrar o que era. Quando foi se levantar para ver de onde a música vinha, percebeu que não conseguia se mexer. Seu corpo estava amarrado na cama e dessa vez não eram só tiras de couro, mas também pesadas correntes. Ele tentou se libertar ferozmente, gritou, chamou por ajuda e ninguém veio. Darling so it goes... Some things are meant to be – o rei continuava cantarolando sua suave balada no rádio. – Cara eu não sei você, mas eu adoro essa música – ele conhecia aquela voz, conhecia muito bem – Dizem que a música é o reflexo da sinceridade, talvez seja por isso que eu cante tão mal. – Isaque então saiu das sombras e se aproximou dele com um frasco que continha um liquido amarelado em uma das mãos – Por que não canta para mim... Don Abel? – ergueu a lâmina do cutelo até o ombro e desferiu um corte limpo que arrancou metade da mão do assassino. Don Abel encheu os pulmões e bradou em um grito que poderia ser ouvido na escola toda. Antes que ele pudesse ter-
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minar seu clamor de aflição, Isaque enfiou o frasco em sua boca com violência. Ele engoliu seu conteúdo, apesar do estado de seu nariz, aquele cheiro era inconfundível. Gasolina. Seus olhos lacrimejavam e o que restava de seu nariz queimava. Bebeu até a última gota. – Seu maldito! – berrou entre uma tosse e outra. – Fiquei sabendo que você tem um fetiche por dedos, à moça ali me contou - apontou para Ellen que estava deitada sobre uma pilha de toalhas, dormia um sono sereno. – Coelhinha... – Não precisa se preocupar com ela e espero que não se importe, mas usei um de seus sedativos para fazê-la dormir. Deus sabe que ela vai ter traumas o resto da vida por causa de hoje, eu acho que já foi o suficiente. Ellen dormia como uma criança que tinha passado o dia inteiro brincando em um parquinho, não havia nada que pudesse acordá-la tão cedo. As feridas estavam devidamente enfaixadas e uma tala estava colocada em sua perna esquerda. – Agora vamos tratar de negócios – disse Isaque retirando uma foto do bolso de trás. – Reconhece essa criança? O garoto era familiar, Don Abel tinha certeza que já tinha visto aquele menino em algum lugar. Usava um macacão azul enquanto brincava em uma caixa de areia.
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O tipo de foto que um pai carinhoso guardaria em na carteira para sempre tê-lo perto de si. – Não lembra, não é? A mãe desse garoto contratou meu empregador para encontrá-lo. A pobre mulher estava desesperada porque ele havia sumido há mais de seis meses. Até a polícia tinha perdido as esperanças. Seis meses? A memória ia voltando aos poucos à mente de Don – lembrando que aquele moleque tinha morrido por suas mãos - e a foto estava na sua parede para provar. Foi uma das presas mais decepcionantes que ele havia caçado, não é a toa que não se lembrava. – Vou te poupar dos detalhes chatos de como a pista desse menino me levou até você, mas eu sabia que ele já estava morto no momento em que coloquei os olhos em você. Então só precisava encontrar o corpo. Levantou-se e foi até o painel de monitores para usar o cartão que tinha apanhado no paletó de seu inimigo. Depois que o cartão deslizou pela fresta magnética, uma luz verde se acendeu no painel. – Não adiantava te torturar e nem aquele seu amigo. – Cosmi! Onde ele está, o que fez com ele? – seu coração pulsava rápido como uma locomotiva. – O cara que parecia o Antonio Banderas? Quebrei o pescoço dele – deu os ombros com indiferença.
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– Não! Desgraçado, eu vou te matar! – ele até começou a se debater na cama em um acesso de fúria, mas parou depois de levar um soco no nariz. – Como eu dizia, não importa o que eu fizesse, nenhum dos dois me contaria nada por causa do orgulho que sentem por esse joguinho de merda de vocês. Então eu tive que morrer para conseguir descobrir onde é que vocês desovavam os corpos. Os cadáveres eram jogados em covas rasas atrás da caixa d´gua e cada um era marcado com um objeto pessoal da vítima. A cova do garoto tinha um pequeno robô de plástico. – Agora chega, se continuar falando assim, vou ficar parecendo um desses vilões de filmes de espionagem que contam o plano todo só para dar tempo do herói fugir. Isaque caminhou até Ellen e a pegou com cuidado nos braços. Ele se preparava para deixar a sala quando Don Abel gritou. – Isaque espere! Como você sobreviveu? Quem é você de verdade? O que é você? Ele se virou com uma aura maligna pairando sobre seu rosto. – Meu nome não é Isaque, eles me chamam de Avohay... Em um clique acendeu o isqueiro e o atirou no chão, as chamas se espelharam rapidamente até a cama. Don Abel co-
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Conto 6. A pianista, o Assassino e um Avohay
meçou a queimar de dentro para fora, alguns podem dizer que esse era o fim que ele merecia.A escola logo se tornou uma bola de fogo gigante, em poucos minutos não passava de escombros e cinzas. Quando os bombeiros chegaram ao local, encontraram Ellen dormindo em um banco de granito na calçada. Foi a ultima vez que dormiu sem pesadelos.
Epílogo –Recebi o relatório do meu cara na policia hoje de manhã e não estou nenhum pouco satisfeito - dizia a voz impaciente ao telefone. – Por quê? O senhor contratou nossos serviços para encontrar a criança e isso que meu agente fez. - disse a voz infantil. – Eu sei! Você não deveria ter mandado um daqueles seus imortais malucos... Como é o nome mesmo? – Avohays. – Isso mesmo, era para encontrar o garoto - levantava mais a voz - não matar todo mundo e queimar o lugar. Pelo menos não de graça, eu poderia ter cobrado um extra da mãe do moleque. – Se você dá uma volta com um escorpião, não espere acabar sem nenhuma ferroada...
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– Odeio quando você fala assim. – Eu sei. - a voz infantil tinha um sincero prazer. – Posso te perguntar uma coisa? – Claro. – Como você paga esses caras? O que alguém que não pode morrer pode querer? – Ah isso é simples - deu uma risadinha - ele só quer o direito de morrer. Desligou o telefone. FIM
Agradecimentos Gostaria de fazer um agradecimento aos amigos William Osterkamp, Patrick Anonioli e Carlos Lira pela consultoria e pela paciência. Ao colega Edi Reus por ter me ajudado a botar as ideias no melhor caminho possível.
Conto
7 Caracol
Luiz Mariano
“Louis Kerol.” C. Miranda
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Conto 7. Caracol
À C., que me ensinou a sentir raiva.
Apresentação A mulher de chapéu se fecha na concha do medo. Forte por fora, Tainá se esquiva. Tudo que quer é que um príncipe principie a libertação: a fortaleza inexpugnável espera ser violada. Chora por não deixar ser amada. Cora; decora paisagens com seu jeito estudado nos sonhos. Mas que não se deixe enganar: trata-se de uma espontaneidade, ainda que regada por olhares tenros e ameaçadores. São os outros, fazendo e desfazendo os atos, os nós. Aqui cabe uma oração bichada: Outros, roguem por nós! Tainá e Carolina: dois nomes que se misturam, o real e o imaginário, o acerto e o errado, a trave e a redoma: o mistério de uma mulher que teima em fugir do que mais quer.
Abstract Um baile de máscaras, uma cidadela de vinho; Sodoma e não morra. A vida é um teatro, a morte o camarim, Deus no camarote, as roupas de cetim.
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Mulheres, vikings, homens espadachins; o tempo é contemporâneo ao espaço. Ou tudo ser pela metade, Deus joga os dados já sabendo os resultados. As coisas existem porque pensamos. Um conto não sobrevive sem a vida. Não há morte, só histórias. Viver é um baile de máscaras.
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Conto 7. Caracol
Personagens Amor Pai do filho do Espírito Santo Aurora Rosa-louca (Hibiscus mutabilis), planta da família das Malvaceae Cigano Cliente da Baiúca Sucos Giovana Uma das tebanas, comparsas de Tainá Lara Outra das tebanas, famosa pela beleza Morte Fugitiva de uma das histórias do Penadinho da Turma da Mônica Olhos negros O Homem Oolá Aquela que tem uma tenda, também conhecida por Samaria Ooliba Irmã de Oolá, amante de Ooi, nome de Jerusalém dado por Ezequiel Paulo Cientista, professor doutor da Fudesc, a universidade que faz bem Rapaz desengonçado e namorada NPCs de jogo eletrônico do Super Nintendo Tainá Musicista Tebanas (Tibetanas) Batalhão sagrado de Tebas numa nova versão Teófilo Mestrando, cagando e andando, um dos cientistas Viking Pedaço de bom caminho
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A cuja – Quê que é que tem na mala? – “Mala”. – Ela só sabe falar esse tipo de coisa, desse jeito, ordens. E essa festa que não começa, cadê? Mala. Era a bolsa. Bolsa de mulher: os ritos.
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I A Festa A porra do menino Jesus tinha inaugurado o acréscimo de edifícios difíceis: comerciais. Naquele bairro, tão fresco, calmo tal qual talco de criança miúda. Perto dali, vermelhos carros sussurravam sibilantes. Que coisa insistente é um carro. Uma caixa metálica que se move. E pessoas, pesos andantes. Carros e pessoas, é esse o erro que consta nos analistas de cidades. E nessa noite um baile estava marcado no relógio de pulso. Não seria tipo aquele que teve outrora, com cada um com fone de ouvido, cada qual com seu zumbido, para raros, como é tudo com preço hoje. Não, seria um baile de máscaras. Algumas delas de rosto inteiro; outras, oferecendo-se a beijos. Tainá iria ao baile. Tainá? Aquela. Que numa espiral de lisonja, desenlace e fuga aprisionou-se na corda bamba da negação. Tainá, que beijava, sentia e suava, corava moços e donzelas, lírios e capelas. Tainá, amiga das tibetanas, vulgo tebanas que por caprichosa que é, renomeou-as. Tainá e o altíssimo, veículo de graças, danças ante a seu manejo com as mãos musicais. Tainá e suas mãos. Tainá e seu ódio mortal, quieto, pelos homens e suas guerras; Tainá e o pecado da virgindade; Tainá,
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Conto 7. Caracol
que poderia ter escrito o diálogo de 8 ½ entre Mastroianni e Claudia Cardinalle, aonde o homem em vão fala, articula, argumenta, claro!, as coisas devem ter sentido. Módulo, direção e sentido. E a mulher, seu eco, razão dissecada, Eva, maçã, responde: “Porque não sabe amar. Porque não sabe amar. Porque não sabe amar.” Tainá e a música; a sensibilidade; a alquimia das esferas. Sim, Pitágoras; as esferas seriam ex-feras, feitas monstros de bola? E o giro produzindo música. Será plágio de Tolkien? O homem plagia Deus, ora e trai, dedilha cordas e toma mais um drinque. “Antes de tudo, a música” (Paul Verlaine). Mas não somente Tainá iria ao bailado. Sim: As tebanas, mulheres profanas. Cada mulher é um cadafalso sagrado. Cabe ao homem ser enforcado, morrer de asfixia entre duas pernas. Mas voltemos aos possíveis e prováveis integrantes de time de balalaicas, ou aspirantes a bailarinos de mascarados (Pense como uma noite dos mascarados com colombinas perdidas num saudoso lago Baikal); O viking, porte de homem, homem mesmo, não esses bê-da-merda que olham fiapos de pelos nalgum sovaco feminino e fazem cara de nojo; não, homem mesmo, capaz de tocar guitarra sem parecer boiola, capaz de fazer mulheres socarem tetos de carro e gritarem só pela sua presença. A Morte também foi convidada para o baile. Porque tudo acontece no baile: o tio bebe, a vizinha dá, o pa-
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drasto casa outra vez, a mãe trepa com o namorado da filha que posta o vídeo na internet onde outros homens vão descabelar o palhaço para a continuação da glória da humanidade. E no ônibus, os rochedos de mesma cara, a indiferença, o baile: as máscaras. Mas este seria um baile diferente: mais literal talvez. A música, eletrônica. Jazz, The Smiths, sons de Thaizete, tudo não sendo de São Francisco de Assis. Meia luz miada, como devem ser as festas: frestas da lua. E onde? No “Rio vermelho”, um terreno baldio, a modo de “raves”, aves de rapina que sujam e cicatrizam o solo antes fértil, agora cheio de bitucas e purpurina (Salve, Bituca!). Era o mês de ramadã, o ar carregado de verão, mas num inverno ameno, harmonioso com o aço (a humanidade é feita de aço. Da mesma matéria que a neve. Talvez por isso aquele dito: “Winter is coming”. Aço. Belo como espada, frio como neve. Branco, negro, cinza; geada.). E a cidade aos tropeços, os homens trôpegos pelos centros, todas as cidades são iguais, ninguém olha na cara e todo mundo tem medo de morrer. E seguindo, fingem que se importam, ou nem. Agora era um quase. Era pôr do sol, algo confortavelmente explicável pela física e suas refrações de luz. Refrão divino? A ciência é bonita, os cientistas são adolescentes com espinhas. A seita começava a meia noite. Tudo deveria começar nesse horário. Não seriam todos zeros? Seita: os homens bebem, as
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mulheres esperam, os tímidos observam, os tórridos atacam, todos especiais, cuias de álcool. Princesas, safadas, rainhas, moradas. Novatas. Alcmenas. Príncipes? Também, todo homem não é um príncipe? E não são as mulheres tecelãs? Amazonas, pintores, policiais, cozinheiras. Os gênios copiam os ditos das irmãs e amadas, escrevem as biografias e caem de boca nas mulatas. E a gueixa também deseja. A festa seria um zoológico. Não tinha soneto, nem negócio. E a poesia, está no beijo? Não tinha soneto, só cheiro de dama na noite e risos, sinos (duas mulheres tocam sinos, a mulher vermelha e sua amiga esperançosa. Os sinos não são sinas. São sinastrias desejosas de contar a verdade. O que é a verdade?), entre pontapés e carícias, neste mundo onde vós parem filhos e seus netos criam ovelhas em laboratório. Ah, mas essa festinha tinha uma peculiaridade: sem celulares. Não é preciso pensar racionalmente o porquê disso. Quem tem que fazer sentido é soldado, como diria Mário Quintana. Seja como for, celulares só o Edson. Coitados dos positivistas: são otimistas que precisam de provas pra otimizar a vida. Tainá se maquiava; hoje iria arrebentar a boca do balão. Trabalho feito (Bem está o que bem acaba), prazer aceito, prazos. Iria de cabelo solto. Cabelo solto! Dá para imaginar como seria na rua, ao ir depilar suas pernas. Os abutres a nutrir sua
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honra de jiboias, boiando a esmo, horda cheia de seres pastosos: era o centro da cidade. Homens que viram o pescoço, homens casados, homens, homens, homens. Não que Tainá fosse orquídea saída das telas do Pintor; sua postura, sim, uma classe sensual, altivez, beleza autoritária, roupas encharcadas de sonho e não-me-toque. Falávamos da festa. Vinho liberado. Só vinho. “In Vino veritas”. Não foi num banquete onde pesos pesados dos maiores sábios da história se embriagavam falando sobre o amor? Desejando-se, esbarrando e gotas pra todos os lados. Lá estava Sócrates que, ao citar uma velha que lhe ensinou o dito que fecha o livro, é, esta mesma mulher, considerada pelos filólogos uma alegoria criada por Platão. Mulheres são os outros... Vinho. Monopólio dos sentidos. Tudo era, tudo é, tudo nada, cabível. Como um dia antes de partir para outro continente. Como acordar num convés e descobrir-se mãe de filhos, em alto mar, como se fosse a primeira vez. O convite: feito de papel amassado, da mesma matéria que os sonhos, forjado usando os pequenos símbolos um dia usados por Shakespeare, Homero (ou Nero), a saber: letras. “Gente absoluta, bananinha amassada, uva e noz moscada, Bahia, Barcelona, vinho e no mais, nada.” Deus Baco, Dionísio, festa das artes cênicas. Não há nada mais artes cênicas que um jantar entre duas ou mais pessoas. Parecia aqueles panfletos que
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nos chamam às festas sujas de faculdade, mas não, nem estas, nem os habitantes do castelo interior de Santa Tereza, as faculdades e os sentidos. Nem Marina, a magnífica. Marina? Tainá viu olhos negros.
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A cidade parada Era uma vez uma cidade, cheia de reis e rainhas, mandacarus e maracatus, plebeus e Amélias, e Tainá. Uma menina larga, sinuosa, forte, ácida e esnobe. Tudo que ela mais queria era um príncipe encantador, galante e lindo como um conto de fado. Pretendentes pululavam; e Tainá colecionava nãos e noites de choro, porque ela sofria da maldição de negar até mesmo quem ela queria. Mas quem teria feito essa maldição? Talvez a bruxa da floresta, uma menina minúscula, quase nula, simples e simplória, alva como uma nata de leite, que com sua raridade esquinosa apareceu um dia para Tainá. – Peça o que você mais deseja e eu te darei – disse a bruxa. – Mas aí não vai ter graça... Não é? – escarrou Tainá, insolente. – Como quiser. E num vácuo de tempo foi-se a pequena bruxa, e uma foice arranhou o destino da nossa protagonista. Talvez não haja tempo ruim; tudo pode ser questão de pontos de vista. E uma tempestade se alojou na mente de Tainá, e seus olhos claros conheceram a tristeza, a saudosa amiga dos solitários. Não que ela não tivesse onde despejar sua amargura; mendigos de beijos sussurravam gotas de mel nas noites adentro, sem jamais saciar a fome de cobertor de orelha.
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A dois, a três, homens, lobisomens, ciganos e contrários moravam na boca debochada. Sua boca era um hotel barato e confortável. E, como não podia deixar de ser, surgiu Olhos Negros na cidade. Silencioso, sem sorriso, sem perfume, sem artifício, semi-belo, mal era notado pelas cocotas, trancinhas e patricinhas. Não naquela tarde. Aquela tarde, despudorada, caminhava de mãos dadas com a mulher menina e o homem cassino. A cidade inventou uma esquina e os dois se viram. Tudo parou: Deus se esqueceu de jogar dados, o diabo tentou existir, a morte sorriu e o amor comprou pipoca e ficou na torcida. O momento não passou despercebido pela população da cidade: todo mundo andou mais devagar, um olho lá outro fechado. O cupido cego, suando borbotões, sacou a flecha, rezou trinta orações ateias e atirou. A cidade parou. Olhos negros falou: – Que horas são?
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Um homem de olhos negros. O vento espesso, o mesmo que Magus ouviu, quando, ao cume de enfrentar os três heróis a assombrarem seu covil. Magus: aquele que fez lembrar o rapaz desengonçado da existência do bolor em qualquer um, aquele que, tendo matado milhares, só pôde sobreviver pela compaixão alheia. A magia, o habitante do mundo de cima, profanador do conhecimento. Mais que amigo, mais que irmão, o mal que habita em pessoas, que religiões exteriorizam. A natureza. Magus, o deus de carne e sonho que, com olhar triste, é usado como cobaia para liderar exércitos, por qualquer ogro verde balofo cultuável. Irmão da portadora do pingente, pingo sagrado, livro sacramentado. A sombra. Tainá viu. Profeta?
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... Não era um baile qualquer. Baile. Pronunciar essa palavra em voz alta. Baile. Que palavra mais fora de moda! Parece o amor. O Amor também foi convidado para a o baile. Mas amor com “A” maiúsculo, como era entre os antigos gregos, Ente, fogueira entre aborígenes, escudo com aberturas pequenas dos Zulus; Shaka cavaleiro de ouro e herdeiro de Napoleão na tática de batalha campal; Mongol singrando mares de terra abraçando países com a rota da seda; Índios dos sete povos das missões, sempre sete; doze portões da Babilônia, Gandalf jovem, Guimarães Rosa sem ter que saber ler, Milton Nascimento escrevendo para quarteto de cordas, Bach na Suazilândia, vontade de matar a noiva para se ver livre e poder caprichos do corpo, molhar a terra com o fruto pela metade, viver na esperança de sentir dor, ver e saciar a sede de sentir o cosmos, não é aquilo tudo, é sempre uma reinvenção, um livro usado que você não acha grande coisa, olha pra capa, lembra-se daquele trecho e sorri. Um sorriso, apenas. O amor. Algo de estranho se avizinhava a esse baile. Sim, num bairro afastado, sem celulares... “isso não existe”, dizem leitores de fóruns virtuais que leem contos contados por idiotas, cheios de som e balbúrdia, significando plágio dessa frase pescada de um inglês vivido há uns trezentos anos atrás. Trezentos, os
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mesmos espartanos, que ao obedecerem a suas mulheres em algum momento em que elas disseram algo que São Paulo no seu pedestal discordaria por elas terem razão em algo: “O homem não foi tirado da mulher, mas a mulher do homem; nem foi o homem criado para a mulher, mas sim a mulher para o homem.” (primeira carta aos coríntios, capítulo onze, versículos oito e nove do novíssimo testamento.), um visitante de Esparta, zombando dos mesmos espartanos, por vê-los obedecerem, recebeu da espartana a resposta: “Deve ser porque parimos homens de verdade.” Homens de verdade. A mulher gato olhava desiludida para a sacada de seu apartamento, a conversar com a amiga: - Sabe por que odeio os homens? Nunca conheci um. – Enquanto um homem de manto sombrio plainava no parapeito, com máscara que lembrava um vampiro, ou morcego, em alguma história infantil, segundo Alan Moore. Festa sem celulares. Isso queria dizer que se algum extraterrestre aparecesse, nada de testemunhas, ao menos para nossos tempos onde o que existe é o que é provado, ou algo com notas de rodapé. Imagine essa festa, se fosse uma música, com o som de “breathe in the air”, do Pink Floyd. Ou ao menos seria essa a trilha sonora dos créditos deslizando pela avenida do televi-
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sor, cinema, algum polietileno etílico sorvido como sova para almas peidadas por determinada deidade inventada. Se podemos inventar deuses, não poderíamos criar bailes sem celulares? Mas bailes sem máscaras não. Seria matar o humano. O Homem é a máscara do divino. Ora, aconteceu que Tainá chegou à festa. Aos arredores, na verdade, música sibilante, formiga voadora penetrando ouvidos alheios. Música viscosa, aquele ar rarefeito, musgoso, que se sente quando se tangencia tal evento que precede o esporro. Como plantar sem saber o que colher. Tainá sozinha, esperava encontrada. Encontrou as tebanas (“tibetanas!”) acocoradas num carro mexido por sons vindos de dentro de si. Coisa estranha é a música eletrônica: você não vê o cantor, o instrumento. Pode? Não pode? Ora, que não é ora de orar. Quem dera se em toda festa todos rezassem antes de cometer suas cagadas, loucuras, devaneios, socos, esmurrar os sentidos com goles de cachaça, nesse caso vinho. E as tebanas faziam o esquenta, duas imaginando-se peladas junto com todas as outras, Tainá a fogosa, a doce, a estupidamente gelada entre elas. Tainá prezava a companhia delas pela ausência de máscaras; ou ao menos era o que parecia acontecer quando todos os homens estavam dormindo. Os homens se apequenavam perto das tebanas; quase todo homem se apequena perto de duas mulheres fortes e temidas. Ou se amedrontam, ou, justamente
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por isso, resolvem queimá-las na fogueira. As fogueiras feitas de plástico, teclas de computador, xingamentos, paus de ouro, pincéis atômicos, bombas atônitas. Como é misterioso o fato de que mulheres visitam seus maridos na prisão, e o contrário não ocorre com a mesma frequência. Estavam lá, em lugares diferentes, o viking, o cigano e Olhos Negros. Pausa: absorver uma caipirinha de vodka, um chocolate com amêndoas, daqueles que derretem na boca. Segue-se uma cerveja redonda. E um cheiro longínquo de maconha. Festa antes dos quarenta anos não sobrevive sem cheiro de maconha. – Segundo consta no auto da observância da população burguesa média, a sociedade emergente pós-atentado 11 de setembro não subsiste sem incredulidade. A priori, deve-se adjetivar algo calcado na realidade concreta das palavras empoladas acopladas ao discurso acadêmico. Senhores, estamos presenciando o advento do múltiplo sonoro. Podemos nos reter ao espetáculo da coisificação da crença: aqueles que acreditam precisam ver, algo tocável ao menos, por isso as imagens nas igrejas. Esta ponta de lança é um espécime artístico do mais fino arquétipo. Vejam que a nossa direita dançam seres humanos que puta quiu pariu que porra, nunca pegaremos na vida. E elas só olham pra gente porque, como esta-
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mos vestidos que nem cientistas babacas, fazemos papel de bichinhos amestrados das revistas internacionais e bolsas de pesquisa. Por isso essa babaquice de pesquisa de campo, pra nós depois escrevermos cheio de palavreado difícil, demonstrarmos num PowerPoint, sempre colocando a porra de um “dois pontos” no meio (“o baile de máscaras: metáfora do viver em sociedade.”) e ganharmos pontos no Lattes, trairmos nossas mulheres com nossas empregadas e falar mal dos padres pedófilos, ó Teófilo... -Era o que diria um dos prováveis integrantes do baile, chamado Paulo. Outros personagens possíveis eram os habitados nos palácios de cada ouvinte ou leitor, que tem cada um sua própria conduta, suas inexploradas matas, jardins fechados, anjos e domínios escondidos. Gente que diz do inconsciente, e não sabem que esse foi um morador do nosso reino que, por sua vez, foi inventado por um tal de Freud, e como somos um bando de bois a deriva no rebanho, dizemos que existe inconsciente, que existe algo em nossas cabeças que não conhecemos. Mal podemos prever as coisas a que somos reservados!
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Carol No dia da música Nasceu uma música Chamada Carol Faceira e esperta Hoje ela completa 15 anos Espero, Carol Que cada nota que você toque Seja na música Seja na vida Seja como você Uma tempestade Uma discussão Que termina Num arco-íris Num perdão Num abraço
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Mas falávamos das pessoas do baile. Olhos Negros. Um homem. Pelos na cara. Qual seria o muro que separa os homens das mulheres? Forjado, esse muro? O que é intrínseco? Não é possível que exista alguém que acredite o homem ser superior a mulher. Ou a mulher ao homem. E a gravidez? Esse ovo de carne que quase mata tantas moças, frágeis como moscas, para dar a luz, para depois serem espancadas por seus maridos, estupradas por suas saias justas, torturadas pela depilação. Olhos Negros era alguém longe. Compenetrado, penetrante. Sempre sério, não sisudo; um sorriso era oásis. Moreno. Duro, rocha móvel, jovem, hóspede de alguma alma feito solo de guitarra distorcida. Poucas palavras, precisas, preciosas, teria vida normal? Presença soberba. Parecia entortar as coisas com o peso de sua andança, sua segurança, seriedade, porrada de bateria seca. Já o cigano era como se fosse um rio caudaloso em busca de deserto. Tudo era movimento, brinco de argola, movia-se em câmera lenta nos olhos de Tainá. De compleição boa, saudável, transpirava diversão escudada pelas roupas tranquilas, despojado de vitrines: era o que era, tinha tinta, manchas, o quadro movediço. Ao longe, um robô anunciava a festa; talvez, uma voz eletrônica. Dessas que ouvimos quando vamos dormir, miúda,
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que alguns de nós pensam ser Deus, vozes graúdas, cheias de secura e fineza instrumental, feito movimento de passarinho, modos retos, sem moles gestos. Homens, mulheres, o Amor, a Morte, Tainá, o cigano, o viking, Olhos Negros, as tebanas, os cientistas, os habitantes do corpo do leitor ou ouvinte, e temos o que seria, será e é uma partida de 90 minutos calculada pelos físicos, astrônomos e astrólogos como o acontecimento descrito nessas linhas. O vinho era liberado. Tudo ficava mais berrante. As máscaras foram cedidas pela organização do evento. Os organizadores do evento eram, a saber: (Ah, não podemos nos esquecer de que é lua cheia! E que nesse momento, na festa, está tocando James Brown. Nada melhor que sacolejar os esqueletos. Ver várias pessoas em movimento é algo que dá sentido à vida. Para frente, para trás, Paráclito nessa hora está montando guarda na mureta das almas, os corpos. Mas esse guarda intrépido nada pode fazer senão rezar pela observância dos andamentos norteados pelo livre arbítrio). Alguém andou usando o computador. Dor, dor, dor, é uma possível versão do refrão Love, Love, Love. Segue a lista dos organizadores: Deus; O diabo;
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Bruxa Onilda; Debussy & Satie; Nagô; O leitor/ouvinte; Alguém da fofolândia; O caminho do meio; O tcc? 4:33; Música que o escritor está escutando no momento. E a faculdade? Não seria uma das organizadoras do evento. Não. Faculdade: letras num fundo branco, canudo, passar de ano, vestibular, semestres, pedaço de mim. Enfim, jogar tudo pro alto, poder fumar um cigarro sem precisar, adiando a entrega. Como ouvir falsete em contraponto ao destino. Destino, traças. Enfim, finado semblante acoplado a uma banca julgadora. Enfim, fim! Ah, meus eus! Correr atrás do prejuízo, longe do juízo, do justo ser. Que calem a boca todos aqueles que não sabem o que é calçar botas quando se está onde Judas as perdeu. Falta pouco, porque tudo tem data, inclusive atos. Faculdade. Depois, o quê? Como avistar campânulas depois de atravessar a parede de escudos, aquele monte de estrume circundado por esôfagos e órgãos. Não perdem por esperar! Soldados já frios, japas, japonas pra aquecer no inverno, pernas pra que te quero! “The name more cotaded in the house”...
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Não mais! “Pega esse diploma e enfia no cu!”, diria algum a ninguém. E o que dizer das possibilidades da festa? Soar como gaita francesa tocada por belga. Gritar, simplesmente. Esquecer de que agora não há mais depois, viagens e carnavais à espera. Crases e ABNT que se explodam, alguém tem que foder. Ou pelo menos dizer que vai, porque o que importa é que o banco imaginário dá dez por dentro de furos e alguém ri. As tebanas, é claro; as tebanas. Aquela que ri, que com seus cachos tirava Tainá do sério, rebolante, como se desse pra ver velhos carvalhosos, barbudos dançadores, like a boss, tios de outra família com cabelos longos em alguma outra festa há muitos anos atrás. Giovana, uma delas. Daquelas... Tainá viu o cigano e lembrou-se de Jeff Buckley. Instantaneamente, num movimento rápido de cabeça, com voz autorizante e austera: – Giovana, vou fazer uma pergunta pra você. – A pergunta mais importante da sua vida! – Quantos dedos têm aqui? Ao mesmo tempo, yin e yang passeavam, um soturno, outro alegre. Morte e Amor. Deus e diabo na terra da lua. Riamse ao observarem ao mesmo tempo os cientistas; Teófilo, mestrando em literatura, Paulo, professor doutor versado em latim. Ignorava o sânscrito. Amor, para Paulo, era ocitocina,
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Conto 7. Caracol
sextinas e outras inas. Para Teófilo, o “prof”, como insistia em chamar, era sábio como mula e inteligente como livro. Livre? – Bem aventurados são os praticantes de exercícios na arte da independência das mãos, não, Prof? Aí tá um dos segredos da vida. Eu só acho que tu fica viajando nessa, olha aquelas ali prof, quê que a gente pode fazer com um bando de Laras dos doutores Jivago? Divago, vago, vacúolo contrátil. Isso que dá não transar a nove anos, hein prof? Carácoles! Era Lara, mulata-oi-oi-oi-gen-gent observada tanto por Paulo quanto por Teófilo. Lara, que olhava Tainá, que seguia o viking, que tocava guitarra no ar demonstrando como era o acorde para Olhos Negros, ereto. Morte e Amor bebiam, perdidos, zanzando pelos bosques de gente. Tainá esperava a resposta de Giovana; -Fofolândia, tu ouvisse, não visse? E então, quantos dedos... Giovana? Você está... Você... O rapaz desengonçado escrevia tudo sem saber nada; movimentos, não era necessário entender, só escrever, plagiando os grandes, enchendo linguiça e citando músicas. O mais importante era que o livro que ele escreveria engatilharia o relógio do tempo, o ouriço gigante enfim seria derrotado. As horas não se passavam e tudo girava em torno dos dez mil, descritos por Xenofonte, mercenários gregos que lutavam por sua vida em troca de toques num teclado cor de creme, som de
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pau seco, enquanto algo meio retângulo com luz verde gemia um som abafado de guitarra mole, parecendo criança pedindo comida.
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Passando um clipe na MTV de uma banda de rock qualquer. Comentário carolíngio: – Que banda de merda é essa?
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II A Máscara Tainá bebia, fumava, bebia e fumava. – Lara: Lara? Acho que está faltando algo nessa porra. – O que, Tainá? – Ora, todo mundo tirar a roupa! – Ué, então tira... Pronto. Temos aqui, nesse pequeno diálogo mascarado, o espírito de uma das facetas mais misteriosas de Tainá: o reino das moneras. Você deve estar se perguntando o porquê de, justamente nesse momento tão mal dormido, nos aprofundarmos acerca dos mistérios de uma mulher. Ora, primeiro que não há nada mais saboroso do que uma busca sem fim; segundo que, de acordo com GALEANO, Eduardo (fonte: site genérico buscado pelo Google) o corpo é uma festa, logo, esse baile está acontecendo em Tainá, no ouvinte, no leitor, na música que toca, no jazz que mofa na beira do ouvido. Mas, Tainá. Tudo que ela queria era um streaptease da alma, profanada por ninguém mais ninguém menos que qualquer pessoa com poder de absorção, ou abdução, fica a cargo do que o universo pode conseguir. Mas, e a coragem? A coragem... Seria a coragem algo intrínseco ao homem masculino, masculídeo? Se tantas poucas mulheres vão pra guerra... Seria a
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Conto 7. Caracol
guerra um germe da masculinidade? Não tem a frase “A guerra é a mãe de todas as coisas”? Guerra e mãe numa mesma frase, que ironia... O fato era que não há fato nenhum. Todo fato é fogo fátuo. Não existe imparcialidade. Cartesianos não gostarão disso; voltarão para seus livros e boquiabertos como bobos da corte a vagar pelo ocaso do oceano ancestral da indiferença. Não sabem que o próprio Descartes teve três sonhos e norteou sua vida pelo terceiro sonho, renegando os dois primeiros, que eram “emotivos”. Assim, a razão se torna senhora da emotividade. Como se fossem duas coisas separáveis. Tornam-se mais cartesianos que o próprio Descartes. Não Tainá. Ainda que, da mesma forma que, como os mais-cartesianos-que-Descartes, dissocie, renegue o sexo. O sexo: um poema em prosa ao sexo. Boca vermelha esperando verniz. Sangue que teologias corporificam em sedimentos. Êxtase e outras vezes nem tanto. Tainá nunca tinha tido um pássaro no ninho. Comia pelas beiradas, beijava; sua aljava estava sempre vazia, embora nos últimos precipícios não houvesse mais a quem recorrer, precisamente pela ausência de fantasmas possuidores de carne. Mas naquela festa, naquele baile, naquele zigue-zague de gente fervendo, ela, ah sim, iria fazer acontecer. Lara, sua amiga tibetana a desafiava, mas ainda não tinha vinho suficiente no
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corpo. Estava vazio o copo. O pássaro queria estremecer, queria rir, provar dos cabelos negros de um mulato, forrozear com um homem que soubesse dançar. Homem nenhum sabe o que é dançar com homem que sabe dançar. É como repetir um movimento, uma frase, mas corpórea, vertical, é se derreter e derramar-se como criança num toboágua. É ser dominada, subjugada, levemente, como uma princesa que é carregada no colo, aquela escolhida da aldeia que pousa a mão fraca no peito do cacique pungente. Ah, sim, homens que amam homens, estavam também naquela festa. E mulheres que fazem bem bem com madames. Nesses bailes tudo está permitido. Como o filho que dorme, sonhando que é um louco a matar por afastados recatos. Domar o sonho é tarefa árdua, existem aqueles que sonham o que querem. Para que acordar? Tainá suspirava. Ao longe, Olhos Negros bebia um cálice, dançava com uma das tebanas. Tainá olhava, suspirava. “Me dá mais um gole, que hoje eu tô pro crime”, dizia, imitando aqueles que estão prestes a. O ciúme, a inveja. Que habitantes indesejados do castelo! – Quem é aquele lá? Foi o cigano que ela avistou. Bateu palminhas; eram os abutres da indecência avistando carniça. Mas o que é a ingenuidade? A grande questão a ser sintonizada nesse baile poderia ser: sexo depois do casamento. Para Tainá, deveria ser de-
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Conto 7. Caracol
pois. Para as tebanas, rum e coca cola, é o que existia. Nesse espaço do ser, permeado pelo desejo plasmado em ação. Como pode existir alguém que exalte a virgindade? E aquelas mulheres que beijam de língua, mas são virgens? Não seria isso hipocrisia, ou tampar o sol com a sujeira? Pensemos. O que sentimos quando vemos um casal aos beijos cheios de algo? Aquela coisa infinita que teima em tentar atravessar o corpo de outrem, aquela língua molenga entrando numa caverna com cercas, aquele abraço abrasador, ameaçador, como não ficar perto do que tira nossos pés do estável? Mais: o que pode, porque pode, como podar, delimitar movimentos, se o que existe é devaneio, a fantasia, e o corpo é a marionete do intangível? Reduzem tudo a neurônios, células, vasos sanguíneos, ligações químicas. Nunca perderam um filho, jogaram boliche, tomaram água depois de atravessar o deserto. O cigano. Era um quebra-cabeça, um inumano, visto que não se permitia rancor, só doçura e audácia? Convidou-a para dançar. Tainá, sentida, pigarreou. Era como se o destino fosse alguém com vinha cheia, algum jogador ocioso de um simulador realista, procurando ter onde se divertir. Tainá olhou para as amigas tebanas, o corpo falando como João Bosco, sem entender nada, musicando o som. O cigano a tomou em seus braços e ao som de algum disco brasileiro fintou ginga miserável. “Malditos! Malditos sejam esses homens maravilhosa-
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mente malditos!” Algo em Tainá rogava chorando, alma aflita, ser amada; mas, e bota mais nisso, não havia esperança ao pobre do cigano que, honradamente, pediu um beijo, sem falar, só lanceando a cabeça, num meneio bonito de se ver. Resistente, a mulher muralha se defendia com sorriso: - Não, não... – As vozes duplas, se intercalando dentro dela, formigavam. Como! Como? Fantasma da ópera trançava um som de pecado possível. Mas o que seria pecado? Não pecar? Passar a mão? Amar? Pontos de interrogação em demasia? Palavras? Máscaras? A autóctone Tainá se despediu do cigano, a procura de seu cálice, sumido. Onde estariam as tebanas? Foi ao banheiro. No caminho, Ed Motta sonoro, pessoas se enroscando, um caracol movediço: o baile. Meio do recinto, pessoas por todo o lugar. Onde estaria a rainha que o recato escondeu? Só aquele que fez voto de castidade sabe o que é passar por corpos intumescidos tocando, ronronando. São toques de luva os movimentos ritmados. As mulheres, as moças, os homens. Cabelos dançando fora de qualquer lei, como se possuíssem vida paralela, braços para cima, por que é tão bom mulheres com braços para cima? O suor, o susto de um homem fazendo uma performance artística inconveniente como se fosse um mancebo intergaláctico saído do tempo em que se pedia garota em namoro.
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Conto 7. Caracol
Tainá chegou rindo ao banheiro. Tebanas, cadê? No assento, chorou. Não era ela que disse a si mesma, em frente ao espelho, que nessa noite iria desovar toda a auréola posta por sua preguiça e medo? Não era hoje que iria conhecer de corpo inteiro, interior, o que era ser mais que desejada, mais ainda, amada, nem que fosse uma só vez, uma só noite, como uma Beatriz de Chico Buarque? Conhecer aquela tora desastrosa que carrega os fazedores de guerra. Descobrir os perigos de ficar a mercê, de não estar no controle. Ser carregada por estrelas. Ver constelações, gritar sem som, só ruído murcho, ululante. Ela, que sempre fazia questão de afirmar a si mesma e a alguns poucos outros que esta noite seria sem pudor, parir veneno gostoso, afirmação de mulher gostada...
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– Kérol, tá passando um filme no cinema, eu sei que você não gosta daquele ator, mas tão falando bem do filme, dizem que é uma das melhores comédias do ano! – É o cu.
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Conto 7. Caracol
A Morte, hálito de oitavas tortas, era só sussurro. Vestido preto, capuz escondendo face, mal era percebida, tamanha a heterogeneidade da festa. –Hoje morrerá alguém. Alguém forte, algum mal. Hoje morrerá algum tal. Sem fim, sem igual. Hoje morrerá também. Todos morrem, todos os dias, quem, qual. Hoje morrerá, por um vintém. Dinheiro, moeda, desejo, o real. Hoje... – A Morte parou, engarrafada. Alguém a olhava. Não pode. Não podia ser! Ela estava tão bem camuflada, a maioria dali não acreditava em vidas passadas, antes e após... Era o diabo? – Mas ele? Logo ele? Não, o diabo não. Dormira com ele ontem, que noite ruim, mas dormiram. Nem conchinha teve. Também pudera, dormiram na cabeça dum santo... – Boa noite, alva senhora. Era o Amor. Um jovem alto, da cor do herdado, o sonho de Adão e Eva. Aquele que muito se espera, conhecido por Deus, Eros, inexistente. Estava ali, encarando-a. Cabelos como fogo, indomados; olhos bons, sorridentes. Boca serena. Jeans e camiseta, caracóis nos cabelos. –Concede-me a honra de uma contradança? – Ora que cara mais empolado, pra que esse palavreado? - pensou a Morte, hipnotizada, enojada. Mas porque não? Porque não se entregar ao árabe mausoléu? Aquele mundo, aquela potencia. Ele, a vida; ela a morte. Dançaram.
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A música não poderia deixar de ser outra: “Super freak”, de Rick James. Viu-se a Morte de cabelo ruivo, olhar hipnotizante, mortal, obviedade sexual. Alguém morreria, alguém transaria aquela noite. Não transam todas as noites? Não fazem filhos, abortos, abonos salariais? Morte e impostos; e sexo. O melhor sexo é o sem máscara, sem baile, sem nada. Olhos e carne batendo em carne. Ah sim, como um solo de saxofone. E ao redor todos os dionisíacos, os apolíneos, os saltos matrixianos entre um olhar e outro, as pessoas lentas, corpos se batendo, insetos ao redor da lâmpada, eles ao redor de tudo. Como se fosse parada obrigatória. Ah, sim, hoje a Morte deitaria. Em berço esplêndido, feito de cedro, folheado a ouro por ourives armênio. Teto tingido por detalhes art nouveau. Nojentices de amantes, onde o conde se deita com seu escravo, onde o pavor é substituído por calafrio sem perigo. Onde destino desatina, desenlaça por minutos, horas, o aperto dos nós da vida. Ah, se os mancebos soubessem que quanto mais longo o ato de foder loucamente como bonobos, mais o vácuo no tempo! Templo incendiado, saco de pancadas amortecido pelo silêncio do resto, só os dois amantes, amados, o Amor enfurecido de tesão e força. O peso do homem, o arranhar as costas da mulher. E algo dizia a ela que a noite seria melhor que aquela modorrenta com o diabo. Coitado...
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Conto 7. Caracol
Mas o diabo cintilava nos olhos do cigano. Aquele belo homem de cabelos longos vociferava palavrões entre si, atordoado por aquela oblíqua alienígena de modos doces e grossos. Aquela incompreendida que só queria um cinema no paraíso. Saberia ele disso? Ouviria o choro e ranger de flautas a emergir do banheiro feminino? Como pode, como poderia ser concebida aquela fêmea alheia a tantos violinos tocados nos preciosos momentos? Tão perto e tão pessoal era aquela festa para Tainá. Parecia dançar tango com um cego. Obsoletos eram seus desejos. Que passava pela sua cabeça? Que baile louco simularia a vida? Essa via de mão dupla a cortejar homens e mulheres, cada qual querendo algo que nenhum ser pode dar, então inventam um Deus que tudo pode. Sim, obsoletos: como móveis empoeirados guardando relíquias cansadas de tanto negar e tanta bússola quebrada. Haveria de ter! Haveria de ter o rei. Celeste, leão, era o macho, que levantaria a flâmula da honra e do compromisso, gentil e tarado, como diz a Rita. Peregrina era esta esposa viúva, onde estaria o esposo do regato? Onde estariam os amantes na beira do rio? Na África! A voz dos tambores harmonizados tinha textura de animal silvestre, como uma melodia que fere nos ouvidos.
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Sim, África! Lá, onde não teria dissociação, ocidente e oriente, desorientando todo mundo em didatismos. Lá, onde ao tocar não se tocava, se metamorfoseava em borboleta desenhando no ar linhas sugeridas por entidades. Lá, onde tambores conversavam entre si de um modo que nenhum analista poderá descrever em partitura. Antes de tudo, a festa. O baile. Ao redor, verde; Fulano passava mal de tanto beber, e a organização da festa discutia sobre o uso do livre arbítrio. Os policiais, nessa ilha de desejo, não eram permitidos. Ou era o que sonhavam os habitantes daquele outro mundo instantâneo. Um homem hetero beijava outro homem pela primeira vez em sua vida; Depois, muito vinho. A Morte e o Amor continuavam dançando. Um imigrante japonês tencionava conversar com uma americana de olhos claros, mas a bomba instalou-se entre eles; As tebanas, tal como eram, se beijavam, se dançavam, dengosas; homens circundavam, lâmpadas eram as tebanas. Lara, a mais bonita entre elas, tencionava tentar Tainá com um par de seios meticulosamente deixados um pouco à mostra, como quem não quer algo, querendo. Outra, a tal Giovana, beijava sua colega de quarto, enquanto tocava o cabelo da vizinha, baixinha, que com seu ar de sapeca treinava um sapateado débil e fertilizante. O viking trocava comentários maliciosos com Olhos Negros, como todo
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Conto 7. Caracol
comparsa em beira de festa. Tanta menina, e algumas beijavam entre si! Olhavam para aquele rapaz engraçado, meio desengonçante que dançava com o que poderia ser sua namorada; Como aquele baile era o próprio, uma descuidada qualquer, também com seu parceiro aos abraços e beijos, passava a mão na cabeça do desengonçado. Sua namorada fitou o olhar naquelas cobras mãos. A Morte se eriçou; os pelos se levantaram, bateram sentido. Farejou sangue. Nisso, era beijada pelo Amor. Que casal! Tainá saiu do banheiro. Um cheiro de perfume conhecido a sobressaltou; o cigano. “Deus, o cigano. Só digo uma coisa: não digo nada... ” Dançaram outra vez; de novo as tentativas frustradas. De novo a vontade de chorar de Tainá. De novo o ímpeto de fazer algo errado do cigano. Como aquele corredor gelado que percorre quando se pensa merda e deixa escorrer, sem barrar, seja com oração, outro pensamento ou algo estabilizador. O cigano estava bravo. “Bravo! Sua cu doce do caralho.” E a dança. Mais forte, mais gostosa. Mas Tainá resistia, resistia ao pecado. Falemos sobre o pecado. É fazer algo ruim sabendo que é ruim, ou seja, depende da cabeça, do coração. Tainá sabia que, entregando-se ao cigano, dormiria tarde. Os corpos latiam. “Não! Não pode... ” E agora seria um bom momento para citar um trecho bíblico: “Ela ardeu ali em amor por luxuriosos, cujo membro era como um membro de asno, e sua
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lubricidade igual à dos cavalos” (Ezequiel 23,20). Sim, ah pois: Oolá e Ooliba estavam na festa... Oolá e Ooliba. Essas duas estavam em todas as festas. Sim; até mesmo nas festas de casamento evangélicas, já que, se não há bebida alcoólica, os convidados, muitos deles ricos, saem como abelha para atacar os docinhos, sem esperar, sem ordem, sem civilidade. Respeitosos. Encontraram-se então Tainá e as tebanas. Por fim! Todas ficaram muito felizes e começaram a fazer uma dança circular, uma ciranda. Foram-se adicionando outros: cigano, viking, os habitantes do castelo do ouvinte e do leitor, até os cientistas; e também Amor e Morte.
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Conto 7. Caracol
A foto: Uma mulher tocando violão, levemente sensual. O fato: Uma comunidade numa rede social chamada “Mulheres que tocam violão” O dito: “Toscolândia”.
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Estes, por sua vez, olhavam com cobiça para os outros integrantes da roda. Ambos não compactuavam com paz. Teria de ter sangue derramado aquela noite. De alguma forma, de repente, derretendo lonas, amordaçando infelizes, enterrando a alta sociedade com sua hipocrisia. Não que ali fosse uma festa grã-fina; mas é evidente que o preço era alto. Não bastava ser vivente. Era preciso buzinar, fazer-se visto, coisa que o rapaz desengonçado não sabia fazer. Mas o que ele estava fazendo ali, ele e a sua namorada? Intrusos? A morte, interessada, procurou informações sobre as serpentes que habitavam aquela alma torturada. Aquele teria muito a dizer sobre a protagonista dum tal livro que virou conto. Aquele era um manifestante quieto que tudo via e não muito tocava. O que aquela falta de jeito nos movimentos dizia? O que aquela máscara diria? Ele estava sem máscara? O Amor viu os olhos de sua parte fêmea e seguiu-os. O rapaz desengonçado. Ele não era do tipo que estaria naquela festa. Que coração estranho o dele! Parecia feto, feito de estanho, estrada em círculos. Amor e Morte viram-se no rapaz. Guiaram seus olhos em direção até onde os olhos do rapaz descansavam. Ele fitava um homem! O viking. O viking. Aquele homem nórdico, porém, de maneiras um tanto delicadas. Que peça primaveril! Forte, colossal! E portador de
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Conto 7. Caracol
uma candura de pai. Sabe aquele homem que segura bebê no colo? Braço forte, pelos amarelos, um corte no cabelo feito com certo esmero, mas uma barba por fazer que chamava as jovens. Jovens e safadas, tontas e donzelas. Brigariam como foice e martelo num fundo vermelho. Aquele homem alto escondia um segredo que nem a Morte, nem o Amor conheciam. Um Jesus meio humano, meio homem. Uma tranquilidade sem comodismo. Um tigre. Onde estaria a Eufrates? Tainá dançava. A dança de Tainá... Você já viu mulheres em flor ao som de melodia árabe, os véus em movimento, as cadeiras controladas por controle remoto, a dita de costas, o rosto velado... Dançar. Música sem som! Membros em destreinadas sinuosidades, fino lamber de vento, e os olhares de cobiça dos carniceiros. Eram os homens. Os homens. Quando em grupo, alcateia do mal. Com capuz, mal vestido, o homem despedaça um sonho. O homem defende a cria, salva o mundo, o homem escreve que foi um homem que salvou o mundo. Ah Adão, como solucionar a guerra dos sexos, quando se dá o nome “guerra”, de começo? Vinha mais um dançar com Tainá. Um dos habitantes. O reino é vasto. Este, moço feio, mas bom de dança, fala açucarada, pegada com molejo. Objeto de estudo do cientistas. Cientistas, quantos habitam no mundo! Governam as sa-
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las fechadas. Acreditam neles, fazem aviões, edifícios, bombas, armas, pistolas, objetos objetivos, feitos exclusivamente para matar, machucar. La estava Paulo, com seu amigo Teófilo. Lá estava também o rapaz desengonçado e sua namorada, sua amiga, sua amante, beija flor, confusa, presente, Deus visível, floresta de mangas colhidas e redes onde dormir. Mais, muito mais que as musas; quente licor, sauna móvel, sanatório abençoado, curva do rio, luta e mais luta. Espelho onde Tainá olhava uma outra, um quê de possibilidade, um sertão com Diadorim homem-mente, ou saída pela tangente de um baile de fim de ano. Paulo, o cientista, o apóstolo; A religião, a ciência, a filosofia, a arte, tudo entrava nas cercas da biologia. Insetos eram obsoletos recipientes de queratina; Peixes eram condrictes e osteíctes; papeis eram faber castel; castelos eram. – Desconcertante e vã é nossa sina. Seria mais sério evidenciar a profecia retroativa da república das bananas. Não creio que seria paradoxal deduzir que esse vocabulário morfológico está impregnado de superposições sobrepostas entre si, como aquele mancebo de cabelos encaracolados a deflorar a mulher de capuz. Esse baile, enquanto célula geradora propriamente dita, se compõe de três elementos contrastantes entre si, a saber: o som, os corpos, o movimento. Chamaremos A, B e C, sucessivamente. Ocorre um desdobramento do fragmento C
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ao intercalar-se com... Passaram a mão na minha bunda. Porra... – Prof – disse Teófilo – tu tem que entender que esse tipo de linguajar não combina com um lugar desse. Não há ... ó gen ... te, ó não ... luar ... como e ... sse ... do ... sertão ... imagina Prof! Aquelas mulhé tudo cheio de renda, aquelas obesa, obséquio, cantando rebolando atrás do Gonzagão ... ê chefe! ... ô Pauloso, tu não tá vendo que aquela sereia lá tá te olhano brother? Olha só bixo, cheia de amor pra dar ... É feinha, mas dá pro gasto! Mulher feia é ventania, homem vai e arrepia ... Gostou, prof? – ... Estruturalmente, Stravinsky poderia ter se baseado nas assimetrias de um procedimento social complexo como esse, tal como vejo. Teófilo? Repare que os acentos de seus valores unitários formam o retrógado que está em paralelismo adjacente aos refrões monorrítmicos; isto é, a pobreza de intelecto que caracteriza a música produzida pela indústria cultural. Adorno estava certo: há uma regressão da audição, dos valores também, eu diria, tendo em vista a generalização prematura corroborada pela linguagem corporal arcaizante. Quem dera fôssemos números, onde... Caralho! Que porcaria é essa, Teófilo? – Música, maestro! Quem dera ser um beije... Ao som de vagas, tem estrelas ao luar... Ah para Pauloso, pô, mulherada
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aí te dando mole, tu é um cara boa pinta, e fica nesse nheco nheco de arcaizante pra lá, metonímia pra cá, véi... véi... ô Prof, já imaginou se fosse todo mundo número é? O 2 seria corcunda, o 7 teria um bengão, dependendo da escrita... Cuneiforme, quem sabe. Nada a ver cara, tu sabe que mesmo a matemática não é exata, não tem essa, olha o caminho que a física quântica tá tomando! Pô, os caras falando em multiverso, cada acontecimento acontece de vários jeitos... Tô falando, Prof, tu tá perdendo o melhor da vida... Acho que quem passou a mão na tua bunda foi aquela maluca lá ó, tá beijando outra! Pô aí sim hein irmão! Whadafãquerarrei, brother! Lara prosseguia na sua tentativa de seduzir Tainá, mediante sim-senhor altivo, olhos fortes, cativos e penetráveis, feito cão que ladra e deixa ser mordido, boca pouco aberta, cabelos de chocolate marrom escuro (imagine as cataratas de Iguaçu em versão bonsai). Um ar de samurai rendido. O sorriso pacato, o pacote complexo. Braços de polvo rente ao aquário. Era ela, silvícola, sarada e aflita, sedada, maculada, achado de um domingo de sol entre nuvens daquelas amareladas, olhar na janela e ver o muro de casa dourado pelo astro, ou fotossíntese; amarelo virar verde, viral. Amor é vírus? Ou: damos nomes às coisas. – Ó xente Maria! Tainá, mas tu não se avexe, arretada... E essa salsa no pé aí, minha nêga, vai dançar não? Nega não, to que-
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Conto 7. Caracol
rendo tanto um parzinho... Pulgas se espernearam na caixa de Pandora de Tainá. Ora, se for pensar que o, de acordo com os científicos o homem humano existe pensante como nós a quarenta mil anos, o cristão a dois mil, o avião há cem anos... Família. Invenção pro homem poder saber que é seu, o filho? Deuses... A começar pelo nome: só por causa de capricho técnico. Não havia um melhor?
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2222 Quem sabe sabe Quem não sabe inventa, Eis aqui alguém que tenta Um ser vivo singra ausências Colhe sorrisos por onde salsa Eletricamente cálida Mas quem será? Que menina será essa Um livro de nostalgia? Faz a música Subir pelas paredes Revira batuca arrebenta Triste forte Se trancafia na Alegria Sai de baixo, sai de cima: Lá vem Carolina! Mãe dos choros E dos abraços Em tudo eu canto
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Conto 7. Caracol
Danรงo e penso Quando em quando Longe do mundo Perto do fundo Quase junto Lรก vem vindo Lรก vem ela Lรก vem Carolina!
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Tainá. Repetido nesse texto, como o “hey” da fada do menino verde, ou o do corner da chute boxe. Nome. Destino escrito. Sim, possível mudar, mas, uma vez feito... Os pais nos jogam e não perguntam. Estamos como lençóis maranhenses, comidas feitas para turista, charlatões a espreita: é normal quarentões desossarem quinze verões. A máscara. O baile. Tainá bambeou as pernas. “Bamboleioo... Bamboleio...” Mas não por causa de Lara. Não que mulheres não bambeassem; era um homem. Hominídeo, mais peça de teatro que filme, estalactite sem pudor, árvore daquelas grandes, que se vê em filme de terror. Olhos Negros... Era uma pantera vertical. Esses dois temas sobrepostos, sagração da primavera no winamp: a cabeleira de Lara e seu nome divago, Olhos Negros e seu nome tudo. Lara falava palavras sem significado, sem recheio, ovo de páscoa sem os pequenos bombons a chacoalhar lá dentro. Mas que casca boa tinha essa Lara, o tipo mulherão, grande, a glande, dava conta de sua aparência debaixo dos lençóis? Os velhos jargões masculinos: “mulher bonita não precisa se esforçar, não é boa de cama... ”, “A natureza busca equilíbrio, as simetrias... ”, “mulata é um furacão na hora do vamo vê... ”, pois sim, que cor de pele determina comportamento? A humanidade é irreversível. “Seduza-me e não só te devoro como te farei deixar a ver navios, naufragando como amizades que precisam de distan-
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Conto 7. Caracol
cia pra sobrevida.” Lara, ofendida pelo descaso de seu alvo, saiu do nada e foi ao banheiro retocar a maquiagem. Quem sabe um batom nude? Tudo ao contrário: mulheres recebendo torta na cara, seios não dando conta do recado, aurora... Aurora. Aurora plasmou-se do narcotráfico de parentes sem sono. Cumprimentou Tainá. Blasé, lânguida, só “venha” no seu jeito meigo cheio de joio com gosto de leite moça. Impossível resistir. Música ritmada pedindo pelos secretos. Seduzia a todos, com seus grandes lábios encarnados, ao sabor de vermelho, cabelos, medos e Atlântidas. Modos lentos, Aurora falava que não podia beber e dragava cálidos copos. Despertava vontades guardadas a sete véus, e orações não seriam suficientes para se manter fiel. Não, uma boa noite, daquelas em que não se lembra do que tinha vindo fazer. O cérebro é um porão cheio de jogos de tabuleiro... Aurora havia beijado justamente o rapaz desengonçado, uma vez, era uma vez. Musa, repentina e calante. O Word não suporta criações, infecta o branco com cobrinhas vermelhas nas palavras. Como se já não bastasse às próprias palavras serem cobras mordiscando os desejos reprimidos. Aurora beijara o rapaz desengonçado, mistério sempre andará por aí. Aurora boreal. Tainá era o pôr do sol, o crepúsculo dos orixás, o veículo
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por onde o rapaz desengonçado desovava algo meio obrigado, meio escorrido, sem eira. O rapaz desengonçado supria o tutano pela acolhida na colônia de férias, conhecida como companheira. Mistério para Tainá: mão dada. Aurora escurecia os corações, sussurrava pecado, chicote estalava nos sentidos; A música não poderia ser outra senão “how soon is now”, do The Smiths. Uma névoa de sonho e sexo pairava de sua voz. Palavras gingadas se penduravam em ouvidos alheios, transformando meninos em homens, homens em meninos. Que monte de carne tão bem resumido num nome. Nomes. Nos remetem a nossos próprios modelos. Inventamos rostos pros nomes que lemos e ouvimos. Como jogar RPG eletrônico dos anos 90. Comer por dez reais. O mundo está velho... Tainá prezava os seus pais. Pais: paz de geração, grão em grão, filho do filho do filho. É muito forte, “sou filho de”. Tainá se sabia filha; senhora da continuidade, sonhadora. Os pais legaram os genes, a consciência. Onde terminava o pensamento? Tainá gostava de pensar, não muito de explicação. Quebrava a cara em telhas, confundia as abelhas, rainha da colmeia sem zangão. Zangada, era acudam todos nós. Menos pacífica, mais alegre. Queria-se serena, gostava da quietação; mas e a música? Como parar, dizer “não, braços!”, quando ouvia pancadas tro-
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voantes no hemisfério das lunáticas? Todo mundo tem lunáticas, uns nunca perceberão. São aquelas que gorjeiam silêncios latejantes quando se vê a nuca da mulher gostosa do amigo. E, claro, ninguém está vendo. Tainá gostava de seduzir. Dar e não receber, oferecer o lado escuro da lua. Fazer dores atrozes chegarem a níveis que ela nunca saberia. Sabe aqueles homens que choram? Que levam em casa, perguntam se precisa de alguma coisa? Sabe aquela gata seca que ao emergir leva uma resposta grossa? Sabe aquele olha-não-olha, chove-não-molha? Tainá: pós-doutorado. Doutora. Teriam, contudo, os mistérios. O que ela não podia entender. E quanto menos entendia, mais gostava. À mercê! Imaginem, caríssimos, que vós todos são baratas perto de montanhas. Something like that. – Morte! Morte! Morte ao amor... – Amor cantava, baixinho, para não incomodar sua amada. Sua peça, sua relíquia. Como era bom amá-la! Poucos sabiam, essa sapiência. Ele fora sempre apaixonado pela Morte. Não uma paixonite, mas um carro a atravessar os Alpes suíços, quando se olha de longe. Nuvens estáticas no cérebro da terra, o céu: quando se fica olhando, nada de movimento; para-se de olhar, lá se foi a nuvem. De longe, uma almofada branca; perto, um pasto de nata, ao con-
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trário do que sempre nos disseram nossos professores. Sim, ele, Amor, tinha professores. Os mesmos que habitam o reino dos homens e a reina das mulheres. O melhor professor era aquele que volteava numa biga sem roda a deslizar pelos caracóis dos cabelos da Eternidade. Esta biga era puxada por quatro feras que bufavam, e o professor estalava o chiclete. Que professor o quê! Amor estava perdido sem saber o que pensar, enquanto era acariciado por aquela doce senhora que finalmente tinha em seus braços. Tão temida, tão odiada, essa invenção, “morte”. Era uma estrada de pele branca, isso que ela era. Para que raciocinar? Não foi o que ensinou Woody Allen? Nas coisas da relação, não se pensar o porquê. Amar, ou algo que coubesse nessa palavra. Porque as coisas acontecem e não esperam por definições, e os homens, pobres homens, transformam o vivido em palavras. Essas larvas que largateiam pelos cadernos e enciclopédias, livros e comédias. E o Amor se ria. Tinha lido ele num livro que Gengis Khan, o moço, conquistara mais que todos os outros na história registrada, documentada e catalogada. Hilário era: Analfabeto, iletrado, nômade, oriental? Sem ler um único livro era senhor dos senhores dos livros. Mágica, dizem uns; Roubo de imaginação. Ler: Lesão por esforço receptivo. O Amor sorria. A Morte recitava um poeminha: “Quando eu jazia
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Conto 7. Caracol
Na esquina do caixão Você, vil enguia Santificava o tesão. – Soberba! Insônia. – A verba! Amônia. O amor é a morte sorrindo fotograda.
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Ingredientes: 1 colher de música 2 xícaras de ausência Meia xícara de fome de viver 1 colher (sopa) de absurdo 1 pacote de repressão corpórea
Modo de preparo: Misture todos os ingredientes a suor, gritos, sussurros, súplicas, adicionando farinha, sal e lágrimas a gosto.
Coloque no forno e espere pela intervenção divina. Se for ateu, coma cru. Se for tarde demais, não acredite no tempo.
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Mal nos acostumamos: a linguagem dos movimentos precede as palavras. E os movimentos de Aurora eram mortais. Como não poderia deixar de acontecer no híbrido entre andrógino, Gilda e França. As tebanas (“tibetanas”.) lutavam pelos direitos das moças. Os canhotos eram sempre desprezados. Direita, volver. Lara, a “Diva”, fagocitava homens. Aqueles beiços. Elas, ao real, podiam dizer de fato qual era melhor amante: o homem ou a mulher. Afinal, os dois gumes eram bem afiados. Tudo se resumia a um estado de espírito. E naquele baile, onde “era tudo mas a garota”, elas procuravam as moças. Onde quer que houvesse moças bonitas, lá estavam as tebanas. Afinal, eram elas mesmas: as mulheres mais singulares da festa. Mas porque tebanas? Existiu o batalhão sagrado de Tebas, onde todos os homens eram amantes, permitindo uma coesão (“Fábio Coentrão”, repete Tainá ao ouvir o rapaz desengonçado. Meneando a cabeça. “Estou cercada de idiotas... ”) que ultrapassava as fronteiras de braços, armaduras, escudos, capacetes, braceletes e lanças, espadas, sandálias, morte de metal. Intransponível era uma parede de escudos desse batalhão dos tebanos. Até surgir Alexandre, 16 anos, entrando fundo com cavalo a galope no formigueiro sudoríparo. Tainá... Tainá dançava no meio da roda, a máscara com a boca
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à mostra, beijante, salivada. Dentes coloridos, vinho amicíssimo. Suas amigas, as mascaradas tebanas; com detalhes nos tecidos das máscaras, que variavam de gente pra gente, tremiam nos rostos quando se falava. Os comentários maliciosos, a coragem abria espaços, os vigias dormiam, as ameias e estandartes desbotados; parecia como se todos ganhassem um ar de anônimo numa rede social. Às vezes dava para se reconhecer, até a alma, até o fim da escada encardida adentro, o interior é sempre sala de estar. Quase nunca, visível? Era preciso toque. Veludo. Tapetes de veludo esparramados, meninas deitadas, deixando-se, material girl no som eletrônico e todo mundo concordando com isso. Como ver um filme do Fellini e depois cegar os olhos. Como ler um livro sem fim, já que o corpo é uma pasta para se passar. Passe, repasse. Tapetes de veludo por toda a parte. Esse terreno baldio, muito bem trabalhado, era dos insólitos. Quase como se o próprio lugar fosse mais um integrante. Verde, muito verde. Às vezes, rodas de maracatu. Árvores frondosas, as que se pega fruto no pé. O chão batido, um balcão à esquerda da “pista” de dança, improvisado, feito de amontoado de caixas de fruta; atrás dele vinho, muito vinho. Ali, água de prata, vinho de ouro. E danças.
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Os casais dançavam, xaxados embromados, jovens de gola engomada; mulheres de pomada. Homens na beirada esperavam, tomavam vinho, coragem engarrafamento. Os cientistas bebiam, mas nada faziam. Nem o pobre do Teófilo, sedento para matar a vontade, mas estava ali pelo experimento, gostando e sorvendo cada minuto andante. Queria ser olhado mas não. Quem era olhado era o remelexo de Tainá, que dançava agora com o viking. O viking! Aquele continente, ela revirava os olhos, respirava aquele totem, e o frio metal penetrando nos seus dedos. O anel. Casado! “Cu!”
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Lágrimas de Carolina “Eu choro versos”, Dizia Carolina E há quem diga Que isto é mentira? Não são lágrimas versos Não é o chorar uma poesia? Declamado pelo corpo Derramado pelo rosto Quem não será tocado Pelas doces gotas-palavras Alma líquida despejada Ao ver alguém chorando? Talvez, certamente Um alguém que não chora Uma casa mundana Uma paisagem sem vida Um vaso gelado Cheio de vazio
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III O sacrifício – Cassetete de agulha! Era o que vociferava o reino da fantasia de Tainá, ela e seus domínios, demônios cantores de ópera: “Uuu, girl, Uuu, girl”, como dizia MARLEY, Bob, numa canção de cortar como papel na pele. Casado! Maldito sejam os homens casados. Eram como filmes antigos, rejuvenescidos pelo desejo alheio. A dança prosseguia, Tainá dançava, o gigante leve a levava por todo o salão de chão batido. A música rápida, os atos se seguiam. Passaram pelos cientistas, a anotar em cadernetas, ou laptops, para ser mais contemporâneo; Esbarraram em Morte e Amor, o casal medonho e invisível; passaram pelas tibetanas. Os guizos. Giovana rindo, Lara brava, enquanto os pescoços se desdobravam seguindo Tainá e seu porte. Rodopiavam feitos musica mecânica sem sair do lugar. Giovana zombava secretamente em seu colóquio. “Tais nessa... Tainá, menina bonita... ” Longe dali o rapaz desengonçado selava sua namorada com beijos sem língua. Teve o rapaz desengonçado a prova concreta de que tudo está como o filme “Amnésia”, ao ver uma imagem que se repetia num pequeno quadrado, onde um casal beijava acelerado, e tudo ganhava outra postura, vontade
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de coisar. Como levantar os lábios para ver os próprios, olhando para baixo. Longe, o rapaz desengonçado permitia-se olhar para a festa. Algo sem máscara estava para ocorrer. Algo escrito desde o começo do baile. O Rapaz escrevia em seu caderninho: “agora é que são elas”. Deu-se o deuce dos jogos de tênis. Cigano, o rejeitado, tomava longos e enviuvados goles, garfava a si mesmo. Súbito: um canivete na calça. Um canivete! Olhava para Tainá rodopiando com aquele homem alto e loiro. Raiva. Dom? Destino pusera um canivete na sua calça? Não se lembrava de motivo nenhum do porquê de ter um canivete lá. Vontade de fazer merda. “Eu... ” A mão retesou-se. Sentiu o canivete, frio, como a dizer algo duro. Como ela dançava com vontade com aquele! Raiva, rico de raiva era ele agora. Viu-se caminhando, o cigano. Em direção ao banheiro! Tomaria tempo, pensaria. Desejava há tantos anos! E ela parecia corresponder! Porque negara o beijo? Ele era um homem bom, um bom rapaz. Tinha sido traído duas vezes, por mulheres que reclamavam dele ser bom demais. Sim! Pois que, como mordem bolachas antigas, fazem preços enormes para coisas baratas, a concorrida e desejada felicidade a dois... Mas ela não quis. Não quis! E Aurora deslizava perto, impetuosa. Esperanto, vésper, mordicava os pedaços de olhares que lhes eram lançados. Ela
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que agora olhava para Tainá; as duas. Duas mulheres. Que, livres dos homens, dançavam e o mundo eclodia, a cloaca do sistema pós-moderno, ou seja, cerveja; ou melhor, vinho. Dançavam as duas, lentamente, era La vie em rose, Armstrong e roseiras sem par. Nessas horas é sempre bom recitar poemas mentalmente, não fosse o cigano, que via a cena, aturdido, atordoadamente abobalhado, a mão direita tem uma roseira a mão direita tem uma roseira um canivete abrindo a viseira... Um homem no meio do caminho. Robusto, cavanhaque. Sem descrições agora. Um homem moreno impedindo o cigano de ver Tainá que agora tomava vinho com amigas, ao derredor. O canivete cortou! Doeu o dedo. Ainda no bolso. O baile esperava. Tal qual aquela cena do Vanilla Sky: dois segundos, três segundos. O homem moreno olhava para o cigano. Aurora jorrava.
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Thais (Carol) Entre, parênteses. Um nome à frente Abraça uma partida Circunda uma brisa Dois nomes, Uma partilha Dois versos, Uma vida A felicidade é mais Que um estar junto: Almeja, precisa De um querer estrangeiro Bíblias apressadas Formigam vestibulares Distancias vestem Passagens futuras
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A saudade açoite Reza, rasga Treme, geme Suspiros entrecortados Moinhos sussurram PaĂses distantes Europas esperam Vampiras amantes
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Olhos Negros e o cigano de dentes vermelhos. Homem e urso. Liso, o cigano de cabelos longos: “Com licença... ” Foi seguido pelos olhos de Olhos Negros. Olhos de leopardo, fera ferida. Cigano se foi; não voltaria à festa. Não poderia; estátua ante o cedro, o homem de bronze. O homem que percorria as esquinas da festa. Olhos Negros. Ele sim era o perigo, animal enjaulado. As tebanas discutiam entre si, entreatos; louvavam a amizade que tinham com Tainá. Tainá era só espera. Esperava não esperar, ser agarrada e deixar, desgarrar-se, deixar a barriga da mãe... O brilho de uma lâmina. Morte viu o brilho de uma lâmina. –Amor! Uma cimitarra! – gritou num sussurro surdo. Uma cimitarra numa festa!? Num baile de máscaras? Não era festa a fantasia, era baile de máscaras. A Morte conhecia lâminas, sabia quando eram de verdade, e era aquela bem feita, feita de aço de Damasco, cabo preto cravejado e sulcos serpenteados cruzando entre si. Era uma arma, um algoz, que já teria matado sentinelas com azagaias, cruzados de capa. A cimitarra portava um homem: um assassino em potencial. Todo homem pode matar. “Hoje era dia de alguém morrer”, dissera ela a si mesma. Quem sabe todos? Mandaria um sopro no rijo homem da cimitarra, a espada vermelha balançaria no ar e ela faria amor com Amor ali mesmo, ao redor dos
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cadáveres. E dançaria. Ah, dançaria! Como num final libertador, não escravocrata! Como... – Amor, mais vinho? Era o amor inundando ela de rosa. Choque, chiqueiro era sua podridão! Como podia ser tão má! Temia a si mesma, seria capaz de matar seu cobertor, Amor? Mais vinho! Mais ninho. Olhou uma vez mais Olhos Negros, sussurrou palavras, e bebeu. Olhos Negros, impenetrável, caminhava para o centro do salão. Ouviu algo em língua irreconhecível. Isso o fez parar. Os músculos do trapézio endureceram. Pelos na nuca arrepiados. Suor em algum lugar. Em outro lugar determinado pelo escritor, o cientista Paulo vomitava o pobre vinho. Barriga vazia não mostra sinais de misericórdia. Teófilo? Filava um lanche roubado. Surrupiado não por ele, mas por alguma das tebanas, que, vejam só, conversavam também com homens. Tibetanas andando em fila indiana, o viking e sua aljava, o rapaz desengonçado e a namorada, Aurora e uma flecha no pescoço, Aurora, aurora, Tainá. Teimando em olhar a Aurora, Tainá era fiel a seus caprichos de não ceder, mesmo que tivesse tudo, todos os motivos, princípios eram só uma questão de buscar os subterfúgios certos. Tainá e Olhos Negros. Um copo se quebrou; o vento escuro soprou, Lara lam-
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bia a orelha de alguém feminino, um andrógino habitante da mente do leitor debruçava-se no balcão, o baile fedia ao que vai ocorrer, homens farejando cheiro de violência. Portas rangiam, o viking no banheiro, pensando numa puta. Tainá e Olhos Negros. Que caminhava lentamente em sua direção, linha reta, resoluto, a lâmina curva atrás do manto, a mão esquerda na cimitarra, a turbulência. Morte gargalhando ao saber sobre liquidificadores contados pelo seu amante, a mão direita de Olhos Negros, a mão direita de Tainá, o sangue, um grito, e uma voz sussurrada no ouvido.
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Excalibur Tiro o alvo Miro o horizonte Acerto mentiras Ou verdades bem pensadas Não finjo, não minto Sofro, sonho, sinto A aurora anoitece os homens Disfarça a farsa calada Ao longe, esperando a adia-amante Uma espada jaz, silenciosa Na pedra do tempo-vento Mas eu fecho o espaço Impeço o laço Digo a mim mesma: “A espada é malvada! Prefiro a aurora.” E esqueço que espada sem punho É apenas uma cruz de aço E que a aurora só é um pesadelo medonho Quando eu a crio e a faço
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E afasto a espada esperada Sonhando com a aurora e seu rastro
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Entre em contato conosco! Thiago G. Sgoberto – thiago.geth@gmail.com Petter – e.petter@hotmail.com Helton Laurentino – helton.laurentino@gmail.com E. Reuss – e.reuss@hotmail.com Rosca J. R. Tudor – originalroscatudor@gmail.com V. E. Simeoni – ve.simeoni@hotmail.com Luiz Mariano – biruts@hotmail.com Juliano Dorneles dos Santos – juliano.dorneles@gmail.com
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