Vidas Digitais

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VI DAS DI GI TAI S



SUMÁRIO

VOANDO SOBRE UM NINHO DE CHOCOBOS ....... 6 IMPACTA ................................................................... 15 PLAYER ..................................................................... 45 VERITAS VOS LIBERABIT ...................................... 60 PUZZLES ................................................................. 115 KONTINUUM .......................................................... 125


VOANDO SOBRE UM NINHO DE CHOCOBOS _______________

Luiz Mariano


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Era uma vez, nem duas, nem quatro, nem três Que Urameshi ia pra escola Imaginem só vocês O bom menino até dava esmola.

Filho de viúvo pai Um intelectual fracassado Bibliotecário fã de bonsai Era um senhor aposentado.

Treze anos tinha o menino Muitos eram seus amigos Era o mais pobre deles, franzino Na rua passava muitos perigos.

Por isso, o pai rugia De felicidade genuína Quando acompanhada sua criança ia Com os colegas em suas casas com piscina.

Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano


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Jogavam, era uma festa: De tiro, corrida, espadas Todos eram índios na floresta Armados com seus controles e risadas

E eram vários consoles, muitos Tinham também computador Circulavam os tantos assuntos De vencedor e perdedor

Urameshi urrava na vitória Na derrota ficava emburrado Sempre inventava uma história Do porque tinha sido derrotado.

Mas ninguém sabia do segredo Tão bem guardado por Urameshi Era sagrado esse enredo: “Em time que ganha não se mexe.”

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A verdade é que o menino não tinha Nem jogo, nem controle, nem fita Na casa dos outros fazia sua rinha Mas na sua casa nunca teve visita

Era pobre, ele, muito pobre Muito sagaz, de bolsa na escola Particular, ensino de cobre A ferro e fogo, não dava cola

Não: era um menino honesto (com exceção nos jogos de luta!) Com centavos ajudava com o resto Sempre com alegria absoluta.

Mas ele gostava demais era Dos jogos de interpretação: Mundos, personagens, à vera A trilha sonora, a ilusão

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E se colocava naqueles lugares De cabelo espetado e espada bastarda Ou explodia tudo pelos ares Com metralhadora no tudo ou nada

Se fantasiava de verde No reino da criatividade Nesses jogos matava sua sede Brincadeira era uma meia verdade

E, brincando, inventou um jogo Dentro da sua cabeça Com cenário, música e até o logo Tinha comando, é bom que não se esqueça

Televisão para quê? Se tinha o muro Cinza, manchado e sólido Para onde Urameshi fazia um furo De tanto olhar, sério, tórrido

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Contava as peripécias para os seus Que perguntavam, “que jogo é esse?” Ninguém tinha jogado, meu Deus! Seria lançamento, alguém conhecesse!

Mas Urameshi era liso, Não sabia o nome da plataforma; Dentro de casa era só riso Inventaria a próxima fase, de que forma?

Já dizia o pai: mentira tem perna pequena E a curiosidade passou a ser tão grande Que os amigos não teriam pena: Jogariam na senzala, os da casa grande

“E agora, Urameshi? E agora?” Descoberta a farsa, e depois? Caçoariam dele como catapora Como se não bastasse mal ter feijão e arroz!

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Como explicar aquela parte Em que o monstro conversa com o herói Quando este adentrou na caverna, com arte E passaram a brincar de índio e caubói?

Como explicar quando o encanador Tomou chá com o porco espinho azul Ou quando, num xadrez competidor Eles riram de norte a sul?

Pediu conselho a seu velho E tudo o que o homem pôde dizer Foi que “a realidade não está no evangelho Mas no quanto que você coloca o poder”

Sem entender, Urameshi se rendeu. No dia seguinte, ao centésimo pedido De visitar a casa do filisteu Prometeu: iriam todos jogar. (“estou perdido!”)

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Era um sábado (porque hoje é sábado) E de manhã já estavam os algozes na frente E teve quem estranhou o telhado Ser tão de telha carente.

De dentro veio Urameshi. Inventou coragem Conduziu os meninos ao muro Arranjou cadeiras de folhagem Estava ele de rosto duro.

E, apresentando à meninada Começou a jogar com controle e tudo: Mãos se mexendo, sem nada Muitos já achando um absurdo.

“Vocês não estão vendo o mago?” “Tenho que quebrar o encanto!” “Ela está no meio do lago,” “Ali ó, a espada do espanto!”

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“Ele só pode estar brincando”, “Urameshi, cê tá louco?” “Tô vendo nada, do que ele tá falando?” “Vou é embora, daqui a pouco.”

Jorjão, o maior deles, se levantou. Urameshi pensou: “vai me bater” Em vez disso, o grandão apontou: “Quero ser o segundo player!”

E juntos jogaram, passaram de fase Até que todo mundo ria e opinava De repente um morria, “cheguei quase!” E a turma toda gargalhava

E foi assim, trabalhando em conjunto Que zeraram o jogo, os meninos lobos. Quem quiser jogar, vai o nome junto: Voando sobre um ninho de Chocobos.

Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano


IMPACTA _______________

Alef Fabiano dos Santos Araújo

A

escuridão, os pôsteres e os recortes de revistas sobrepostos cobriam cada centímetro das paredes, pegando os visitantes desprevenidos. Lia-se os títulos de novos e velhos jogos em alguns recortes, no pôster ao lado via-se uma arte conceitual revelando grandes galhos de árvores que ascendiam aos céus ultrapassando as nuvens negras de uma tempestade que se aproximava. Em outros, monstros, robôs ou planetas dividiam espaço com logomarcas de empresas produtoras de jogos.


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Assim era o ambiente do quarto de Juca, este era o templo dos universos eletrônicos, que o garoto tanto amava, e os consoles eram os altares onde ele os venerava. Sua fascinação era evidente, estes universos eletrônicos ocupavam constantemente seus sonhos e pensamentos. O seu grande sonho era um dia poder trabalhar junto com as estrelas deste meio, e quem sabe um dia se tornar uma delas. No entanto, o sonho dava sinais de que enfraquecia. A maioria das pessoas próximas não notou, com exceção de Alberto, um dos seus amigos mais próximos. Alguma coisa de errado se passava com Juca, mas o que poderia ser? A inteligência e perspicácia de Alberto eram inegáveis, todos queriam estar próximos dele. Nas avaliações escolares, quem sabe a simples proximidade “ajudasse” os menos preparados. Por mais inteligente que fosse, não se vangloriava de suas capacidades, ao contrário, estava sempre próximo dos companheiros, disposto a ajudar quando sua intuição exigia uma ação de sua parte. O que era o caso desta vez. Após algumas observações e algumas tentativas infrutíferas de obter informações diretamente da fonte, ele se sentiu forçado a

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buscar as informações que precisava de outra forma. Tarefa esta que foi duplamente recompensadora... Em um dos intervalos na escola, ele procurou Carol, irmã de Juca, na sua busca por respostas. – Oi Carol, tudo bem? – Tudo. O que você quer? – respondeu Carol secamente. – Preciso falar com você. Ela mudou a expressão, mas antes que ela pudesse reagir, Alberto atalhou: – Tem uma coisa muito errada com o seu irmão... Então, podemos conversar? Com um aceno Carol concordou e se afastaram das amigas dela para poderem conversar sem interrupções. – Do que você está falando? O que está acontecendo com o Juca? – Você não percebeu? – Percebi? Percebi o que? “A situação parece mais grave do que eu imaginava...”, pensou Alberto. Um dos motivos da admiração de Alberto por Carol era o fato de ela ser diferente das outras meninas. Ela era inteligente e não se encantava por qualquer um. Por este motivo ela o tratou

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secamente, quando ele se aproximou. Ela achava que naquele momento ele faria o que os outros meninos faziam quando se aproximavam de uma garota bonita. Se ela, tão inteligente e atenta, não percebera nada com o irmão até então, o que poderia estar acontecendo na casa deles? Com certeza não eram problemas com os pais deles, poucos têm pais mais presentes do que os deles... Alberto continuou a falar tentando medir as palavras para não revelar suas suspeitas reais e com isso gerar reações que pudessem espantá-la, antes que ele pudesse expor a situação com calma: – Ele não parece mais o mesmo... Está sempre quieto, meio abatido... Sei lá, até seu olhar parece diferente. Em resposta, ela apenas arregalou os olhos e demonstrou uma expressão de espanto, como se após muito tempo tivesse percebido uma obviedade que passou por debaixo de seu nariz como se fosse invisível. Alberto estranhou a reação, mas conteve o que pensava a respeito, precisava descobrir tudo o que pudesse. – Será que ele não está doente, Carol? – Não, acho que não – respondeu Carol algo perturbada. – Onde você quer chegar com isso? Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo


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Ela fez menção de se levantar após terminar a frase. Alberto rapidamente agarrou seu braço para que ela ficasse. Antes que ela pudesse reagir, continuou: – Escute, isso pode ser algo bem sério, não apenas uma suspeita sem fundamento. Ele não vai lá em casa há semanas, nunca mais ninguém ouviu ele falando sobre videogames... – Isso deve ser apenas uma fase! Já estou sentada te ouvindo. Quer fazer o favor de me largar antes que eu faça um escândalo? Você não quer isso, quer? Ele a largou um pouco envergonhado e continuou: – Como se o que eu te falei não fosse estranho o suficiente, ouvi que ele anda vendendo quase tudo o que ele tem relacionado a jogos... – Ele comprou com o dinheiro dele. Pode fazer o que... Ele vendeu o videogame? – É o que parece. – Ele não largaria o videogame por nada... O sinal indicando o fim do intervalo tocou. Cada um teria que seguir para sua respectiva sala, sem que a conversa pudesse ser terminada. Carol pegou um pedaço de papel nos bolsos, anotou alguma coisa, despediu-se de Alberto com um aperto de mão, deixando o papel com ele. Alberto o abriu e leu:

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Precisamos terminar essa conversa. Espero você em minha casa à tarde. Exatamente as três. Nenhuma palavra a ninguém! Não quero que pensem mal de mim. Venha preparado... – Muito bem Sr. Alberto, não é o encontro que você esperava. Mas é um encontro de qualquer forma... Veja pelo lado positivo...

No horário marcado Alberto esperava no portão da casa de Carol. – Você é mesmo pontual – disse Carol. – Tenho os meus motivos... Não vai me deixar entrar? – Me acompanhe. Entraram na casa e seguiram até o quarto de Juca. – Veio preparado? – Sim. – Ótimo. Todos os dias por volta das duas ele sai e só retorna depois das seis. Uns dias chega um pouco mais cedo, outros mais tarde, mas nunca antes disso. Como pode ver, o quarto dele está trancado.

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– Como entraremos? Posso saber e fazer muitas coisas, mas, arrombar portas não é uma delas... – Não se preocupe com isso. Temos problemas maiores... – Como o que? – Desde que éramos pequenos, o Juca tem o costume de trancar o seu quarto quando não está nele. Sempre que ele ficava zangado comigo, ele pegava alguma coisa minha e escondia em seu quarto, às vezes ele ficava tanto tempo bravo, que até eu mesma me esquecia das coisas que estavam com ele. Um dia descobri que havia uma cópia da chave de cada porta da casa, com a minha mãe, pra que fossem usadas em caso de emergências. Eu esperei o momento certo para que ele não notasse que eu estava visitando o quarto dele. – Sei. – Mas, de uns tempos pra cá temos nos falado pouco, eu nem me lembro da última vez em que estive aqui. E hoje quando conversamos no intervalo é que eu percebi isso. Até mesmo os meus pais parecem estar estranhos. E só consegui ver isso agora! Tentei falar com eles se não estavam achando o meu irmão estranho, me disseram que deveria ser apenas uma fase, que logo passaria. Estou ficando assustada com isso.

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Alguma coisa tem que ser feita e você é o único que pode me ajudar! – Se acalme! Estamos sozinhos aqui? – Alberto mal podia acreditar que pronunciara estas palavras... Ao mesmo tempo em que ficara eufórico, se entristeceu, pois a frase não fora dita no sentido ou na circunstância que ele gostaria. – Já disse, só haverá gente aqui em casa depois das seis. Primeiro as damas – disse Carol abrindo a porta. – Estou morrendo de rir, piadista. – Agora Alberto, esse é o verdadeiro problema. O quarto parecia, à primeira vista, estar da mesma forma que Alberto se lembrava, com exceção dos consoles e jogos que não ocupavam mais as suas posições de destaque no quarto. Carol ficou chocada ao ver o quarto sem os consoles. Ela não esperava por isso. – Você quer continuar? – Sim. – Então se acalme, pois nem mesmo começamos. Olhando com mais calma o quarto parecia organizado. Juca era relativamente organizado com suas coisas, mais do que se esperava de um adolescente, especialmente com os videogames,

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embora não dedicasse o mesmo cuidado com suas outras coisas. No entanto a organização agora parecia excessiva, muito além do que era costume para Juca, e ainda mais além do que seria normal para qualquer outro adolescente. Era como se a organização estivesse lá para desviar a vista de alguma coisa. A única coisa que estava levemente bagunçada era o seu material escolar, mas ainda assim o material não parecia estar em uso constante, era como se vez ou outra, algum daqueles materiais fosse revirado rapidamente para dar a impressão que estavam sendo usados... Aqui e ali, viam-se marcas de poeira como se alguns pontos do quarto estivessem intocados a meses, e recentemente tivessem sido limpos às pressas, para que as aparências fossem mantidas. Alberto aproximou-se do computador. Ele estava ligado, apenas aguardando que fosse inserida a senha. – O que alguém que nada tem a esconder, teria a esconder? – O que disse, Alberto? – Estou pensando alto... Só tentando usar a lógica. Pense comigo, se ele tranca o seu quarto sempre que sai, nunca suspeitou que o quarto tivesse sido visitado por algum intruso enquanto Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo


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estava fora. O que ele teria a esconder, se não existe ameaça alguma? – Faz sentido... O problema maior é que todos aqui em casa estiveram meio zumbis – disse Carol, fazendo uma careta – e por isso algo importante pode ter sido dito, mas passou despercebido. Alberto virou-se para Carol e olhou para o pôster em suas costas. – É isso! Carol assustou-se pisando em falso num livro, quase caindo. – É isso o que? – Cuidado! Você não pode tirar nada do lugar. Entendeu? Nada! – Você me assusta, quase me faz cair, e a culpada ainda sou eu? E ainda tenho que levar sermão... Eu não tirei nada do lugar, relaxe... O que você descobriu. – Desculpe... Vê o pôster atrás de você? – Tem um dragão, uns bruxos e uns zumbis... O que tem demais nisso? Os jogos não estão repletos disso? – Exato. Este é um pôster do Golden Dragon, é um dos últimos jogos que me lembro dele comentar. Era um dos jogos favoritos dele. Não vê nada de estranho no pôster?

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– Não... Sim! Eu vejo uma das laterais meio dobrada. – Isso mesmo. Ele jamais permitiria que o pôster do seu jogo favorito fosse danificado, veja se há alguma coisa atrás dele. – Na parede não há nada, mas no pôster tem uma palavra. – Que palavra? – Impacta, mas... – Ótimo! Alberto digitou a palavra dita por Carol como senha, mas não conseguiu acesso. Com o erro, surgiu uma mensagem de que ele teria apenas mais duas tentativas. – Qual era mesmo a palavra? Não deu certo. – Como você coloca a primeira coisa que surge como senha? Agora só temos duas chances. – Não é a primeira vez que essa palavra surge, ao menos pra mim. Já vi esta palavra antes, era o nome de um grupo de jogadores em que Juca e eu fazíamos parte. Uma época fiquei um tempo afastado e me expulsaram. Isso já faz um bom tempo, não sabia que ainda existisse, ou que o Juca ainda fizesse parte dele. Até agora tinha me esquecido dele... Tem certeza que está escrito isso? – Sim. É claro que eu tenho certeza, mas...

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– Erro! Temos só mais uma chance! Mas não faz sentido. A senha tem que ser esta! – Será que você pode me ouvir antes que acabem as tentativas? – Sou todo ouvidos. – Não está escrito impacta. Mas sim, impaCta. Toda a palavra é escrita com letras minúsculas, mas a letra “C” é maiúscula. – Tem certeza disso? – Se tivesse me ouvido da primeira vez, não estaríamos perdendo tempo com essa coversa. – Desculpe. Vamos lá i-m-p-a-C-t-a! Enter. – E então? – Veja. – Conseguimos! – Calma, falta uma coisa para termos acesso as informações. Precisamos da Jynx. – Jynx? Quem é ela? Um Pokémon? – Sim e não. Sim é um Pokémon, mas não falo desta Jynx, mas sim de um programa que fará uma varredura no PC do Juca. Esse programa vale ouro. Tive muito trabalho para conseguir ele. É uma das coisas mais importantes que eu consegui até hoje. Alberto conectou um HD externo na máquina e executou o programa Jynx. Quando o relatório foi gerado, trouxe uma surpresa

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desagradável. A máquina estava limpa. Nenhum arquivo suspeito foi encontrado. – O que alguém que nada tem a esconder, teria a esconder? – E agora, o que faremos? – Nada. – Como nada? Mal começamos e você já vai desistir? – Já estamos próximos das seis. Em breve ele pode chegar. Não podemos confiar que ele vai chegar mais tarde hoje. E ainda tem os seus pais. O que eles diriam se nos vissem sozinhos em casa no quarto que deveria estar trancado. Imagine o seguinte, nós ficamos aqui um pouco mais, tempo suficiente para descobrir alguma coisa, mas conseguimos sair antes que Juca chegue. Ele se senta na cadeira do PC e sente que ela está quente. Se ele tocar no gabinete do computador, também vai perceber que está quente, mais do que deveria se tivesse ficado a tarde inteira no modo de espera. – Tem razão. Eles seguiram até o portão, Alberto montou em sua bicicleta, colocou o boné e saiu dizendo: – Confie em mim. E aguarde por notícias minhas. O coração de Carol apertou em seu peito. Não que ela não confiasse em Alberto. Ela apenas

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não tinha um bom pressentimento do que poderia vir adiante.

Passado algum tempo, era Alberto que parecia estar estranho. Estava quase sempre em silêncio, envolto em seus pensamentos. Ele evitava conversas com todos, estava perturbado, evitava principalmente Juca e Carol. Esta sempre que podia o procurava atrás de respostas, mas sempre recebia a resposta padrão: – Fique calma! Estou descobrindo uma porção de coisas a cada dia, mas por enquanto não tenho nada confirmado. Não quero te trazer desespero desnecessário... Confie no que eu digo.

O tempo continuou passando. Dias viraram semanas, semanas viraram meses. Faltando apenas um dia para as férias escolares, Carol foi até a casa de Alberto atrás de respostas. Ele pareceu muito abatido e doente ao atendê-la, e sequer a convidou para entrar. – Alberto, o que está acontecendo? Pare de me enrolar! Tudo está fora de controle! Amanha é o último dia de aula antes das férias, nós vamos viajar logo após a aula, mas o Juca não vai. Meus pais permitiram que ele ficasse em casa. Eles Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo


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agem como zumbis se o assunto for o Juca e suas esquisitices. Estou desesperada! – Carol, desculpe, não estou bem... – Não feche a porta! Esperei tempo demais por isso. Essa pode ser a nossa última chance de fazer alguma coisa, antes que algo realmente sério aconteça com ele. O que acha que ele vai fazer esse tempo todo em que estivermos fora? A cada dia ele chega mais tarde. Isso nos dias que ele dorme em casa. Já vi a cama dele ficar três noites seguidas intacta. – Carol, eu... – Alberto hesitou – Um momento. Minutos mais tarde, ele retornava com uma pequena bolsa acolchoada. – Aqui está. Isso é tudo. – O que é isso? – Abra a bolsa, aí dentro estão as suas respostas. Mas tome cuidado... Pode ficar com ele. Adeus, não me espere na escola amanhã. Estou doente. Alberto bateu a porta ao terminar de falar, ele não pareceu fazer isso por mal, a presença de Carol parecia o incomodar de alguma forma, e a única forma de se sentir melhor era fazendo com que ela saísse dali. Carol foi para casa o mais rápido que pôde, para descobrir o que havia naquela bolsa, que Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo


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estava afetando seu irmão, os seus pais e agora, aparentemente, Alberto.

Chegando em casa ela retirou da bolsa um HD externo muito parecido com o que Alberto levara ao quarto de Juca meses antes. Dentro dele a surpresa desagradável a aguardava depois de alguns cliques. O HD estava praticamente vazio, havia apenas a pasta do Jynx e dentro dela os arquivos do programa e uma pasta contendo e-mails. Era bem estranho ele ter lhe dado o HD externo contendo o Jynx, sendo que ele mesmo havia falado da dificuldade que teve para consegui-lo. Será que ele falou aquilo mesmo ou ele apenas teria se expressado mal? De qualquer forma os emails a aguardavam, e depois que terminasse ela devolveria o HD para ele. Dentro da pasta “e-mails” ela verificou mensagem após mensagem e as horas foram se passando. No início, eram mensagens típicas de qualquer adolescente conversando com os amigos sobre partidas de jogos online e outros assuntos. Seguindo a separação que Alberto fizera nas mensagens, o início de tudo foi com um email do Grupo Impacta do dia 07/01/2012.

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A mensagem informava que naquele ano o Grupo Impacta passaria por uma reestruturação e pedia que os membros do grupo não se preocupassem com nada, pois as atividades normais seriam mantidas. A diretoria prometia novos eventos para o ano de 2012, e anunciava eventos especiais ainda para o primeiro semestre no game Golden Dragon. O primeiro deles seria no dia 13/02/2012, em uma clareira escondida da Floresta da Neblina, onde ocorreria o encontro das Bruxas à meia noite. Nas semanas que se seguiram, Carol leu dezenas de e-mails dos membros do grupo comentando sobre o evento, impressionados com tudo o que viram e sentiram durante o tempo que estiveram lá. Tudo parecia ser muito realista, muitos diziam. Novos e-mails anunciando um evento no dia 13/04/2012 prometiam o acesso pela primeira vez a um local proibido, conhecido como Cemitério dos Dragões, Lar dos Zumbis. Nas mensagens que se seguiram o entusiasmo visto nos primeiros emails pareceu ter se multiplicado por dez. Mais uma vez, os membros do grupo elogiavam a experiência, e pareciam surpresos com o realismo dos detalhes, as sensações e os cheiros... Carol notava a estranheza aumentando a medida que lia as mensagens, será que alguns deles se drogavam antes de jogar? Juca também

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demonstrava entusiasmo nas mensagens, mas em medida bem menor do que os outros, como se para ele faltasse alguma coisa durante a experiência. Ela continuou lendo os e-mails entre o Grupo Impacta e os jogadores, e logo após o evento do dia 13/07/2012, novas mensagens aumentavam a estranheza da situação. Nesse evento, o Grupo Impacta anunciou o vencedor da Prova do Aprendiz, e Carol começava a se perguntar até que ponto era mérito tecnológico, e até que ponto era loucura de cada um. Entre uma descrição e outra, muitos comentários surgiam sobre a premiação do evento. Notava-se algum descontentamento com os jogadores escolhidos. O fanatismo e a ansiedade cresciam a medida que a data das mensagens avançava e as mensagens do Grupo Impacta pararam de chegar. O desespero era facilmente notado pelas mensagens de alguns. No dia 06/01/2013, surgiu o primeiro e-mail do Grupo Impacta relacionado a um novo evento especial. Eles agradeciam pelo apoio dos membros que fizeram o sucesso dos eventos anteriores ser possível. Informavam que em algum momento do ano de 2013 um novo evento ocorreria. Mais uma vez, o Grupo entrou em um silêncio prolongado. Em muitas mensagens era difícil não crer que muitos deles já haviam ultrapassado a barreira da loucura. Reclamações, súplicas, demonstrações

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de amor e ódio povoavam as mensagens e também os relatos das partidas. O silêncio foi quebrado em 01/06/2013, data em que um novo e-mail foi recebido anunciando um novo evento no dia 13/09/2013. Uma onda gigantesca de mensagens formou-se com o anúncio do evento, e o clima hostil cada vez mais patológico que se espalhava pelos membros do Grupo se dissipou como num passe de mágica. Seu irmão sempre se mostrava entusiasmado com a possibilidade de um novo evento, ao contrário dos outros jogadores, que demonstravam um fanatismo quase doentio. No início de 2014, o Grupo Impacta voltou a se pronunciar. Uma nova Prova do Aprendiz foi anunciada para 13/06/2014. O nível doentio das conversar continuava alarmante durante o período que antecedeu o evento. Seu irmão, embora demonstrasse um comportamento normal até a data do evento, começou a apresentar mudanças sutis quando sua vitória foi anunciada. Mensagem após mensagem, ele parecia ficar cada vez mais parecido com os outros. Os e-mails do Grupo Impacta voltaram a aparecer no dia 31/01/2015, anunciando um novo evento para aprendizes que ocorreria no dia 13/02/2015, na clareira Floresta da Neblina, durante a reunião das Bruxas à meia noite. Outro

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e-mail recebido em março anunciava um evento para o dia 13/03/2015. Carol continuava a observar as menções a imersão no universo do jogo. As mensagens que se seguiram eram bem mais explicitas em seus comentários, cada um dos aprendizes, inclusive seu irmão, contava características cada vez mais detalhadas das regiões do jogo, de batalhas e situações que segundo estes, realmente teriam vivenciado.

O cansaço tomara o controle de Carol, já era madrugada e ela acabou adormecendo sobre a mesa do computador. Horas mais tarde ela despertou e ao abrir os olhos visualizou as anotações que fizera anteriormente, fixando-se nas datas. Ela tinha o estranho costume de somar todos os números que via em sequência. Vendo as datas fez o mesmo e para a sua surpresa a maioria delas acabava com o resultado da soma sendo o número treze. Seguindo o padrão das datas dos eventos, Carol buscou no calendário a data que deduzia que seria o próximo evento. Mas já era tarde, a sexta 13/11/2015, já havia ocorrido há duas semanas. Ela vasculhou os últimos e-mails da pasta em busca de alguma pista que a colocasse à

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frente, e viu um recibo de compra com alto valor do Grupo Impacta. Era uma réplica do livro de feitiços do jogo. Estaria nesse livro o dinheiro da venda do console e seus jogos? Carol pegou a chave do quarto do irmão e correu até lá. Faltavam alguns minutos para o amanhecer, Carol não se importava com o horário ou se poderia ser descoberta pelo irmão, o tempo se esgotava e ela precisava fazer algo. Ao se aproximar da porta o uso da chave não foi necessário, ela estava apenas encostada. Carol teve um mau pressentimento, mas mesmo assim entrou no quarto. A cama permanecia intacta, as mesmas coisas estavam nos mesmos lugares, como da última vez que esteve lá com Alberto. Sobre a mesa do computador havia um grande livro com capa de couro. Ela o folheou e página após página, encontrou textos e pequenas notas com a letra do irmão. Eram listas de ingredientes, instruções e impressões pessoais sobre o uso de poções e encantamentos, além de constantes menções a visitas aos locais do jogo Golden Dragon. Os textos tinham detalhes tão ricos e verossímeis, que era difícil duvidar que não fossem verdadeiros.

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Folheando mais algumas páginas chamava a sua atenção a descrição da criação de um zumbi e a poção do esquecimento. Além de ingredientes e modo de preparo, haviam também comentários de Juca sobre as dificuldades em se conseguir alguns ingredientes, no preparo e principalmente nos testes bem sucedidos que fizera com a sua família. Ele relatava que ninguém suspeitava de sua vida dupla e que, em breve, ele poderia enfim seguir definitivamente para as terras de Golden Dragon. Na última anotação, Juca escreveu sobre o que faria no dia 30/11, o último dia de aula. Ele havia juntado tudo o que precisaria em sua nova vida, os aprendizados dos últimos tempos. Buscaria o que faltava para partir, a “oferta de bom grado e a oferta própria”. Sairia cedo com as ofertas, para purificá-las e preparálas para o ritual final. Em local algum do livro, havia anotação ou menção ao endereço ou o que seria a oferta de bom grado. Desesperada, revirou o quarto em busca de respostas sem conseguir nada. Olhou para o pôster do Golden Dragon e se lembrou da senha anotada no verso, talvez houvesse algo mais que a ajudasse. Ao levantar a borda solta do pôster, um

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pedaço de papel caiu no chão e nele havia apenas o logotipo do curtume de cidade. – O que o Juca queria no curtume? Ele foi desativado há algum tempo e... Ela entendera, todas as noites em que ele não retornava era para lá que ele ia. Talvez ainda houvesse tempo, se ela fosse rápida e fria, talvez ainda houvesse tempo. Já era quase hora de ir para escola. Antes que sua mãe a chamasse, aprontou-se rapidamente enquanto seus pais tomavam café. Despediu-se rapidamente dos pais evitando levantar suspeitas. Levando o livro na mochila seguiu para casa de Alberto. Pelo caminho lembrou-se que ele estava doente e que não iria à escola aquele dia, na verdade, poucos seriam os que iriam naquele dia. Na casa de Alberto, sua mãe atendeu a porta, quando Carol tocou a campanhinha. – Bom dia, Dona Marta. – Bom dia, Carol. – O Alberto está bem? – Sim, ele não deveria estar? – É só forma de falar... Eu gostaria de falar com ele. – Desculpe Carol, ele já foi para a escola. Saiu mais cedo, hoje ele tinha que chegar mais

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cedo para ajudar nos preparativos da festa de fim de ano, sabe? A sua sala também vai fazer? – Sim, eles vão... Mas me diga uma coisa, ele saiu sozinho? – Claro! Ele não tem más companhias! – respondeu D. Marta com rispidez. – Só mais uma coisa, a senhora já viu um livro semelhante a este com Alberto? – Não vi. Se me der licença tenho muitas coisas me esperando. No fim da conversa D. Marta estava visivelmente irritada, tendo até batido a porta quando terminou de falar. A casa de Alberto ficava longe do local onde era o curtume. Ela seguiu até lá, mesmo sem a ajuda de Alberto, pois este era o último local a ser verificado. Entre uma pedalada e outra no decorrer do trajeto ela pensava na última anotação do livro. O que seria a oferta de bom grado e a oferta própria? Num estalo entendeu, Alberto fora o único a perceber a estranheza do seu irmão, e de bom grado, se dispôs a saber o que se passava com ele. Agora que ela havia lido os e-mails, percebera que a pesquisa afetara Alberto de alguma forma... Talvez quando ele entregou o HD a ela, ele tivesse feito o último esforço consciente na Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo


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esperança de ajudar o amigo. E a oferta própria poderia ser o irmão, ele mesmo se ofereceria! Com todas as forças que tinha, pedalou o mais rápido que pôde para o curtume. Muitas pedaladas mais tarde o mau cheiro no ar já denunciava que ela estava próxima do curtume. Era estranho o curtume ainda ter tanto mau cheiro, sendo que estava fechado há tanto tempo... Muitas coisas se passaram pela mente dela, a maioria delas macabras. Ela fazia o que podia para afastar os pensamentos negativos que poderiam atrapalhar o seu raciocínio. Carol desceu da bicicleta assim que se aproximou da entrada do curtume. Ela se escondeu entre algumas árvores, chamou a polícia e não se moveu até que a viatura chegasse. Os policiais desceram do carro e entraram no curtume. Apenas o silêncio e o cheiro de podridão ficaram suspensos no ar. Algum tempo depois, os policiais saíram reclamando que haviam recebido um trote e foram embora. Carol ficou em um impasse, se a polícia saíra de lá daquela forma, não havia nada naquele local, e por isso, sua busca teria sido infrutífera. Assim, ela deveria sair dali, pois aquele local não teria nada a acrescentar em sua busca. Ao mesmo tempo, algo dentro dela dizia que ela deveria ir até lá e verificar, se a polícia saiu

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de lá sem alarde, perigo não havia. Carol tocou na mochila em suas costas e sentiu o livro. Em um impulso de loucura seguiu ao curtume. Caminhando pelo local, ela viu o mato crescendo, corredores e salas vazias. Não havia realmente nada ou ninguém para se ver. Pouco antes de desistir, notou de onde vinha a fonte do mau cheiro, já caminhara tanto, um pouco mais não faria diferença antes de sair. Ela caminhou até chegar a um grande pátio repleto de grandes máquinas, tudo isso a céu aberto. No centro deste pátio havia diversos fragmentos de papel queimado sendo levados pelo vento, junto com cinzas e fuligem. Até então nenhum sinal de qualquer outra coisa estranha, ou de qualquer pessoa no local. Mais adiante, num espaço que ocupava vários metros quadrados, alguma coisa líquida refletia a luz do sol. Ao se aproximar viu que era uma poça gigantesca de um líquido vermelho que se parecia com sangue. Ela avançou vários metros no meio da poça e seus passos levantavam várias gotas daquele líquido, que respingavam em suas roupas. Quando estava no meio da poça, olhou a sua volta e viu vários pedaços de papel queimado,

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cinzas e fuligem voavam pelo ar e pousando com leveza no chão e no maquinário. Carol retirou a mochila das costas e a jogou na poça vermelha, retirou o livro dela e o agarrou com força, abraçando-o junto ao peito. Não havia sinal de ninguém por ali. Não havia sinal de luta em parte alguma, além do líquido vermelho e dos papéis, nada mais havia de incomum no local. Uma lágrima rolou pelo seu rosto e ela caiu de joelhos na poça vermelha, que poderia muito bem ser o sangue do seu irmão. Ela largou o livro de Juca no chão, que foi lentamente absorvendo o líquido e se tingindo de vermelho. Ela batia com força na poça com os braços até que ficou coberta pelo líquido. Gritava e chorava desesperada, sem demonstrar que se consolaria em algum momento. Carol não queria, mas ela sabia. Ela não queria acreditar, mas ela sabia...

Epílogo

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Terminava mais um dia de visita, eles se perguntavam quando tudo começara, o que poderia ter dado errado, se algo poderia ter sido feito para aquilo ser evitado. Carol era uma menina normal, como tantas outras, mas há alguns meses parecia diferente, fazia perguntas estranhas... Seria o cansaço por ser o seu último ano na escola? Perguntava vez ou outra sobre o seu irmão. Mas como? Ela nunca teve irmão! Por que só revelara esta falta agora e não antes? Numa época em que algo poderia ter sido feito. Se ao menos o filho esperado antes dela tivesse vingado... Pobrezinha, na véspera de nossa viagem de férias que poderia ser um descanso para a mente dela, chegou ao cúmulo de invadir o curtume da família, agredir funcionários e se trancar no velho parque fabril em reformas. O que ela buscava por lá? Todo o teto estava sendo trocado, naquele local só havia máquinas obsoletas. Qual propósito haveria em se espalhar tantos galões de tinta vermelha criando uma enorme poça e chafurdar nela abraçada a um velho manual farmacêutico com capa de couro, logo após queimar várias páginas dele. Ela gritava e esperneava desesperada na poça de tinta vermelha, bradando a todo pulmão

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que era o sangue de seu irmão Juca e do amigo Alberto, que ela criara junto com a história do irmão meses antes. Que eles haviam se sacrificado para partir a um mundo medieval dentro de um jogo e a única coisa que restara deles era o sangue espalhado pelo piso. E todo o plano diabólico que culminou com a morte deles foi orquestrado pelo Grupo Impacta, o mesmo nome do grupo responsável pelo serviço de limpeza terceirizado no curtume. Os pais dela saíram tristes, algo desnorteados do sanatório, desviando da água no corredor. Já era hora da limpeza, eles se apressaram o mais que podiam, pois sempre que o zelador passava perto do quarto dela, ela gritava por socorro, mesmo estando sedada. O simples ruído dos passos do zelador a alertava. Quando notava sua proximidade, gritava desesperada que aquele homem estava a observando esperando o momento certo para matá-la. Pois ele era um deles. Os pais dela deram uma última olhada no corredor antes de saírem, viram o zelador carregando vários lençóis que pareciam ser vermelhos ao quarto dela. Isso não lhes chamou a atenção, eles continuaram caminhando e como última visão do corredor puderam ver de relance

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o que estava escrito em suas costas: Serviços Terceirizados Grupo Impacta.

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Fábio Guastaferro

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iros! Estes estouros estão vindo do lado de fora. Tenho certeza que são tiros. Me aproximo da amurada da sacada do camarote e percebo um homem de chapéu e sobretudo passar pela enorme e decorada porta dupla que dá acesso ao salão. Neste momento as mesas estão praticamente vazias, as poucas pessoas presentes assistem a banda sobre o palco na outra extremidade do salão, ensaiando um numero de jazz para a apresentação da noite.


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Seria corriqueiro o fato de um homem entrar no salão se não fosse a Thompson M- 1928 em sua mão, pronta para atirar. Sei que chegou a hora. Minhas mãos suam com a possibilidade de ter que apontar o rifle e atirar naquele homem. A dúvida e o medo me tomam quase que por completo. Será que consigo acertá-lo daqui? E o barulho não vai chamar atenção dos que estão do lado de fora? Será que há outros que entraram sem eu ver? E a banda, será que não perceberam? Eles continuam tocando, cada vez mais alto. Escuto o som de vozes, vozes próximas à escada que dá acesso às sacadas. Sei que são eles. Bem que avisaram que iriam tentar matar o Capo em uma destas reuniões de famílias. Me distraio com o barulho nas escadas e quando olho para baixo o homem já sumiu. Quero correr, tenho que correr e me esconder, pois se me avistarem eles vão atirar, vão me acertar, vão me matar. Mas não consigo. Minhas pernas não se movem. Não consigo sair do lugar, sinto como se estivesse rastejando, estou cada vez mais desesperado e a música, a música não para de tocar, cada vez mais alta, cada vez mais familiar...

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O despertador! Estou sempre sonhando com as músicas do meu despertador. E esse sonho agitado deve ser por conta da casa nova, da vida nova, de novos desafios que agora se abrem para mim. Meu primeiro dia nesta casa, neste bairro, neste mundo. Tem tanta coisa para fazer, tanta coisa para conhecer, para viver. Mas vou começar do básico, atendendo as minhas necessidades fisiológicas. O banheiro ficou um pouco distante do quarto. Bem que poderia ter dois banheiros. Este, aqui na área de serviços e outro dentro do quarto. Esta nova casa é até bonita. Muita coisa me agrada, mas têm outras de muito mau gosto, a começar pelo piso de ladrilhos preto e branco na cozinha, parecendo um tabuleiro de xadrez. Bem que poderia ter feito ela maior também. Acho a sala apertada e a disposição dos movíeis não me agrada, dá um aspecto de entulhado. Já o jardim é lindo, a grama ainda tá verdinha e tem uma garagem, vazia ainda, mas por pouco tempo. Hoje quero dar uma volta pela vizinhança. É sempre bom conhecer os vizinhos e quero fazer muitas amizades. Preciso também trabalhar, vou dar uma olhada nas opções de emprego para ganhar algum dinheiro. Quero comprar algumas

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roupas novas, móveis novos e arrumar essa casa de acordo com o meu gosto. Sim, quero começar uma vida nova. Mas agora estou com fome. Preparo um café na cozinha de ladrilhos pretos e brancos. Enquanto o café não fica pronto eu ligo o rádio e a música que toca me deixa bem animada. Distraidamente me pego cantando as frases que reconheço na música, apesar de que, acho que nunca ouvi essa música. Depois do café vou dar uma olhada na caixa de correios, lá tem um anúncio de uma agencia de empregos. Preciso trabalhar. Vou ligar e ver o que eles podem me oferecer. Preciso de um cachorro também. Sinto-me muito sozinha nessa casa. Após a ligação a agência me oferece uma infinidade de opções de trabalho, mas a minha formação é ainda básica, decido pela profissão que exige menor capacidade. Vou ser auxiliar, mas ainda não sei de que. Tudo bem! Amanhã pretendo estudar mecânica ou quem sabe informática. Tem uma estante com alguns livros aqui, com algumas horas de estudo eu me capacito para um emprego melhor. Mas vou ficar com esse por enquanto. Retorno à ligação e estou contratada. Amanhã começa o serviço. Ligo a TV e a manhã logo passa. Já estou com fome e vou preparar algo para comer, quem sabe um almoço. A refeição é boa, mas simples. A comida tem gosto de borracha, mas eu como sem me importar. Após Player – Fábio Guastaferro


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o almoço lavo a louça, não gosto de cozinha suja, decido que vou dar uma volta no bairro, quero conhecer a nova vizinhança, mas antes uma passadinha no banheiro. A caminhada foi longa, mas infrutífera. O bairro é bonito, mas não vi quase ninguém, esse horário todos deve estar trabalhando. O sol estava bem quente e chego ensopada de suor. Preciso de um banho, mas quero também dar uma relaxada no sofá, me sinto um pouco cansada, e também sinto um pouco de fome, mas não muita.

O cheiro do quarto chegava a ser nauseabundo. Uma mistura azeda de cheiro de comida podre com chulé, mofo e até urina. Era um cheiro forte, mas que não o incomodava. Na verdade, Marcelo já havia se acostumado. Aquele era o seu cheiro. O ambiente estava escuro, apenas a luz do monitor iluminava o quarto e a pessoa a sua frente. Uma luz forte, porém direcionada. Não precisava de luz no teclado. O seu teclado era dos mais sofisticados, com leds para cada tecla, podendo ser configuradas cores para as teclas mais usadas. Recentemente ele o configurara

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para este último jogo, e poucas teclas se destacavam no negrume da mesa. A temperatura não era muito agradável. Estava um pouco quente e abafado, mas ele não se importava. Já que estava sozinho, poderia ficar só com a sua pequena roupa intima. Uma cueca já manchada de mijo. Ele não a trocava havia três dias, desde a última vez que tomou banho. A cama ainda estava do mesmo jeito que a deixara quando levantou. Não quis arrumar. Imaginou que logo estaria deitado nela de novo, e não se deu ao trabalho de estender os lençóis. Marcelo tinha uma confortável cadeira de escritório, daquelas de chefe, na qual ele estava sentado há quase nove horas. Ele terminou um dos seus serviços de free-lancer e se enveredou por mais um jogo. Sempre que ele iniciava, ele queria jogar o máximo de tempo possível. Após tanto tempo seus olhos já começavam a arder. As costas também já o incomodavam, era muito tempo sentado ali, e o corpo clamava por descanso. Ele precisava esticar as costas, de preferência numa posição horizontal, e quem sabe, até dormir um pouco, mas antes tinha que comer alguma coisa. Sua última refeição foi um copinho de iogurte, que ainda estava sobre a mesa, empurrado ao fundo, junto à parede por cima de fios empoeirados. Lá ainda tinha mais dois daqueles

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copinhos, com resquícios de um liquido já meio enegrecido. Levantou. As costas estalaram. As pernas, um pouco dormentes começaram a formigar. Marcelo esfregou as mãos para ajudar o sangue a correr, e resolveu dar um pulo até a cozinha, já programando um assalto à geladeira. Decidiu ir de cueca mesmo, imaginava que às quatro da manhã não haveria ninguém acordado para julgálo um louco seminu. Marcelo morava com a tia que o criara. Atualmente eles tinham a companhia de uma enfermeira, que acompanhava a tia já idosa e doente. Marcelo não tinha muito contato com as duas, apenas quando precisava de um pouco de dinheiro e, claro, de um pouco de comida. Na cozinha fez um sanduíche de pão de forma gelado, com bastante maionese e ketchup, comeu junto com um restinho de refrigerante já sem gás, e foi dormir. Ao deitar na cama, toda desarrumada, Marcelo dormiu quase de imediato, e sonhou. Sonhou que ainda jogava. Era sempre assim após uma maratona de um jogo novo.

O despertador toca, não posso enrolar mais na cama. Tenho um compromisso e não quero me atrasar para o trabalho. Levanto rapidamente,

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coloco a roupa do serviço, passo no banheiro. Vou até a cozinha combater a fome e saio para trabalhar. O emprego é simples, mas é bom. Já tenho planos para o dinheiro e pretendo aumentar o meu nível de proficiência para buscar um lugar que pague mais. Chego do serviço no final da tarde. Corro ao banheiro para uma e aproveito para tomar banho e colocar a roupa de ginástica. Hoje vou fazer uma caminhada. No serviço conheci alguns amigos, e marquei um encontro em casa para um lanche e um bate papo, não quero me demorar no exercício. Ao chegar, vou arrumar algo para comer e aguardar a chegada do pessoal. Vieram três pessoas, todos chegaram quase ao mesmo tempo. Dois deles se incomodam por eu ainda não ter móveis para melhor atendê-los, mas no geral está tudo bem. Decido ligar o rádio, e logo a nossa reunião fica bem animada. Formamos dois casais e dançamos. Logo começa a ficar muito tarde e eles resolvem ir embora. Gostei da reunião, mas a casa ficou bem suja, quero limpar antes de ir dormir. Gostei do encontro, eles são animados, mas tenho que me lembrar de comprar uma mesa e de ligar para o meu parceiro de dança, um novo encontro até que seria bom.

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Após a limpeza, vou escovar os dentes para dormir, já passou da hora e terei menos horas de sono. A rotina é praticamente a mesma do dia anterior. Só que não tenho encontro. Resolvo fazer compras. O dinheiro que recebi do serviço não é muito, mas já dá para fazer algumas coisas. Posso comprar alguns móveis para a casa, posso comprar alguns livros para estudar ou então trocar o chão da cozinha que tanto me incomoda. Posso também comprar um cachorro. Ter um cachorro seria legal. Decido por um piano, não fazia parte dos meus planos, e mal cabe na sala da minha casa, mas eu sempre quis tocar. Depois junto mais dinheiro e aumento essa sala.

Marcelo tinha sido demitido fazia quase duas semanas. O chefe gostava dele. Sabia que era um cara inteligente e capaz, o problema é que não era muito compromissado. Ele resolvia o problema, mas não vestia a camisa. Infelizmente era um cara que não podia contar com ele. Marcelo estava sempre perdendo prazos e fazendo as coisas na correria porque deixava tudo para última hora. Por algum tempo, seu chefe pensou que ele tinha outras atividades, que acabava por comprometer seu desempenho durante o dia, principalmente pela manhã. Realmente ele fazia

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outros serviços, mas sem vínculos, os conhecidos bicos que ele gostava de chamar de “freela”. Marcelo é um exímio programador, tem um bom raciocínio para lógica de programação e conhece algumas linguagens que estão em alta no mercado. Serviço realmente não lhe falta, o problema é com ele mesmo. Desde que saíra do ultimo emprego, decidiu trabalhar por conta própria em um projeto. Um projeto próprio que desenvolveu com um amigo que conheceu em um MMO. Esses jogos online onde diversos jogadores jogam simultaneamente. Este é o principal meio social que Marcelo frequenta. Lá ele também conheceu a sua atual namorada que entrou para experimentar e ficou quase dois anos imersa no jogo. Atualmente, Tábata não joga tanto quanto antes. Ela está trabalhando, estudando e namorando. Namorando nem tanto. Tem alguns dias que ela não vê Marcelo. Na verdade ela o via mais através jogo, mas ainda prefere os encontros físicos. Marcelo havia sugerido esse projeto a outra empresa que trabalhara, mas o gerente geral não lhe deu muita importância, mesmo ele apresentando um detalhado plano de negócios. Aquilo ficou engavetado esperando a oportunidade chegar, e agora que tinha tempo

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para desenvolver faltava a Marcelo o foco. Ele havia elegido este projeto o seu objetivo primordial, de certa forma, ele sonhara em ganhar muito dinheiro com este empreendimento, o suficiente para mantê-lo no mercado, caminhando com as próprias pernas. Estava pegando um ou outro trabalho simples para não ficar totalmente sem grana, mas iria dedicar todo o seu tempo ao seu próprio projeto. Porém, as coisas não passavam de planos, que se recusavam a deixar a cabeça de Marcelo.

Acordar cedo, escovar os dentes, usar o vaso sanitário, trocar de roupa, tomar café, fazer um exercício físico, passear com o cachorro, sair para trabalhar, voltar do trabalho, passear com o cachorro, tomar um banho, fazer um lanche, estudar, ver TV, dormir. A rotina se repete quase todos os dias, com pequenas variações. Às vezes, recebo amigos, às vezes, um encontro amoroso. Agora tenho um companheiro, ele vem sempre a minha casa, mas não de uma forma frequente. Tenho um cachorro também. Troquei o piso da cozinha, inclusive aumentei o cômodo, agora tem uma grande mesa. Fiz um banheiro no quarto. Troquei alguns móveis, aumentei alguns cômodos. Aprendi a

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tocar piano, mecânica, eletrônica e informática. Também estou graduada em comunicação. O meu emprego paga bem e, assim, comprei um carro e muitas roupas novas. No meu jardim tem um pequeno anão que chegou pelos correios. Talvez eu me case, mas não sei se existe essa possibilidade. Minha rotina se repete quase todos os dias, com algumas exceções.

A sua volta tudo está parado, mas Marcelo sente que está progredindo. Ele passa de dez a doze horas na frente do computador, trancado dentro do quarto, a maior parte do tempo seminu. Tem se encontrado menos com os amigos, na verdade, ele não gosta muito desses encontros de bar, de balada, de curtição. Vez ou outra vai a algum evento cultural, algum show de música. Ia também ao cinema, principalmente com a Tábata, mas acha mais fácil ver os filmes pela internet, no conforto do seu quarto escuro e mal cheiroso. Tábata também parou de procurá-lo. Ultimamente ele só sentia falta dela para o sexo, e resolveu isso com os milhares de vídeos que tem nos favoritos do seu browser. Ele não fala com ela já há alguns dias, e também não se importa. Acha que nunca gostou dela, era mais pelos poucos

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interesses que ambos partilhavam. Ela parecia entendê-lo, mas parece não suportá-lo. Não mais. Ele não se importa. Marcelo acabou de acordar e resolveu almoçar, se ainda tivesse almoço. Sua tia tem uma alimentação diferenciada, voltada para a doença dela e ninguém faz comida em casa. Às três horas da tarde vai ser difícil Marcelo achar comida fresca, e ele decide assar um congelado. Mais um congelado. Enquanto a massa esquenta no forno Marcelo liga o computador, logo ele está comendo em frente ao monitor, ainda com a mesma roupa que acordou. Não se importa com o refrigerante que entorna na mesa cheia de objetos, com uma meia ele limpa parcialmente e volta a se concentrar no monitor. Seus dedos são ágeis e ele faz diversos comandos no teclado. Marcelo gosta dos que faz, está concentrado e sabe que aquela tarefa vai lhe tomar o resto do dia e possivelmente a noite toda. Talvez ele dê uma pausa para tomar um banho, quem sabe dar uma volta. Faz três dias que não sai na rua, há dois não vê as pessoas que estão dentro de sua casa. Também não se importa com a TV. Marcelo não sabe muito bem o que acontece no mundo, mas ele não está preocupado, ele só que terminar, terminar mais esse. Ele sabe que falta pouco, que já progrediu bastante, sabe que

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está chegando ao fim, mas falta uma coisa ainda que ele precisa fazer, talvez leve mais algum tempo, mas ele tem que tentar para fechar com chave de ouro. Não sabe se existe essa possibilidade, mas ele precisa casar. Só assim vai zerar este jogo.

Acordo como se estivesse em transe. Estou muito assustado. Ouço meus companheiros engatilhando as armas e conferindo os equipamentos. Sinto a tensão no ar e me coloco em posição. Engatilho a Kalashnikov, prendo ao cinto uma granada explosiva e outra de fumaça e carrego a pistola Desert Eagle com um pente de sete balas. Estamos na principal parte da missão, agora que invadimos o local, só falta plantar a bomba, e este é o meu principal objetivo.

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VERITAS VOS LIBERABIT _______________

Fabiano dos Santos Araújo

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ais uma vez tudo se iniciava da mesma forma. A experiência e tudo o que acontecia à sua frente se descortinava com extrema naturalidade. Estava no controle. Poderia fazer qualquer coisa que quisesse, tinha acesso a todos os locais possíveis, saberia de todas as coisas. Mesmo com tamanho poder e as infinitas possibilidades que ele poderia lhe trazer, mais uma vez, o início era o mesmo.


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Ele conhecia o processo e suas particularidades, mas sempre que chegava até “lá” sentia medo. Talvez hoje fosse um pouco diferente, pela experiência adquirida ao longo dos anos. Ainda assim, por mais irracional que parecesse, ainda tinha medo. O mundo a sua volta se apresentava com cores estranhas, evidentemente, se você conseguisse distinguir as cores num mundo quase totalmente em preto e branco. Tudo tinha um toque noir... Ele encostou seu Ford 1949 próximo da casa número 37. Tudo parecia congelado no tempo, o vento soprava e o sol aquecia, isso era um fato, mas não havia naturalidade em tudo o que via. Ao descer do carro, percebeu que a única presença que existia ali era a dele. Seguiu casa adentro, a mesma solidão se repetiu. Apesar da situação da senhora, ele não esperava encontrar tudo tão quieto. Olhou os cômodos da casa decorados como nos anos 50. Desta vez não tinha nenhuma intenção de interferir. Não queria ser invasivo de forma alguma, se possível, entraria na casa sem nem mesmo abrir a porta. Mas este tipo de coisa ele ainda não sabia fazer.

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Tinha a impressão de que não haveria mais segredos a serem escondidos, portanto, sua postura não invasiva se justificava. Em seu passeio pelos cômodos, percebeu que tudo estava bastante organizado. Mas havia aqui e ali alguns documentos sobre os móveis. A maioria deles era pálida e possuía a mesma aparência “preto e branco” do resto do mundo. Finalmente, um deles aparentou ser diferente, era sutil, parecia emanar um brilho próprio, o diferenciando dos outros. Aproximou-se do móvel em que ele jazia e olhou sem tocá-lo. A primeira vista o papel estava limpo, nada havia nele, mas ao aproximar o rosto, alguns símbolos se transformaram numa sequência de números. – “0015327509” – leu em silêncio –“030502” – continuou quando outros números surgiram abaixo dos primeiros. Quando ele se preparava para sair, os números que estavam no papel sumiram e em seu lugar algumas palavras foram se formando, mas diferentemente dos números, cada uma tinha um formato, algumas estavam cortadas, outras invertidas. – Desculpe, isso é tudo... Agora será com vocês... Cuidado! Obrigado – leu desta vez em voz alta.

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A folha de papel foi escurecendo das palavras para as bordas, até ficar completamente negra. Ele deu uma última olhada para ela, e seguiu para fora de casa até seu carro, arrancou e seguiu adiante, saindo daquele lugar da mesma forma que surgira.

Várias pessoas estavam na sala de vistas da mansão do Sr. Carlos, quando Matt pela primeira vez em minutos piscara como uma pessoa normal, não apenas executando a função mecânica de lubrificar os seus globos oculares. Após a primeira piscada, piscou novamente seguidas vezes como se seus olhos estivessem muito secos. Respirou fundo, pegou um bloco de anotações e passou a anotar as informações que fora incumbido de buscar. Vendo Matt se recompondo e fazendo anotações, pela primeira vez o Sr. Carlos soltou a mão da esposa e fez um sinal para que todos saíssem da sala. Antes que todos saíssem, Matt terminou de escrever no papel e olhou para a Sra. Valda, que estava a sua frente ao lado do Sr. Carlos. Devido ao derrame que sofrera meses antes, ela ficou com uma expressão bastante vazia no rosto. Mas desta vez por um breve instante, Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo


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apenas Matt percebeu o esboço de um sorriso em seus lábios, seus olhos, naquele momento, perderam a expressão morta que tinham e brilharam intensamente. Quando todos deixaram a sala, Matt se curvou em direção ao Sr. Carlos, lhe entregando o bloco de anotações e a caneta num tom seco: – Aqui está. Isso é tudo. O Sr. Carlos agradeceu fazendo uma leve reverência enquanto pegava o papel e o lia em voz baixa, para que apenas Matt ouvisse: – 0015327509 e 030503. Pouco antes de ler o que estava na sequência, hesitou antes de prosseguir: – Me desculpe meu bem, isso é tudo. Agora será só você... Tenha muito cuidado com o que buscas... Poderá alcançar. E será que estarás pronto para lidar com as consequências? Sempre lhe amarei. V. O Sr. Carlos olhou para sua esposa por um instante, estava imóvel como nos últimos meses. Rapidamente procurou sua mão e chorou. Já era tarde demais. Não fossem os apoios que a mantinham na mesma posição, talvez ela tivesse tombado o pescoço no momento final pensou ele, tentando se iludir. A verdade era esta, mas pela primeira vez ele não queria acreditar nela.

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– A mentira conforta o coração, Sr. Carlos. – disse Matt quebrando o silêncio – Não caia nesta armadilha. – Já está aqui dentro? – questionou o Sr. Carlos com um risinho irônico apontando para a testa, enquanto começava a enxugar as lágrimas. – Não. Você sabe que não. – retorquiu Matt secamente – Já vi esta cena vezes o suficiente para deduzir o que se passa em sua mente. Se você seguir por este caminho, não serei de grande ajuda para o senhor. O Sr. Carlos o olhava quase sem piscar, em resposta apenas respirou fundo e caiu sobre o próprio colo chorando. Matt seguiu para uma das janelas atrás do Sr. Carlos, e ficou observando o jardim enquanto pensava: – “As pessoas são realmente muito interessantes... Quem diria que o “Rochedo” poderia amolecer assim?” Enquanto observava o jardim viu os seguranças se posicionando discretamente entre as árvores, prontos para atacar ao menor sinal de perigo. Por um tempo o silêncio entre os dois se manteve. Não fosse o choro do Sr. Carlos, o silêncio na sala seria absoluto. – Obrigado por tudo meu rapaz – agradeceu o Sr Carlos – Você foi de grande ajuda nos Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo


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últimos meses. Seu carro o espera há alguns minutos. Matt fez uma reverência e seguiu até a porta, que fora aberta por um comando dado pelo Sr. Carlos. – Seus serviços são únicos, rapaz. Tem certeza que não gostaria de trabalhar conosco? – Desculpe. A minha busca é outra. – Caso precise de você ainda poderei contar com sua ajuda? – perguntou o Sr. Carlos voltando ao seu tom característico. Matt apenas assentiu positivamente com a cabeça e saiu. – Suas coisas estão no carro. – informou o segurança do lado de fora da sala. À medida que Matt seguia pelo corredor, todos que estavam na sala anteriormente foram passando por ele desesperadamente até a sala de visitas onde estavam o Sr. Carlos e o corpo da Sra. Valda.

A noite já havia começado e o velho letreiro do Dino’s Dinner já estava aceso, ao menos estavam acesas as lâmpadas que ainda não queimaram.

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Dino era italiano, mas já havia passado por tantos lugares que se considerava um cidadão do mundo. Sempre que você chegasse ao Dino’s Dinner, se esqueceria em que lugar do mundo você estava, ao entrar no local você se sentia em um dos restaurantes baratos que vemos nos filmes americanos. Dino gostava assim, ele dizia que era uma lembrança permanente de uma de suas viagens. Quase sempre o mesmo número de pessoas ocupava o lugar, mas a mesa do canto esquerdo nunca era ocupada. Entre um atendimento e outro no balcão, os olhos quase sempre irritados de Dino fitaram a mesa do canto esquerdo, ocupada por um homem solitário que olhava o cardápio. Dino deixou os clientes com um de seus funcionários, indo até lá com a feição carrancuda de sempre. – Deveria fechar melhor suas lixeiras meu senhor. Os animais de rua às estão atacando – disse Matt sem tirar os olhos do cardápio. Dino resmungou sonoramente, tirou o cardápio das mãos e colocou outro mais desgastado no lugar. – Cuide de seus negócios rapaz! – resmungou saindo. Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo


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Dino fez um sinal com os olhos para um funcionário, que levou à mesa de Matt uma xícara com água quente e um envelope de chá. Matt abriu o envelope, colocou o saquinho na xícara e o envelope vazio no bolso. Quando o conteúdo da xícara ficou escuro demonstrando que o chá estava pronto, Dino retornou a mesa, desta vez sentando-se em frente a Matt, pegou a xícara e começou a bebericar o chá. – Earl Gray... Delicioso realmente! – exclamou saboreando o chá – Mas é uma pena estar tão quente... – obviamente queimara a língua. – Eu pensei que você era italiano... – indagou Matt ironicamente. – Sou cidadão do mundo! Mas, já sabe disso, não é mesmo? – É... Já faz tempo que não vou aí. E não é hoje que pretendo voltar... – respondeu Matt com ar de repulsa. – Você tem trabalho hoje. – Que bom Dino! Sempre tem algo de bom para mim. – Uma hora dessas... – resmungou Dino com o rosto já vermelho – Está tudo pronto! Suma daqui! – Sem nada para comer... Você costumava ser mais generoso... Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo


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– Não sou um albergue! Meu restaurante precisa vender para se manter aberto. Cada vez mais morto de fome... Não há comida no mundo que chegue para você! – retrucou Dino. – Espero que seja algo divertido desta vez... – atalhou Matt, tentando mudar de assunto. – E será! Será amigão! – respondeu Dino sarcasticamente. Matt o olhou com medo nos olhos, pois nunca havia recebido esse tipo de resposta de Dino. Normalmente ele reclamava ou brigava com ele. Em silêncio ele se levantou, enquanto Dino acabava de tomar seu chá, seguiu até os fundos do restaurante, entrando no carro deixado para ele e seguindo pela escuridão que havia a frente. Muitos minutos e quilômetros à frente, Matt parou no centro velho da cidade, onde velhas construções abrigavam em muitos quartos e apartamentos, centenas de famílias mais pobres, os solteiros e os estudantes que não podiam pagar por um lugar melhor. Matt olhou novamente o bilhete que estava no envelope de chá, e este confirmava que o endereço estava correto. Ele o jogou no portaluvas, parou o carro e se pôs a pensar por um instante. Ele havia realmente chegado ao seu destino, mas normalmente, Dino o mandava encontrar os

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seus clientes em bairros mais desocupados ou muito mais violentos do que este... Como já parara o carro em frente ao prédio onde encontraria o seu cliente, deu com os ombros, tirou este pensamento da mente e adentrou o prédio, buscando o apartamento 21. Ao chegar ao segundo piso ele se deparou com a porta que procurava. Em todas as outras portas havia uma mensagem proibindo a entrada ou uso daqueles apartamentos. Ele tocou a maçaneta e com uma leve torção a porta se abriu. –“Talvez o cliente já esteja me esperando.” pensou Matt. O apartamento era muito pequeno, muito sujo, sombrio e pouco mobiliado, como ele já suspeitava. Na verdade havia apenas um sofá de couro marrom no lado esquerdo da sala, olhou em volta, e rumou até o sofá, que era parcialmente iluminado pela luz dos postes que entrava pela janela. Lá ficou sentado por uns 40 minutos, em silêncio. De repente fez menção de se levantar, talvez para olhar pela janela, se o cliente já estava chegando, ou mesmo para sair dali, devido à demora. Mas ele hesitou. Acomodou-se mais ereto no sofá e um sorriso surgiu em seu rosto quando falou: – Até onde quer chegar com isso?

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Após isso, manteve-se em silêncio, como se esperasse uma resposta de algum canto do apartamento vazio. – O combustível não é de graça sabia? – insistiu, mas novamente, não obteve resposta. Mais uma vez, não sendo respondido, Matt levantou os braços como se fosse pegar o volante de um carro. – Pois bem! Se quer me obrigar a este ridículo, tudo bem... Ele manteve uma das mãos na mesma posição e “bateu” com a outra onde deveria ser a buzina. Evidentemente, nenhum som foi emitido, mas na rua pode-se ouvir uma freada brusca, seguida do som longo de uma buzina. Com isso Matt não se sentiu inibido. Sentiuse incentivado. – Só vou lhe dar um último aviso. Os gases do escapamento logo tomarão este lugar e nos sufocarão até a morte! – ameaçou ao novamente repetir o movimento. Novamente o som não saiu. Ao invés disso, na sombra do lado oposto do sofá uma voz surgiu: – Ei! Tudo bem! Você venceu! Pare de chamar atenção. O apartamento ao redor de Matt foi desaparecendo, logo ele se viu novamente dentro do carro, o banco vibrava com o funcionamento do Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo


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motor e os gases do escapamento invadiam o habitáculo. – Você é quem procuro! Rápido! Já sabe onde devemos ir – disse a voz no banco do carona. Matt pisou no acelerador e sumiu pela escuridão novamente. Ele deu a volta com o carro e passou novamente em frente ao Dino’s Dinner. O letreiro estava idêntico, tão decadente como o vira da última vez, mas o prédio estava diferente, estava irreconhecível, parecia agora um restaurante comum, como os outros da cidade. Não tinha mais sua aparência americana. Após passar em frente ao restaurante de Dino, seguiu pelo mesmo caminho que “usara” há pouco. Ao chegar ao mesmo bairro, seguiu pela mesma rua, parando o carro em frente ao mesmo prédio. Desceu do carro e entrou, sendo seguido por seu acompanhante, que nada falara durante o percurso. Matt caminhou pelo térreo e seguiu pelas escadas apenas parando no final delas. Em todo o percurso ele agiu com a familiaridade e naturalidade de um morador do prédio. Desta vez ele notou que não havia avisos nas portas dos outros apartamentos, impedindo a entrada neles.

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– Aqui seria um bom lugar para conversarmos, Marco? – indagou Matt. A pessoa que o acompanhara subiu calmamente as escadas, enquanto isso, Matt observava as suas feições. Tinha cabelos já brancos, apesar de sua aparência não ser tão velha, usava grandes óculos de aros grossos e escuros, isto sim o envelhecia. Seu rosto era praticamente liso, não fosse o ralo bigode que surgia acima de seus lábios ele pareceria ainda mais jovem. O homem seguiu calmamente com sua postura e expressão sempre serena até a porta. – Se este é um bom lugar para conversarmos? Eu diria que sim. É um bom lugar. Mas não preferiria conversar estando confortavelmente sentado? – finalmente respondeu Marco destrancando a porta e o convidando para entrar – E eu sei que há uma coisa lá dentro que você precisa. Matt aceitou o convite assentindo com a cabeça. Pouco antes de entrar, ele imaginou que encontraria o mesmo espaço sujo com apenas um sofá velho encostado na parece. Ele não podia estar mais enganado. O apartamento era muito limpo e bem organizado, era bem mobiliado e decorado, era como se aquele lugar fosse familiar a ele.

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Pelo cansaço que sentia, não deu importância a essa impressão que teve, ele deveria ser a sua causa. Logo ao entrar ele viu acima do sofá da sala um grande retrato onde estavam Marco, com cabelos ainda negros e sem o bigode ralo, abraçado a uma mulher com um grande sorriso no rosto. Esta abraçava um garoto com uns doze ou treze anos no máximo, ele estava bastante sério, com os braços cruzados, talvez não estivesse à vontade para tirar aquela foto. Marco ao entrar se dirigiu a cozinha, puxou duas cadeiras colocando uma de frente para outra. – Gostaria de alguma coisa antes de começarmos? – perguntou ele. – Água seria muito bom. – respondeu Matt tirando finalmente a mão do bolso. Ao pegar o copo d’água ele colocou alguma coisa na boca e com a ajuda do líquido engoliu. – Era exatamente o que eu precisava. Obrigado – agradeceu Matt. – Não há de que. – Bem, como eu poderia ajudar alguém tão bem preparado nas técnicas de Mnemósine? – perguntou Matt. – Na verdade todos temos nossas limitações. E acima disso é sempre bom alguém de fora nos Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo


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ajudar a enxergar melhor um ponto de vista. Não concorda Matt? – Tem razão. Mas diga-me uma coisa. Por que escolher essa técnica tão básica? Sabe que caso eu queira fazer alguma coisa, você não teria defesa alguma. Eu poderia fazer o que bem entendesse. Você não saberia se algo o atingisse – indagou Matt. – Tenho uma coisa perdida aqui. – disse Marco apontando para a sua cabeça – Já consegui com muito esforço, recuperar algumas informações ligadas ao que perdi. Mas o principal ainda está perdido. E pelo que vi há pouco, você é o único que pode encontrar. E sobre os riscos, sei que posso confiar em você. Enquanto estive aí, – disse apontando para a cabeça de Matt – consegui confirmar o quanto você é honesto. Eu já suspeitava disso enquanto você vasculhava a mente da Sra. Valda usando Mnemósine. Sempre que pude, verifiquei em segredo o que você tinha feito. Era como se ninguém tivesse passado por lá. Não haviam danos ou interferências. E tudo o que você trouxe de lá era verdadeiro. Matt corou levemente e sorriu em resposta. – Pensei que me questionaria se não havia nada de errado com a água... – perguntou Marco, ao mesmo tempo que apontava para a cadeira na sua frente, para que Matt sentasse nela.

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– Me mostrou há pouco um lugar que considerava tão seguro, que não teria nada a esconder – respondeu Matt se sentando. – Não há mais nenhum lugar seguro ou familiar para mim no mundo. Tudo isso a nossa volta é um grande engodo, para mim mesmo... Mas está certo quando diz que não tenho nada a esconder. – O que gostaria que eu recuperasse para você? – Este é o problema rapaz. Tiraram do lugar onde deveria estar. Quem o fez não sabia ainda como apagar. Fez apenas isso. – Podemos começar? Marco concordou com um aceno da mão direita. Os dois começaram a se olhar, um nos olhos do outro, piscaram lentamente como se tentassem lubrificar os olhos o máximo possível.

Marco foi o primeiro a se levantar, rumando para a sala, sendo seguido por Matt. – Eu não tenho nada a esconder. Mesmo se eu quisesse, sabe que eu não poderia. A única coisa que você irá se deparar é com a verdade. – esclareceu Marco, parando próximo à porta de entrada.

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– O que haveria de tão sinistro e revelador a me dizer? – desafiou Matt. – Bem, o que há para ser dito estará em breve ao seu alcance. A questão é: Você está preparado para o que verá? Matt concordou com a cabeça, e se aproximou mais da porta. – A história que tenho a lhe contar é esta. Ela será uma estrada para lhe guiar, espero que complete as partes que faltam – disse Marco abrindo a porta – A estrada lhe espera. Matt olhou fixamente para Marco por um instante. Virou-se para a porta e seguiu pelo caminho que se formava do lado de fora do apartamento.

Às vezes alguns ofícios parecem ser meio ingratos, principalmente quando sua atividade envolve o fato de se estar de pé antes mesmo do sol pensar em sair. Este tipo de pensamento constantemente povoava a mente de Marco. Estava muito enraizado devido a sua constituição física e mental, e principalmente por uma de suas paixões: dormir o máximo possível todas as noites.

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Mas como poderia alguém que trabalhava numa empresa que entrega jornais e revistas usufruir deste gosto? As pessoas jamais param de surpreender, como alguém que detesta acordar cedo, poderia ficar no mesmo emprego por mais de dez anos, sem faltas ou reclamações? Às vezes fazemos coisas contrárias ao nosso ser em favor de outros. Enquanto Marco acabava de verificar os itinerários e os colocava nas caixas com a entrega daquela manhã, um dos entregadores chegou até ele trazendo uma má notícia, antes mesmo do dia começar. – Senhor... Bom dia... – gaguejou o entregador. – Bom dia, do que se trata? – perguntou Marco, sabendo que a gagueira significava problemas. – Um dos entregadores não virá hoje. E talvez por algum tempo ele não volte. – O que o Túlio fez desta vez? – Na verdade... Não foi o Túlio... – hesitou o entregador – Aconteceu com o Júlio. Ele se acidentou. A família dele me avisou há pouco. Mas não parece ter sido grave. – Meu Deus! Espero que ele esteja bem. – respondeu Marco num misto de tristeza e surpresa. Daquele dia em diante estaria sem o Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo


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seu melhor entregador, sabe Deus por quanto tempo – Hoje assumo o posto dele. Mais tarde remontarei os itinerários de todos para podermos nos organizar por enquanto. – Certo... Mas, eu fiquei com a área de entrega dele por hoje, pois a moto dele não ia conseguir ir tão longe antes do conserto. – É verdade, é a sua área que precisa de alguém. Felizmente, para mim, – disse Marco sorrindo ao olhar o itinerário – hoje você teria poucas entregas. É melhor que eu vá, uma das entregas é algo que está sendo esperado há muito tempo. Marco pegou a caixa com as entregas e saiu. Por mais cedo que fosse, ele queria terminar o quanto antes.

Quando só faltava uma entrega para finalizar o serviço, Marco seguiu até a sua casa. Chegando lá ele viu a esposa já de pé, não era só ele que precisava iniciar seu dia bem cedo. Ele mostrou um pacote que trazia para ela enquanto se dirigia ao quarto do filho. – Que bom meu bem! Ele já estava quase nos deixando loucos. – disse ela rindo – Ele ainda está deitado!

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Ele chegou à porta do quarto do filho e viu uma folha de papel com fundo preto com letras brancas estilizadas: “VVL”. Bateu nela como se estivesse na porta de entrada e aguardou que fosse aberta. Por três vezes ele tentou, e por três vezes não obteve resposta. Ele pegou um apito metálico escondido sobre o portal e soprou com toda a força. Antes que ele terminasse de soprar, a porta se abriu com seu filho o fitando, com uma expressão de sono misturada com nervosismo. – Pai, isso não é justo! Ainda falta uma hora para eu me levantar. – disse o garoto em um tom seco, no entanto só faltavam vinte minutos. – Desculpe, filho, mas a vida não é justa. – O que é isso com você? – perguntou ele com os olhos brilhando. – O que você acha que é Bob? – Não é possível! – Claro que é. Está na sua frente. Pegue! Acordar um pouco mais cedo é um preço pequeno por isso. – Obrigado! – Só uma coisa. Você pode abrir a caixa agora, mas não irá testar nada antes que eu chegue. Temos que arrumar a tomada no seu

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quarto – disse ele dando um beijo na testa do filho – E também não quero que se atrase para a escola por causa disso. – Até mais pai! Obrigado! Como um raio o garoto voltou ao quarto e abriu a caixa como uma fera que dilacera uma presa, dentro dela havia uma caixa menor, uma carta, uma edição especial da revista Game Plus, e alguns envelopes já selados. – Filho! Vá já se arrumar antes que se atrase! – gritou sua mãe da cozinha. O garoto mesmo contrariado deixou todas as coisas no meio do quarto e correu até o banheiro, se arrumou numa fração do tempo que normalmente gastava. Em poucos instantes ele estava arrumado, se dirigindo a mesa da cozinha, com uma pequena caixa preta em uma das mãos e a carta da produção da revista na outra. – Nossa! Como eu gostaria que recebesse uma entrega para você todos os dias. Só assim você se levanta e se arruma sem me dar trabalho. O garoto apenas sorriu sarcasticamente em resposta. – Infelizmente nada é perfeito mesmo... – disse ela limpando o resto de espuma do creme dental, que ficara no canto da boca do filho.

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Enquanto sua mãe lhe falava, ele começou a olhar a caixa que trouxera a mesa. Era toda em preto fosco e apenas haviam três letras estilizadas na tampa: “VVL”, semelhantes às que estavam na porta do seu quarto. Abrindo a caixa, ele retirou as proteções de espuma e pegou um bilhete escrito com letras vermelhas: “Leia as instruções. – LiberTeam”. Ele retirou o cartucho de dentro da caixa e além do fato dele ser diferente por ser uma demo do jogo, era transparente com um pequeno adesivo escrito VVL. A carcaça do cartucho dava destaque ao chip especial branco que dava características únicas a este game. Ele examinou com cuidado todos os detalhes do cartucho, retirou a proteção dos conectores, e se abaixou para pegar a carta que caiu no chão. Ao fazer isso, derramou sua caneca próxima ao cartucho do jogo. Rapidamente sua mãe o pegou, e aparentemente apenas a parte externa se molhou. À primeira vista os contatos da placa e o interior do cartucho estavam intactos. Antes mesmo que ele pudesse dizer algo ou esboçar alguma reação, uma buzina tocou duas vezes. – Filho, eu termino isso. Vá logo que a van está esperando, hoje é o primeiro dia. – Mas mãe... Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo


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– Vá rápido! Esse jogo estará te esperando quanto você voltar. E nem pense em levar nada disso para a escola! O garoto ficou emburrado, mas atendeu as ordens da mãe. Rapidamente pegou as suas coisas e foi para a escola sonhando com o momento em que poderia ficar com o seu jogo sem interrupções.

Finalmente ele chegara em casa, sua mãe, que também chegara há pouco do trabalho, estava no jardim cuidando das plantas. Pegou o cartucho do jogo e novamente o examinou por um tempo, como se procurasse algum defeito, sujeira ou mancha. Olhava-o como se tivesse ficado longos anos longe dele. Deixou o cartucho de lado por um momento e começou a ler a carta enviada pela produção da revista. Ao Senhor Marco, É com grande satisfação que lhe entregamos o cartucho demo, do tão falado game VVL.

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Em anexo seguem as instruções, e uma carta detalhando informações sobre o envio de sua opinião sobre o jogo, além de algumas palavras da produção da Revista Game Plus, escritas especialmente para você. Aproveite o jogo da melhor maneira que puder. Esperamos ansiosamente por sua opinião. Atenciosamente, Equipe da Revista Game Plus. As folhas que se seguiram eram as instruções no idioma original dos produtores do jogo. Bob não reconhecia nenhum dos símbolos nas páginas, desta forma, não fazia ideia de qual era o idioma deles. Na sequência estavam as instruções em português traduzidas pela própria equipe de desenvolvedores. Antes das instruções propriamente ditas, havia um pequeno texto escrito ao jogador que faria o teste do jogo. É uma grande honra para todos nós da LiberTeam Games, lhe entregar esta demo do nosso mais novo jogo. Esperamos sinceramente, que todo nosso trabalho e dedicação ao jogo possam lhe conceder

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uma experiência única, mesmo sendo apenas uma demonstração dele. Durante o desenvolvimento do jogo, sempre buscamos fazer da experiência trazida por este game algo único, mas para que este nosso objetivo fosse alcançado, notamos que precisaríamos do auxílio da comunidade gamer de todo o mundo. Assim surgiu o sorteio que o escolheu como um dos primeiros a testar o jogo. Por este motivo a sua opinião é muito importante para nós. Não deixe de contar tudo o que você pensa sobre o jogo. Uma última informação: O chip de inteligência artificial Human Unit 3 (Hu3), é extremamente sensível a umidade, tome os cuidados listados nas instruções e nenhum dano ocorrerá ao mesmo. Saudações, LiberTeam Games. Veritas vos Liberabit – Conteúdo exclusivo aos beta-testers – O que você faria caso tivesse acesso a toda a verdade do mundo? O que faria caso pudesse ser o senhor desta verdade? Estaria preparado para todas as conseqüências que isso lhe traria?

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M. Parker, não é apenas mais um detetive que se costuma ver nas novelas policiais. Ele tem o poder de implantar memórias na mente das pessoas. Caso ele não consiga obter as informações que busca, apenas com sua persuasão. Memórias podem ser implantadas nas mentes dos suspeitos, se estas forem convincentes o suficiente não existirá barreira alguma para obtenção da verdade. Um grande poder? Uma maldição? Você decide! Os rumos da historia serão modificados por suas escolhas no jogo, questionamentos e reações quase infinitos poderão surgir. Além de um sem número de possíveis finais que poderão ser criados de acordo com as decisões que você tomar. Estará pronto para encarar o peso da verdade? Poderá de fato a verdade libertar M. Parker? Ou ela poderá libertar você do destino que suas escolhas o levarão? O garoto ao terminar de ler estava trêmulo. Devido à tamanha excitação que sentia pelo jogo. Tudo isso era realmente possível? Perguntava-se. Ele precisava testar o jogo imediatamente. Até aquele momento sua mãe não o havia chamado. Não havia como saber por quanto

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tempo ele poderia ficar em seu quarto sem ser chamado. Apesar de seu pai o advertir para que não ligasse o console, devido o problema na tomada do seu quarto, ele não podia esperar mais. Ele fitou o console por um breve instante, estava entre a realização de seu desejo e o cumprimento do pedido do pai. O emocional lhe falava com mais força do que o racional. Saiu do impasse, ligou a TV e nada de errado ocorreu, ligou o console, novamente nada de errado ocorreu. Respirou fundo, desligou o console, pegou o cartucho do VVL, e o colocou no console. Mas ele hesitou. Ficou imóvel por um instante, como se não conseguisse acreditar no que ia fazer, ou ainda não conseguisse crer em seus olhos por estarem lhe mostrando que o momento que ele tanto aguardara, finalmente havia chegado e ele estava há instantes de realizá-lo. Por mais tolo que tudo isso pudesse parecer, um misto de emoções e pensamentos tomou conta do seu ser, no breve instante de torpor, que parecia o deter. Estava eufórico, excitado e feliz por poder concretizar este sonho, mas ao mesmo tempo se sentia mal, egoísta e mesquinho por não esperar seu pai. Afinal, aquele momento não seria

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possível se seu pai não tivesse se inscrito no concurso, pois menores não podiam participar dele. – “O que eu faço?” – pensou Bob, no instante anterior ao que decidira o que iria fazer. Lentamente se curvou até seus braços alcançarem o console, e num movimento muito brusco o ligou, se afastando na mesma velocidade. Abaixou o volume do televisor, a um nível que ele pudesse ouvir, mas quem por ventura se aproximasse de seu quarto não pudesse. Inicialmente nada ocorreu, apenas uma tela negra o olhava e refletia sua imagem. Ele se manteve imóvel, esperando que algo ocorresse. Logo uma barra de progresso surgiu na tela, para o seu alívio, rapidamente ela se encheu, e o logotipo da LiberTeam surgiu e sumiu dando espaço a tela inicial do jogo. Prontamente Bob, fez as escolhas nos menus que surgiram e um pequeno filme se iniciou, com um homem o fitando intensamente como se o sondasse em busca de respostas. No canto da tela surgiu o seu nome, M. Parker. Por um instante o olhar sagaz de Parker começou a incomodar o garoto. A ideia de que um jogo tentava o analisar, por um instante o preocupou.

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Antes que qualquer outra coisa pudesse ocorrer na tela, talvez por mera coincidência, ou talvez por influência do jogo no sistema elétrico da região, as luzes de toda a casa começaram a oscilar. Evidentemente estava havendo uma queda na tensão da energia elétrica. A tela da TV, ao contrário do que as luzes indicavam, pareceu brilhar ainda mais intensamente, com um brilho especial nos olhos de Parker, que se tornaram quase insuportáveis de se olhar. À medida que as luzes ficavam mais fracas e apagadas, a TV parecia brilhar mais intensamente. Quando as luzes estavam quase se apagando, Bob pulou rapidamente até o console, com uma das mãos acionou o botão de energia para desligar o aparelho, e com a outra mão, no instante exato que desligava o aparelho, puxou o cartucho com violência do console, por puro instinto, sem pensar no que fazia. A trava que segura os cartuchos já estava frouxa e por isso ele não teve trabalho para retirá-lo. Toda a ação durou poucos instantes, mas foram suficientes para o garoto no último instante antes de desligar o console e retirar o cartucho ver a imagem na tela mudar.

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Parker o olhava agora com uma expressão de satisfação, não mais inspirava medo a quem olhasse. Era como se ele tivesse conseguido algo que a muito ele buscava. Quando o cartucho acabava de ser retirado do console a imagem desapareceu da tela, mas a expressão de Parker se manteve inalterada até o fim. Ao mesmo tempo em que a imagem sumia da tela, Bob não percebeu, mas a tensão elétrica voltava a subir, veio tão rápida e tão intensa, que acabou atingindo o console no exato momento que o cartucho fora retirado, passando parte da corrente elétrica desde a tomada defeituosa até Bob. Com o susto ele gritou e se jogou um pouco para trás. – Está acontecendo alguma coisa de errado por aí, filho? – gritou sua mãe do jardim. – Não! Bati o dedo na quina do móvel! – gritou o garoto numa resposta automática. O garoto ficou por um momento na mesma posição que caíra, sentado, meio atordoado, sem entender o que havia acabado de ocorrer. Logo, ele voltou a si e começou a avaliar o que havia ocorrido, mesmo estando ainda parado. Quando se levantou tremia e o suor escorria por seu corpo. Mesmo neste estado de “choque”,

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ele precisava organizar tudo antes de seu pai chegar. Desligou a TV, tirou o console da tomada, e foi guardando tudo em seu devido lugar, para que não houvesse suspeitas do que ele fizera. A única exceção fora o cartucho, sempre que se aproximava dele, ele hesitava tocá-lo. Seguia para organizar outra coisa. Eventualmente teve que enfrentá-lo. Pegou-o e colocou em sua caixa sem o olhar. A caixa foi guardada junto com os outros itens que chegaram a sua casa. Havia poucas coisas a serem organizadas, mas mesmo assim, Bob se sentiu exausto após terminar de colocar tudo em seu devido lugar. Ele olhou para sua cama e esta lhe pareceu extremamente convidativa. Jogou-se nela e na posição em que caiu ficou imóvel. – “Este cansaço deve ser pelo susto...” – pensou ele antes de adormecer.

No lugar onde eles estavam o tempo não existia. Pelo menos, não como se conhece. O mais próximo do registro de tempo que pode existir é o tempo em que uma ideia se forma, que é mais rápido do que uma fração de segundo. Após Matt ter seguido o caminho que se abriu fora do apartamento, Marco fechou a porta Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo


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e foi até o retrato sobre o sofá, e o olhou. Praticamente só se movendo para respirar. Subitamente baixou a vista e sentou-se no sofá. Não sabia quanto tempo Matt demoraria. Principalmente por já ter plena noção de como era a “passagem” do tempo por lá. Não tendo nada melhor a fazer neste ínterim, pôs-se a pensar. Mas ao iniciar a ação, sorriu. Pois a ideia de ter um pensamento dentro de um pensamento, lhe pareceu divertida. Um período incomensurável depois, Marco ouviu três batidas na porta, que foram seguidas pelo silêncio. Calmamente se levantou do sofá e rumou até a cozinha. Chegando lá, viu Matt sentado em uma das cadeiras, olhando fixamente para a outra que estava a sua frente. Marco se sentou na outra cadeira e quando ficou no nível dos olhos de Matt, este lhe perguntou: – Demorei? Marco não esboçou qualquer reação em resposta. – Agora que retornei, não há nada mais que queira me contar? – perguntou Matt sentando-se mais ereto, e tirando pela primeira vez os olhos de Marco. – Com o que me trouxe agora, algumas coisas passam a serem certezas, outras passam a

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ser especulações e outras ainda, apenas delírios – respondeu Marco. Com a chegada de Matt, nada do que ele acabara de presenciar era necessário ser verbalizado, pois, como estavam na mente de Marco, tudo o que ele vira e ouvira havia sido transmitido imediatamente a seu anfitrião. – Algumas coisas poderão estar fora da ordem ou ainda não corresponderem com a verdade, mas acredito que em alguns pontos, jamais poderemos nos aproximar dela. – explicou Marco, fazendo uma pausa – Poderia me acompanhar até a sala? Seguiram até a sala, Marco pegou o controle remoto da TV, sentou-se no sofá sendo acompanhado por Matt. – Desculpe o esqueumorfismo, mas é a melhor forma que eu tenho para lhe dizer isso. – explicou Marco ligando a TV.

Bob dormiu por toda a noite, ao chegar em casa, seu pai resolveu não acordá-lo, para verificarem o problema da tomada. Ele mesmo resolveu o problema, para que seu filho pudesse usar o vídeo game no dia seguinte.

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A noite passou, e o novo dia nasceu, o despertador tocou por muitos minutos, mas Bob não saiu do quarto. Vendo a demora, sua mãe foi acordá-lo, mas por mais que ela tentasse, não teve êxito. Ficou aflita com a situação e o desespero tomou conta de sua mente, pouco antes dela ligar para a emergência. Horas mais tarde, o médico chamou os seus pais para finalmente lhes explicar o que se passava com seu filho. Inicialmente os exames nada diziam, era como se ele apenas estivesse dormindo profundamente. Com o passar dos dias, mais observações e exames foram feitos, e descobriu-se que havia algumas lesões em seu cérebro, mas estranhamente a atividade cerebral dele estava muito acima do esperado para a situação de coma em que agora se encontrava. O nível de atividade cerebral era semelhante ao de alguém aprendendo algo novo. Com o passar do tempo notou-se o aumento no nível de atividade e que o impossível estava acontecendo, as áreas lesionadas estavam gradativamente se regenerando. Nesta mesma época, cresceram as esperanças e fé dos pais de Bob, mas estranhamente, as visitas foram ficando mais

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curtas, mais espaçadas, até que deixaram de ocorrer.

– A partir daí, o quarto de Bob nunca mais foi aberto. Foi como se ele nunca tivesse existido... – completou Marco, após a tela da TV se desligar com o fim das imagens – Meses depois disso, minha esposa faleceu. Hoje sei que foi de tristeza, pela falta de nosso filho. Sua mente podia até não se lembrar dele, mas seu coração sabia. Marco ficou em silêncio por um instante. Quando conseguiu falar novamente, quebrou o silêncio dizendo: – Agora vamos mudar o foco do assunto, pois se eu me entristecer não sei se conseguirei ter controle e equilíbrio para manter tudo isso de pé. – O que houve depois disso? – indagou Matt. – Esta é a parte da especulação. Até onde sei a série de microchips de inteligência artificial Human Unit foram concebidos para trabalharem junto com o cérebro de pessoas com lesões ou deficiências cerebrais. Eles se mostraram tão promissores, que podiam até mesmo substituir um cérebro humano quase que completamente. – respondeu Marco. – Mas isso ainda não explica muita coisa...

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– Eles eram microchips híbridos, pois eram orgânicos em parte. Quando os molhou com as proteínas do leite e os estimulantes como a cafeína, na caneca, a atividade do chip especial foi ampliada, porque as estruturas orgânicas se fortaleceram com o líquido. Com isso sua programação evoluiu. – E com a descarga elétrica tudo se potencializou. – concluiu Matt. – Exato! De alguma forma ele está em sua mente, filho. – afirmou Marco. – Por isso você tem esta grande capacidade com Mnemósine, desde o coma. Matt sorriu tristemente, como se estivesse tendo um devaneio e disse: – Por isso Dino não sabia de onde vinha tanta facilidade e domínio com a Mnemósine... – Mas você sabe que isso tem cobrado um preço de você... Seu corpo quase não consegue acompanhar o estresse que tamanha atividade cerebral tem lhe trazido. Por isso tem tomado muitos medicamentos para tentar se manter estável. Mas há uma forma de reduzirmos o estresse que vem impondo ao seu corpo. É só... Antes que Marco pudesse continuar a falar, passos puderam ser ouvidos vindos da escada que dava acesso aos apartamentos do segundo piso.

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– Filho, me perdoe! Precisamos sair daqui agora! Antes que seja tarde... – alertou Marco, puxando Matt para a sala e de lá para fora do apartamento. Ao abrirem a porta, Matt viu Marco já fora do apartamento, na mesma posição que estava quando o convidara para entrar, e ele próprio estava no mesmo lugar onde parara ao esperar Marco subir as escadas. Ao dar o primeiro passo para fora do apartamento, Matt se sentiu arremessado com violência da soleira da porta de volta ao seu corpo. – Mas o que foi isso? – questionou Matt. – Você perguntou se este era um bom lugar para conversarmos, lembra-se? E de qualquer forma, eu não precisava levá-lo ao interior do apartamento, aliás, eu nem faço ideia de como ele é por dentro. Filho, você precisava vir aqui dentro, – disse Marco apontando para a testa – e conseguir abrir as portas que eu precisava e não conseguia destrancar. – E os passos? – indagou Matt. – Já deveríamos ter sido encontrados... – Isso é apenas um aviso. Mas eles não demorarão... Me perdoe, filho. Quando suspeitei que você existiu, que não era fruto da minha mente, mexendo em algumas coisas, descobri o

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seu quarto, que estava escondido atrás de uma parede. Lá dentro estava o cartucho de Veritas vos Liberabit. – explicou Marco medido as palavras na tentativa de irritar Matt o mínimo possível – Em meu desespero por respostas o Sr. Carlos pareceu ser uma boa solução... – Você se associou ao Sr Carlos? O rochedo? – vociferou Matt – Como pode? Por que escolheu este lugar, se ele não tem importância alguma? – Sempre atendeu seus clientes em bairros perigosos ou mais desertos. Eu acreditei que assim poderíamos despistar os homens do Sr. Carlos. – Mas ao que parece você está errado. – Sei que não mereço perdão. Especialmente agora... Mas na época, me pareceu que era a única escolha para descobrir a verdade. E parece que de algum modo torpe, eu estava certo, filho... Os dois se entreolharam fixamente por um instante, mas foram interrompidos pelos ruídos do celular de Marco. Provavelmente os homens do Sr. Carlos já estivessem chegando, pensou Matt. Matt o agarrou e o empurrou com força na porta do apartamento 21. Devido à rapidez do movimento de Matt, Marco bateu a cabeça com força na porta, quase desmaiando com isso. Quando começou a recobrar a consciência, se aproximou de Matt, e o olhou fixamente nos Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo


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olhos. Quase não se podia distinguir ou perceber a expressão que trazia na face. Marco não carregava raiva, ódio ou desprezo, na verdade os músculos da face estavam quase inexpressivos, como se estivessem anestesiados. Mas os seus olhos eram profundos e reveladores como nunca antes. Tinham ternura, compaixão e suplicavam perdão. Com esta reação de Marco, Matt ficou ainda mais raivoso e passou a empurrá-lo com força pelo corredor. Marco não esboçou qualquer tipo de reação de ataque, tentou manter-se de pé cada vez em que fora empurrado. – Interessante você ter escolhido se chamar Matt... – disse Marco – Sua mãe queria que seu nome fosse Mateus. Eu que não deixei. Preferi Roberto, o nome de meu pai. – revelou ele – Mas se bem me recordo, nunca lhe contei isso... Com o último empurrão, Marco ficou a um ou dois passos da janela, após ele terminar de falar Matt ficou furioso e o empurrou com toda a força em direção a janela, que se despedaçou fazendo Marco cair rumo à calçada fria. Por um breve instante enquanto ele caia, sorriu tristemente para Matt. Mas ele não teve tempo suficiente para ver qual expressão trazia no rosto no momento em que o vira caindo.

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Finalmente os seus olhos se abriram, depois de tanto tempo fechados, as imagens do mundo a sua volta estavam turvas. A luz incomodava bastante, à medida que os olhos foram se acostumando com a claridade, e os primeiros contornos à sua volta começaram a se definir, e ele percebeu que estava em um lugar desconhecido. No entanto esta primeira impressão foi rapidamente desfeita, não por alguma imagem ou objeto conhecido ter sido flagrado por seus olhos, mas sim, por uma exclamação de espanto, que ouvira sendo seguida por uma voz muito familiar: – Que bom! Já está acordando. – exclamou Sr. Carlos. Com o som desta voz familiar ele se despertou mais rapidamente, percebeu que dois livros de bolso estavam no criado ao seu lado. Percebeu também que ao ouvir a voz do Sr Carlos, isso significava que ele estava em sua mansão. Pois ele dificilmente iria até um hospital visitá-lo, se fosse o caso. Quando Marco virou o rosto na direção do Sr. Carlos, que sentiu uma leve, mas desagradável dor de cabeça surgindo, como se sua presença ali a estivesse causando. Aparentemente o Sr. Carlos percebeu que Marco ao acordar não estava bem. Ele levantou-

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se e seguiu até a porta dizendo: – Descanse mais. A médica que cuidava de Valda virá vê-lo. Quando ele saiu, o mal estar de Marco passou quase que imediatamente. Mas, como ele temia estar sendo vigiado, ele manteve a mesma expressão de desconforto, pôs a mão sobre a testa e a massageou por uns instantes, na “tentativa” de fazer com que a dor passasse. Depois de alguns minutos quando começou a se “sentir bem”, lentamente começou a mudar de posição e começou a olhar fixamente a jarra com água que estava ao seu lado, ele estava sedento. Quando finalmente mudou de posição na cama e levantou o braço para servir um copo d’água, a porta se abriu de supetão, como se a pessoa que fosse entrar estivesse sendo forçada a isso. Com a rapidez com que a porta foi aberta, Marco se assustou e por reflexo recolheu o braço, como se fosse uma criança sendo flagrada fazendo algo de errado. – Desculpe assustá-lo. – disse a médica tentando disfarçar a maneira que entrou no quarto – Deixe eu lhe ajudar com isso. Se o Senhor conseguir, sente-se na cama para que eu possa examiná-lo.

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Ele sorriu, pouco à vontade com a situação, mas sentou-se como fora pedido. Após ele terminar de beber água o exame foi iniciado. – O que ocorreu comigo? Onde estou? – perguntou Marco. – Primeiro diga-me como se sente, Marco. – retrucou ela finalmente falando novamente. – Estou bem Dra. Marta. – disse Marco olhando para o nome da médica bordado no jaleco – Saudável como um cavalo! – exclamou ele exibindo o físico para ela. – Que bom – disse Marta sorrindo com sua brincadeira – Bem, você teve uma concussão e alguns arranhões leves por causa do... – ela hesitou – Dormiu por uns dois dias, logo que chegou aqui. Estamos em um dos quartos de hospedes da mansão do Sr. Carlos. Você não está reconhecendo este lugar, pois nesta área da casa apenas entravam as pessoas que cuidavam da Sra. Valda. Aqui é como se fosse um pequeno hospital. – Doutora, poderia me fazer um pequeno favor? Já tem algum tempo que eu ouço um zumbido nesse ouvido – disse Marco apontado para o ouvido direito. – Claro! Você está com sorte, estou com o otoscópio aqui. – disse Marta – Sente-se e tente não se mexer.

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– Certo. Ela se aproximou dele e ficou de costas para o espelho que ficava do lado direito de Marco. – Você não deveria ter dormido por tanto tempo. Foi só uma concussão... O velho Carlos está intrigado com isso. Cuidado. – sussurrou a médica – Não estou vendo nada demais. Mas é melhor que procure um especialista. – disse ela já se afastando do ouvido de Marco, num tom de voz normal. – Quem recomenda doutora? – Tem um amigo meu. O nome dele é Dr. Ítalo. É um grande profissional. Ele me ensinou muitas coisas. – Obrigado – agradeceu Marco sorrindo. – Pelo que? – respondeu Marta como se estivesse voltando a si – Não foi nada, é o meu trabalho – atalhou ela para encobrir a estranheza que acabara de ocorrer – Caso precise de alguma coisa, pressione o botão no criado mudo. Assim que a médica saiu do quarto, Marco voltou a se deitar na cama, por um longo tempo ficou deitado contemplando o teto, como se ele estivesse buscando alguma coisa na mente. Depois de um tempo, levantou-se e foi até o espelho que estava do seu lado direito, se aproximou bastante dele e começou a contemplar seu rosto. Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo


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Sua aparência não era ruim, ele se parecia com alguém que despertou depois de dormir demais. Aqui e ali, havia uns poucos arranhões, mas eles eram um tanto estranhos, maioria deles eram bastante rasos, mal romperam a pele. Muitos deles pareciam ter sido feitos de propósito. Além dos arranhões nenhum hematoma ou outro tipo de marca foi notada por ele. Enquanto ele se “examinava”, a porta abriuse calmamente, Marco continuou o que fazia fingindo não ter ouvido nada. O Sr. Carlos entrou no quarto e sentou-se na mesma poltrona onde estava. Quando Marco viu seu reflexo pelo espelho, virou-se calmamente e o fitou por um breve instante. – Desculpe entrar sem falar nada. Não queria interrompê-lo – explicou Sr. Carlos. – O Sr. não precisa se desculpar. Afinal a casa é sua. Eu é que tenho que lhe agradecer pelo cuidado que dispensou comigo. – Tem razão. Mas educação e respeito são coisas que prezo muito. E não posso exigi-los se eu não oferecê-los antes. – disse o Sr Carlos se levantando e indo até Marco para cumprimentá-lo – É bom ver que você está bem. – Estou realmente muito bem, obrigado. Mas Sr. Carlos, qual o motivo de sua visita? O Sr. é Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo


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muito ocupado, como sabemos, para dispensar tanto tempo a um mero funcionário. – questionou Marco incisivamente. – Preciso lhe contar uma coisa – respondeu o Sr. Carlos secamente – E talvez, você também tenha algo a me dizer... – Sr. Carlos, será que poderíamos conversar no jardim? Já estou aqui há nem sei quanto tempo e estou começando a me sentir sufocado. Lá fora está um belo dia. E respirar um ar “novo” me fará bem. O Sr. Carlos não gostou da ideia, isso podia ser visto na leve mudança que ocorreu em sua face. Mas ele sabia que precisaria abrir mão de coisas menores em favor de outras maiores, que poderiam estar mais adiante. Ele acabou concordando com a ideia, mesmo que isso significasse que qualquer registro ou meio de controle externo, não seria dificultado ou até neutralizado. Os dois foram até o meio do jardim, onde havia mais sombra naquele horário. Assim que se sentaram, o Sr. Carlos começou a contar o que havia ocorrido naquela noite. Que Matt realmente o tinha jogado pela janela, conforme seus homens relataram, e que ele não havia morrido com a queda, pois logo abaixo da janela havia uma caçamba de entulho

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cheia de sacos de cimento vazios e caixas de papelão, que amorteceram sua queda. Foi nesta caçamba de entulho onde ele foi encontrado e levado para a mansão. Alguns deles o trouxeram para a mansão e os outros seguiram Matt que iniciara a fuga. A perseguição se seguiu pelas ruas da cidade seguindo até o túnel que levava a ponte norte. Mesmo a pista estando interditada, pelas reformas no túnel, ele ultrapassou o bloqueio e, poucos metros adiante, acabou batendo em um caminhão tanque dentro do túnel causando uma grande explosão, destruindo a entrada do túnel. Para comprovar o que ele falava, mostrou a Marco alguns jornais dos últimos dias que confirmavam o ocorrido, mas alegavam que um incêndio no meio do túnel, ocorrido durante a madrugada, causou a explosão do caminhão tanque e o desabamento da entrada. Obviamente a perseguição nunca ocorreu oficialmente e por isso não fora citada. Com a constatação do ocorrido, Marco largou o jornal sobre a mesa e começou a chorar, quase que silenciosamente. O Sr. Carlos tentou se manter em silêncio, mas não resistiu a oportunidade que surgiu: – O que houve? Por que está chorando?

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– Agora nunca mais conseguirei o que eu buscava! – respondeu Marco, começando a se desesperar. – Se acalme! Você não pode se descontrolar assim! Você acaba de sair de um momento muito delicado – atalhou o Sr Carlos, percebendo que havia perdido a oportunidade, se é que ela existiu. Quando finalmente Marco começou a se acalmar, respirou fundo e deu a explicação que os olhos do Sr. Carlos exigiam dele: – Não consegui nada com ele... Logo que ele chegou até mim, e percebeu que eu trabalhava para o senhor, ele ficou furioso e se sentiu traído. Antes mesmo que eu pudesse explicar alguma coisa, ele começou a me agredir. Quando o meu celular tocou, ele achou que eram os seus homens que estavam chegando. E me empurrou pela janela. – Entendo... Defenestração... Nunca pensei que ele fosse capaz disso... – E agora Sr. Carlos? O que eu farei? Agora que ele não existe mais. Minhas esperanças de descobrir a verdade se foram com ele... E sua promessa? Como a cumprirá agora? Me prometeu que iríamos descobrir o que tinha ocorrido com o meu filho, se eu lhe entregasse o jogo! E agora tudo acabou...

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– Se acalme. Encontraremos uma solução para isso. Ele não deve ser o único no que faz... – justificou o Sr. Carlos. – Há alguma coisa que eu possa fazer por você enquanto isso? – disse ele tentando se desvencilhar de Marco. – Eu gostaria de voltar para minha casa. – respondeu Marco secamente. – Vá se trocar no quarto onde você estava, lá estão algumas roupas suas. Providenciarei que seja levado a sua casa. Tire uns dias de folga, quando estiver pronto retorne ao seu trabalho. O Sr Carlos saiu, para resolver o que era necessário para que Marco fosse levado para sua casa. Fez isso pessoalmente, principalmente por precisar de um pretexto para sair de sua presença, por perceber que nada havia para se tirar dele. Antes de sair, pediu a um dos seguranças que acompanhasse Marco até o seu quarto. Marco seguiu com a companhia do segurança até lá, mas quase sempre tinha a impressão de ver Matt pelo caminho até o quarto. A notícia o tinha abalado profundamente. Quando estava pronto para sair, seguiu até o carro ainda na companhia do segurança. Ao sentar-se no banco traseiro, viu que os dois livros que vira no criado ao lado da cama estavam ao seu lado.

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Ele percebeu que eram os livros que sempre levava consigo. Eram: Teoria dos órgãos: Zang Fu e Tai Chi Chuam. Os folheou e percebeu que faltavam nos dois a primeira página onde havia o título dos livros e a assinatura de sua esposa. Naquele momento ele não tinha ânimo para ocupar sua mente com isso. Passou a olhar o mundo pelas janelas do carro. A paisagem dos bairros foi mudando e logo ficando cada vez mais familiar. Num determinado momento, ele disse num sobressalto: – Pare o carro próximo aquele restaurante! Devido ao desastre no túnel da ponte norte, que era próximo dali, tiveram dificuldade para conseguirem estacionar o carro devido a lentidão no trânsito. Ao entrar no restaurante, Marco logo seguiu até a mesa do canto esquerdo, que era a única disponível. Além do nome, o restaurante nada tinha de americano, esse era mais um dos resíduos na mente de Matt, devido aos efeitos da medicação que precisava tomar. Um homem baixo de olhos irritados, rapidamente o procurou, levando o cardápio e uma xícara de água morna. Seus olhos estavam irritados, devido ao clima seco daquele dia.

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Marco pegou o cardápio e sorriu ao homem, que tentou retribuir o sorriso, mesmo que tristemente. Ele pegou o saquinho de Earl Gray que fora deixado por Dino sobre a mesa e o mergulhou na xícara. Ao invés de jogar fora o envelope do chá ele o guardou em seu bolso. Enquanto aguardava o Earl Gray ficar no ponto, olhou rapidamente o cardápio, mas nada nele o interessou. Como o chá ainda não estava no ponto, passou a fitar a capa dos livros que trouxera, e sempre que podia olhava através da janela e via que o motorista ainda o aguardava no carro. Quando o cheiro do Earl Gray indicava que estava pronto, antes mesmo que ele pudesse pensar em tocar na xícara, Dino apareceu e retirou-a da mesa, em seu lugar colocou um prato de fetuccine al pesto, ao sair levou o cardápio consigo, sem falar palavra alguma com Marco. Marco comeu o que lhe fora servido, apesar de ele não ser um dos seus favoritos, acenou pedindo a conta e Dino retornou com uma pasta de couro. Marco verificou o valor e ao colocar o dinheiro na pasta a derrubou, Dino abaixou-se com dificuldade, pegou-a juntamente com os livros que também caíram. Antes de sair ele agradeceu a Dino, que correspondeu com a mesma cortesia, agora um pouco mais animado.

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Ao chegar em casa, parou por um longo tempo em frente ao quadro pendurado sobre o sofá, assim como no apartamento em que levou Matt. Nele, Marco, a esposa e o filho estavam retratados. A decoração de sua casa era idêntica a do apartamento onde estivera. A fotografia foi tirada na primeira vez que puderam sair juntos de férias. Na época foram visitar o pai de Marco numa cidadezinha do interior, a última vez que pode ver seu pai vivo. Enquanto olhava para o retrato ele não chorou, se entristeceu, nem mesmo respirou fora do compasso. Já não havia mais motivos para isso. Por fim passou a olhar ao mesmo tempo sua versão mais jovem e a paisagem de fundo daquela cidade onde cresceu. – “Como estarão as coisas por lá?” – pensou ele. – “Será que ainda há algum morador vivo que me conheça?” Ele seguiu até o seu quarto e tomou um longo banho. Vestiu suas melhores roupas, preparou uma pequena mala, ligou para o táxi e rumou ao terminal rodoviário. Chegando lá, pegou o primeiro ônibus para o interior do estado. Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo


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Horas mais tarde, quando o ônibus já estava quase vazio, ele fez uma pequena parada num posto qualquer no meio da estrada. Marco pegou o livro Teoria dos órgãos: Zang Fu e folheou-o. A primeira página estava lá novamente como que por mágica. – “Devo estar mais cansado e desatento do que nunca...” – pensou Marco. Ao virar a página que não deveria estar ali, havia uma mensagem: Obrigado por sempre se importar comigo. Mesmo não tendo certeza se eu era ou não real... Usarei os conhecimentos destes dois livros para me cuidar melhor. O que queria me ensinar com estes livros, já aprendi enquanto passei por aí... De agora em diante estarei mais equilibrado, não se preocupe, sei cuidar de mim mesmo. Uma hora dessas, talvez nos veremos de novo pai. M.

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Marco baixou a vista, respirou profundamente e sorriu. O ônibus deu um solavanco e ele acordou assustado. O ônibus ainda estava cheio, porém silencioso, não estava parado, mantinha-se em movimento constante. Ele procurou os livros e realmente as páginas estavam lá. Mas nenhuma mensagem estava escrita no Teoria dos Orgãos: Zang Fu. Apenas a assinatura de sua esposa estava lá. Mas no Tai Chi Chuam, na parte de trás da primeira página, que também reapareceu, estavam duas passagens de ônibus da mesma empresa em que agora o transportava. No verso de uma delas, havia uma chave pregada com fita, e nesta estava escrito: Agência dos correios caixa 001 – veritas. Era uma passagem de ida e outra de volta, para a cidade seguinte até onde ele iria, a ida para o dia seguinte e a volta para dois dias depois. Marco fechou o Tai Chi Chuam, com as passagens dentro, o guardou cuidadosamente dentro da mala junto com o outro livro. Ainda faltavam algumas horas para que ele chegasse a seu destino. A oeste o sol se punha no meio dos campos que se descortinavam a sua frente, através da janela. Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo


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O dia terminava. Mas para ele, estava apenas começando.

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PUZZLES _______________

Petter

E

xistia ainda uma última locadora no bairro onde eu havia crescido. Este bairro ficava na área mais afastada da cidade, distante da produtividade e do foco. Um lugar para o qual as pessoas só voltavam para dormir no final de um dia de trabalho. Reencontrei a locadora em uma peregrinação nostálgica. Alguns dos locais mais felizes da minha vida não existiam mais, mas a locadora estava lá, um portal anacrônico. O dono dela ainda era o mesmo, agora velho, magro e barbudo, cheirando


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a tabaco, com um cigarro pendendo da boca. Sentava em uma cadeira de plástico que havia sido branca, com um controle de Mega Drive em mãos. Não tirou os olhos caídos da tela: um personagem corria cercado por zumbis em um shopping, ao som de uma trilha sonora frenética. Passei pelas prateleiras empoeiradas e vi que nenhum jogo estava alugado. Escolhi Super Metroid, Secret of Mana e uma fita com o rótulo quase todo retirado, mas que eu supunha ser Altered Beast pelo pouco papel que restava. Perguntei para o dono do lugar que jogo era aquele. — Este é um difícil – Disse, já atrás do balcão, com o rosto baixo. Quando saí do lugar, olhei para trás e vi de longe o velho sentado, olhando para mim. Não consegui apagar a sensação absurda de que havia esperado apenas por mim todos esses anos. Quando olhei para trás de novo ele estava abaixando o portão de aço da loja, coberto de grafite. Em casa, levei algum tempo para achar os consoles escondidos em alguma gaveta. Joguei Super Metroid até Brinstar. Troquei de vídeo game e botei a fita sem rótulo.

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Não havia tela inicial. O protagonista era alguns poucos pixels, que de tão poucos e tão pequenos apenas sugeriam uma humanidade. Parecia ter uma faca na mão. Você seguia em um labirinto escuro, sala por sala, matando inimigos e solucionando puzzles para abrir portas. Os problemas lógicos eram variados e aos poucos iam se tornando mais complexos; depois de algumas semanas eu já passava mais tempo tentando resolvê-los do que trabalhando, sem conseguir deixar de pensar neles. Eu imaginava a dificuldade dos enigmas subindo até um nível sobre-humano, fazendo com que terminar o jogo se tornasse impossível – um jogo feito por uma entidade superior, indescritível, terrível. A partir de certo ponto os enigmas passaram a utilizar palavras, a língua sendo o japonês, o que me obrigou a aprendê-la. Havia uma erudição inerente ao jogo; questões que só podiam ser resolvidas com ajuda de livros raros e especialistas de diversos campos. Consultei com tradutores de aramaico e cantonês, pois alguns dos assuntos referenciados só podiam ser encontrados nestas línguas. Viajei para o interior da Índia à procura de mais um livro. Aos poucos entendi que este jogo era como cofres dentro de outros cofres. Quem guardaria algo insignificante em um lugar de máxima segurança? Um piadista era uma possibilidade, mas havia algo de pesado Puzzles – Petter


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e soturno neste jogo que me impedia de acreditar em um final assim. O puzzle seguinte vinha em uma língua que eu não conhecia. Tirei uma foto da tela e a levei a diversos especialistas linguísticos, sem nenhuma resposta positiva. Restou-me a tentativa aleatória. Escolhi estes símbolos desconhecidos em combinações incontáveis. Depois de três anos, tentando todos os dias, anotando cada combinação já testada, achei a certa. A porta se abriu. Atravessei. A tela preta. “Fim.” Uma música infantil e feliz. O protagonista andando para cima, saindo da tela. Então tudo ficou preto. Os créditos subiram. Apenas uma pessoa: Hirokuni Kenmo, Akesaitomo 22, Hokkaido. Fiquei ali, por um tempo olhando a tela preta que tocava uma musiquinha típica de 16bits, o meu quarto escuro, apenas com a luz azulada da televisão de tubo. Viajei para o Japão na semana seguinte. Dirigi por horas, procurando o endereço dado nos créditos, até por fim avistar um castelo embrenhado entre as árvores. Havia a possibilidade de Hirokuni estar morto, o que me deixava apreensivo.

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Dei uma volta no castelo. Dei uma segunda volta, surpreso por notar o quão cansado e nervoso eu estava, ao ponto de não perceber a porta do lugar. Em seguida constatei que, de fato, não havia porta. Pelo menos a princípio. Este foi o primeiro puzzle de uma série que tentava me impedir, sala após sala, de chegar ao topo do castelo. Alguns deles eram parecidos com os que eu havia solucionado no jogo. O interior, com suas paredes de pedra, era um lugar estranho. Vivi nove anos naquele castelo, me alimentando de enlatados, até chegar à última sala. Quando cheguei, fiquei alguns minutos olhando para o grande cadeado e para as grandes correntes depois de girar a chave. Entrei. Hirokuni estava sentado em um escritório amplo, lendo um livro. Era esquelético, careca e muito enrugado. A sala era grande, com uma biblioteca em volta e uma katana ao fundo. Entre eu e a sua mesa existiam variadas plantas, iluminadas por uma abertura gradeada no teto. Era possível ver insetos por todos os cantos. — Hirokuni! — Eu disse, com voz rouca. Hirokuni se levantou. Apenas o barulho abafado do livro sobre a mesa. Aproximou-se devagar. Parecia estar muito emocionado. — Você é o primeiro a terminar o jogo. — Havia outras cópias?

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— Sim. Mas você é o primeiro, tenho certeza. Ninguém terminaria sem vir me visitar. A vontade necessária para terminar os trariam até mim. Conversamos por algumas horas. Eu o conhecia bem. De vez em quando, entre uma frase e outra, Hirokuni pegava um inseto que estivesse passando perto e o comia. Não conseguindo mais me conter, finalmente perguntei. — Hirokuni, estou pronto. Qual é o segredo? — Que segredo? — Do jogo. Tudo sugere um gran finale. O jogo continuando na realidade, toda a dificuldade e a genialidade por trás de cada puzzle... O final tem que ser igualmente brilhante. O final da minha dedicação total precisa de um significado. Ele sorriu. Eu não conseguia identificar se era um sorriso de pena ou de satisfação. — Os enigmas eram perguntas, seria contraditório eu oferecer uma resposta no final. É claro que eu tinha as respostas, mas era só quando você as dava que o jogo ia adiante. Não é suficiente, o ato de resolver cada um dos problemas? Estamos unidos por algo que apenas nós temos em comum no mundo, um trabalho colossal partilhado. Eu sou o prêmio, posso oferecer a você tudo que sei. Você me libertou,

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estou grato. É até mesmo uma história romântica. — Eu acho que não. — Respondi. Hirokuni me olhou sem dizer nada, então se virou, indo olhar a sua enorme prateleira entupida de livros, e continuou falando, sem se virar: — Na minha compulsão, me trancafiei, porta atrás de porta, camadas me separando do mundo. Algumas pessoas têm um desejo incondicional de liberdade ou de decodificação, como você. Não são vocações raras. Mas cada coisa tem um oposto. A minha vocação sempre foi a oposta. Acredita que, quando jovem, cometi um crime que não queria (que, na verdade, me causou repugnância) só para ver se a polícia conseguiria me descobrir, e também para passar um tempo na cadeia? Veja! — Apontou para uma caixa de metal quase pequena demais para um homem, que ficava em um canto da sala. Ela tinha pequenos furos no topo para a entrada de ar. — Estava prestes a me trancafiar nesta última caixa e morrer ali de fome, em posição estranha. Simplesmente porque não consigo segurar a minha compulsão de criar desafios. A racionalidade é parte essencial minha, como pode ver na criação dos puzzles, mas ela só existe junto à compulsão. A racionalidade a serviço da compulsão irracional, este é o meu trabalho de

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vida. Ainda não entrei na caixa porque há anos trabalho na construção do enigma ideal, perfeito, que me tranque ali. Vamos embora, não vejo a rua há muitos tempo. Como são os novos videogames? Eu puxei a minha faca e me aproximei aos poucos. — Mente! Você é o chefe final. Sim. E se esconde, se camufla como se fosse outra coisa. Você é o último puzzle. — Está louco. Acabou, não tem mais nenhum passo. Tinha que acabar em algum momento. — Talvez, talvez seja preciso torturá-lo. Então dirá o que realmente é o final. Entendo. Você quer que eu tenha um comprometimento total. E o seu, você está disposto a sofrer para que eu chegue ao fim. Só dirá o final no último suspiro. Talvez nem mesmo saiba esta frase final, esta frase que vale todo o esforço, e por isso precisa de mim, para tirá-la de você. Vou tirar ela de você. Corri atrás dele, que foi buscar a katana na parede e conseguiu se virar a tempo para se defender com a bainha. O confronto não era muito bonito ou excitante: estávamos fracos, cansados e lentos. Mas ele estava mais cansado. Derrubei a katana das mãos de Hirokuni e caímos os dois de

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forma patética no chão. Ele se arrastou para a caixa, se espremeu ali como um contorcionista, perna por cima da cabeça, e se fechou. Tentei abrir, xingando. Como havia dito que ainda não tinha um enigma pronto? Eu podia ver uma tela digital por cima da porta com uma série de símbolos. Supus que, apesar de não ter tido tempo de bolar a pergunta perfeita, ele tinha já pronta uma segunda, inferior, para um caso como este. Isto me dizia que o enigma atual não era impossível. Me pus a trabalhar, mas quando consegui abrir a caixa, depois de alguns dias sem pensar em outra coisa, correndo contra o tempo, ele já estava morto. Eu o matei. Este era um teste de confiança. Ele havia posto a sua vida nas minhas mãos, acreditando que eu seria capaz de abrir a caixa a tempo. Pensei, desesperado, que talvez até mesmo me dissesse o próximo passo se eu o salvasse. Enterrei-o e voltei para o castelo. O meu trabalho de vida se resumia a um cadáver e uma série de portas abertas. Sem um objetivo, o tempo se arrastava. A minha vida não evoluía como antes, apenas se mantinha, se decompunha lentamente. Ali, naquele castelo, na última sala, passei a entender melhor o ponto de vista de Hirokuni. Sonhei com um mundo alternativo no qual Hirokuni criaria puzzles incontáveis e eu os quebraria, sempre um passo atrás, até o fim dos tempos. Contemplei o suicídio. Pensei no meu Puzzles – Petter


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sonho. Os únicos resultados de todo o meu esforço: portas abertas e um cadáver... Fui até onde havia enterrado Hirokuni, debaixo de uma árvore solitária. Cavei, puxando a terra com as mãos. Quebrei o caixão e tirei o cadáver ainda não totalmente decomposto. Vomitei sobre ele. Fiz uma autópsia desajeitada, suja, abrindo cada canto do seu corpo. No estômago, uma pequena placa de metal com inscrições. Um endereço, mais uma pergunta.

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KONTINUUM _______________

E. Reuss

“S

im”, respondi. Cada centímetro do meu corpo mergulhando numa dormência induzida pelo medo, não só o medo de perder Michele, mas também de encarar o mundo físico, de perceber o tempo da forma como ele transcorria para os outros, e de acabar revelando aquelas memórias desbotadas que ali dentro eu sabia que se recusariam a retornar para sempre. Por isso preferi continuar jogando.


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Michele me olhou com um sorriso contido, disfarçado sob a tristeza de um rosto que poderia muito bem ser o de outra pessoa. E eu podia senti-lo, tão bem quanto sentia as linhas de código do Kontinuum fluindo através de mim, para depois se agruparem no código-fonte implacável do jogo, dentro de loops infinitos. Percebi que tudo o que eu tinha era uma obra do Kontinuum, e senti uma aproximação quase sagrada, uma devoção despertada pelo medo. Lá fora, o céu parecia ter assumido uma decrepitude que se assemelhava à morte, coberto por uma camada acinzentada e intoxicante que parecia ter sido expelida das fornalhas do inferno. Fechei os olhos e busquei alguma memória que me fizesse dormir. Lembrei, ironicamente, da sala de reuniões do prédio da SkyLamb, onde na época trabalhava como programador. O fedor da falsidade corporativa imperava, e homens de ternos, alguns fumando cigarros, outros bebendo água com gás em taças abobadadas, todos, sem exceção, alisando suas gravatas com certa regularidade, se organizavam ao redor da mesa circular em uma sucessão de clichês e risadas extravagantes. Camisas eram puxadas, ombros eram apalpados sob trajes com caimentos perfeitamente ajustados pelo mesmo alfaiate, que seria uma carcaça invisível ou a recordação do que fora um homem que viveu a vida inteira Kontinuum – E. Reuss


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ajoelhado diante de coxas e pintos poderosos, preparado para morrer antes de completar a próxima lapela. E ele morreria sem saber que durante esse tempo todo sua mente poderia ter o salvado do sofrimento. “Nos sonhos, as memórias são meros objetos...”, eu discursava em um tom meio profético, “que levamos desse universo como lembranças deformadas de algo que já fomos, uma herança totalmente sobrescrita e modificada pelos atributos dos sonhos... E se pudéssemos escolher quais dessas memórias ignorar? Ou melhor ainda... Quais dessas substituir por uma versão quase idêntica, mas levemente... alterada?”, com os olhos cheios de sarcasmo, “um tipo de polimorfismo onírico, he-he”. Eles se entreolhavam e alguns já me ameaçavam com suas risadas contidas. “Kontinuum é um jogo revolucionário, uma interface funcional que ajuda o jogador a criar aquilo que todos temos o desejo de criar: um Universo... Inteiramente do zero. Basta ingerir um comprimido de Zopiclona e colocar esses eletrodos na cabeça”, disse, e foi o suficiente para que os executivos caíssem em gargalhadas histéricas e me expulsassem da sala. Aquela reunião, aparentemente, havia sido transmitida por meio de algum sistema de comunicação secreto, construído em uma

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linguagem desconhecida, que propagava aquelas exibições de imbecilidade numa rede de programadores, recepcionistas e analistas entediados com uma necessidade quase fisiológica de ridicularizar os outros. Assim que deixei a sala de reuniões, me tornei, simultaneamente, uma piada de mau gosto que envolvia histórias de consumo exagerado de cogumelos, que levavam a viagens alucinógenas pelo reino dos sonhos e culminavam com a minha fixação transexual de querer cortar meu próprio pênis. Abri os olhos e senti a respiração de Michele assumindo um ritmo decadente, seu corpo lentamente cedendo ao sono iminente, acompanhando a escuridão da noite, que dissolvia todas as almas em sua sombra úmida e fria. Menos eu. Decidi jogar, e mais uma vez senti a culpa inexplicável. Kontinuum havia se tornado uma perversão da qual eu não conseguia escapar. Eu o havia programado para se comportar assim, como um universo pacífico, acolhedor, e, ao mesmo tempo, inexorável, inabalável, pois eu havia escolhido ignorar a entropia, o tempo e a própria morte. Nada poderia interferir na sessão, muito menos o mundo real. Mas naquele dia, de alguma forma, um cheiro podre de morte penetrou aquela região profunda, onde de repente se viu transformado em metáforas, se

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materializando à medida que me resgatava da obscuridade. Caminhei até o quarto, tentando calcular o tempo que passei jogando, e encontrei o corpo de Michele sobre a cama. Os lençóis adquiriram um tom marrom-avermelhado, a podridão lentamente consumindo tudo a sua volta. Sua pele tinha a textura morta de uma rocha, quase como se ela tivesse acabado de sair da cúpula de alguma catedral abandonada, um anjo desfigurado coberto por uma camada repulsiva de umidade, ferrugem e poeira. O odor era insuportável, o pior cheiro de podre que eu já sentira, tão asqueroso que penetrava a alma. Ao lado da cama, me ajoelhei e comecei a chorar desconsoladamente. As lágrimas se acumulavam em meus olhos numa linha fria de um choro contido, cada vez mais espessa, uma dor no peito se intensificando, a própria manifestação de uma esperança que parecia ser compartilhada até pelas lágrimas, que se recusavam a descer como se esperassem o momento em que Michele voltaria a respirar. De repente, a tristeza se dissipou e ascendeu no seu lugar uma curiosidade infantil e cristalina, provocada por aquela visão distorcida pelas lágrimas de um ponto verde se manifestando no meio do rosto de Michele como o prelúdio de alguma revelação divina. Me aproximei e estreitei

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os olhos, e vi, brotando das profundezas de seu globo ocular, um minúsculo botão de flor, germinando com a ajuda de um caule tão estreito quanto um barbante. Olhei as folhas sobrepostas do broto, de um verde tão vivo que pareciam emitir luz própria. Naquele momento, eu não sentia mais a perda, como se Michele ainda estivesse presente, apenas sob outra forma, transformada pela natureza, assim como Kontinuum transformava suas funções em passeios oníricos por paisagens tão distorcidas e distantes que era quase impossível acreditar que foram criadas por linhas de código tão bem estruturadas. Olhei para o cadáver sobre a cama, como se fosse a sobra de uma ecdise reptiliana, apenas a carcaça desocupada destituída de qualquer tipo de espírito, e pensei no que poderia fazer para tirá-la de lá. Ninguém nunca sabe o que se deve fazer quando se tem um cadáver em suas mãos. “Chamar a polícia?”, pensei, e quando o policial de plantão atendeu ao telefone, me fez dezenas de perguntas para as quais eu não tinha resposta. “Ignorante”, ele me disse, com uma voz tão aguda que poderia muito bem ser o guincho de um porco se no meio eu não conseguisse distinguir as palavras, “como é bonita a vida desses viciados, ã? Não sabe nem por que a mulher apareceu morta. Ããã?”. Não sabia se aquela era, de fato, uma pergunta. “Não sou Kontinuum – E. Reuss


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viciado”, disse, mas eu era. “Claro que não”, ele disse, e ficou em silêncio. “Vocês não podem buscar o corpo?”, eu disse e ele “Éééééééééé”, em um grito tão longo quanto doloroso, do qual tive que me afastar para proteger meus ouvidos. “Não”, me respondeu, ao fim da tortura, “Liga pro SVO, os caras já tão mais acostumados a carregar esses bostas”. A linha ficou muda. Mais uma vez fui atraído pela planta e larguei o telefone. Puxei-a delicadamente pelo caule e pude sentir a dor de quase ser partido, enquanto as raízes se desprendiam do olhar vitrificado, como garras cadavéricas tentando se agarrar em vão a uma máscara de mármore, fria e escorregadia. Olhei para ela contra a luz ofuscante do sol e lembrei que devia colocá-la em um recipiente com terra. Carreguei a planta para o lado de fora, onde podia ouvir marteladas e buzinadas, gemidos, animalescos e humanos, cantos de pássaros em um desespero compartilhado pela perpetuação das espécies, risadas de homens encharcados de suor, suas britadeiras e serras circulares castigando o asfalto, e o tintilar de garfos e facas em pratos de porcelana, ecoando de casa em casa e se misturando ao vento quente e úmido que carregava essa profusão de sons delirantes como se quisesse me fazer duvidar da aparente

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tranquilidade da vizinhança. Desgosto, foi o que senti. Tal como eu sentia toda vez que eu penetrava o perímetro do mundo real. Me ajoelhei ao lado dos sapos de gesso que habitavam a sombra dos arbustos de Murta, plantados por Michele, que acreditava que uma cerca-viva era o que precisávamos para tornar nosso lar mais convidativo, o lar de um relacionamento construído por pessoas maduras. Ironicamente, os arbustos se recusavam a se reproduzir e a crescer mais do que trinta centímetros, enquanto minha coleção de sapos de gesso continuava a crescer exponencialmente, cada um com sua própria personalidade, sua própria expressão facial, esculpida por alguém em uma oficina que não recebia a luz solar há décadas, de certa forma um conhecedor da psicologia do olhar, que numerava aquelas expressões relembradas e transferidas para o gesso de acordo com a profundidade do trauma. Ajeitei meu sapo preferido, um sujeito esférico e deformado vestindo uma farda militar. Seu olhar, cortante e sofrido, parecia indiferente à beleza que o rodeava. Mesmo assim, meio que pedi permissão, em silêncio, para roubar um pouco de sua terra e colocá-la em um copo plástico para sustentar as raízes da planta. Por cima dos arbustos, Liro me encarava com um olhar estreito, e eu o encarava de volta. Às vezes, conseguia extrair de seus olhos Kontinuum – E. Reuss


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mensagens complexas, de um jeito que somente ele poderia transmitir. Liro se abstém das palavras e prefere se comunicar por meio de grunhidos. Seu rosto adquiriu a rigidez de uma rocha após um AVC e em respeito aos ouvintes ele evitava pronunciar as consoantes, caso contrário eles se viriam cobertos por baba. Mas algumas palavras ainda podiam ser ouvidas saindo de sua boca, naquelas horas solitárias em que o dia lentamente cede à escuridão e os sons de repente se tornam abafados, produzindo ecos que antes não existiam, ressoando como sussurros fantasmagóricos que acompanham os sons originais e, às vezes, se desprendem, caminhando sozinhos pelas sombras até atingirem ouvidos desconhecidos, que pensam em sua inocência estarem sonhando. Eu sabia que não estava sonhando, era Liro cantando numa melodia ébria e banhando-se numa baba densa. Naquelas madrugas, a heroína ainda borbulhante se prendia a consciência, penetrando lentamente numa região onde memórias de repente se vêem deformadas por um distúrbio químico, sugando sua energia em troca de um prazer quase carnal, quase astral, quase transcendente. Liro então dormia e logo acordava como o Liro de antigamente. “Ãooaoeio? Ããã... Ãoeuiuaua?”, ele perguntou, com um olhar confuso. “Ééé...”, hesitei, ainda tentando me recuperar de meus Kontinuum – E. Reuss


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devaneios, mas por fim respondi, “vamos”. E fomos para o Bar do Ventinho. Decidi colocar o broto no bolso interno do meu casaco, temendo que ele fosse chamar a atenção de algum vândalo com uma sensibilidade extremamente bem desenvolvida. Em poucos minutos, comecei a sentir cócegas no lado esquerdo do peito, que logo se tornaram picadas irritantes, mas de qualquer forma, toleráveis. As picadas se intensificaram e se tornaram cada vez mais profundas, até que chegamos ao bar do ventinho, em silêncio, Liro com o olhar da heroína, eu recurvado, como se reverenciasse constantemente uma autoridade invisível, sentindo minhas vísceras serem despedaçadas por seja lá qual fosse a força sombria que habitava aquele invólucro vegetal. Nesse momento, Michele já não ocupava minha mente, mas figurava em algum ponto obscuro, um lugar destinado a entes esquecidos e memórias que emergiriam anos depois acompanhadas pela doença e pelo desgosto, em cômodos fedendo à urina e a remédios vomitados, esperando que fossem resgatadas na forma daquele humor negro tão característico da Morte. Ventinho era um homem pequeno, fraco, a aparência de um homem que ficou ao relento grande parte de sua vida e acabou encolhendo por isso. Suas roupas baratas e enrugadas pareciam uma extensão de sua pele quebradiça, quase como Kontinuum – E. Reuss


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se houvessem absorvido a textura dos papéis que cobriram seu corpo durante o tempo em que morou na rua. Ventinho servia cerveja para uma mesa de padres, todos vestindo camisas claras e calças sociais pretas, devidamente armados com crucifixos de madeira em seus pescoços. Sentamos e o esperamos, e depois de alguns minutos ele se manifestou como um espectro, uma presença incorpórea da morte ou de algo ainda pior, envolto por aquela manta podre fedendo a centenas de banhos não tomados e cigarros consumidos. “Epa”, cumprimentei indisposto, e não recebi resposta. Me perguntei porque tinha amizades tão estranhas, então senti uma fisgada no peito. O broto. Ventinho aproximou sua cabeça do centro da mesa, mantendo seus olhos vidrados em mim, em Liro e em algo sentado ao nosso lado para o qual olhamos em vão tentando enxergar. Nos aproximamos. “Vocês perceberam...? O degrau?”, ele disse. “Que degrau?”, perguntei, olhando para a rua. “O primeiro degrau?”, continuou, “se afastando do chão? Há uma semana já...”, e abaixou a cabeça, “Gnomos...?”. “Gnomos?”, eu disse, “Desgraçados...”, ele disse, ficando em silêncio assim que um de seus clientes passou ao nosso lado. “Eles querem levantar a cidade... e construir uma outra cidade por baixo, se estendendo...”, abrindo os braços e os movendo de um lado para outro, fazendo questão de Kontinuum – E. Reuss


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apontar para todas as direções, “e aos poucos, quando tiverem içado nossa civilização inteira, construirão acessos ocultos, dentro das igrejas, dos hospitais e... Até das casas, cara. Sugando a população inteira para o inferno, um habitante de cada vez”. Liro segurava o riso, prestes a perder o controle, e eu tocava o seu braço com delicadeza, como que pedindo para que ele mantivesse a postura. Os olhos de Ventinho alternando seu foco entre Liro, eu e a terceira presença, a testa franzida, desaprovando nosso silêncio. “Ó u eaaoaeia e ioo?”, Liro disse, recebendo um olhar cortante de Ventinho, seus olhos se estreitando ainda mais, passando do ponto em que se podia dizer se estariam abertos ou não. “O que o golfinho falou?”, ele disse, “’Você acredita em Gnomos?’”, e eu traduzi, tentando amenizar as palavras. “Falta de um nome melhor”, disse, querendo explicar, “Pigmeus, será? Eu os chamaria de demônios, se não estivessem tão próximos”, com uma ênfase curiosa na palavra, “apesar de viverem embaixo da terra, numa profundidade em que podem até sentir o calor... Vivendo embaixo de pedaços imensos de rocha, agrupando estados inteiros, erguidos com bilhões de parafusos, unidos de dois em dois por um tipo de bigorna que funciona como um eixo, que na medida em que vai sendo girada afasta esses parafusos e ergue a rocha...”, e agora a Kontinuum – E. Reuss


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gesticulação de Ventinho havia adquirido uma qualidade quase epilética. “E aqueles seres diabólicos”, ele continuou, se levantando em meio a um público cada vez mais atento, “baixos como gnomos, adaptados para viver em uma fenda de um metro de altura, com colunas deformadas e joelhos estirados pra frente, mudando o centro de gravidade dos seus corpos, fazem qualquer um duvidar de que uma vez já foram humanos”, seus olhos então se encheram de lágrimas, enquanto ele tentava imitar os seres que descrevia, mais preocupado em não cair no chão do que com os olhares confusos que se espalhavam pelo bar. Olhávamos atentos, mas eu sentia meu corpo secar, minha língua áspera como se estivesse coberta de areia, minha vitalidade lentamente se esvaindo por algum lugar do meu corpo e a dor ficando mais intensa a cada segundo. Ventinho me olhava e mexia seus lábios, mas sua voz soava mais como um grito da morte, daqueles que soam na noite e ficam suspensos, sem nunca serem respondidos. Coloquei a mão por baixo da camisa, tentando me aproximar do ponto onde a dor se intensificava, e vi o sangue correndo entre meus dedos, deixando rastros pela palma da minha mão até tingir meus braços de vermelho. Me levantei e sangrei até a saída. Talvez tivessem me chamado, mas de qualquer forma fui embora e Kontinuum – E. Reuss


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não vieram atrás de mim. Andei alguns metros e me sentei sobre um jardim de azaleias, apoiando minhas costas contra o muro de uma casa. Pela primeira vez – ou pelo menos o que eu achara que fosse a primeira vez – senti a natureza aparentemente inofensiva me engolir, não só o espírito daquele pequeno invólucro que eu carregava em meu casaco, mas toda aquela manifestação a minha volta, um espírito tão contagioso que parecia me fazer afundar na grama molhada, e as azaleias pareciam me abraçar com afeto. Fiquei procurando o sol por alguns minutos, tentando me situar no espaço. Tudo o que vi foi o céu azul, nuvens se esticando e tocando os topos das casas, que pareciam se estender aos céus como torres imponentes, catedralescas, e nesse momento tudo se tornou translúcido, menos o azul penetrante, que logo se rompeu nas cores de seu espectro, uma fenda no próprio firmamento, que coloriu o mundo de uma forma insana, o verde da grama e o violeta das flores extremamente vívidos. E ali estava eu, na fenda do universo com um copo plástico cheio de terra em minhas mãos. Nenhum broto. Nenhuma forma de vida. Os músculos do meu peito continuavam a latejar e eu sentia o sangue escorrer por baixo da camisa. Eu já não sabia mais quem eu era naquele momento, tinha apenas uma ideia remota de quem eu deveria ser. Kontinuum – E. Reuss


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Desabotoei a camisa e olhei para a pele perfurada pelo broto, que comia minha carne e penetrava cada vez mais fundo. Tentei puxá-lo, mas a dor era insuportável. Caminhei até minha casa, embora eu não me lembre de ter, de fato, caminhado. Olhei meu reflexo distorcido no espelho do banheiro, o corpo de Michele as minhas costas e o broto cravado em minha pele. Sentia meus dedos sobre suas folhas minúsculas e a pressão sobre o seu caule. Com cuidado, puxei e abafei o grito, até que ela se desprendeu, ensanguentada. Ignorei o fato de que nesse intervalo a planta parecia ter crescido uns bons dez centímetros e fui até a sala jogar, na esperança de que conseguisse camuflar a dor. A sessão começou. Projeção do futuro? Seria isso? Ou apenas uma recriação do passado? Ou seria a materialização de algo que existia apenas na minha imaginação? Fiquei encarando com os olhos cheios de lágrimas, tentando entender em que linha do código aquelas imagens estariam se formando. Haveria no mundo outros programadores que, depois de criar algo tão grandioso, tão complexo, esqueceriam de seus próprios códigos? Tal como se fossem mães traumatizadas, não só tentando esquecer, mas também negando a existência de um filho indesejado, uma memória viva que poderia muito bem levar alguém a loucura. E de qualquer Kontinuum – E. Reuss


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forma, esses códigos seriam tão inexoráveis que estariam fadados ao isolamento, trabalhando em ciclos infinitos e criando, no âmago de suas funções, universos inteiros que estariam a dois microssegundos de distância de serem totalmente destruídos por uma consciência computacional sem arrependimento. Talvez neles estivessem presos outros programadores como eu, que não conseguiriam quebrar a função e nem pensariam em fazê-lo. E aqueles que encontrariam nossos corpos paralisados e nossa consciência totalmente submersa no jogo, não entenderiam... Pois para eles a ideia de se olhar para dentro não faz sentido. Deixam o universo dos sonhos para mergulharem na fantasia escapista de suas vidas diárias, e os malditos nem sequer lamentam não poder estender o sono mais um pouco. Um espectro de luzes vibrantes coloria o interior dos meus olhos, até que a projeção se estagnou no mesmo azul de antes. Um azul estático, se abrindo ao toque dos meus dedos, como uma fenda infinita no lençol dos meus sonhos. Meu corpo atravessou as infinitas camadas de um líquido azulado em queda e, à medida que me aproximava do centro de tudo, o azul se tornava mais denso. Eu ouvia estalos, chiados, uivos e sopros. Os galhos a se quebrar sob meus pés, o vento roçando em meus braços, em meu rosto, as pequenas flutuações do solo. Kontinuum – E. Reuss


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Estremeci e senti o meu corpo ser inundado por essa presença, como se meus pés descalços servissem como porta de entrada para um espírito que flui através do solo. As imagens começavam a se projetar, não como telas em movimento suspensas no vácuo, mas como memórias. Vi a escuridão projetada pelas árvores a minha volta, meus olhos se ergueram lentamente do chão arenoso aos pequenos arbustos, para os troncos lenhosos até o céu azul emoldurado pela cúpula das árvores. A natureza tecia o caminho que eu devia percorrer, e nesse momento ouvi a voz de Liro. “Isso é foda, cara”, ele disse, olhando para os pés descalços, seus olhos se enchendo de uma felicidade pura, vazando na forma de lágrimas que haviam ficado presas por muito tempo. Eu sentia o peso de Liro sobre mim, e ele também me sentia. “Vem cá, Liro”, eu disse, “Estamos sonhando?”, e ele sorriu. E por ser esse um sorriso autêntico, aquilo só poderia significar que estávamos sonhando. Avançamos floresta adentro e vimos as árvores começarem a se afastar uma das outras, a natureza cada vez mais ausente, cedendo seu espaço para um obstáculo à nossa frente, que se erguia em meio ao verde como um monólito cinza levantado por uma civilização desconhecida. Reconheci minha casa. A sala de estar surgiu como uma imagem superexposta, lentamente se Kontinuum – E. Reuss


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revelando a minha frente como num processo químico. Portas onde não deviam estar, levando para corredores que não existiam, sofás em posições invertidas e janelas que se abriam em paredes internas, mas pelas quais ainda podia se enxergar a natureza. Na hora, tudo aquilo fez sentido. No chão, Liro sofria uma convulsão, ainda com os eletrodos na cabeça e sua mente conectada ao jogo, sua face deformada, quase liquefeita, e os seus olhos vidrados e sem vida, enxergando aquilo que só ele poderia enxergar, mas que de alguma forma se manifestava a nossa frente, como se quisesse ser visto, provocante. Caminhei até o quarto. Michele estava sentada de costas sobre a cama, contemplando a linha do horizonte através da janela. As árvores não existiam mais, apenas o azul infinito, penetrando nossos olhos. “Michele?”, chamei, e ela contraiu os ombros, “Michele...?”. Ela se virou e, no lugar de seu rosto, grandes folhas verdes sobrepostas, formando um invólucro cravado de nervuras que se abria no ritmo de sua respiração, despejando das aberturas uma seiva esverdeada, que escorria pelo seu corpo e formava ao seu redor uma poça gosmenta de muco. De repente, surgiu em frente aos meus olhos a mensagem: “Você está jogando há mais de oito horas. Tem certeza que deseja continuar a sessão?”.

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Respondi que não e me levantei. Caminhei até a porta do quarto e hesitei antes de abri-la. Ficaria feliz em vê-la respirando, mesmo que seu rosto houvesse sido tomado por um parasita vegetal. Pensei em mergulhar mais uma vez no Kontinuum e deixar que a minha mente recriasse o universo do jeito que ela achasse necessário. De qualquer forma, abri a porta e entrei num estado de paralisia, tal era o meu terror em ver que a planta havia adquirido o porte de uma árvore madura, mas com galhos flexíveis, e o broto em seu ponto mais alto havia crescido desproporcionalmente, e eu sentia que continuava a crescer, como um tumor diabólico no cerne da natureza. Por um orifício, pingava um líquido pútrido misturado à clorofila, e por ali o broto gigante engolia Michele, de quem eu reconheci apenas as pernas e os pés delicados pendurados para fora. Toda aquela carne dissolvida era transformada em energia e a planta se saciava, em alguns momentos relaxando as contrações de sua boca monstruosa como se entrasse em um sono profundo induzido pela digestão. Corri para fora e atravessei os arbustos de Murta em direção a casa de Liro. “Me ajuda”, gritei, enquanto Liro mergulhava na melancolia da heroína, com a seringa ainda espetada em seu braço esquerdo. Arranquei a seringa e puxei Liro do sofá, que precisou se apoiar em meus ombros para Kontinuum – E. Reuss


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conseguir ficar de pé. “Me ajuda, por favor”, disse, olhando em seus olhos, e corri até o submundo obscuro que havia engolido meu quarto e de onde eu podia ouvir o som da planta deglutindo a carne, quase como se o som ressoasse dentro de mim, o gosto da carne crua escalando pelas paredes do meu esôfago e escapando na forma de um hálito podre com o cheiro da morte. Conseguia ver apenas as panturrilhas de Michele, lentamente sendo engolidas pela planta. Olhei para o tronco do vegetal, que agora parecia ter se fortalecido e adquirido um aspecto mais robusto, suas nervuras mais volumosas e estrias cada vez mais profundas. Em uma delas injetei a heroína com a seringa e vi o líquido subir pelos veios da planta. Senti a seiva carregando a droga numa correnteza fria e impiedosa, impulsionadas por uma força invisível que naquele momento parecia agir sobre nós. Ouvi a voz desesperada de Liro, que disse, “e ôa é éa?!”, e eu disse “que?!”, e ele repetiu, e Ventinho, que se projetou da porta ouvindo o alvoroço e logo começou a rezar, “Pai nosso, que estais no céu...”, e Liro, que voltou a perguntar, e eu respondi, “é o meu broto, caralho”, e Ventinho, que agora gritava “... venha a nós o vosso reino...”, e Liro, que disse, “o e ão’aêe?”, e eu disse “Puxa pelo pé!”, enquanto tentava segurar Michele pela canela ensangüentada, deslizando como sabão, “Puxa!”, e Kontinuum – E. Reuss


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Liro disse “éa áór’a!”, “...o pão nosso de cada dia...”, e eu respondi “eu sei!”, e vimos a planta desabar sobre a cama e ficar ali, paralisada, enquanto Ventinho fazia o sinal da cruz e nós puxávamos o corpo de Michele para fora. Os restos mortais eram tão distantes da forma humana, que não pareciam surtir um efeito tão aterrorizador sobre nós. Encaramos perplexos as sobras dos ossos e algumas porções de nervos e músculos que, surpreendentemente, não foram devorados pela fúria demoníaca do vegetal. Lembro de ter me ajoelhado ao seu lado, e talvez ter dito alguma coisa. Fixei meus olhos na parede a minha frente e vi nossas vidas serem projetadas como camadas de um processo de serigrafia em que os tons eram separados em função de sua melancolia inerente. As estações transcorriam através do tempo, mudando a paisagem sobre a qual nosso lar se erguia, manhãs surgiam em que o silêncio era absoluto, em que se dirigiam apenas olhares indiferentes e infelizes, sob o som estridente de uma nova família que se mudava, de uma nova casa de alvenaria que era erguida, enquanto suas mãos dobravam roupas recém-lavadas, e eu reclamava do cheiro do amaciante, do modo como ele influenciava a sessão. “Vai te foder”, ela gritava, jogando as roupas dobradas no chão, fazendo parecer que ela as havia dobrado apenas Kontinuum – E. Reuss


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para ter a satisfação de jogá-las daquele jeito, “você e esse jogo desgraçado”, e eu explicava que o jogo era sensível durante a abertura, e ela me chamava de viado, e eu a ignorava, meus olhos se revirando dentro das órbitas, encarando o interior das minhas pálpebras, enquanto meus sonhos se desenrolavam como um novelo de imagens e memórias lançado no vazio do meu inconsciente. Assisti minha indiferença e meu egoísmo crescerem à medida que o Kontinuum passava a ocupar as frações desocupadas da minha vida, e que agora acabara de consumir tudo o que um dia eu amei. Decidi deixar o que restou do cadáver ali, como um prato recém preparado, a mercê daquele apetite monstruoso. De alguma forma, senti que devia deixar ela terminar o que havia começado. Ouvi sussurros fantasmagóricos às minhas costas, que imaginei serem de Liro e de Ventinho, e logo senti sua presença diminuir até me dar conta de que estava sozinho com a planta. Vi ela recuperar seus sentidos e se erguer lentamente, o broto em sua extremidade se alongando, deslocando suas mandíbulas vegetais e revelando a abertura que deveria lhe servir como boca, o interior rosado como se fosse a polpa de uma melancia gigante, com filamentos negros que mais pareciam línguas bifurcadas de algum tipo de réptil, oscilando e se aproximando do cadáver a sua frente. Ela acomodou Michele Kontinuum – E. Reuss


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confortavelmente em sua boca, e começou a digeri-la. Nesse momento, pude sentir mais uma vez o gosto e ouvir o som do ácido corroendo a carne, como se soasse dentro de mim. O sono me consumiu lentamente, como um entorpecimento alcoólico inesperado, daqueles que te fazem duvidar da própria sanidade e da veracidade das próprias memórias, até que cedi e dormi, ajoelhado ao lado do monstro. Depois, duvidei se havia dormido, pois naquele momento a escuridão se tornou tão aniquiladora, tão palpável, que parecia me engolir como se fosse uma entidade, e eu podia senti-la na minha pele, sugando todo o vestígio de luz que poderia haver ali, e deixando para trás uma manta gélida, a própria materialização do Nada. E em um lampejo consciente meus olhos se abriram e se depararam com a planta, que, para o meu espanto, agora se encontrava do outro lado do quarto, me encarando com seus olhos invisíveis, que poderiam muito bem serem os meus próprios, porque naquele momento eu me enxergava como num espelho, um poço de arrependimento e desgosto. Tenho certeza que a planta sentiu pena de mim, pois ela se moveu, e vi que ela desenvolvera grandes bases circulares cobertas por uma camada rígida de celulose, que se movimentavam como grandes pés humanos, um cravado no chão enquanto o outro se deslizava alguns centímetros para frente. Kontinuum – E. Reuss


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De fato, tinham inclusive a forma de pés humanos, e em alguns pontos minúsculos parecia germinar sobre a crosta esverdeada pedaços de pele humana. E o imenso vegetal, que agora se curvava para se acomodar ao teto baixo do quarto, se moveu até ficar ao alcance das minhas mãos, paralisado em uma postura implacável, olhando para dentro dos meus olhos como se esperasse algum tipo de saudação. Com toda a civilidade que uma planta poderia dispor, ela fez uma reverência sutil e esperou eu tomar coragem para tocá-la, e o fiz nos pés, que agora encolhiam e assumiam um formato delicado, quase feminino. Suas folhas cuneiformes se desdobravam e se alongavam de modo preguiçoso, crescendo o dobro do seu tamanho original. As pontas de suas folhas se dobravam delicadamente como os dedos de uma mão humana e acariciavam meu rosto, e o cheiro da relva lentamente se erguia do chão. Deitei sobre a cama encarando o teto e senti o sono invadir minha mente, crescendo à medida que eu sentia a pressão de sua folhagem aumentar sobre mim, se acomodando como um lençol gigantesco. E naquela intimidade entre homem e vegetal, isolados do universo, eu me sentia submisso, como se a minha vida fosse só uma ramificação de algo maior. Ouvia meu coração bater, bombeando o que quer que fosse para milhares de outros Kontinuum – E. Reuss


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brotos, que, como eu, viveriam para sempre como parasitas. Fechei os olhos e dormi, um sono tão profundo que não se distinguiam os sonhos, apenas o negrume absoluto. Eu sentia a pressão das folhas sobre mim diminuir e uma sensação única e estranhamente familiar de estar flutuando. O cheiro da relva diminuía e lentamente fui tomando consciência de uma sensação externa, um zumbido constante acompanhado de um hálito fresco sendo soprado em meu rosto. E não sentia só aquele sopro físico, logo percebi que havia outro tipo de sopro, algo metafísico penetrando minha alma e sendo projetado no lugar do que antes eu sentia como a aura gélida do vegetal, mas que agora parecia ter dado lugar a algo humano. Quando abri os olhos, os últimos elementos vegetais da planta se desprendiam de seu corpo, cedendo como a pele de milhares de cebolas descascadas, formando sobre a cama uma camada vegetal morta e cobrindo parcialmente uma silhueta magra, seios pequenos e flácidos, braços tão magros quanto os galhos que há poucos momentos ocupavam seus lugares, um cabelo negro de um brilho descomunal que parecia se enrolar em si mesmo como se contrariasse a física, uma antítese do que se encontra na própria natureza, e o sorriso mais lindo do universo,

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situado em algum lugar entre a inocência infantil e a esquizofrenia, quase de uma fofura lunática. Um traço que apenas Michele era capaz de ter. Acariciei seu corpo, tentando conter meu desespero, e senti o calor inesperado da sua pele, insistindo, e quase me convencendo de que ela estava realmente ali. Merda! Senti medo, pelo que parecia ser a primeira vez em minha vida, um medo implacável, não só do desconhecido, não só daquela... Ressurreição Vegetal, mas de não saber o que fazer com sua presença, como se a qualquer momento eu poderia destruir tudo mais uma vez. “Que foi?”, ela disse, logo apagando o sorriso, e de alguma forma, interferindo na luminosidade do quarto. “Michele...?”, eu disse, ela franziu o cenho e reduziu seus olhos ao azul penetrante de sua íris, que me pareceu familiar demais, até eu me dar conta de que já havia mergulhado neles. “É você mesmo?”, perguntei. “Você precisa parar de jogar esse videogame”, ela disse, em um tom preocupado. Eu concordei, mesmo que silenciosamente, mesmo que omisso, tentando fazer o videogame não perceber o meu deslize. Mas Kontinuum não deixaria aquilo escapar, não quando ele vê tudo. No começo, Kontinuum era apenas um universo a parte para o qual eu poderia fugir sempre que eu quisesse, quase um paraíso privado, completamente explorado e registrado em minha memória como o Kontinuum – E. Reuss


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mapa de uma região conhecida. Mas como todo mapa, algumas regiões obscuras se estendiam para além daquelas distâncias que o mapa fazia crer serem possíveis. E preso naquela caminhada infinita, eu acabei sendo incorporado como um acidente geográfico, parte de algo infinitamente maior, claramente uma obra do universo. E agora eu não conseguia distinguir onde meus sonhos acabavam e onde começavam os dele. Por isso, perguntei: “Estamos sonhando?”. E ela sorriu, e por ser esse um sorriso autêntico, aquilo só poderia significar que estávamos sonhando. Nesse momento, educadamente, o jogo se colocou entre nós: “Você está jogando há mais de quatro mil e trezentas horas. Tem certeza que deseja continuar a sessão?”. Através do texto, eu ainda conseguia enxergar os seus olhos. “Você tá bem?”, ela me perguntava, “Sim” ou “Não”, e o jogo me perguntava. “Sim”, respondi. Cada centímetro do meu corpo mergulhando numa dormência induzida pelo medo, não só o medo de perder Michele, mas de encarar o mundo físico, de perceber o tempo da forma como ele transcorria para os outros, e de acabar revelando aquelas memórias desbotadas que ali dentro eu sabia que se recusariam a

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retornar para sempre. Por isso preferi continuar jogando.

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