ANO 9 - NO 32 - JULHO A SETEMBRO DE 2008
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publicação acadêmica e informativa trimestral dos professores da puc-sp
ISSN 1806-3667
A Crise Mundial e a América Latina ESTADOS UNIDOS cenário econômico CHINA resistência à crise financeira AMÉRICA LATINA dificuldades de integração BRASIL para onde vai o país BOLÍVIA convulsão social e política CUBA situação perigosa ARGENTINA atraso e submissão semicolonial VENEZUELA trajetória bolivariana e antiimperialismo
SUMÁRIO 6
A CRISE NOS EUA: NATUREZA, CENÁRIOS E CONTÁGIO Jason T. Borba
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A CRISE COMO ESSÊNCIA DA NOVA ORDEM Rosa Maria Marques
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AS LIÇÕES DA RESISTÊNCIA CHINESA À CRISE FINANCEIRA ASIÁTICA Paulo Rogério
Scarano e Álvaro Alves de Moura Jr.
19
O DESLOCAMENTO DO EIXO ECONÔMICO MUNDIAL: A EMERGÊNCIA DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA Marcos Cordeiro Pires
25
O IMPERIALISMO E A GUERRA Rui Costa Pimenta
29
AMÉRICA LATINA: OS PARADOXOS DO DESENVOLVIMENTO James Petras
38
O BRASIL NA CRISE MUNDIAL Erson Martins de Oliveira
48
A DUPLA TRAGÉDIA CUBANA Ivan Cotrim
55
O PAPEL DA ALIANÇA CÍVICO-MILITAR NA “REVOLUÇÃO BOLIVARIANA” Marcelo Buzetto
58
VENEZUELA: TRAJETÓRIA BOLIVARIANA E ENGAJAMENTO ANTIIMPERIALISTA Carlos
Cesar Almendra
65
AVANÇA A CRISE POLÍTICA NA BOLÍVIA Waldir Rodrigues
72
COMO A CRISE MUNDIAL REFLETE NA ARGENTINA? APROFUNDAM-SE OS TRAÇOS DE ATRASO E SUBMISSÃO COLONIAL Ramon Basko
75
DESENVOLVIMENTO E CRESCIMENTO: CURSO DAS AGENDAS POLÍTICAS ACERCA DO PROCESSO DE INTEGRAÇÃO Regina Maria A. Fonseca Gadelha
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Associação dos Professores da PUC-SP – APROPUC Diretoria Presidente: Maria Beatriz Costa Abramides Vice-presidente: Ivan Rodrigues Martin 1º Secretário: Hamilton Octavio de Souza 2º Secretário: Willis Santiago Guerra Filho 1ª Tesoureira: Victoria Claire Weischtordt 2ª Tesoureira: Rachel Pereira Balsalobre
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Apresentação
presente edição da revista PUCviva reúne artigos de economistas, sociólogos, cientistas políticos e analistas de várias áreas de formação e de diferentes posições no campo da esquerda para fornecer aos leitores elementos para a reflexão e a compreensão da atual crise do capitalismo, a participação de novos atores no cenário mundial, como a China, e os papéis desempenhados pelos países da América Latina, onde, na visão de alguns, estão sendo ensaiados os mais novos e consistentes projetos de resistência ao neoliberalismo e ao imperialismo. Ao analisar a natureza geral e as especificidades da crise econômica norte-americana, o professor Jason Borba, da PUC-SP, lembra que o acúmulo de operações de derivativos ultrapassa atualmente os 600 trilhões de dólares, mais de dez vezes o PIB mundial. Tais operações fictícias não são transparentes aos mecanismos de controle do sistema financeiro e, por isso mesmo, fornecem elementos de imprevisibilidade nas medidas de combate à crise. Ao destacar que a sincronia global entre economias nacionais tende a seguir a economia líder, o professor admite que é possível esperar – dependendo das medidas adotadas – um processo de recessão de até cinco meses ou até uma depressão de vários anos. Da mesma forma, a professora Rosa Marques, também da PUC-SP, considera que o risco da crise econômica não foi reduzido, mas ocultado, já que os investidores não tinham idéia do grau de exposição das operações financeiras. Ela lembra que as últimas décadas demonstraram que os diferentes segmentos do capital atuam de forma imbricada e coesa, mantendo alta rentabilidade a despeito do nível elevado de desemprego e do aumento da exploração dos trabalhadores. Os professores Paulo Rogério Scarano e Álvaro Alves de Moura Jr., do Mackenzie, investigam as razões pelas quais a China não foi diretamente atingida pela crise que afetou as principais economias emergentes da região do Leste e Sudeste Asiático, entre 1997 e 1998. Já o professor Marcos Cordeiro Pires, da Unesp de Marília, aborda o deslocamento do eixo econômico mundial criado no Atlântico, no século 15, para um novo eixo centrado na Bacia do Pacífico. O sociólogo James Petras, da Universidade de Binghamton (Nova York), elenca detalhadamente os paradoxos do desenvolvimento na América Latina, onde, em vários países, as vitórias eleitorais das esquerdas contribuíram para fortalecer e consolidar o poder da direita. Ao tratar especificamente da “revolução bolivariana”, o doutorando em Ciências Sociais da PUC-SP, Marcelo Buzetto, fornece as pistas da formação e da participação militar no processo político da Venezuela, onde o presidente Hugo Chávez costuma defender uma “revolução pacífica, mas não desarmada”. Em estudo profundo e esclarecedor, a professora Regina Gadelha, da PUC-SP, trata da integração na América Latina, as agendas políticas e os desafios colocados para os países, desde as disparidades sociais, os desníveis do desenvolvimento científico e tecnológico, as barreiras geográficas e demográficas, o entendimento sobre os recursos naturais, até a reconfiguração do imperialismo no processo da integração. O professor Erson Martins, também da PUC-SP, analisa a situação do Brasil na conjuntura internacional. Enfim, esses e outros autores mostram o que está em jogo na economia mundial – especialmente no centro do capitalismo – e nas lutas políticas travadas na Argentina, no Brasil, na Bolívia, em Cuba, no Equador, na Venezuela – países que têm atuado com protagonismo não apenas na América Latina, mas na configuração de uma nova ordem mundial. Boa leitura! Hamilton Octavio de Souza
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A CRISE NOS EUA natureza, cenários e contágio Jason T. Borba
Professor Titular do Departamento de Economia da FEA-PUC-SP
“… this is not the end. It is not even the beginning of the end. But it is, perhaps, the end of the beginning.” 1 Winston Churchill
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finalidade deste artigo é tratar da natureza geral e também das especificidades da atual crise econômica norteamericana, seus cenários e perspectivas de contágio para o conjunto do mercado mundial. Em função do referencial teórico desta análise, o foco na economia norte-americana procede por tratar-se da economia líder na atual ordem econômica, fazendo depender em grande parte do seu desempenho o das demais economias centrais e periféricas, como é o caso do Brasil. Não será feita uma abordagem exaustiva da crise norte-americana, buscando-se, no entanto, os elementos fundamentais para traçar o cená-
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rio mais provável para os próximos trimestres e para reafirmar a sincronia global dos ciclos econômicos nacionais. De fato, após muitas dúvidas a respeito da vigência ou não de uma crise, está mais forte a convicção de que finalmente a crise começou a precipitar-se sobre a economia norte-americana entre o final de 2007 e início de 20082. Mas teria o pior já passado? Qual seria, enfim, a natureza dessa crise? Seria ela restrita ou ocasionada pelos mercados imobiliários, pela crise no sistema financeiro? Ficaria ela restrita à economia norte-americana ou impactaria também as economias européias, asiáticas e latino-americanas? Seria ela breve e moderada ou longa e profunda? Nos Estados Unidos, a explicação mais em voga nos meios acadêmicos e dos negócios para as causas da crise atual estão focadas numa combinação de três processos:
a) a manutenção das taxas de juros básicas muito baixas além do tempo, desde a crise de 2001, o que teria distorcido o custo do capital e possibilitado as operações carry trade (arbitragem de taxas), e com isso favorecido a formação exacerbada de bolhas; b) o comportamento cíclico do sistema financeiro, segundo o qual, na fase ascendente do ciclo, o risco é subdimensionado pelo otimismo da expansão, levando a uma expansão das operações chamadas subprime (concessão de crédito com critérios frouxos e sem garantias) e à formação de bolhas; a instabilidade advém da conscientização repentina do risco já instalado nas carteiras, levando a uma contração generalizada do crédito; c) a securitização e o shadow banking (atividade bancária fora da contabilidade oficial dos bancos para esquivarem-se da contabilidade fiscal e da regulação), que geraram um acúmulo de operações na modalidade de derivativos que hoje, em termos globais, ultrapassa os seiscentos trilhões de dólares3, mais de dez vezes o PIB mundial; o mundo dos derivativos é absolutamente opaco à regulação e às análises − um mundo de operações fictícias cuja natureza e cujas decorrências nem as autoridades monetárias internacionais são capazes de decodificar cabalmente4.
O referencial teórico para a abordagem da crise atual é a teoria dos ciclos industriais periódicos de Marx5, que encontramos apenas parcialmente abordada em Mandel6. Essa teoria toma como base para a determinação dos ciclos o período de vida útil do capital fixo: são os chamados ciclos industriais. Clément Juglar7, cuja formulação clássica é também da segunda metade do século XIX, igualmente assenta sua teoria dos ciclos no capital fixo, mas de um certo modo aponta para uma tendência à sobreacumulação de capital fixo como fator deflagrador do ciclo numa diferença em relação à abordagem marxiana. A teoria dos ciclos é sumamente importante para qualquer avaliação a respeito das tendências de longo prazo e das flutuações conjunturais do mercado mundial. De pronto abre-se uma questão teórica fundamental: haveria ou não organicidade entre a teoria dos ciclos industriais de Marx e a teoria das ondas longas de Kondratiev? Segundo Trotsky8, a mais notória das teorias das ondas longas, a de Kondratiev, se origina de uma analogia com os ciclos curtos: Logo após o Terceiro Congresso Mundial do Comintern, o Professor Kondratiev abordou esse problema – como de costume, evadindo-se cuidadosamente da formulação da questão adotada pelo próprio congresso –, tentando fundar, ao lado do “ciclo menor” que cobre um período de dez anos, o conceito de um “ciclo longo”, abrangendo aproximadamente cinqüenta anos. De acordo com essa construção simetricamente estilizada, o ciclo econômico maior consiste de uns cinco ciclos, sendo que a metade deles tem caráter de boom e a outra metade, de crises, com todos os estágios de transição necessários. (...) Mas já é possí-
vel refutar antecipadamente a tentativa do Professor Kondratiev de caracterizar épocas nomeadas por ele como ciclos maiores com o mesmo ‘ritmo rigidamente regular’ como o que é observável nos ciclos menores; isso é, obviamente, uma falsa generalização de uma analogia formal. A recorrência periódica dos ciclos menores é condicionada por dinâmicas internas das forças capitalistas e se manifesta sempre e em todo lugar em que o mercado venha a existir.
No mais, Trotsky, sem conseguir explicitar o fator endógeno que determina a periodicidade regular dos ciclos curtos, mas com brilhantismo, consegue discernir perfeitamente as naturezas distintas das tendências da acumulação no longo prazo e a das flutuações nos ciclos curtos: No que toca aos grandes segmentos da curva de desenvolvimento capitalista (cinqüenta anos), os quais o Professor Kondratiev apressadamente propõe-se designar também como ciclos, seu caráter e duração são determinados não pelos interjogos internos das forças capitalistas, mas pelas condições externas, por cujos canais o desenvolvimento capitalista flui. A aquisição pelo capitalismo de novos países e continentes e a descoberta de novos recursos naturais, em cujo esteio verificam-se os fatos maiores de ordem “superestrutural” tais como guerras e revoluções, determinam o caráter e a sucessão de épocas ascendentes, estagnadas e declinantes do desenvolvimento capitalista.
Vale, no entanto, ressaltar que Mandel9 posteriormente, resenhando Marx e Kondratiev, irá optar por uma validação de certo modo eclética da natureza endógena das ondas longas. Segundo a teoria marxiana dos ciclos industriais, sua periodicidade é determinada pela vida útil do capital fixo, portanto um fator estritamente endógeno à esfera da produção. Na época de Marx essa periodicidade era de 10 anos, com prognóstico de encurtamento devido à abreviação gradativa da vida útil do capital fixo, tanto pela maior intensidade dos processos produtivos como pela obsolescência tecnológica precoce.
Sobre a evidência empírica dos ciclos atuais Existe hoje toda uma teia de complexidades relativas aos dados econômicos oficiais nos Estados Unidos. A esse respeito, as séries alternativas de John Williams, no seu Shadow Government Statistics (SGS), entre outros, têm desempenhado um papel importante10. O gráfico a seguir exibe duas séries: a do PIB oficial dos Estados Unidos, em linha fina, e a série alternativa do SGS, em linha grossa. A discrepância crescente desde 1982 resulta das modificações sucessivas na forma de apuração, pesos relativos e demais procedimentos de mensuração e substituição do U.S. Bureau of Economic Analysis (BEA). Assinalamos com círculos as ocorrências cíclicas. PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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Vemos que a periodicidade dos ciclos atuais está em torno de seis a sete anos. O ciclo econômico determina a periodicidade dos pontos de mínimo na acumulação, mas não determina de modo algum que esses pontos de mínimo se transformem em crise. Vemos, portanto, que tanto na série oficial como na de SGS os pontos de mínimo coincidem; enquanto crises na série oficial ocorrem apenas em 1981, 1991 e 2001, na série de SGS temos crise em 1981, soft landing11 em 1987 e crises em 1991, 1995, 2001 e, segundo nossa análise, a partir do final de 2006. Vale observar que os anos 1990 em particular tiveram ocorrências parciais importantes, como a Crise Mexicana em 1994 e a Crise Russa em 1997-98, que abalaram momentaneamente o conjunto do sistema. Desse modo, tanto a série oficial como a série alternativa nos mostram a ocorrência dos ciclos, não mais decenais, mas abreviados. A série SGS nos mostra a ocorrência das crises cíclicas e já aponta para a gravidade específica da crise atual.
Sobre os cenários
Essas questões relativas ao aperto no crédito norteamericano são fundamentais, numa perspectiva panorâmica, inclusive para reforçar o início e a vigência da crise, mas delas em si não se consegue compor uma cenarização. De fato, também a partir de uma visão panorâmica, vamos encontrar uma constelação especial de fatores perfilados em uma das crises passadas que pode sugerir os contornos de um cenário futuro. O gráfico a seguir13 apresenta as taxas de crescimento anual do PIB real de 1978-2007, em linha fina, e as taxas de juros de referência para a economia norte-americana, em linha grossa. Anotamos nesse gráfico o fenômeno conhecido como “double dip” (duplo mergulho), como ficou conhecida a crise que se iniciou em 1978 e que, de um modo sui generis, durou até 1982. Em termos oficiais, foram ali reconhecidas duas crises, destacadas nas áreas cinzentas, bem próximas uma da outra, das quais a segunda é mais longa e mais intensa.
A cenarização para a crise atual requer algumas considerações adicionais e também um olhar panorâmico sobre as crises passadas. O gráfico a seguir12 nos mostra o comportamento típico do sistema financeiro no decorrer dos ciclos. Os bancos respondem com um aperto das condições de concessão de crédito. Assim foi na crise de 1991. Vemos a leve inflexão durante o soft landing de 1995. O calombo durante a crise russa poderíamos chamar de “ponto fora da curva”. Logo em seguida, na crise de 2001, vemos um forte e longo aperto no crédito, que durou até 2003, seguido por um período de total liberalização dos critérios, exatamente onde se gerou o subprime generalizado na economia norte-americana. No entanto, já a partir de 2007 os critérios voltam a restringir fortemente o crédito. A inflexão, que torna cada vez menos liberal e mais arredio o sistema financeiro, começa a ocorrer já a partir de fins de 2006. Fica, então, patente a vigência de uma crise de crédito na economia norteamericana a partir de 2007. Claro que permanece a pergunta: que fator endógeno poderia ter levado a tal inflexão já a partir de 2006? Qual o percurso futuro dessa tendência?
Chama a atenção o comportamento contraditório do FED (o banco central dos Estados Unidos) na administração das taxas de juros – com uma intervenção inicial
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mercados, a mercadoria equivalente geral − e assim permaacentuadamente pró-cíclica. Não há, como é típico nos cinecerá através dos tempos enquanto perdurar a produção de clos, uma sincronia perfeita entre as taxas de crescimento valor15. O surto especulativo atual com o ouro assume, num do PIB e as taxas de juros, isso devido ao proverbial atraso do FED em reagir à desaceleração econômica. Mas o comcontexto específico de crise, uma natureza predominanteportamento pró-cíclico das autoridades monetárias no caso mente monetária. O ouro emerge na situação atual como do “double dip” fica muito destacado. O problema fundareferencial monetário, ou melhor, como um espelho da saúmental colocado para o FED, daquela feita, foi a presença de do sistema monetário internacional. Nesse caso, seria um simultânea de desaceleração e crise econômica com inflaengano ver os preços recentes do ouro refletindo apenas um ção crescente, fenômeno conhecido como “estagflação”. A comportamento especulativo, o qual, no entanto, está fortecrise em geral vem acompanhada de uma deflação, o que mente presente. possibilita a adoção de uma política monetária expansioPor essa razão, um dos elementos cruciais para comnista, e confere funcionalidade a essa política. No entanto, por o cenário da economia norte-americana para os dois naquele caso, a crise não se fez acompanhar de uma deflapróximos anos é o de um agravamento da crise, com sução clássica, ou seja, deflação nos preços reais e nos preços bida drástica das taxas de juros tanto nos Estados Unidos nominais. Naquele caso, a deflação ocorreu só nos preços como na Europa. É nessa exata medida que o “double dip” reais, com os preços nominais em forte ascensão. Tínhamos do final dos anos 1970 nos inspira. Rememorando a epíuma situação de extrema vulnerabilidade, grafe deste artigo, não se trata simplessegundo os cânones keynesianos e neomente de prognosticarmos a repetição ...um dos elemenkeynesianos, de uma política monetária de uma dinâmica de “double dip” para o endógena. Nesse quadro, só mesmo um desdobramento da crise corrente, mas de tos cruciais para tratamento de choque, com o aumento considerarmos a forte probabilidade de compor o cenário repentino e fortíssimo dos juros, que no um choque drástico e autônomo de juinício dos anos 1980 atingiram cerca de da economia norte- ros, com o conseqüente agravamento da 18% ao ano, para recobrar o controle goglobal, que para o segundo semestre americana para os crise vernamental da oferta monetária. de 2008 e para os próximos nos parecem Desde o final de 2002, o dólar desvadois próximos anos inevitáveis16. Não podemos esquecer, no lorizou-se fortemente em relação às demais entanto, que há outros possíveis e graves é o de um agravamoedas. Porém, desde os primeiros meses de fatores a emergir, como a deflação do es2008, com o início da fase mais aguda da mento da crise, com toque global de derivativos, que podem atual crise, que gradativamente envolveu as subida drástica das transformar esta recessão, ainda que bem demais economias centrais, esse movimento mais grave do que as quatro anteriores, taxas de juros... de desvalorização da moeda norteamericana que duraria entre três e cinco semestres, inverteu-se. Ainda é cedo para vislumbrarem depressão, esta sim com duração de mos o resultado final do processo, mas, de até uma década. qualquer modo, a crise atual ainda não levará ao final do dólar Sobre o contágio global, na como padrão monetário internacional, nem à substituição da economia norte-americana como economia líder, embora os América Latina e no Brasil problemas para sua manuteção nessa condição se multipliquem e se agravem aceleradamente. Porém, no que concerne ao ceA questão tida como de “contágio” diz respeito, na nário fundamental da atual crise, o custo do financiamento ao realidade, não só a um processo literal de contágio, mas capital e ao consumo tenderá a subir vertiginosamente, princitambém à existência ou não de sincronia dos movimenpalmente na fase aguda do ciclo. Esse é um movimento autônotos cíclicos das demais economias nacionais. Com efeito, mo dos mercados, devido à chamada aversão crescente ao risco. o referencial teórico com o qual tratamos a crise atual Os patamares de longo prazo para o custo do financiamento já considera que cada economia industrializada contém tendem a ser doravante bem mais altos.Várias são as medidas o componente endógeno determinante do comportamenpara tentarmos aquilatar o quadro para um movimento de to cíclico: a importância quantitativa e qualitativa do capital fixo no processo de acumulação. Há a necessidade subida da taxa de juros norte-americana, se de acordo com um de apreendermos empiricamente o grau de aderência de gradualismo ou se num movimento de choque. cada economia, ou grupo de economias, aos movimenO grau de deterioração do dólar pode hoje ser visto tos cíclicos da economia líder no mercado mundial, ou no mercado de ouro. O excelente artigo já referenciado de seja, a economia norte-americana. Na medida em que, Laird14, nos dá o insight mais interessante da dinâmica desse através da sucessão dos ciclos no pós-Segunda Guerra, complexo mercado. Em termos marxianos, o ouro é uma mas principalmente a partir dos anos 1980, o processo mercadoria normal, de um lado, mas é também, a partir de de concentração e centralização no âmbito do mercado um determinado estágio histórico de desenvolvimento dos PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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mundial se aprofundou, podemos supor com segurança que a convergência dos padrões e estilos de acumulação nacionais levou a uma sincronia cada vez mais marcada nas respectivas conjunturas cíclicas. Com efeito, nas últimas décadas, no âmbito da economia mundial enquanto totalidade, as crises norte-americanas são episódios, sem dúvida o principal, das crises do capital social global. Hoje, neste início de milênio, com o capital de longa data já constituído em mercado mundial, este se apresenta como sistema sincronizado de economias nacionais, fazendo da atual crise americana o centro de uma crise que é global. Sem a intenção de aprofundar o estudo do comportamento cíclico do mercado mundial, indicamos alguns elementos do modo como tem se dado recentemente essa complexa sincronia entre economias centrais, envolvendo também as que compõem um grupo especial de economias periféricas: o Bric (Brasil, Rússia, Índia e China). As séries que evidenciam melhor essa sincronia estão sistematizadas no CLI − Composite Leading Indicators da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico − OCDE17. A análise das séries mostra o alinhamento complexo das principais economias componentes da OCDE na última crise cíclica, assim como do Bric. Não se trata, é claro, de um espelhamento perfeito, mas destacam-se as tendências cíclicas diretoras condicionando as flutuações das economias nacionais. Chama a atenção, sempre, o caso da China: a última crise cíclica − a de 2001 − repercutiu naquela economia de modo a desacelerá-la. A perspectiva para a crise atual é que a desaceleração da economia chinesa seja significativa e bem mais grave do que a da crise anterior. Devido a essa sincronia global entre das economias na-
cionais, o mundo seguiria o destino da economia líder, ou de uma recessão entre três e cinco meses, ou de uma depressão que poderia ser de uma década, como vimos anteriormente. Quanto à economia brasileira perante a crise global, alguns elementos poderiam indicar uma menor vulnerabilidade. O recente movimento virtuoso da acumulação nacional poderia sugerir que o impacto da crise global fosse, aqui, tão forte. Além disso, a relativa dispersão dos mercados exportadores para os produtos brasileiros indicaria uma menor exposição à crise norte-americana. Mas o Brasil fez-se nas últimas décadas uma economia fortemente integrada no mercado mundial. A forte integração da economia brasileira não se pode aferir observando-se somente seu grau de abertura, ou seja, a participação das importações e exportações no PIB. Hoje a produção, a logística, a circulação de mercadorias, além do sistema financeiro, estão fortemente internacionalizados, e é daí que o grau de exposição da economia brasileira às flutuações nos mercados globais deve ser avaliado. Além disso, o maior ou menor envolvimento da economia brasileira nas transações bilaterais com a economia norte-americana, que é o epicentro da crise atual, também não pode atestar um maior ou menor grau de exposição da economia brasileira às instabilidades da economia líder. Ao contrário, os entrelaçamentos entre as principais economias do mundo, tanto as centrais como aquelas mais desenvolvidas da periferia industrializada da qual o Brasil é destaque, apontam para uma organicidade íntima de todo o sistema, o que favorece decisivamente, quando a crise global atingir seu momento mais agudo no segundo semestre de 2008, uma propagação rápida e intensa.
Notas 1 “… isto não é o fim. Não é sequer o começo do fim. Mas talvez seja o fim do começo.” 2 Ver PUPLAVA, Chris (2008), “An Inconvenient Adjustment: The Unofficial Official Recession”, in www.financialsense.com, ROUBINI, Nouriel (2008), “Deepening Recession, Tumbling Equity, and Sky-High Oil Prices”, in www.rgemonitor.com e MAULDIN, John (2008), “US in Recession Despite Manipulated Employment and Inflation Statistics”, in www.marketoracle.co.uk. 3 Cf. BIS (2008), Amounts outstanding o over-the-counter (OTC) derivatives by risk category and instrument, in www.bis.org. 4 Cf. LAIRD, C. (2008), Central Banks $2.5 Trillion Money Supply Fails to Stop a Global Deleveraging, in www.marketoracle.com. 5 Cf. BORBA, Jason. T. (2007, mimeo). Crises, Ciclos e Tendência da Acumulação Capitalista: Teoria, História e Cenários. (Versão para discussão), GECOPOL – Grupo de Pesquisa em Economia Política Marxista, Depto. de Economia (mimeo) da PUC-SP. 6 MANDEL, Ernest (1982) O capitalismo tardio (Coleção Os Economistas). São Paulo: Ed. Abril. 7 JUGLAR, Clément (1863), Crises Commerciales, in www.gallica.bnf.fr. 8 TROTSKY, Leon. (1923) The Curve of Capitalist Development – A letter to the editors in place of the promised article, April 1923, in http://www.marxists.org. 9 Op. cit. 10 WILLIAM, John (2008), Shadow Government Statistics – Alternative Series, in www.shadowstats.com; ver também MAULDIN, John (2008), How do You Spell Stagflation?, in http://frontlinethoughts.com. 11 Pouso suave, caracterizando uma breve desaceleração seguida de retomada. 12 Cf. www.economiaemdia.com.br. 13 Cf. KASRIEL, L. (2007), The More the FED Delays Cutting US Interest Rates, the More We Cut Our GDP Forecast, in www.marketoracle.com. 14 Op. cit. 15 BORBA, J. (1981) O caráter histórico do dinheiro em Marx. São Paulo, EAESP-FGV (mimeo). 16 Para consultar análises com prognósticos muito próximos, mas que partem de referenciais totalmente distintos, ver ROUBINI, N. (2008), The US Recession: V or U or W or L-Shaped?, in www.rgemonitor.com/ e LEAP/E2020 (2008), Juillet-Décembre: Le monde plonge au coeur de la phase d’impact de la crise systémique globale (GEAB nº 26), in http://www.leap2020.eu/. 17 Cf. OECD (2008), CLI − Composite Leading Indicators, in www.oecd.org.
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A crise como essência da nova ordem Rosa Maria Marques Professora Titular do Departamento de Economia da PUC-SP
“Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra.” Carlos Drummond de Andrade
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a década de 1980, quando os Estados Unidos e a Inglaterra capitanearam a desregulamentação monetária e financeira, a descompartimentalização dos mercados financeiros nacionais e a desintermediação bancária, os defensores do livre-mercado entenderam que, finalmente, depois de décadas, a economia teria liberdade para desenvolver todo seu potencial. E, de fato, a liberdade se impôs. Mas não aquela que permitiria aos homens trilhar caminhos para uma vida melhor, e sim aquela do capital. Dessa forma, depois de mais de trinta anos, o capital portador de juros (também chamado de financeiro por alguns) retornou soberano e se colocou no centro das relações sociais e econômicas do mundo contemporâneo. É ele que, enquanto porta-estandarte do capital, abriu as portas ao capital em geral em todos os cantos do planeta. É ele que, somado à entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), colocou os trabalhadores, pela primeira vez, em concorrência internacional. Vale lembrar que o retorno do capital portador de juros somente foi possível porque, tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra, os trabalhadores sofreram derrotas memoráveis, tais como a infringida aos aeroviários e aos mineiros. O retorno do capital portador de juros, dado em bases muito mais profundas e complexas do que no passado (do final do século XIX até 1929), foi acompanhado pela construção de uma nova relação entre os diferentes componentes do
capital (portador de juros, industrial e comercial) e por uma nova correlação de forças entre o capital e o trabalho, desfavorável a este último. Essa nova relação se expressa no domínio relativo do capital financeiro (portador de juros) sobre o capital produtivo, o que se evidencia não só pelo aumento de sua exigência na participação da mais-valia, como nas inúmeras formas de fazer valer sua lógica de rentabilidade de curto prazo nas empresas, incorporando, como seus aliados, os altos executivos. Em outras palavras, isso impede que as empresas invistam (dado que o tempo de maturação é de médio a longo prazo) e que os departamentos ou filiais sejam tratados não como partes de um todo, mas como se fossem a empresa “em si”. A conseqüência disso é a exigência de que todos – departamentos e filiais – produzam pelo menos 15% de rentabilidade (Plihon, 2005). Contudo, para as 500 maiores empresas, isso não chegou a ser um problema. Depois de um período de baixa, recompuseram seu nível de lucratividade fazendo um mix entre o lucro da empresa e a rentabilidade das aplicações junto ao sistema financeiro dos lucros não reinvestidos. Além disso, a liberdade de ir e vir alcançada pelo capital financeiro permitiu que os outros capitais (industrial e comercial) também ganhassem mobilidade, fazendo do mundo objeto de sua ação e intervenção, o que exacerbou a concorrência capitalista e colocou, como nunca antes visto, os trabalhadores em concorrência no plano mundial. A concorrência estabelecida entre os trabalhadores implicou o aumento brutal da taxa de exploração, isto é, da mais-valia, a outra base sob a qual as grandes empresas recompuseram seus lucros. Para as demais empresas é a forma preferencial assumida para se defenderem do aumento da punção do capital portador de juros sobre seus lucros. Essa nova configuração resulta em um baixo padrão de acumulação (enquanto norma), na manutenção de elePUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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vadas taxas de desemprego, na redução dos salários, na precarização das relações de trabalho (aumento da intensidade do trabalho, contrato por prazo determinado, ausência de direitos trabalhistas e sociais, trabalho noturno, trabalho em fim de semana, entre outros), na transferência de plantas para os países da Europa do Leste, anteriormente sob a influência da antiga URSS, e mesmo para a China e outros países onde o custo da força de trabalho é irrisório. Dessa forma, o capitalismo hoje se apresenta como um regime de baixa acumulação (daí decorre o pouco investimento que o caracteriza e as baixas taxas de crescimento) e elevado nível de lucro (Husson, 2006). Nessa situação, tanto o capital financeiro quanto o produtivo não têm nenhum interesse em algo parecido com o pleno emprego: a manutenção de desemprego elevado (exército industrial de reserva, para Marx) é condição para a continuidade da nova situação criada a partir da década de 1980: recuperação dos níveis anteriores da taxa de lucro, baixo crescimento, e aumento colossal do volume do capital financeiro aplicado em títulos de todos os tipos e em ações, praticamente no mercado secundário. Isso significa que não há, no marco do processo de acumulação atual, a possibilidade de crescimento econômico expressivo e duradouro. Se a China parece negar essa afirmação é porque as condições de seu crescimento são similares às da acumulação primitiva, em que as condições de trabalho e a remuneração dos trabalhadores não têm termos de comparação com as existentes nos outros países. Apenas para citar um exemplo, o custo médio da hora do trabalhador industrial é de U$ 0,60 na China, enquanto na Alemanha é de U$ 24 e na França U$ 17 (Choen; Richard, 2005). Para isso foi fundamental a transferência para a China de grande parte das indústrias norte-americanas e de parte de suas atividades de Pesquisa e Desenvolvimento, as quais aproveitaram-se do fato de os custos serem bem mais reduzidos naquele país. A rigor, a força assumida pelo capital portador de juros, cujos atores são as Bolsas, as instituições financeiras, os fundos de pensão, entre outros, deriva da própria lógica do capital. O capital portador de juros, como expressão máxima do fetiche no capitalismo − dinheiro que gera dinheiro, sem passar pela produção − é a forma mais acabada do capital (Marx, 1980). Se durante os “30 anos gloriosos” ele estava contido, e a dominância era a do capital produtivo (industrial), isso foi resultado de uma determinada configuração, que passou pela específica correlação de for-
ças entre o capital e o trabalho existente no período pósguerra, particularmente devido à vitória da União Soviética na Segunda Guerra Mundial, aos interesses americanos em rapidamente fazer a Europa retomar seus fluxos comerciais e financeiros, e ao reconhecimento de que a crise dos anos 1930 devia-se à liberdade do capital financeiro (Judt, 2008), entre outros fatores. Dessa forma, expressiva parte do capital portador de juros é fictícia, referindo-se à negociação de títulos públicos ou privados que não guardam mais nenhuma relação com a sua origem, sendo negociados várias vezes no mercado secundário. No momento atual, em que o aprofundamento da crise financeira nos Estados Unidos ameaça o mercado mundial, mais uma vez se escancara a verdadeira natureza do capital hoje dominante. Trata-se de um capital que garante altas taxas de rentabilidade e garantias, até que suas bases, assentadas em material podre, começam a desmantelar a intrincada relação de cobertura criada nessas últimas décadas. Vale a pena citar, aqui, o que Krugman (2008) diz sobre a crise norte-americana provocada pelo subprime: Acreditava-se que o novo sistema trabalharia melhor, diluindo e reduzindo os riscos. Mas, com a crise da habitação e a conseqüente crise do crédito hipotecário, ficou evidente que o risco não chegou a ser reduzido, mas ocultado: os investidores, em sua maior parte, não tinham idéia do grau de exposição em que se encontravam. E, como as incógnitas desconhecidas se tornaram incógnitas conhecidas, o sistema presencia corridas pós-modernas aos bancos. São as mesmas que se viam na versão antiga: com poucas exceções, não estamos falando de multidões de poupadores desesperados batendo furiosos nas portas fechadas dos bancos. Falamos de telefonemas frenéticos e mouses clicando, enquanto os operadores do mercado financeiro conseguem arrancar linhas de crédito e tentam reduzir o risco dos parceiros. Mas os efeitos econômicos – congelamento de créditos, queda abrupta do valor dos ativos – são os mesmos das grandes corridas aos bancos da década de 30”.
É preciso dizer, contudo, que o capital portador de juros não constitui um vilão, ao lado do qual coexistiriam o capital industrial e o comercial como expressão da face “boa” do capitalismo. Ao contrário, as últimas décadas demonstraram que os diferentes segmentos do capital atuam de forma imbricada e coesa, mantendo alta rentabilidade a despeito do nível elevado de desemprego e do aumento da exploração dos trabalhadores.
Bibliografia COHEN, Philippe; RICHARD, Luc. La Chine será t-elle notre cauchemar? Paris: Mille et Une Nuits, 2005. JUDT, Tony. Pós-Guerra – Uma história da Europa desde 1945. São Paulo: Objetiva, 2008. KRUGMAN, Paul. Roleta-russa financeira. OESP, 16 de setembro de 2008. HUSSON, Michel. Finança, hiper-concorrência e reprodução do capital. In A finança capitalista. Paris: PUF, 2006. MARX. K. O capital. Livro III, volume IV. São Paulo: Civilização Brasileira, 1980. PLIHON, D. As grandes empresas fragilizadas pela finança. In CHESNAIS, F. (org.) A finança mundializada, raízes sociais e políticas, configuração, conseqüências. São Paulo: Boitempo, 2005.
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As lições da resistência chinesa à crise financeira asiática Paulo Rogério Scarano e Álvaro Alves de Moura Jr. Professores do Curso de Ciências Econômicas da Universidade Mackenzie
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iferentes autores, de diversas correntes teóricas, tratam da propensão à crise nas economias capitalistas. Minsky (1977), em sua hipótese da instabilidade financeira, mostra como uma economia capitalista gera internamente uma estrutura financeira susceptível a crises e como o funcionamento normal dos mercados financeiros, mesmo diante de um surto de expansão da economia, pode desencadear uma crise financeira. A literatura pós-keynesiana tem se preocupado em mostrar que os efeitos desse tipo de crise podem ser potencializados em um ambiente de liberalização financeira internacional. Economias emergentes da Ásia, como Tailândia, Coréia, Indonésia e Malásia, eram indicadas por organismos internacionais, entre os quais o Fundo Monetário Internacional, como modelos para as demais economias em desenvolvimento. Prates (1999) mostra que economistas associados ao mainstream economics apontavam a estratégia utilizada por esses países como responsável pelo seu desempenho superior, comparativamente aos países que adotaram a industrialização via substituição de importações. Tais economistas destacavam, entre as virtudes do
modelo asiático, a industrialização voltada para fora e a liberalização dos mercados financeiros domésticos. Contudo, em julho de 1997, deflagrou-se a crise financeira asiática. O PIB real daquelas economias caiu pelo menos 7%, entre 1997 e 1998. Como lembra Rothberg (2005), o FMI não prognosticou a crise. “O fundo afirmaria mais tarde que o episódio poderia ser considerado algo imprevisível, embora o contexto do qual a crise surgiu tivesse sido continuamente apontado pela instituição” (Rothberg, 2005, p. 76). No entanto, de maneira aparentemente surpreendente, a crise não atingiu a China. O presente trabalho busca investigar as razões pelas quais a China não foi diretamente atingida pela crise que afetou as principais economias emergentes da região do Leste e Sudeste Asiático, entre 1997 e 1998, para delas extrair as lições que podem ser aproveitadas pelas economias latino-americanas diante de novas crises financeiras de alcance internacional. Vale lembrar, como Minsky (1977), o caráter recorrente das crises nas economias capitalistas financeiramente sofisticadas, como atesta a turbulência que começou no setor imobiliário PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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20%. A Tailândia possuía uma dívida externa de cerca de US$ subprime norte-americano, se espalhou pelos mercados internacionais e cujas dimensões são ainda incertas. 95 bilhões, com quase a metade vencendo no curto prazo. Torna-se particularmente importante compreender a Perdeu reservas rapidamente e seu déficit em conta corrente resistência chinesa à crise asiática, em função das semelhanchegou a 7,5% do PIB. Desencadeou-se, então, uma sucessão ças entre a economia da China e o ambiente econômico que de desvalorizações das moedas da região. Em julho, a moeda existia em economias como Tailândia, Coréia, Indonésia e das Filipinas, passou a flutuar, caindo 6,4%. Em agosto, foi a Malásia. Destacam-se, entre essas semelhanças: o volume de vez da moeda da Malásia se desvalorizar. Ainda em agosto de comércio intra-regional e o grau de encadeamento de inves1997, a moeda coreana sofreu um ataque especulativo. Em detimentos com o resto da Ásia; a preponderância da intermezembro de 1997, governo coreano liberou a flutuação do won, diação bancária; o crescimento dos chamados “empréstimos que perdeu 57% de seu valor em relação ao dólar. Os mernão-realizáveis”, devido, em parte, ao excessivo empréstimo cados financeiros internacionais tornaram-se muito instáveis. para empresas estatais já muito endividadas; a insuficiente suImportantes conglomerados asiáticos, como a KIA Motors, pervisão preventiva do sistema financeiro; e a bolha de preços passaram por dificuldades financeiras. As reservas coreanas se de ativos. Temia-se, assim, o risco de disseminação da crise tornaram escassas e o governo teve dificuldades para honrar asiática para a China. No entanto, a continuidade do cresa dívida externa de curto prazo. A crise se estendeu pelo ano cimento econômico garantiu a permanência do influxo de de 1998, contribuindo para crises cambiais em outros países, investimento direto estrangeiro (IDE) e a como a Rússia (1998) e o Brasil (1999). manutenção dos superávits em transações Diversos autores, como Krugman Bancos e empresas correntes. Assim, a moeda chinesa, o RMB, (1998), Corsetti; Pesenti; Roubini (1998), resistiu, não acompanhando o ciclo de desfinanceiras tomaram Sachs (1997) e Sachs, Radelet (1998) devalorizações de preços de ativos e moedas bruçaram-se para estudar as causas da crise dinheiro de curto que atingiu as economias emergentes da asiática. Algumas de suas conclusões serão região no período. prazo emprestado... discutidas a seguir. O trabalho parte do pressuposto, Krugman (1998) analisa a crise a para então conceapontado por Sharma (2002), de que a partir de razões financeiras. Ao tratar delas, capacidade de resistência da China à crise der empréstimos começa focalizando dois aspectos: o papel deve ser entendida no contexto de sua ecodos intermediários financeiros (e do risco para investimentos nomia política doméstica. A condução desmoral − “moral hazard” − associado a esses ta, por sua vez, revela a preocupação das auespeculativos, para intermediários, quando estão submetidos à toridades chinesas em garantir a resistência frágil regulamentação) e o papel do preço corporações altaa pressões, fatores desestabilizadores e choreais (tais como terra e capital). ques externos, mantendo baixa vulnerabilimente alavancadas. dos ativos Krugman (1998) busca os elemendade externa. Desse modo, a China, como tos comuns aos países que foram abatidos ator político internacional, amplia a possibipela crise, assinalando que em todos os lidade de realizar a sua própria vontade, independentemente da países afetados ocorreu uma interrupção no boom do mercavontade alheia (Weber apud Gonçalves, 2005, p. 125). do de ativos que precedeu a crise cambial: os preços de ações O presente artigo está dividido em quatro seções, além e propriedades imobiliárias subiram e depois despencaram desta introdução. Na primeira, é realizado um breve arrazoa(muito mais após a crise). E, finalmente, em todos os paído histórico da crise financeira asiática, expondo-se as causas ses envolvidos, os intermediários financeiros parecem ter sido apontadas por diferentes estudiosos do assunto, como Corsetos principais responsáveis. Bancos e empresas financeiras toti; Pesenti; Roubini (1998), Krugman (1998) e Sachs; Radelet maram dinheiro de curto prazo emprestado, muitas vezes em (1998). Na segunda seção, exploram-se os pontos fracos da dólar, para então conceder empréstimos para investimentos economia chinesa, que se assemelham com aqueles encontraespeculativos, para corporações altamente alavancadas. Assim, dos nas economias asiáticas afetadas pela crise financeira. Na para Krugman (1998), a crise asiática, em primeira instância, terceira seção, investigam-se os elementos presentes na econopouco tem a ver com moeda e taxas de câmbio, e sim com mia da China que contribuíram para sua resistência à crise. excesso e colapso financeiro, ou seja, com a explosão e subsePor fim, a quarta seção é dedicada às considerações finais. qüente colapso dos valores dos títulos em geral, sendo a crise monetária e cambial mais um sintoma do que uma causa do A crise financeira asiática “mal” que atingiu a Ásia. Para Krugman (1998) o problema começou com os inComo mostra Roubini (1998), o início da crise finantermediários financeiros, cujos passivos eram vistos como tendo ceira asiática é marcado pelo ataque especulativo ao bath, mogarantia implícita governamental, mas que eram essencialmente eda tailandesa, no início de julho de 1997, que a partir de mal-regulamentados e, portanto, sujeitos a diversos problemas então passou a flutuar, sendo desvalorizada, de imediato, em
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incorreta dos preços relativos futuros, uma vez que os fluxos de “risco moral”. Os empréstimos excessivamente arriscados de capital devem ser reembolsados, no final das contas, com concedidos por essas instituições criaram inflação, não nos preo aumento das exportações líquidas, sendo provável que em ços de bens, mas sim nos de ativos. Os ativos sobrevalorizados algum momento a taxa de câmbio tenha que ser depreciada foram sustentados, em parte, por um processo circular, no qual em termos reais para ter como viabilizar esse reembolso. Um a proliferação de empréstimos elevou os preços dos ativos de segundo tipo de ilusão é criado através da liberalização do risco (que muitas vezes compunham a garantia dos empréstimercado financeiro, que tipicamente acompanha o começo mos), criando a condição financeira para que os intermediários de um fluxo de capitais de larga escala. O sistema bancário parecessem mais saudáveis do que de fato estavam. foi desregulamentado e privatizado, entre o final da década E assim foi até que a bolha estourou. Na opinião de de 1980 e meados da de 1990, em todo o Sudeste Asiático, Krugman (1998), o mecanismo da crise envolve o mesmo na Europa Central e na América Latina, o que lhes permiprocesso circular, mas em sentido contrário: a queda de preço tiu maior liberdade para obter empréstimos no estrangeiro. dos ativos torna visível a insolvência dos intermediários finanAssim, bancos e instituições financeiras tornaram-se interceiros, forçando-os a cessarem as operações, o que, por sua mediários para canalizar o capital estrangeiro para as ecovez, leva a uma nova queda nos preços dos ativos (deflação de nomias domésticas. O problema é que esses bancos e insativos). Essa circularidade, por um lado, pode explicar tanto tituições financeiras freqüentemente operam sob incentivos a severidade da crise, quanto a aparente vulnerabilidade das altamente distorcidos, subcaptalizados, e economias asiáticas a crises auto-realizáveis, sob insuficiente controle sobre os investicomo, por outro lado, ajuda a entender o ...esses bancos e mentos realizados com o dinheiro captado fenômeno do contágio entre economias no estrangeiro. Dessa forma, se o investicom poucas conexões visíveis. instituições finanmento financiado der certo, os banqueiros Nota-se a semelhança entre o paceiras... operam sob ganham dinheiro. Se o empréstimo falhar, pel da bolha de preços de ativos, motivada por crédito, e o desencadeamento da crise incentivos altamente os depositantes e credores arcam com as perdas, pois os donos do banco correm econômica com o estouro da bolha, na desdistorcidos, subcap- pouco risco porque eles têm pouco capital crição de Krugman (1998), com o mecapreso ao banco. Um problema daí derivanismo descrito por Minsky na hipótese da talizados, e sob indo é o do “risco moral”, pois em muitos instabilidade financeira: suficiente controle casos até mesmo os depositantes e os cre[...] a ampliação da concessão de crédito sobre os investimen- dores estrangeiros podem estar protegidos bancário, resulta em aumento do invesdo risco, pelas salvaguardas − implícitas timento e elevação do preço dos ativos, tos realizados com o ou explícitas − dos governos. dada essa elevação do investimento. Frente a uma reversão das expectativas, A seqüência de sobrevalorização camdinheiro captado... os bancos tornam-se mais conservadores bial juntamente com o boom e os emprésna concessão de crédito e muitas dívitimos bancários, pesadamente dirigidos ao das não são refinanciadas, o que pode setor imobiliário, também pôde ser observada nos países do desencadear um movimento de liquidação de ativos Sudeste Asiático, segundo Sachs; Radelet (1998a). A sobrevapara a recuperação da liquidez. A generalização desse lorização tende a empurrar os novos investimentos para setores movimento pode implicar deflação de ativos que pode atingir as próprias garantias dos bancos. A crise finannão arbitrados pelo comércio internacional − notadamente para ceira pode espalhar-se pelo setor real da economia. o setor imobiliário − e longe dos setores de produtos comerciali(MINSKY, 1977) záveis internacionalmente (tão necessários para prover os recursos para o futuro reembolso dos fluxos internacionais). Sachs (1997), por sua vez, ao analisar as recentes crises Sachs; Radelet (1998b) mostram, ainda, que a maioria dos mercados emergentes, deu grande destaque ao papel da das economias emergentes vinculou suas moedas ao dólar, na sobrevalorização cambial, afirmando que dois tipos de ilusão década de 1990, embora o seu comércio com as economias de ótica canalizaram dinheiro para os investimentos errados. avançadas fosse distribuído de maneira relativamente equitaO primeiro seria produzido pelos próprios fluxos de capital, tiva entre Estados Unidos, Europa e Japão. Quando o dólar dado que as reformas econômicas e a liberalização financeira começou a se valorizar, depois de 1995, em relação ao iene e às produziram um jato de fluxos de capital em busca de altas moedas correntes européias, tais moedas vinculadas também taxas de retorno, que, por sua vez, conduziram à valorização acompanharam a valorização. O hábito de olhar apenas para cambial. Ao mesmo tempo, o boom de gastos financiados a taxa de câmbio em relação ao dólar − e não para uma cesta pelos fluxos internacionais levou ao aumento dos preços dos pertinente de moedas − e a influência dos defensores da causa bens não-comercializáveis internacionalmente, serviços e do câmbio fixo se estenderam até que foi tarde demais. bens de raiz (imobiliários). No entanto, essa valorização moPor fim, Roubini, Corsetti e Pesenti (1998) estabeleceram, netária de curto prazo oferece aos investidores uma avaliação PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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e de auditoria transparentes. Tal transparência é importante para que as instituições financeiras não mascarem problemas, como uma elevada parcela de empréstimos não-realizáveis. Além disso, é importante garantir que bancos envolvidos em transações internacionais mantenham um saudável balanço entre ativos e passivos denominados em diferentes moedas. A abordagem de Krugman (1998) destacou como problemas sistêmicos nos setores financeiro e bancário contribuíram para o desencadeamento da crise asiática. Assim, como argumentam Sharma (2002) e Lardy (1998), a economia da China possuía diversas características comuns em relação às demais economias asiáticas atingidas pela crise, entre as quais se destacam os principais determinantes apontados por Krugman (1998) – intermediação bancária com garantias implícitas do governo, frágil supervisão financeira e bolha de preços de ativos. Para a revista The Economist (1998), o sistema bancário Os denominadores comuns entre a China e os chinês poderia ser apontado como um dos piores da Ásia. Essa países afetados pela crise financeira asiática indicação decorreria da proporção entre os maus empréstimos e os bons empréstimos realizados. Sharma (2002) lembra que uma das lições mais imSharma (2002, p. 42) argumenta que uma das dificulportantes deixadas pela crise financeira asiática é a de que um dades que a China pós-1978 teve para estabelecer as estruturas setor bancário sadio é essencial para um sistema financeiro institucionais de um moderno sistema financeiro decorreu do saudável. Isso é vital para economias em transição, pois a infato de que a descentralização econômica não foi acompanhada termediação bancária é preponderante para o investimento, por reformas institucionais e políticas paralelas. A descentralizauma vez que os mercados de capitais são limitados e parcela ção fiscal e administrativa deu aos governos significativa dos empréstimos concedidos locais ampla autoridade discricionária relatinão são securitizados, ou seja, não são pa...o sistema bancáva aos investimentos e à alocação de recurpéis representativos de dívidas que podem sos, sem, contudo, melhorar a supervisão e ser negociados em mercados secundários. rio chinês poderia a regulação do setor bancário. Assim, ainda Na China, embora tenham sido estaser apontado como de acordo com Sharma (2002), formou-se belecidos mercados de ações, além de instituiuma densa rede de máquinas políticas locais, ções financeiras não-bancárias (seguradoras, um dos piores da constituída, de um lado, por burocratas e, corretoras, cooperativas de crédito), os merÁsia. Essa indicade outro, por representantes dos bancos escados financeiros, na década de 1990, eram tatais que retribuíam os privilégios comeressencialmente dominados por bancos estação decorreria da ciais e pessoais obtidos na região com lealdatais. Sharma (2002) mostra que os bancos inproporção entre os de política e concessões financeiras. Isso era termediavam cerca de 90% das relações entre possível porque, embora o Banco Central poupadores e investidores, razão que excedia maus empréstimos da China (People’s Bank of China – PBoC) a encontrada em quase todos os outros países e os bons emprésdeterminasse a alocação total do crédito para da Ásia. Esse virtual monopólio dos bancos timos realizados. cada banco especializado e suas respectivas na intermediação financeira atrasou o desenagências regionais, as decisões de concessão volvimento do mercado de capitais e reduziu de crédito e o monitoramento das operaas taxas de retorno dos poupadores, que, por ções ficavam por conta das agências locais do PBoC. Sharma outro lado, não tinham alternativas para os depósitos bancários. (2002) mostra que as autoridades locais tinham que ser previaCom essa configuração, ao setor bancário é que cabe mente consultadas quanto às indicações dos dirigentes locais do avaliar os riscos e monitorar retornos da intermediação finanPBoC. Além disso, as promoções e perspectivas de carreira desceira, incluindo a solvabilidade dos devedores. Assim, dado o ses dirigentes também dependiam das autoridades locais. Criarisco sistêmico envolvido, é fundamental que o governo – inva-se, desse modo, uma estrutura perversa de incentivos para a cluída a atuação do Banco Central e das agências reguladoras concessão de soft lending, ou seja, empréstimos realizados sem − estabeleça marcos regulatórios claros; implemente eficiente referência a critérios técnicos. supervisão preventiva; garanta exigências de capital adequadas Assim, os bancos, sob pressão das autoridades locais, acasobre os bancos; mantenha a compatibilidade temporal entre bavam emprestando para projetos, nem sempre rentáveis, de inativos e passivos; defina e garanta a adesão a práticas contábeis a partir do amplo debate que se travou acerca da crise asiática, uma síntese que destacava entre seus principais determinantes: o volumoso fluxo de capitais de investidores internacionais em busca de elevadas remunerações, durante a década de 1990, e o grave refluxo em 1997; o risco moral em função das garantias governamentais, propiciando um excesso de crédito, em um ambiente financeiro desregulamentado e muito competitivo; o excessivo investimento em projetos arriscados e/ou pouco rentáveis; a significativa valorização das moedas locais e o resultante desalinhamento cambial; as dívidas externas de curto prazo financiando os déficits em conta corrente e os passivos descobertos; os déficits crescentes em conta corrente; a deterioração dos fundamentos econômicos e o aumento da vulnerabilidade externa; e o ciclo vicioso de desvalorizações competitivas.
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tral responsável pela administração cambial (SAFE). Esse órgão teresse dessas autoridades, além de sobreemprestar para empresas limitava a participação estrangeira nos mercados de capitais, estatais. A revista The Economist (1998) apontava que 80% dos motivo pelo qual o Balanço de Pagamentos chinês apresentava empréstimos dos bancos estatais (que detinham praticamente o nível insignificante de investimentos de portfólio. monopólio do mercado de crédito) eram para empresas estatais, Bresser-Pereira e Nakano apontam no mesmo sentido, um segmento responsável por apenas 40% da produção econômipara explicar a capacidade chinesa de resistência à crise: ca não-agrícola. O periódico aponta ainda que, após as reformas pró-mercado, muitas empresas estatais perderam competitividaA alternativa, que países como a China, a Índia e o de e tiveram comprometida sua saúde financeira, tornando-se Chile adotaram a fim de manter o controle de suas virtualmente inadimplentes. No entanto, os bancos chineses só economias, foi estabelecer alguns controles sobre os ingressos de capitais. Ao fazer isso, esses países conconsideravam os “créditos podres” quando o devedor deixava de seguiram praticar uma política monetária e uma popagar o principal contratado, mesmo que os juros já não viessem lítica cambial ativas e autônomas. (Bresser-Pereira; sendo pagos. Tal atitude distorcia as estimativas quanto à real siNakano, 2003) tuação do sistema bancário da China. Sharma (2002) ressalta, também, que, diferentemente Por fim, Sharma (2002) mostra que a concessão pouco da maior parte das economias asiáticas afetadas pela crise, as criteriosa de crédito ajudou a alimentar “bolhas” de preços de dimensões geográficas da China e o tamanho de seu mercado ativos, sobretudo no setor imobiliário. No entanto, em 1996, interno contribuíram para permitir que os fluxos financeiros da ocorreu o estouro da bolha, em função da ineficiência na alocaconta de capital permanecessem fechados e, ainda assim, o país ção dos recursos e do excesso de capacidade. O estouro resultou continuasse a receber influxos de investina falência da Guandong International Trust mento direto estrangeiro, que tão importanand Investment Corporation (GITIC), com tes foram para a diversificação da indústria e dívidas US$1,5 bilhão, superiores à soma de ...o sistema finandifusão tecnológica na China. seus ativos. É ilustrativo que diversos bancos ceiro chinês pôde Outro aspecto levantado refere-se ao de Hong Kong tenham alegado que embaixo nível de endividamento de curto prapermanecer imune prestaram recursos à GITIC pois o governo chinês, comparativamente às economias provincial de Guandong teria garantido os ao contágio externo, zo asiáticas afetadas pela crise. Desse modo, a empréstimos. apesar de suas fra- China não corria o risco de os credores exiNesta seção procuramos mostrar girem grandes parcelas do principal no curto que a economia chinesa apresentava diverquezas, em função prazo, nem sequer ficaria refém de necessisos elementos apontados − sobretudo por da virtual inexistên- dades imediatas de refinanciamento. Além Krugman (1998) − como determinantes disso, o país possuía um confortável colchão para a eclosão da crise financeira asiática, cia de alternativas de reservas, suficiente para cobrir praticacom destaque para um sistema financeiro para os poupadomente toda sua dívida externa − posição esta ineficiente, funcionando sob insuficienmais tranqüila do que a da maior parte das te supervisão, que promoveu uma elevada res domésticos... economias asiáticas afetadas pela crise. proporção de créditos duvidosos, muitas Além disso, dois fatores adicionais vezes com a percepção de garantias implíajudaram a manter a relativa estabilidade da economia chicitas do governo (elevando o risco moral) e que contribuíram nesa durante a crise financeira asiática. Como ressalta Sharma para a formação de bolhas de ativos. Veremos a seguir como, (2002), a taxa de câmbio chinesa não estava sobrevalorizada com esse quadro, não houve contágio da economia chinesa. e na verdade havia sofrido uma desvalorização, em janeiro A China e a capacidade de 1994, quando passou de 5,81 RMB por dólar para 8,72 de resistência à crise RMB por dólar, com a unificação das taxas de câmbio oficial e swap. Sharma (2002) argumenta que um importante fator Por fim, a China apresentou superávits em transações corpara que a China não fosse afetada pela Crise Financeira Asiátirentes1, durante toda a década de 1990, exceto no ano de 1993 − ca consistia na não-conversibilidade da moeda chinesa, o RMB, elemento, em geral, distinto das demais economias asiáticas atinpara as transações financeiras da conta capital e financeira do gidas pela crise. Tais superávits contribuíram para a formação do balanço de pagamentos. A conversibilidade se atinha à conta extraordinário volume de reservas, que garantiu tranqüilidade à de transações correntes (que engloba comércio de bens e sereconomia chinesa com relação a seus compromissos externos. viços), sendo que as operações cambiais normalmente exigiam documentação oficial que atestasse tratar-se de uma operação Considerações finais comercial legítima, dificultando, assim, operações especulativas A análise dos fatores que contribuíram para que a com a moeda chinesa. Além disso, qualquer operação cambial China resistisse à crise financeira asiática revelou a imporexpressiva dependia de autorização do órgão do governo cenPUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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tância da manutenção de um baixo grau de vulnerabilidade externa, expresso por indicadores como superávits em transações correntes, acúmulo de reservas, endividamento externo mais concentrado no longo prazo, elevada relação reservas/dívida externa (ou seja, baixa dívida externa líquida). Embora essa opção tenha tido um custo − o de abrir mão da parcela da poupança externa representada pelos fluxos financeiros internacionais −, esse custo não parece ter tido impacto significativo, em termos de crescimento econômico, uma vez que a China cresceu a uma taxa superior a 9% ao ano na década de 1990. Como lembra Gonçalves (2005), baixa vulnerabilidade externa impacta positivamente o poder efetivo de um país − se não para fazer valer sua vontade, pelo menos para não se submeter à vontade dos demais. Até mesmo o sistema financeiro chinês pôde permanecer imune ao contágio externo, apesar de suas fraquezas, em função da virtual inexistência de alternativas para os poupadores domésticos e dados os controles de capitais implementados, que evitaram que o colapso financeiro se espalhasse pelo setor produtivo da economia. Por um lado, isso foi possível porque, em função da situação de quase-monopólio dos bancos estatais, os agentes superavitários da economia − as famílias chinesas − não tinham alternativa para “correr” com
suas poupanças. Por outro lado, diante da preponderância de bancos estatais, no limite, os “créditos podres” por eles detidos são dívida do governo, denominada em RMB e não em dólares − um detalhe importante, bem lembrado por Sharma (2002). Contudo, a crise também deixou lições para a China, que desde então vem empreendendo esforços para modernizar seu sistema financeiro. Para a América Latina ficam as lições de que mesmo uma moderna economia, dotada de elevada sofisticação financeira, é sujeita a crises. Tais crises podem ser ensejadas pelo próprio bom desempenho econômico, a decorrente expansão do crédito e seus incentivos a posições devedoras. Tal risco é significativamente ampliado em um ambiente de liberalização econômica internacional, dadas as conexões e a facilidade com que o capital circula entre as diversas economias. Assim, talvez a China tenha mostrado que é prudente estabelecer algum controle sobre os fluxos financeiros internacionais, sobretudo aqueles de curto prazo e, fundamentalmente, não se expor à vulnerabilidade externa. A baixa vulnerabilidade externa chinesa foi, em boa medida, resultado da não-absorção de poupança externa (que é igual a déficit em transações correntes)2. Como foi visto anteriormente, isso não impediu o vigoroso crescimento econômico chinês nem o ingresso de investimento direto estrangeiro.
Bibliografia AURÉLIO, Marcela M. “Poupança externa e o financiamento do desenvolvimento”. Textos para Discussão - IPEA. Brasília, Texto para Discussão n. 496, 1997. BRESSER-PEREIRA, L. C.; NAKANO, Y. “Crescimento econômico com poupança externa?” Revista de Economia Política. São Paulo: Editora 34, vol. 23, n. 2 (90), abr./jun. 2003. CORSETTI, Giancarlo; PESENTI, Paolo; ROUBINI, Nouriel. What caused the Asian currency and financial crisis? Massachusetts: NBER Working Papers Series, 1998. Disponível em: <http://www.nber.org/papers/w6833>. Acesso em: 09 jun. 2008. THE ECONOMIST. “The worst banking system in Asia: China’s prime minister, Zhu Rongji, wants to fix the country’s rotten banks fast. But is he willing to pay the price?” The Economist (US) 347, n. 8066, May 2, 1998, p. 65. GONÇALVES, Reinaldo. Economia política internacional. Rio de Janeiro: Campus, 2005. KRUGMAN, Paul R. What happened to Asia? Massachusetts: MIT, 1998. Disponível em: http://web.mit.edu/krugman/www/DISINTER.html. Acesso em: 09 jun. 2008. LARDY, Nicholas R. “China and the Asian contagion”. Foreign Affairs, v. 77, n. 4 Jul./Aug. 1998, p. 78-88. MINSKY, Hyman P. “The financial instability hypothesis: an interpretation of Keynes and an alternative to standard theory”. Chalenge, Mar./Apr. 1977. PRATES, Daniela M. A abertura financeira dos países periféricos e os determinantes dos fluxos de capitais. Revista de Economia Política. São Paulo: Editora 34, vol. 19, n. 1 (73), jan./mar. 1999. SACHS, J. Personal View: Jeff SACHS. Financial Times. London, 30 jul. 1997. SACHS, J.; RADELET, S. The Onset of East Asian Financial Crisis. Cambridge, Harvard Institute for International Development, 30 mar. 1998a. _____ . The East Asian Financial Crisis: Diagnosis, Remedies, Prospects. Cambridge: Harvard Institute for International Development, 20 abr. 1998b. SHARMA, SHALENDRA D. Why China survived the Asian Financial Crisis. Revista de Economia Política. São Paulo: Editora 34, vol. 22, n. 2 (86), abr./jun. 2002, p. 32-58. ROTHBERG, Danilo. O FMI sob ataque: Recessão global e desigualdade entre as nações. São Paulo: UNESP, 2005. ROUBINI, Nouriel. Chronology of the Asian Currency Crisis and its Global Contagion (1998). Disponível em: http://www.stern.nyu.edu/~nroubini/asia/ AsiaChronology1. html. Acesso em: 09 jun. 2008.
Notas. 1 Mais um indicativo de que a moeda chinesa não estava valorizada. 2 Aurélio (1998) lembra que existem incentivos à substituição de poupança interna pela poupança externa, porque “quando a economia está incorrendo em déficits em transações correntes, o câmbio real está, por definição, valorizado. Esse fenômeno não é equivalente ao de sobrevalorização cambial, mas pode, por si só, estimular não apenas um aumento da demanda, mas uma mudança de seu perfil, em direção a maior consumo de importados” (AURÉLIO, 1998, p. 52-53).
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O DESLOCAMENTO DO EIXO ECONÔMICO MUNDIAL
A emergência da República Popular da China Marcos Cordeiro Pires Professor da FFC-Unesp/Marília
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istoricamente, a incorporação de novos espaços à economia mundial tem levado à decadência dos eixos econômicos tradicionais e ao surgimento de novos pólos econômicos e de poder. Até o século XVI, o mundo do Mediterrâneo era o centro da civilização ocidental. Em torno de suas águas se concentrava o comércio, a cultura e o poderio político e militar. Desde a Antiguidade Clássica, a bacia do Mar Mediterrâneo abrigou as civilizações egípcia, helênica, cartaginesa, romana, árabe e os modernos povos cristãos que dele se valiam para efetuar o comércio com os povos “orientais”. Do outro lado do mundo, civilizações como a chinesa, a árabe e a hindu organizavam, cada uma em seu entorno, sistemas econômicos independentes, de proporções maiores que os da Europa. A hegemonia do Mediterrâneo, no Ocidente, caiu por terra no momento em que as navegações atlânticas permitiram
o acesso aos mercados orientais por meio do contorno marítimo do continente africano, sem passar pelos intermediários que se concentravam nos Orientes Próximo e Médio. Esse fato também inaugurou o longo declínio econômico do Oriente, decorrente da integração econômica mundial por meio da força, já que os povos europeus podiam contar com uma potente artilharia acoplada a uma marinha eficiente. Naquela época, particularmente no que tange ao Ocidente, as antigas rotas de comércio que passavam pelo Mar Mediterrâneo e pelo Oriente Próximo entraram em declínio. Tradicionais cidades comerciais como Gênova, Veneza, Barcelona e Marselha, no Ocidente, e Istambul, Antioquia, Beirute e Damasco, no lado oriental, sofreram com a concorrência do sistema comercial montado a partir de Lisboa, Sevilha, Cádiz, Antuérpia, Amsterdã ou Londres. Mesmo poderosas organizações comerciais, como a Liga Hanseática, perderam espaço PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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para as modernas Companhias das Índias − Orientais ou Ocidentais −, que passaram a dar as cartas no complexo sistema internacional de comércio que então tomava forma. É importante lembrar que o início da hegemonia européia ocorreu num momento em que o continente era pouco expressivo em termos de desenvolvimento material e econômico. Conforme estudo do historiador britânico Angus Maddison, a Europa representava, em 1500, apenas 17% do PIB mundial, enquanto a China, da dinastia Ming, representava 24%1, e a Índia outros 24% . Nesse sentido, cabe perguntar o que explicou essa virada na economia mundial. Um fator importante para isso foi o domínio de técnicas náuticas, que colocou os europeus na frente do progresso técnico e possibilitou as navegações de alto-mar. Mas, ainda assim, o problema continuava, pois as técnicas apropriadas pelos europeus que viabilizaram as navegações oceânicas eram, em grande parte, técnicas orientais. Creio que o fator que permitiu a utilização prática de conhecimentos técnicos (bússola, astrolábio, caravela) e de conhecimentos científicos (Astronomia e Cartografia) foi a lógica da acumulação privada de riquezas. A isso, Fernand Braudel traz um enfoque adicional: “China e Islã são, nessa época, sociedades providas, como chamaríamos hoje, com colônias. Ao lado delas, o Ocidente é ainda um ‘proletário’. Mas o importante, é a partir do século XIII a tensão da longa duração que levanta a sua vida material e transforma toda a psicologia do mundo ocidental. O que os historiadores chamaram uma fome do ouro, ou uma fome do mundo, ou uma fome de especiarias, acompanha-se no domínio técnico de uma procura constante de novidades e de aplicações utilitárias, isto é a serviço dos homens, para assegurar ao mesmo tempo a diminuição e a maior eficácia de seu trabalho. A acumulação de descobertas práticas e reveladoras de uma vontade consciente de dominar o mundo, um interesse cada vez maior por tudo o que é fonte de energia, dão à Europa, muito antes de seu êxito, o seu verdadeiro aspecto e a promessa da sua permanência”2. Dessa forma, o eixo Atlântico levou à ascensão econômica e política os países ibéricos, a Inglaterra, a Holanda e a França e permitiu o acesso direto às riquezas do Oriente, à captura de africanos para serem escravizados na América, além de incorporar o fluxo de mercadorias produzidas no continente americano. Nem mesmo a construção do Canal de Suez, no século XIX, o caminho mais curto para as “Índias Orientais”, fez com que o Mediterrâneo revivesse os tempos áureos. O surgimento da grande potência econômica da América do Norte ofuscou um possível reerguimento do outrora chamado “Mare Nostrum” romano. Atualmente, o eixo Atlântico de comércio, cultura e poder − assentado sobre a “Aliança Atlântica”, cujo expoente mais expressivo é a Otan, mas também ancorado nos fluxos comerciais da União Européia, dos Estados Unidos e da América Latina − está sob a ameaça de um eixo emergente na bacia do Oceano Pacífico, decorrente da predominância assumida pelo
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comércio entre os países da Apec − Asia-Pacific Economic Cooperation−, particularmente no eixo China e Estados Unidos3.
A China na economia mundial após a crise dos anos 1970 As transformações econômicas ocorridas desde o começo dos anos 1980 possibilitaram a emergência de novos países industrializados na Ásia, como Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong, além da incorporação de países da Association of Southeast Asian Nations − Asean − às cadeias produtivas regionais. O motor desse crescimento foi o processo de terceirização4 e deslocalização5 produtiva iniciado pelas multinacionais norte-americanas, européias e japonesas para fugir dos custos fixos elevados dos países de alto rendimento per capita. Conseqüentemente, um novo eixo hegemônico começava a tomar corpo. Essas transformações foram uma resposta à crise dos anos 1970. A contração do mercado mundial e a crise energética forçaram as economias a se adaptarem a um ambiente caracterizado por maior concorrência e menores taxas de lucro. Do ponto de vista das grandes corporações multinacionais, as regras do jogo até então prevalecentes já não serviam mais. A aliança implícita que existia entre estas e os trabalhadores organizados dos países centrais, que ajudava a impedir o avanço do comunismo, tornara-se obsoleta nos anos 1980, quando o bloco socialista apresentava sinais de exaustão. Além disso, por conta dos elevados custos sociais, a lucratividade do sistema como um todo estava comprometida. À época, o economista Milton Friedman chamava atenção para o fato de que o “almoço grátis” dos trabalhadores estava sendo pago com a redução dos lucros empresariais6. Desse ponto de vista, os “subornos sociais” que foram necessários para minimizar a luta de classes nos países centrais já não deveriam ser tão generosos. Do ponto de vista microeconômico, as empresas passaram a adotar estratégias para um mercado cada vez mais restrito e sujeito a fortes flutuações, decorrentes de ciclos de crescimento cada vez mais curtos, verificados após a crise iniciada em 1973: dois ou três anos de crescimento e outros dois ou três anos de contração. Por conta disso, na visão dos economistas liberais, a economia deveria se tornar mais “flexível” para se estabilizar de maneira mais rápida. As garantias sociais que protegiam o trabalhador, por exemplo, deveriam ser liquidadas, pois a grande empresa privada necessitava de uma margem de manobra para enfrentar uma concorrência mais acirrada. Como decorrência dessa situação, as grandes plantas industriais de padrão “fordista” foram fragmentadas a partir de estratégias de “terceirização”. Também o modelo japonês de gestão, baseado no “estoque zero”7 e na produção “justin-time”8 passou a ser adotado nos Estados Unidos e na Europa. O “mercado de massa” foi substituído pelo mercado de “nichos” e de “segmentos”. Artigos que demandavam muita
matéria-prima foram miniaturizados. O chip de computador passou a figurar como peça-chave em quase todos os dispositivos industrializados. Para reduzir custos com a eletrônica, foram disseminados os computadores pessoais, as placas de fax-modem, a comunicação por cabos de fibra ótica e o satélite de telecomunicações. A concorrência intermonopolística levou também ao referido processo de deslocalização. As grandes empresas iniciaram um processo de deslocamento de parte de suas atividades industriais para os países periféricos. A principal explicação para esse fenômeno estava na busca por “fatores produtivos” mais baratos, como matéria-prima e trabalho, ou ainda outras vantagens, como menor carga tributária, incentivos fiscais, câmbio desvalorizado etc. Comparativamente ao similar norte-americano, um operário médio na China, na Indonésia, na Malásia ou no México recebe pequena fração do salário daquele, forçando para baixo os custos trabalhistas. A gestão de unidades tão distantes das matrizes foi facilitada pelo barateamento nos preços das telecomunicações. Softwares cada vez mais complexos tornaram as tarefas administrativas padronizadas e o cálculo financeiro adequado para apurar, no tempo real, ganhos e perdas decorrentes de modificações abruptas nas taxas de câmbio dos diferentes países em que operam aquelas corporações. É em meio desse processo que emerge o rápido crescimento da República Popular da China, fato este decorrente de suas políticas de reforma e modernização, iniciadas em 1978, que souberam aproveitar os ventos da reestruturação produtiva mundial. Em princípio, a produção chinesa repetia os caminhos das economias mais pobres da Ásia no sentido de se organizar para a produção de mercadorias de baixo valor agregado e grande intensidade do fator trabalho. A estratégia chinesa, no entanto, era mais abrangente, pois tinha por objetivo a constituição de uma moderna economia que pudesse, em médio e longo prazos, recolocar o país entre as potências mundiais. A modernização visava aumentar a produtividade agrícola, dotar o parque industrial de tecnologias de ponta, aprimorar o acervo científico e tecnológico do país e estruturar forças armadas modernas e preparadas. Para atingir esses objetivos, uma das táticas adotadas foi a atração de empresas multinacionais, com o intuito de buscar investimentos e tecnologia, para formar internamente um poderoso e diversificado parque industrial. Ademais, à medida que o país crescia a taxas médias de 10% ao ano, o seu mercado de consumo se expandia, tornando-o atrativo para novos investimentos locais e estrangeiros. Como conseqüência dessa estratégia, a China se transformou num grande pólo exportador e, simultaneamente, num grande importador, tanto de tecnologia como de matérias-primas e alimentos. Somente entre 1995 e 2006 o volume do comércio exterior chinês cresceu 6 vezes9, e a participação da China no comércio mundial subiu de 1,4%, em 1986, para 8,0%, em 2006 − e essa tendência continua em ascensão.
Gráfico 1. Participação dos países da Apec no PIB mundial – 19892006. Fonte: Elaborado pelo autor a partir de FMI. World Economic Outlook Database, 2007. Séries extraídas de: Australian Government. Department of Foreign Affairs and Trade. The APEC Region –Trade and Investiment, 2007.
A produção na China é essencial nas estratégias de gestão das principais empresas multinacionais do mundo. A partir da China, por meio de terceirizações, subcontratações ou joint-ventures, as multinacionais produzem grande parte dos bens de consumo adquiridos no mundo. A participação das exportações das multinacionais no volume chinês se aproxima de 60% do total. Também é significativo o fato de que a economia chinesa é bastante aberta, se considerada sua dimensão continental. A soma das exportações e das importações alcança quase 65% do seu produto anual, diferentemente de economias de forte capacidade exportadora, como Japão, Taiwan e Coréia do Sul, e de pequena absorção relativa de bens importados. Desde épocas remotas, quando o gigante chinês se move, arrasta consigo a economia de todo o Extremo Oriente. É dessa experiência chinesa que deriva grande parte das transformações no comércio mundial e é essa mudança de eixo econômico que queremos salientar. A seguir apresentaremos o desempenho da Apec e da China, nesse contexto.
A evidências do deslocamento do eixo: a Apec, a China e a economia mundial Quando se analisa o volume do PIB dos países da Apec na economia mundial, nota-se que sua participação está próxima dos 56%, com um crescimento médio anual, desde 1989 até 2006, da ordem de 4,9%, enquanto o dos demais países do mundo fica em torno de 4,3% ao ano. Em relação ao comércio mundial, a participação daqueles países em 2006 significava aproximadamente 44% do total mundial, apesar de uma diminuição da participação mundial dos Estados Unidos e do Japão. O Gráfico 1, a seguir, descreve a trajetória da participação dos países da Apec no produto mundial, entre 1989 e 2006. PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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Gráfico 2. Renda per capita. Mundo, Apec e não-Apec. – 19892006. Fonte: Elaborado pelo autor a partir de FMI. World Economic Outlook Database, 2007. Séries extraídas de Australian Government. Department of Foreign Affairs and Trade. The APEC Region –Trade and Investiment, 2007.
É interessante notar que o bloco, desde o começo da série, já possuía um PIB maior do que o resto do mundo. De fato, a presença dos Estados Unidos em qualquer estatística sempre tende a distorcer as informações. Porém ao longo desse período podemos verificar uma diminuição do PIB em termos de dólares correntes e um aumento em termos de paridade de poder de compra (em inglês, Purchase Parity Power – PPP). Isso se deve principalmente ao aumento da renda da China, que durante esse período teve seu PIB quadruplicado. O indicador é importante para se apurar o real poder de compra dos indivíduos de um determinado país, pois o poder
Gráfico 3. Participação da Apec no fluxo mundial do comércio. 1989-2006. Fonte: FMI. World Economic Outlook Database, 2007. Séries extraídas de: Australian Government. Department of Foreign Affairs and Trade. The APEC Region –Trade and Investiment, 2007.
de compra de US$ 1,00 varia bastante de país para país. Com esse valor, por exemplo, não se compra uma lata de refrigerante nos Estados Unidos, mas podem-se adquirir quatro latas na China. O PIB da China, em dólares correntes, se situava, em 2007, próximo a US$ 3.200 bilhões, enquanto em PPP o valor chega próximo dos US$ 7.000 bilhões. De forma similar, a Indonésia, com um PIB de US$ 430 bilhões em dólares correntes e US$ 840 bilhões em PPP. A tendência à predominância dos países da Apec também pode ser vista no Gráfico 2, que trata da evolução do PIB. Não só a renda per capita da região é maior do que a do
Tabela 1 – Os 20 maiores exportadores e importadores do mundo. 2006 – em € bilhões. Fonte: União Européia. DG TRADE SLG/CG/DS, 2007.
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resto do mundo, como também sua tendência é aumentar a distância em relação a outras regiões. O Gráfico 3 e a Tabela 1 tratam da participação dos países da Apec no volume mundial de comércio. Antes de tudo, cabe um esclarecimento: os dados do comércio intra-Apec, no Gráfico 3, estão subestimados porque dizem respeito apenas ao comércio de bens, enquanto nos dados da participação no comércio mundial estão incluídos os serviços. Quando se observa a Tabela 1, em que estão excluídos os dados do comércio interno pertinentes aos 25 países da União Européia, nota-se uma grande predominância dos países da costa do Pacífico. Entre os 20 maiores traders estão 13 países da Apec, que perfazem 54,7% do total. Pode-se argumentar que os dados distorcem a realidade, pois existem países que são bi-oceânicos, como os Estados Unidos, o México, o Canadá e a Rússia, e que poderiam estar negociando mais fora do que dentro da Apec. Tal argumento é perfeitamente válido para a Rússia, já que a maior parte de seu comércio se dá com a União Européia (50,3%). Também poderíamos relativizar os dados dos países do Acordo de Livre Comércio da América do Norte – Nafta −, já que Canadá e México representam cada um, em média, 15% do intercâmbio dos Estados Unidos − enquanto este país representa 68% do comércio exterior mexicano e 68,2% do canadense. De resto, nota-se a predominância de um forte eixo econômico na Ásia e na Oceania, evidenciando o deslocamento para o qual chamamos a atenção. Ainda sobre o comércio, o Gráfico 4 trata da participação dos países selecionados nos fluxos internacionais nos anos de 1986, 1996 e 2006. Enquanto a participação dos Estados Unidos, do Japão e dos maiores exportadores da Europa caiu de 50,5%, em 1986, para 38,2%, em 2006, o que significa
Comércio intra-Apec nos países selecionados - 2006 - % do total Estados Unidos
63,0
China
65,4
Japão
70,2
Canadá
83,6
Coréia do Sul
67,0
Hong Kong
83,0
Cingapura
66,8
México
85,8
Rússia
20,3
Malásia
77,8
Austrália
71,8
Tailândia
69,4
Indonésia
74,3
Tabela 2 – Participação do comércio intra-Apec no comércio total dos países selecionados. 2006. Fonte. Elaborada pelo autor a partir de OMC − World Trade Atlas. Séries extraídas de: Australian Government. Department of Foreign Affairs and Trade. The APEC Region –Trade and Investiment, 2007.
Gráfico 4 – Países selecionados. Evolução percentual da participação no comércio mundial. 1986,1996 e 2006− em %. Fonte. Elaborado pelo autor a partir de WTO online satatistics database. Séries extraídas de: Australian Government. Department of Foreign Affairs and Trade. The APEC Region –Trade and Investiment, 2007. * Alemanha, França, Holanda, RU e Itália.
uma queda de 25% em 20 anos, a presença da China passou de 1,4% para 8%, entre 1986 e 2006, um salto de 470%! Se analisarmos os dados da Europa de maneira desagregada, poderemos constatar que as exportações chinesas somente perdem para as dos Estados Unidos (8,6%) e da Alemanha (9,2%), desbancando a França (4,1%), a Holanda (3,8%), o Reino Unido (3,7%) e a Itália (3,4%)10. Um último dado, apresentado no Gráfico 5, merece destaque: são as estimativas e estatísticas históricas coletadas por Angus Maddison, acerca da contribuição ao PIB mundial da China, da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Entre 1700 e 1952, nota-se uma forte queda na participação da China no PIB mundial e a ascensão da Europa e dos Estados Unidos. As invasões sofridas pela China, a partir de 1842, quan-
Gráfico 5. Países selecionados. Participação no PIB mundial – 1700 a 2003. 2030 - Projeção Fonte: Angus Maddison. Chinese Economic. Performance in Long Run. Paris. OECD, 2007.
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do ocorreu a Guerra do Ópio, até 1949, quando foi criada a República Popular da China, aliadas à desestruturação social delas decorrentes, contribuíram para a decadência do milenar Império do Meio. Em contrapartida, esse movimento foi refreado com a instalação de um governo popular e de forte conotação nacionalista, como é o caso da liderança do Partido Comunista Chinês. No intervalo de 1978 a 2003, a participação da China se elevou três vezes, enquanto os Estados Unidos e a Europa viram sua participação diminuir. Chama-nos a atenção a tendência apresentada por Maddison, que estima que em 2030 a China retorne à condição de maior economia do planeta, posição em que se encontrava antes da primeira Guerra do Ópio.
Considerações finais Ao longo deste breve texto buscamos reunir informações para constatar uma mudança estrutural na economia mundial, que é o deslocamento do eixo econômico do Atlântico − cuja criação remonta ao século XV com as Grandes Navegações européias − para um novo eixo centrado na Bacia do Pacífico, decorrente da ascensão econômica dos países da Apec, capitaneada pela República Popular da China. Tal situação faz com que se estanque um longo período de decadência da região da Ásia−Pacífico, decorrente da influência do colonialismo europeu. Ao analisarmos as estatísticas numa perspectiva histórica, estamos diante de uma predominância da Ásia na economia mundial, não apenas pela ascensão chinesa, mas também pela de outras milenares civilizações, como a indiana.
Notas 1 Angus Maddison. Historical Statistics for the World Economy: 1-2003 AD. Disponível em: http://www.ggdc.net/Maddison/Historical_Statistics/horizontal-file_032007.xls 2 Fernand Braudel. Civilização material e capitalismo – séculos XV-XVIII. Rio de Janeiro: Livraria Luso-Espanhola e Brasileira, 1970. p. 341.(grifos do autor) 3 A APEC foi criada em 1989, por iniciativa do governo da Austrália, com vistas a promover a cooperação econômica entre os países da bacia do Oceano Pacífico. Num primeiro momento, doze países aderiram à nova organização, destacando-se os Estados Unidos, o Japão, o Canadá, a Austrália, a Indonésia e demais países da Associação das Nações do Sudeste Asiático – Asean. De lá para cá, países latino-americanos como o México, o Peru e o Chile também ingressaram na organização, além da China, da Rússia e do Vietnam. 4 “Terceirização”, ou outsourcing, é a estratégia de desmobilizar parte dos trabalhadores de uma grande empresa quando se determina que sua tarefa não é “central” no processo de produção de uma certa mercadoria. Geralmente esses trabalhadores são empregados em pequenas empresas e contratados por salários inferiores e sem as garantias sociais daqueles da “empresa-mãe”. Também se refere ao processo de direcionar parte da produção de determinado bem para terceiras empresas. 5 O processo conhecido como “deslocalização” diz respeito à transferência de plantas industriais dos países com maiores custos produtivos para aqueles onde tais custos sejam menores. Esse processo se intensificou nos anos 1980, à medida que as políticas de globalização se intensificaram, particularmente sob os auspícios do ex-GATT e da atual OMC. 6 Milton Friedman. There’s no such thing as a free lunch. La Salle (USA-IL). Open Court Pub.Co., 1977. 7 Levando-se em consideração as pequenas dimensões físicas de boa parte das empresas japonesas, estas optaram por não possuir grandes estoques de suprimentos e de produtos acabados; daí a expressão “estoque zero”. 8 “Just-in-time” significa literalmente “produzir só na hora em que o mercado demandar”. Para tanto, faz-se necessário o estabelecimento de grande sincronia entre as empresas terceirizadas e a empresa-mãe, de forma que, no mesmo momento em que é feito um pedido para uma montadora, por exemplo, as empresas de autopeças produzam a quantidade de componentes necessária para a produção de automóveis. Vale destacar que esse tipo de operação industrial faz parte do chamado “toyotismo”, em contraposição ao “fordismo”. A esse respeito, ver GOUNET, Thomas. Fordismo e toyotismo na civilização do automóvel. São Paulo: Boitempo, 1999. 9 Ver Unctad. Handbook of Statistics, 2006: disponível em: http://stats.unctad.org/Handbook/TableViewer/tableView.aspx?ReportId=1688 10 É preciso esclarecer que os dados da tabela 1 e do gráfico 4 não são contraditórios. Isso porque, quando do cálculo da participação da União Européia, na primeira tabela, desconsiderou-se o comércio intra-UE, já que as economias daqueles países são fortemente integradas. Mesmo assim, ao se considerar cada estado-membro isoladamente e agregar suas trocas com o exterior, inclusive entre os parceiros da União Européia, pode-se chegar aos dados contidos no gráfico 4.
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O imperialismo e a guerra Rui Costa Pimenta Jornalista, dirigente do Partido da Causa Operária
As declarações dos analistas da imprensa burguesa especializada em economia indicam que a capacidade dos bancos centrais de conter a inflação e permitir que a economia se desenvolva com a liberação de crédito acessível ao mercado parece ter se esgotado. A onda inflacionária desencadeada pelo aumento dos preços dos alimentos e pela disparada do preço do barril de petróleo – que já chegou a mais de 140 dólares e caminha em tendência de alta contínua – levantou a preocupação entre os investidores e especuladores das bolsas de valores dos principais países do mundo. Alguns analistas calculam que o preço do barril caminha para os 200 dólares. Que contraste com os dois dólares de 1972! Para compreender a situação atual e permitir estabelecer as linhas que podem conduzir seu desenvolvimento daqui para a frente, é necessário fazer uma retrospectiva e estabelecer um ponto de partida para a crise.
Como a crise se desenvolveu até agora O mecanismo complexo que vem conduzindo o desenvolvimento dessa crise até aqui tem como base a crise histórica do capitalismo que veio à tona na década de 1970 após um período − excepcional e inesperado − de crescimento econômico mundial nas décadas de 1940, 1950 e 1960. Os esforços dos países imperialistas para contornar a crise, que criaram a ilusão, nos anos 1990, de que a economia capitalista havia encontrado uma via de saída para a crise, mostram-se agora apenas e tão somente como causa do debilitamento do imperialismo e do agravamento da crise que retoma, a partir dos acontecimentos do segundo semestre de 2007, seu curso natural. A escassez das reservas de petróleo da principal economia do mundo − os Estados Unidos − é um extraordinário sintoma de uma crise que é, ao mesmo tempo, econômica e política. A PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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incapacidade de atender à demanda futura, detectada em fins da década de 1990 e início da década atual, levou à invasão do Iraque em 2003 com o objetivo explícito de controlar as reservas do país, um dos mais ricos em petróleo no mundo. A tentativa de controlar militarmente o país e, com isso, exercer uma pressão sobre os demais países do Oriente Médio e procurar desequilibrar a balança em favor da sustentação da economia norte-americana provou-se um fracasso. Cinco anos depois da invasão, o governo norte-americano se encontra às voltas com um verdadeiro impasse, que vem se arrastando desde poucos meses após o início da invasão. Aqui, pode-se verificar a linha de continuidade da crise justamente neste ponto nodal da crise atual. A invasão do Iraque é a continuidade da crise que levou à Revolução no Irã em 1979 que, por sua vez, levou à invasão russa no Afeganistão o que, por sua vez, levou ao enfrentamento entre o imperialismo e a burocracia russa, redundando no colapso da URSS em 1991. As incertezas geradas pela incapacidade de dominar o Iraque enfraqueceram as expectativas do mercado de que o imperialismo norte-americano tenha a capacidade de suprir a demanda por petróleo. Essa desconfiança – fundamentada, diga-se de passagem, no fracasso militar e no verdadeiro atoleiro em que se transformou o Iraque – é reforçada ainda pelas tendências convulsivas no desenvolvimento e na expansão da crise para os demais países do Oriente Médio e de regiões próximas como o Sul da Ásia. Entre a invasão do Afeganistão e do Iraque e os dias atuais já se passaram inúmeras crises de características nitidamente revolucionárias em praticamente todos os países que formam um corredor de Israel, no Mar Mediterrâneo, à China, no extremo oriente. A expectativa de que os Estados Unidos consigam manter os compromissos no mercado de futuros diminui rapidamente. Se o imperialismo norte-americano não teve capacidade de controlar de forma direta um único país – apesar de ter sido necessário fazê-lo −, para conseguir dominar sua produção de petróleo, o que se pode esperar da tentativa de impor essa dominação a muitos outros, cada um com suas próprias contradições? Por mais que a imprensa burguesa tente ocultar ou distorcer essa realidade, é cada vez mais evidente o enorme grau de decomposição das forças do imperialismo norte-americano, coração do imperialismo mundial. A crise política, ainda latente em terras norte-americanas, vem se desenvolvendo em outras partes do mundo. Assim como a economia norte-americana é a mais importante do planeta, fazendo girar à sua volta e em função da sua manutenção as economias de praticamente todos os países, os Estados Unidos são o centro da crise política mundial. Cada pequeno avanço na crise do regime político norte-americano se desdobra em uma catástrofe social, como se uma pequena oscilação na base de sustentação econômica e política fizesse estremecer os países atrelados ao imperialismo, abalando seus principais aliados no Oriente Médio, na Ásia e na América Latina.
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Os senhores da guerra Existe uma política internacional do imperialismo para aproveitar a situação atual e fazer um investimento muito grande para liquidar as forças opositoras armadas em todos os lugares do mundo antes que a situação mundial mude completamente. O imperialismo sabe que essas forças, em um momento de crise, podem controlar um país completamente, como se vê muito claramente hoje no caso do Nepal. Trata-se de uma política de extermínio das FARC, do ETA, do Talibã, da Al-Qaeda, do Hezbollah, etc. Houve um momento em que a política do imperialismo era incorporar as guerrilhas ao regime político burguês “democrático”, uma vez que estava completamente na defensiva. Agora os Estados Unidos não querem mais essa solução, por um lado porque a crise se agravou demais, e, por outro, porque considera que a situação de momento permite uma política de extermínio da guerrilha. O imperialismo armou o governo dos paramilitares colombianos para eliminar fisicamente os guerrilheiros. A incorporação desses grupos aos regimes políticos não vai ocorrer por conta da evolução da situação política. Uma FARC legal seria aliada dos regimes de Hugo Chávez, Rafael Correa, Evo Morales, Daniel Ortega, Fidel Castro − o bloco nacionalista na América Latina. Com isso, metade da Colômbia estaria alinhada a esse bloco e o imperialismo não pretende permitir isso. Um estudo divulgado pelo Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo (Sipri, na sigla em inglês) revelou que os gastos militares em todo o mundo aumentaram 45% nos últimos dez anos. Estados Unidos, Rússia e China estão no topo da lista dos países que mais compraram armas - o investimento bélico continua em expansão. Somente entre 2006 e 2007 o aumento dos orçamentos militares desses países foi de cerca de 6%. Segundo o estudo, as guerras do Iraque e do Afeganistão, além do investimento militar da Rússia e da China (após considerável crescimento econômico) são os principais fatores para o aumento dos gastos militares entre 1998 e 2007. Outra razão levantada seria a quantidade de forças de segurança espalhadas em todo o mundo: foram realizadas 61 operações em 2007, o maior número desde 1999. Um outro dado mostra que o período de menor gasto militar ocorreu entre 1988 e 1997, após o fim da Guerra Fria e da União Soviética que, sozinha, foi responsável por reduzir cerca de um terço dos gastos militares no mundo. Em 2007, os gastos globais com equipamento bélico foram de US$ 1.339 trilhão, ou seja, US$ 202 por cada habitante do planeta Terra, segundo informou o Sipri. Os Estados Unidos são, de longe, os maiores investidores (e fornecedores) da indústria bélica e, portanto, fomentadores da guerra. O ano de 2007 atingiu recorde como o maior gasto militar desde a Segunda Guerra Mundial. Des-
em nome da luta contra o terrorismo, em pouco tempo, podese chegar a atacar e violar as fronteiras de qualquer país na caça a supostos terroristas − até mesmo o Brasil. Já foi apresentada pelos Estados Unidos uma proposta no sentido de que a luta antiterrorista não pode respeitar as fronteiras nacionais. A crise consiste, no entanto, em que a ofensiva norteamericana enfrentou um bloqueio. Existe uma situação objetiva que não permite o desenvolvimento dessa tendência. A crise e a reação dos governos à crise expuseram o limite. A crise nos países andinos é a expressão aguda de uma crise potencial de toda a América do Sul. O conflito entre as burguesias dos países andinos reflete as tendências revolucionárias das massas sul-americanas em seu conjunto contra o imperialismo. Esta é uma etapa do desenvolvimento da luta de classes no subcontinente. A crise revela ainda as profundas limitações da política do nacionalismo burguês de Chávez, Morales e Correa. Visivelmente, o novo surto de nacionalismo burguês não está à altura das contradições que estão se expressando na A América Latina é o O Brasil, em uma situação política nem tem as mesmas posOriente Médio amanhã guerra com a Vesibilidades de desenvolvimento estável que teve no passado devido à envergadura da Uma movimentação particularmente nezuela, cumpriria crise capitalista. significativa do governo brasileiro chamou o mesmo papel que A questão não se reduz a um cona atenção. O governo enviou ao Congresso seu plano de orçamento com um aumento cumpre no Haiti: um flito entre os países latino-americanos, mas entre as massas e a política do imperialismo de quase quatro vezes nos gastos militares − exército de reserva para a América Latina. um gasto maior do que o de todas as áreas É o mesmo que aconteceu entre Irã e sociais juntas. para o imperialisIraque. Após a revolução iraniana em 1979, O governo Lula está realizando o mo, um instrumento os Estados Unidos começaram com a cammaior plano de investimentos militares de dominação... panha contra o governo iraniano, acusandesde os tempos da ditadura militar. do-o de fanatismo e de ser uma ditadura. No mesmo momento em que o goEm seguida, os Estados Unidos usaram a verno lançava seu orçamento, José Sarney, exditadura “laica” de Saddam Hussein − até presidente da República e senador do PMDB, certo ponto de fachada “socialista”, por ser dirigida pelo partihomem de confiança dos comandos militares, lançava em discurdo Baath, nacionalista burguês que se afirmava ele mesmo sociaso a necessidade de o Brasil se armar, pois não deveria aceitar, lista. O nacionalismo burguês laico em declínio foi usado pelo segundo ele, que a Venezuela se arme e se torne uma ameaça. A imperialismo contra o nacionalismo religioso em ascensão. ameaça, no entanto, não é a Venezuela, mas as massas oprimidas A ingerência do imperialismo na América Latina tamda América Latina, em particular as do próprio Brasil. bém está sendo aprofundada por meio da reativação da IV A Venezuela ameaça permanentemente a formação de Frota da Marinha norte-americana na América do Sul. Após um cartel latino-americano dos hidrocarburetos, uma Opep 58 anos, a IV Frota voltará a patrulhar os mares latino-amelatino-americana que só não se formou ainda porque o Brasil ricanos. São 15,6 milhões de milhas quadradas nas águas que se opõe a esse projeto. Essa alternativa, se fosse levada adiante vão desde a América Central até o Sul, além do México e dos de forma conseqüente − o que está fora do alcance do nacioterritórios europeus do lado Atlântico. nalismo burguês −, seria um grande golpe contra o imperialisA frota é composta por 10 porta-aviões, 90 aviões de mo norte-americano. guerra e dois reatores nucleares. Esta faz parte de um conjunto O Brasil, em uma guerra com a Venezuela, cumpriria o formado com as frotas II, III, V, VI e VII, espalhadas pelos mesmo papel que cumpre no Haiti: um exército de reserva para oceanos de todo o mundo. o imperialismo, um instrumento da dominação imperialista soA IV Frota, criada para combater os nazistas durante bre todos os países atrasados, inclusive o próprio Brasil. a Segunda Guerra Mundial, foi desativada em 1950, mas o O ataque colombiano no Equador contra um acampaaprofundamento da crise levou os Estados Unidos a reativá-la mento das FARC foi um avanço do imperialismo no sentido em julho deste ano. de transformar a América Latina em um Oriente Médio onde,
de os atentados de 11 de setembro, o Pentágono aumentou seu orçamento em 59% em relação a 2001. Só as guerras do Iraque e do Afeganistão já custaram à classe operária norteamericana mais de US$ 3 trilhões, o que esvaziou os cofres públicos e é hoje um dos elementos centrais para a recessão econômica no País. Os Estados Unidos representam 45% dos gastos militares mundiais! O estudo do Sipri mostrou que entre 2002 e 2007 houve um aumento de 7% das exportações de armas, seja por meio de vendas, convênios ou acordos de cooperação. Estados Unidos, Rússia, França, Reino Unido e Alemanha representam juntos 80% das transações. Entre os maiores compradores no período 2003-2007 estão Coréia do Sul, China, Turquia, Grécia, Índia, Israel, Arábia Saudita e África do Sul. Na América do Sul, os maiores compradores nesse período foram o Chile e a Venezuela. O Brasil é o 12º maior investidor militar do mundo.
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A Frota responderá ao Comando Sul, sediado em Miami, responsável por controlar todas as operações militares na América Latina. Além disso, para reforçar o controle sobre a região, analistas de assuntos militares afirmam que o Comando Sul está instalado na Tríplice Fronteira − entre Argentina, Brasil e Paraguai −, onde os Estados Unidos apontam a existência de atividades do Hezbollah no comércio ilegal de mercadorias.
Próximo alvo: a Europa No ano em que a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) faz seu 59º aniversário, um encontro realizado em Bucareste, na Romênia, aprovou a instalação de escudos antimísseis na República Tcheca e na Polônia (pacto Washington-Praga-Varsóvia), proposta dos Estados Unidos para constituir um enclave militar no Leste Europeu sob a falsa alegação de que o projeto visa impedir ataques de mísseis balísticos de países como o Irã e a Síria. As resoluções aprovadas em Bucareste mostram a culminação de uma crise sem precedentes que vem se arrastando desde o fim da União Soviética. Os Estados Unidos estão tentando moldar a Otan às necessidades da “guerra contra o terrorismo”. Desde o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos vieram pouco a pouco se estabelecendo no Leste Europeu através do incentivo à completa divisão da região. Esse incentivo, diga-se de passagem, significa guerras sangrentas, massacres e os mais variados crimes de Estado contra as nações. Na região dos Bálcãs, a independência unilateral de Kosovo significou mais uma tentativa do imperialismo de garantir sua presença e influência política no Leste Europeu e em todos os ex-blocos soviéticos. Enquanto a crise do imperialismo norte-americano se desenvolve em seu próprio terreno, os elos mantidos com os países europeus mais desenvolvidos arrastam esses países para o centro da crise. Um dos casos mais críticos na Europa é o da Turquia, marcando o limite do continente europeu com o Oriente Médio. A intervenção militar da Turquia no Iraque, a serviço dos Estados Unidos, levou a uma crise no país. A crise com os curdos, uma etnia sem Estado, espalhada entre o Sudeste turco, o Norte do Iraque, Irã, Síria, Armênia e Azerbaijão, liga ainda mais estreitamente a crise européia com a do Oriente Médio.
O atoleiro do imperialismo O Iraque transformou-se no eixo principal da crise econômica do imperialismo, que não tem condições de sustentar o conflito por mais tempo e cuja derrota pode ter conseqüências tão ou mais graves ainda. A invasão do Afeganistão e do Iraque terminou por desestabilizar toda a região. O Irã também vem sendo alvo de todo tipo de acusações caluniosas por parte do imperialismo para abandonar seu
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programa de enriquecimento de urânio. Inspetores da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) já conferiram as usinas iranianas e confirmaram que o projeto visa somente a produção de energia. A campanha liderada pelo imperialismo norte-americano é uma repetição da velha estratégia para uma eventual invasão militar. Antes de ser invadido e ocupado, o Iraque também foi acusado de possuir armas de destruição em massa, teoria que até mesmo o Pentágono foi obrigado a admitir posteriormente ser infundada. No campo econômico, nos últimos 20 anos, aproximadamente, a China se converteu em uma das principais fontes de financiamento da política econômica do imperialismo norte-americano. Para se livrar de uma parcela da produção industrial que se tornou muito pouco lucrativa quando realizada nos Estados Unidos, onde a mão-de-obra é mais bem-remunerada, os acordos estabelecidos ao longo dos anos deram à China a vantagem na produção e montagem de uma série de produtos industrializados, vendidos de volta aos Estados Unidos por um preço muito menor. O dinheiro deslocado para a China com a repetição dessa operação ao longo dos anos traz agora uma situação em que o país, predominantemente agrário, se encontra sob a pressão das contradições entre o desenvolvimento capitalista de uma parte da sua economia, impulsionado principalmente pelos Estados Unidos, e a existência de uma população enorme vivendo com pouquíssimos recursos industriais. A crise com o Tibete, ainda em marcha, é uma expressão dessa contradição. A região não recebeu nem mesmo uma fração da riqueza que entrou no país e ficou concentrada nos centros urbanos e em uma parcela ultraminoritária da população. A crise chinesa se liga ainda à da Índia que, embora não tenha se desenvolvido abertamente, vem se acumulado e tende a se equilibrar através de explosões periféricas, como o conflito com o Paquistão na região da Caxemira, com a própria Índia sobre a fronteira exata com o Nepal. A crise mundial do imperialismo abre de par em par as portas para revolução proletária. Em todos os países em que a cobertura democrática da ditadura exercida pelo capital financeiro internacional começa a se romper coloca-se como questão fundamental o problema da direção do proletariado. A internacionalização da economia, o estreitamento das relações entre os monopólios capitalistas não deixam dúvidas das características socialistas gestadas na época do capitalismo imperialista em crise. Na época da invasão russa no Afeganistão, em 1979, um alto diplomata norte-americano justificou a política do seu governo de desestabilização da URSS, a contragosto e para espanto da burocracia stalinista, com a metáfora de que a crise mundial assemelhava-se a uma corrida em uma montanharussa, sem qualquer trocadilho em inglês. Hoje, a velocidade dessa montanha-russa é infinitamente maior e a corrida, ainda mais vertiginosa.
AMÉRICA LATINA os paradoxos do desenvolvimento* James Petras Sociólogo e professor da Universidade de Binghamton - Nova York
O
desenvolvimento latino-americano oferece um vasto leque de paradoxos que desafiam todas as predições, as prescrições e as análises de escritores e intelectuais de esquerda e de direita. Há mudanças e substituições abruptas na correlação de forças políticas e, ao mesmo tempo, se produzem continuidades estruturais que chamam a atenção. Avanços políticos alternam com bruscos retrocessos à medida que os movimentos populares concorrem pelo poder por meio de mobilizações de massas que voltam a surgir e se enfrentam com as classes governantes. As quedas dos sistemas financeiros e produtivos, as fugas de capitais e o sumiço dos regimes das classes governantes são acompanhados por fortes recuperações econômicas de corte capitalista, pelo renascer de movimentos liderados pelos empresários e pela restauração da hegemonia capitalista em face da pequena burguesia. Os movimentos horizontais de classe e os sindicatos, que superam as divisões étnicas, regionais e locais, e que desafiam o estado capitalista, são substituídos por divisões verticais, nas quais a organização capitalista, regional e setorial, baseada nas massas, concorre
pelos benefícios. A liderança hegemônica sobre amplos setores da classe média baixa e a população urbana e rural pobre oscila entre o proletariado, que diminui, os empregados públicos, que se organizam, os camponeses e, em alguns casos, os desempregados urbanos, as elites organizadas da exportação agrária, as multinacionais financeiras e mineradoras lideradas pelas grandes companhias que dão seu apoio aos demagogos de direita das classes médias. A recuperação econômica e umas taxas de crescimento sustentadas e substanciais fortalecem o poder político e social das classes governantes, o que contribui para estender e acrescentar algumas desigualdades superiores às que precederam a crise econômica. O pêndulo político oscila de uma influência radical da esquerda nas ruas para o poder institucional de centro-esquerda, ou para um novo surgimento do poder institucional e de base direitista. Os movimentos sociais de massas, que ocupam e organizam fábricas falidas e terras improdutivas, são substituídos pela restituição aos antigos proprietários, pelo deslocamento forçado dos camponeses e pela vasta expansão dos produtos de exportação agrários.
* Tradução de John Lionel O’Kuinghttons Rodríguez.
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Enquanto a hegemonia dos Estados Unidos na América Latina se torna menos profunda e onipresente, a variante local latino-americana do neoliberalismo se expande e se globaliza. O início da recessão e a crise financeira norte-americana não conseguem − ou conseguem com dificuldade − frear o boom exportador da América Latina, pondo em evidência o crescente desacoplamento das economias de ambas as regiões, o que torna obsoleto o clichê que diz “Quando os Estados Unidos espirram, a América Latina pega pneumonia”.
A dinâmica de classes da direita ressurgente Um dos fatores-chaves que impulsiona o ressurgimento da direita, o enfraquecimento dos regimes qualificados de centro-esquerda, e o isolamento e o declínio dos movimentos sociais radicais na primeira década do novo milênio é a primarização das economias. O setor econômico primário − a agricultura e a mineração− está dominado pelas grandes companhias agromineradoras nacionais e estrangeiras, as quais também lideram os negócios de ponta e as instituições financeiras, e exercem a hegemonia sobre os governos regionais e locais e seus empregados. Preços mundiais favoráveis e a abertura dos novos e dinâmicos mercados internacionais, assim como as grandes contribuições de investimentos estrangeiros para o setor primário, incrementaram bastante o papel das elites do setor agrominerador na economia e aumentaram sua demanda de maior influência na política econômica nacional. A crescente importância dos setores agromineradores e suas indústrias-satélites (finanças, comércio, maquinário agrícola, infra-estrutura e construção) deslocou os eixos do poder político das alianças de centro-esquerda, composto pela classe trabalhista urbana de classe média e os pobres rurais e urbanos, para um bloco de poder de massas liderado pelas elites agromineradoras, que abrange pequenas empresas urbanas, organizações profissionais, camponeses médios e, também, pequenos consumidores urbanos desafetos e empregados assalariados que sofrem os efeitos da elevada inflação. As elites do setor primário lideradas pela direita são os principais expoentes das políticas de livre-mercado, com independência do declínio da influência do FMI e do Banco Mundial, uma vez que seu objetivo estratégico fundamental é o acesso ilimitado aos mercados estrangeiros e a importação de capital e bens de consumo a preços competitivos mais baixos. A escala nacional, as elites agromineradoras e seus colaboradores nos setores financeiros e comerciais exigem o fim da regulação governamental, a diminuição ou eliminação das taxas de exportação, o fim da repartição da receita com o governo nacional e o reinvestimento do superávit comercial em projetos de infraestrutura que facilitem as exportações e os benefícios. O deslocamento do poder da esquerda radical para a centro-esquerda e para a direita é paralelo aos vaivéns do capital. A esquerda radical dominou a rua, exerceu um veto virtual sobre a política econômica e influiu na mudança de regime no momen-
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to crucial das crises econômicas e políticas e da derrota do neoliberalismo no início do século XXI. A centro-esquerda surgiu do ponto morto entre os movimentos sociais e a classe governante durante as crises; a esquerda radical conseguiu deter o domínio do capital, mas não conseguiu, ou não quis, substituí-lo. A classe governante ocupou as posições estratégicas na economia, mas era incapaz de governar. A centro-esquerda foi, essencialmente, um regime de transição, nascido após as crises, mas só poderia sobreviver se se adaptasse às demandas das elites agromineradoras que emergiram do boom econômico do período pós-crise. A tentativa da centro-esquerda de conseguir ajustes políticos e uma continuidade estrutural criou sua própria direita, seus próprios coveiros. Sentindo-se segura pelo apoio que recebia dos setores estratégicos privatizados, financeiros, agromineradores e industriais, a centro-esquerda colocou em prática uma série de políticas fiscais, monetárias e trabalhistas que forçosamente supunham alimentar o relançamento do crescimento capitalista. Algumas condições favoráveis no mercado mundial instaram os regimes de centro-esquerda a adotar a estratégia de crescimento do setor primário, independentemente do fato de sua base eleitoral se opor às elites líderes no setor primário. A centroesquerda operava com uma visão estática do equilíbiro de poder posterior à crise entre os pobres mobilizados e uma burguesia que ressurgia, e tinha em mente uma aliança produtiva, a qual poderia usar para tirar proveito da riqueza e da renda gerada de um setor primário de livre-mercado para os pagamentos de prestações sociais que pacificaram sua base de massas. A estratégia degringolou no momento em que o boom do setor primário decolou e as elites agromineradoras ressurgentes se fortaleceram graças a alguns benefícios recordes. As elites direitistas do setor primário se negaram a entrar no jogo da aliança produtiva e das políticas de repartição da riqueza do regime, que impulsionava o poder de centro-esquerda. Incapaz de colocar de novo o gênio dentro da garrafa, a centro-esquerda ficou prisioneira da direita ressurgente, recuando nas promessas feitas à sua base de massas e sem vontade nem capacidade de proteger seus partidários − isso sem mencionar a incapacidade para mobilizá-los contra a violência institucional e de rua das tropas de choque da direita do setor primário.
O neoliberalismo de livre-mercado e o enfraquecimento dos movimentos sociais O domínio dos caudilhos da economia propulsada pelo setor primário teve importante repercussão no mapa macroeconômico e político. Em primeiro lugar, a direita conseguiu o poder político nas dinâmicas regiões agromineradoras e, com os benefícios obtidos e as receitas fiscais locais, tem sido capaz de financiar projetos locais de assistência social que mobilizam a maioria da população local que apóia sua agenda regionalista. Desse modo, conseguiu transformar, em grande parte, o conflito de classes em um conflito setorial e regional.
na hora de apresentar a agenda política nacional. Como atores Em segundo lugar, o impulso regional e o papel cada políticos importantes, esses movimentos foram aliados muito vez mais estratégico das regiões dominadas pela direita na ecovisados pelos partidos e políticos eleitoreiros que se proclanomia nacional têm dado lugar a uma maior influência na mavam de centro-esquerda para contra-arrestar a política de política nacional. Em particular, grupos econômicos domipatrocínio das elites agromineradoras de direita. O momento nantes nas capitais, sobretudo nos setores financeiro e comerde triunfo dos movimentos, seu reconhecimento como procial (atividades de importação e exportação), têm unido forças tagonistas na política nacional como grupos com capacidade para socavar os regimes de centro-esquerda, o que resultou na potencial para fazer e desfazer as fortunas eleitorais dos partisubmissão dos regimes vulneráveis de centro-esquerda às exidos e líderes políticos urbanos foi também o princípio do fim gências desreguladoras mais radicais do setor agrominerador. de seu papel como agentes representativos da base de massas. O problema que enfrentam os regimes de centro-esquerda é Os líderes índios e camponeses sucumbiram aos elogios que o ressurgimento da direita acontece em um momento no ou favores políticos, empregos no governo, ONGs financiadas qual as pressões inflacionárias estão obrigando os trabalhadopela União Européia ou pelos Estados Unidos, e microcrédires organizados a pedir maiores aumentos salariais, sobretudo tos administrados por bancos internacionais. Os movimentos considerando os passados cinco anos de rápido crescimento e e os líderes foram testemunhas de como seus aliados políticos crescente desigualdade. Isso estabelece um conflito de três verde centro-esquerda viraram para a direita, acolhendo a estratétentes, em que os regimes de centro-esquerda se encontram, por gia de exportação de agrominerais e abanum lado, com a oposição de sua base popudonando as promessas de reforma da terra, lar anterior e, por outro, foram abandonados Na Bolívia, no Equasegurança alimentar e financiamento da pela classe média das capitais e províncias. As medidas reguladoras que o poder dor, na Colômbia, no agricultura cooperativa. O resultado foi a perda visível de iniciativa política, divisões de centro-esquerda introduziu na crise da México, no Peru, no internas, deserções em massa e, em alguns década anterior agora estão se erodindo. Os fracos esforços para remediar a pobreza Brasil, no Paraguai e casos, a transformação dos movimentos em transmissores das políticas oficiais que extrema e financiar o emprego urbano são na América Central, originaram uma desmobilização parcial e a socavados por uma direita agromineradora com grande confiança em si mesma, que se os movimentos índios perda do poder nas ruas. A virada e a ênfase autonomia e a política étnica, promovivê − e com razão − como um centro dinâe camponeses tiveram na da pelas ONGs e suas agências de finanmico da estratégia de desenvolvimento de centro-esquerda liderada pela exportação. A um papel importante... ciamento da União Européia e dos Estados Unidos, fizeram com que sobretudo os dependência que o poder de centro-esquerno derrocamento dos movimentos índios trocassem a política de da tem do setor primário e sua incapacidade regimes neoliberais... classes pela política separatista/regionalista. para introduzir mudanças estruturais no reEsse deslocamento para a política identitágime de propriedade de terras e no controle ria os isolou dos sindicatos, dos mineiros e mineiro e energético foram determinantes da classe trabalhadora urbana, e deu às poderosas elites agropara o poderoso ressurgimento da direita. A negativa da centromineradoras um pretexto para se apropriarem do controle das esquerda de re-nacionalizar os setores econômicos estratégicos regiões mais ricas e produtivas do país, aquelas que possuem privatizados na década anterior e sua estratégia de desmobilizaas terras mais férteis e com maior concentração de minerais, ção política dos movimentos populares deslocaram de maneira além das principais jazidas de gás e de petróleo. dramática o equilíbrio do poder político para a direita. Apesar do avançado estado de decomposição e caos dos movimentos camponeses − especialmente índios − e seu O fracasso do movimento índio e camponês papel cada vez mais isolado e marginal na política nacional, um exército de jornalistas progressistas e de esquerda, sócios Na virada do século, os movimentos índios e campode ONGs, intelectuais e escritores continuaram balbuciando neses desempenhavam um papel importante em alguns países sobre os poderosos movimentos sociais da América Latina, da América Latina. Na Bolívia, no Equador, na Colômbia, no uma maré rosa, o avanço da esquerda, etc. Quando a direita México, no Peru, no Brasil, no Paraguai e na América Cenagromineradora da Bolívia convocou um referendo separatista tral, os movimentos índios e camponeses tiveram um papel totalmente controlado, e os camponeses e partidários índios do importante, bem no derrocamento dos regimes neoliberais, governo central foram violentamente espancados por capangas construindo potentes movimentos de base regional que influneofascistas apoiados pelos regimes separatistas provinciais, o íram na política nacional, ajudando na eleição de presidentes governo de Evo Morales e Álvaro García Linares abandonou de centro-esquerda e, em alguns casos, contribuindo com o qualquer tentativa de defender a segurança física de seus seguiapoio das massas aos movimentos guerrilheiros. A maioria dores, ao mesmo tempo que se esforçava ao máximo em apadesses movimentos sociais eram, efetivamente, grupos de veto PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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ziguar a elite agromineradora. No Equador, após a desastrosa aliança eleitoral do movimento índio − Conaie (2003) − com o presidente pseudo-direitista convertido em populista Lucio Gutiérrez, o movimento declinou, dividiu-se e desmoralizou a base de massas, atingindo seu ponto mais baixo na votação de 2007 da assembléia constituinte, na qual obteve 2% dos votos para seus candidatos. O movimento índio zapatista se automarginalizou ao negar seu apoio a um movimento de protesto de milhões de pessoas contra a fraude presidencial de 2006, e ao conceder um apoio simbólico mínimo ao levantamento de massas urbano-rural no estado mexicano de Oaxaca, que durou seis meses sob uma dura repressão estatal.
A retirada dos movimentos sociais do cenário nacional para os cenários locais No último terço desta década, perante o retrocesso dos movimentos esquerdistas, a rendição dos regimes de centroesquerda e o ressurgimento da elite agromineradora de direita dura, os movimentos sociais rurais se deslocaram para combates locais setoriais, e os movimentos índios para uma luta defensiva pela sobrevivência diante da expansão dinâmica das plantações de soja, dos exportadores de madeira e das multinacionais do mineral e do petróleo. Os principais movimentos rurais, como o MST no Brasil, experimentaram despejos governamentais de ocupadores de terras e de ocupações. O Conaie, no Equador, e os índios de Chiapas viram que os seguidores que abandonam suas terras ancestrais, suas granjas e, inclusive, o país, são muitos mais do que aqueles que se unem aos movimentos. As federações de índios e camponeses da Bolívia testemunharam a vasta expansão e o enriquecimento das elites de exportação agromineradoras, enquanto os níveis de pobreza continuam em 65%, o que os obriga a empreender uma massiva emigraçãopara o exterior. A realidade dual de hoje é o retrocesso do movimento índio e camponês e o ressurgimento das elites governantes agromineradoras. Ambos os aspectos refletem o enorme ímpeto que dá a esta polarização econômica o fato de a centroesquerda promover a primarização da economia.
Paradoxos da América Latina: as vitórias eleitorais de esquerda e o poder de direita A melhor forma de entender a América Latina contemporânea é examinando seus paradoxos mais chocantes e identificando o contraste fundamental entre as aparências proclamadas e as realidades empíricas. Ao longo dos três últimos anos, os movimentos mais poderosos e organizados da sociedade civil estão organizados pelas grandes empresas urbanas de direita, as elites da agricultura apoiadas por um grande número das classes médias do setor privado, pequenos camponeses, vendedores, associações cívicas, empresários do transporte e organizações profissionais. Já os movimentos sociais
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rurais e urbanos dos pobres, organizados pela esquerda, estão em retrocesso, imobilizados ou na defensiva. O ressurgimento da direita aparece no contexto de alguns regimes de centro-esquerda cujas políticas desmobilizaram os movimentos através da cooptação e estimularam uma recuperação econômica que, por sua vez, levantou expectativas e demandas da direita no sentido de uma maior autonomia, poder regional, concessões mais lucrativas e menos impostos. Um breve estudo dos principais países da América Latina em 2008 confirma o novo paradigma do ressurgimento da direita. BOLÍVIA. No final de junho de 2008, a direita controlava plenamente os governos em cinco províncias, celebrou e ganhou referendo em quatro províncias, dominava as ruas e praças mediante organizações cívicas agressivas, perpetrava ataques violentos periódicos sobre as assembléias de índios e sindicatos, e tinha o poder de convocar greves gerais efetivas e fechamentos patronais que paralisavam a economia. Liderados pela oligarquia de negócios agrários de Santa Cruz, inauguraram um governo paralelo para negociar a arrecadação de impostos, a política econômica estrangeira e obrigar a polícia e o exército nacional a se submeter a suas políticas. Como resultado, as regiões de direita agora controlam mais de 85% das exportações e reservas de gás e de petróleo, 80% das exportações agrárias e a maior parte das instituições comerciais e financeiras. As organizações populares de esquerda foram manipuladas e divididas pelo governo de Morales-García Linera, minando sua capacidade de resposta perante o ressurgimento da direita. Em junho, a federação de mineiros, ou pelo menos a maioria de seus delegados, votou a favor de que em julho fosse realizada uma greve geral contra o ressurgimento da direita e o regime impotente de Morales. ARGENTINA. Durante a primeira metade de 2008, as empresas agrárias líderes, com forte apoio da burguesia provincial e dos pequenos e médios camponeses, organizaram fechamentos patronais massivos e constantes, uma manifestação multitudinária de 200 mil pessoas em Rosário, e obrigaram o governo de Cristina Kirchner a renegociar um imposto de taxa sobre os benefícios obtidos com as exportações de grão e soja. Os líderes do boicote de direita conseguiram debilitar a popularidade do regime de centro-esquerda, questionando sua autoridade e capacidade de governar, enquanto formavam alianças políticas com os setores comerciais e financeiros urbanos. Igualmente importante, a escassez de alimentos (carne e grão) possibilitou os aumentos de preços que fomentaram a inflação e provocaram um amplo mal-estar entre os pobres urbanos. Os movimentos urbanos populares deram escasso apoio ao regime de centro-esquerda, não se opuseram aos boicotes e aos fechamentos de estradas pela direita, exceto os setores dos sindicatos de caminhoneiros. É evidente que o movimento rural controlado pelas forças de direita lideradas pelos exportadores agrários substituiu os movimentos de trabalhadores desempregados como setor dinâmico de política extraparlamentar.
Como conseqüência do enfraquecimento do poder de centrorua de grande envergadura, com a ajuda das agências estaduesquerda, é provável que os neoliberais ortodoxos de direita nidenses. A direita venezuelana tem combinado a ação eleiusufruam algum benefício eleitoral. toral com a extraparlamentar, protestos violentos terroristas BRASIL. Durante os primeiros seis anos da presidêne protestos de massas não-violentos, alternando segundo as cia de Luís Inácio Lula da Silva, empresas e líderes da banca e circunstâncias e oportunidades. Aproveitando as concessões assessores de direita dominaram todas as posições econômicas do governo, incluída a anistia dos participantes no golpe, o estratégicas do governo. Os principais movimentos do camaumento da inflação e a escassez induzida pela oposição, a po foram dominados totalmente pelas elites da soja, madeidireita aspira sair vencedora nas eleições locais e nacionais prera, açúcar-etanol, que, ao expandir sua produção de cultivos vistas para novembro de 2008, nas quais espera ganhar uma maioria significativa das eleições locais e nacionais. Afiançande bio-combustíveis e outras exportações agrárias, tiraram a do sua liderança nos movimentos de estudantes, dominados subsistência de pequenos agricultores, índios e camponeses pelas elites da universidade pública e privada, e em sua sólida da agricultura. O Movimento de Trabalhadores Rurais Sem base, da elite dos negócios agrários, a direita tem a esperança Terra (MST) viu como suas ações sociais eram criminalizadas. de repetir seu primeiro sucesso eleitoral do Dezenas de milhares de ocupantes organireferendo de 2007. O governo e seu novo zados de terras foram expulsos; o exército, partido de massas, o PSUV (Partido Sociaa polícia municipal e nacional e os exércitos privados dos agro-exportadores queimaram ...Lula, que assumiu lista Unido de Venezuela), se defrontam com uma direita rejuvenescida, fortalecida suas favelas e arrancaram seus cultivos. o cargo com o popelos infiltrados e agitadores patrocinados Uma das forças impulsoras do boom da deroso respaldo dos pelos Estados Unidos e pela Colômbia, que agro-exportação foi o investimento estrannos bairros pobres e que é capaz de geiro, em grande escala e a longo prazo, em sindicatos, do MST... atua distúrbios violentos e de promover movimilhões de hectares de terras férteis, fábricas e dos movimentos mentos separatistas, sobretudo no estado de processamento de alimentos, refinarias de Zulia, que é rico em petróleo. de etanol e instalações de armazenamento e sociais populares, EQUADOR. O levantamento potransporte. Com Lula da Silva, milhões de tornou-se o líder pular de 2005 que derrocou o presidente de hectares de selva da região amazônica foram direita Lucio Gutiérrez, a eleição de Rafael devastados e milhares de indígenas e colodo movimento da Correa e as duplas vitórias no referendo de nos pobres foram expulsos. O MST realiza, agro-exportação... uma nova constituição, e os delegados da quando muito, lutas defensivas, resistindo comissão constitucional (outubro de 2007) a ocupações de terras, e protestos simbólipraticamente eliminaram os partidos tracos contra a agricultura biotecnológica e a dicionais de direita. Tendo perdido claradestruição ecológica. Em contraste com mente seus bastiões eleitorais no parlamento e a presidência, a expansão dinâmica do movimento de apropriação de terras a direita política lançou um movimento de autonomia regioliderado pelos capitalistas, que recebe um importante apoio finalista separatista em grande escala, com base em Guayaquil, nanceiro e policial do regime de Lula, os movimentos populares dirigido por seu prefeito. No início de 2008, mobilizou 200 recuam, estão sob vigilância e submetidos a severa repressão, mil partidários, em um esforço para pressionar a assembléia prisão e assassinatos cada vez que empreendem ações diretas. O constituinte. Mais grave ainda é o fato de o exército e suas regime de Lula, que assumiu o cargo com o poderoso respaldo agências de inteligência, em estreita colaboração com a CIA e dos sindicatos, do MST, das federações do setor público e dos o exército colombiano, terem ocultado do presidente Correa movimentos sociais populares, tornou-se o líder do movimento informação sobre a incursão violenta do presidente colombiada agro-exportação liderado pela elite ressurgente. Lula elimino Uribe e o bombardeio da região fronteiriça do Equador na nou as opções políticas do MST e dos sindicatos e abriu camiperseguição da guerrilha das FARC. Como resposta, Correa nho para a reafirmação da hegemonia da classe dominante. destituiu o ministro da Defesa, o diretor de inteligência miliVENEZUELA. Depois de a direita venezuelana ter tar e o chefe do exército. A chave do ressurgimento da direita sofrido uma série de graves contratempos − concretamente a no Equador radica no fato de os poderosos bancos costeiros, derrota do golpe militar de abril de 2002, o fechamento paos grupos financeiros e industriais terem permanecido intactronal de dezembro de 2002-fevereiro de 2003, o referendo tos, assim como as grandes multinacionais do petróleo de prode 2004 e as eleições presidenciais de 2006 − voltou às ruas priedade estrangeira, que controlam 56% da produção de peem 2007 e conseguiu a derrota do referendo de Chávez, em tróleo. Como não existe nenhum órgão midiático importante dezembro de 2007, com margens muito exíguas (menos de do governo, os principais meios de comunicação privados, 1%). Ao longo da última década, a direita da Venezuela reteve aliados da direita, dominam as ondas. Embora Correa tenha uma presença extraparlamentar de massas e uma bem-orgaeliminado corretamente os oficiais militares pró-imperialistas nizada rede de ONGs que treina e realiza manifestações de PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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e os movimentos populares de esquerda estão em retirada. mais egrégios, as instituições civis e militares do Estado contiLonge de um período de avanço da esquerda, a América nuam cheias de pessoas indicadas pelos anteriores regimes de Latina se encontra no centro de uma direita renascente, tanto centro-direita. Enquanto Correa atualmente domina o exena sociedade civil quanto na arena eleitoral, em grande parte cutivo e o parlamento, a direita tem demonstrado sua capacigraças ao boom econômico que (junto com a consolidação e dade de lançar um poderoso movimento de sociedade civil e promoção de seus promotores na agroindústria, as finanças e continua tendo a chave dos setores militares. O ressurgimento a mineração) agora ameaça substituir os regimes de centroda direita na sociedade civil acontece em um momento no esquerda. A crescente “maré branca” estabeleceu as bases para qual os principais movimentos da sociedade civil de esquerda uma nova forma de oligarquia conjunta imperial para quando (o sindicato índio Conaie e os sindicatos dos trabalhadores os Estados Unidos se recuperem de sua recessão, da crise fido petróleo) foram enfraquecidos, desatendidos ou marginananceira e do atoleiro militar no Oriente Próximo. lizados pelo regime de Correa, tornando-se vulneráveis a um ataque extraparlamentar. COLÔMBIA. É um país em que a extrema direita O paradoxo da autonomia alcançou seus maiores benefícios, tanto dentro do governo, na sociedade civil e na luta de classes, quanto em relaO segundo paradoxo radica na proposta de “autonoção a seus vizinhos. Com a eleição de Álvaro Uribe, a Comia” feita pela esquerda ou centro-esquerda, que fortaleceu a lômbia é testemunha da sistemática extensão da atividade direita e a elite econômica regional, e enfraqueceu o governo dos esquadrões da morte relacionada com um movimento central e os movimentos populares nacionais. Aquilo que comassivo da classe média urbana e o recrutamento forçado meçou como uma exigência indigenista de esquerda de um de dezenas de milhares de informantes rurais, sob ameaEstado multi-étnico baseado em uma “autonomia regional” ça de tortura e morte. Respaldado por uma ajuda militar evoluiu para uma plataforma da rejuvenescida direita, que exide mais de US$ 6 bilhões dos Estados ge autonomia regional exclusivamente para Unidos, milhares de assessores estadunicontrolar e explorar as regiões ricas do pondenses e a mais avançada tecnologia de to de vista agrícola e mineiro. A bandeira de detecção procedente dos Estados Unidos “autonomia” levantada originariamente por ...a autonomia ree de Israel, o regime expulsou mais de movimentos dirigidos por índios e respalgional, basicamente, dois milhões de camponeses do campo dados por ONGs financiadas pelos Estados para as periferias urbanas ou para fora de confinou os índios às Unidos e pela Europa tinha como objetivo suas fronteiras. A reeleição de Uribe foi um governo étnico regional livre da tutela montanhas longínacompanhada de um aumento das forças do governo central. O problema é que as zoarmadas até atingir os 250 mil membros. quas e pouco férteis, nas mais prósperas e ricas em renda e recursos Os prefeitos e parlamentares de centroprecisamente as regiões nas quais as copara eles administra- são esquerda pertencentes ao Pólo Demomunidades índias não dominam e nas quais crático são totalmente impotentes para rem sua própria misé- o trabalho assalariado e as relações comerciais evitar os massacres semanais e incapazes completamente as “relações recíria e receberem pouca dissolveram de bloquear a promulgação de um acorprocas” tradicionais índias. Com a ascensão ajuda estadual... do bilateral de livre-comércio com os do governo de centro-esquerda, a questão foi Estados Unidos. O regime militarizou a conseguir uma renda adicional procedente maior parte do campo e isolou e destruiu das regiões ricas em recursos e controladas as organizações sindicais e camponesas. pela oligarquia branca para financiar o desenDesde 2005, a direita colombiana tem infiltrado forvolvimento das regiões mais pobres, nas quais predominavam ças paramilitares na Venezuela para desestabilizar o regime de os índios, recolocar índios pobres e sem-terras nas terras férteis Chávez. Organizou o seqüestro de um porta-voz das FARC e proporcionar-lhes trabalho nas produtivas indústrias e minas. no centro de Caracas. A culminação da projeção de poder reEm lugar disso, a autonomia regional, basicamente, confinou gional da Colômbia foi o bombardeio de um acampamento os índios às montanhas longínquas e pouco férteis, para eles addas FARC no Equador, identificado pelos Estados Unidos e ministrarem sua própria miséria e receberem pouca ajuda estapela Colômbia no curso das negociações internacionais sobre dual gerada pelos enormes benefícios da mineração e das exporseqüestrados e prisioneiros com a mediação de Chávez. Como tações agrárias. Em contraste, uma vez perdida a influência ou conseqüência disso, Chávez cedeu às pressões de Uribe e atao controle direto do governo central, as regiões ricas, dominadas cou publicamente as FARC, pedindo-lhes o desarmamento e a pelas elites financeiras e do setor agrominerador, usaram com submissão incondicional aos termos ditados pelo governo coos índios a retórica da “autonomia” para avançar em direção à lombiano. Uribe mobiliza hoje um milhão e meio de partidásecessão de fato e monopolizar a riqueza e a renda gerada localrios, enquanto o poder de centro-esquerda conta com 200 mil mente contrariamente a toda repartição federal das receitas.
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O caráter vago da retórica de “autonomia” e “governo local” não analisou as classes, que teriam se beneficiado com a devolução de poder e de recursos. Além do mais, o desenvolvimento desigual das regiões e a também desigual distribuição da riqueza excluíram qualquer possibilidade de uma política eqüitativa que favorecesse as regiões menos desenvolvidas e de renda mais baixa. A autonomia regional, que, em um primeiro momento, a comunidade das ONGs considerou (ou discutiu) como uma maneira de corrigir as injustiças históricas em relação aos índios, teve o efeito contrário, uma vez que negou à maioria os frutos de suas conquistas em relação ao poder nacional. O afastamento dos índios pobres das regiões de grande riqueza, terras férteis e minas ricas foi o resultado do espólio histórico de que padeceram devido aos grandes proprietários de terras e de minas, e, anteriormente, da busca realizada pelos predadores coloniais de indígenas (para realizar trabalhos forçados). A exigência progressista não é a emancipação dos pobres em suas empobrecidas regiões, mas a exigência da devolução das terras pela via da reforma agrária e da expropriação das minas como mecanismos reais para criar um poder de classe. Os regimes de centro-esquerda se negam a expropriar, reassentar e emancipar os pobres; em lugar disso, sua política de “‘autonomia” preserva as elites e as propriedades existentes, historicamente limpas de indígenas, e encerra os índios em seus improdutivos enclaves das montanhas e nos bairros pobres das cidades. O pior de tudo é que a retórica da autonomia jogou a favor da direita e lhe permitiu apossar-se do controle político de suas prósperas regiões à custa do governo federal.
O paradoxo do apoio eleitoral popular ao renascimento da direita Não há dúvida sobre o apelo dos políticos dos regimes de centro-esquerda. Os estudos dos resultados eleitorais demonstram de maneira contundente que sua principal base de apoio procede dos pobres rurais e urbanos, da classe média baixa, dos movimentos sociais e sindicatos organizados. A força motriz da mudança política da direita neoliberal ao poder de centro-esquerda foi a profunda crise econômica precipitada pela desregulamentação do mercado, a especulação financeira selvagem e as grandes concentrações de riqueza no meio de uma crise sistemática. No entanto, é justamente a base popular eleitoral dos regimes de centro-esquerda a que menos se beneficiou com a recuperação econômica, com o boom de artigos de consumo e com o relativamente alto índice de crescimento. Foi a antes desacreditada elite econômica que recuperou seus altos índices de benefícios e conseguiu consolidar sua posse de ativos privatizados de forma suspeita. Os regimes de centro-esquerda “fecharam o ciclo” que se iniciou com o final da crise do neoliberalismo dos anos 1990, que levou ao descrédito das direitas e a um descenso dos benefícios. Isso implicou a emergência de poderosos movimentos sociais e serviu de trampolim para a ascensão da centro-esquerda ao poder, a recuperação, o crescimento, e, agora, o renascimento da direi-
ta, em sua expressão tanto política quanto econômica. Tudo isso aconteceu em menos de uma década, e sem a atenção dos míopes comentaristas de esquerda, que continuam mantendo o “final da hegemonia estadunidense”.
O paradoxo dos benefícios Os maiores índices de benefícios privados, de reservas de moeda estrangeira e de austeridade fiscal aconteceram sob os regimes de centro-esquerda eleitos popularmente nesta década, e não sob os regimes neoliberais de direita dos anos 1990. Isso se deve, em parte, aos altos preços mundiais de exportação de produtos agrominerais, mas também à estabilidade política, aos incentivos econômicos e às políticas fiscais dos regimes de centro-esquerda. Tanto os investidores estrangeiros quanto os nacionais consideraram positivamente a desmobilização da insurgência popular por parte da centro-esquerda e a canalização da política pelas vias estabelecidas. Isso levou à repatriação do capital. A imposição, por parte dos regimes, de moderados incrementos salariais em um momento de aumento dos benefícios do capital tem aumentado as desigualdades nos benefícios e nos salários. Igualmente importante, os regimes de centro-esquerda reduziram o ancestral saqueio econômico em grande escala e a corrupção generalizada, e obrigaram o capital a investir pelo benefício em vez de roubar o tesouro. A corrupção dos políticos é agora, em grande parte, um meio de engraxar as rodas do investimento. O maior crescimento do capitalismo sob regimes putativos de “centro-esquerda”, e não sob a direita neoliberal, é, em parte, resultado de investir em um capitalismo “normal” em lugar de saquear os recursos existentes. Nesse sentido, a diferença entre a direita neoliberal e a centro-esquerda não se faz pelo capitalismo ou “livre mercado”, mas pelo o capitalismo que obtém receita das “rendas” do Estado e o capitalismo que cresce via transações de mercado.
O paradoxo da centro-esquerda que antepõe as obrigações da dívida aos programas sociais A direita “dura” deu prioridade a suas relações com as agências internacionais prestatárias e dependeu, em grande medida, do financiamento, por meio da dívida, de muitos dos seus investimentos em favor do crescimento do setor financeiro não produtivo. O saqueio dos bancos por parte da direita e a destruição da confiança dos poupadores fez com que ela recorresse ao FMI e ao Banco Mundial para seu resgate, no processo de submeter a economia às onerosas condições que limitavam o crescimento, especialmente o da economia real. Retoricamente, a centro-esquerda mantinha uma guerra ideológica contra o FMI, especialmente em relação às condições e ao oneroso pagamento da dívida que, afirmava, empobrecia a classe trabalhadora. No entanto, uma vez no poder, a centro-esquerda procedia rápida e decisivamente ao reembolso da dívida oficial (ou seja, o pagamento efetivo da dívida contraída com o FMI e o Banco PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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Mundial), assegurando que assim limitava sua influência. De fato, os governos de centro-esquerda incrementaram a dívida privada interna e externa total, seguiram lealmente as políticas fiscais do FMI-BM e seus programas relativos aos superávits orçamentários, e mantiveram vínculos, por intermédio do Banco Central, com o setor financeiro, ao mesmo tempo em que qualificavam esse acordo de “‘autonomia”. Nenhum dos bancos centrais impôs qualquer restrição ao pagamento da dívida; nenhum deu prioridade à dívida social em detrimento do reembolso aos credores e possuidores de bônus. Na hora de encarar os pagamentos da dívida, a centroesquerda esteve tão disposta e pontual quanto esteve a direita, uma vez acordados os pagamentos. Ainda que em um primeiro momento tenha decidido reduzir o pagamento da dívida após as crises financeiras, a Argentina passou a incrementar os pagamentos em relação ao seu ritmo de crescimento. Nos anos seguintes, com um crescimento de 8%, seus credores nacionais e estrangeiros recuperaram com vantagem aquilo que, no primeiro momento, lhes foi deduzido. Com todos os governos de centro-esquerda, o crescimento dos pagamentos da dívida e os incrementos das reservas de divisas excediam amplamente os incrementos do salário mínimo, o que tornava seus mercados atrativos para os investidores da bolsa estrangeiros.
O paradoxo do declive do sindicalismo e mais despejos sob os governos de centro-esquerda Sob os governos de centro-esquerda, registrou-se uma diminuição da militância sindical e um incremento no deslocamento de trabalhadores urbanos e rurais. Com sua influência sobre os sindicatos e os líderes camponeses, esses governos presidiram a diminuição das greves gerais e das mobilizações políticas devido à mudança estrutural que caracterizou o período anterior de governos de direita. As ocupações de fábricas por parte dos trabalhadores desempregados na Argentina acabaram; as organizações de trabalhadores desempregados pararam de bloquear as principais estradas; os empresários iniciaram processos para recuperar as fábricas ocupadas e, em muitos casos, obtiveram laudos judiciais favoráveis; a propriedade capitalista se protegeu e funcionou com menos greves e paralisações trabalhistas; as ocupações de terras por parte dos camponeses foram substituídas por sua recuperação pelos especuladores e investidores agro-industriais; o boom dos produtos básicos foi acompanhado pelo boom da propriedade imobiliária, o que conduziu a um desenvolvimento urbano obtido mediante o deslocamento dos pobres urbanos das zonas de favelas e a construção de custosos blocos de apartamentos de alta segurança, centros comerciais e complexos de negócios. Sob o lema de “modernização e desenvolvimento” e o crédito fácil, a centroesquerda transformou a consciência de classe em consciência de consumidor, especialmente entre os trabalhadores sindicalizados organizados mais bem pagos.
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Paradoxalmente, as classes populares ganharam eleições e perderam poder social A eleição de líderes de centro-esquerda levou à substituição dos políticos tradicionais por líderes dos movimentos sociais de base e, em alguns casos, esses líderes de movimentos sociais viraram políticos do establishment. De qualquer forma, uma vez no poder, os políticos de centro-esquerda viraram apóstolos do dogma da representação de todas as classes, esfumando com isso seu compromisso para com seus votantes originais e substituindo os decretos presidenciais por consultas populares, ao mesmo tempo em que reduziam a relevância do poder social nas ruas. Quanto maior e mais dependente dos movimentos sociais foi a vitória da centro-esquerda, mais ela se afastou das exigências programáticas desses movimentos. As organizações populares viram-se diante de uma grave situação por terem ligado seus seguidores ao poder de centro-esquerda e acabaram tendo um eleitorado desiludido, sem alternativas visíveis e limitado a conseguir concessões menores.
Paradoxos da economia: à medida que os mercados crescem, decai a influência estadunidense O capitalismo latino-americano ficou muito mais livre-cambista e mais profundamente integrado aos mercados globais, ao mesmo tempo em que mostrava taxas de crescimento maiores, coincidindo com o começo da recessão e as experiências de estanflação do capitalismo estadunidense. O velho lema “Quando os Estados Unidos se resfriam, a América Latina pega pneumonia” já não tem nenhuma validade. A América Latina está se desvinculando cada vez mais da economia estadunidense em três direções: a primeira, potenciando seus vínculos comerciais com a Ásia e a União Européia; a segunda, incrementando o comércio regional; e, por último, a terceira, aprofundando seu mercado nacional. Levando em conta o boom dos produtos básicos, globalizar-se significa obter maiores benefícios, melhor acesso ao mercado e menos limitações para a consecução de preços negociados mais altos. Conseqüentemente, a decadência da centralidade do mercado estadunidense e de sua influência política significa que os exportadores latino-americanos podem evitar os acordos comerciais não-eqüitativos com os Estados Unidos, em que os contingentes, as taxas e as subvenções limitam o livre-comércio Norte−Sul. À medida que diminui a influência do FMI e do Banco Mundial, crescem os mercados livres com o incremento do superávit comercial dos países exportadores latino-americanos do setor agrominerador, a necessidade de financiamento através do FMI e do Banco Mundial diminui. Levando em conta as duras condições impostas pelas instituições financeiras internacionais, os governos latino-americanos podem negociar seu financiamento comercial e aproveitar um autofinanciamento local público e privado. Uma maior liquidez interna e
internacional tem facilitado o incremento do financiamento dos investimentos do setor da agroindústria e da mineração, o que, por sua vez, tem estimulado novos acordos de livre-comércio com a América Latina, e entre a região e a sub-região e Estados Unidos e Ásia. O fato de essas barreiras comerciais estarem caindo à medida que a influência do FMI e do Banco Mundial se desvanece demonstra que as políticas de livre mercado obedecem a projetos endógenos e não a outros fatores impostos por instituições externas. A subida das classes dominantes da agroindústria, a mineração e as finanças da América Latina, e os maiores benefícios conseguidos por um melhor acesso aos mercados internacionais, são razões suficientes e necessárias para que essas classes defendam políticas de livre mercado, inclusive em momentos nos quais o FMI e o Banco Mundial perdem importância macroeconômica. É o anti-neoliberalismo como prelúdio de um crescimento vertiginoso do neoliberalismo Em época de eleições, praticamente todos os governos da América Latina, a centro-esquerda e os demais, têm atacado o neoliberalismo como um sistema de falso desenvolvimento. Uma vez no poder e diante do crescimento da demanda mundial por bens de exportação e de alguns benefícios desmesurados, os pós-neoliberais se tornaram fervorosos defensores da exportação de artigos básicos, da busca de acordos bilaterais de livre-câmbio e da massiva importação de bens acabados, ou seja, do típico patrão do modelo neoliberal. O neoliberalismo virou um ícone demonizado ritual e era vinculado a um passado associado a políticos desacreditados e partidos corruptos. No entanto, sua invocação permite confundir os fiéis e esconder o fato de os atuais governos terem levado as diretrizes neoliberais pelo mesmo caminho que desregula. Ao falar mal do neoliberalismo anterior, os atuais governos conseguem um capital político que lhes permite promover a nova e dinâmica versão contemporânea.
O paradoxo do crescimento e a fome Quanto maior era o crescimento agrícola, mais aumentavam os ganhos por exportação, mais crescia a inflação e mais diminuía o consumo de alimentos, ao mesmo tempo em que também crescia o descontentamento generalizado. O enorme incremento de demanda de minerais por parte de países de recente industrialização muito dinâmicos, assim como a demanda por etanol dos países imperialistas ocidentais, originou o crescimento das exportações agrícolas. A entrada massiva de renda e a queda na produção de alimentos no país, à medida que as terras eram utilizadas para a produção de soja, açúcar e cereais destinados aos mercados externos, faziam aumentar o desequilibro entre a demanda externa por alimentos e a sua oferta, o que provocou pressões inflacionistas. A inflação superou os incrementos salariais, o que levou a um grande mal-estar social, distúrbios, greves e bloqueios de estradas. A inflação polarizou a sociedade civil em múltiplas direções en-
frentando os agroexportadores, os transportadores, os consumidores, os pensionistas de economia fixa, os trabalhadores assalariados, e reduzindo a força do governo central sobre a economia, ao mesmo tempo em que erodia seu apoio popular às classes governantes.
Quanto maior a exigência de integração regional, maior a integração no mercado mundial Embora tendo numerosas iniciativas de integração regional, especialmente a Alba, proposta pela Venezuela, a principal direção do comércio latino-americano é para os centros dinâmicos do comércio mundial. Cada vez mais, os principais enclaves econômicos de setores específicos muito dinâmicos e as regiões da América Latina têm se vinculado com regiões de rápido crescimento na Ásia, na Europa e no Oriente Próximo, ultrapassando com vantagem o ritmo de crescimento do comércio inter-regional. O acordo regional proposto pelos Estados Unidos, a Alca, nunca decolou realmente; a União Andina está destruída, enquanto a Colômbia e o Peru procuram acordos bilaterais com os Estados Unidos; a Alba, proposta pela Venezuela, inclui somente as economias marginais de Cuba, Nicarágua, República Dominicana e Bolívia, e a maior parte dos fluxos se dirigem da Venezuela para seus sócios de menor entidade, enquanto seus principais parceiros comerciais continuam sendo os Estados Unidos e, agora, a Ásia, o Oriente Próximo e a Rússia. O Equador, aparentemente membro potencial da Alba, prefere manter seus vínculos com os Estados Unidos, grande comprador de suas exportações petroleiras.
Paradoxos sociais Os principais lugares da América Latina onde se explora em regime de escravidão a mão-de-obra indígena são a Bolívia e o Brasil: o primeiro, um país dirigido por um presidente indígena; o segundo, por um ex-líder de uma grande confederação sindical. Os abusos mais flagrantes infligidos a cidadãos indígenas que protestavam pela contaminação ecológica e os agravos das elites são os três regimes de centro-esquerda do Equador (os mineiros), da Bolívia (especialmente Santa Cruz) e do Chile (onde a presidenta socialista encarcerou dúzias deles). Quanto mais sucesso tem a recuperação econômica por parte dos governos de centro-esquerda, menos apoio recebem da classe média, mais crescem as demandas das elites por uma maior concentração da riqueza e mais fracas são as respostas dos movimentos sociais populares. O governo de centro-esquerda tem presidido um crescimento dinâmico além de grandes polarizações sociais que têm modificado o equilibro de poder em favor da direita “dura” e acelerado o desaparecimento da hegemonia política de centro-esquerda. PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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O Brasil na crise mundial Erson Martins de Oliveira Professor do Departamento de Artes da PUC-SP
Tese do descolamento
A
s primeiras reações do governo brasileiro frente à crise financeira nos Estados Unidos foram de otimismo, sustentado pelo argumento de que o Brasil, diferentemente do que ocorreu no passado, está alicerçado em sólidos fundamentos macroeconômicos. Mesmo recentemente, quando a bancarrota do mercado imobiliário se mostrou profunda e poderosos bancos chegaram perto da quebra, bem como a desaceleração econômica expôs a tendência recessiva mundial, economistas influentes de dentro e de fora do governo afirmavam que a crise estava piorando, mas que o Brasil se saía bem e era capaz de resistir aos impactos negativos. Em síntese, eis alguns dos fundamentos: − superávit primário elevado, abundante reserva cambial e superávit comercial; − controle da dívida pública; − crescimento econômico em torno de 5% ao ano; − taxa de emprego crescente; − robusta arrecadação tributária. Começava a se ma-
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nifestar déficit em conta corrente, mas nada que preocupasse a curto prazo, uma vez que o país continuava atrativo para os investidores internacionais e não faltariam recursos para o governo cumprir suas obrigações com os credores internos e externos. Críticos do governo Lula alertavam que havia chegado o momento de novas reformas para não comprometer os fundamentos que dão solidez ao Brasil no mar revolto da economia mundial. Referiam-se, principalmente, à contenção dos gastos públicos – previdência, salário mínimo, salário dos servidores e programas sociais (Bolsa Família). Mailson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda, opositor e admirador de Lula pela garantia de autonomia que o Presidente deu ao Banco Central, não compartilha das previsões mais contundentes de que virá uma recessão forte na esteira da quebra do financiamento subprime. Se a crise nos Estados Unidos e nas demais potências for amena, se a China, a Índia e a Rússia continuarem com altas taxas de crescimento, tais fundamentos resistirão. Maílson advoga, portanto, a convicção de que, quanto à economia mundial é possível que
as “visões alarmistas não se confirmem”. Essa avaliação leva à previsão de que não haverá uma crise externa que tenha reflexos desestabilizadores sobre a economia brasileira e a política econômico-financeira do governo. Em resumo: “Quanto ao Brasil, as visões favoráveis parecem buscar-se na percepção de que a estabilidade macroeconômica é duradoura e de que estamos livres do risco de voluntarismos na condução das políticas monetária e cambial. Malgrado a falta ou lentidão de reformas, as transformações postas em marcha pelo fim da inflação e pela abertura da economia, e o atual ciclo das commodities (que tende a se manter, apesar das quedas recentes de seus preços) têm permitido explorar as grandes oportunidades de nossa economia” (“A crise piora, mas o Brasil vai bem”, in O Estado de S. Paulo, 17/8/2008) Dado que é inevitável a influência dos fatores econômico-financeiros externos sobre o Brasil, a firmeza de sua economia depende de a desaceleração do crescimento não ir fundo e, se a recessão mundial chegar, esta deve ser branda. O que diferencia as previsões dos economistas sobre as conseqüências da crise mundial no Brasil tem a ver com a análise e a avaliação do curso dos acontecimentos nos Estados Unidos, na Europa e no Japão. No início da crise, em meados de 2007, foi propagado que o estouro da “bolha” especulativa dos financiamentos de alto risco, que envolviam gigantescas somas, não ultrapassaria as fronteiras dos Estados Unidos; ou então que seu impacto seria irrelevante. Tratava-se, portanto, de um acerto interno à economia norte-americana. Um dos promotores dessa consideração foi o banco de investimentos Goldman Sachs. No Brasil, não faltaram vozes multiplicadoras da lenda de que havia um “descolamento” do restante dos mercados mundiais. No governo, atribuiu-se o “deslocamento” ao acúmulo de reservas cambiais. No artigo “Tese do ‘descolamento’ ganha força”, Fabio Graner relata que o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, indiretamente evocou essa tese ao expor sua análise da crise à Comissão de Assuntos Econômicos do Senado (O Estado de S. Paulo, 27/7/2008). No mesmo artigo, temos a seguinte consideração do economista-chefe da MB Associados, Sérgio Vale: “O descolamento existe. Foram os emergentes que provocaram essa aceleração de preço de commodities. Não estaríamos falando de inflação mundial se países em desenvolvimento não estivessem crescendo”. Sob o prognóstico de que a economia do Brasil está distante da crise hipotecária dos Estados Unidos, abrigam-se as mais distintas análises. Mas não demorou para que as Bolsas de Valores, no mundo todo, sentissem os tremores sob seus pés, para que viessem os deslocamentos especulativos do capital financeiro e explodissem os preços do petróleo, das matérias-primas e das commodities, e que despontassem sinais de desaceleração econômica em todas as latitudes. Quase um ano depois do início do desmoronamento do crescimento especulativo do setor imobiliário nos Estados Unidos, a crise interna não foi debelada e continua a avançar, bem como persiste sua repercussão sobre a economia mundial.
O poderoso banco de investimentos Goldman Sachs, que não deixou de balançar diante do terremoto financeiro, teve de se redimir da previsão localista e otimista da crise. Meses depois de ter alardeado otimismo com a bandeira do descolamento, Jim O’ Neill, economista-chefe do Goldman Sachs, desfez sua predição com a mais óbvia das constatações: “Dado o fato de que os EUA continuam a ser a maior economia global, com 30% do PIB, a idéia de que o restante do mundo seja capaz de se imunizar contra os desdobramentos econômicos que surgem no país precisa ser tratada com certa cautela” (Folha de S.Paulo, 10/8/2008). A tese do Goldman Sachs foi motivo de discussão e divergência no Fórum Econômico Mundial, em Davos, no final de janeiro deste ano. O economista Fred Bergsten, do Instituto Peterson para a Economia Internacional, herdeiro do ex-Instituto para a Economia Internacional, que deu partida ao neoliberalismo do Consenso de Washington, utilizou-se da tese do descolamento para expor a análise de que a crise nos Estados Unidos poderia ser contornada pelo impulso econômico nos chamados países emergentes. Assim, “o resto do mundo é que vai impulsionar os Estados Unidos e evitar o pior” (Folha de S.Paulo, 24/1/2008). A colocação de Bergsten evidencia que o que está por trás do “descolamento” é a avaliação de que economias como as do Brasil, da Rússia, da Índia e da China – reunidas sob a sigla Bric – ganharam tal dimensão que não só reduziram sua dependência frente às potências como passaram a ser novas alavancas para a economia mundial. José Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobras, em face dos argumentos contrários ao de Bergsten, saiu em sua defesa, conforme relata Clóvis Rossi, correspondente da Folha de S.Paulo: “Sou partidário do descolamento, sim; está havendo superestimação de movimentos de curto prazo”. Discussão dessa natureza no Fórum Econômico Mundial ocorria quando os sinais de desabamentos nas Bolsas e no mercado internacional eram evidentes. Sete meses depois, o presidente Lula comemorava a previsão de que até 2011 os investimentos poderão chegar a R$ 1,5 trilhão, com a frase “Não é vôo de galinha, é de águia que descobriu que pode ir mais alto do que estava acostumada”. Junto a esse entusiasmo presidencial, o chefe do BNDES, Luciano Coutinho, relata que a crise nos Estados Unidos não afetou a disposição do capital externo de continuar investindo no Brasil. Nota-se que há uma grande despreocupação das autoridades governamentais e de importante parcela da burguesia quanto à perspectiva da economia mundial e aos possíveis reflexos sobre o Brasil.
Agravamento da crise mundial As análises e previsões da alta cúpula – autoridades econômicas, instituições e economistas renomados – vêm sofrendo alterações conforme os fatores da crise se combinam e surgem novos fatos. Há forte presença do empirismo, apesar da sofisticada aparelhagem dos Bancos Centrais, de organizações internacionais e nacionais voltadas a estatísticas, PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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avaliações, planejamento e previsão. Pesam nas explicações e avaliações do curso da crise os interesses gerais e particulares da burguesia internacional. Poucos são os economistas da alta elite burguesa que preconizam uma situação catastrófica. É o caso Noriel Roubini, que alertou sobre o perigo de estouro no mercado imobiliário nos Estados Unidos, que vem se transformando em recessões nas mais portentosas economias da Europa e da Ásia. Enquanto a maioria acha que o quadro ainda está indefinido, Roubini considera o contrário. Em entrevista, responde:
O mercado financeiro sempre vivencia esses períodos de manias, de bolhas, de excessos, que viram loucura e explodem. (...) O ciclo se repete, em parte, porque não controlamos eficientemente as instituições financeiras. Só se ouve falar de mercado livre, de laissez-faire, enquanto precisamos de regras, de disciplina. Não dá para esperar que o mercado se regule. Auto-regulação significa não-regulação, e disciplina do mercado significa falta de disciplina. É nonsense.”
No fundo das explicações e diagnósticos da crise se encontram as divergências interburguesas, marcadas por choques O FED ficou falando que haveria uma recessão curta de frações em torno da acumulação objetiva de capital. no mercado imobiliário, que não contaminaria o resCitamos o artigo de Mailson da Nóbrega – “A crise pioto da economia, quando na realidade estava também ra, mas o Brasil se sai bem” −, por expressar no segmento comercial do mercado justamente a posição do capital financeiro e imobiliário, nos cartões de crédito, a visão do “mercado livre”. O porta-voz dos nos empréstimos estudantis, no merNeoliberais de todos banqueiros nacionais e internacionais rebacado de títulos emitidos por empresas. (...) Esta é a crise mais profunda te as estimativas sombrias de Roubini. Diz: os naipes passaram desde a Grande Depressão e deve cau“Existem análises mais pessimistas, como a sar perto de U$ 2 trilhões em perdas a aceitar uma exdo americano Nouriel Roubini, que estima no mercado de capitais (...) Na minha as perdas do sistema financeiro em mais de visão, as coisas vão piorar e piorar nos ceção ao estatismo: US$ 2 trilhões (para o FMI, serão US$ 945 próximos 12 ou 18 meses. Já estamos proteger o capital bilhões), o que provocará mais contração de em recessão nos EUA, na zona do euro e em todas as outras economias crédito e recessão”. financeiro de uma avançadas, o que vai afetar o PIB gloOs dados não são precisos e parece que bal. Nos países emergentes, as pessoas crise sistêmica. ninguém os tem com total segurança. Assim, se iludem pensando que vão escapar a polêmica sobre a evolução da crise nos Esda recessão, que haverá um descolatados Unidos e no mundo se arrasta e depenmento. Não vão. Teremos uma severa desaceleração do crescimento no de das cifras concretas que vão surgindo e se Brasil, na Rússia, na Índia, na China.(...) O Brasil traduzem em quebras econômico-financeiras. Nesse sentido, tem crescido por volta de 4,8% ao ano – o que é, as últimas medidas do governo Bush são sintomáticas. Os aliás, muito menos do que países como Rússia, Índia bancos de investimento Fannie Mae e Freddie Mac tiveram e China, que avançam entre 8% e 10%. Acho que de ser socorridos pelo Tesouro. Configurou-se uma vasta ina previsão de que o país crescerá entre 3% e 3,5% é tervenção estatal nos valores de US$ 200 bilhões. Em nome muito otimista; eu acredito em 2%. (...) Pelos indicadores de produção, renda, gastos e empregos, os EUA da ajuda aos mutuários, está prevista igual quantia. A criação entraram em recessão no primeiro trimestre. No seda Agência Federal de Habitação, com um fundo de US$ 400 gundo, o governo lançou um pacote de estímulo de bilhões, indica a complexidade do imbróglio. U$ 100 bilhões, que artificialmente impulsionou o Anteriormente, bilhões já haviam sido despendidos pelo Tecrescimento. (...) No mundo inteiro, há uma queda souro para evitar quebras bancárias − que começariam com o Bear de pelo menos 20% das ações, tanto nas economias avançadas quanto nas emergentes. Creio que, dada a Stern, finalmente assimilado pelo JP Morgan − e para subsidiar conrecessão mundial, os preços dos papéis podem ainda junturalmente taxas positivas de crescimento, a que Roubini chamou cair uns 10%. O horizonte é bem pessimista para o de artificiais. mercado financeiro em todos os lugares, incluindo a Neoliberais de todos os naipes passaram a aceitar uma América Latina, incluindo o Brasil. (Folha de S.Paulo, exceção ao estatismo: proteger o capital financeiro de uma cri7/9/2008). se sistêmica. O Fannie Mae e o Freddie Mac foram o principal Noriel Roubini tem uma empresa de consultoria – conduto de escoamento de capital parasitário para o boom da RGE Monitor -, portanto maneja os dados em função desse construção civil e de outras atividades do mercado de hipotenegócio. Seus questionamentos vêm no sentido de alertar a ca. O crescimento da economia nos Estados Unidos está em classe capitalista de que a situação não está indefinida, que grande medida condicionado ao vasto endividamento da pohá claras tendências econômico-financeiras desagregadoras pulação. Referindo-se às duas agências, o comentarista econôe que é preciso tomar medidas que evitem o pior. Por outro mico Alberto Tamer revela a dimensão do problema: “Afinal, lado, ele procura expressar posições de setores do capital que sob a responsabilidade do governo, elas detêm praticamente a precisam se defender perante a débâcle. Volta toda sua crítica metade dos títulos relacionados com o mercado hipotecário, ao capital financeiro. Eis algumas de suas colocações, feitas hoje da ordem de US$ 11 trilhões, e representam 41% do PIB na mesma entrevista: americano” (O Estado de S. Paulo, 11/9/2008).
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Mas as várias modalidades de intervenção do Estado e esta é descarregada sobre as massas trabalhadoras. As classes sociais que pagam os déficits dos Estados burgueses são o proa injeção de volumosas somas por intermédio de fundos soletariado e demais explorados da classe média. beranos não fizeram senão retardar o ritmo da crise e mantêla na superfície. Nem bem Wall Street comemorava a notícia do crescimento positivo no segundo trimestre e a garantia de A explosão da crise sustentabilidade do Fannie Mae, a Bolsa de Nova York despencou com o anúncio da fracassada operação de compra do O dia 15 de setembro de 2008 marcou o ápice da crise banco de investimentos Lehman Brothers pela Coréia do Sul. financeira nos Estados Unidos e o momento de sua irradiação Trata-se do quarto maior banco de investimentos dos Estados para todo o mundo. Nos dias anteriores, ficou confirmada a Unidos em vias de quebra, no entanto o governo não se anima quebra do quarto banco dos Estados Unidos: Lehman Broa dar a ele o mesmo tratamento dispensado ao Bear Stearns. thers. Na segunda-feira, dia 15, as bolsas somaram perdas de Ocorre que instituições financeiras de seguros estão em difiUS$ 1,361 trilhões, correspondentes às ações de empresas de culdades, como é o caso da Washington Mutual e do Internacapital aberto. Tornou-se inevitável uma ação coordenada dos tional Group. Frente à queda das ações de bancos comerciais e Bancos Centrais e a ajuda governamental em países de econode investimentos e de seguradoras, uns após outros, assim que mia atrasada e de pobreza extrema das massas, como a Índia. os planos de recuperação falham, o governo não tem completa O jornal El Pais, da Espanha, descreve assim o momenmobilidade. Diz o diretor-gerente do Morgan Keegan & Co., to crucial: “As Bolsas européias caíram em torno de 3%. E Kevin Giddis: “Parece que não existe um fim para a desgraça a América Latina também sucumbiu: a principal praça, São que continua caindo sobre as companhias financeiras e simPaulo, caiu 7,59%, a pior queda do ano. A quebra do banco plesmente não sabemos quem será o próximo” (O Estado de S. de investimentos Lehman Brothers − a maior da história −, Paulo, 13/9/2008). com um passivo de 430 bilhões de euros, se viu agravada pelo Tudo indica que esse quadro não completou sua molplano de ajuste da AIG, a gigante seguradora obrigada a solicidura. Os meganúmeros do FMI (US$ 945 bilhões) ficaram tar fundos de emergência ao Banco Central para trás e avançam rumo aos do economisestadounidenese”. ta Nouriel Roubini (US$ 2 trilhões). O jornal O Globo escreveu: “Wall Bill Gross, que comanda um dos ...a falência é...desStreet foi ontem o epicentro de um abalo mais poderosos fundos de bônus do global com o colapso do banco de invesmundo, exorta o governo norte-americacarregada sobre as timentos Lehman Brothers, depois de três no “a comprar ativos para conter o cresmassas trabalhadoras. dias de discussões entre representantes do cente tsunami financeiro”. Ao contrário, governo e banqueiros, e a compra do MerKenneth Rogoff, ex-economista-chefe do As classes sociais que ril Lynch pelo Bank of América (BofA), por FMI, argumenta que os bancos acumulapagam os déficits dos US$ 50 bilhões”. ram grandes fortunas e que frente à criAs autoridades governamentais prose do sistema financeiro, que não cessa Estados burgueses moveram a operação de compra do Merril apesar de tanta ajuda, chegou o momento são o proletariado e Lynch para não combinar duas quebras, de uma reordenação. Refere-se a uma reque elevariam a escala do terremoto a um concentração com moratórias dos fracos demais explorados ponto desconhecido. e fusões com os mais fortes, bem como a da classe média. À vista estava e está a situação faliabrir as portas para os fundos soberanos mentar da seguradora AIG, cuja escala de de países que acumulam grandes reservas atuação global a coloca no patamar mais cambiais e que não sabem o que fazer elevado da crise. A AIG já vinha sendo com tanto capital acumulado. escorada com empréstimos de mais de US$ 20 bilhões, que O raciocínio de Gross é o seguinte: “Já estamos há um caíram no fundo do poço e mal deram para prolongar sua ano metidos numa crise financeira mundial, e diversos dos prinsobrevivência. A estimativa era de que necessitava de US$ 40 cipais bancos centrais continuam extraordinariamente expostos bilhões. Mas, dois dias depois da explosão da crise, o Banco aos turbulentos setores financeiros particulares de seus países.” Central o estatizou com um empréstimo de US$ 80 bilhões, Assim, evidencia que os Bancos Centrais tudo fizeram – até em recebendo em troca 79,9% das ações da seguradora. excesso – para livrar o capitalismo de uma grande convulsão Desde os empréstimos ao JP Morgan para comprar o no mundo das finanças, mas agora esse processo se esgotou e Bear Sterns, o tesouro dos Estados Unidos já despendeu US$ o perigo de endividamento se volta contra os próprios Bancos 704 bilhões para salvar instituições financeiras. Centrais. Segundo essa avaliação, “o FED, o Banco Central EuCom tamanho rombo, forte instabilidade nas Bolsas, ropeu e o Banco da Inglaterra estão particularmente expostos”. drástica redução de liquidez no mercado e fuga de capitais de Mas as convicções econômicas das autoridades e ecoum lado para o outro, as potências se viram obrigadas a agir nomistas serventes da burguesia partem da premissa de que em conjunto. A débâcle ameaçou a Europa. No segundo dia o Estado não abre falência. Certamente que há falência, mas PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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da crise, os bancos centrais – Federal Reserve, Banco Central Jean-Luc Schneider, diretor-adjunto do Departamento de Europeu, Banco da Inglaterra e Banco Central do Japão – fiEconomia da OCDE, estima entre -0,5 e 0,5 a taxa de crescizeram as contas e aprovaram US$ 210 bilhões. mento anualizado. O volume de recursos estatais destinado a salvar o caÉ sintomática a surpresa de autoridades desse porte às pital financeiro e a amenizar a gigantesca crise mundial do inesperadas estimativas. Eis o desabafo de Schneider: “Estávacapitalismo já ultrapassou a casa de 1 trilhão de dólares. Mesmos menos pessimistas, mas as cifras foram mais negativas do mo assim não tem sido suficiente. Não basta socorrer bancos que acreditávamos no Reino Unido e na zona do euro.” (O com empréstimos subsidiados pelo FED e promover algumas Estado de S. Paulo, 7/9/2008). A recessão na Europa é consestatizações. tatável, e as dificuldades de enfrentá-la são imensas. O enA previsão de que seria necessário o Tesouro comprar trelaçamento na economia mundial de economias nacionais, bilhões em “títulos podres” está se confirmando. É o que concontroladas em cerca de 70% por uma minoria de potências, clui Paul Krugman, no artigo “Estágio final agiganta as contradições, que vêm à luz do da crise”: “O impensável – uma compra de dia na situação de crise geral. boa parte da dívida podre do setor privado O Japão também não poderia escapor parte do governo – tornou-se inevitápar a essa determinação. No artigo “PIB Na realidade, a bur- cai e Japão teme nova recessão, a Agência vel” (O Estado de S. Paulo, 20/9/2008). Confirma-se a defesa de Bill Gross de Notícia, de Tóquio, faz uma descrição guesia monopolista de que o Tesouro norte-americano teria de sombria: “O gasto de capital diminuiu joga com o liberacomprar ativos para proteger os capitalistas 0,5%, o investimento em habitação caiu contra o “tsunami financeiro”. No caso, os lismo e com o prote- 3,5%, as exportações tiveram queda de “títulos podres” fazem parte. A administra2,5% e o consumo, que representa 55% cionismo de acordo ção Bush entregou ao Congresso, no dia do PIB japonês, sofreu uma contração de 20/9, um projeto arquitetado pelo secretá0,5%. Apenas a queda na demanda intercom seus negório do Tesouro Henry Paulson, que estima na representou 0,7% do PIB japonês e a cios e interesses. US$ 700 bilhões, destinados aos resgates. das exportações, 0,1%”. Para incentivar o O endividamento público dos Estaconsumo, desde o início de 2007, o governo estabeleceu a mais baixa taxa de juro do dos Unidos passará de USS 10,6 trilhões a mundo, 0,5%, recurso também utilizado US$ 11, 3 trilhões. É para gerir os negócios nos Estados Unidos pelo Banco Central e da burguesia que serve o Estado. O liberalisimpossível, por enquanto, de ser utilizado na União Européia. mo do Consenso de Washington, concebido pelo inglês John Mesmo assim, o artifício não funciona numa economia cujos Willianmson, serviu para potenciar a especulação, obrigar os salários são baixos, e que enfrenta pressão inflacionária e alta países atrasados a abrirem seus mercados e realizar as refordo custo de vida. mas trabalhistas (flexibilização do trabalho). Diante da quebra A recessão não se manifestou no grupo Bric, mas desgeneralizada do sistema financeiro, os neoliberais tornam-se pontaram tendências à desaceleração. Esse comportamento estadistas. Nesse caso, dizem que vale porque, caso contrário, econômico tem servido de alicerce a argumentos de que os seria pior. “países em desenvolvimento” estão contrabalançando e vão Na realidade, a burguesia monopolista joga com o libecontrabalançar a retração nas economias desenvolvidas. Eis ralismo e com o protecionismo de acordo com seus negócios e uma das explicações: “O mais importante é que o consumo interesses. Os países de economia atrasada e as massas mundiais na China parece estar demonstrando poucos sinais de desaceacabarão por pagar a conta constituída pelo intervencionismo esleração. Isso significa que o consumo no país está claramente tatal das potências. Assim que, se gastar mais US$ 700 bilhões, a ‘descolado’ dos EUA. Os gastos dos chineses no varejo hoje estimativa de Noriel Roubini estará ultrapassada. contribuem mais para a demanda mundial que os dos norteamericanos. Se acrescentarmos os demais países do Bric (...), A caminho da recessão o impacto se torna ainda mais forte” (Jim O’Neil, “DescolaEm setembro, os indicadores europeus mostraram que mento e os mercados”). a economia – Alemanha, Inglaterra, França, Espanha – entrou Quem diria que a economia mundial um dia chegaria a em descenso. Tem-se em conta que a retomada do crescimento depender de países atrasados, de passado colonial e de presenda União Européia, depois de atravessar um período de estagte semicolonial? Trata-se, contudo, de uma farsa montada para nação, foi abortada pela crise dos Estados Unidos. A desvaloembasar a explicação de que a crise será branda e contornada. rização do dólar e a sobrevalorização do euro, a persistência da A volatilidade dos mercados de capital, graças ao gialta inflacionária e a queda das exportações têm prejudicado o gantesco parasitismo, não se move nas nuvens; está calcada e continente e, particularmente, as potências exportadoras. entrelaçada com a produção e o comércio. A chamada econoA probabilidade é que a taxa de crescimento de 2008 mia real refletirá toda carga explosiva do desmoronamento no seja nula. O correspondente de Paris, Andrei Netto, relata que mercado de capitais.
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as multinacionais, e impulsionada por um dos mais baixos O mais importante: o esgotamento da especulação no salários do mundo e pela urbanização, que potencializou a ramo imobiliário tem como ponto de partida a economia real. criação da classe média consumista, possibilitou uma média Industriais, comerciantes e banqueiros agiram em conjunto, de crescimento de 9%, desde 1979. Os invejáveis 10 e 11%, com apoio do Estado, que subsidiou juros etc., para promover nos últimos anos, diante de uma economia mundial de baixo um crescimento forçado da economia. Como não bastaram os crescimento, amarrada à estagnação ou quase-estagnação das empréstimos para quem poderia pagar, foi necessário endivipotências, sem dúvida, têm servido aos negócios das multidar ampla camada da população que recebe baixos salários. Os nacionais e aos interesses do capital financeiro. Mas, por isso Estados Unidos viraram canteiro de obras. O mercado imomesmo, a China passou a ter uma forte dependência do movibiliário exibiu grandes excedentes, para em seguida estatelar. mento comercial e das corporações financeiras, sobre os quais Milhares de famílias não puderam garantir as hipotecas de risnão pode exercer definição. O mesmo vale para o Brasil, a co (subprime), evidenciou-se a superprodução, os preços dos Índia e a Rússia. imóveis caíram, as famílias que ainda conseguem pagar arcam A situação da China depende, em primeiro lugar, do com a defasagem, vem a quebra de agências financiadoras, desenvolvimento da crise norte-amerireduz-se drasticamente a liquidez para emcana. É para os Estados Unidos que boa préstimos, os capitalistas precisam se livrar parte de suas mercadorias é exportada; e é do monumental prejuízo, descarregam soA queima de uma lá que a maior parte de suas reservas cambre os assalariados e assim toda a economia está envolta pela crise. montanha de capital biais é aplicada. Uma combinação da crise com a industrial poderá atingir O socorro trilhonário do Tesouro e financeiro indica que financeira profundamente a China. O estouro das hido Banco Central não fará com que a proas forças produtipotecas indicou os riscos que esse país do dução e o comércio nos Estados Unidos Oriente corre por alimentar a especulação saiam ilesos. A queima de uma montanha vas... estão em choque financeira e obter em troca o mercado norde capital financeiro indica que as forças com as relações de te-americano para suas mercadorias baraprodutivas – compostas pela força de tratas, custeadas pela brutal exploração capibalho e maquinário – estão em choque com produção materiatalista dos trabalhadores chineses e pela alta as relações de produção materializadas na lizadas na proprielucratividade das multinacionais. propriedade monopolista. Ou melhor, o Acaba de ser revelado que, das reacúmulo de choques entre as forças prodade monopolista. servas de mais de 1,5 trilhão de dólares, a dutivas e as relações de produção elevou a China tem aplicado em títulos norte-amecontradição a tal ponto que precipitou do ricanos US$ 447,5 bilhões. Grande parte alto a montanha de capital financeiro. Desdos títulos está vinculada à bancarrota dos bancos hipotecátruir parte desse capital é destruir trabalho realizado, que se rios Fannie Mae e Freddie Mac. converteu em capital acumulado. A queima em grande escala, A dimensão da dependência da China e os riscos de a como agora, que se mostra sistêmica, indica o grau de contracrise financeira bater forte em sua porta são dados por esta dição em que chegaram as forças produtivas e as relações de constatação do vice-primeiro-ministro, Wang Qishan: “Se produção. não comprarmos títulos do Tesouro dos Estados Unidos e paNão por acaso, desde 1970, o capitalismo vem sendo péis em garantia de ativos, o que mais vamos comprar? (...) A abalado por crises localizadas – a primeira grande crise do peChina simplesmente não tem como evitar os riscos. Qualquer tróleo começou nesta década. Lembremos do mito “Tigres coisa que fizermos, nós teremos de suportar as perdas”. Asiáticos”, que se desfez na crise da década de 1990. Agora, os Está aí uma declaração de impotência. O gigantesco porta-vozes do capitalismo arrumam um novo tigre – o Bric. capital extraído da mais-valia da classe operária mundial, da E a China, antes espezinhada, é agora glorificada como um exploração sobre os países semicoloniais, acumulado e potendos principais carros-chefes do crescimento econômico e da cializado pela especulação não tem como, em grande parte, ser estabilidade no mar revolto das potências. aplicado na produção e na expansão do comércio mundial. O próprio governo da China procura criar um automiO mais provável é que o ciclo da presente crise percorra to de que está caminhando para se igualar aos Estados Unidos os países dominantes e se estenda para o restante do mundo. daqui a cem anos. O primeiro, um gigante populacional que As previsões de analistas internacionais nos dão a convicção de conserva no campo cerca de 70% desse contingente, sustenque já não restam dúvidas de que nenhum país ficará de fora ta-se com uma renda per capita de mil dólares; o segundo, da tormenta. um gigante industrial que controla as finanças mundiais, com Eis a declaração taxativa do secretário-geral da Confequarenta e três mil de renda per capita. rência da ONU para o Desenvolvimento do Comércio, SuA restauração capitalista em um país tão atrasado ecopachai Panichpakdi: “Podemos estar vivendo a pior crise em nomicamente e populoso, acompanhada de abertura para PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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há país que melhor remunere os aplicadores −; a inflação, que décadas, segundo as projeções que estamos fazendo internadeu um salto nos últimos meses, agora arrefeceu seu ímpeto e o mente. Não sabemos de nada parecido desde 1929. E o pior é governo a tem como controlada, assim os capitalistas poderão que temos de reconhecer que ainda não estamos no fim dela. continuar planejando com certa segurança; as reservas cambiais Há quem diga que não chegamos no fim do poço”. são as maiores da história do Brasil, US$ 207 bilhões, com esse O ex-ministro das Finanças da Tailândia compara a crimontante o Estado tem um instrumento contra ataques especuse que envolveu seu país nos anos 1990 e chega à mesma conlativos ao real, indica aos investidores existência de caixa como clusão do secretário-geral da ONU para o comércio. “Naquegarantia aos seus negócios, etc.; a balança comercial tem sofrido le momento (1997), mantivemos nossos mercados abertos, e o impacto da desaceleração externa, mas é diversificada, a ponto isso ajudou. O que vemos agora é um abalo bem maior. Não de não mais depender excessivamente dos Estados Unidos (de se trata apenas de uma crise no mercado de crédito. Essa é 30% das exportações passou a 15,6%). uma crise financeira que terá impacto em vários setores, incluManejam-se esses fatores e suas relações em uma breve sive no comércio, que deverá decrescer de forma importante. conjuntura. No entanto, não se trata do que acontecerá no Já não há mais dúvida de que a recessão de fato chegará para imediato, mas sim no mediato. O espectro da recessão que muitos países. Alguns hesitam em admitir, mas já estão tecniganha corpo não se limitará aos Estados Unidos. Uma vez amcamente em recessão”. pliada, a diversificação não livrará as exportações de caírem. O A incógnita continua a ser a China, com uma econopeso do agronegócio e de matérias-primas na pauta de expormia ainda estatizada. O processo de restauração capitalista que tação é grande. Verifica-se que tem caído, vem mudando as relações sociais exige a no caso das mercadorias agrícolas, o volumanutenção das altas taxas de crescimento. me, queda essa que vem sendo compensada Está claro que não poderá, logo mais, manter seu padrão de exportação. O governo Uma queda do cres- pela elevação dos preços. A dependência do preço elevado das commodities passa a chinês, assim, acaba de tomar medidas de cimento econômico e ser um problema, devido aos riscos que a reforço ao consumo interno, afrouxando a política monetária. Vai no mesmo caminho a volta do desempre- crise financeira vem trazendo à tremenda no mercado de futuros e visível de endividar a população. go em grande escala especulação instabilidade. Notamos que a diferença dessa crise abrirão um rombo O crescimento do mercado interno, com relação às anteriores está no seu alcanpor sua vez, depende da continuidade do ce internacional. Por isso, seu ritmo, seu no casco de bancos e endividamento da população. O consumo envolvimento global e sua profundidade são difíceis de avaliar com precisão. Pode- financeiras. Esse é um atingiu 78% do PIB, segundo o jornalista rá ser longa e amplamente destruidora. Os dos grandes perigos. Celso Ming, mas graças à “disparada de 32,9% no crédito ao consumidor” (O Estapaíses de economia atrasada que se valeram do de S. Paulo, 11/9/2008). Sob o governo do ciclo de crescimento da última década FHC, o volume dos empréstimos chegou a poderão ser os mais retardatários. Mas seus R$ 300 bilhões; agora, no segundo mandarecursos e sua capacidade de manobra são to de Lula, atingiu a monumental quantia de R$ 1,067 trilhão frágeis. (julho de 2008). Desse valor, quase a metade recai sobre a população (pessoa física). Praticamente um terço dos brasileiros Para onde vai o Brasil está endividado − cerca de 80 milhões. Destes, mais de quinze milhões devem quantias acima de $ 5.000,00. Há uma farra A análise do governo, de economistas fora de seu círcucom crédito e empréstimos. lo − e mesmo de grandes empresários − ainda é de que os funA indústria automobilística desponta como um dos sedamentos econômicos do país lhe garantirão certa imunidade. tores de maior peso no crescimento do PIB, mas graças a essa Havia uma previsão de desaceleração, mas o crescimento do enorme disponibilidade de financiamento. As autoridades moPIB no terceiro trimestre surpreendeu a todos com 5,8%, em netárias incentivam o crescimento baseado na dívida, que cherelação a igual período de 2007, o que deu ao Ministério da gou a critérios desconhecidos na história econômica do Brasil. Fazenda o indicador anual de 5,3% e 5,5%. Estima-se, para Cornélio Pimentel, que cuida do Departamento de 2009, 5%, 4% e, na pior das hipóteses, 3,5%. Uma vez garanMonitoramento do Banco Central, prenuncia perigos: “Não tidas taxas dessa magnitude, o Brasil continuará a assistir de faz sentido financiar um veículo em 84 meses. Esse problema longe a recessão nas potências e poderá cumprir suas metas de está começando a tomar relevância. O prazo médio para um pagamento da dívida pública e de atração do capital externo. carro é de 24 meses. Faz em 80 meses quem não tem renda”. Algumas vantagens são assinaladas pelas autoridades e Ou seja, a camada pobre da classe média e a mais remediada repetidas pelos analistas: os bancos brasileiros estão sólidos, não da classe operária estão mergulhadas em dívidas. se envolveram com o mercado de capitais exterior − afinal não
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conta que a crise já chegou ao Brasil e alimentará as conEis o que diz Francisco Pessoa, da LCA Consultores: tradições internas. “Não é de hoje que os bancos não têm a menor prudência No momento, o reflexo mais contundente da crise se ao conceder crédito; vide o cheque especial e o crédito pessomanifesta na Bovespa. Especuladores internacionais têm real. Basta abrir uma conta para já ter aquele limite de crédito tirado bilhões da Bolsa. Desde o início de 2008, verifica-se a disponível – e com juros altíssimos, como são os do cheque fuga de capitais. A venda de posições em grande escala vem especial. As taxas são mais altas e os bancos não têm nenhuma derrubando o valor de ações e papéis. Contabiliza até o inígarantia” (Folha de S.Paulo, 23/6/2008). cio de setembro um acúmulo negativo do Ibovespa, principal As taxas de inadimplência ainda são suportáveis, seindicador no Brasil, de 20,6%, o que representa uma grande gundo os analistas, mas têm crescido, alcançando o pico de desvalorização das ações de grandes empresas, como a Vale e a 7,3% em maio. Esse é um fator que poderá incentivar a crise Petrobras. O desequilíbrio sistêmico das Bolsas internacionais interna. expôs o quanto de especulação a burguesia tem praticado. A Os bancos estão sólidos e ganhando muito com a esBolsa no Brasil, que foi inchada nesta dépeculação, mas os fundamentos dos emcada, concentra os negócios em torno das préstimos não dizem o mesmo. Uma queda do crescimento econômico e a volta do No momento, o refle- commodities. Em outubro de 2007, a oferta públidesemprego em grande escala abrirão um xo mais contundente ca de ações chegou ao auge; em setembro rombo no casco de bancos e financeiras. de 2008, vêm pesadas perdas. A elevação a Esse é um dos grandes perigos. Uma reda crise se manifesta grau de investimento pela Standart & Poor’s tração na liquidez do mercado financeiro, na Bovespa. Especu- fez com que a Bovespa escalasse a 73.516 por sua vez, será fatal para o tal do crescimento sustentável. O BNDES prevê até ladores internacionais pontos, em maio, para dali a dois meses cair para 60.148; agora despencou para pouco 2010 empréstimos de R$ 210,4 bilhões têm retirado bilhões mais de 40.000 e voltou, depois do novo à indústria, com juros subsidiados. Sem alcançar a taxa de 21% do PIB de invesda Bolsa. Desde o iní- pacote de Bush, a 53.000. Vejamos o que diz Rodolfo Riechert, timento, o “vôo galinha” desanuviará o cio de 2008, verifica-se do Banco Pactual: “As empresas precisasonho da águia de Lula. vam de capital para realizar seus sonhos e As reservas cambiais não são apenas a fuga de capitais. vieram no momento em que o mercado essolução mas também problema. Seu equitava a dar esse capital. No mercado atual, líbrio depende do câmbio, do que acona empresa pode estar superbem-preparada, tecerá com a balança comercial e com a mas não vai conseguir um bom preço” (O Estado de S. Paulo, conta corrente. Espera-se redução do superávit da balança 13/9/2008). As altas vertiginosas de seus preços e em seguida comercial e aumento do déficit da conta corrente. Durante as quedas indicam o esgotamento das margens do jogo. o último período, as reservas cambiais resultaram em alto A avançar esse processo, combinado com recessão, pocusto para o Brasil, devido ao dólar baixo e à sua aplicação derá se colocar quebra industrial e comercial. em títulos públicos norte-americanos, cuja remuneração é O ponto nevrálgico da economia, no Brasil, e que, frenbem menor que a do mercado brasileiro. Com a tendência te à crise, mais preocupa tanto a burguesia nacional quanto a à alta do dólar, se mantida e fortalecida, o Banco Central se internacional, está na monumental dívida pública, que corresverá na contingência de sustentar bem alta a Selic. O goverpondia, em março, a R$ 1,250 trilhão − a metade do PIB. O no poderá despejar dólares da reserva internamente para não governo usa o argumento de que pelo menos a dívida externa deixar o dólar subir muito. ficou diminuta e de que as reservas cambiais dão garantias de Mas o déficit em conta corrente trará grandes transtorfolga. Mas ocorre que grande parte dessa dívida foi transfornos. Houve uma reviravolta nesse aspecto. Devido à queda nas mada em dívida pública. Somada ao que restou da externa, exportações e à alta nas importações, emergiu um déficit pegerou-se este monstro de mais de 1 trilhão de reais. rigoso, que também pressiona o Banco Central à alta da taxa Os artifícios do Plano Real que permitiram a paridade da de juros, por necessidade de entrada externa de moeda e para moeda nacional com o dólar foram expostos no final do último reduzir a repatriação de capital especulativo, incentivada pela mandato de Fernando Henrique Cardoso, sob um quadro recrise mundial. O Brasil − ou seja, sua burguesia e seu governo cessivo, no final da década de 1990, de forma que o câmbio fixo – encontra-se preso à gigantesca dívida pública, que consome estourou. As operações financeiras em torno do Plano Real importante parcela da renda nacional. Estima-se que o déficit deram um salto histórico na dívida pública. Sob o governo em conta-corrente poderá chegar a US$ 28 bilhões e, no ano Lula, o câmbio já flexível e o real supervalorizado, a dívida foi que vem, a US$ 34 bilhões (O Estado de S. Paulo, 17/09/08). mantida nas alturas, sendo que grande parte foi transformada Mesmo que a situação instável não permita preciem real. Com a queima de mais de US$ 1 trilhão na crise que se sões, basta que existam cálculos como esses para se ter em PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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processa, desvalorizam-se ativos fixos e capitais fogem por meio de resgates da Bolsa, remessas de lucros, etc. O capital financeiro não aceitará desvalorizar a dívida pública com a desvalorização do real − fenômeno que se manifesta neste momento e que pode se potenciar. O governo terá de iniciar a dilapidação das reservas cambiais, vendendo dólares. Uma nova crise do endividamento está colocada no horizonte.Trata-se de um volume e uma força financeira que obrigam o governo a guiar a política monetária pelas altas taxas de juro, as mais violentas do mundo. À dívida se atrelam fatores como câmbio, balanço de conta corrente, taxas de juro, superávit primário. Um profundo desequilíbrio nesses fatores levará a crise financeira a atingir fortemente a produção e o comércio, e vice-versa. Na situação em que a crise combine destruição maciça de capital parasitário com destruição de capital produtivo – tudo indica que essa combinação está por vir, sem que ainda saibamos o ritmo – todo arcabouço do Plano Real virá abaixo. As fraquezas da economia apenas começaram a ser expostas. Os reais fundamentos se encontram na estrutura econômica de capitalismo atrasado e semicolonial. Apontamos alguns: 1. Ramos fundamentais da produção estão nas mãos de multinacionais. 2. Fontes de matérias-primas estratégicas contam com a presença ostensiva do capital estrangeiro. 3. Commodities têm peso decisivo na balança comercial e não as manufaturas com valor agregado. 4. Bolsa depende dos aplicadores externos para funcionar. 5. Grandes empresas nacionais dependem do financiamento externo. 6. Drenagem de recurso para o exterior é gigantesca. 7. Sistema financeiro nacional ultraparasitário, cuja lucratividade é estratosférica. 8. Pobreza e miséria da maioria da população. 9. Milhões de pequenos agricultores e de camponeses semterra que sobrevivem subordinados ao capital agroindustrial. As forças produtivas da economia brasileira estão, em grande medida, atreladas ao movimento do capital internacional, ao saque imposto pelo capital parasitário nacional e imperialista. A burguesia brasileira não tem poder econômico para se defender da crise mundial, caso esta alcance o patamar que se está prenunciando. O processo de abertura das fronteiras comerciais às potências, a enorme desnacionalização e a maior dependência ao capital financeiro por meio da dívida pública exporão a fragilidade do Brasil no oceano da crise.
Conclusões 1. O que distingue a presente crise das crises anteriores é que ela tem os Estados Unidos como epicentro e que ganha
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proporção de a maior crise mundial do pós-guerra. 2. A derrocada do sistema financeiro internacional reflete a contradição fundamental entre as forças produtivas altamente desenvolvidas e as relações de produção baseadas na propriedade monopolista. 3. O gigantesco capital financeiro ampliou e saturou seu descompasso com as forças produtivas; grande parte não tem como ser aplicada na produção e no comércio, prevalecendo sua valorização por meio da especulação. 4. O capital financeiro adveio historicamente da fusão do capital bancário com o capital industrial, resultante da fase monopolista do capitalismo. A sua crise sistêmica conclui em quebras industriais e comerciais. Não por acaso, a falência financeira nos Estados Unidos começou com a quebra do setor de imóveis, da construção civil. Indicou que o crescimento econômico tem sido promovido pela poderosa atuação especulativa de bancos, agências de investimentos e fundos diversos. 5. É inevitável que os países de economia atrasada sejam arrastados pela crise instalada nas potências. As vantagens alcançadas no ciclo de crescimento especulativo logo mostrarão sua pequenez e darão lugar a desvantagens. Na cadeia mundial de interdependência, constituem os elos mais frágeis. 6. O processo de restauração capitalista na ex-União Soviética, no Leste Europeu e na China, impulsionada desde a década de 1990, permitiu que a crise mundial, que vinha se gestando desde 1970, tivesse um respiro. As contradições se manifestaram na forma de quebras regionais ou de países, todos de economia atrasada. 7. A destruição de conquistas revolucionárias – propriedade social, soberania, emprego, combate à pobreza, etc. – com a reintrodução da propriedade capitalista e exploração do trabalho permitiu à burguesia imperialista movimentar capitais e aproveitar-se do atraso econômico. As burocracias restauracionistas serviram e servem de canal para o capital financeiro e as multinacionais atuarem por cima das fronteiras da Rússia, da China, e outras. Em pouco tempo, evidenciou-se que as forças produtivas não poderiam se expandir livremente e se armou um quadro mundial que se dirige para grandes conflitos. 8. A monumental crise atual ainda está em desenvolvimento. Não se tem como se chegar a um prognóstico preciso do seu ritmo, alcance e desdobramento. As potências têm imensas riquezas acumuladas pela reconstrução do pósguerra, pela exploração impiedosa das massas mundiais e pelo saque dos países semicoloniais, dos quais o Brasil não deixou de fazer parte pelo fato de ser considerado um dos Bric. Os governos imperialistas atuam sobre a crise financeira, gastando somas que já ultrapassam US$ 1 trilhão. A crise se aprofundará e se alargará no momento em que
cessar a possibilidade de queima maciça de capital líquido, advindo a queima de capital fixo. A crise capitalista se caracteriza por destruir grande quantidade de riquezas acumuladas. 9. As potências são responsáveis pelo funcionamento do capitalismo e por sua ordem mundial. A falência de grandes bancos, financeiras e seguradoras tem de ser disciplinada, para que a anarquia do mercado não se transforme em caos. No momento, estabeleceu-se uma coordenação “cooperativa” entre as potências para impor a disciplina: decidir quem sobrevive e quem morre, para em seguida restabelecer o funcionamento do sistema.
rizaram as relações mundiais e impulsionaram a indústria bélica que deixa muito para trás o armamentismo das duas Grandes Guerras. Tudo indica que o quadro de conflitos e de intervencionismo imperialista se ampliará com a crise. As guerras, nesta etapa superior e última do capitalismo, expressam contradições entre as fronteiras nacionais e a ordem econômica mundial; e entre as forças produtivas e as relações de produção. Resultam em grandes desperdícios de esforços econômicos, destroem em grande escala forças produtivas e impõem grandes sacrifícios às populações.
14. A crise mundial potencia a barbárie capitalista. O seu desenvolvimento depende, no entanto, da luta de classe. As 10. O restante do mundo em nada influencia nas decisões; classes operárias e demais classes oprimidas têm seus meios seus bancos centrais são apêndices. Mas terá de arcar com próprios de luta e a experiência histórica acumulada lhes parte significativa da crise. Brasil, Índia, Rússia, China, permite contrapor-se às medidas da classe capitalista com para ficarmos nos Bric, terão de destinar as vantagens o programa socialista de transformação da propriedade de seu crescimento para pagar os estragos nas potências. privada dos meios de produção em propriedade social, coPara isso servirão as reservas cambiais, suas fontes de maletiva. A bancarrota mundial demonstra o esgotamento do téria-prima, seus mercados internos e sua classe operária capitalismo, que deve dar lugar ao socialismo, por meio de superexplorada. revoluções. É necessário compatibilizar as forças produtivas 11. Na última década, prevaleceu a direaltamente desenvolvidas com novas relatriz do Consenso de Washington. As ções de produção baseada na propriedade potências comandaram a abertura das social. As riquezas capitalistas, altamente Na crise, parte dos fronteiras dos países atrasados e semicoconcentradas, estão em choque com a vida capitalistas se queloniais, conservaram seu protecionismo das massas. Para resolver essa contradição, e promoveram as reformas trabalhistas, está colocado historicamente compatibilibra, parte tem seus de forma a aumentar a superexploração a produção social com a forma coletiva capitais desvaloriza- zar e a equalizar os interesses da burguesia da propriedade. internacional. Obteve-se crescimento dos e parte enrique- 15. Ganharão importância e projeção nae alta concentração de riqueza. Esse cional e internacional respostas econômice ainda mais, danprocesso se esgotou e abre-se uma nova cas em defesa do trabalho, dos salários e etapa de crise. O fracasso de acordos do do prosseguimento das condições de existência da maioria. Os tipo Doha indica que violentos choques capitalistas vão defender suas propriedades à lei econômica estão por vir. e lucros, demitindo e intensificando a taxa da concentração. 12. Principal conclusão: as massas mundiais, de exploração. A política econômica dos formadas pela classe operária, camponegovernos se tornará mais visível perante os ses e classe média urbana, são as forças trabalhadores como instrumento de prosociais que pagarão toda a conta. Na criteção ao grande capital. As reivindicações econômicas das se, parte dos capitalistas se quebra, parte tem seus capitais massas se combinarão com a luta política. desvalorizados e parte enriquece ainda mais, dando pros16. A crise estrutural do capitalismo ressalta a crise de direção seguimento à lei econômica da concentração. A destruição política da classe operária. Suas organizações sindicais fomaciça de riqueza permite aos capitalistas reiniciarem um ram burocratizadas e estatizadas no mundo todo, com raras novo ciclo econômico. Mas para isso a burguesia põe na exceções. Os partidos comunistas foram varridos ou estão rua batalhões de trabalhadores, incha o exército de desemcompletamente integrados ao capitalismo. A III Internapregados, amplia o subemprego, rebaixa os salários, liquida cional foi liquidada. A restauração capitalista se impôs. São direitos trabalhistas e sacrifica ainda mais os camponeses. conseqüências do estalinismo. O Programa de Transição A burguesia não tem outra solução para a crise estrutural da IV Internacional, elaborado por León Trotsky, é o insdo capitalismo senão destruir forças produtivas e atacar a trumento da classe operária para responder à crise histórica vida dos explorados. do capitalismo. Em meio à grande turbulência que caracte13. Outra conclusão essencial: trata-se de uma crise no seio rizará o próximo período, teremos de construir os partidos do capitalismo em sua fase superior – como demonstrou revolucionários e reconstruir a IV Internacional. Vladimir Illich Lênin. O que traz à tona as tendências béSão Paulo, 21 de setembro de 2008 licas próprias desta última fase. Os Estados Unidos militaPUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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A dupla tragédia cubana Ivan Cotrim Professor da Universidade Mackenzie e do Centro Universitário Fundação Santo André
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um significativo trabalho sobre a Revolução Cubana, encontramos, logo de entrada, o seguinte comentário do jornalista do The New York Times Herbert Mattews, que acompanhou in loco, desde 1956, os movimentos dos grupos que lideraram aquela revolução: “Em meus trinta anos no The New York Times, nunca vi uma história importante tão mal compreendida, tão mal coberta e tão mal interpretada como a Revolução Cubana”. E na mesma página, reservada a reflexões sobre a revolução, a assertiva de Fidel Castro: “O povo deve receber algo mais que liberdade e democracia em termos abstratos” 1, o que sugere, de pronto, o imperativo da ação revolucionária na resolução das contradições deixadas pela dominação externa, que marcou sua história. Mas como compreender a atual miséria cubana sem ter em conta esse seu trágico percurso histórico e, quem sabe, deixar alguns indicativos que ajudem a dissipar as deficiências indicadas por Herbert Mattews? Não há como pensar tal miséria sem se remeter ao passado histórico em que a Ilha esteve submetida ao domínio político-econômico imperialista. Não é preciso que nos afastemos demais no tempo; é suficiente notar que o século XX se abre para a história cubana com uma transição, em termos de dominação externa, da relação de dominação direta das forças e interesses coloniais da Espanha para os interesses imperialistas norte-americanos, refletindo desde logo que a subsunção nacional aos Estados Unidos iria continuar dificultando a Cuba dar livre curso às demandas de uma construção social capaz de resolver os impasses deixados pelos antigos dominadores. As novas e perigosas relações EUA−Cuba estão na base do que chamamos de sua primeira tragédia, ou seja, a emancipação nacional subordinada aos Estados Unidos.
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O preço da independência nacional cubana proporcionada pelos Estados Unidos no final do século XIX e início do século XX pode ser aquilatado tendo em vista o quadro dentro do qual transcorre o estabelecimento constitucional do país, após a expulsão dos espanhóis: “A guerra acabou em menos de quatro meses, tendo como vencedores os Estados Unidos, tanto nas Caraíbas como no Pacífico. O tratado de paz, assinado em Paris, a 10 de dezembro de 1898, determinava a independência de Cuba (...); determinava também a proteção da propriedade privada e a pacificação de Cuba pelos Estados Unidos. No dia 1° de janeiro de 1899, as tropas espanholas evacuaram a Ilha, e a ocupação militar norte-americana, sob o comando do General Leonard Wood, começou sua tarefa de pacificação”2. A maneira pela qual a presidência norte-americana procede na condução emancipatória do povo cubano não será outra senão a de trocar, pela via da assembléia constituinte, seu afastamento físico de Cuba, já que ela foi ocupada pelos Estados Unidos na luta contra a Espanha, por sua presença jurídico-constitucional, isto é, trocar seu afastamento pela inclusão na Carta em preparação de artigos que definiam as relações que seriam mantidas a partir de então. Dessa forma são remetidos para a assembléia artigos já redigidos nos Estados Unidos, como, por exemplo, os seguintes: Artigo III – O governo de Cuba concorda que os Estados Unidos podem exercer o direito de intervir para a preservação da independência cubana, para a manutenção de um governo adequado à proteção da vida, propriedade e liberdade individual e para a execução das obrigações relacionadas com Cuba que lhe foram impostas pelo Tratado de Paris, e que devem ser agora assumidas e cumpridas pelo governo de Cuba.
Artigo VII − Para permitir aos Estados Unidos manterem a independência de Cuba, e protegerem o povo cubano, bem como para a sua própria defesa, o governo cubano venderá ou arrendará aos Estados Unidos a terra necessária para instalação de bases ou estações navais, em certos pontos específicos, a serem estabelecidos pelo presidente dos Estados Unidos3.
Esses artigos compunham o que ficou conhecido como Emenda Platt, incluída na Constituição cubana em 1902, mesmo sob protesto dos mais esclarecidos, que pretendiam uma independência verdadeira e viam que aquela não passava de uma imposição dos Estados Unidos. Essa subordinação ao imperialismo norte-americano foi mantida ao longo de meio século, através de uma sucessão de presidentes prepostos dos Estados Unidos, até Batista, expurgado pela revolução de 1959, depois de muitos combates revolucionários internos − combates esses que aproveitaram a concentração de forças urbanas e rurais, dispostas a conquistar uma verdadeira emancipação nacional, tendo agora, então, como alvo, superar a dominação imperialista dos Estados Unidos, mesmo ao preço de verem embargadas suas relações comerciais com aquele país, além de outros que o seguiram nessa política, como de fato ocorreu. Só para precisar um pouco mais a insistente interferência norte-americana em Cuba, vemos a continuidade de suas ações político-jurídicas quase meio século após a Revolução Cubana, operando a velha intervenção norte-americana, como se esse quase meio século de história nada significasse para a Ilha e para a humanidade. Em 1996 os Estados Unidos saem novamente − como fizeram tantas outras vezes − à luta para derrotar o governo de Fidel, com os mesmos argumentos utilizados desde as lutas pela emancipação cubana, argumentos que, fundamentalmente, reclamam os direitos norte-americanos de, além de intervir nos assuntos internos da Ilha, tentar reaver o ouro perdido. Em extratos da Lei Helms-Burton para a Liberdade e Solidariedade Democrática Cubanas, de 1996, encontramos a reposição dos velhos argumentos intervencionistas disfarçados de luta pela democratização de Cuba. Seu conteúdo expressa o seguinte: Decreto para buscar sanções internacionais contra o governo Castro em Cuba, para articular o apoio a um governo de transição conducente a um governo democraticamente eleito em Cuba, e para outros fins. A ser aprovado pelo Senado e pela Câmara dos Deputados dos Estados Unidos da América no Congresso reunidos4.
Os argumentos apresentados nos permitem notar a que ponto é levada, desde sempre, a política imperialista norteamericana, focada na perspectiva intervencionista sobre Cuba, país que lhes escapou ao controle pelos meios revolucionários de seu próprio povo, e que os Estados Unidos tentam obsessivamente retomar. Eis o núcleo efetivo de seu decreto: tomar medidas adequadas para devolver aos cidadãos dos Estados Unidos (e entidades que sejam à razão
de 50 por cento ou mais possuídas por cidadãos dos Estados Unidos) as propriedades tomadas desses cidadãos e entidades pelo governo cubano em 1º de janeiro de 1959 ou depois, ou providenciar indenização justa a esses cidadãos e entidades por essas ditas propriedades5.
Vale lembrar que era exatamente essa a preocupação de Sweezy e Huberman ao tratarem dos interesses externos que tendiam, naqueles anos de 1959/1960, a interferir no processo revolucionário. Os interesses pautavam-se nas propriedades dos capitalistas norte-americanos em primeiro lugar, mas não só. Assim se pronunciavam os autores: Quais são esses interesses externos? Em primeiro lugar, naturalmente, o dos capitalistas norte-americanos que estão perdendo propriedades em Cuba. Em segundo lugar, o restante da classe dominante e governante dos Estados Unidos, que simpatiza com seus membros atingidos pela Revolução, e teme, com razão, que esta seja na realidade apenas a primeira fase de uma revolução latino-americana que: ( a ) custaria aos capitalistas americanos muitos bilhões de dólares em propriedades confiscadas; ( b ) forçaria os Estados Unidos a pagarem preços mais justos (isto é, muito mais elevados) pelas matérias-primas que importam; (c) minaria toda a estrutura do imperialismo norteamericano tanto no Hemisfério Ocidental como no resto do mundo; e (d) daria um impulso formidável e geral à transformação histórica de capitalismo mundial em socialismo mundial. Em terceiro lugar, as oligarquias dominantes nos países latino-americanos, cujos interesses e posições são essencialmente idênticos aos da classe semelhante, agora derrotada em Cuba, e que receiam, também com razão, a repetição do movimento em seus próprios países6.
O impacto causado pela Revolução Cubana atingiu a maior parte dos pensadores críticos do planeta, causando um profundo entusiasmo revolucionário, porém cauteloso, pois, sem o apoio internacional, sem o engajamento das forças revolucionárias que se encontravam difusas pelo continente latino-americano, sem o enfrentamento aos ataques diretos dos Estados Unidos, as possibilidades de um retrocesso eram mais intensas. O maior inimigo, nesse momento, era o isolamento cubano, forma de diluição do processo revolucionário na qual o imperialismo norte-americano mais se empenhava. Outro aspecto que se encontrava na ordem do dia era o status sócio-econômico que ali poderia ser implantado, até mesmo porque as condições existentes tinham origem na fase de domínio externo e, portanto, dependiam de injunções complexas que iam além dos limites nacionais. Além disso, esse processo revolucionário inicial não permitia qualquer antevisão do que se instalaria diante da realidade definida pela equação da guerra fria. Nesse sentido é que a preocupação com a especificidade interna de Cuba toma um lugar de destaque nas manifestações gerais sobre o assunto. Nas palavras de Sartre, que havia estado em Cuba em 1960, percebemos essa dimensão temática: PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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Interroguei em Paris um certo número de cubanos, sem poder compreender por que se recusavam a me dizer se o objetivo da Revolução Cubana era ou não o de estabelecer o socialismo. Agora compreendo por que não mo podiam dizer. Isso porque a originalidade dessa revolução consiste precisamente em fazer o que é necessário sem tentar definir seus atos através de uma ideologia prévia7.
Tal clareza analítica, vinda de Lênin, foi mostrada plenamente durante a exaustiva luta para instalação da NEP (Nova Economia Política), que tornara evidente a necessidade de construção de um capitalismo, embora sem capitalistas no poder, e que teria de ter no estado, ocupado pelas forças revolucionárias, o apoio a um desenvolvimento social inexistente até então. O atraso sócio-econômico russo antes da Revolução, seu isolamento internacional posterior a ela e a impossibilidade de instalação do soCompreendendo a posição de Sartre, mas sem concorcialismo num único país deixaram como alternativa a necessária dar com ela, Sweezy pautou-se pelo esforço revolucionário em presença do estado como gestor das ações sócio-econômicas, sendo desenvolvimento para afirmar que “se o observador da revolua miséria russa a mais evidente expressão dessa necessidade. ção insistir em que deve haver uma denominação apropriada Observe-se que, após a morte de Lênin, os setores conà nova sociedade cubana, poderão dizer-lhe, como disseram a gressuais que concentravam as discussões sobre os caminhos que Joseph Newman do New York Herald Tribua economia russa deveria tomar reabilitaram a ne, que o governo e a revolução cubana ‘não idéia de socialismo sob o formato de uma gestão eram nem comunistas nem capitalistas, mas ...a Rússia converte- planejada sobre a propriedade coletiva e estatal simplesmente cubanos e humanos’”8, pois meios de produção. Bukarin assumiu a dese na potente URSS, dos essa opinião em nada altera seu trânsito efefesa desse planejamento direto do estado sobre e passa a exercer tivo para o socialismo. o mercado, até que suas operações estivessem Sweezy analisava o período revoluplenamente submetidas a esse controle, cuja influência política, cionário como uma fase de transição cujo finalidade era a implantação do socialismo. com a expansão do molde dependia da presença maior ou Isso se punha em oposição a outra perspectiva, menor, até o esgotamento, da propriedade vinda de Preobrajesnsky, que buscava resgatar domínio ideológico privada. Não houve, por parte desse autor, a NEP, apresentando com detalhes a complee pragmático sobre uma ponderação das determinações histórixidade desse projeto diante das condições nacas concretas, seja porque a revolução detoos partidos comunis- cionais e internacionais do período, com vistas nou fortemente os antagonismos contra os a reforçar as operações de mercado necessárias tas internacionais... Estados Unidos (antagonismos caracterizaà concorrência capitalista. dos pela insistente interferência na Ilha, que De forma que os temas “planejamenSweezy, como os demais pensadores crítito” versus “lei do valor” dominaram aquele cos, repudiava), seja por não considerar que revoluções como a período, até 1928. O trágico encerramento desse processo se russa fossem um referencial incontornável para balizamento dos deu com as atitudes de Stálin pondo fim aos congressos e eminovos processos. Mas, qualquer que seja a razão, ele reiterava tindo sua concepção de socialismo real num artigo de 1928, no sua posição, indicando que: qual afirma rispidamente o destino que pretende dar à NEP: “ao diabo com a NEP”. A partir daí, não é demais lembrar que a coletivização forçada tornou-se a condição natural para a A pergunta que devemos fazer sobre Cuba, portanto, relaciona-se não com os motivos daqueles que realização e a sustentação de seu socialismo real. fizeram e estão fazendo a Revolução, mas antes com O andamento daquele processo histórico forma um exceas características objetivas da ordem social que está lente quadro referencial capaz de orientar novos caminhos e demarsurgindo de seu esforço. Essa ordem social se concações decisivas nas lutas sociais do século XX − referências nem forma, em suas linhas gerais, a algum dos sistemas sempre utilizadas, ou então negligenciadas, mas que determinaram atualmente existentes? Mais especificamente, e como os processos revolucionários posteriores. No percurso histórico a evidentemente não se trata de feudalismo, poderá ser ela classificada como capitalista ou socialista? Ou departir de 1928, a Rússia converte-se na potente URSS, e passa a vemos concluir que é realmente excepcional e nova, exercer influência política, com a expansão do domínio ideológico com uma estrutura e leis de evolução próprias? De e pragmático sobre os partidos comunistas internacionais, na busnossa parte, não hesitamos em responder: a nova ca por subordinação, que em alguns casos tomou a forma armada, 9 Cuba é socialista . chegando a posições abertamente contra-revolucionárias, como, por exemplo, na revolução civil espanhola, na eliminação dos moAtentemos, então, ao fato de que, bem antes desse imvimentos emancipatórios tratados por Primavera de Praga, etc. portante processo pelo qual Cuba passou e vem passando, a Tal como havia prenunciado Lênin sobre a impossibilidade história revolucionária da Rússia no início da década de 1920 de socialismo num único país, ao propor a instalação da NEP, o fato também suscitara questionamentos muito semelhantes, com de a URSS ter expandido seus domínios para outros países não soluções decisivas para uma situação histórica em que o procesconverteu seus fundamentos sócio-econômicos em socialistas. O so de transição para o socialismo havia se mostrado impossível.
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que tivemos ali não foi senão uma formação social sui generis, reA situação cubana, guardadas as distinções sócio-histósultado de uma revolução que não pôde se completar, dado o limiricas, pois conta já com o desenvolvimento histórico daquela te nacional e as condições históricas que o período lhe impusera. formação sui generis, depara, tragicamente, em seu interior, Além disso, tendo como fundamento social o socialismo real, não com uma pauperidade que compromete sua emancipação nacional. Note-se que Cuba, como colônia espanhola, esteve pôde, de maneira nenhuma, construir um processo de transição para submetida à organização agrária voltada para o mercado exo socialismo. Suas características mais gerais refletem ordenamento terno, sob ordenamento produtivo escravista e, portanto, sem social pós-capitalista, mas não socialista, já que coletivizou as proestrutura para desenvolvimento interno, industrial. E nos pripriedades, rompendo com um dos fundamentos do capitalismo, meiros cinqüenta anos do século XX, com a presença dos Esmas transferiu sua gestão para as mãos do estado; não completou, tados Unidos, a situação do povo cubano não melhorou, pois por todos os motivos indicados, seu processo revolucionário; não não contou propriamente com um desenvolvimento que se pôde transmitir ao controle social aquelas propriedades, tampouco voltasse para solução da vida social, tornando evidente o fato as operações e decisões da vida russa; ao contrário, o estado fortade que as equações resolutivas da miséria cubana passariam nelecido, como expressão da debilidade sócio-econômica originária, cessariamente pela superação do domínio norte-americano. manteve sob seu controle político as necessárias operações sócioeconômicas, como a remuneração da força de trabalho, as relações Dessa maneira, suas incursões político-econômicas sociais em geral, já que se tornou gestor e controlador da vida sopara afastar o histórico assédio norte-americano às suas quescial, impedindo, por tudo isso, o controle social da vida. tões internas, através da revolução, acabam por conduzi-la a tomar posição política diante do quadro deixado pela guerra A tragédia do socialismo real reside na reprodução, exfria, posição essa que exclui, por obviedade, relações com os pansão e continuidade de um sistema de acumulação articuEstados Unidos, mas ao mesmo tempo teria que evitar um lado pelo poder estatal e por um capital coletivo/não-social, alinhamento direto com o leste europeu, pois que, desprovido das suas condições próprias de capital – mercado e concorrência –, tenas atitudes da URSS com relação aos moviA tragédia do sociade inexoravelmente à estagnação. Chasin mentos revolucionários foram sempre hostis lismo real reside na quando a autonomia revolucionária entrava define originariamente essa formação nos seguintes termos: em jogo. Além disso, Fidel conhecia as posireprodução, expanções de Kruchev a seu respeito, conforme nos são e continuidade de informa Moniz Bandeira: Nesta acumulação pós-capitalista, que é formação e incremento do capital industrial, interditadas as formas privada e social da propriedade do capital, emerge uma ‘apropriação’ coletiva/não-social, que tem seu ponto de inflexão, arranque e reiteração numa gestão igualmente coletiva/não-social, dado que uma gestão de caráter social é duplamente impossível nas condições próprias ao elo débil, pois o atraso é também ‘miséria’10.
um sistema de acumulação articulado pelo poder estatal e por um capital coletivo/não-social...
E, mais adiante: Sui generis, essa gestão/‘apropriação’ coletiva/não-social tem por corpo um complexo dispositivo partidário/estatal/administrativo, que funcionalmente mantém e reitera nesta formação pós-capitalista a regência do capital11.
Chasin arremata mordazmente sua formulação observando que: a lógica de uma formação pós-capitalista (...), sem burgueses e sem capitalismo, reitera a regência do capital. Regência da qual o aparato, isto sim, é função ainda que também (e isto é apenas o outro lado da mesma moeda) seu fiel guardião, inclusive ideológico. Mas há que lembrar que nem toda guarda é posse. Se assim não fosse, os eunucos nunca teriam existido12.
Àquela época, no mesmo dia, 4 de fevereiro, em que uma Assembléia Popular, convocada pelo governo cubano, referendava a Segunda Declaração, San Tiago Dantas informou a Dean Rusk, em Washington, que Fidel Castro, a quem Kruchev, conforme se sabia, desprezava, estava em luta com os comunistas, cuja força crescera no aparelho do estado e do partido, e corria o risco de ser por eles descartado13.
Por isso, e por sua experiência, procurava reduzir a esfera de influência política exercida pelo partido comunista em Cuba. Na realidade, continua Moniz Bandeira, Fidel Castro nunca tivera confiança nos velhos comunistas, contra os quais – ele próprio admitiu – alimentava preconceitos. Por outro lado, os comunistas, conforme o próprio Blas Roca reconheceu, levaram tempo para perceber as perspectivas que a revolução lhes abria e entraram, tarde e debilmente, como força política, na luta contra Batista.14
A política expansionista da URSS na direção de Cuba resultava numa interferência de outro tipo em relação à norteamericana, pois se dava através das ações políticas, do partido comunista, mas não encontrava por parte dos revolucionários cubanos o acolhimento necessário para ampliar seu domínio PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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sobre a Ilha. Contudo, a interferência soviética “acelerou-se após a invasão da Baía dos Porcos, cuja mais trágica conseqüência, na opinião de Fursenko e Naftali, foi a ascendência de Aníbal Escalante e do serviço secreto cubano, dominado pela KGB”15. Porém, a correlação de forças políticas ficou na dependência dos revolucionários; à habilidade política dos dirigentes cubanos Fidel, Guevara e Raúl Castro, somou-se o arrojo revolucionário e a perspicácia para conduzir-se diante das tentativas golpistas, muito características da estratégia stalinista no PCUS. O alavancamento do homem de Moscou no Partido Comunista cubano, Aníbal Escalante, a alto cargo do estado, e as manobras para a formação de um partido único, o PCC, que englobaria o PSP (Partido Socialista Popular), dando assim maior margem de manobras internas a Moscou dentro de Cuba, exigiam respostas internas dos revolucionários que não ferissem gravemente as relações internacionais com a URSS. Os ataques de Castro aos velhos comunistas alinhados ao stalinismo, políticos que não desempenharam papel algum no expurgo de Batista, apoiando tardiamente a ação revolucionária, foram-se tornando mais acentuados. Seu ponto alto dá-se nas críticas públicas às adulterações que o partido comunista fez em texto para discurso público, excluindo referências religiosas a “Deus”. Depois de taxá-las de medíocres, Fidel Castro questionou: “Podia tal covardia ser chamada de conceito dialético da história? Podia tal maneira de pensar ser chamada marxismo? Podia tal fraude ser chamada socialismo?”; e, em seguida: “Como ousam eles? Quem aqui foi forçado a aceitar o socialismo?” – perguntou mais uma vez, sem apontar quem eram “eles”, e convocou o povo, ao final, à guerra contra o “sectarismo”, que conduzia ao “privilégio” e ao “pântano”16. Esse arrojo revolucionário desdobrou-se numa radical operação política de ocupação legítima dos postos de comando do estado por quem de direito. “Ao mesmo tempo, Castro, após afastar Escalante no dia 20 de março, procedeu à organização do Secretariado das ORI, composto por ele próprio e Raúl Castro, como primeiro e segundo secretários, Ernesto Che Guevara, Oswaldo Dorticós, Blas Roca e Emílio Aragonês, conforme anunciado pela imprensa, no dia 25 de março”17. De forma que as lutas internas que se seguiram à expulsão completa das forças norte-americanas tiveram que enfrentar o stalinismo que tentava fortalecer-se internamente. Nisso consiste a habilidade política de Fidel que, em função da dependência econômica que mantinha com Moscou, não poderia repetir no plano externo suas atitudes políticas internas. Por outro lado, embora a emancipação do povo cubano em relação ao imperialismo dos Estados Unidos tenha tido sucesso, é preciso notar que não havia, nem poderia haver, emancipação econômica no sentido da autonomia nacional, de um capitalismo autônomo. Ao mesmo tempo, a história já havia criado fortes obstáculos à emersão do socialismo, com a presença das organizações pós-capitalistas, ordenadas pelo capital coletivo não-social, pelo recuo das ações revolucionárias na América Latina; assim, os revolucionários cubanos não tiveram outro recurso senão aceitar o apoio da URSS. Vai, portanto, se desenhando a segunda tragédia cubana, que se consolida a partir de 1968, por conta das alterações na correlação de forças e nas negociações internacionais da guerra fria.
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Diante da aguda escassez de petróleo, que Cuba enfrentava e que perdurou até fins de 1968, e sem poder jogar a ‘carta americana’, Castro não teve alternativa senão capitular diante da URSS, e o fez com inteligência, sem perder a desenvoltura, se bem que sua atitude causasse consternação e espanto, sobretudo entre os países não-alinhados, devido às suas violentas diatribes contra a Iugoslávia. Contudo, não apenas a situação econômica do país, agravada pelas pressões de Moscou, determinou sua mudança de atitude. A derrota das guerrilhas na América Latina, sobretudo na Venezuela, Colômbia e Guatemala, e o fracasso do plano de Che Guevara na Bolívia, bem como o crescente isolamento internacional de Cuba concorreram para que Castro tratasse de reconciliar-se com a URSS e os demais países do Bloco Soviético.18
Não se pode, por outro lado, minimizar o papel de Cuba no apoio às emancipações dos países submetidos ao imperialismo, tanto na América Latina, quanto na África; não se pode minimizar a interferência direta que Cuba exerceu nos mais importantes momentos da história mundial do pós-guerra, tendo sido pivô de um dramático momento histórico da humanidade, que foi a crise dos mísseis. Bastaria mencionar o destaque dado a Cuba, nos aproximados quarenta anos das relações internacionais transcorridas em torno do eixo bipolar URSS−EUA, da guerra fria, para percebermos seu peso específico. Sua história revolucionária, seja por sua presença muitas vezes física onde processos revolucionários demandavam forças militares, seja por suas opiniões e participações político-ideológicas, fez com que a Ilha se destacasse ao evidenciar mundialmente o que houve de mais importante em termos revolucionários na segunda metade do século XX, já que ocupou onde e como pôde a tribuna antiimperialista. Apesar de seu papel histórico, Cuba pouco ou quase nada desenvolveu em termos de forças produtivas. Moniz Bandeira afirma, sobre essa questão, que: conquanto provavelmente o regime comunista, inspirado no modelo soviético, tivesse condições de resistir às pressões domésticas e internacionais e sobreviver, mesmo formalmente, uma vez levantado o embargo econômico dos EUA, o prestígio com que Castro ainda contava sem dúvida favoreceria sua vitória, em qualquer eleição, com liberdade de partidos políticos. De qualquer modo, ao radicalizar-se, ainda que compelida pela dinâmica dos conflitos com os EUA, e exceder-se a si própria, afoitando-se além das condições materiais e das reais possibilidades políticas do país, o que a Revolução Cubana promoveu, não obstante alguns dos seus feitos, como a melhoria de níveis de saúde, baixando significativamente a taxa de mortalidade infantil, e a eliminação do analfabetismo, foi a socialização da pobreza, uma vez que a riqueza lá concentrada era pouca e a produtividade caíra. De 1959 a 1997, a diferença entre os que muito possuíam, os ricos, e os que nada tinham praticamente desaparecera em Cuba. Igualitarismo havia. Todos empobreceram. A escassez e o sacrifício foram solidariamente distribuídos pela populacão, submetida às mais severas restrições, sem liberdades políticas19.
Dessa forma Cuba expressa a insuficiência dentro do universo insuficiente da cadeia dos países pós-capitalistas submetidos ao capital coletivo/não-social. Suas condições econômicas expressam a forte debilidade própria da ausência de uma indústria, ainda que fosse limitada e restrita pelo ângulo tecnológico, mas que pudesse suprir as necessidades internas, descarregando o peso do setor agrário para a exportação necessária e compatível com a importação dos bens de consumo interno. Ao contrário, com a subsunção direta à URSS, com a importação do modelo de capital coletivo/não-social, aprofundou-se a contraditória relação na qual o principal produto, a cana-de-açúcar, se torna responsável pelo abastecimento interno via importação. Esse modelo unilateralizou a organização econômica cubana durante mais de 30 anos, e − o que é pior − com a queda do Leste, essa fonte de sustentação da Ilha foi eliminada. Conforme Gott: Ainda mais sério para a saúde econômica da Revolução foi o fim dos Estados socialistas da Europa oriental no curso de 1990, associado com a desintegração da própria União Soviética após uma tentativa fracassada de golpe contra Gorbachev, em agosto de 1991. O golpe definitivo e final para Cuba veio em 12 de setembro de 1991, poucas semanas após o levante, quando Gorbachev cedeu à pressão dos Estados Unidos e anunciou que 7 mil soldados soviéticos estacionados em Cuba seriam retirados. Como era de praxe nas transações entre as duas superpotências, Cuba não foi consultada20.
Desponta, a partir de 1990, uma crise que virá a instalar-se na Ilha, sem piedade. Cuba soma, agora, aos boicotes econômicos norte-americanos e seus seguidores, o desaparecimento das vantagens auferidas nas relações com a URSS, que se haviam tornado decisivas para a vida cubana há quase trinta anos. A tragédia refletida na miséria cubana expressava a essência do capital estagnado, do capital coletivo/não-social que se implantara na Ilha, conformando a debilidade de uma revolução que não pôde se completar. Contudo ali despontou um fenômeno no mínimo curioso: trata-se de demonstrações dadas pela população de um grau de solidariedade humana incomum diante dos problemas, como se os valores próprios do egoísmo racional tivessem sido abolidos. A postura humana revela um tipo distinto e mais capaz de suportar as contradições sociais, conforme nos indica Gott: Mesmo assim, apesar dos problemas, as fazendas foram capazes de abrigar refugiados do colapso da economia urbana e internacional. Barraclough encontrou-se com uma mulher jovem descalça que estava cuidando do filho bebê e de umas galinhas em frente à sua pequena casa, com telhado de sapé e chão de terra batida, mas muito limpa. O chalé também tinha eletricidade e um aparelho de televisão. ‘Em nossa conversa, eu soube que ela havia passado sete anos em Praga, aprendendo as técnicas da manufatura têxtil tanto em escolas quanto em fábricas. Ela falava tcheco e russo. Não havia emprego para a sua especialidade, ‘por isso ela havia retornado para a fazenda.’ Apesar desses reveses e privações, Barraclough ficou impressionado com a capacidade de
recuperação das pessoas que conheceu. O bom humor filosófico com que a maioria dos rurais parecia encarar as suas dificuldades era impressionante.
Outra medida desconhecida, nos diz novamente Gott, para o enfrentamento de crises, envolveu as forças armadas: Um resultado esperado da reestruturação econômica do país foi o aumento do poder e da influência das forças armadas nos assuntos internos do país. Raul Castro anunciou, numa etapa inicial da crise, que o exército objetivaria alimentar-se por conta própria, e a experiência adquirida qualificou os militares para supervisionar o programa alimentar civil. As forças armadas começaram a adquirir uma nova projeção nos assuntos econômicos e desempenharam um papel condutor no impulso para a auto-suficiência alimentar21.
A realidade sócio-econômica e política foi implacável; as relações unilaterais mantidas com a URSS desde 1960 até 1990, do ponto de vista econômico, explicam o padrão da crise que assola Cuba: mesmo em processo de redução, a importação de petróleo russo, a preços especiais, contou em 1993 com 5,4 milhões de barris; em anos anteriores aproximava-se de 14 milhões (1988). Por outro lado, mais de 80% da tecnologia e máquinas utilizadas em Cuba tinham origem soviética; parte substancial da alimentação, perto de 60% nos anos 1980, tinha a mesma origem. Os principais produtos da Ilha eram consumidos pela URSS, como cana-de-açúcar (mais de 60%) e frutas cítricas (mais de 90%). Com a queda do Leste, as relações comerciais com o bloco soviético tiveram que ir se ajustando ao mercado, e os subsídios proporcionados por ele desapareceram. A partir de 1989, a capacidade de importação cubana caiu em 70% com relação ao período anterior, isto é, de 8 para 2,5 bilhões de dólares. Com a redução dos subsídios, diminuíram drasticamente as divisas cubanas: em 1989, Cuba retinha 4,3 bilhões de dólares; em 1992, essa cifra caiu para 1,2 bilhão, e em 1993, para 757 milhões de dólares. Percentualmente, a queda do PIB cubano é de 2,0% em 1990, 10% em 1991, 11,6% em 1992 e 15% em 1993. O panorama da crise que se instalou em Cuba pôde ser percebido pela substituição dos carros por carroças puxadas por cavalos, pela presença de 500 mil bicicletas dadas de presente pela China; no campo, os tratores soviéticos, que somavam 30 mil, foram substituídos por 300 mil arados puxados por bois22. As tentativas de arrefecer sua trágica miséria vieram com os projetos turísticos, imitando os procedimentos econômicos da maioria das ilhas do Caribe. As operações nessa direção tiveram que contar com parcerias internacionais: as joint ventures passaram de duas, em 1990, para 112 em 1993. A despeito da contradição monetária que se apresentou com o turismo, já que a principal moeda corrente passou a ser o dólar, sinais de melhoria geral começaram a ser notados: em 1996, o crescimento médio do PIB é de 3,5%. De qualquer forma, o retorno ao capitalismo, tal qual se dera com a ex-URSS, tornou-se vital, e, fora da esfera de PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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influência da URSS de Gorbachev, Cuba inclinou-se cada vez mais para o universo comercial e político chinês. Cuba vem transitando para o capitalismo inspirada, possivelmente, na ordem político-econômica chinesa: Com o Vietnã e a China, Cuba estava quase sozinha em sua determinação de manter a via socialista, e as relações de Cuba com a China melhoraram de modo expressivo nos anos 1990. Missões oficiais foram enviadas a Pequim para estudar o modelo chinês. Os chineses ofereceram tecidos gratuitamente para a confecção de uniformes e mais de um milhão de bicicletas, bem como os meios necessários para a construção de cinco montadoras do produto. Em 1994, a China se tornara o terceiro maior parceiro comercial de Cuba23.
Essa aproximação se dá como uma forma de obter novo patamar de relacionamento internacional no universo dos países que ainda se dizem socialistas, e obviamente para proteger-se dos ataques que tiveram continuidade, mesmo com o fim da guerra fria, por parte dos Estados Unidos − vide a Lei de Torricelli, de 1992, que aprofundava os embargos comerciais para obter a queda definitiva de Fidel, sufocando o quanto fosse possível as já parcas condições de sobrevivência de toda a população cubana. Tal aproximação com a China parece ser o canal tanto econômico quanto político pelo qual deve passar uma reestruturação profunda na vida cubana. Não é demais notar que, dez anos após os primeiros laços sino-cubanos se apertarem, temos, como manifestação de certa cumplicidade com a China, o pensamento de Fidel exposto na imprensa oficial, em abril de 2008: O líder cubano Fidel Castro disse que não é ‘obrigado’ a acreditar no Dalai-lama, que recebeu homenagens dos Estados Unidos, mas que tem ‘muitas razões para acreditar na vitória chinesa’, em mais um artigo
publicado nesta terça-feira pela imprensa oficial. (...) Em seu artigo, o líder cubano lembra que o Dalailama foi condecorado com a Medalha de Ouro do Congresso dos Estados Unidos, e ‘elogiou George W. Bush por seus esforços em favor da liberdade, democracia e todos os direitos humanos’”24.
Cuba ainda estaria conectada à Rússia, não tivesse sido descartada por ela, no momento de dissolução da URSS, que transitou para o capitalismo, como vimos, no momento da Glasnost e da Perestroika. Cuba estaria se nutrindo da mesma relação que desde a década de 1960 assegurou-lhe uma posição estratégica no âmbito da guerra fria, posição que não lhe foi útil para um desenvolvimento industrial capaz de abastecer internamente as demandas próprias do povo cubano. Observemos ainda que o trânsito russo para o capitalismo se deu de maneira radical, embora sem que as massas populares tomassem partido das operações nacionais e internacionais para tanto, o que revelou claramente, naquele momento, o grau de estranhamento e alienação a que estiveram submetidas durante os 60 anos de dominação stalinista, e do capital coletivo/não-social. O trânsito para o capitalismo foi feito pelo alto, pelo estado soviético em processo de autodissolução, mas com manobras políticas que dificultaram a participação das massas populares. A exclusão peremptória de Cuba das relações que lhe serviam de subsistência não lhe deixou alternativa senão arrimar-se na China, como ocorreu anteriormente, na década de 1960, com relação à URSS. Por seu lado, a China procurou integrar-se ao capitalismo por um caminho diferente do russo; transitou também pelo alto, mas com total exclusão da participação popular, caracterizando a ambigüidade de sua acumulação de capital ao manter o aparato repressivo do estado em pleno funcionamento. Parece-nos que a Cuba está reservada, por conta de injunções históricas impossíveis de serem por ela dominadas, a constante tragédia que as relações perigosas lhe impõem.
Notas 1 Citados como epígrafe em SWEEZY, Paul e HUBERMAN, Leo, Cuba, anatomia de uma revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 1960. 2 Id., ib., p. 30. 3 Id., ib., p. 31. 4 GOTT, Richard. Cuba. Uma nova história. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 368. 5 SWEEZY, Paul e HUBERMAN, Leo, op. cit., p. 370. 6 Id., ib., p. 193-194. 7 Apud SWEEZY e HUBERMAN, op. cit., p. 178. 8 Id., ib., p. 179. 9 Id., ib., p. 179. 10 CHASIN, José. “Da razão do mundo ao mundo sem razão”, in Nova Escrita Ensaio, nº 11/12, São Paulo: Escrita, 1983. p. 24. 11 Id., ib., p. 25 12 Id., ib., p. 25. 13 MONIZ Bandeira, Luiz Alberto, De Martí a Fidel: A Revolução Cubana e a América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 376-377. 14 Id., ib., p. 377. 15 Id., ib., p. 377-378. 16 Id., ib., p. 381-382. 17 Id., ib., p. 383. 18 Id., ib., p. 587. 19 Id., ib., p. 648. 20 GOTT, Richard. Cuba. Uma Nova História. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 321. 21 Id., ib., p. 331. 22 Dados extraídos de GOTT, Richard, op. cit. 23 Id., ib., p. 333. 24 Publicado pela France Presse, em Havana, em 1º/04/2008.
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O papel da aliança cívico-militar na
“REVOLUÇÃO BOLIVARIANA” Marcelo Buzetto Doutorando do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
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uando falamos em Venezuela ou em “Revolução Bolivariana”, uma questão que tem despertado inúmeras polêmicas é o papel da chamada “aliança cívico-militar”, principalmente o papel das Forças Armadas nesse processo de conflitos e transformações que vêm ocorrendo desde 1989, quando milhares de trabalhadores e trabalhadoras foram às ruas protestar contra o neoliberalismo e suas perversas conseqüências sociais. Apresentamos, neste breve artigo, uma síntese da análise de dois estudiosos da situação venezuelana, com argumentos que nos ajudam a compreender um pouco mais sobre o posicionamento de setores das Forças Armadas, principalmente em momentos decisivos da luta de classes, como foi o abril de 2002 para os venezuelanos. Marta Harnecker1 avalia que existe uma série de fatores que foram se somando ao longo da formação histórica, política e social da Venezuela e que explicam a atual posição hegemônica no interior das Forças Armadas daquele país. Segundo essa estudiosa do processo venezuelano: a) é preciso levar em consideração a forte influência do exemplo e do pensamento de Simon Bolívar, principalmente suas idéias sobre a integração latino-americana e sobre a obrigação dos militares de defender o povo; b) a partir da geração de Hugo Chávez, no início da década de 1970, houve uma enorme mudança no processo de formação dos oficiais venezuelanos. Após 1971, eles deixaram de ser formados pela “Escola das Américas” e começaram a completar seus estudos universitários em cursos da Academia Militar Venezuelana, onde tomavam contato com os autores clássicos da ciência política, por meio de textos de Clausewitz, Mao Tse-tung e outros. De
acordo com Harnecker, tal procedimento contribuiu para a formação de um conjunto de oficiais com forte influência das idéias progressistas; c) essa geração de militares venezuelanos que hoje são oficiais não chegou a se confrontar com organizações guerrilheiras de esquerda. E quando eram enviados para o interior do país e/ou para regiões de fronteira, o que encontravam era muita pobreza e desigualdade social; d) a origem popular da maioria dos oficiais venezuelanos contribuiu, segundo Harnecker, para que não fosse criada uma “casta militar” e para que não houvesse discriminação no processo de ascensão hierárquica no interior das Forças Armadas; e) um setor bastante importante e expressivo dos militares ficou sensibilizado com a situação de pobreza em que vivia a maioria dos trabalhadores, fato que ganhou mais relevância durante as manifestações populares de 1989, quando a classe dominante do país incitou as Forças Armadas a reprimir os movimentos de massa em várias partes do país, tendo destaque os conflitos que ocorreram em Caracas; f ) criou-se no seio das Forças Armadas, num primeiro momento na clandestinidade, uma corrente política que buscava resgatar o pensamento de Simón Bolívar, Simón Rodrigues e Ezequiel Zamorra, mártires da luta pela independência da Venezuela. Esse movimento, que teve origem no exército, se expandiu para outros setores militares e, com o tempo, recebeu apoio e incorporou civis ligados a organizações operárias e populares. Essa aliança resultou na construção do Movimento Bolivariano Revolucionário 200 (MBR 200); g) a ação política e militar desencadeada pelo MBR 200 em 4 de fevereiro de 1992, contra o governo de Carlos AnPUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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drés Pérez, resultou numa derrota militar mas numa vitória política, pois deu visibilidade nacional ao movimento que até aquele momento reunia um grupo muito pequeno de pessoas em comparação às tarefas que se propunha realizar. A partir daí, Hugo Chávez e seus companheiros ficaram conhecidos em todo o país. Foram presos, mas libertados dois anos depois, como resultado de inúmeras mobilizações de massa; h) a vitória eleitoral de Chávez, em 1998, levou os bolivarianos ao governo e criou a possibilidade de testarem suas idéias e suas propostas através não só da mobilização social e/ ou de insurreições militares, mas também dos inúmeros instrumentos que estão vinculados/subordinados ao governo federal. A vitória eleitoral ampliou a influência das idéias do MBR 200, transformado em partido político (Movimento Quinta República − MVR), no interior das Forças Armadas, e muitos militares se colocaram à disposição para contribuir no que fosse necessário para o sucesso dos projetos do novo governo; i) as sucessivas vitórias eleitorais do novo governo criaram uma legalidade e uma legitimidade que não encontra paralelo na história venezuelana. A vitória das propostas do MVR e dos demais partidos de esquerda na Assembléia Constituinte de 1999 gerou uma nova institucionalidade, que acabou fortalecendo as iniciativas do governo federal; j) o programa de governo de Chávez e as diversas medidas implantadas após 1999, com um conteúdo antineoliberal, resgatando um projeto de desenvolvimento nacional com participação decisiva do setor estatal na condução das transformações econômicas, contrapondo-se ao processo de privatizações que estava em curso desde os anos 1990, defesa da soberania nacional, crítica à postura de submissão e dependência em que se encontrava a Venezuela, elaboração de uma política de defesa nacional, são motivos que também contribuíram para ampliar o apoio do novo governo entre os setores militares; k) existe uma liderança que, apesar de ter nascido dentro das Forças Armadas, conseguiu tornar-se uma referência para a esmagadora maioria dos pobres do campo e da cidade. Essa combinação de liderança política e militar com uma autêntica vocação democrática e popular também ajudou a aglutinar, em torno da figura de Hugo Chávez, setores civis e militares que se uniram na construção da atual “aliança cívico-militar2. Na avaliação de Harnecker, são esses os fatores que têm garantido o apoio dos militares ao governo do presidente Hugo Chávez Frias. Ainda segundo essa autora, durante o golpe de abril de 2002 cerca de duzentos oficiais, entre generais, almirantes, coronéis, tenentes-coronéis e oficiais subalternos, participaram ativamente das ações contra o governo. Naquele ano, o número de oficiais nas Forças Armadas era de 8 mil, o que leva à conclusão de que a maioria da oficialidade não participou da tentativa fracassada de derrubar o presidente. Ainda segundo a autora, os dois únicos oficiais golpistas de alta graduação com uma efetiva posição de comando durante essa ação foram o chefe do Estado Maior, general Ramírez Pérez, e o comandante do Exército, general Vasquez Velasco. Entre
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alguns dos oficiais que se destacaram na defesa da legalidade e do governo Chávez estão o general Raúl Baduel, na época comandante da 42ª Brigada de Infantaria de Pára-quedistas de Maracay (mais tarde ministro da Defesa e hoje reformado e no campo oposto ao de Chávez), o general Jorge Luis Garcia Carneiro, comandante da 3a Divisão de Infantaria do Exército, o coronel Jesús del Valle Morao Cardona, o general de Brigada Wilfredo Ramón Silva, comandante da 3ª Divisão da Infantaria do Exército da Guarnição de Caracas, o general Virgilio Lameda, comandante da 31ª Brigada de Infantaria do Forte Tiuna, o general de Brigada da Guarda Nacional Luis Felipe Acosta Carlez, subdiretor da Escola de Formação de Oficiais da Guarda Nacional, os tenentes-coronéis Jesús Manuel Zambrano Mata e Francisco Espinosa Guyón, alunos da Escola Superior do Exército, e o capitão Manuel Gregório Bernal, da companhia de Honra 24 de Junho, de Carabobo3. Já Rodolfo Sanz, em seu livro Dialéctica de una victoria, avalia que os motivos que levam um setor majoritário das Forças Armadas a apoiar ativamente o governo, ou a se recusar a atuar de maneira ilegal em qualquer conspiração golpista, são: a) a aprovação, na Constituição, do artigo 330, que garante o direito de voto aos militares, fato que estimulou ainda mais o debate sobre os rumos políticos do país no interior das Forças Armadas; b) as inúmeras iniciativas governamentais dirigidas por militares, geralmente oficiais de carreira, que valorizaram a instituição Forças Armadas, diminuindo a visão predominante em muitos círculos de que tal instituição teria como tarefa única ou principal a defesa do território e a repressão contra os movimentos da classe trabalhadora. A participação dos militares no Plano Bolívar 2000, uma ação coordenada principalmente pelo Exército e pela Guarda Nacional com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento econômico e social local, que atingiu praticamente todos os Estados do país, com intervenções sociais nas áreas de educação, saúde, infra-estrutura, cultura, cooperação agrícola, etc., acabou se tornando a primeira experiência massiva, nacional, de participação de soldados em atividades de trabalho comunitário/social; c) a insistência do presidente Hugo Chávez em afirmar que as Forças Armadas são “a expressão do povo em armas”, buscando derrubar o muro invisível que em outro momento separou civis de militares; d) o respeito e a defesa intransigente da Constituição Bolivariana pelo presidente, pois esta foi fruto de um processo legal e legítimo, aprovada pela maioria esmagadora do povo venezuelano, criando uma institucionalidade que favorece a implementação de muitas propostas do governo; e) a ruptura da intermediação entre o presidente da República e os soldados. Chávez fez a opção de falar diretamente com os soldados e com os oficiais menos graduados, não se submetendo a reuniões somente com uma minoria de membros do alto comando das Forças Armadas. Esse contato direto contribuiu, segundo o autor, com a diminuição/elimi-
nação do preconceito que alguns setores militares alimentavam contra Chávez; f ) as mudanças no comando de guarnições militares consideradas estratégicas numa possível situação de insubordinação ou mesmo tentativa de golpe militar4. Apesar de reconhecer que o governo da Venezuela teve bastante habilidade para manter o apoio das Forças Armadas, Sanz afirma que a consolidação desse processo − chamado de “aliança cívico-militar” − só virá a ocorrer após a tentativa de golpe em abril de 2002, quando ficou comprovada a participação do governo dos Estados Unidos e, também, a falsidade das informações veiculadas pelos principais órgãos de comunicação de massa sobre os conflitos que ocorreram em Caracas durante os dias 11, 12 e 13 de abril daquele ano, quando partidários do governo foram responsabilizados pelo assassinato de várias pessoas no centro da capital5. O mesmo autor também afirma que antes do golpe de 2002 havia muitas dúvidas e incertezas em relação ao apoio das Forças Armadas ao governo, pois a capacidade de mobilização da classe dominante venezuelana acabava tendo muita influência em determinados setores civis e militares. Rodolfo Sanz insiste em que houve, da parte das forças que apoiavam o governo, um certo menosprezo e uma subestimação da força dos setores mais conservadores e antidemocráticos, o que resultou no afastamento e na prisão de Hugo Chávez pelos golpistas, durante 48 horas. Em sua avaliação, esse momento de 2002 foi decisivo para a disputa existente no interior das Forças Armadas. Sanz conclui que o governo saiu vitorioso desse processo, mas procura tirar algumas lições para compreender o porquê da participação de setores importantes do Exército, da Guarda Nacional, da Marinha e da Aeronáutica no golpe. Segundo ele, os principais fatores que acabavam estimulando a oposição ao governo de Hugo Chávez no seio das Forças Armadas eram: a) uma certa tradição anticomunista, forjada durante a luta contra os movimentos guerrilheiros dos anos 1960, em que muitos oficiais acabavam sendo influenciados pela doutrina de contra-insurgência dos manuais militares estadunidenses; b) a aproximação com Cuba e com Fidel Castro. Os setores mais conservadores exploraram o fato de que a pequena ilha caribenha teve um papel importante no apoio político, militar e material aos movimentos guerrilheiros venezuelanos durante a década de 1960, além de denunciarem a tentativa de Chávez de implantar o “comunismo” no país; c) a posição do governo em relação ao conflito colombiano. Foi bastante divulgado pelos meios de comunicação de massa, majoritariamente antichavistas, que o presidente vene-
zuelano tinha boas relações e estava financiando as guerrilhas colombianas das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia − Exército do Povo (FARC-EP) e Exército de Libertação Nacional (ELN). Dizia-se que o governo dava abrigo aos guerrilheiros, que agiam livremente no território venezuelano. O governo teve bastante dificuldade para rebater as acusações e defender sua posição de não-intervenção no conflito colombiano, afirmando que a Venezuela estava à disposição para ajudar a construir uma solução política para ele, mas não iria participar de nenhuma ação militar contra qualquer força beligerante; d) as visitas de Chávez ao Iraque e outras nações claramente opostas à política exterior dos Estados Unidos também preocupavam setores militares venezuelanos, pois o governo estava levando o país a um enfrentamento com a principal potência imperialista da época, e isso trazia muita incerteza e insegurança para oficiais superiores que tradicionalmente viam nos Estados Unidos um aliado; e) a utilização, por Chávez, da expressão “Revolução pacífica, mas não desarmada” soava como uma ameaça, uma provocação para muitos que se opunham ao governo. Segundo Sanz, o presidente venezuelano reiterou diversas vezes: “Não sou Allende nem esta Revolução está desarmada. Esta é uma Revolução pacífica, mas não desarmada; tem aviões, tanques de guerra e outras coisas mais. Por isso, que nossos inimigos não se equivoquem...”. Tal afirmação levou os setores oposicionistas a dizer que Chávez estava preparando a implantação de uma ditadura militar no país; f ) a utilização do uniforme militar de Tenente-Coronel do Exército Venezuelano em várias aparições públicas foi interpretada pela oposição como uma demonstração de disposição para qualquer tipo de enfrentamento, mesmo que de natureza militar, e isso soou como um questionamento da própria hierarquia militar, pois inúmeros oficiais conservadores, principalmente de patentes superiores à de Chávez, ficavam extremamente incomodados e inconformados em receber ordens de um “subalterno”.6 Os elementos que apresentamos, de forma limitada e incompleta, visam estimular uma reflexão sobre o papel das Forças Armadas na chamada “Revolução Bolivariana”. Temos clareza de que são muitas as contradições presentes nas transformações sociais, econômicas e políticas em curso na Venezuela, mas não podemos ignorar que algo de novo acontece naquele país, pois o nível de consciência política do proletariado e das massas populares, bem como sua capacidade de intervenção ativa e organizada das disputas e conflitos cotidianos, passaram por mudanças significativas nos últimos dezenove anos.
Notas 1 HARNECKER, Marta, Venezuela: militares junto al pueblo, Caracas, Ministerio de Comunicación e Información, 2002, p. 08-12. 2 Id., ib., p. 08-12. 3 Id., ib., p. 13 e 222. 4 SANZ, Rodolfo, Dialéctica de una victoria, Los Teques: Editorial Nuevo Pensamiento Crítico, 2003, p. 118 a 126. 5 Os detalhes sobre os bastidores da tentativa de golpe civil-militar contra o presidente Hugo Chávez podem ser encontrados no livro de Eva Golinger, El código Chávez, Havana: Editorial de Ciências Sociales, 2005. 6 SANZ, Rodolfo, op. cit., p. 120-123.
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VENEZUELA
Trajetória bolivariana e engajamento antiimperialista Carlos Cesar Almendra Professor do Centro Universitário Fundação Santo André
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esde a queda do Leste Europeu, a esquerda mundial vem procurando novos caminhos para combater o imperialismo vigente. Em nosso continente, esse desafio também está na ordem do dia. Contudo, a partir da explicitação do rumo conservador do governo Lula, grande parte da militância da esquerda brasileira e latino-americana passou a nutrir suas esperanças, sobretudo, no governo Hugo Chávez na Venezuela. É nossa intenção, neste pequeno ensaio, esboçar uma sucinta análise sobre a trajetória do líder e seu movimento político que, para muitos, passou a ser o principal referencial – quando não o próprio paradigma – de combate antiimperialista. Para que possamos entender aquilo que, a partir de 1999, passou a ser comumente conhecido pela grande imprensa internacional como o “Fenômeno Chávez” ou “Furacão Chávez”, faz-se necessário entender que a ascensão e as esperanças agora depositadas no líder venezuelano só podem ser compreendidas com base em três aspectos fundamentais: − recorrer à própria história para entender o processo que culminou no chavismo; − entender a particularidade da base material venezuelana, que difere − e muito − da dos demais países latino-americanos neste momento e;
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− verificar como a Venezuela pode contribuir para se pensar num referencial de engajamento nas lutas pelo socialismo no século XXI. Em que pese a brevidade deste artigo, trataremos destes três aspectos de forma conjuminada. A trajetória da família Chávez é marcada pela luta contra a oligarquia do seu país. Seu tataravô, Pedro Pérez Pérez, fez parte do Exército Soberano do Povo, guerrilha comandada por Ezequiel Zamorra, que lutava contra a oligarquia, defendia os movimentos de camponeses e militares e em favor de uma extensa reforma agrária e da democracia direta. Seu bisavô, Pedro Pérez Delgado, fez parte do exército que derrubou no final do século XIX o então presidente da república. O pai de Chávez se envolvia em discussões sobre educação no partido social-cristão Copei, de tal modo que a família tinha uma tradição de atividades políticas. Enquanto no Brasil, desde a introdução, na década de 1950, da concepção da Doutrina de Segurança Nacional, sob orientação dos Estados Unidos, – ossificada sobretudo depois do golpe de 1964 –, na Venezuela, no período em que Hugo Chávez fez parte da Academia Militar, as discussões abarcavam temas como o marxismo, o papel da mulher na sociedade e a
função das Forças Armadas no jogo político nacional. Além disso, “os oficiais eram obrigados a cursar disciplinas como sociologia, história e humanidades nos principais centros de excelência da Venezuela, onde se discutiam as teses comunistas, bem como as revoluções e contra-revoluções na América Latina, o imperialismo norte-americano e as alternativas dos países subdesenvolvidos para manter a soberania nacional em meio aos dois pólos da Guerra Fria”1. Quando fez parte do Batalhão de Caçadores no interior do país, Chávez teve a oportunidade de estudar os livros marxistas e nacionalistas que influenciavam os guerrilheiros de seu país. Havia duas pessoas que Chávez admirava e que conheceu pessoalmente: uma era Juan Velasco Alvarado, que chegou ao poder do Peru em 1968 por golpe de estado e “fez do antiimperialismo sua plataforma de poder, expropriando os bens de empresas norte-americanas e realizando uma reforma agrária que beneficiou 375 mil famílias rurais”2, a outra era o presidente do Panamá, o general Omar Torrijos, responsável pelo acordo com os Estados Unidos de devolução do canal do Panamá aos panamenhos. Para Hugo Chávez e parte da esquerda venezuelana, prevalece a idéia de que as lutas empreendidas naquele país passam necessariamente pelo viés do ideário bolivarianista, que se assenta sobre três figuras centrais: − El Libertador, ou seja, o próprio Simón Bolívar, que atuou nas lutas pela libertação da Venezuela e da Colômbia (1819), do Equador (1822) e da Bolívia (1825); − Simón Rodriguez, professor de Bolívar, que na década de 1820 defendia uma educação de caráter igualitário, incluindo aí os filhos de negros e de índios, num momento no qual se mantinha a escravidão. Defendia também que a América deveria desenhar sua própria identidade e não simplesmente imitar as grandes potências; − Ezequiel Zamorra, líder popular do século XIX, tinha verdadeiro horror à oligarquia e defendia que os movimentos de camponeses e militares deveriam lutar pela reforma agrária e pela democracia direta. A respeito do mais popular entre eles, assim observa Graciela Soriano na introdução do livro de Bolívar: homem de seu tempo, desejou transformar de uma só vez as forças sociais e as instituições, sem ter em conta que estas são vazias se aquelas não as sustentam nem as movem. O destino de Bolívar encontrava-se pois condicionado pela necessidade histórica de providenciar muito em pouco tempo3.
Vale lembrar os três libertadores empreenderam suas lutas no início do século XIX, portanto num período histórico em que as lutas progressistas na América Latina significavam lutar contra a metrópole em favor da independência e a obra marxiana sequer existia. Já no século XX, inicialmente a esquerda venezuelana estava orientada pelo Partido Comunista Venezuelano (PCV), amalgamado com as teses stalinistas
da III Internacional, que preconizavam a América como um continente de restos feudais e cujo partido tinha por tarefa fazer uma aliança com a burguesia nacional progressista. Assim como foi o caso dos demais países latinos, encontrar uma burguesia nacional progressista era como achar uma agulha num palheiro, pois o que se encontrava de fato era uma plutocracia repressora desde os tempos do Pacto de Punto Fijo 4. Desse modo, não demorou muito para surgirem as primeiras dissidências políticas. Entre os partidos que surgiram estão a Vanguarda Comunista (VC), o Movimiento al Socialismo (MAS)5, La Causa Radical (LCR)6, o Partido da Revolução Venezuelana (PRV)7 e a Aliança Revolucionária de Militares Ativos (Arma)8. Quanto à militância de Chávez, segundo seu próprio depoimento, seu engajamento político ocorreu devido a sua primeira grande crise existencial em dezembro de 1977, quando percebeu que os camponeses pobres se engajavam na guerrilha e eram massacrados por outros camponeses pobres que, na ausência de emprego, entravam para o exército e recebiam as funções de repressão popular. Por outro lado, os guerrilheiros, quando faziam suas emboscadas, também fustigavam os militares. Em suma, eram pobres fardados lutando contra os pobres não-fardados, em tempos do Pacto de Punto Fijo. Dada essa situação e a corrupção generalizada que ocorria no governo, Chávez tentou articular um grupo político no interior das Forças Armadas para sublevação – o Exército de Libertação do Povo Venezuelano (ELPV) –, mas a iniciativa não prosperou. Depois de alguns anos, o desdobramento da primeira tentativa resultou na fundação – juntamente com outros cinco soldados – do Exército de Libertação do Povo da Venezuela, que se transformaria, em 17 de dezembro de 1982 – dia do bicentenário do nascimento de Simón Bolívar –, no Exército Bolivariano Revolucionário (EBR-200) –, cujo intuito era promover uma “união cívico-militar” e lutar por eleições populares, reforma agrária, soberania do país e contra a oligarquia. Quanto à união cívico-militar, essa é uma expressão muito recorrente na política venezuelana, cujo foco central é o estabelecimento de uma aliança entre militares e não-militares. Tais premissas baseiam-se em três fatores: − o perfil da formação dos militares de esquerda no país que, inclusive, vêem nas lutas da Coluna Prestes e na história pessoal de Luiz Carlos Prestes um referencial prático do engajamento do militar nas questões políticas; − diante da carência da organização popular, ofuscada na vigência do Pacto de Punto Fijo pela repressão ao PCV e demais partidos e movimentos sociais, essa unidade tem se mostrado indispensável para o êxito da revolução bolivariana e; − para que ocorra uma confluência entre o conhecimento prático militar e o indivíduo não-militar, Hugo Chávez criou as milícias não-militares, cujo intuito é defender e aprofundar as conquistas da revolução bolivariana. Os vários partidos políticos de esquerda, com o pasPUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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manter praticamente a mesma estrutura administrasar dos anos, tiveram contatos direta ou indiretamente com tiva até então existente. Formalmente, a empresa esChávez e o EBR-2009, até culminar na tentativa do golpe de taria subordinada ao Ministério das Minas e Energia estado frustrado, em 1992, o que levou à detenção de Chávez (MME). No entanto, dado o porte e o crescimento e seus aliados. da estatal, a partir de 1983, a situação se inverteu e a Nota-se, portanto, que a figura de Simón Bolívar é corporação rapidamente adquiriu autonomia não só presença quase que obrigatória na práxis política venezueladiante do Ministério, como também em relação ao poder público. Logo a PDVSA tratou de limitar seus na. Assim como Caio Prado Júnior no Brasil e José Carlos deveres fiscais, mediante a criação de uma agenda Mariátegui no Peru se empenharam em contrapor-se à visão cada vez mais divorciada do Estado. Rapidamente as hegemônica stalinista de interpretação da realidade de seus pagrandes companhias transnacionais estabeleceram as íses, a esquerda venezuelana teve seus interlocutores. Portanto, estratégias de mercado da gigantesca petroleira venepara o entendimento dos embates que se colocam na Venezuezuelana. Formalmente pública, a empresa distanciava-se cada vez mais de seus objetivos iniciais. Os próla hoje, é necessário tomar como relevante a preocupação que prios funcionários, mesmo os de graduação inferior, seus partidos têm com os ideais preconizaseguiam uma política salarial própria, dos pelo bolivarianismo, sobretudo porque criando um padrão de vida muito supeos pensamentos de Simón Bolívar influenrior ao da maioria da população. Nessa O que o governo Cháciam, além dos venezuelanos, o movimento época, a PDVSA ficaria conhecida como vez fez e que nenhum ‘um Estado dentro do Estado’13 . guerrilheiro das FARC na Colômbia. Desse modo: havia ousado... foi O que o governo Chávez fez e que afastar os diretores a história do bolivarianismo na Venenenhum havia ousado até então foi afastar zuela é também a história da esquerda os diretores ligados ao imperialismo estaduligados ao imperiatraída deste país, uma esquerda que pasnidense que forneciam petróleo da PDVSA sou anos à margem da política negocialismo estadunidense por preços inferiores aos do mercado em da no Congresso e nas instâncias oficiais do poder. Parte dela veio se refugiar nos que forneciam petró- troca de privilégios próprios − alguns até Andes na década de 1960, onde nascecomprando propriedades em Miami − e leo da PDVSA por ram as primeiras células guerrilheiras colocou a empresa sob controle do próprio inspiradas na revolução cubana. Assim governo. Se as receitas do petróleo movipreços inferiores... nasceu uma ideologia que fundia o somentam 80% da economia do país, connho de Simón Bolívar com as teorias seqüentemente teriam a incumbência de socialistas que, à época, se importavam da Europa e da Rússia10. impulsionar o projeto bolivariano. Por uma questão de princípio, a esquerda internacioNo que concerne à economia venezuelana, o país têm nal sempre defendeu a supressão dos pagamentos para a conuma peculiaridade ímpar que a difere das demais nações laversão dessa massa monetária sob a forma de investimentos tino-americanas: é o quinto maior produtor de petróleo do sociais. Mais uma vez, aqui a realidade venezuelana é caso mundo, sendo que a estatal PDVSA é a empresa mais rentável ímpar. Segundo Wilson Cano: “a dívida externa, que passa da América Latina. Devido à guerra dos Estados Unidos con(em US$ bilhões) de 34 em 1988 para 41 em 1993, é partra o Iraque, a diminuição da oferta de petróleo pela Opep e cialmente amortizada com recursos de privatizações e atinge a elevação de preços11 em parte devido à pressão e influência US$ 31,6 em 1998”14. No final de 2002 a dívida era de do governo Chávez na Opep, propiciou-se uma situação em US$ 22,5 bilhões para um PIB de US$ 94,3 bilhões, uma que esse país tem divisas suficientes para continuar pagando relação dívida pública/PIB no patamar de 29%, portanto, os juros da dívida externa e ao mesmo tempo investir em escomais favorável que a situação brasileira, no patamar de 56% las e hospitais públicos, promover a reforma agrária, comprar na época. armamentos, diminuir impostos e a taxa de juros, aumentar o Segundo Jorge Giordani – ministro de Planejamento salário mínimo e desenvolver diversos projetos sociais12. e Desenvolvimento – o serviço da dívida consome US$ 4 biDesde 1º de janeiro de 1976, o petróleo era nacionalilhões ao ano, cuja plena cobertura se dá pela receita petroleira, zado no país, pois o estado visava aumentar sua participação não configurando, portanto, a preocupação econômica cenna receita fiscal através da empresa por ele criada, a PDVSA, tral do governo. Para o ministro, as preocupações centrais são e, além disso, cessar a política de concessões. Porém: o combate à pobreza e a desnacionalização. E prossegue afirmando que se o governo tivesse se negado a pagar esses juros, As 15 concessionárias privadas existentes no país seguramente o investimento internacional teria cessado15. – entre elas a Exxon, a Shell e a Mobil – logo inteAqui cabem algumas observações: com relação ao comgraram seus organogramas, atuando como filiais no bate à pobreza, a imprensa alternativa e, algumas vezes, até mesnegócio. Argumentando-se que a nacionalização não mo a grande imprensa noticiam os empreendimentos sociais poderia acarretar grandes abalos, o governo decidiu
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positivos do governo Chávez; e no tocante à desnacionalização, o foco concentrou-se na maior empresa do país e, assim: de imediato um ex-guerrilheiro, Ali Rodrigues, passou à presidência da PDVSA e demitiu sumariamente milhares de diretores e gerentes – cerca de 18 mil dos 42 mil funcionários da empresa. Também extinguiu unidades fantasmas da estatal e transformou seus prédios em equipamentos sociais, como a Universidade Bolivariana. Conforme o presidente enfatizou na ocasião, ‘a partir de agora a PDVSA deixará de ser uma caixa-preta, um Estado dentro do Estado, e os recursos do petróleo servirão ao bem-estar dos venezuelanos e ao desenvolvimento do nosso país16.
internos, apoiados por seus aliados internacionais, sabotaram refinarias, oleodutos, portos, e passamos mais de um mês sem exportar nem uma gota de petróleo, o que fez com que perdêssemos 10 bilhões de dólares nesses dois meses de greve. Apesar disso, pagamos sem falta a dívida. Pagamos desses 25 bilhões de dólares quase 20 bilhões e devemos quase o mesmo. Isso é ético? – pergunta-se –; que responsabilidade têm os credores nisso? Eles são inocentes, enquanto às vezes alguém como presidente anda buscando um milhãozinho de dólares para umas escolas que não têm água ou uns 5 ou 10 milhões de dólares para aumentar a pensão dos idosos, os que governaram a Venezuela estão muito ricos vivendo no exterior17.
No que tange ao investimento estrangeiro, até pelo fato de Chávez ser visto pelo empresariado mundial como um hoEm suma, no que tange à dívida externa, vale ressaltar mem de esquerda, ligado a Fidel, as inversões internacionais são que a Venezuela passa por uma situação singular, pois não exismodestas. Para um país que no início do governo importava te nenhum caso anterior, entre os países do chamado “Terceicerca de 70% dos alimentos, essa é uma empreitada nada fácil. ro Mundo”, que consegue manter os pagamentos dos juros da Sem dúvida, o governo venezuelano procura contar com o apoio dívida externa e, ao mesmo tempo, não solapar sua economia dos países vizinhos para a realização de alguns investimentos. interna, realizando maciços investimentos sociais. Por mais É nesse diapasão que devemos entender as seguintes iniparadoxal que possa parecer, o país pode se dar o luxo de não ciativas: intercâmbio com Cuba em diversas áreas, como fornepromover uma ruptura frontal com o capital, para continuar cimento de combustível com preços subsidiados e construção acumulando forças internas – tarefa vital para a esquerda em de refinarias, tendo em contrapartida: o recebimento de mais geral do país – e diversificando sua base produtiva até chegar de 20 mil médicos para atendimento popular nas periferias das o momento adequado para isso. grandes cidades venezuelanas; a aplicação De qualquer maneira, é preciso leda metodologia pedagógica cubana para alvar em conta que os preços do petróleo são fabetização em massa, remédios populares regulados pelo mercado internacional e o subsidiados; o estabelecimento da Alba no capital pode, no futuro, tentar minar a re...os preços do pelugar da Alca; a criação da Petrosul juntavolução bolivariana por aí. Basta imaginar mente com Brasil e Argentina, envolvendo tróleo são regulados que, no final do governo de Rafael Caldera as empresas nacionais petrolíferas de cada (1993-1998), o barril de petróleo custava pelo mercado interpaís e o avanço tecnológico de prospecção U$ 21,91 em janeiro de 1997 e chegou nacional e o capital e refino conjunto; a tentativa de iniciar um ao patamar de US$ 8,74 em dezembro de projeto nuclear buscando apoio com a Ar1998. Para um país cuja economia girava pode, no futuro, gentina e a consolidação da TV multiestatal em torno dessa mercadoria, isso acabou sigtentar minar a revo- nificando um estado de degeneração para Telesur, juntamente com Argentina, Cuba e Uruguai, que já emitiu seus primeiros sinais lução bolivariana ... quase todas as classes sociais. Contudo, no a partir de 24 de maio de 2005 – aniversámercado internacional, nestes últimos anos, rio do nascimento de Simón Bolívar – e se não há nenhuma sinalização de que o preço estabelece em definitivo em setembro, cujo do petróleo sofra uma queda considerável. objetivo é romper o monopólio midiático Mesmo tendo chegado ao ápice de US$ das cadeias internacionais, em especial a CNN em espanhol. 145,29 em julho de 2008 e recuado nesse mesmo mês para O fato de a dívida externa não ser o ponto nevrálgico US$ 129,10, os próprios órgãos internacionais do capital, do país, não quer dizer que seja um problema a ser desconsicomo FMI, OMC e Banco Mundial, apontam para a tenderado. Em agosto de 2004, Chávez fez a seguinte declaração dência, nos próximos anos, de mais reajustes médios no barril na Sessão Extraordinária da Associação Latino-Americana de de petróleo, podendo chegar possivelmente, nos próximos dez Integração (Aladi): anos, a aproximadamente US$ 200,00. À medida que os países produtores limitam suas extraNem sequer falo por meu país, que não é o caso mais ções e concomitantemente as reservas internacionais vão se grave no continente latino-americano; mas, para dar esgotando, a tendência é a majoração dos preços dos barris, uma idéia, quando chegamos ao governo, a Venezueo que gera para a Venezuela divisas vitais para a manutenla tinha uma dívida externa de 25 bilhões de dólares ção do projeto econômico chavista. Sem dúvida, não é à toa mais ou menos; pagamos sem falta, mesmo em tempos de sabotagem petrolífera, quando os terroristas que a discussão dos biocombustíveis extrapola as fronteiras do PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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Brasil, chegando sobretudo aos Estados Unidos. Estes são os êxito –, defendeu e continua defendendo com mais vigor a soberania e autonomia da nação, buscando uma integração polímaiores interessados em se livrar do fornecimento venezue18 tica e econômica com os demais países latino-americanos. lano , ao mesmo tempo que os ianques não podem se dar Enquanto não tinha arrimo social suficiente, foi acumuo luxo de sair do Iraque, uma vez que o propósito central de lando forças nas diversas instâncias institucionais políticas através expropriar o petróleo estatal iraquiano – terceira maior reserva dos pleitos. Após ter vencido os cinco primeiros deles, anunciou do mundo – pelas empresas privadas, ligadas principalmente as Leis Habilitantes20, explicitando a opção do governo pelas caao vice-presidente Dick Cheney, foi bem sucedido e tal emmadas sociais mais baixas, e cindindo de vez a opinião pública até preitada deve ser mantida sob controle das Forças Armadas, culminar na tentativa frustrada do golpe de abril de 2002. contra possíveis ataques de grupos guerrilheiros que tenham o De qualquer modo, mesmo com o apoio da maior parintuito de retomar o petróleo roubado. te do exército e da maioria da população, o golpe foi dado, Contraditoriamente, foi uma crise econômica que admostrando que com o capital toda prudência é necessária. veio da queda do preço de petróleo que serviu para garantir a Mas Chávez gosta de comparar sua administração com a expevitória de Chávez na eleição presidencial. Assim, desde a sua riência chilena de Allende, e num discurso na Avenida Simón chegada ao poder em 1º de janeiro de 1999, foi adquirindo Bolívar, no centro de Caracas, afirmou, em força política para suprimir a constituição 13 de abril de 2004, um ano após o golpe: vigente e tecer uma nova, como estratégia “enquanto a revolução chilena era pacífida sua “revolução bolivariana”. Ao mesmo ...Chávez ataca ca e desarmada, a nossa, com o apoio do tempo, foi crescendo o arrimo social popuExército, é pacífica e armada!”. cotidianamente o lar para sustentar e aprofundar as conquistas Arrimado na “institucionalidade do bolivarianismo. Desse modo, promoveu imperialismo iane legitimidade”, Chávez ataca cotidianae venceu oito pleitos no país: “1) plebiscito que em seus discur- mente o imperialismo ianque em seus dispara convocação da Assembléia Constituincursos e salienta que o Brasil deve tomar te em abril de 1999; 2) eleição dos deputasos e salienta que o o mesmo caminho bolivariano, colocando dos constituintes em julho de 1999; 3) refeo presidente Lula em situação embaraçoBrasil deve tomar rendo para aprovação da nova Constituição sa. Não é à toa que o governante brasileiro em dezembro de 1999; 4) eleição geral para o mesmo caminho aconselhou o “companheiro” venezuelano presidente da República, governadores e dea adotar um tom menos radical perante os bolivariano... putados em julho de 2000; 5) eleição para Estados Unidos. prefeitos em dezembro de 2000; 6) plebisAssim, a Venezuela se tornou a cito sobre mudanças na apodrecida estrutumaior pedra no sapato do governo estadura sindical em outubro de 2001; 7) referendo revogatório em nidense na América do Sul. Tamanha é a preocupação que, agosto de 2004; 8) eleição para governadores e prefeitos em numa visita ao Brasil, a secretária de estado dos Estados Uninovembro de 2004”19. dos – Condollezza Rice – afirmou à imprensa brasileira que as Soma-se a isso, ainda, a vitória da reeleição em 2006 democracias na América Latina são frágeis e que abrem camicom 62,9% contra 36,8% da oposição unificada em torno de nho para o narcotráfico. Além disso, elogiou o governo Lula e Manuel Rosales e, em seguida, o anúncio de unificação dos afirmou que Chávez deveria ser “lulalizado”21. Tal elogio tem 23 integrantes de sua coalizão em um único partido, o Parrazão de ser: afinal de contas, além de ter aprofundado o motido Socialista Unido da Venezuela – PSUV – para acelerar a delo neoliberal de FHC, Washington vê em Lula o arquétipo revolução socialista. Por último, a primeira derrota sofrida no exemplar de presidente que deseja para a América Latina, enreferendo de dezembro de 2007, que veremos adiante. quanto Chávez é o seu antípoda. Utilizando-se das próprias prerrogativas da democracia Na impossibilidade de chamar Hugo Chávez de ditaburguesa em voga, o governo Chávez arrebentou a corrompidor, e reconhecendo que a pobreza extremada pode fazer com da e subsumida plutocracia vigente, dando um nó nos opoque aqueles que “só têm os grilhos a perder” – para utilizar sitores internos e externos, uma vez que tudo o que foi feito a expressão do final do Manifesto Comunista – possam optar ocorreu dentro da “institucionalidade e legitimidade”, ou seja, por caminhos não afáveis ao imperialismo, agora Washington conforme as regras capitalistas internacionais preexistentes. optou por tratar o presidente venezuelano pela denominação Conseguindo driblar com grande habilidade os ca“populista radical”. Tal caracterização não pode ser aplicada minhos sinuosos do jogo político capitalista, Chávez obteve ao governo Chávez, uma vez que tudo foi votado e vencido apoio das nações latino-americanas no golpe de abril de 2002, conforme a democracia burguesa roga, tornando-se esse arguobteve o apoio de Fernando Henrique Cardoso na paralisação mento risível. Nas palavras de um importante militar ianque: dos 63 dias, não apresenta motivos para uma invasão militar dos Estados Unidos – o que seria diferente se Hugo Chávez esEstamos vendo que as instituições democráticas na tivesse no poder desde 1992, caso seu golpe tivesse alcançado região estão sendo minadas por movimentos populis-
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tas, e o perigo é maior quando as lideranças políticas eleitas utilizam o apoio popular que obtiveram para minar ainda mais essas instituições. Temos visto também que essas democracias têm falhado em atender às demandas das classes marginalizadas. Essa subversão da democracia não é apenas uma questão política, já que põe em risco a segurança e a estabilidade dos governos, num ambiente em que podem florescer guerrilhas urbanas e grupos terroristas22.
Diante do que foi exposto até aqui, as perguntas que ficam no ar são: A Venezuela está caminhando e colaborando para a construção do socialismo no século XXI? É esse um novo paradigma de engajamento político de esquerda? Devido à brevidade deste texto, podemos aqui apenas traçar algumas rápidas considerações a esse respeito. Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que a teoria marxiana não é nem um manual de regras pronto e acabado que serve para explicar todas as situações possíveis e em qualquer momento da história. Em segundo, o próprio Marx no Dezoito Brumário: “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua vontade livre; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, mas sob aquelas circunstâncias com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”23. É sob essa perspectiva que devemos olhar a idéia de inserção do bolivarianismo na concepção e nas lutas cotidianas de Hugo Chávez, além dos motivos já assinalados anteriormente. Quanto aos diversos grupos, movimentos populares, sindicatos e partidos de esquerda, estes devem aproveitar-se do momento de melhorias dos níveis de salário, emprego, saúde e educação pública – da alfabetização ao ensino superior – para exatamente educar-se e educar o máximo de pessoas possível na perspectiva da compreensão da importância do socialismo para a própria população. Além desses grupos verifica-se a existência dos círculos bolivarianos, que mobilizaram milhares de pessoas para o retorno do presidente após o golpe de abril de 2002: criados em 17 de dezembro de 2001, no 19º aniversário do MBR-200. (...) Estatutariamente, os círculos bolivarianos são grupos organizados, formados por sete a onze pessoas, que se reúnem para discutir os problemas da sua comunidade, canalizá-los para o organismo competente e buscar a solução. Funcionam à concepção de assembléias populares, em que se discutem, sobretudo, matérias de interesse local e problemas do dia-a-dia, e a prestação de serviços comunitários. (...) o presidente Hugo Chávez criou os círculos bolivarianos para dar capilaridade à sua revolução, criando agentes de difusão do pensamento bolivariano que alcançam os pequenos recantos da sociedade aonde os pesados braços do Estado não podem chegar24.
Calcula-se que quase 2 milhões de pessoas estão envolvidas nesses círculos, que boa parte de seus membros integram as milícias paramilitares e que em breve receberão os armamentos comprados pelo governo junto à Rússia e à Espanha. Esses círculos também já foram aos Comitês de Defesa da Revolução
(CDRs) de Cuba, mas o que os difere daqueles é que sua proliferação não está necessariamente sob o controle do governo. Eles se espalham rapidamente pelo país, juntamente com as mais de 200 rádios e TVs comunitárias, com o objetivo de defender o que foi conquistado até então, mas também de ir criando alternativas de decisões e cooperativismo para além do controle estatal. Ao explicar as razões dos avanços da revolução bolivariana, o presidente Hugo Chávez afirmou: “O elemento fundamental é a organização popular; eu a colocaria em primeiro lugar”25. Depois das vitórias conquistadas em todos os pleitos em que o projeto bolivariano foi colocado à prova, e com projetos sociais que estão se consolidando, Chávez enrijeceu seus discursos antiimperialistas e de integração latino-americana. O que veio à baila nos últimos tempos, para além do seu bolivarianismo, é o fato de ter, agora, o cacife e o estofo diplomático para apresentar-se como um humanista e socialista da “nova era”, como fez no seu programa televisivo dominical Alô Presidente de 20 de março de 2005. Contudo, após uma série de vitórias nas urnas, o governo sofreu uma derrota no final de 2007. Na empolgação de estar ganhando todas as votações, o plebiscito de dezembro de 2007 juntou as questões políticas com as econômicas para que fossem votadas conjuntamente. Na prática, buscou-se passar numa única votação a tentativa de reeleição ilimitada juntamente com redução da jornada de trabalho − que diminuía de oito para seis horas a jornada diária, ou para 36 horas a jornada semanal, além do que a jornada de trabalho no período noturno não poderia superar as seis horas diárias, ou 34 horas semanais. Ao não separar o joio do trigo – pois o governo aguardava uma nova vitória fulminante –, juntamente com a abstenção de 44,11%, houve uma vitória do “Não” no plebiscito, com 50,7% dos votos. Desse modo, Chávez não obteve a chance de concorrer ao terceiro mandato consecutivo – em nome da democracia –, ao mesmo tempo em que os trabalhadores deixaram de conquistar aquilo que seria a menor jornada de trabalho oficial do mundo, além das novas formas de propriedade que iriam se criar como a propriedade social, a propriedade coletiva e a propriedade mista. Assim, conforme constatamos, na atual democracia burguesa mundial: reeleição, tudo bem; re-reeleição, atentado contra a democracia26. Para finalizar, é importante também salientar que a Venezuela, através dos acordos firmados com Cuba na gestão Chávez, vem contribuindo para romper o bloqueio econômico que a Ilha sofre por imposição dos Estados Unidos. Esse bloqueio provocou dificuldades à economia cubana que se acentuaram devido ao fato de Cuba ter perdido o apoio da extinta URSS, nos anos 199027. Analisando os rumos e dificuldades da revolução cubana, Mészáros afirma: A revolução cubana demonstrou sua solidariedade, de forma mais tangível, com a causa da emancipação humana em muitas ocasiões. Mas solidariedade é uma rua de duas mãos. A solidariedade internacional tem condiPUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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ções de dar uma contribuição significativa para os próximos quarenta e cinco anos da revolução cubana28.
Desse modo, é assim que a revolução bolivariana de Hugo Chávez presta sua solidariedade ao povo cubano e se insere no sinuoso caminho do engajamento político para a construção do socialismo no século XXI, como um projeto novo tanto do ponto de vista de enfrentamento do capital bem como de ações concretas do ponto de vista da militância de esquerda. Sabemos muito bem que o discurso messiânico, o culto à personalidade, o centralismo democrático, o nacionalismo e a valorização do Estado não são sinônimos de socialismo. Porém, recordemos que episódios como a Tomada do Palácio de Inverno Russo, a Sierra Maestra Cubana e a Grande Marcha Chinesa foram exemplos históricos que devem ser estudados
pela militância. Isso não quer dizer, porém, que os embates atuais serão idênticos aos processos revolucionários ex-antequeda do Leste Europeu. Diante da paralisia e/ou do arrefecimento da práxis antiimperialista atual e a domesticação e modorra teórica/prática dos sindicatos e partidos no Brasil e no mundo, faz-se necessária a continuidade das lutas contra o capital. É nesse bojo e sob esse prisma que devemos ficar atentos ao processo que se passa na Venezuela chavista e bolivariana. Se esse processo não está à altura das necessidades de construção de socialismo que gostaríamos, miseravelmente é a sobrevivência cubana a duras penas, a luta de Evo Morales e seus camaradas no país mais pobre da América do Sul e a atual situação venezuelana que contamos atualmente. Ou, como já escreveu outrora Marx no Dezoito Brumário: Hic Rhodus, hic salta!29
Notas 1 UCHOA, Pablo. Venezuela – A encruzilhada de Hugo Chávez, São Paulo: Globo, 2003, p. 129. 2 Idem. 3 BOLÍVAR, Simón. Escritos políticos, Campinas: Editora da Unicamp, 1992, p. 36-37. 4 Com o fim da ditadura de Perez Jimenez (1948-1958), foi firmado um pacto que durou até 1998 – com o aval dos Estados Unidos –, que consistia num acordo de partilha do poder para as diversas frações da burguesia interna, cooptando os sindicatos e com a alternância do poder entre os partidos de direita AD e COPEI, isolando o PCV. 5 Fundado em janeiro de 1971, como dissidência do PCV, e em cuja definição inicial se colocava a visão crítica do marxismo, que deveria ser integrada com outras correntes progressistas do pensamento. Tornou-se um importante partido no país, lançando em 1973 a candidatura presidencial de Vicente Rangel (ex-vice presidente no período 1999-2007) e a do próprio Teodoro Petkoff em 1983. Em 1987, ocorreu sua fusão com o MIR, que havia abandonado a luta armada, e em 1993 apoiou a candidatura vencedora de Rafael Caldera (1993-1998), na qual Petkoff assumiu o ministério do Planejamento e apesar de ter abandonado o marxismo e se dizer socialdemocrata, acabou conduzindo a Agenda Venezuela, um plano econômico definido em acordo com o FMI. Quando o partido resolveu apoiar Chávez em 1998, Petkoff desligou-se do partido 6 Fundado em 1970, por um ex-guerrilheiro chamado Alfredo Manero, por ser um partido de massas e que se mantinha distante da ortodoxia do PCV. Em 1997, sofreu uma divisão, gerando o Partido Pátria para Todos (PPT), que fez parte da coligação que elegeu Chávez. 7 Douglas Bravo, fundador do PRV – que nos anos 1990 passou a se chamar Terceiro Caminho – assim relata os acontecimentos que culminaram no rompimento com o PC: “Nossa expulsão se dá porque reivindicávamos os elementos teóricos de Simón Bolívar, de Simón Rodrigues, de Ezequiel Zamora e de outros pensadores venezuelanos cujos princípios entravam em choque com a ortodoxia do pensamento soviético. Nós publicamos um documento chamado Marxismo-leninismo-bolivarianismo, onde pela primeira vez se colocou a questão da nacionalização do pensamento revolucionário” . 8 Grupo organizado fundado na Aeronáutica em 1983, cujo principal dirigente era o piloto de caça e major William Izarra, – afastado das atividades militares entre 1984 e 1989 por atividades esquerdistas – que por intermédio do comandante Luis Reyes Reyes, militante de La Causa R, conheceu Hugo Chávez. 9 No caso do PRV, foi por intermédio do professor universitário e membro do partido, Adán Chávez – irmão de Hugo Chávez – que se promoveu um encontro entre seu irmão, já uma liderança ascendente no interior do Exército, e Douglas Bravo, na cidade de Mérida, no início da década de 1980. 10 UCHOA, Pablo, op. cit., p. 105. 11 Passou de US$ 30,30 em outubro de 2003 para US$ 53,24 em outubro de 2004 (Fonte: “Oil Market Report (AIE)”, in Almanaque Abril [Mundo 2005] p. 32.), chegando ao pico de US$ 145,29 no início de julho de 2008, mas fechando o mês em US$ 127,10 (Folha de S.Paulo, 31/07/2008). 12 Ver: BORGES, Altamiro. Venezuela: originalidade e ousadia, São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2005, p. 11-12 e 35-36. 13 MARINGONI, Gilberto. A Venezuela que se inventa – Poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 106. 14 CANO, Wilson. Soberania e política econômica na América Latina, São Paulo: Unesp/Unicamp, 1999, p. 527. 15 MARINGONI, Gilberto. op. cit. p. 68. 16 BORGES, Altamiro. op. cit. p. 54. 17 Ver www.unidadepopular.org/chavez2.htm. 18 De 1997 a 2006, a participação do petróleo venezuelano no total de petróleo importado pelos Estados Unidos caiu de 17,4% para 10,4% (Almanaque Abril 2008, p. 628). 19 BORGES, Altamiro. op. cit. p. 25 e 26. 20 Anunciada em 13 de novembro e implantada a partir de 10 de dezembro, consistia num conjunto de 49 leis, entre elas aquelas que afrontavam os interesses burgueses envolvendo as leis de Terra, de Pesca e de Hidrocarburantes. 21 A Carlos Westendorp, um dos diplomatas mais experimentados da Espanha e que ocupa posto que lhe permite, em tese, fazer tal afirmação (embaixador em Washington). Foi publicada em 29 de março de 2005 em reportagem de José Manuel Calvo, correspondente do El Pais em Washington. 22 Fala do coronel David McWilliams, diretor de Relações Públicas do Comando Sul do Exército estadunidense, em nota à imprensa estrangeira em Miami, na Flórida. O Comando Sul é responsável por 30 países da América do Sul, da América Central e do Caribe (Folha de S.Paulo, 01/5/2005). 23 MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte, São Paulo: Editora Moraes, 1987, p. 15. 24 UCHOA, Pablo. op. cit. p. 213-216. 25 Brasil de Fato, abril de 2004. 26 O que dirão aqueles que se intitulam democratas, progressistas ou de esquerda, quando, ao que tudo indica, Álvaro Uribe na Colômbia puder concorrer ao terceiro mandato consecutivo? 27 Ver ALMENDRA, Carlos Cesar. “A situação econômica cubana diante da queda do Leste Europeu”, in Revolução Cubana – História e problemas atuais, COGGIOLA, Osvaldo (org.), São Paulo: Xamã, 1998. p. 135-154. 28 MÉSZÁROS, István. “Cuba: os próximos quarenta e cinco anos?”, in Margem esquerda, nº.2, São Paulo, Boitempo, 2003, p. 18. 29 “Aqui está Rodes, aqui salta”. No sentido figurado, significa: aqui é que está o essencial; aqui é que é preciso demonstrar.
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Avança a crise política na Bolívia Waldir Rodrigues Membro do Conselho Editorial do jornal Massas
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screvíamos este artigo, quando a crise política na Bolívia atingiu seu ponto mais alto. Fomos obrigados, inclusive, a acrescentar os fatos mais recentes e avaliá-los. Notamos que eles confirmaram ainda mais a linha de nossa análise. Uma crise de tal magnitude ganha importância para a classe operária internacional e para a maioria oprimida. Está em confronto um processo de lutas sociais que expressam a revolução e a contrarevolução. Ou a classe operária e os camponeses pobres derrotarão a oligarquia burguesa, ou esta os esmagará. É no fogo dos acontecimentos mais brutais que verificamos a impossibilidade de o governo Evo Morales encarnar a revolução. As posições aqui expressas são de nossa responsabilidade, mas procuramos nos fundamentar na imprensa do Partido Operário Revolucionário da Bolívia (POR), o jornal Massas. Não se pode ter uma análise consistente e uma crítica sólida sem que se parta do processo histórico da formação dos partidos políticos na Bolívia e dos grandes acontecimentos da luta de classes, do qual o POR boliviano é parte constitutiva. Desde antes da eleição de Evo Morales, o jornal Massas indicou que o MAS (Movimiento al Socialismo) constituiria um governo incapaz de derrotar a oligarquia e o imperialismo, que seria de crise, débil frente à violência dos bandos fascistas da oligarquia e repressivo fren-
te ao legítimo movimento das massas oprimidas. Nosso artigo tem a função de não só criticar, mas, sobretudo, de defender a transformação da grande propriedade capitalista em propriedade coletiva. É no campo da propriedade e do poder do Estado que se decidirá a crise atual.
Radiografia das condições do país e chegada de Evo à presidência A Bolívia é um país capitalista atrasado, de economia combinada (capitalista e pré-capitalista) e submetido à ordem imperialista. Teve sua história marcada pelo saque colonialista das riquezas minerais, adquiriu uma independência formal e se conformou num Estado republicano dependente das potências capitalistas e assentado numa débil democracia, correspondendo às relações econômicas existentes no país. Não pôde modificar sua condição na divisão internacional do trabalho de país exportador de matéria-prima. Como reflexo dessa situação, estruturou-se uma burguesia (quase que inteiramente comercial) dependente do imperialismo e conformada por interesses oligárquicos distintos. Sequer a democracia republicana se estabilizou. Os golpes militares sangrentos (Hugo PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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Bánzer, Garcia Meza, etc.) indicaram a fragilidade e a caricaEm janeiro de 2005, os protestos ganharam as ruas e tura da democracia republicana. os bloqueios voltaram com toda intensidade. A aprovação da Depois de duas décadas de aplicação da política neoliLei dos Hidrocarbonetos, que aumentou os impostos sobre a beral, as conseqüências foram terríveis para o país e o povo, já exploração do petróleo e do gás, provocou descontentamenempobrecido. As empresas estatais foram privatizadas, os reto generalizado, porque não assegurava o controle do Estado cursos naturais foram entregues às multinacionais, as empresobre a riqueza mineral, exigência do movimento social. A sas mineradoras (como a Comibol) foram fechadas e as parcas reivindicação de nacionalização do petróleo e do gás impulconquistas trabalhistas e sociais foram pisoteadas. Em nome sionou a luta de classes e obrigou a renúncia de Mesa e sua da “estabilidade da economia”, golpeou-se a maioria explorasubstituição por Eduardo Rodríguez, homem de confiança da por meio do desemprego massivo e do arrocho salarial. Mas dos Estados Unidos e indicado pela burguesia e pela Igreja. a resistência dos trabalhadores foi intensa: greves, bloqueios, Esse episódio também contou com o apoio de Evo Morales e ocupações, constituição de cabildos (assembléias populares). sindicalistas. As promessas – calendário de eleições, convocaÉ nesse quadro de miséria e de revolta dos oprimidos ção da Constituinte e rediscussão da Lei dos Hidrocarbonetos que ganharam força os movimentos camponeses e suas dire– foram usadas para refluir o movimento social. Evo deveria ções, entre elas a de Evo Morales. É preciso reconhecer que suspender os bloqueios e convencer os camponeses e direções a base fundamental das revoltas foi conssindicais e populares de que era preciso dar tituída pelo campesinato e pelos artesãos uma trégua para que Rodríguez pudesse A Bolívia foi sacudi- cumprir o acordo. Rodriguez, contando urbanos. A classe operária, nesse processo, não se destacou como a força principal das com a trégua, convocou as eleições. da por uma revolta lutas. nesse quadro de refluxo do mopopular que depôs o vimentoÉ dos Destacou-se um levante geral no país explorados que Evo foi eleito nos dois anos que antecederam as eleições com 53,7% dos votos, derrotando o candipresidente Sánchez de 2005. A Bolívia foi sacudida por uma reda oligarquia Jorge Quiroga Ramírez, de Lozada – do MNR dato volta popular que depôs o presidente Sándo Poder Democrático e Social (Podemos), chez de Lozada – do MNR (Movimento (Movimento Nacio- com o programa de reformas sociais e de Nacionalista Revolucionário), que aplicou nacionalização dos hidrocarbonetos. A renalista Revolucioseveramente as medidas neoliberiais. Eleivolta das massas exploradas que desbancou to em 2002, na disputa com Evo Morales, nário), que aplicou Lozada e Mesa foi desviada para o campo ele impôs a decisão dos Estados Unidos de severamente as me- da democracia burguesia, eleição, consticomprar o gás, que seria exportado pelo tuinte e referendo. norte do Chile a preços irrisórios. A revolta didas neoliberiais. O programa do MAS de “uma revodos camponeses, operários mineiros, prolução capitalista andina-amazônica demofessores, estudantes e oprimidos em geral crática e pacífica” arrastou direções sindicais ganhou projeção nacional. O ódio da maioria da população e populares, que se postaram entre a ação direta e a legalidade era a expressão do rechaço à entrega do gás ao país imperiaburguesa. As reivindicações que as massas empunhavam paslista. O movimento ganhou força por meio da bandeira da saram a depender das instituições estatais e das forças políticas nacionalização do gás e de derrubada do governo. A repressão burguesas. militar foi violenta, com muitos mortos, mas os explorados insurretos tomaram a capital e bloquearam as principais roPolítica do governo MAS dovias e os aeroportos. Não restou alternativa a Lozada senão Uma de suas primeiras medidas foi o decreto de maio de desfazer o acordo de venda de gás aos Estados Unidos e aceitar 2006, que instituía o controle acionário por parte do Estado soas decisões da burguesia e da Igreja de renunciar − uma saída bre as empresas estrangeiras que exploravam o petróleo e o gás. pacífica para deter o movimento dos oprimidos. O acordo de Tratava-se de uma pretensa nacionalização sem tocar na proconter a ação das massas contou com a colaboração dos diripriedade das multinacionais, que barganharam a permanência gentes camponeses, entre eles Evo Morales. no país em troca de alguns benefícios ao Estado. Logo se verifiA negociação que levou o vice-presidente Carlos Mesa cou que o programa de nacionalização do MAS não passava de à presidência foi uma tentativa da burguesia de retomar o conconstituir uma sociedade entre Estado e multinacionais. trole do Estado, à custa do recuo do levante popular. Para isso, Outra decisão, anunciada em junho do mesmo ano, as direções sindicais e camponesas tiveram papel fundamental foi a da compra de terras e a distribuição entre as comunidano estabelecimento do Acordo Nacional, uma frente burguesa des indígenas e camponeses sem-terra, bem como estabelecer para ajustar a Lei dos Hidrocarbonetos aos limites estabeleciconstitucionalmente delimitação de área das propriedades. A dos pelas empresas multinacionais. Mas as condições objetivas isso se denominou “revolução agrária”. O governo declarou de miséria e saque das riquezas naturais ditaram novo ascenso reconhecer o direito da propriedade capitalista, pretendendo do movimento de massa.
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apenas fazer uma redistribuição limitada que incorporasse Se levarmos em conta o caráter de classe do governo do MAS uma parcela dos camponeses miseráveis. Com essas medidas e as medidas tomadas, parece descabida a existência de uma que não violam a estrutura de relações econômicas capitalisoposição tão ferrenha. Ocorre que a oligarquia boliviana e o tas e com a pressão dos explorados, esperava-se alcançar um imperialismo não admitem que o governo estabeleça qualacordo com a oligarquia em torno da reforma constitucional quer limitação aos seus negócios e à grande propriedade. A e das novas regulamentações governamentais. Evidenciou-se, resistência burguesa da Meia Lua, com seu estatuto autonôassim, que Evo Morales procurou, desde o início, conciliar os mico, objetiva desgastar e inviabilizar o governo reformista. interesses da oposição burguesa (empresários e fazendeiros das A oligarquia de Santa Cruz, pilar da Meia Lua, aposta na localidades mais prósperas do país) e das multinacionais. impossibilidade de tais reformas impulsionarem o desenvolO compromisso de combater o plantio da coca é uma vimento capitalista e na fraqueza de um governo submetido exigência dos Estados Unidos, que dá ao governo Evo cerca de às instituições da própria oligarquia, que é o Estado. As exigências de autonomia de parte do país expressam a debiliUS$ 30 milhões por ano. Na realidade, o imperialismo utilidade da burguesia enquanto classe dominante, incapaz de za a questão do narcotráfico para intervir na semicolônia. O expandir seu sistema econômico por todo o país. Da mesma maior consumidor de droga são os Estados Unidos. No entanforma, Evo/MAS não tem como constituir um vigoroso goto, aí nada é resolvido. O cultivo da coca aumentou (8% em verno burguês que cumpra tarefas democráticas pendentes, 2006 e 5% em 2007). O direito de plantio de coca se assenta próprias do país atrasado e semicolonial. numa cultura milenar e cabe ao país decidir o que fazer com O desenvolvimento capitalista desigual e combinado ela. Ocorre que Evo – ex-plantador de coca de Chapare − pisa partilhou o país: de um lado, uma ilha de prosperidade (Meia em corda bamba. Procura conciliar com os camponeses e com Lua) e, de outro, um mar de miséria com predominância de os Estados Unidos. comunidades índias, camponeses sem-terra e uma massa de Nos primeiros passos do governo, as dificuldades de desempregados e subempregados. O eixo econômico se concentralização dos interesses da burguesia nacional e imperialiscentrou na região oriental, favorecendo a agroindústria. Essa ta se manifestaram, embora Evo não ameaçasse a propriedade fração da burguesia se sente marginalizada de seu próprio Esprivada dos meios de produção e não demonstrasse intransitado. O governo Evo/MAS não é seu repregência em negociar o alcance das reformas sentante orgânico e se arvora ser o fundador pretendidas com os adversários. A oposição direitista intensificou o movimento pelas As exigências de au- de uma nova Bolívia. As exigências de autonomia e as disautonomias, por meio dos Comitês Cívicos, tonomia e as disputas putas em torno da Constituinte acirraram principalmente no pólo mais desenvolvido em torno da Consti- os choques entre o governo e a oposição di– a chamada “Meia Lua”: Santa Cruz, Panreitista. Ambos procuram ganhar apoio das do, Tarija e Beni. tuinte acirraram os massas empobrecidas, provocando choques O fato é que o MAS, nascido como partido camponês, propõe-se a executar re- choques entre o gover- entre os miseráveis. O recente desfecho do revogatório testemunha a crise formas sem transformar a base do sistema no e a oposição direi- referendo política que se instalou no país. De um lado, econômico, que é capitalista. Por isso, o governo Evo foi moldado para implemen- tista. Ambos procuram os partidários de Evo que votaram pela sua tar algumas medidas que amenizassem a ganhar apoio das mas- permanência e, de outro, os que se aliaram à oposição reacionária. O resultado do plebispobreza extrema da maioria da população, sas empobrecidas... cito, cerca de 70% dos votos pelo “Sim”, foi que comparecia por meio das bandeiras a expressão de que a maioria não aceita ser pão e trabalho. Mas as condições objetivas governada pelos exploradores e que o mal do país demonstram a inviabilidade de remenor era manter Evo. Certamente, o desfecho do referendo formas sociais. A bandeira governista de transformação pací(que atingiu os governadores direitistas Reyes Villa e Paredes), fica e democrática da Bolívia na busca da unidade de todos os o fracasso das últimas ações tomadas pelos Comitês Cívicos bolivianos e no marco do respeito mútuo traduziu muito bem (bloqueio de estradas) e as discórdias entre os empresários de o caráter de classe do governo do MAS. Cochabamba e os do Comitê Cívico do oriente deixaram os oposicionistas momentaneamente em situação mais difícil Dificuldades de governabilidade para levar a cabo seus intentos separatistas. A governabilidade de Evo, embora sob ameaça consOs setores identificados como oposição – empresátante da oposição burguesa, dependerá em muito do avanço rios, latifundiários, etc. − travam uma luta intestina contra da crise econômica. Uma crise política dessa magnitude não o governo com o objetivo de golpear Evo. Atuam por meio dos Comitês Cívicos da Meia Lua, desenvolvendo uma opodesestabilizou o governo porque vem contando com os resulsição radical direitista com características fascistas e racistas. tados positivos de sua balança comercial. PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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Explorados lutam por suas reivindicações
puderam romper com o governo, fator essencial para o avanço da consciência de classe. Mas, por outro lado, expôs as contradições de um governo que carrega o peso do campesinato e é Assim que Evo chegou ao poder do Estado enfrentou um obrigado a usar o aparato estatal para discipliná-lo. grave choque entre os mineiros de Huanuni, que travaram uma O movimento do Camiri (2008), que reivindicava uma batalha cuja conseqüência foi a morte de dezenas de trabalhadoverdadeira nacionalização dos hidrocarbonetos e a tomada de res. De um lado, os cooperativistas, no afã de explorar as ricas poços controlados por multinacionais, ganhou projeção e jazidas minerais e, de outro, o proletariado mineiro na luta pelo obrigou o governo a contê-lo. É nesses embates que o governo emprego e pela preservação do patrimônio estatal. O governo expõe suas debilidades e sua determinação em não afetar as procurou conciliar interesses opostos – propriedade estatal e forrelações de propriedade capitalista. mas de propriedades individuais (cooperativas). Ocorre que as No último período, as lutas dos excooperativas são controladas por capitalistas. No entanto, a brutal batalha comEsse processo social e plorados vêm se potencializando em função do aumento da inflação, da elevação pareceu como se fosse simplesmente de político evidencia que dos preços dos produtos da cesta básica e mineiros contra mineiros. A posição do na fase imperialista do anúncio de reajuste nos preços das tagoverno acabou acobertando a real disputa dos transportes. Esses elementos da e favoreceu a continuidade da exploração não se pode esperar o rifas conjuntura recente, resultantes das tendênprivada. Mostrou-se incapaz de se colocar desenvolvimento capi- cias de crise mundial, somados aos baixos do lado dos mineiros estatais e tomar medidas estatizantes. talista integral da eco- salários que perderam seu poder de compra em mais de 80%, levaram a manifestações As medidas para reativar a Comibol foram insuficientes. Os recursos técnicos nomia boliviana. O que e greves. A revolta dos assalariados se avolusão obsoletos e as promessas de compra de implicaria solucionar mou com o decreto de Evo que modificou a Lei das Pensões, consolidando o sistema novas máquinas e melhores condições de tarefas democráticas... de capitalização individual. trabalho aos mineiros não se efetivaram. Esse processo social e político eviEm vez de aproveitar a atual conjuntura do país semicolonial. dencia que na fase imperialista não se pode dos preços internacionais para resolver os esperar o desenvolvimento capitalista inteproblemas estruturais da exploração das gral da economia boliviana. O que implicaria solucionar tarefas riquezas minerais, Evo se submeteu aos interesses das multidemocráticas próprias do país semicolonial. A burguesia já não nacionais, que atuam de maneira direta (como em São Crispode cumpri-las sob o regime de produção dominado pelo capitóvão) e disfarçada (nas pequenas e médias empresas mineratal financeiro e por um punhado de potências. Certamente, essa doras). A tendência é de acirrar o choque entre governo e os condição histórica não impede que emerjam governos apoiados trabalhadores. nas tarefas democráticas e nas aspirações dos explorados, como Em janeiro de 2007, os camponeses de Chapare e os é o caso de Evo. As experiências demonstram que tais governos trabalhadores do campo de Cochabamba iniciaram uma mose chocam com o grande capital, mostram-se impotentes diante bilização pela renúncia do governador Reyes Villa. Tratava-se dele, restringem ao máximo as tentativas reformistas, tornam-se de uma pressão para afastar a oposição direitista do controle caricaturas de governos populares e terminam se voltando contra político local, pela via dos métodos pacíficos. Mas o movimena maioria explorada. Isso explica por que Evo não pode dar um to se transformou com o apoio de setores radicalizados que, passo em favor da superação da miséria. As reivindicações de emem poucos dias, caminhou para a tomada da sede do governo. prego a todos, salário mínimo real, terra aos camponeses e garanA repressão policial sobre a multidão concentrada provocou tia de conquistas sociais− entre elas uma Lei de Pensão (aposentafissuras no governo de Evo Morales. O movimento se ampliou doria) inteiramente sustentada pelos patrões e pelo Estado − têm e novas bandeiras foram assumidas, como a de derrotar a disido rejeitadas e combatidas pelo governo. A tendência é aprofunreita, acabar com o latifúndio, nacionalizar toda mineração dar a crise econômica, que dá seus primeiros passos. Diante dela e constituir os cabildos (assembléias populares). A oposição só há duas saídas: a de descarregar a crise sobre os trabalhadores, direitista organizada combateu as massas rebeldes, causando reduzindo os baixos salários, aumentando o trabalho precarizado mortes e deixando muitos feridos. Diante dos rumos do moe eliminando conquistas sociais, ou da luta dos explorados contra vimento, os dirigentes pró-governo atuaram para impedir seu a burguesia, as multinacionais e seu governo. avanço. Ludibriaram as massas concentradas dizendo que era preciso pôr fim aos bloqueios de estradas para a chegada de Crise mundial ampliará a crise política mais camponeses, que a luta pela derrubada de Reyes deveria continuar pela via pacífica, que a violência enfraquecia Evo e Nesses primeiros dois anos de governo, Evo teve a seu ajudava a direita, e outras falácias da mesma natureza. Apesar favor o crescimento econômico mundial, o aumento da receida enorme potencialidade da luta social, os camponeses não
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dido por Evo, venceu com 57,5% dos votos. Mas o “Sim” ta com hidrocarbonetos, o que permitiu um superávit fiscal saiu vitorioso nos quatro departamentos da chamada “Meia de 4,6% (2006) e o aumento de reservas de US$ 3,9 bilhões. Lua”. O pleito foi considerado ilegal por Evo. As discussões Isso lhe permitiu destinar recursos para o assistencialismo, na Constituinte acirraram a crise política. A oposição não fato fundamental para manter sob sua política as camadas emaceitou os critérios impostos pelos governistas, de maioria pobrecidas. simples para aprovação das leis. Evo, por sua vez, legitimou A concessão do bônus Juancito Pinto (2006), que dá a Carta Constitucional, sob protestos da ala da Meia Lua. 200 bolivianos para cada criança na idade escolar do 1º ao 5º Após o resultado favorável à sua governabilidade, consulta ano, serviu de instrumento para ludibriar milhares de famílias de 10 de agosto de 2008, anunciou novo referendo, a ser no momento em que o governo estabelecia os contratos de realizado em 7 de dezembro. exploração do gás e petróleo com as multinacionais. O bônus O setor oposicionista desfechou um profundo atadestinado aos idosos e o bônus de ajuda às famílias miseráveis que ao governo, utilizando métodos radicais, como os da região de El Alto (periferia de La Paz) vieram no mesmo bloqueios, saques e destruição de repartições públicas nos sentido. São medidas paliativas que não resolverão a pobreza departamentos que estão sob o comando dos Comitês Cídos milhões de bolivianos. vicos, em particular de Santa Cruz. Contesta o projeto de Dados indicam que a taxa oficial de pessoas abaixo da Constituição do governo, qualificando-o de “ditatorial” linha da pobreza passou de 63% para quase 60%, o que depelo fato de ter sido aprovado em um quartel. Critica a lei monstra que a pobreza continua imperando. A propaganda que imporá limites ao tamanho do latifúndio (5 mil ou 10 em torno desses índices, voltada a demonstrar que a pobreza mil hectares). Reivindica a restituição do imposto sobre os está sendo combatida e que será gradualmente erradicada, recursos de petróleo e gás que foram repassados ao governo não condiz com a realidade social da Bolívia. A vigência do e denuncia que Evo irá utilizá-los no pagamento de pensão assistencialismo de Evo dependerá das condições econômiaos idosos. E exige maior autonomia a seus departamentos. cas, das “negociações” que se estabelecem com as multinaO estatuto autonômico dá à região da cionais e da pressão da oligarquia fascistiMeia Lua maior controle sobre os lucros zante sobre o governo. A Bolívia está sob com as exportações das riquezas mineTudo indica que o assistencialismo e rais. Em Tarija, concentram-se 85% das as promessas de reformas terão fôlego curto. violenta convulsão reservas de gás do país e há dois campos As recentes convulsões na economia dos Espolítica e social. operados pela Petrobras. tados Unidos provocaram reações em cadeia Há uma propaganda da ala oposipor todo o mundo. A elevação dos preços dos Bloqueios de escionista de que a Constituição legitima alimentos em nível internacional foi o sufitradas, ocupação o “socialismo indigenista” de Evo e, por ciente para que encarecessem os alimentos e isso, põe em risco a propriedade privada a inflação se manifestasse. Seja uma recessão de repartições dos meios de produção e a iniciativa eco(diminuição do PIB) nos Estados Unidos, públicas, saques nômica da classe capitalista. Mas a realiseja uma depressão econômica (alguns econodade demonstra o inverso. O projeto de mistas falam em diminuição da produção em e mortes tomaram Constituição do governo não se poderia mais de 25%), suas conseqüências afetarão a conta das regiões contrapor aos fundamentos do Estado, Bolívia, que empobrecerá ainda mais. da Meia Lua. que é capitalista. Por isso, inicia defendendo todas as formas de propriedade Agudização da crise privada – a pequena, a média e a grande. Faz considerações sobre a propriedade comunal, tradição A Bolívia está sob violenta convulsão política e social. milenar da população índia. Não há nenhuma lei ou artiBloqueios de estradas, ocupação de repartições públicas, sago que imponha a expropriação da propriedade privada e ques e mortes tomaram conta das regiões da Meia Lua. De a nacionalização da terra. O que existe é uma limitação ao um lado, a Oposição burguesa, sitiada em quatro departatamanho da grande propriedade agrícola, que será submetida mentos (estados), Santa Cruz, Beni, Tarija e Pando, e, de ao referendo. Ao impor limites à exploração e concentração da outro, os partidários do governo. Evo Morales, que venceu terra, acabou atingido os interesses dos fazendeiros da região o referendo com cerca de 67% dos votos, está em meio a da Meia Lua, exportadores de soja, gado, etc. O que ocorre é o um enorme conflito com os setores oposicionistas, que não choque entre duas políticas: a da grande propriedade, da Meia aceitam o referendo de 7 de dezembro para legitimar a nova Lua; e a de Evo, que procura manter a pequena propriedade. Constituição. A consolidação do latifúndio depende da destruição das forA oposição, no momento da Constituinte, ativou mas menores de propriedade, inclusive a comunal - fato que um movimento pela autonomia em relação ao governo cenvem ocorrendo na região de Santa Cruz e vizinhanças. tral. Promoveu um referendo em 2007. O “Não”, defenPUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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Evo Morales, diante da interferência do embaixador dos Estados Unidos em favor da Oposição, deu-lhe um ultimato para que deixasse o país. Os Estados Unidos, por sua vez, responderam da mesma forma com relação ao diplomata da Bolívia. Evo acusou a Oposição de conspirar contra o Estado, de ser golpista. O venezuelano Hugo Chávez – aliado de Evo, tratou de responder com as mesmas armas, expulsando o embaixador norte-americano de seu país e se colocando em favor da proteção militar à governabilidade de Evo. Diante desses acontecimentos, em um primeiro momento, o presidente boliviano recusou a interferência de outros países. Procurou conter a onda de violência, anunciou a disposição ao diálogo com quatro governadores da Meia Lua. Chegou a dizer que estava autorizado “pelos movimentos sociais” a modificar o projeto de autonomia previsto na Constituição e outros aspectos, como, por exemplo, o da restituição do imposto sobre os hidrocarbonetos. Evo decretou o estado de sítio em Pando, em função da brutal violência dos bandos contratados pela oposição, que já mataram trinta índios. As denúncias comprovam a formação de bandos fascistas pagos com o dinheiro da oligarquia para executar índios e população pobre. Os acontecimentos de Santa Cruz expõem o ódio racista da oligarquia branca contra os índios. No artigo “Índios se enfrentam em reduto evista”, o enviado do jornal Folha de S.Paulo a Santa Cruz transcreve a seguinte idéia de Andrés Gómez, um editor que defende as posições da Meia Lua: São gente horrorosa. As collas (índias) fazem cocô nas ruas e se limpam nas próprias saias. O cheiro é horrível. É um povo de não-cristãos. Não compartilham conosco os valores ocidentais e o amor ao capitalismo.
Continua Carlos Ortiz Cizendo, adolescente pobre, de cor escura e que se diz “camba”, que recebe R$ 40,00 por noite para defender os oligarcas de Santa Cruz: “Sou católico, uso banheiro, sou limpo e ocidental”. Os bandos racistas e fascistas estão a serviço dos capitalistas para invadir, atear fogo e eliminar os moradores das favelas. O Plán 3000 é a maior favela de Santa Cruz e é vitima diária da ação criminosa desses bandos. Mesmo que venha a ocorrer a suspensão da ação dos fascistas da Meia Lua e que Evo se coloque pelas mudanças constitucionais exigidas pela oligarquia, não haverá a erradicação dos conflitos entre a classe dos poderosos e a maioria oprimida. A oligarquia não consegue arregimentar a população pela via do convencimento ideológico e está obrigada a usar os métodos fascistas. Os bandos armados e pagos, constituídos de jovens e pobres, expressam tais métodos. A oligarquia instrumentaliza e financia os bandos para praticarem a violência reacionária contra a população indígena e demais miseráveis que apóiam o governo Evo. Nada tem que ver com a luta de classes, que é a materialização da violência revolucionária da maioria oprimida contra a minoria exploradora e tem como essência a tarefa de transformar a propriedade privada dos meios de produção em propriedade coletiva.
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Intervencionismo externo Diante do agravamento da crise, armou-se a reunião da União Sul-Americana (Unasul), organização recém-constituída, para a burguesia sulamericana intervir como se fosse neutra. Na realidade, pretendeu-se utilizar a chamada mediação para obrigar Evo Morales a fazer concessões aos governadores da Meia Lua. Os atos de sabotagem à economia e a violência reacionária desfechada por bandos acuaram o governo do MAS. Dessa forma, a atuação da Unasul foi uma vitória da reação. Evo participou acatando determinadas condições impostas pelos governos que compõem a Unasul. Entre eles, estava presente, com exigências, o presidente da Colômbia, porta-voz dos Estados Unidos. O jornal espanhol El Pais intitulou sua matéria “Lula toma as rédeas da crise boliviana”. Relata que “Lula pôs algumas condições para viajar a Santiago e as conseguiu”. Eis o relato: Pediu uma trégua prévia entre Morales e a Oposição, o que ocorreu. Exigiu aceitação expressa de La Paz para que ele intercedesse na crise, e a obteve. Além disso, os rivais de Morales celebraram a mediação brasileira, apesar de Lula os ter reprovado por utilizarem a violência para desafiar o governo. Brasília também pretende que a cúpula conclua com uma clara mensagem contra toda ingerência externa na Bolívia e que não haja comentários acima do tom contra os Estados Unidos (El Pais, 16/8/2008).
Está claro que Evo foi arrastado à Unasul por pressão interna dos opositores e externa da burguesia sulamericana, particularmente a brasileira. Por cima de tudo estão os Estados Unidos. A única forma de derrotar a oligarquia fascista e racista é a revolução social, que por seu caráter tem de ser proletária e se assentar na aliança operária e camponesa. Como o governo Evo está comprometido com a preservação da propriedade capitalista, tem de se sujeitar à via que a burguesia internacional ditar; caso contrário, terá seus dias contados. O imperialismo e seus lacaios da Unasul deram um ultimato no sentido de disciplinar o caos político e social. Ao contrário, poderão potencializar a Oposição fascista e isolar o governo do MAS. A exigência de Lula de que não haja “ingerência externa” e que não se ataque os Estados Unidos está dirigida não só a Evo, como também a Hugo Chávez. O intervencionismo dos governos sulamericanos tem por essência evitar que a crise leve as massas oprimidas a ultrapassar os limites do controle do MAS e assumir o programa da luta antiimperialista e anticapitalista. Tanto a Oposição fascista quanto o governo reformista de Evo sabem que esse é o grande problema da divisão interburguesa.
A chave da solução se encontra na classe operária O governo Evo está mergulhado numa profunda crise política. Tudo indica que não terá como derrotar a oposição oligárquica e a ação do imperialismo. O referendo, por si só, não deu ao governo uma supremacia que liquidasse a capacidade de combate da oposição. A rejeição a um pacto e a retomada do movimento de sabotagem alimentam as contradições no seio do Estado. Que desfecho poderá ter a crise? Enquanto as massas estiverem sob a direção pequeno-burguesa do MAS, a crise política se arrastará por mais ou menos tempo, dependendo do desenvolvimento da crise econômica, mas seu desfecho fatalmente será a favor da oligarquia. A divisão interburguesa sofre pressão do imperialismo e de governos como o do Brasil, o da Venezuela, etc. no sentido de um acordo. Essa saída é a desejada pelo governo do MAS. Para isso, é preciso um grande recuo de Evo, que por sua vez se vê amarrado às pressões do campesinato. O governo não pode se indispor com sua base de apoio. A oposição direitista tem em conta essa situação e trabalha pelo esgotamento do governo, de forma que possa derrubá-lo pela via golpista ou removê-lo pelo recurso eleitoral. A probabilidade de Evo abrir uma nova etapa de desenvolvimento econômico e social da Bolívia, que garantiria um certo período de estabilidade, é nula. O que está colocado para as massas oprimidas é uma mudança da política de classe. Há que se constituir uma aliança operária e camponesa, sob um programa de transformação da grande propriedade dos meios de produção em propriedade social e emancipação do país do jugo imperialista. A chave da solução está na classe operária tomar a frente da luta contra a oposição oligárquica e o capital internacional; e agir de maneira independente do governo do MAS e combater pela conquista do Estado. Essa possibilidade existe devido à presença do Partido Operário Revolucionário (POR), que tem uma longa existência e encarna o programa da revolução social. Não só o MAS é um obstáculo para a transformação estrutural de que a Bolívia necessita. A direção da Central Operária Boliviana (COB) tem desviado as reivindicações e objetivos da classe operária para a sustentação da governabilidade e da caricatura da democracia burguesa. Dois fatos testemunham bem a política da direção da COB.
Em 2005, diante da crise instalada, o MAS se colocou por novas eleições determinadas pelo presidente da Suprema Corte e convocação da Constituinte. A direção da COB, da mesma forma, sufocou o movimento de massa em nome das eleições. Era sabido que as eleições e a constituinte serviriam para preservar o poder do Estado nas mãos da classe dominante e conter o ódio do povo oprimido. Em 2008, o MAS impôs a Lei das Pensões, cujo conteúdo central é a capitalização individual. O país se convulsionou por meio da greve dos mineiros e dos professores. A resistência dos trabalhadores e a violenta repressão do governo ocasionaram a morte de dois mineiros e quase uma centena de feridos. Quando a luta estava no seu auge de radicalização, a COB aceitou a trégua em nome do referendo de Evo. E como parte do acordo, o dirigente da COB, Pedro Montes, concordou em dar um prazo de 45 dias para a elaboração de uma nova Lei de Pensões. O objetivo foi claro: desmontar as mobilizações. É evidente que, da negociação de cúpula, não sairá nenhuma Lei de Pensão em favor dos interesses dos trabalhadores. Concretamente, o governo Evo demitiu de seus cargos os professores da região de Cochabamba, líderes da greve geral e dos bloqueios, decretados pela COB. No governo Evo não há direitos elementares como o de se manifestar pela greve, o que a repressão ao movimento dos mineiros e dos professores comprova. A severidade do governo contra os grevistas ganha relevo diante da complacência de Evo em relação aos opositores, que chega ao ponto de impedi-lo de pôr os pés nos estados conflagrados. A direção da COB acoberta sua política de conciliação com o governo repressor e manobra os trabalhadores para conter a radicalização. Reafirmamos que a situação política na Bolívia, durante o governo Evo, caracterizou-se pela presença dos mineiros, camponeses, professores, estudantes e demais oprimidos nas ruas, nas greves e nos bloqueios. O que se choca com o governo que promete reformas populares e esbarra nos diques montados pelas direções. A classe operária é extremamente reduzida, concentrada no setor mineiro; não pôde ainda comparecer como força aglutinadora da luta pelas reivindicações e de resistência às medidas de Evo. A maioria da população é camponesa. O campesinato, pelo lugar que ocupa nas relações de produção, não é o dirigente do programa da expropriação dos meios de produção e da implantação da propriedade coletiva. Não há outra via para tirar a Bolívia do atraso e da submissão imperialista, senão a luta revolucionária. Essa tem sido a tese do Partido Operário Revolucionário da Bolívia.
Fontes Jornais: O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e El País – artigos sobre a crise atual na Bolívia. Massas, imprensa do Partido Operário Revolucionário da Bolívia, nos 2084, 2085, 2090, 2092, 2095, 2096, 2097, 2098 e 2099. Folhetos editados pelo jornal Massas, Brasil: As lições da luta revolucionária na Bolívia −2003 A situação da Bolívia em 2005 O governo do MAS e a nacionalização dos hidrocarbonetos Documento: As tarefas do POR na conjuntura atual: balanço e perspectivas. LORA, Guilhermo. Obras completas, La Paz, Bolívia: Ediciones Massas, 2002.
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Como a crise mundial reflete na Argentina? APROFUNDAM-SE OS TRAÇOS DE ATRASO E SUBMISSÃO COLONIAL* Ramon Basko Membro do Conselho Editorial do jornal Massas
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Governo, seus ministros, os economistas e os jornalistas amigos afirmavam que a Argentina não sofreria os efeitos da crise mundial; que o elevado superávit comercial e fiscal, o nível de reservas, o crescimento da economia e outros indicadores asseguravam que, desta vez, a Argentina ficaria resguardada. Mas, pelo contrário, todas as fraquezas da economia argentina ficaram potencializadas com esta nova crise, em todos os terrenos.
Dívida externa Apesar da negociação realizada da dívida em default e do pagamento à vista de toda a dívida com o FMI, a dívida externa continua sendo hoje um dos principais problemas. O Governo faz um enorme esforço para conseguir superávits fiscais que lhe permitam acumular dinheiro para pagar os vencimentos da dívida, deixando de atender * Tradução de John Lionel O’Kuinghttons Rodríguez.
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demandas populares urgentes. Contudo, o dinheiro não dá. O Governo deve sair ao mercado financeiro internacional para pedir dinheiro emprestado para cumprir com seus compromissos, incrementando, assim, a dívida. O único auxílio internacional chega da Venezuela e não é barato. Na última negociação com o Governo da Venezuela por um bilhão, a taxa de juros chegou até quase 15% ao ano− uma taxa extraordinariamente alta. Em 2009 vencem US$ 20.200 milhões dessa dívida e o Governo sai para pedir empréstimos desde agora para mostrar aos capitalistas que terão com que pagá-los. A pressão do capital financeiro aumentando o chamado “risco país” e dizendo que a Argentina não poderá pagar os vencimentos do próximo ano, entrando em default novamente, age como uma grande chantagem para tirar mais benefícios com a especulação e impor mais e mais condições colonialistas sobre a Nação.
Os empresários continuam tirando divisas do país
ses produtos no mundo. A produção de soja no próximo ano superará os 50 milhões de toneladas, um pouco mais de 50% da produção agrária total. O grande paradoxo é que em um país que produz alimentos para 300 milhões No último ano, saíram mais de US$ 20 bilhões por de pessoas, há dezenas de milhares de crianças desnutridas, conceitos diversos. As multinacionais transferem para suas mal-alimentadas. casas matrizes o máximo possível de utilidades, mostranA vantagem inicial que o Governo teve com a desdo pouca disposição para reinvestir seus ganhos no país, valorização da moeda, que permitiu frear as importações mostrando as limitações do chamado “modelo produtivo” que impulsiona o Governo. No primeiro semestre do ano, massivas de mercadorias, especialmente vindas da Ásia, tiveram um lucro de US$ 1.502 milhões. acabou. A inflação devorou essa vantagem e hoje a relação O aumento dos preços internapeso−dólar é similar àquela existente no cionais dos produtos primários que a plano de convertibilidade (Governo MeArgentina produz, especialmente a soja, Os capitalistas utili- nem/De la Rua). Já se começa a perceber entusiasmou o Governo, porque permitia a entrada de mercadorias afeta alguns zam o argumento de que a entrada de um grande caudal de divisetores da produção, como o têxtil. Esse sas e, mediante a cobrança de retenções que não se pode con- tema, que no passado recente provocou (direito às exportações), podia assegurar terrível desocupação − a mais elevacorrer com os custos uma os recursos para pagar a dívida externa e da que se conhece −, poderia começar a de mão-de-obra dos se repetir: as tendências já aparecem. Promanter o pagamento de subsídios multimilionários a grandes capitalistas. Essa países asiáticos e com move-se uma política francamente proteajuda foi como uma corda no pescoço cionista da produção nacional, dando as sua escala de produ- costas a todas as negociações, que, como para o Governo, uma vez que os grandes produtores agropecuários e exportadores ção, que lhes permite a Rodada de Doha, pretendem uma liiniciaram uma grande luta para reduzir a beração total do comércio mundial, para magnitude das retenções às exportações, baratear os processos terminar de afundar as economias dos pade mais de três meses, o que terminou de produção e inun- íses atrasados. Não se trata de defender os com uma derrota do Governo, limitado e suas utilidades; de produtores dar de bens todos os patrões em suas aspirações de incrementar os reeles passam rapidamente a ser importacursos. mercados, exigindo dores, deixando os operários na rua. Para O notável aumento dos preços nós, trata-se da defesa dos postos de traque os trabalhadono mercado mundial, resultado de uma balho. A crise mundial empurra a queda maior demanda, a utilização de parte da res argentinos acei- dos preços de uma quantidade de bens produção para a elaboração de biodieque pressionam por substituir e destruir tem mansamente sel, e um componente de especulação, as produções locais. salários miseráveis favoreceu o incremento dos preços no Os capitalistas utilizam o argumento mercado interno, gerando mais inflação. de que não se pode concorrer com os cuse as piores condiOs produtores pretendem ter um preço tos de mão-de-obra dos países asiáticos e ções de exploração. com sua escala de produção, que lhes perno mercado local similar ao que conseguem com a exportação. O componente mite baratear os processos de produção e especulativo dos preços internacionais se inundar de bens todos os mercados, eximultiplica pela intervenção dos chamados “fundos de ingindo que os trabalhadores argentinos aceitem mansamenvestimento” que tentam se introduzir nesse terreno para te salários miseráveis e as piores condições de exploração. obter grandes ganhos em pouco tempo. O desespero dos capitalistas para não perder a oporDesnacionalização da economia tunidade de ocupar um espaço no mercado internacional da soja e aproveitar seus bons preços estendeu a fronteira A Argentina havia conseguido o auto-abastecimento agrícola, substituindo outras produções tradicionais, altede petróleo quando a exploração, a extração, a refinação e a rando o equilíbrio ecológico em vastas regiões, utilizando distribuição estavam nas mãos do Estado. A privatização da YPF, em poder da Repsol, provocou um retrocesso considepoderosos herbicidas, acabando com florestas, impermearável nas reservas de petróleo. As petroleiras aspiram impor bilizando os solos e criando condições de desertificação. A o preço internacional do petróleo no mercado interno, o conclusão é que, nos próximos anos, a Argentina poderia que vão conseguindo, embora o custo de sua produção seja precisar da importação de carne e leite, mesmo tendo sido, bem inferior ao do Oriente Médio, e sem a necessidade de até poucos anos atrás, um dos primeiros exportadores desPUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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ração para aproveitar a crise atual do imperialismo, o que se pagar pelo oneroso translado do combustível. A perda da provoca é uma maior prostração e submissão ao amo impesoberania também nesse terreno deixou a economia à merrial, aceitando suas regras e imposições. A burguesia é uma cê das multinacionais, cujo único objetivo é incrementar o classe antinacional, condição que não poderá reverter. máximo possível sua rentabilidade. O Governo de Kirchner, que pretendia recriar uma burguesia nacional, ficou, mais que antes, à mercê das mulGoverno de outra classe tinacionais que dominam a economia. Em lugar de promover o desenvolvimento das forças produtivas, reforçou-se É preciso um Governo que, primeiro, se preocupe o atraso e a submissão da Nação. A Argentina concentra com as urgentes necessidades populares, utilizando todos suas exportações em produtos primários, os recursos naturais e humanos disponíextrativos, o que demonstra sua fraqueza veis. Mas isso não poderá ser feito por neindustrial. A vantagem de câmbio não nhum Governo da burguesia, de nenhum A voracidade das foi aproveitada para melhorar e ampliar dos seus setores. É necessário um Govermultinacionais se a produção, mas para engrossar os luno de outra classe, outra classe de Govercros dos capitalistas que ganharam como no. Essas tarefas só poderão ser realizadas traduz em diversas nunca antes. por um Governo autenticamente popular, Ao contrário daquilo que afir- formas de corrupção, que represente os interesses das maiorias, mava o Governo, aprofundou-se a desorientadas a saque- um Governo operário-camponês, que não nacionalização da economia. Todos os seja produto de algum processo eleitoral ar as arcas naciosetores rentáveis da economia estão em ou constituinte, mas o produto genuíno mãos estrangeiras, enormes extensões nais, com escândalos de uma revolução social acaudilhada pela de campo, com lagoas, rios e lagos, foclasse operária, pela frente única antiimmultimilionários, ram compradas por empresas do exteperialista, que liberará definitivamente a rior. Testemunhamos, inclusive, uma Nação oprimida do imperialismo: como os denuncia“invasão” de capitalistas brasileiros dos Skanska, da que, aproveitando a força de sua moe- expropriando, sem pagamento, todas as Suécia, Siemens, da grandes extensões de terras, os portos, os da, dominam ramos da produção como frigoríficos e indústrias de cimento. A os silos, todos os grandes meios de Alemanha, IBM, dos trens, concentração de meios de produção não produção aplicados à exploração agropecuEstados Unidos, Ae- ária; pára e a pressão aumenta. A voracidade das multinacionais se • rolineas Argentinas traduz em diversas formas de corrupção, nacionalizando o comércio exterior e a e YPF, por parte da -banca orientadas a saquear as arcas nacionais, (sem pagamento), e sob controle com escândalos multimilionários, como Espanha: manobras operário coletivo; os denunciados Skanska, da Suécia, Sie• de corrupção em mens, da Alemanha, IBM, dos Estados - deixando de pagar e desconhecendo toda Unidos, Aerolineas Argentinas e YPF, grande escala, das a dívida externa; por parte da Espanha: manobras de cor• rupção em grande escala, das quais tam- quais também particiexpropriando, sem pagamento, todas as bém participam os Governos das nações pam os Governos das multinacionais, recuperando todos os reimperialistas. nações imperialistas. cursos naturais e todas as empresas localiA degradação e a desintegração cazadas em setores estratégicos, reestatizando pitalista chegam ao nível máximo, mostodas as privatizadas; impedindo o fechatrando seu rosto de barbárie. mento de fábricas; A dominação imperialista no terreno econômico se • traduz em todos os terrenos. Sob sua direção, impõem-se decidindo o que se produz e onde, o que se exporta e a quem, os exercícios militares conjuntos, a presença ameaçadora protegendo a indústria local perante as importações (não os da IV Frota, a sanção da chamada Lei Antiterrorista para empresários); enfrentar a rebelião dos oprimidos, a presença de tropas argentinas no Haiti, a eliminação da figura jurídica de sub• versão econômica que se podia aplicar a empresários e di- trazendo de volta as tropas do Haiti, etc. retivos. Longe de abrir para a burguesia um caminho de libeAgosto de 2008
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DESENVOLVIMENTO E CRESCIMENTO curso das agendas políticas acerca do processo de integração Regina Maria A. Fonseca Gadelha Professora Titular da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da PUC-SP
O
que é a América Latina? Para os historiadores a expressão América Latina não denota uma realidade, mas se apresenta como ficção, estereótipo, alegoria. De inspiração francesa, essa invenção política ignora não apenas a História como as diversidades que separam as múltiplas realidades e culturas existentes no continente, do México à Patagônia, desde os tempos pré-colombianos1. Tendo em vista essa ressalva, este texto analisa alguns desafios e questões de interesse do Brasil em face do atual processo de integração. Esse processo vem avançando na última década, apesar dos contrastes e das múltiplas diferenças encontradas nas realidades sociais, nível de desenvolvimento, grau de democracia interna e formas de governar dos países da América do Sul. São conhecidas as dificuldades enfrentadas pelos países sul-americanos no evolver de seu desenvolvimento. Recente artigo do Dr. Samuel Pinheiro Guimarães, Secretário Geral do Ministério de Relações Exteriores do Brasil, ressalta alguns dos desafios a serem enfrentados pelo Brasil nos caminhos para a integração2: 1. Desafio geográfico: o Brasil, gigante territorial com 8,5 milhões de quilômetros quadrados de extensão, possui 15.735 quilômetros de fronteiras com nove países vizinhos, com exceção do Chile e do Equador, seguido pela Argentina (3,7 milhões de quilômetros quadrados de extensão), Bolívia e Peru, que fazem fronteira com 5 países. Porém, são os obstáculos naturais a enorme Cordilheira dos Andes, a oeste e, ao norte, a Floresta Amazônica − as barreiras que verdadeiramente separam os países do subcontinente sul-americano.
Essas barreiras representam enormes distâncias permeadas por imensos vazios demográficos.3 2. Desafio demográfico: o Brasil representa 50% da população do continente, com cerca de 195 milhões de habitantes, enquanto a Colômbia, o segundo colocado, possui 46 milhões e a Argentina, o terceiro colocado, 39 milhões. 3. Disparidades sociais e níveis de renda: a América do Sul exibe enormes contrastes em concentração de renda e riqueza, pobreza e indigência, opulência e luxo. Quanto aos níveis de educação e pobreza, o artigo do Dr. Guimarães recorda que escolas e universidades de alto padrão de ensino cotejam com “pardieiros escolares”; hospitais públicos e privados de atendimento médico e hospitalar do mais alto padrão internacional contrastam com carências médicas de todo tipo e hospitais e ambulatórios do mais baixo nível. 4. O mesmo se pode dizer dos níveis de desenvolvimento científico, tecnológico e industrial. 5. Quanto à preservação dos recursos ambientais, esta é agravada pela desigual distribuição dos recursos naturais e minerais existentes, de forma irregular por todo o continente.4 Quando se analisa, porém, o fenômeno da globalização, soma-se a esses desafios a reconfiguração do imperialismo e a intensificação de sua dominação em escala mundial, fenômeno agravado pela reconcentração do controle exercido pelo capital sobre os recursos naturais e a produção mundial. Como resultado desse processo, a intensificação da exploração sobre o trabalho e os trabalhadores passa a ocorrer em escala nunca antes conhecida, ampliando ainda mais o distanciaPUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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mento dos níveis de desigualdade e de polarização social que se abatem sobre a população mundial.5 A essas constatações, o sociólogo peruano Aníbal Quijano associa o novo fenômeno da colonialidade ou colonização do poder, conceito por ele elaborado e publicado em 19916 − o que explica o fato de que, na periferia do sistema, governos e governantes pareçam estar menos sujeitos ao controle das populações que os elegeram e sermais cooptáveis aos interesses do capital financeiro internacional e seus associados, como indicam as políticas adotadas de privatização dos haveres do Estado e desnacionalizações ocorridas nos anos 1990. Essas políticas promoveram, por toda parte, desindustrialização e desemprego, com suas correspondentes seqüelas de exclusão. Em artigo ainda inédito, Quijano afirma ser esse debate ao mesmo tempo teórico e ético, estético e político, e exigir um questionamento mais profundo7. Este, portanto, é um momento crítico também para a reflexão sobre as cadentes situações políticas e econômicas da América do Sul, em face da possibilidade de uma maior integração, exigindo não somente do Brasil e da Argentina “uma identidade razoável de visão do mundo, uma percepção comum das possibilidades de ação, uma forte cooperação e um sistema que promova a percepção do equilíbrio de custos e benefícios entre os [...] países...” 8. O Protocolo de ingresso da Venezuela como membro pleno do Mercosul e não simples país associado como Bolívia e Chile (1996), Peru (2003), Colômbia e Equador (2004), é considerado um importante marco no reforço das relações Norte-Sul, dando dinamismo ao bloco e aumentando a possibilidade de formação de um forte eixo econômico/energético9. Politicamente, o ingresso
da Venezuela abre caminho para a concretização de uma maior integração. Como reconhece o sociólogo Hélio Jaguaribe, em Seminário sobre “Pobreza e desenvolvimento no contexto da globalização” (2006), apesar de o México haver se tornado uma área de influência econômica direta norte-americana, a América do Sul “ainda dispõe de uma satisfatória – embora fortemente declinante – capacidade de autonomia”10. Segundo esse autor, “A integração da América do Sul é condição sine qua non para que os países sul-americanos logrem preservar a margem de autonomia de que ainda dispõem, e incrementá-la de maneira significativa” 11. De fato, o mundo multipolar caracterizado pela globalização e os grandes blocos econômicos como a Europa (União Européia), América do Norte (Nafta) e Ásia, tornam prioritária a integração dos países da América do Sul. Na opinião de Samuel Pinheiro Guimarães, o Brasil, pelas “características da situação geopolítica, seu território, sua localização geográfica, sua economia, assim como a conjuntura e a estrutura do sistema mundial, torna a prioridade sul-americana uma realidade essencial”12. O quadro abaixo ilustra o PIB-PPC (Capacidade de Poder de Compra) dos países do Mercosul, com a entrada da Venezuela. A entrada da Venezuela eleva o PIB-PPC do Mercosul para mais de US$ 2,6 trilhões (2007). O quadro, porém, deixa entrever as grandes assimetrias existentes entre os cinco países-membros e que explicam o comportamento pendular dos sócios menores, fundadores do Mercosul – Uruguai e Paraguai –, deixando margem às especulações sobre esses países firmarem acordos unilaterais com os Estados Unidos e a
POPULAÇÃO
PIB (PPC)
PIB (PPC)
(2007)
(milhões de US$)
(US$ per capita)*
IDH
PAÍS BRASIL
190.011.861
1.803.000
12.360
0,800
ARGENTINA
40.403.943
540.000*
14.280
0,869
VENEZUELA
26.085.281
226.922
8.251
0,792
URUGUAI
3.447.920
37.540*
9.962
0,852
PARAGUAI
6.667.884
31.260*
4.642
0,755
266.616.889
2.638.722
9.889
0,813*
TOTAL
(*) Dados estimativos para 2007. Fontes: Bancos Centrais: Brasil, Argentina, Venezuela, Uruguai e Paraguai; IBGE (Brasil); IDH-PNUD (Banco Mundial).
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União Européia, colocando em risco o êxito das negociações conjuntas do bloco. Após o 11 de Setembro e a derrota dos Estados Unidos na Rodada da Alca de novembro de 2003, em que o governo brasileiro obteve vitória na rejeição da proposta norte-americana de integração, a estratégia dos Estados Unidos tem sido tentar avançar através da assinatura de acordos bilaterais (TLC). Essa política vem tendo sucesso com países da América Central e, na América do Sul, com Chile, Peru, Panamá, Colômbia e Equador13. Porém, também os pequenos países do Mercosul vêm sendo alvo das propostas dos Estados Unidos. Desde 2004 o cerco vem aumentando, atraindo empresários e dirigentes do Paraguai e do Uruguai, países de economia mais frágil, que lutam pela manutenção das condições de trabalho de seus cidadãos. Essa é a opinião de alguns intelectuais uruguaios que procuram justificar o comportamento pendular demonstrado pelos governos de seu país com o fato de que Brasil e Argentina têm dificultado o acesso de seus mercados para os produtos uruguaios (caso das exportações de arroz e água mineral para o Brasil ou de bicicletas e outros bens para a Argentina) ou ainda adotando normas unilaterais à revelia dos parceiros − atitudes que comprometem o sentido das vantagens da integração e dificultam o comércio e a criação de novas oportunidades e fontes de trabalho que beneficiariam os sócios menores. Outros observadores, entretanto, reconhecem interesses mais pragmáticos por detrás dos pronunciamentos das lideranças paraguaias e uruguaias, de ações unilaterais contra normas aprovadas pelo bloco. O economista uruguaio Raúl Zibechi, observa, com pertinência: Las razones de fondo [...] hay que buscarlos en casa. Tanto para Duarte Frutos [Paraguay] como para Tabaré Vázquez [Uruguay], optar hoy por el Mercosur supone enfrentarse, en el primero caso, al poderoso grupo ganadero-sojero; y, en el segundo, a los grandes exportadores y importadores. Son ellos los que están forzando un acercamiento a Estados Unidos, y no algún misterioso empeño de Brasil y Argentina para perjudicar a sus socios del Mercosur. Pero enfrentarlos requiere coraje político y determinación. […].14
Entretanto o Ministério de Relações Exteriores do Brasil parece não admitir a possibilidade de uma implosão. Samuel Pinheiro Guimarães assinala que no atual contexto da globalização as características dos “Estados Baleias”, blocos economicamente mais poderosos, levam esses países a adotar esquemas distintos aos interesses dos países subdesenvolvidos e os colocam à mercê das decisões estratégicas dos países centrais. Para Guimarães, Os países médios que constituem a América do Sul se encontram diante do dilema ou de se unirem e assim formarem um grande Bloco de 17 milhões de quilômetros quadrados e de 400 milhões de habitantes para defender seus interesses inalienáveis de aceleração e desenvolvimento econômico, de preservação de
autonomia política e de identidade cultural, ou de serem absorvidos como simples periferias de outros grandes blocos, sem direito à participação efetiva na condução dos destinos econômicos e políticos desses blocos, os quais são definidos pelos países que se encontram em seu centro15.
Entrementes, a análise sobre os progressos do processo de integração permite verificar as conquistas políticas que levaram ao bloqueio da Alca, obstruindo o avanço poderoso dos Estados Unidos na região, como a importante assinatura, em 08/12/2004, da Declaración de la Comunidad Sudamericana de Naciones, firmada em Cuzco (Peru) pelos presidentes de doze dos quinze países do continente, durante a reunião da III Cumbre Presidencial Sudamericana16. O Protocolo assinado, de formação da Comunidad Sudamericana de Naciones, declara no Preâmbulo: Los Presidentes de los países de América del Sur reunidos en la ciudad de Cuzco en ocasión de la celebración de las gestas libertarias de Junín y Ayacucho y de la convocatoria del Congreso Anfictiónico de Panamá, siguiendo el ejemplo de El Libertador Simón Bolívar, del Gran Mariscal de Ayacucho Antonio José de Sucre, del Libertador José de San Martín, de nuestros pueblos y héroes independentistas que construyeron, sin fronteras, la gran Patria Americana e interpretando las aspiraciones y anhelos de sus pueblos a favor de la integración, la unidad y la construcción de un futuro común, hemos decidido conformar la Comunidad Sudamericana de Naciones17.
Tendo em vista o estreitamento de relações com os blocos do subcontinente (CAN e Aladi principalmente), a Declaração expõe o compromisso de desarrollar un espacio sudamericano integrado en el político, social, económico, ambiental y de infraestructura, que fortalezca la identidad propia de América del Sur y que contribuya, a partir de una perspectiva subregional y, en articulación con otras experiencias de integración regional, al fortalecimiento de América Latina y el Caribe y le otorgue una mayor gravitación y representación en los foros internacionales18.
A criação da Comunidade Sul-Americana de Nações (CSN) representa um grande passo em direção à desejada “integração aberta” (Cepal), abrindo a possibilidade para a futura associação do Chile, do Suriname e da Guiana − os dois últimos países, observadores não-signatários da Declaración. Entretanto, os países firmatários se comprometiam a estreitar acordos de cooperação nos seguintes pontos: − pactuação de coordenação política e diplomática que afirme a região como fator diferenciado e dinâmico em suas relações externas; − aprofundamento da convergência entre Mercosul, Comunidade Andina e Chile, através do aperfeiçoamento de zonas de livre comércio até sua evolução para as fases supePUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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riores de integração econômica, social e institucional, à qual poderiam vir também se associar o Suriname e a Guiana; − harmonização de políticas que promovam o desenvolvimento rural e agro-alimentar; − transferência de tecnologia e de cooperação horizontal nos âmbitos da ciência, educação e cultura; − crescente interação entre empresas e sociedade civil na dinâmica da integração do espaço sul-americano, levando em conta a responsabilidade social das empresas.19
Os caminhos da Integração: a integração possível No final da década de 1990 tornara-se claro, para a maioria dos líderes da América do Sul, que haviam adotado os “preceitos do Consenso de Washington” em seus países, não haver a menor possibilidade de construção de um espaço econômico e político independente sem rompimento dos entraves a uma forte integração regional, unindo os interesses comuns. O primeiro passo foi dado por iniciativa do governo brasileiro (Fernando Henrique Cardoso) em 2000, ao promover a primeira reunião de cúpula dos Chefes de Governo sulamericanos, em Brasília20. A I Cumbre Presidencial Suramericana se realizou com o apoio do BID (Enrique Iglezias) e da CAF-Corporación Andina de Fomento (Enrique García), cujos Presidentes participaram do Encontro, além de representantes dos Congressos Nacionais do Brasil e do México e dos mais importantes organismos da América Latina: Aladi, CAN, Parlatino, Sela, Cepal, Fonplata e Bladex - Banco Latinoamericano de Exportaciones. Nesse Encontro, os Chefes de Estado afirmaram o compromisso de seus países com a integração da América Latina e do Caribe como meta da política externa de cada país, e aprovaram a criação de um amplo Plano de Integração da Infra-estrutura Regional da América do Sul, que recebeu a sigla Iirsa, proposta pelo BID. O Iirsa se constituía em Fórum específico dos Ministros responsáveis pelas áreas de infra-estrutura de transporte, energia e comunicação dos países presentes na Cumbre de Brasília, para discutir interesses comuns e firmar acordos visando a integração física e energética do continente. A I Cumbre Presidencial Suramericana, portanto, é marco de uma inflexão decisiva no avanço do processo de integração regional, ao ampliar o diálogo entre os países interessados no incremento das obras de infra-estrutura em parceria com governos e grupos empresariais. Politicamente reafirma a adesão aos princípios do “regionalismo aberto” e reforça a posição da política externa brasileira sobre a necessidade de os países da América do Sul defenderem seus interesses e marcarem posições conjuntas nos foros de negociações internacionais relevantes, como Alca, Rodadas da OMC, etc. Segundo as intervenções realizadas no Encontro, integração e desenvolvimento da infra-estrutura física são duas li-
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nhas de ação que se complementam. O item 36 do documento final da Cumbre, assinado pelos Chefes de Estado, reconhece que a formação de um amplo espaço econômico sul-americano coordenado dependeria da complementação e expansão dos projetos já existentes em seus países e da identificação de novos projetos de infra-estrutura de integração, orientados pelos princípios de sustentabilidade social e ambiental, capacidade de atração de capitais extra-regionais e geração de efeitos multiplicadores intra-regionais21. Entretanto, o ambicioso Plano de Ação para Integração da Infra-estrutura Regional da América do Sul − Iirsa, apresentado pelo BID e aprovado, continha sugestões e propostas, a serem implementadas no período de 10 anos, para ampliação e modernização da infra-estrutura física nas importantes áreas de energia, transporte e comunicação. O documento realiza um estudo preliminar dos eixos de integração e desenvolvimento econômico e social do futuro espaço ampliado da região, atentando para a situação particular de países que, como a Bolívia e o Paraguai, enfrentam dificuldades geográficas para o acesso de seus produtos, por via marítima, aos mercados internacionais22. No campo dos transportes, a prioridade é dada à conformação de redes multimodais, que melhor articulem a utilização das vias terrestres, fluviais, marítimas e aéreas de cada país, facilitando o trânsito transfronteiriço de pessoas, veículos e cargas, e contribuindo para dinamizar o comércio e as inversões no conjunto da região. No setor de energia, a integração propõe possibilitar a complementação dos recursos nas áreas de carburantes líquidos e gasosos, através de exploração integrada e intercâmbio de combustíveis como gás natural, interconexão elétrica e de empresas de distribuição de energia elétrica. Também as telecomunicações estão contempladas23. O documento aprofunda, ainda, a discussão sobre cooperação nas áreas de Informação, Conhecimento & Tecnologia24. As diretrizes principais do Iirsa foram aprovadas em dezembro de 2000, pelos Ministros de Transporte, Telecomunicações e Energia dos 12 países assinantes da Cumbre, reunidos em Montevidéu. Segundo o documento, o Iirsa possui os seguintes objetivos: 1. Delinear uma visão mais integral da infra-estrutura. 2. Enquadrar os vários projetos dentro de um planejamento estratégico a partir da identificação dos eixos de integração e desenvolvimento regionais. 3. Modernizar e atualizar os sistemas regulatórios e institucionais nacionais que normatizam o uso da infraestrutura. 4. Harmonizar as políticas, planos e marcos regulatórios e institucionais entre os Estados. 5. Valorizar a dimensão ambiental e social dos projetos. 6. Melhorar a qualidade de vida e as oportunidades das populações locais nos eixos de integração regional. 7. Incorporar mecanismos de participação e consulta. 8. Desenvolver novos mecanismos regionais para pro-
gramação, execução e gestão de projetos. 9. Estruturar esquemas financeiros adaptados à configuração específica de risco de cada projeto25. Também foi aprovado que as obras definidas pelo Grupo Executivo, receberiam financiamento dos governos dos países beneficiados (62,3%), cabendo à iniciativa privada 20,9%, sendo o restante (16,8%) partilhado por agências como BID, CAF − Corporação Andina de Fomento, Fonplata − Fondo Financiero para el Desarrollo de la Cuenca del Plata e BNDES − Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social do Brasil 26. A II Cumbre Presidencial, realizada em Guayaquil (Equador), em julho de 2002, reforçou o Plano de Integração, tendo como pauta a “Integração física das infra-estruturas da América do Sul”, possibilitando a ação do Comitê Técnico Executivo do IIRSA, que em 2003 definiu três objetivos a serem atingidos: (1) apoio à integração dos mercados para melhorar o comércio intra-regional; (2) promoção de novas cadeias de produção para se tornar competitivo em mercados globais maiores; (3) redução do custo sul-americano, criando uma sólida plataforma logística, bem inserida na economia global27. Em um continente com enormes obstáculos naturais como a Cordilheira dos Andes e a Floresta Amazônica, que isolam e separam externa e internamente os Estados sul-americanos, dificultando o contacto entre os povos do continente, o IIRSA se firma com a proposta de realizar a integração física de regiões e sub-regiões, de forma a garantir o crescimento comercial aberto de suas economias. Como órgão planejador, analisa e aprova grandes projetos de construção de vias de comunicação, de norte a sul e de leste a oeste, que visam interligar o continente do Caribe à Patagônia e do Atlântico ao Pacífico, integrando as várias fontes de energia e conectando as ricas zonas de recursos naturais (gás, água, petróleo, minerais), propiciando, assim, condições para a melhor exploração e aproveitamento da rica biodiversidade sul-americana. Essas obras não são somente de enorme interesse para os Estados, como também apresentam enormes benefícios para as grandes empresas e multinacionais mineradoras e empresas de serviços que atuam na região. O documento da Cartera de Proyectos IIRSA-2004, contendo o programa definido de obras para a integração da infra-estrutura de transportes, energia e comunicações, seria finalmente aprovado na reunião da III Cumbre Presidencial Suramericana. Os estudos apresentados pelo Grupo Técnico Executivo, para o período 2003-2006, resultaram na definição das obras da Cartera de Proyectos IIRSA-2004, desde então acrescida pelas obras do Eixo Amazônico (aprovadas em abril de 2005) e a incorporação de três novos projetos, solicitados pelo governo do Paraguai e aprovados na VIII Reunião do Comitê de Desenvolvimento Econômico, realizada em Quito (Equador), em dezembro de 2006. Os 10 Eixos de Integração e Desenvolvimento definidos pelo IIRSA abrangem 351 projetos, inicialmente estimados em US$ 37.882,3 bilhões. São eles:
1. Eixo Andino (Venezuela-Colômbia-Equador-PeruBolívia); 2. Eixo Amazônico (Colômbia-Equador-Peru-Brasil); 3. Eixo do Escudo das Guianas (Venezuela-Brasil-Suriname-Guiana); 4. Eixo Capricórnio (Chile-Argentina-Paraguai-Bolívia-Brasil); 5. Eixo Sul (Chile-Argentina); 6. Eixo Interoceânico Central (Peru-Chile-Bolívia-Paraguai-Brasil); 7. Eixo Mercosul-Chile (Brasil-Uruguai-ArgentinaChile); 8. Eixo Amazonas-Sul (Peru-Brasil-Bolívia); 9. Eixo Hidrovia Paraguai-Paraná (Brasil-ParaguaiUruguai-Argentina-Bolívia); 10. PSI/TCI (Processos Setoriais de Integração/Tecnologia de Informação e Comunicação), de interesse do Paraguai. 28 Os acordos firmados asseguraram financiamento para as seguintes obras: (i) Carretera Interoceánica: em execução, a imensa carretera cortará horizontalmente o continente, do Atlântico ao Pacífico, através de cinco Estados brasileiros (Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul), atravessando o Paraguai e a Bolívia, país em que percorre oito dos nove departamentos, com exceção do departamento de Pando; no Peru, atravessa as Províncias de Arequipa, Moquegua, Tacna, até o norte do Chile, de onde atinge o Oceano Pacífico. A Carretera garantirá à Bolívia o desejado acesso e saída para o Oceano Pacífico, beneficiando tanto o Peru como o Brasil, ao permitir a saída de seus produtos para o Atlântico e o Pacífico. O financiamento das obras será partilhado em 60% pelo Brasil (BNDES) e 40% pelo Peru, e conta com os auxílios do BID e da CAF, em menor escala. A obra, iniciada em setembro de 2005, tem prazo previsto para 2009. (ii) Ligação energética Sul: garante o acesso do Brasil ao gás natural do Peru (gás de Camisea) e ao gás da Bolívia, com a construção de usinas e oleodutos pela Petrobras − Petróleo Brasileiro S.A., permitindo sua distribuição para o Brasil, o Uruguai, a Argentina e o Chile. (iii) Gasoduto Binacional: Projeto energético de interesse da Colômbia e da Venezuela, financiado pela PDVSA − Estatal Petrolera Venezuelana, com custo de US$ 300 milhões. As obras, iniciadas em meados de 2006, deverão estar concluídas em 2008. Em dezembro de 2007, o Grupo Técnico Executivo do IIRSA aprovou 351 projetos (valor estimado de US$ 60.707,5 bilhões), dos quais 145 projetos (41,3%) encontram-se em execução. Custo: US$ 21.194,6 bilhões. Destes, 31 projetos são considerados prioritários, tendo sido aprovados pela Agenda de Implementação Consensuada (AIC) dos países29. Os demais projetos, incluídos na Cartera de 2003-2006, aguardavam em 2004 as verbas para sua execução. Destes, quatro projetos pertencem ao Eixo Amazônico, três ao Eixo Andino, dois ao Capricórnio, quatro ao Escudo das Guianas, sete ao PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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FONTES DE FINANCIAMENTO DA IMPLEMENTAÇÃO DA CARTEIRA IIRSA Número de projetos
Montante
%
Tesouro
Privada
BID
CAF
FONPL
Andino
29
2.617,4
12,3
1.599,2
944,7
23,0
50,5
0,0
Capricórnio
18
1643,6
7,8
812,4
12,0
540,0
144,2
135,0
Amazônico
8
1884,3
8,9
1.313,6
410,7
160,0
0,0
0,0
Escudo das Guianas
8
657,4
3,1
390,9
0,0
120,5
96,0
0,0
Sul
13
1.123,3
5,3
1.104,3
0,0
0,0
0,0
0,0
Interoceânico Central Mercosul Chile
21
3.077,2
14,5
2379,8
114,3
77,0
506,1
0,0
39
8.647,4
40,8
5.398,0
2.371,0
539,0
199,3
10,0
Peru-Brasil-Bolívia
7
1.541,1
7,3
203,3
554,6
208,7
546,5
28,0
PSI
2
2,9
0,0
1,0
0,0
1,9
0,0
0,0
145
21.194,6
-
13.202,5
4.407,3
1.670,1
1.542,6
173,0
EIXO
TOTAL Fonte: IIRSA-GTE. 2007. Loc.cit. p. 50.
Interoceânico Central, sete ao Mercosul-Chile, dois ao PeruBrasil-Bolívia e dois PSI/TIC, Paraguai-Brasil. Vinte e quatro projetos deverão estar concluídos ou em estágio avançado até 2010 e quatro no transcurso de 2008. Três projetos aguardavam a liberação de verbas para implementação da execução. Quanto às fontes de financiamento, o Relatório IIRSA2007 chama a atenção para o fato de que 60,2% dos projetos estariam sendo executados com esforço dos Tesouros Nacionais dos Estados envolvidos, enquanto o setor privado e as instituições financeiras internacionais respondiam apenas pelo financiamento de 39,8% deles, conforme relacionado na tabela acima. O Brasil, porém, arca com a maior parte dos financiamentos. De acordo com informações do governo brasileiro, o acesso às linhas de financiamento do BNDES se dá sobretudo via Finame (linha especial de financiamento de longo prazo, para aquisição de máquinas e equipamentos fabricados no Brasil). Desde 2003 o Presidente Lula comprometia-se em abrir, junto ao BNDES, uma nova linha específica de crédito para financiamento de obras na Venezuela (US$ 1 bilhão), Argentina (US$ 1 bilhão), Peru (US$ 1 bilhão), Bolívia (US$ 600 milhões), Paraguai (US$ 350 milhões), Equador (US$ 120 milhões), Uruguai (US$ 50 milhões), perfazendo US$ 4.120 bilhões30. Em 2006 o BNDES abriu uma linha especial de financiamento para a integração de cadeias produtivas no Mercosul (BNDES-Exim), com base no índice mínimo de nacionalização de 60%, exigido pelo Finame, financiamento que tem sido estendido aos demais parceiros da América
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do Sul. Dessa maneira, o Banco vem atuando de forma ativa no financiamento da implantação dos projetos do IIRSA. Segundo Armando Mariante Carvalho Júnior, Vice-Presidente do BNDES, em 2006 o Banco financiou obras para empresas com o mínimo de 60% de capital brasileiro31, exigido pela Legislação, viabilizando alguns dos principais projetos da América do Sul, como a construção da Hidrelétrica de la Voltosa, na Venezuela; a Hidrelétrica de San Francisco, no Equador; a Ruta Diez, a mais importante carretera do Paraguai; o megaprojeto de transporte urbano da cidade de Bogotá, conhecido como Transmilênio; a ampliação da rede de gasodutos da Argentina; a linha de transmissão Punta del Tigre no Uruguai; o mega-projeto de transporte urbano da cidade de Lima (Peru), em condições semelhante ao da Colômbia; já estando em estudo outros projetos similares no Equador e na Bolívia32. Eu diria, confirma Carvalho Junior, que na implantação de projetos de infra-estrutura, em larga escala apoiados pelo Banco − hidrelétricas, aeroportos, projetos de transporte coletivo −, é que reside o grande potencial da integração. São projetos de grande porte, de investimentos vultosos, e geram muito emprego, não só no Brasil, quando as importações são daqui, como nos países onde os recursos estão sendo aplicados. Talvez, mais do que qualquer outra iniciativa, eles mudarão a vida das pessoas, transcendendo o cotidiano e representando o novo.33
De fato, as grandes empresas e indústrias brasileiras ou que atuam neste país estão sendo as maiores beneficiárias do
atual processo de integração. Entre 2004 e 2005, as exportações do Brasil para o Mercosul aumentaram em 32% e para os países da Aladi, em 27%. O desembolso de recursos do BNDES, para financiamento de exportações na América do Sul, que era de US$ 115 milhões em 2003, saltou para US$ 343 milhões em 2005 e vem aumentando. Esses projetos vêm recebendo o apoio decisivo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, garantindo sua popularidade por toda a América Latina. Quanto à implementação necessária da rede brasileira de infra-estrutura, o Governo Lula apresentou à nação, em janeiro de 2007, um megaprojeto de reconstrução da infra-estrutura nacional, o Programa de Aceleração do Crescimento − PAC, abrangendo as áreas social e urbana, de transporte e de energia, investimentos da ordem de US$ 296,4 bilhões34. Apresentado sem maiores discussões, às vésperas das eleições municipais, o PAC, mal-analisado, vem recebendo críticas de grande parte da sociedade. No entanto, desde 2003, críticas fundamentadas sobre a insuficiência de estudos sobre os impactos sócio-ambientais das obras aprovadas pelo Iirsa vêm sendo ignoradas, sobretudo na Amazônia brasileira, mais povoada35. Críticos do Iirsa, como Raúl Zibechi, afirmam que os megaprojetos sul-americanos aprovados têm como objetivo acelerar a exploração e a exportação de matérias-primas e conectar os países sul-americanos ao restante do mundo, beneficiando apenas as grandes empresas nacionais e multinacionais, sem benefício das populações locais36. Outro aspecto se refere ao fato de que nenhum desses projetos parece ter sido pensado como proposta de aproximação entre as populações dos países envolvidos, e sim como incorporação e adaptação de territórios37. Os críticos concordam com E. Paim, que “uma verdadeira integração física do continente e dos povos da América do Sul deveria objetivar o seu desenvolvimento, e não a expansão dos negócios das grandes corporações mundiais”38.
Simón Bolívar e a Utopia Bolivariana da Integração Tentativas anteriores de integração comercial ou defensiva ocorreram desde o século XIX, momento da independência dos povos sul-americanos. Simón Bolívar foi o primeiro a pregar o nacionalismo e a necessidade de integração das nações recém-libertadas do jugo de Espanha. Essas idéias foram aplicadas pelo Libertador durante a independência da Venezuela, por ocasião da constituição do Estado da Grã-Colômbia, em sua frustrada tentativa de unir Venezuela, Equador, Colômbia e Bolívia em uma mesma república. O Projeto expressava a idéia de uma Confederação continental, apresentada por Bolívar na “Convocatória para o Congresso do Panamá”, em 1822. O objetivo da Convocatória era, então, a formação de uma Assembléia de plenipotenciários desses governos e que “servisse de conselho nos conflitos graves, de ponto de contato nos perigos comuns, de fiel intérprete nas tratativas públicas quando se apresentem as dificuldades, enfim
de [fórum] conciliador de nossos desacordos”, conforme escreve de próprio punho39. (Tradução nossa). Na ocasião do I Congresso do Panamá, Bolívar preferira ignorar os conhecidos particularismos existentes entre as diferentes regiões, incentivados pelos monarcas de Espanha e cujo lema político fora “dividir para melhor governar” os territórios longínquos das Américas. Acreditava na união como necessidade para a preservação da autonomia das jovens nações em face das investidas das antigas metrópoles e das potências européias, cujos tratados abriam, após a queda de Napoleão Bonaparte, um novo período de fechamento e contra-revolução − lição que aprendera como observador no Congresso de Viena (1815); por isso tentara inutilmente reunir, em um mesmo Foro, interesses tão distintos quanto os das elites da Colômbia, do México, do Peru, do Chile e da Argentina (Buenos Aires, em especial). Fracassados os objetivos do Congresso de 1822, voltaria a propor, em outro grave momento político em que a unidade da Grã-Colômbia se via ameaçada, uma nova Assembléia de Cúpula, reunida no Istmo do Panamá (ou outro território qualquer, à escolha dos Chefes de Estado e caudillos convidados), reunião que ficou conhecida como Congresso do Panamá de 1825. Apela na Convocatória para o Encontro: Após quinze anos de sacrifícios consagrados à liberação da América, é agora tempo, se quisermos estabelecer um sistema de garantias que seja, na guerra como na paz, o símbolo do nosso destino, que os interesses e as relações que unem as repúblicas americanas, outrora colônias espanholas, obtenham uma base fundamental que perpetue tanto quanto possível a existência desses governos. (...) Estabelecer este sistema e consolidar o poder deste grande organismo político é competência de uma autoridade superior que dirija a política de nossos governos e cuja ação assegure a homogeneidade de seus princípios e apazigúe nossas diferenças. Tão respeitável autoridade só pode emanar de uma assembléia de plenipotenciários nomeados por cada uma de nossas repúblicas e reunida sob os auspícios da vitória de nossos exércitos contra o poder espanhol40. (Tradução nossa)
Note-se que ao propor por duas vezes (em 1822 e 1825) a instalação de uma “Assembléia permanente de Plenipotenciários”, o texto de 1825 não se refere à Doutrina Monroe, lançada pelo presidente James Monroe em 1823. Justifica a escolha do Panamá, como local estratégico, porque situado no centro do globo do continente americano, tendo de um lado o Oceano Pacífico e a vista sobre a Ásia e, do outro, o Atlântico, abertura para a África e a Europa. Porém ignora o Brasil. Republicano convicto, despreza o recém-independente Estado do Brasil, governado por um monarca, regime político que abomina. Nesse aspecto, desconfia das intenções de D. Pedro I, futuro herdeiro do trono PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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de Portugal que emancipara a grande colônia portuguesa, tornando-se seu Imperador. O convite da segunda convocatória do Congresso do Panamá dita uma esperança: O dia em que nossos Plenipotenciários efetuarão a troca de seus poderes fixará uma data imortal na história da América. Quando, em mil anos, a posteridade procurará a origem do nosso direito público e quando lembrará os pactos que asseguraram sua sorte, se inscreverá com respeito os protocolos do Istmo, onde se encontrará o projeto das primeiras alianças que imprimiu sentido a nossas relações com o Universo. Que será então o Istmo de Corinto perto do do Panamá? Deus guarde V. Excelência41. (Tradução nossa)
Bolívar tem, como pano de fundo para suas idéias, a formação de uma união confederada que reunisse as jovens nações da América do Sul, pregando a integração do México à Terra do Fogo. Não ignora os divisionismos, regionalismos e localismos, nem os múltiplos interesses entre facções e personalidades individuais que dividiam as lideranças das jovens nações sul-americanas de sua época, revelados na falta de unidade, acordo e harmonia, conforme se pode ler na correspondência que mantém com seus generais entre 1819 e 1820. Em Carta de 20/12/1819, dirigida ao Vice-Presidente da Província de Cundinamarca, questiona como naquelas circunstâncias se poderia fazer sair a América dividida de sua impotência, de forma a se fazer respeitar pelas demais nações, senão explorando suas riquezas através dos vários movimentos de unidade ibero-americana e pan-americana que empurravam as jovens nações a se unirem. Visando esse objetivo, escreve, é que convocara e tentara realizar, em 1822, o primeiro Congresso do Panamá, no qual expusera e defendera, inutilmente, a necessidade de um nacionalismo continental42. Sabemos como o Projeto − considerado utópico − de Simon Bolívar fracassou desde 1829, quando o Estado colombiano se dissolveu em três repúblicas – Venezuela, Nova Granada (Colômbia), Quito ou Equador −, acompanhando o declínio do prestígio do Libertador. É que as suas idéias de estadista internacionalista e nacionalista, de integração e união, estavam muito à frente de seu tempo e surgiriam na Europa somente anos após a sua morte, ocorrida em 1830. Com razão conclui Vamireh Chacon, professor da Universidade de Brasília, ter sido sua revolução “a maior expressão ibero-americana de liberalismo radical”43.
A Integração dos Povos e a Proposta Alba (Hugo Chávez) No século XX, sob influência de Raúl Prebisch e da Cepal, esboçou-se na América do Sul um novo movimento em prol da união dos países, através da criação de um bloco econômico comum – a Alalc, substituída em 1969 pela Aladi.
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Entretanto, até o final da década de 1970, os governos militares brasileiros estiveram alheios às políticas de integração, disputando com a Argentina pequenas questões, a exemplo da escolha estratégica da localização da barragem da hidrelétrica de Itaipu, a maior das Américas, em águas partilhadas na tríplice fronteira de Brasil, Paraguai e Argentina, embora construída à custa do Tesouro brasileiro. A redemocratização do Brasil (1985) abriu a possibilidade de nova aproximação compartilhada entre o Brasil e a Argentina, concretizada em 1988 na proposta do Mercosul, efetivada em 1989 graças à confluência de interesses dos Presidentes do Brasil (José Sarney) e da Argentina (Raúl Alfonsin). Na ocasião, a proposta recebeu espontânea adesão dos governos do Paraguai e do Uruguai, países que vislumbraram no Mercosul a solução para seus problemas internos de crescimento. Norteava a concepção desses governos a idéia de que o Mercosul era necessário para a defesa dos interesses econômicos e políticos de suas nações, em um cenário internacional que se tornava cada vez mais competitivo, agressivo e concentrador. Analisando o período, Samuel Pinheiro Guimarães (2005) afirma ter a década de 1990 interrompido a visão soberana que norteava a criação inicial do Mercosul. De fato, pressionados pelos credores internacionais, os governos da América Latina entrariam em retrocesso ideológico, com a destruição sistemática das políticas de soberania nacional. No Brasil, esse retrocesso foi acompanhado pela destruição dos ideais de uma “democracia para todos”, externado pelo Presidente da Câmara de Deputados, Ulysses Guimarães − desiderato expresso na Constituição de 1988, votada pelos representantes das forças democratas que haviam lutado para a derrubada do regime militar de 1964. Entretanto, o retrocesso só se tornou possível devido à enorme incompreensão do significado da globalização, que mascarou durante mais de uma década o verdadeiro sentido da ascensão do neoliberalismo sobre os povos. Todavia, o espaço nacional permanece o locus legítimo de elaboração das políticas mediáticas, que permitem o exercício do poder regulador do Estado sobre os cidadãos. Nesse sentido, surgem brechas que possibilitam a defesa dos interesses econômicos e políticos em países como Argentina, Brasil e Venezuela, e mesmo países menores, como Uruguai, Paraguai, Bolívia e Equador. Os indicadores econômicos e sociais, porém, mostram que as nações que mais sofreram os impactos das crises do sistema mundial, nos últimos dez anos, foram também as que, como a Argentina, mais cederam ao modelo neoliberal. No Brasil, o desemprego e o baixo rendimento dos salários atingiu não somente as camadas mais pobres, tornando-as miseráveis, como larga parcela de indivíduos das camadas médias, que hoje se encontram empobrecidas. Muitos foram excluídos e lançados à marginalidade social, em decorrência das políticas de estabilidade adotadas. Sem dúvida, a novidade dos dias atuais, que impacta nos centros de domínio do pensamento neoliberal do qual fazem parte membros das camadas médias e superiores das
sociedades locais, intelectuais e sindicalistas, ao lado de representantes do universo oligárquico conservador, são as organizações espontâneas, inorgânicas e difusas de setores populares, que fogem ao controle das mídias, das igrejas e dos aparelhos do Estado. Como indicam os estudos de sociólogos como Aníbal Quijano, Pablo Casanova, Oscar Lander, Jaime Preciado Coronado, a busca individual pela sobrevivência termina por encontrar formas coletivas de organização e sobrevivência, cooperação e manifestação, através das quais se vão configurando novos atores sociais, com reivindicações, discurso e mobilização que escapam ao controle das elites e oligarquias, abrindo caminhos e levando os intelectuais a reboque. Esses movimentos passam a abrigar, cada vez mais, desempregados oriundos de setores rurais (MST, indígenas, quilombolas no Brasil, campesinos na Bolívia, no Peru, no Equador) e urbanos (ex-operários, moradores de rua, catadores, comunidades de bairros da periferia, sem-tetos, etc.), cujas ações se confundem com outras, tais como a organização de trabalhadores que assumem a administração de fábricas falidas, gestões coletivas de usinas de açúcar, grupos de famílias que se organizam em núcleos locais para produção e artesanato, cooperativas de variadas formas de reciprocidade, da pesca às atividades extrativistas, do artesanato à pequena agricultura. Todos expressão de movimentos que se revelam e se ampliam, apesar da repressão a que muitos estão submetidos. Alguns movimentos de “protesto espontâneo”, que explodiram de forma mais ou menos radical, adquirem relevância por seu significado, como o MST − Movimento dos Sem-Terra − no Brasil ou os piqueteros argentinos (fenômenos relativamente novos na América do Sul),44 ou os movimentos de minorias que buscam, de forma ainda difusa, o reconhecimento de suas identidades nacionais, a exemplo dos descendentes de antigos povos indígenas que, em período recente, derrubaram governos neoliberais na Bolívia e elegeram um Presidente identificado com a causa indigenista: Evo Morales. Não se pode esquecer, porém, que muitos desses movimentos são herdeiros de experiências anteriores, divulgadas por remanescentes de antigas organizações políticas dispersadas pelos aparelhos estatais de repressão. O mesmo se pode dizer da “novidade” do chamado “poder local”, proposta discutida na América Latina desde os anos 1950 e aplicada com êxito no Brasil por governos municipais, incluindo uma cidade média de 200 mil habitantes, como é o caso, em São Paulo, da experiência do governo municipal de Piracicaba na gestão do Prefeito João Herrmann, de 1976 a 1982. É nesse contexto que surge e se firma a figura controversa de Hugo Chávez, na Venezuela, saudada por alguns estudiosos como “a primeira vitória das massas populares na América e no mundo em muitos anos” (Aníbal Quijano, 2002), introduzindo no debate da integração a proposta Alba − Alternativa Bolivariana para a América Latina e o Caribe. O Programa Alba foi apresentado por Chávez durante o encontro da III Cumbre Presidencial Sudamericana, em
Cuzco (08/12/2004), por ocasião da assinatura do Protocolo de criação da Comunidade Sul-americana de Nações e aprovação do Programa IIRSA-2004. A Alba se apresentava como uma proposta integradora, alternativa e diferenciada, aberta aos “Povos de Nuestra América”, devendo ser amplamente discutida pelas bases, isto é, por todas as organizações populares, em coordenação com as iniciativas dos “governos populares da América Latina e do Caribe”, incluindo Cuba. O Preâmbulo do documento apresenta a seguinte advertência: A Alba se encontra em construção e sua elaboração tem que ser o resultado de uma ampla participação popular, através de seminários e assembléias. Ao final deste processo contaremos com uma ferramenta poderosa para nossa integração, que será apresentada ao Presidente Chávez para compatibilizar as idéias e projetos do campo popular com as propostas que desenvolve a República Bolivariana da Venezuela45.
Embora se declarasse aberta para “a América Latina e o Caribe”, a Proposta Alba diz respeito à realidade local da Venezuela e procura atender aos anseios também da população pobre, urbana e marginalizada. Segundo Martha Restrepo (2003), o discurso de posse do Presidente Chávez, em dezembro de 2002, já continha parte da essência do documento46. Outro estudioso da Venezuela, Corival A. Carmo, constata que “a contrapartida externa da democratização interna [de Chávez] é redefinir os limites da dependência”47. Na verdade, Chávez apresenta a Alba como a antítese da proposta norteamericana da Alca, para a América do Sul e o Caribe. Contando com o apoio do povo venezuelano e, posteriormente, também com o apoio de movimentos populares e da militância campesina e indígena dos países andinos e da América Central, a Alba tem se fortalecido como um caminho de inflexão popular na direção desejada pela integração dos povos, ao pretender integrar não apenas os setores do capital e seus produtos, mas também os povos, sua cultura e a educação. Significativamente, o Presidente Hugo Chávez tem procurado identificar sua política com a ideologia de Simón Bolívar, cujas idéias retornam idealizadas como força emancipadora muito forte, de vínculo solidário com os povos sulamericanos e caribenhos, inclusive Cuba, país com o qual a Venezuela tem assinado e assumido, desde 2002, acordos de auxílio, cooperação e amizade. Entretanto, os temas da Alba, apresentados na III Cumbre de 2004, em Cuzco, muitos de cunho social, estão longe de corresponderem aos objetivos da Comunidade Sul-americana de Nações, por se tratar de carências de cunho restrito, a serem resolvidas no âmbito das administrações locais, em nível estadual e municipal. Entre as propostas apresentadas como relevantes para a discussão da Integração da América Latina e do Caribe, figuram projetos de infra-estrutura física e energética e de comunicações, que já estavam em andamento para execução, conforme consta do Relatório IIRSA-2004 aprovado na III PUCVIVA 32 - JUL/SET DE 2008
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Cumbre Presidencial. De mesmo, aspectos como o Banco do Sul, proposto em pautas anteriores de reuniões das Cumbres, concretizado na reunião da Cúpula Presidencial de Buenos Aires, de dezembro de 200748. Quanto ao detalhamento mais específico das propostas, a Alba responde às carências internas e reivindicações específicas da população venezuelana ligadas às esferas do poder municipal, tais como abertura de creches, restaurantes populares, lavanderias automáticas em bairros carentes, campanhas de alfabetização e vacinação, etc., o que explica sua repercussão e seu sucesso nos países pobres andinos, na Bolívia e no Paraguai. Assim, com o apoio da controvertida pessoa do Presidente da Venezuela, a Alba ganhou visibilidade e entrou na pauta de discussões dos fóruns dos movimentos sociais mundiais e dos Povos da América Latina. Apoiado por esses movimentos, o debate das propostas tem chegado às ruas, sendo elas discutidas em “Contra-Cumbres” e por membros mais organizados dos movimentos das massas carentes de Caracas, Lima, La Paz, Quito e Bogotá. Apesar de a Alba se basear em algumas experiências anteriores, bem-sucedidas no Brasil, na Argentina, em Cuba e mesmo no Peru49, a recusa de Chávez em seguir o caminho natural da política externa da Venezuela (modelo do México), de incorporação do país à Alca, ou em assinar acordos unilaterais de comércio (TLC), nocivos à independência econômica de seu país, explica a adesão da Venezuela ao Mercosul. Essa posição de independência tem servido de modelo a outros líderes, repercutindo nas mudanças ocorridas nos cenários políticos da América do Sul, com as vitórias de Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador), eleitos com o apoio majoritário da população de seus países. “Los movimientos sociales surgidos en las últimas décadas, viven desde que gobierna Hugo Chávez una época dorada”, ressalta Raúl Zibechi, muito embora nem sempre coincidam com “los ritmos de transformación de las bases y el oficialismo”50. De fato, desde 2001, quando se reuniu o I Fórum Social Mundial na cidade de Porto Alegre (Brasil), ocasião em que intelectuais e representantes da sociedade civil latino-americana puderam publicamente debater temas relevantes como acesso e produção de riqueza, reprodução social, economia solidária, sustentabilidade, espaço público, democracia, participação da sociedade civil, poder político e ética, “governos do povo para o povo” e não “governos dos políticos”, outra integração vem surgindo no continente, a partir da rede de solidariedades criadas através da consolidação de movimentos sociais emer-
gentes e dos movimentos dos povos indígenas, que se alastra a partir dos países mais pobres. Desde então, cumprindo o desiderato manifestado no Fórum, repetem-se com êxito novas reuniões do Fórum Social Mundial na mesma data do Fórum Econômico de Davos, em que representantes das sociedades civis de várias partes do globo externam a discordância dos Povos em relação aos rumos da globalização51. Na Venezuela e em outros países da América Latina, anualmente se reúnem fóruns de Movimentos sociais alternativos, como “Alba” e “No a Alca”, que questionam a qualidade das instituições democráticas vigentes e suas práticas. Essas “Contra-Cumbres” (a denominação é do sociólogo mexicano Jaime Preciado Coronado) deixam clara a integração que interessa aos Povos sul-americanos: uma integração que vá além dos intercâmbios mercantis e que inclua pessoas, oferecendo oportunidades e repartindo riqueza para todos. Esses movimentos não se dão à margem da história, mas contra um padrão de dominação global em que têm tido importante papel setores avançados da sociedade civil e da igreja católica − padres, freiras e laicos engajados em defesa de minorias pobres e oprimidas. Também as mídias, se por um lado utilizam as novas tecnologias de comunicação e servem de suporte para o desenvolvimento da dominação e da exploração da grande maioria da população mundial, influenciando as idéias e alienando as consciências, por outro denunciam e impedem que esse padrão de poder domine de forma permanente e irresistível nossas sociedades, deixando a esperança de que esse processo possa ser democratizado e mesmo humanizado, sem termos que esperar a destruição do sistema pela via revolucionária. Essa utopia é alimentada por inúmeros intelectuais que atuam em nossas sociedades. Embora não acreditemos em utopias “salvacionistas” ou “humanizadoras”, de direita ou de esquerda, que preservem o padrão de poder e dominação, qualquer mudança incluirá uma mudança radical, inclusive na forma de se pensar o direito às diferenças intrínsecas a todos e a cada indivíduo: direito de pensar, se expressar, viver, respeito à vida incluindo a preservação dos meios de vida socializados e seus diversos habitáts. Democracia participativa ou autocracia política? Os caminhos dessa encruzilhada, expressa nos exemplos paradigmáticos de integração buscada pelos governos da América do Sul mostram que estamos vivendo um período de transição e também de conscientização cívica dos povos que se manifestam, de forma ainda difusa, contra ou pelas oligarquias dirigentes de seus países.
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7 QUIJANO, Aníbal. Des/colonialidad del poder: el horizonte alternativo. Lima: 2008. [Texto inédito, cedido pelo autor]. 8 GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Desafios brasileiros na Era dos Gigantes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. p. 407. O autor se refere, no livro, principalmente ao Brasil e à Argentina, países de mais forte diversidade econômica. 9 O Protocolo de ingresso da Venezuela no Mercosul foi aprovado na 29ª Reunião de Cúpula do Mercosul, realizada em 07/12/2005 em Montevidéu e ratificado pelo Parlamento dos países membros em 04/7/2006. Porém os Congressos do Brasil e do Paraguai ainda não aprovaram a ratificação do Protocolo, que somente em 24/10/2007 obteve a aprovação da Comissão de Relações Internacionais do Congresso Nacional brasileiro, aguardando sua aprovação pelo Plenário. Sobre a importante questão energética, HOLANDA, Francisco Mauro Brasil de. O gás natural no Mercosul: uma perspectiva brasileira. Brasília: FUNAG, 2001. 10 JAGUARIBE, Hélio. In: Seminário Internacional Pobreza e desenvolvimento no contexto da globalização. BNDES, 25-27/07/2006. Cadernos do Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 1 (1): 233. 2006. 11 Id., ib., p. 234. 12 GUIMARÃES, Samuel P. O desafio da integração. Loc. cit. 13 Os acordos assinados com o Equador vêm sendo revistos pelo atual governo de Rafael Corrêa. 14 ZIBECHI, Raúl. “Uruguay-Paraguay: Punto de inflexión”. Servicio Informativo ALAI-Amlatina,-24/08/2006. <info@alainet.org>. Acesso em agosto de 2006. 15 GUIMARÃES. Loc.cit. p. 2. 16 Os países reunidos em Cuzco foram Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela. Participaram da Reunião, como observadores, o Suriname e a Guiana. 17 III Cumbre Presidencial Sudamericana. Declaración del Cuzco sobre la Comunidad Sudamericana de Naciones. 08/12/2004. p. 1. www.comunidadandina.org/ documentos/de cint/cusco.sudamerica.htm. Acesso em 19/08/2006. 18 Id., ib., p. 2. 19 Ibid. Ibid. 20 Cumbre Presidencial. Brasília. 31/8 y 01/9/2000. www.iadb.org/sds/itdev/pdf. Acesso em fevereiro de 2008. 21 Id., ib., p. 8. 22 Id., ib., item 39. p. 9. 23 Id., ib., itens 39-41. p. 9-10. 24 Id., ib., itens 53-9. p. 12-3. 25 Reunión de Ministros de Transporte, Telecomunicaciones y Energía de América del Sur. Plan de Acción para la Integración de la Infraestructura Regional en América del Sur. Montevidéu: 04 a 05/12/2000. p. 3-4. 26 O Brasil é o único país da América Latina que dispõe de um forte banco de fomento, voltado para o desenvolvimento nacional – o BNDES. Criado em 1952 e dotado de ativos de US$ 87 bilhões, maior que os do próprio BID, de US$ 66 bilhões, o BNDES considera estar em condições de emprestar recursos para a execução de obras de infra-estrutura em condições mais competitivas do que os juros dos mercados internacionais, sem condicionar tais empréstimos a “compromissos de política externa” ou a execução de “reformas econômicas internas”. GUIMARÃES, Samuel P. Loc. cit. p. 7. 27 II Cumbre de Jefes de Estado de la Comunidad Sudamericana de Naciones. Declaración de Cochabamba: Colocando la Piedra Fundamental para una Unión Sudamericana. 8 y 9 de Diciembre 2006. <www.amersur.org.ar>. Acesso em 2007. 28 Id., ib., p. 4. 29 Id., ib., p. 50. 30 PAIM, Elisangela Soldatelli. IIRSA. É esta integração que nós queremos? Núcleo Amigos da Terra/Brasil-Friends of the Earth International. Dezembro de 2003. p. 24-25. <www.natbrasil.org.br/Docs/instituições financeiras;iirsa%202003.pdf>. Acesso em dezembro de 2007. 31 O governo Fernando Henrique Cardoso (1995) flexibilizou e abriu o país para o capital estrangeiro, redefinindo o conceito de ”empresa nacional” para todo grupo ou empresa que, mesmo pertencendo a estrangeiro, atue em território brasileiro. Dessa forma, grupos estrangeiros podem se beneficiar de empréstimos e outras vantagens antes reservadas aos empresários nacionais. Mas, ao contrário dos brasileiros, os estrangeiros podem remeter livremente lucros, royalties e dividendos para o exterior. 32 CARVALHO JUNIOR, José Mariante. “Desenvolvimento e Pobreza: Construir um Plano de Metas Sul-Americano. Seminário Internacional 2006.” Cadernos do Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 2 (3): 206-10. jul. 2007. Para 2008, o BNDES-Exim disponibiliza para a América do Sul créditos no valor de US$ 11,6 bilhões, dos quais US$ 2,4 bilhões já estão acordados. O restante do valor, US$ 9,2 bilhões, são operações potenciais, dos quais US$ 6,6 bilhões se referem a operações com a Argentina. “Atuamos em um segmento específico financiando a demanda de exportadores brasileiros para fornecimento, ao exterior, de bens de alto valor agregado e serviços de engenharia”, informa Luiz Antonio Araújo Dantas, superintendente do BNDESExim. BNDES. “Crédito à exportação, apesar da crise mundial.” Rio de Janeiro: Protec Notícias, 13/2/2008. <www.protec.org.br/noticias.asp?cod=354>. Acesso em 13/02/2008. 33 CARVALHO JUNIOR. Ib. p. 208-209. 34 BRASIL. Ministério da Fazenda. Programa de Aceleração do Crescimento. 2007-2010. <www.fazenda.gov.br>. Acesso em 2007. O Programa se torna necessário diante do sucateamento da maior parte das estradas que foram privatizadas no país pelos governos de Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1990. Hoje, a maior parte delas não apresentam condições de segurança e operacionalidade. Assim, o governo Lula atende aos objetivos internos nacionais ao mesmo tempo em que cumpre as metas de integração do IIRSA em território brasileiro. 35 A população da Amazônia é atualmente estimada entre 20 e 25 milhões de habitantes, 36 ZIBECHI, Raúl Americas Program Special Report: IIRSA-Integration Custom-Made for International Markets. 13/06/2006. <info@alainet.org>. Acesso em junho de 2006. 37 OJEDA, Igor. “As veias cada vez mais abertas da América Latina”. Agência Brasil de Fato. 15/03/2008. <www.brasildefato.com.br/v01/agencia/internacional/asveias-cada-vez-mais-...>. Acesso em março de 2008. 38 PAIM, E. S. Loc.cit. p. 33. 39 BOLÍVAR, Simón. “Convite para o Congresso de Panamá, 1822.” In: Pages choisies. Paris: Université de Paris-IHEAL, 1966. p. 185. 40 Id., ib. 41 Id., ib., p. 186. 42 “Carta de Angostura, 20/12/1819”. p. 140-142. 43 CHACON, Vamireh. Abreu e Lima. General de Bolívar. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 146. 44 A autora deste artigo não ignora as críticas que se fazem a esses movimentos, de receberem apoio do aparelho do Estado de seus países, servindo a políticos locais, nacionais ou municipais. Entretanto, referimo-nos aqui à participação dos indivíduos que compõem a massa dos que atuam nesses movimentos. 45 Secretaria de Organização do Congresso Bolivariano dos Povos. “Construindo a Alba a partir dos Povos”. Caracas: 2004. 47 RESTREPO, Martha Lucía Márques. “Neopopulismo y Chavismo”. In: VILAS, Carlos et alii. La región andina: entre los nuevos populismos y la movilización social. Bogotá: Observatorio Andino, 2003. p. 81-84. 48 CARMO, Corival Alves. “Confrontando o desenvolvimento e a dependência: a Venezuela de Hugo Chávez”. In: CARMO, C. A. et alii. Venezuela: Mudanças e perspectivas. Brasília: FUNAG, 2007. p. 29-31. 49 A Carta fundacional do Banco do Sul foi assinada em 9/12/2007 pelos Presidentes da Argentina, do Brasil, da Venezuela, do Paraguai, da Bolívia e do Equador, reunidos na cidade de Buenos Aires. O Banco possui capital de US$ 7 bilhões, o Brasil assegurando mais de 50% do capital, seguido pela Argentina. Segundo discurso de Chávez, o Banco “apunta a liberarnos de las cadenas de la dependência y el subdesarrollo”. Vide ENGLER, Mark. “Un banco para la independencia.” ALAI. América Latina en Movimiento. 11/02/2008. <www.alainet.org/active.22073>. Acesso em fevereiro de 2008. 50 QUIJANO, A. La economía popular y sus caminos en América Latina. Lima: Mosca Azul, 1998. 51 ZIBECHI, Raúl. “Centralismo y participación en Venezuela”. Servicio Informativo ALAI-Amlatina. <info@alainet.org>. Acesso em 24/08/2006. 52 Vide site <www.worldsocialforum.org>.
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