Vale do Jequitinhonha

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Vale do Jequitinhonha Formação Histórica, Populações e Movimentos JOÃO VALDIR ALVES DE SOUZA MÁRCIO SIMEONE HENRIQUES Organizadores



Vale do Jequitinhonha Formação Histórica, Populações e Movimentos



JOÃO VALDIR ALVES DE SOUZA MÁRCIO SIMEONE HENRIQUES Organizadores

VALE DO JEQUITINHONHA FORMAÇÃO HISTÓRICA, POPULAÇÕES E MOVIMENTOS

PROEX UFMG Pró-Reitoria de Extenção

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS – UFMG PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO – PROEX PROGRAMA PÓLO DE INTEGRAÇÃO DA UFMG NO VALE DO JEQUITINHONHA BELO HORIZONTE, 2010


Universidade Federal de Minas Gerais Reitor: Prof. Ronaldo Tadêu Pena Vice-Reitora: Profª. Heloisa Maria Murgel Starling Pró-Reitora de Extensão: Profª. Ângela Imaculada Loureiro de Freitas Dalben Pró-Reitora Adjunta de Extensão: Profª. Paula Cambraia de Mendonça Vianna Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha Coordenação: Prof. Márcio Simeone Henriques

© 2010 Este livro foi publicado com recursos da Pró-Reitoria de Extensão da UFMG Projeto gráfico, capa, diagramação: Mauro Teles Impressão e acabamento: Rettec Artes Gráficas Revisão: Juliana Vieira Chalub Fotos capa e miolo: Arquivo Polo, Bráulio Siffert, Clara Karmaluk, Daniela Vieira, Terezinha Furiati e Tiago Pissolati

V149 Vale do Jequitinhonha: formação histórica, populações e movimentos / João Valdir Alves de Souza, Márcio Simeone Henriques (organizadores). – Belo Horizonte: UFMG/PROEX, 2010. 268 p. il. Inclui bibliografias. ISBN:. 978-85-88221-24-6 1. Jequitinhonha, Rio, Vale (MG e BA) – Aspectos sociais. 2. Minas Gerais – População. 3. População Rural. 4. Quilombos. 5. Índios. I. Título. II. Souza, João Valdir Alves de (org.). III. Henriques, Márcio Simeone (org.) IV. Universidade Federal de Minas Gerais, Pró-Reitoria de Extensão. CDD- 304.6021098151


SUMÁRIO 07 Visões do Vale em Movimento Márcio Simeone Henriques

11 Introdução João Valdir Alves de Souza

Formação Histórica do Vale do Jequitinhonha 25 Mineração e Pecuária na Definição do Quadro Sociocultural da Região do Termo de Minas Novas João Valdir Alves de Souza

71 Processo Tardio de Colonização do Médio e Baixo Jequitinhonha Luís Carlos Mendes Santiago

83 Toponímia do Vale: Passado e Presente Maria Cândida Trindade Costa de Seabra

Populações 97 A População do Vale do Jequitinhonha Ralfo Matos, Ricardo Alexandrino Garcia

129 Comunidades Rurais, Cultura e Água no Alto Jequitinhonha Flávia Maria Galizoni, Eduardo Magalhães Ribeiro, José Murilo Alves de Souza João Antônio Gonçalves

145 Os Negros da Mumbuca: O Percurso Histórico de uma Comunidade Quilombola do Baixo Jequitinhonha Deborah Lima, Ana Tereza Faria, Carlos Eduardo Marques, Fernanda Oliveira Rafael Barbi

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165 A Presença Indígena no Vale do Jequitinhonha: A Difícil Memória Marivaldo Aparecido de Carvalho

Movimentos 189 O Rio não Corre para o Mar: Os Movimentos Sociais e as Lutas Populares do Jequitinhonha nos Anos 1980 e 1990 Ricardo Ferreira Ribeiro

209 Visões da Resistência: Conflitos Ambientais no Vale do Jequitinhonha Andréa Zhouri, Marcos Cristiano Zucarelli

237 Cultura Material, Agricultura Familiar e Políticas Públicas para o Alto Jequitinhonha Eduardo Magalhães Ribeiro, Flávia Maria Galizoni

249 As Luzes d(n)o Vale: Expressividade de Memórias e Identidades em Movimento Silvânia Sousa do Nascimento


Visões do Vale em Movimento Márcio Simeone Henriques

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Vale do Jequitinhonha, situado a nordeste do Estado de Minas Gerais, tem despertado, ao longo do tempo, grande interesse de investigadores de áreas muito variadas. A Universidade Federal de Minas Gerais mantém na região uma forte presença há várias décadas, que não se resume, entretanto, à curiosidade de seus pesquisadores. Seria muito fácil, e até natural, explicar essa curiosidade como algo que deriva da riqueza geológica na região da Serra do Espinhaço, estudada por Eschwege, que se entrelaça à rica história que remonta aos ciclos de exploração de ouro e diamantes. Se isso desenhou um tipo de ocupação bastante peculiar ao longo da Bacia do Jequitinhonha e, por si só, já seria capaz de garantir interesse científico de geólogos, geógrafos e historiadores, que motivos além fazem com que múltiplos olhares se voltem para a região no fim do século XX e início do XXI? A própria UFMG deparou-se, há mais de dez anos, com um volume considerável de projetos de pesquisa e de extensão realizados ali e tomou a iniciativa de criar um programa, coordenado pelas pró-reitorias de Pesquisa e de Extensão, que articulasse essas diversas ações. Nascia, assim, o Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha. Uma visão panorâmica do enorme volume de projetos – mais de cem de 1996 até os dias de hoje – revela que as áreas de interesse foram enormemente ampliadas, a ponto de abarcar campos de conhecimento muito variados, que o Polo veio organizando nas áreas temáticas de Desenvolvimento Regional e Geração de Ocupação e Renda, Saúde, Educação, Cultura, Meio Ambiente e Comunicação. Podemos perceber que a agenda de pesquisa sobre o Vale tem sido acompanhada, de forma indissociável, de uma agenda de ações extensionistas, ou seja, a região não tem sido apenas um objeto de estudo, mas de ações que 7


Vale do Jequitinhonha

aproximam o conhecimento produzido pela Universidade da realidade concreta de sua população, o que denota seu compromisso. As preocupações mais contemporâneas passaram a abarcar também uma série de temas que trazem inquietações não apenas aos que lá vivem, tendo como base a situação geral de pobreza, exclusão social e degradação das condições ambientais. O estudo de questões como a enorme biodiversidade nos variados ecossistemas da região, os conflitos sociais e políticos que ali se apresentam, as formas de ocupação, trabalho e geração de renda da população, as formas de convivência e de produção da cultura denotam a importância de produção de um conhecimento científico que se alie ao saber e aos fazeres populares como forma de enfrentar os grandes desafios que se apresentam. No Vale do Jequitinhonha, todas estas questões estão, de certo modo, evidenciadas sob forte contraste e ali se pode ver uma realidade que condensa com vigor nas contradições do mundo globalizado de hoje todo o percurso das lutas de sua população pela sobrevivência. É por acreditar que este percurso e essas contradições atuais tenham muito a revelar sobre algo que transcende – e muito - a região, mas que, ao mesmo tempo, possa conter chaves para a sua transformação é que nossos olhares por lá se cruzam com os de muitos outros. Como aponta João Valdir Alves de Souza, logo na introdução deste livro, não é fácil, no entanto, delimitar com maior precisão os contornos do Vale do Jequitinhonha, já que são vários os recortes que são tomados para estabelecer seus limites, assim como também acontece com as fronteiras dos nossos conhecimentos. E isso nos impõe buscar os pontos de confluência desses vários olhares. E eles, sem dúvida, são muitos. Foi com este intuito que o Polo Jequitinhonha criou o Seminário Visões do Vale. Seu propósito é o de realizar discussões temáticas nas quais tenham vez e voz as diferentes visões sobre o Jequitinhonha, numa expressão pública igualitária, de acordo com uma das diretrizes da extensão mais caras ao Programa – a interação dialógica. A primeira edição, em novembro de 2004, contemplou o tema desenvolvimento econômico sustentável; a segunda, em outubro de 2005, o tema saúde; a terceira, em novembro de 2008, procurou oferecer uma visão panorâmica da educação no Vale; a quarta, realizada em maio de 2009, voltou-se para o tema “População: Origem e Movimentos”. Junto com a proposição desta última temática, o Seminário procurou ampliar a aproximação com pesquisadores e extensionistas da UFMG e de todo o país, bem como com a Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Foi realizada uma chamada de trabalhos, respondida por pesquisadores de doze diferentes instituições e, das discussões realizadas pelos especialistas convidados, surgiu a proposta de publicação deste livro. Ficou evi8


Formação Histórica, Populações e Movimentos

dente a necessidade de reunir e fazer circular estes conhecimentos produzidos, expondo-os ao debate, bem como de construir referências para novos estudos e de alimentar novas discussões. Como anunciado em seu título, esta obra está dividida em três partes. Na primeira, busca-se lançar luz sobre a formação histórica do Vale do Jequitinhonha, sobre as características de sua ocupação, o que se revela, inclusive, na toponímia dos municípios da região. A segunda aborda as características da população, tanto no que se revela pela demografia quanto pelo estudo das populações tradicionais da região. Aborda, ainda, as estratégias de comunidades rurais do Vale para lidar com os recursos naturais, especialmente com os recursos hídricos, o que mostra as suas formas de organização social. Reunir o muito que se sabe sobre a formação histórica e sobre as características da população do Vale, ao mesmo tempo expõe o tanto que ainda não sabemos, especialmente porque a isso se junta uma reflexão sobre os seus movimentos, o que compõe a terceira e última parte. Nela, os autores buscam mostrar as lutas populares presentes no Vale nas últimas décadas, os conflitos ambientais mais expressivos e os contrastes no desenvolvimento rural, pontos de tensão inegáveis para os quais devem se dirigir as políticas públicas. Também não escapam as luzes, memórias e identidades do Vale em movimento. Como captar tantos percursos? Captar o Jequitinhonha em movimento é buscar apreender a população que se desloca pelas migrações, os homens e as mulheres que lutam por direitos, que se manifestam na sua arte e no seu artesanato e que continuamente reconstroem seu espaço, na frenética movimentação do século XXI. Visões do passado e do presente, de gestores públicos, de especialistas e, principalmente dos cidadãos, compõem este cenário de diálogos possíveis.

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Foto: Tiago Pissolati


Introdução João Valdir Alves de Souza 1

O

Vale do Jequitinhonha, situado no nordeste do estado de Minas Gerais, é uma região sobre a qual muito se tem falado e escrito ultimamente. A despeito da centralidade que a historiografia mineira atribuiu às minas de ouro, é notável o esforço que tem sido feito no sentido de deixar claro que a história de Minas não se resume à mineração e que as atividades que tiveram lugar no norte das Gerais são tão relevantes para nossa formação sociocultural quanto aquelas desenvolvidas em sua porção sul. Essa centralidade da historiografia na atividade mineradora tem sua razão de ser: não apenas o ouro e o diamante foram abundantes, a ponto de deslocar o eixo econômico colonial do nordeste para o sudeste, como os efeitos multiplicadores dessa atividade deixaram profundas marcas na paisagem do Estado. No entanto, quando confrontamos as primeiras rotas de ocupação do território, antes mesmo da criação, a 02 de dezembro de 1720, da Capitania das Minas dos Matos Gerais, com a extensão territorial que veio a ser a do estado, percebemos claramente que aquela centrada na mineração não ultrapassava a quarta parte desse território. Nada havia de relevante para além das minas? Na realidade, a rota da mineração avançou pelo sul e se instalou na região central (Ouro Preto, Mariana, São João del-Rei, Sabará, Caeté), avançou pela Serra do Espinhaço até o alto Jequitinhonha (Serro, Diamantina, Itacambira, Minas Novas e Grão Mogol) e demarcou um único ponto a noroeste da capi-

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A organização deste livro constitui parte das minhas atividades realizadas durante o estágio de pósdoutorado no Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS) da Universidade de Brasília (UNB), sob a supervisão do Prof. Dr. Cristovam Buarque, a quem agradeço pela rica possibilidade de interlocução. Agradeço também aos colegas do CDS, particularmente na pessoa do seu diretor Prof. Dr. Elimar Nascimento, pela acolhida, e ao CNPq pela bolsa concedida no período de dezembro de 2008 a novembro de 2009.

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Vale do Jequitinhonha

tania (Paracatu), prosseguindo até as minas de Goiás e Mato Grosso. Tudo isso nas três primeiras décadas do século XVIII, numa avalanche de descobertas de ouro de aluvião, de nascimentos de povoados e criação de vilas, de deslocamentos inéditos de população nas terras de além-mar. Enquanto isso, num ritmo bem mais lento, mas não menos significativo, outra rota de ocupação do território já havia alcançado o que veio a ser a porção norte da capitania de Minas Gerais: a rota do São Francisco, o “rio dos currais”, para usar expressão já consagrada. Se a primeira foi caracterizada pelo ritmo frenético da atividade mineradora e pela força do elemento urbano no ordenamento da vida social, esta segunda acompanhava o ritmo próprio do passo de boi e fundou as bases de uma organização social, ainda hoje, fortemente marcada pelos elementos constitutivos do mundo rural. Encontrando-se as duas rotas, na região central da capitania, nos primórdios do século XVIII, elas não apenas permitiram a ligação entre o sul e o norte da colônia pelo interior – o que fez do São Francisco o rio da “integração nacional” – mas também constituíram o eixo central a partir do qual, desde então e por três séculos seguintes, essa ocupação avançasse para o oeste (Triângulo Mineiro, início do século XIX), para o nordeste (Vale do Jequitinhonha e do Mucuri, ao longo do século XIX) e vastas porções das antigas áreas proibidas dos sertões do leste (início e meados do século XX), num movimento que atingiu a última fronteira dos sertões de Guimarães Rosa, no noroeste do estado, já no terceiro quartel do século XX. Esse longo tempo de ocupação do território, que pôs em confronto as três grandes matrizes da nossa cultura – o branco colonizador, o negro escravizado e os nativos indígenas – associado às várias atividades aí desenvolvidas, fizeram de Minas Gerais um estado de extraordinária diversidade. Se essa diversidade tem sido exaltada como uma das riquezas do Estado, sua outra face – a desigualdade – tem trazido enormes desafios a todos aqueles que se têm ocupado tanto em “pensar Minas” quanto em elaborar políticas públicas equalizadoras. É diante desse desafio que o Vale do Jequitinhonha tem sistematicamente emergido como “região problema”, cujas imagens a seu respeito, mesmo considerando suas “riquezas culturais”, invariavelmente o apontam como o “Vale da miséria”. Mas o que é o Jequitinhonha? Quais são os elementos constitutivos da sua formação histórica? Como ele se situa hoje face à diversidade e à desigualdade que caracterizam Minas Gerais? O que têm dito sobre ele os muitos escritos que se ocupam em situá-lo no contexto socioeconômico e cultural do estado? Como interpretar a ambivalência de um Vale que na maior parte das vezes é retratado por suas carências (a miséria, o abandono, a estagnação), mas que desperta, no mínimo, curiosidade pela riqueza de seu artesanato, pela força de sua música, pela variedade de suas festas? A visão negativa da região foi construída no terceiro quartel do século XX, quando o propósito era denunciar os graves problemas gerados por um modelo 12


Formação Histórica, Populações e Movimentos

de desenvolvimento concentrador de riquezas em determinadas regiões do país em detrimento de outras. O Jequitinhonha era, para Minas Gerais, o que o nordeste era para o Brasil. Por algum tempo, essas denúncias, de fato, tiveram alguma relevância: elas evidenciaram o problema da desigualdade e legitimaram as ações voltadas para combater suas mazelas. Repetidas à exaustão, no entanto, essas denúncias cristalizaram representações que consistem em mostrar o povo do Jequitinhonha como uma horda que vive na pré-história, vítima inclemente de uma natureza hostil. Já não seria hora de rever esse “denuncismo” e considerar que essa imagem está se transformando em um peso para a população local, afetando a sua auto-imagem e alimentando a indústria da miséria? Ou já não seria o caso de repensar a própria idéia de desenvolvimento que sustentou essas oposições? É de tal forma notória a imagem construída para o Jequitinhonha que ele já prescinde do complemento que identifica todos os outros vales. Para muitos dos que se referem a ele, basta falar do Vale. Mas o Vale tem recortes variados, cujas fronteiras se situam nos diversos limites estabelecidos por agências governamentais e não-governamentais, públicas e privadas, institucionalizadas ou não. Não havendo uma delimitação precisa do seu território, o Vale é aquilo que recortam os agentes que lá atuam. Do mesmo modo, à maneira do que ocorre com os textos que compõem esta coletânea, cada pesquisador que se ocupa da região precisa explicitar qual é o seu recorte regional. Como pode ser conferido em ampla bibliografia, de modo geral, essa região é dividida em três partes: alto, médio e baixo Jequitinhonha. Às vezes, é identificada também uma quarta parte, mais ao norte do estado, componente da antiga área mineira da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Essa divisão, no entanto, se refere ao Vale do Jequitinhonha mineiro. Se se considerar a parte baiana da bacia do Jequitinhonha, é ela que passa a ser identificada como Baixo Jequitinhonha, ficando a porção mineira da bacia dividida apenas duas partes: alto e médio Jequitinhonha. Pode ser cansativo para o leitor, mas é necessário explicitar esses diversos recortes regionais e subregionais a fim de apreender suas amplas diferenciações internas. Essa porção mineira da bacia do Jequitinhonha, cujo recorte é bem próximo ao da antiga região VII de Planejamento do estado de Minas Gerais, foi a referência para a delimitação da área de atuação da Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha (CODEVALE). Essa Macrorregião VII de Planejamento ocupava, até 1993, uma área de 78.451 Km2 em 51 municípios, dentre os quais 48 compunham o Vale do Jequitinhonha oficial. Este, com uma área de 71.552 Km2 e 52 municípios, foi delimitado oficialmente em 06/06/1966, pelo decreto número 9.841, para efeito de atuação da CODEVALE, entidade criada em 1964, com o objetivo de promover o 13


Vale do Jequitinhonha

desenvolvimento da região. Alguns municípios − Águas Vermelhas e São João do Paraíso (naquela época, pertencentes à Microrregião do Alto Rio Pardo) e Gouveia e Presidente Kubitschek (então Microrregião Mineradora de Diamantina) − eram componentes da Macrorregião VII, mas não foram incluídos na área de atuação da CODEVALE. Outros municípios − Bocaiúva e Riacho dos Machados e parte dos municípios de Malacacheta, Porteirinha e Rio Vermelho − estavam na área de atuação da CODEVALE, mas não faziam parte da Macrorregião VII. Há, também, outra subdivisão em microrregiões geográficas que, até 1990, eram chamadas Microrregiões Homogêneas (MRH). Até essa época, o Vale do Jequitinhonha correspondia, mais ou menos, à área de cinco microrregiões: Alto Rio Pardo, Mineradora do Alto Jequitinhonha, Pastoril de Pedra Azul, Pastoril de Almenara e Mineradora de Diamantina. Isso tem sido motivo de muita confusão, porque não há uma correspondência entre a antiga Região VII e o Vale do Jequitinhonha oficial, nem entre as microrregiões e as sub-regiões que serviram de base para a criação das associações dos municípios do alto, do médio, do baixo Jequitinhonha e da área mineira da SUDENE, respectivamente, AMAJE, AMEJE, AMBAJE e AMAMS. Para complicar um pouco mais a situação, em 1990 o IBGE procedeu a uma nova divisão regional dos municípios brasileiros em mesorregiões e microrregiões geográficas, subdividindo as microrregiões de Pedra Azul e Mineradora de Diamantina, o que gerou, respectivamente, as microrregiões de Araçuaí e Capelinha e alocou o município do Serro na microrregião de Conceição do Mato Dentro. Isso, porém, ainda não é tudo. A partir de 1993, passou a vigorar nova regionalização de planejamento em Minas Gerais, com ampliação de 8 para 10 as regiões de planejamento. Parte da porção norte da região VII foi para a região VIII (Norte de Minas) e parte do Alto Jequitinhonha foi para a região Central. A maior parte da antiga região VII passou a compor com o Vale do Mucuri a região IX, correspondendo às microrregiões geográficas de Almenara, Araçuaí, Capelinha, Nanuque, Pedra Azul e Teófilo Otoni. Foi essa região IX, acrescida da microrregião de Diamantina, que serviu de base para que o Ministério da Integração Nacional, em 1999, recortasse a Mesorregião dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (MESOVALES). Este recorte, porém, ultrapassa os limites do estado de Minas e agrega à MESOVALES as microrregiões de Porto Seguro, na Bahia, e de Montanha e São Mateus, no Espírito Santo. Se alto, médio e baixo Jequitinhonha não correspondem ao recorte microrregional nem ao recorte que serviu de base para a criação das Associações dos municípios, não há correspondência, também, 14


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entre eles e as áreas de atuação das superintendências regionais de ensino de Minas Gerais, nem de todos eles com a área da MESOVALES. Vejamos em linhas gerais, alguns desses recortes regionais.

Macrorregião IX de Planejamento A partir da nova divisão do estado realizada em 1993 (Lei 1.590, de 26/08/93) os municípios de Minas foram distribuídos em 10 regiões de planejamento, duas a mais que na divisão anterior. As microrregiões de Salinas e Grão Mogol passaram a compor a região de Planejamento VIII (Norte de Minas), ao passo que as microrregiões de Nanuque e Teófilo Otoni passaram a compor a região IX (Jequitinhonha/Mucuri). Essa macrorregião de planejamento IX era composta originalmente por 53 municípios, abrangendo uma área de 61.707 km2 e ocupando cerca de 10,5% do território do estado. Devese considerar, entretanto, que, em 1995, pela Lei nº 12.030, foram criados vários novos municípios nessa macrorregião. As regiões de planejamento de Minas Gerais são as seguintes: Tabela 1 Regiões de Planejamento de Minas Gerais I – Central

VI – Centro-Oeste de Minas

II – Mata

VII – Noroeste

III – Sul de Minas

VIII – Norte de Minas

IV – Triângulo

IX – Jequitinhonha/Mucuri

V – Alto Paranaíba

X – Rio Doce

Vale do Jequitinhonha Oficial Quando foi delimitado oficialmente, em 1966, para efeito de atuação da CODEVALE, o Vale do Jequitinhonha se estendia por 52 municípios, numa área de 71.552 Km2. Com as emancipações levadas a efeito em 1992 e em 1995, esses 52 municípios geraram outros 28, elevando-se para 80 o número de municípios. Se considerarmos, então, como sendo Vale do Jequitinhonha a área de atuação da antiga CODEVALE, seus municípios são os que se encontram relacionados na tabela a seguir. 15


Vale do Jequitinhonha

Tabela 2 Municípios que compõem o Vale do Jequitinhonha Oficial, incluindo aqueles criados em 1992 e 1995 Almenara

Divisópolis**

Leme do Prado*

Rio Pardo de Minas

Angelândia*

Felício dos Santos

Malacacheta

Rio Vermelho

Araçuaí

Felisburgo

Mata Verde**

Rubelita

Aricanduva*

Francisco Badaró

Medina

Rubim

Bandeira

Franciscópolis*

Minas Novas

Salinas

Berilo

Fruta de Leite*

Monte Formoso*

Salto da Divisa

Berizal*

Grão Mogol

Montezuma**

Santa Cruz de Salinas*

Bocaiúva

Guaraciama*

N ova Porteirinha*

Santa Maria do Salto

Botumirim

Indaiabira*

Novo Cruzeiro

Santo Antônio do Jacinto

Cachoeira de Pajeú

Itacambira

Novorizonte*

Santo Antônio do Retiro*

Capelinha

Itamarandiba

Olhos D’Água*

São Gonçalo do Rio Preto

Caraí

Itaobim

Padre Carvalho*

Senador Modestino Gonçalves

Carbonita

Itinga

Padre Paraíso

Serranópolis de Minas*

Chapada do Norte

Jacinto

Pai Pedro*

Serro

Comercinho

Jenipapo de Minas*

Palmópolis**

Setubinha*

Coronel Murta Couto de Magalhães de Minas Cristália

Jequitinhonha

Pedra Azul Ponto dos Volantes* Porteirinha Riacho dos Machados Rio do Prado

Taiobeiras

Datas Diamantina

Joaíma Jordânia José Gonçalves de Minas* Josenópolis*

Turmalina Vargem Grande do Rio Pardo* Veredinha* Virgem da Lapa

* Municípios criados pela Lei nº 12.030, de 21/12/95. ** Municípios criados pela Lei nº 10.704, de 27/04/92. Fonte: Instituto de Geociências Aplicadas – IGA

Microrregiões Geográficas Até 1990, usava-se a denominação Microrregiões Homogêneas (MRH). A partir de 1990, o IBGE passou a adotar o conceito de Microrregiões Geográficas. Segundo o texto que justificou essa mudança2 (IBGE, 1990, p. 9), a mesorregião é: 2

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IBGE. Divisão do Brasil em mesorregiões e microrregiões geográficas. Rio de Janeiro, 1990.


Formação Histórica, Populações e Movimentos

uma área individualizada, em uma Unidade da Federação, que apresenta formas de organização do espaço geográfico definidas pelas seguintes dimensões: o processo social como determinante, o quadro natural como condicionante, e a rede de comunicação e de lugares, como elemento de articulação espacial. Estas três dimensões possibilitam que o espaço delimitado como mesorregião tenha uma identidade regional. Ainda segundo essa mesma fonte, as microrregiões são definidas como partes das mesorregiões que apresentam especificidades na organização do espaço, conforme dois indicadores básicos selecionados: a estrutura da produção e a interação regional. Continuando citação a partir da mesma fonte, (IBGE, 1990, p. 9), temos: O primeiro implica a análise da estrutura da produção primária com base na utilização da terra, orientação da agricultura, estrutura dimensional dos estabelecimentos, relações de produção, nível tecnológico e emprego de capital e grau de diversificação da estrutura agropecuária. A estrutura da produção industrial se refere à importância de cada centro no conjunto da microrregião, enquanto centro industrial, de acordo, basicamente, com valor de transformação industrial e pessoal ocupado. Já o indicador de interação espacial fica por conta da área de influência dos centros sub-regionais e centros de zona, enquanto elementos articuladores dos processos de coleta, beneficiamento e expedição de produtos rurais, de distribuição de bens e serviços ao campo e a outras cidades. Em conformidade com essa justificativa, pela Resolução nº 11, de 05/06/1990, do IBGE, foi constituída uma nova divisão microrregional para o censo de 1991. Entretanto, como já indicado anteriormente, em 1992 e 1995 houve a criação de grande número de novos municípios no estado de Minas Gerais. Isso gerou a seguinte composição para as microrregiões geográficas que compõem a Mesorregião dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, incluindo as microrregiões que foram agregadas à região Norte de Minas.

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Vale do Jequitinhonha

Tabela 3 Municípios que compõem as microrregiões geográficas dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri MICRORREGIÃO DE SALINAS (Região de Planejamento VIII – Norte de Minas)

Águas Vermelhas

Indaiabira

Rubelita

Taiobeiras

Berizal

Montezuma

Salinas

Vargem G. do Rio Pardo

Curral de Dentro

Ninheira

Santa Cruz de Salinas

Divisa Alegre

Novorizonte

Santo Retiro

Fruta de Leite

Rio Pardo de Minas São João do Paraíso

Antônio

do

MICRORREGIÃO DE GRÃO MOGOL (Região de Planejamento VIII – Norte de Minas)

Botumirim

Grão Mogol

Josenópolis

Cristália

Itacambira

Padre Carvalho MICRORREGIÃO DE ARAÇUAÍ

Araçuaí

Coronel Murta

Novo Cruzeiro

Ponto dos Volantes

Caraí

Itinga

Padre Paraíso

Virgem da Lapa

MICRORREGIÃO DE PEDRA AZUL

Cachoeira de Pajeú

Itaobim

Comercinho

Medina

Pedra Azul

MICRORREGIÃO DE ALMENARA

Almenara

Jacinto

Mata Verde

Rubim

Bandeira

Jequitinhonha

Monte Formoso

Salto da Divisa

Divisópolis

Joaíma

Palmópolis

Santa Maria do Salto

Felisburgo

Jordânia

Rio do Prado

Santo Antônio do Jacinto

MICRORREGIÃO DE DIAMANTINA

Couto de Magalhães de Minas

Diamantina

Gouveia

Datas

Felício dos Santos

Presidente Kubitschek

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São Gonçalo do Rio Preto Senador Modestino Gonçalves


Formação Histórica, Populações e Movimentos

MICRORREGIÃO DE CAPELINHA

Angelândia

Carbonita

Aricanduva

Chapada do Norte

Berilo

Francisco Badaró

Jenipapo de Minas José Gonçalves de Minas Leme do Prado

Capelinha

Itamarandiba

Minas Novas

Turmalina Veredinha

MICRORREGIÃO DE TEÓFILO OTONI Ataléia

Itaipé

Ouro Verde de Minas

Catuji

Ladainha

Pavão

Franciscópolis

Malacacheta

Poté

Frei Gaspar

Novo Oriente de Minas

Setubinha

Teófilo Otoni

MICRORREGIÃO DE NANUQUE Águas Formosas

Crisólita

Nanuque

Bertópolis

Fronteira dos Vales

Santa Helena de Minas

Carlos Chagas

Machacalis

Serra dos Aimorés

Umburatiba

Associações de Municípios Esses municípios estão agrupados em cinco associações diferentes: Três delas levam o nome do Vale do Jequitinhonha: Associação dos Municípios do Alto Jequitinhonha (AMAJE); Associação dos Municípios do Médio Jequitinhonha (AMEJE); Associação dos Municípios do Baixo Jequitinhonha (AMBAJE). Os municípios das microrregiões de Salinas e Grão Mogol estão agrupados na Associação dos Municípios da Área Mineira da SUDENE (AMAMS) e os das microrregiões de Nanuque e Teófilo Otoni compõem a base da Associação dos Municípios do Vale do Mucuri (AMUC). Nota-se, no entanto, que não há coincidência entre os municípios componentes das microrregiões situadas no alto, no médio e no baixo Jequitinhonha com as associações que representam cada um desses estratos regionais. Nota-se, também, que há municípios que mesmo não sendo do Vale do Jequitinhonha oficial (Coluna, Gouveia, Presidente Kubitschek Rio Vermelho, Santo Antônio do Itambé, Serra Azul de Minas) compõem a AMAJE. E há os municípios que, mesmo sendo do Vale do Jequitinhonha oficial (Caraí, Franciscópolis, Malacacheta, Novo Cruzeiro, Padre Paraíso, Setubinha) são componentes da AMUC. E há até mesmo municípios (Caraí e Novo Cruzeiro) que aparecem, simultaneamente, na AMEJE e na AMUC. São os seguintes os componentes dessas associações. 19


Vale do Jequitinhonha

Tabela 4 Municípios que compõem as associações do alto, do médio, do baixo Jequitinhonha e do Vale do Mucuri AMAJE

AMEJE

AMBAJE

AMUC

Angelândia Aricanduva Capelinha Carbonita Coluna Couto de M. de Minas Datas Diamantina Felício dos Santos Gouveia Itamarandiba Leme do Prado Minas Novas Presidente Kubitschek Rio Vermelho Santo Antônio do Itambé São Gonçalo do Rio Preto Senador M. Gonçalves Serra Azul de Minas Serro Turmalina Veredinha

Araçuaí Berilo Cachoeira do Pajeú Caraí Chapada do Norte Comercinho Coronel Murta Francisco Badaró Itaobim Itinga Jenipapo de Minas José Gonçalves de Minas Medina Novo Cruzeiro Padre Paraíso Ponto dos Volantes Virgem da Lapa

Almenara Bandeira Divisópolis Felisburgo Jacinto Jequitinhonha Joaíma Jordânia Mata Verde Monte Formoso Palmópolis Pedra Azul Rio do Prado Rubim Salto da Divisa Santa Maria do Salto Santo Antônio do Jacinto

Águas Formosas Ataléia Bertópolis Campanário Caraí Carlos Chagas Catuji Crisólita Franciscópolis Frei Gaspar Fronteira dos Vales Itaipé Itambacuri Ladainha Maxacalis Malacacheta Nanuque Novo Cruzeiro Novo Oriente de Minas Ouro Verde de Minas Pavão Poté Santa Helena de Minas Serra dos Aimorés Setubinha Teófilo Otoni Umburatiba

Mesovales A Mesorregião dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (MESOVALES) foi criada em 1999, pelo Ministério da Integração Nacional, com o propósito de promover políticas de desenvolvimento regional em áreas de fronteiras. Ela ocupa uma área de aproximadamente 106 mil km2, na porção nordeste do estado de Minas Gerais, no norte do Espírito Santo e no extremo sul da Bahia, onde vivem quase dois milhões de pessoas distribuídas em 105 municípios, agrupadas em 10 microrregiões geográficas, conforme pode ser visto na Tabela seguinte. 20


Formação Histórica, Populações e Movimentos

Tabela 5 Municípios que compõem a Mesorregião dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri UF

MICRORREGIÃO

MUNICÍPIOS Almenara, Bandeira, Divisópolis, Felisburgo, Jacinto, Je-

ALMENARA

quitinhonha, Joaíma, Jordânia, Mata Verde, Monte Formoso, Palmópolis, Rio do Prado, Rubim, Salto da Divisa, Santa Maria do Salto e Santo Antônio do Jacinto.

ARAÇUAÍ

Araçuaí, Caraí, Coronel Murta, Itinga, Novo Cruzeiro, Padre Paraíso, Ponto dos Volantes e Virgem da Lapa. Angelândia, Aricanduva, Berilo, Capelinha, Carbonita,

CAPELINHA

Chapada do Norte, Francisco Badaró, Itamarandiba, Jenipapo de Minas, José Gonçalves de Minas, Leme do Prado, Minas Novas, Turmalina e Veredinha. Couto de Magalhães de Minas, Datas, Diamantina, Fe-

DIAMANTINA

lício dos Santos, Gouveia, Presidente Kubitschek, São Gonçalo do Rio Preto, Senador Modestino Gonçalves Águas Formosas, Bertópolis, Carlos Chagas, Crisólita,

NANUQUE MG

Fronteira dos Vales, Machacalis, Nanuque, Santa Helena de Minas, Serra dos Aimorés e Umburatiba.

PEDRA AZUL

Cachoeira de Pajeú, Comercinho, Itaobim, Medina e Pedra Azul. Ataléia, Catuji, Franciscópolis, Frei Gaspar, Itaipé, La-

TEÓFILO OTONI

dainha, Malacacheta, Novo Oriente de Minas, Ouro Verde de Minas, Pavão, Poté, Setubinha e Teófilo Otoni.

MONTANHA

Montanha, Mucurici, Pinheiros e Ponto Belo.

ES SÃO MATEUS

Conceição da Barra, Jaguaré, Pedro Canário e São Mateus, Ecoporanga e Boa Esperança.

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Vale do Jequitinhonha

UF

MICRORREGIÃO

MUNICÍPIOS Alcobaça, Caravelas, Eunápolis, Guaratinga, Ibirapuã, Itabela, Itagimirim, Itamaraju, Itanhém, Jucuruçu,

BA

PORTO SEGURO

Lajedão, Medeiros Neto, Mucuri, Nova Viçosa, Porto Seguro, Prado, Santa Cruz Cabrália, Teixeira de Freitas, Veredas, Itapebi e Belmonte.

Além desses diversos recortes regionais, o Vale é internamente diferenciado em decorrência das diversas atividades predominantes em cada microrregião e dos diferentes momentos históricos da sua ocupação. No alto, em parte do médio Jequitinhonha (Serro, Diamantina, Itacambira, Minas Novas) e na porção regional situada ao norte do estado (Rio Pardo de Minas, Salinas) a ocupação do território se deu a partir do início do século XVIII. Mas pelo menos um século separa a ocupação do alto e do baixo Jequitinhonha. No primeiro caso, alto Jequitinhonha, a atividade principal foi a mineração de ouro e diamantes decorrente das bandeiras paulistas que chegaram às “minas dos matos gerais” a partir do final do século XVII. No segundo, essa ocupação se deu com o lento avanço da pecuária pelo norte de Minas em direção ao nordeste do estado. Somente a partir do início do século XIX, com a abertura do rio Jequitinhonha à navegação, o baixo Jequitinhonha (Pedra Azul, Jequitinhonha, Almenara, Salto da Divisa) entrou para a história de Minas. Tudo o que havia acontecido até a famosa expedição de 1804, comandada pelo capitão-mor João da Silva Santos, pode ser considerado sua pré-história. Apesar da mudança que a monocultura do eucalipto provocou na paisagem e do lugar que passou a ocupar na economia, se ainda há alguma atividade mineradora tradicional na região, ela está concentrada no alto Jequitinhonha. Enquanto isso, no baixo predomina a pecuária e, no médio, um misto de agricultura, pecuária e mineração, inclusive da nova mineração de grafite, lítio e granito no circuito Araçuaí, Pedra Azul, Medina. O que salta à vista, do muito que se tem falado e escrito ultimamente sobre a região, como foi dito no início, é um misto de denúncia das mazelas regionais e uma tentativa de dar visibilidade à “riqueza da cultura”, expressa no artesanato, na música e nas festas. Mas essa “riqueza da cultura” aparece sempre acompanhada de um “apesar da miséria”. Há uma vasta produção bibliográfica sobre a região, ainda que pouco efeito tenha sido produzido sobre a historiografia mineira, fortemente centrada na mineração. Não faltam, também, diagnósticos que esquadrinham vários aspectos da caracterização econômica e 22


Formação Histórica, Populações e Movimentos

sociocultural da região e planos de intervenção elaborados por agências públicas, privadas, governamentais e não governamentais. Se grande parte dessa bibliografia está centrada nos problemas regionais – com abundância de indicadores que apontam para a desigualdade e exclusão que o situam desfavoravelmente no quadro geral da economia mineira – este livro se propõe a lançar novos olhares sobre o Vale. Sem se descuidar dos problemas existentes, seu propósito é avançar para além das visões generalizantes que só veem miséria e abandono, pobreza e estagnação. As muitas faces do “povo que mora no Vale” não mais admitem visões dicotômicas e polarizadoras entre riqueza/pobreza, moderno/arcaico, progresso/atraso. Se, como dizia Guimarães Rosa, “Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias minas”, é preciso recalibrar as lentes com as quais observamos nossa paisagem, para ir além da monotonia que tem assentado a história de Minas na mineração e a do Vale do Jequitinhonha na miséria.

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Foto: Arquivo Polo


Mineração e Pecuária na Definição do Quadro Sociocultural do Termo de Minas Novas João Valdir Alves de Souza3

Introdução

A

região remanescente do antigo termo de Minas Novas, da comarca do Serro Frio, foi o ponto de encontro entre duas grandes frentes de ocupação do território nacional: a mineração e a pecuária. Essas atividades imprimiram suas marcas na configuração sociocultural da região de tal modo que, ainda hoje, mesmo em caráter residual em algumas áreas, são elas que definem o modus vivendi da maior parte da população local. Ao lado dessas atividades, ora em apoio providencial a uma e outra, ora, nas suas franjas e bordas, emerge e se constitui uma atividade agrícola que, exceto em alguns momentos e lugares de maior produção e produtividade, resultou num tipo particular de relações sociais e econômicas predominantemente de base familiar de subsistência. Esse termo de Minas Novas, que correspondia ao que é hoje denominado município, e cujo centro urbano de maior expressão, durante todo o século XVIII e início do XIX, foi a “Vila de Nossa Senhora do Bom Sucesso das Minas Novas do Araçuaí” ou “Vila de Nossa Senhora do Bom Sucesso das Minas do Fanado”, instalada a 02 de outubro de 1730, ocupava enormes extensões de ter3

Este texto é uma versão atualizada do capítulo 1 da minha tese de doutorado intitulada Igreja, Educação e Práticas Culturais: a mediação religiosa no processo de produção/reprodução sociocultural na região do médio Jequitinhonha mineiro defendida na PUC/SP em 2000.

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Vale do Jequitinhonha

ra. A área dos atuais 141 municípios que se desmembraram dele soma 139.947 km2, ou seja, um quarto da superfície do estado de Minas Gerais.4 Apesar de terem sido demarcados os limites setentrionais da comarca do Serro Frio5 e da província de Minas Gerais, pouco tempo após a sua criação, em 1720, toda essa região foi, durante as três décadas seguintes, objeto de disputa entre os governos de Minas e da Bahia. É que, a essa altura, o interesse e o fascínio pelas áreas de mineração cresciam na mesma proporção em que ouro e diamantes constituíam objetos de cobiça, posto que eram, então, a nova medida da riqueza. É somente a partir dessa época e em decorrência da atividade mineradora que a região adquire visibilidade na historiografia de Minas Gerais. Entretanto, nota-se que, por outros caminhos, as primeiras tentativas de conquista desse território já haviam se manifestado quase duzentos anos antes e que a pecuária é tão relevante para o desbravamento dessas terras quanto a mineração. Em meados do século XVI partiram do litoral baiano os primeiros aventureiros europeus que pisaram em território mineiro. Isso levou o frei franciscano Samuel Tetteroo, em 1917, ocasião em que publicou o provável caminho seguido pela expedição Espinosa-Navarro, a reivindicar para o norte de Minas e em particular para o actual Bispado de Arassuahy a honra de ser entre todas as outras zonas deste grande e catholico Estado a primeira em que entrou um Padre para trazer aos seus primitivos habitantes a Boa Nova do Santo Evangelho.6 A expedição Espinosa-Navarro foi, seguramente, um marco na história dos primeiros desbravadores, se não pelos seus desdobramentos, pelo menos pelo registro que dela ficou. Partindo de Porto Seguro rumo ao interior, em 1553, essa expedição marchou por quase três anos por território que viria a ser o nortenordeste do atual estado de Minas. Ela era comandada por Francisco Bruza de Espinosa e contava com a participação do padre jesuíta João Aspilcueta Navarro, a quem coube a tarefa de relatar a viagem dois anos depois de encerrada. Pelo traçado reconstituído em mapa recente7, percebe-se que essa expedição alcançou o rio Jequitinhonha na altura do atual município de Araçuaí, subiu o rio até as proximidades de sua nascente, deslocou-se rumo ao norte até os rios Jequitaí e Verde Grande e retornou ao litoral descendo pelo rio Pardo. Seguindo-se a essa expedição, várias outras, como as chefiadas por Martim Carvalho (1567-1568),

4 5 6 7

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SOUZA, 2000. A comarca do Serro tinha dois termos: o termo de Vila do Príncipe e o termo de Minas Novas. TETTEROO, 1919, p. 63. RESENDE, 2007, p. 27.


Formação Histórica, Populações e Movimentos

Sebastião Fernandes Tourinho (1572-1573), Antônio Dias Adorno (1576) e Marcos de Azevedo (1596 e 1611) adentraram no sertão à procura de riquezas muito antes que os currais de gado se estendessem pelo vale do São Francisco ou que os bandeirantes paulistas descobrissem as minas da região centro-sul do atual estado de Minas Gerais. Quando, no terceiro quartel do século XVII, vindos do sul, Fernão Dias Pais Leme finalmente chegou aos rios Araçuaí e Itamarandiba, e Matias Cardoso de Almeida atingiu o médio São Francisco, a ligação entre o nordeste e o sul da colônia, pelo interior, estava sendo concretizada.8 A descoberta de ouro e diamantes na região que compreende toda a extensão do Espinhaço, no início do século XVIII, imprimiu uma maior dinâmica à modorrenta expansão que caracterizava a área da pecuária. Não só a atividade mineradora atraía trabalhadores e aventureiros de toda espécie, todos eles movidos pelo sonho de riqueza, como a criação de gado passou a ser atividade fundamental para o abastecimento alimentar e fornecimento de matéria-prima para a fabricação de utensílios diversos na área das minas. Toda essa região transformou-se, então, em espaço de dinâmica atividade econômica e, também, em espaço de conflito, tanto pela “endêmica violência interpessoal”9, que caracterizava as disputas locais, quanto pelas relações de poder na qual se engalfinhavam os agentes administrativos. Foi essa dinâmica produzida pela atividade mineradora que passou a compor o mote fundamental da historiografia mineira. Apesar de historiadores como Urbino Vianna10 e Simeão Ribeiro Pires11 reivindicarem dessa historiografia a atribuição de uma maior importância ao papel da pecuária na formação sociocultural de Minas Gerais, e de estudos mais recentes apontarem que Minas não se resume à mineração12, o que se cristalizou na memória histórica mineira foram os fatores ligados à atividade mineradora. A pecuária sempre aparece

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Há uma vasta bibliografia sobre esse tema e ampla polêmica sobre os percursos, sucessos e fracassos dessas expedições. Maiores detalhes sobre elas, incluindo os prováveis roteiros percorridos, podem ser encontrados em Neves (1908); Vianna (1916); Vianna (1935); Tetteroo (1919); Maia (1936); Freitas (1960); Pereira (1969); Torres (1980); Jardim (1998); Ferreira (1999); Resende (2007). Diz João Camilo de Oliveira Torres (1980, p. 121): “Estas entradas vindas da Bahia e do Espírito Santo foram expedições ocasionais e não deixaram vestígios. A exploração sistemática do território mineiro caberia aos paulistas. Estes, já possuindo organização de guerra no sertão, souberam pôr em prática um sistema de expedições que fundavam arraiais pelos caminhos e plantavam por assim dizer cidades por onde passavam. A base de expedições seria Taubaté, vila fundada em 1645, de onde partiam grandes expedições que transpondo a Mantiqueira pela garganta do Embaú, vararam os sertões mineiros.” ANASTASIA, 2007, p. 575. VIANNA, 1916; VIANNA, 1935. PIRES, 1979; PIRES, 1983. Ver, particularmente, os dois volumes de As Minas Setecentistas, organizados por RESENDE e VILLALTA, 2007.

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Vale do Jequitinhonha

como uma atividade subsidiária, de certa importância, mas apenas um apoio à atividade principal, a mineração. No caso específico do norte e nordeste de Minas e, particularmente, do Vale do Jequitinhonha, sua história aparece bastante restrita aos acontecimentos ligados à descoberta de ouro e diamantes na região do Serro, Diamantina e Minas Novas. Há, no entanto, grande quantidade de estudos analisando a atividade de desbravadores que, a partir do vale do São Francisco, através da criação de gado em grandes e pequenas fazendas, ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX, foram ocupando toda a região norte e nordeste do estado de Minas. Ainda assim, pelo impacto ocupacional e pelas disputas políticas que motivou, a mineração passou a ser a principal referência para os estudos regionais, tanto a que se desenvolveu no Serro e em Diamantina, quanto a que teve lugar nas Minas Novas do Fanado. Vejamos por parte, cada uma dessas atividades e as trajetórias percorridas no processo de ocupação regional, visando mapear claramente o lugar de cada uma delas. Fato notável nesse processo é que pelo menos cem anos separam a colonização das terras do alto Jequitinhonha (Serro, Diamantina, Itacambira, Minas Novas) e as do médio-baixo Jequitinhonha (que tinha Araçuaí como ponto de ligação, pelo rio, entre todo o norte de Minas e o litoral baiano). Isso quer dizer que, apesar de a mineração ter se estabelecido na região no início do século XVIII, somente a partir do início do XIX o rio Jequitinhonha entrou como componente da ocupação territorial.

A ocupação da região: Mineração no alto Jequitinhonha Foi somente a partir do final da terceira década do século XVIII, quando a fama do ouro das minas gerais já se havia estabelecido, que a região central do termo de Minas Novas foi definitivamente ocupada. Há uma vastíssima bibliografia acerca da saga dos bandeirantes que desbravaram os sertões das minas dos matos gerais, seja para enaltecer o seu papel conquistador, denunciar a escravização e a matança dos indígenas ou pontuar suas aventuras e desventuras diante de um quadro natural, em geral, profundamente hostil. Essa discussão está concentrada, entretanto, em torno das minas do centro-sul, como Ouro Preto, Mariana, Sabará, Caeté, São João Del Rei; bastante informação há sobre o Serro Frio e a sede do Distrito Diamantino, o Tijuco; quase nada sobre as Minas Novas do Fanado.13 13

28

A candidatura e elevação de Diamantina a Patrimônio Histórico da Humanidade parece ter despertado um grande interesse pela sua história. Algumas questões fundamentais sobre o Distrito Diamantino po-


Formação Histórica, Populações e Movimentos

A efetiva ocupação da região onde se situa o atual município de Minas Novas está intimamente ligada ao nome do sertanista Sebastião Leme do Prado. Ele fazia parte da bandeira de Antônio Soares Ferreira que, partindo de Sabará, no início do século XVIII, desbravou a localidade que viria a ser, a partir de 1714, a Vila do Príncipe, atual cidade do Serro. Depois de desbravada a região vizinha que viria a ser o Tijuco, Leme do Prado se instalou por uns cinco anos no Rio Manso, local onde teria descoberto alguns diamantes e de onde partiu, por volta de 1726, rumo a novas descobertas. Atravessou os chapadões da margem direita do Jequitinhonha e atingiu seus afluentes Itamarandiba, Araçuaí e Fanado. Por ter encontrado num afluente deste último uma surpreendente quantidade de ouro, razão pela qual o local teria recebido nome de Bom Sucesso, ali se estabeleceu com sua gente. As terras foram logo repartidas e para lá se dirigiu grande quantidade de mineradores. Um ano depois, foi erguida a primeira capela sob a invocação de São Pedro. O crescimento se deu com extrema rapidez, o que despertou a preocupação do vice-rei, Vasco Fernandes César de Menezes, por causa do esvaziamento dos sertões do Rio das Contas e Jacobina em decorrência dos deslocamentos populacionais em direção aos novos descobertos.14 Sebastião Leme do Prado pretendia comunicar os descobrimentos ao Governador de Minas, Dom Lourenço de Almeida, a quem estava submetido, por ter obtido dele a concessão para partir rumo a novas minas e regularizar a exploração clandestina que já se havia estabelecido no rio Araçuaí. Foi forçado, entretanto, a comunicar as novas descobertas ao Governador da Bahia, o dito vice-rei Vasco Fernandes César de Menezes, que as tomou como seu domínio. Àquela altura, essa região já era muito afamada não apenas por causa das notícias de suas riquezas abundantes, mas também por causa dos salteadores que

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dem ser encontradas em Neves (1899); Barreto (1939); Santos (1976); Machado Filho (1980); Furtado (1996, 2003, 2007). Em 1983, por ocasião da comemoração do “Sesquicentenário de elevação do Tijuco a Vila Diamantina (1831-1981)”, foi publicado, pela Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, um volume contendo vários textos de estudiosos que se reuniram num “ciclo de estudos” promovido pela Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais e pela Liga de Defesa Nacional. Recentemente, pesquisadores ligados ao Centro de Memória Cultural do Vale do Jequitinhonha organizaram o Acervo do Palácio Arquidiocesano de Diamantina, catalogando mais de 550 caixas contendo grande quantidade de documentos. Em 1995, a Fundação João Pinheiro publicou, num número especial da revista Barroco, um alentado Atlas dos Monumentos Históricos e Artísticos – Circuito dos Diamantes. Sobre a ocupação da região do termo de Minas Novas, o mais completo trabalho parece ainda ser o publicado pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, uma “Edição Especial Comemorativa dos 250 anos da Vila de Minas Novas”, em 1980, vários autores. Ainda assim, apenas três textos se referem especificamente à região de Minas Novas, sendo dois deles, os artigos bem documentados de Waldemar de Almeida Barbosa. Em 2007, foram publicados dois alentados volumes intitulados “História de Minas Gerais: as Minas Setecentistas”, produto do trabalho de 41 pesquisadores. Não há um único texto sobre Minas Novas. Cf. SAINT-HILAIRE, 1975; CÉSAR JÚNIOR, 1975; CÉSAR JÚNIOR e SANTOS, 1978; BARBOSA, 1981.

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Vale do Jequitinhonha

infestavam o sertão. O mais temido desses salteadores era um chefe de bando de nome Brás Esteves Leme.15 Segundo Waldemar de Almeida Barbosa, Brás Esteves era um explorador paulista que havia obtido muitos favores de Dom Brás Baltazar da Silveira, quando era ainda Governador da capitania de São Paulo e Minas Gerais, dentre os quais a proibição de qualquer cobrança contra ele. No norte, entretanto, nas divisas com a Bahia, foi se impondo como chefe local, chegando a “tornar-se terrível facínora, chefe de formidável bando de criminosos”.16 Dominando grande parte do sertão baiano, Brás Esteves mandou dois outros paulistas, os irmãos Francisco Dias do Prado e Domingos Dias do Prado, com o povo do seu bando, ao encontro do primo Sebastião Leme do Prado a fim de forçá-lo a dar o manifesto das novas minas descobertas ao governo da Bahia, o que aconteceu em 1728. Tanto Brás Esteves quanto os irmãos Dias do Prado, que já haviam se enriquecido com o comércio de gado entre os currais da Bahia e a região das minas, “tinham contas a ajustar com as autoridades baianas, e tudo faziam para agradar-lhes”.17 Mas é certo, também, que isso estava relacionado ao jogo de interesses que despertava a possibilidade do contrabando, uma vez que “Minas já estava com o fisco aparelhado e a Bahia, sobre não o ter, era país de portas abertas para o extravio”, como diz Diogo de Vasconcelos.18 Nessa mesma época, o arcebispo de Salvador, Dom Luís Álvares de Figueiredo, teve sua atenção atraída pelo alvoroço provocado na região e mandou o padre Miguel Honorato tomar posse das terras em nome do seu arcebispado, criando aí a freguesia de São Pedro do Bom Sucesso das Minas Novas do Fanado.19 Dom Lourenço de Almeida, Governador de Minas, não se deu por contente com a anexação da região ao território baiano e protestou seguidas vezes ao rei Dom João V. Apesar de seus protestos, as novas minas ficaram subordinadas ao governo da Bahia, tanto na parte civil quanto na militar. Apenas quanto ao judicial ficou Minas Novas subordinada ao Ouvidor do Serro Frio, que ficava bem mais perto. Em 21 de maio de 1729, Dom João escrevia a Dom Lourenço comunicando que a resolução do Conselho Ultramarino, de 17 daquele mês, decidira “que por hora se conservem essas minas na jurisdição do Governo da Bahia, e que o Ouvidor do Serro Frio a tenha tão bem inteiramente no mesmo distrito com subordinação ao V. Rey”.20 Entretanto, com a criação da comarca 15 16 17 18 19 20

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BARBOSA, 1981a, p. 145-154. BARBOSA, 1981a, p. 146. BARBOSA, 1981a, p. 146. Apud SOUZA, 1981, p. 170. SAINT-HILAIRE, 1975, p. 221. Carta de Dom João V ao Governador de Minas, Dom Lourenço de Almeida, datada de 21/05/1729. RAPM. Vol. III, 1898, p. 777.


Formação Histórica, Populações e Movimentos

de Jacobina, na Bahia, em 1742, transferiu-se totalmente a subordinação do termo de Minas Novas ao governo baiano, o que provocou protestos da população, dada a distância de 150 léguas da sede da nova comarca, enquanto o Serro Frio distava apenas 36 léguas. A extração de ouro em Minas Novas era intensa e fazia a fama da região. Ao que parece, no entanto, foi uma fama momentânea, mas suficiente para deixar profunda marca na memória local, pois, ainda hoje, inspira vasta manifestação de saudosismo em relação a um suposto passado de glórias. Além da exploração na confluência do Bom Sucesso com o Fanado, outras minas foram descobertas nas redondezas. A três léguas ao norte, ricas minas foram descobertas no local onde se formaria o arraial de Santa Cruz da Chapada, atualmente Chapada do Norte. Um pouco mais adiante, à margem direita do rio Araçuaí, formou-se um arraial, imediatamente transformado em paróquia de Nossa Senhora da Conceição da Água Suja, mais tarde Berilo. Mais além, à margem esquerda do Araçuaí, outro arraial aurífero foi edificado, com o nome de São Domingos, Virgem da Lapa nos dias de hoje. Até 28 de julho de 1729, enquanto se construía a Casa de Fundição, entraram na Casa da Moeda da Bahia mais de 220 arrobas de ouro, provenientes de Minas Novas, “o melhor ouro da América”. Dois anos após entrar em funcionamento, isto é, “em 1732, a renda da Casa de Fundição deu apenas para cobrir as despesas”. Ainda assim, de 1730 a 1736, foram enviadas à Bahia pelo menos outras 215 arrobas de ouro. “Em 1740, a vila achava-se em franca decadência e o número de habitantes era inferior ao de dez anos atrás.”21 A diminuição da produção, associada ao contrabando, teria forçado a Coroa a reforçar a fiscalização. A descoberta de diamantes fora da demarcação do

21

Barbosa, 1981a. Como encarregado do governo civil e militar de toda a região, Vasco Fernandes César de Menezes enviou um famoso sertanista, Pedro Leolino Mariz, muito elogiado por seus grandes feitos, a quem coube a tarefa de apaziguar os conflitos. Homem de pulso firme, a quem foi atribuído o papel de implantar a ordem e fazer crescer o povoado e a vila, Mariz figura ao lado de Leme do Prado como os dois nomes mais intimamente ligados à história dos primeiros tempos de Minas Novas. Assim se refere a eles Waldemar de Almeida Barbosa (1981a, p. 152): “Pedro Leolino Mariz foi tudo no arraial de S. Pedro do Fanado. (...) A ele coube o governo Civil e militar da região. Foi o superintendente das Minas e, depois de criada a intendência, foi o intendente escolhido. O vice-rei traça-lhe o perfil, com rasgados elogios, pois combateu revoltosos e os bandidos, lutou contra criminosos de toda a espécie. Foi um grande sertanista sem dúvida. Numa de suas cartas, o vice-rei assim se refere a Pedro Leolino Mariz: reunia ‘a qualidade de intrépido sertanejo (hoje dizemos sertanista), um zelo e cordial deferência ao bem público, além de consumada probidade’. ” (...) “Sebastião Leme do Prado, depois de percorrer vales de rios, ribeiros e riachos recolheu-se a Minas Novas, reduzido à extrema indigência. Requereu, então, alegando seus relevantes serviços prestados à Coroa, o lugar de guarda-mor das minas que tinha descoberto, a propriedade dos ofícios de escrivão da ouvidoria e de tabelião de notas, ocasião em que se referiu ao estado de penúria em que se achava. Não era mais útil a ninguém. A Coroa costumava premiar os descobrimentos como incentivo a novos descobrimentos. Sebastião Leme do Prado, velho, tornara-se um inútil. Todos os seus pedidos foram indeferidos.”

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Vale do Jequitinhonha

Distrito Diamantino e que eram contrabandeados para a Bahia foi, certamente, o principal fator de reincorporação do termo de Minas Novas à província de Minas. “Em 1731 foi achado em Minas Novas um grande diamante de 19 oitavas. Foi desviado para a Bahia e vendido em Londres”, conta Barbosa.22 Ele cita também um certo Tomás Francisco de Hares que, numa exposição ao rei, afirma que o Jequitinhonha é o rio mais rico do mundo “pelo muito ouro e diamantes que em si tem; e vive desamparado, sem guarda, principalmente na altura de Minas Novas do Fanado.”23 Em 13 de maio de 1757, a Coroa baixou novo alvará, segundo o qual, tendo em vista os descaminhos que há de muitos diamantes, que aparecem fora de contrato ... por pertencer ao governo da Bahia ... houve por bem separar do governo da Bahia as referidas Minas Novas do Fanado e que fiquem unidas, com as tropas que nela se acham, à comarca do Serro Frio e governo de Minas Gerais.”24 A partir da descoberta de diamantes nessa região a área mineradora do termo de Minas Novas passou a fazer parte do Distrito Diamantino, criado em 1731, cujos limites foram sempre alterados em função de novos achados. O Intendente dos Diamantes, Dr. Tomás Rubi de Barros Barreto, proibiu a mineração e nomeou Pedro de Lino Moraes novo Comissário em todo o termo de Minas Novas do Fanado, com ordem para mandar patrulhar o rio Jequitinhonha e todos os seus afluentes. Alguns autores25 afirmam categoricamente que, sob o jugo da administração opressiva do Distrito Diamantino, a mineração teria sucumbido e a região entrado em franca decadência. Estudos mais recentes,26 entretanto, mostram que, na realidade, a mineração continuou intensa até meados do século XIX, permitindo uma diversificação das atividades econômicas e aumentando significativamente o afluxo populacional para toda a região. Ainda que a fidelidade dos dados estatísticos seja passível de questionamento e que não seja possível identificar onde essa gente estava, a imensa comarca do Serro Frio aumentou a sua população de menos de 10 mil habitantes, em 1738, para mais de 58 mil, em 1776, e 104 mil, em 1813.27 Pelo que indicam as fontes secundárias, ainda há muita pesquisa a ser feita sobre a história dessa área mineradora do termo de Minas Novas na segunda 22 23 24 25 26 27

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BARBOSA, 1981a, p. 148. BARBOSA, 1981a, p. 148. BARBOSA, 1981a, p. 148; CÉSAR JÚNIOR e SANTOS, 1978, p. 33; RAPM, Vol. II, 1897, p. 94. PRADO JÚNIOR, 1956; SANTOS, 1976; BARBOSA, 1981. FURTADO, 1996; RIBEIRO, 1998; HALFELD e TSCHUDI, 1998, p. 19, 107. FURTADO, 1996, p. 45.


Formação Histórica, Populações e Movimentos

metade do século XVIII. Mesmo sabendo, hoje, das dificuldades de que se revestia a fiscalização dessa atividade e supondo que muita gente sequer tenha tomado conhecimento da proibição de minerar, parece não haver dúvida de que a mineração deixou de contar como atividade principal dos habitantes da região. Além do esgotamento das jazidas de ouro de aluvião e da incapacidade de uso de tecnologia mais adequada, a proibição de minerar nos rios, ribeirões e córregos diamantíferos parece ter deslocado sucessivamente a atenção para outras atividades, particularmente as ligadas à agropecuária,28 destacando-se aí a produção de algodão. Quando Saint-Hilaire passou pela região, em 1817, a exploração do ouro já não era mais a principal ocupação dos habitantes de Minas Novas. O algodão, no entanto, devido à sua excelente qualidade, era bem conhecido pelos comerciantes da Europa.29 A severidade da fiscalização pode ter, de fato, interferido negativamente na atividade mineradora. Ainda assim, parece ser possível afirmar que foi a incorporação de parte do termo de Minas Novas ao Distrito Diamantino que permitiu a expansão da ocupação regional, mesmo considerando o vasto período em que se deu esse processo. Enquanto durou a corrida do ouro, os únicos núcleos urbanos existentes estavam situados nos centros mineradores. Em decorrência da fiscalização, foram criados vários destacamentos militares em torno dos quais começaram a se constituir novas rotas de ocupação regional. Esses destacamentos tinham por tarefa defender a propriedade real e garantir aos colonos alguma segurança no enfrentamento com os indígenas. As atuais cidades de Itinga, Jequitinhonha, Joaíma, Almenara e Salto da Divisa são exemplos de postos de destacamento militar em torno dos quais emergiram aldeamentos urbanos. Essa ocupação começou a se realizar efetivamente a partir de 1804, quando Dom João VI ordenou que fosse aberto o caminho pluvial do rio Jequitinhonha, ligando as duas regiões que vieram a ser Belmonte e Araçuaí.30 Isso teria incrementado sobremaneira o comércio entre a região central do termo de Minas Novas, o norte de Minas e o litoral sul baiano. Um século depois da descoberta de ouro no Fanado, a região vive um novo momento economicamente expressivo, dessa vez com o comércio do algodão e com a expansão da criação de gado rumo ao baixo Jequitinhonha.

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Diz Júnia Furtado (1996, p. 146): “A pecuária se expandiu por toda a Capitania das Minas e também no Distrito Diamantino. O fornecimento de carne era condição essencial para o deslocamento e o crescimento da população. O gado foi sobretaxado várias vezes e, apesar dos protestos de produtores e consumidores, se revelara uma atividade dinâmica.” SAINT-HILAIRE, 1975, p. 194. MAIA, 1936; PEREIRA, 1969; SAINT-HILAIRE, 1975; SILVA, 1987; SANTIAGO e SOUZA, 1996.

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A ocupação da região: Fazendas de gado nos sertões do norte Desde meados do século XVII, várias entradas e bandeiras31 partiram de São Paulo seja para expandir os limites da colônia para além dos limites de Tordesilhas, aprisionar índios ou descobrir metais e pedras preciosas. Dentre elas, duas tiveram particular relevância para a ocupação da região em foco: a de Matias Cardoso de Almeida, que partiu da Vila de São Paulo de Piratininga, em 1664, e a de Fernão Dias, que partiu dez anos depois. Não é possível explorar cada uma delas aqui, mas o certo é que esses bandeirantes atravessaram de sul a norte o que veio a ser o atual estado de Minas Gerais e fizeram do São Francisco, a primeira via de ligação, pelo interior, entre o nordeste e o sul da colônia. O movimento feito por Matias Cardoso, descendo o rio São Francisco e implantando fazendas, foi ao encontro de outro movimento que, subindo o rio a partir do litoral nordestino, já havia espalhado currais pelas duas margens do rio no sertão baiano. Com a descoberta de ouro no ribeirão do Carmo, no último decênio do século XVII, intensificou-se essa ligação pela importância que o comércio de gado passou a ter no abastecimento da região das minas. Além disso, o Caminho Geral do Sertão ou Caminho do Rio São Francisco, “o rio dos currais”, tornou-se uma via de grandes deslocamentos populacionais para as minas, uma vez que estas passaram a exercer grande fascínio. Em texto do início do século XVIII, amplamente explorado por Maria Efigênia Resende, pode-se ler o seguinte: Este caminho é geral para todas as povoações da Bahia, Pernambuco e Maranhão, assim das costas do mar, como dos recôncavos e sertões de seus distritos, porque de todas as partes e povoações das ditas Capitanias há hoje caminhos, comunicação e trato para os currais do rio São Francisco, com maior ou menor distância, mais ou menos frequência, conforme a parte donde o buscam; sendo, porém, tantos e tão vários os caminhos, como a vastidão dos lugares que se comunicam com os ditos currais e rio para dele seguir para as minas se reduzem todos a um só, de tal sorte que do arraial de Matias Cardoso para cima não houve nem se sabe até agora que haja mais caminho que o da beira do rio São Francisco, porque a pouca distância dele, assim de 31

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Entradas é o nome dado a expedições oficiais, financiadas pelo governo português; bandeira é o nome dado a expedições espontâneas, feitas por empreendedores particulares. Cf. BARBOSA, 1985.


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uma banda, como da outra, aparecem serras e matos tão impenetráveis, que nem os Paulistas os entraram nunca, nem sabem dar razão de sua qualidade nem de seu fim. E reduzidos na forma dita todos os caminhos que entram no rio São Francisco a um só caminho, do arraial de Matias Cardoso seguem pela beira do mesmo rio por distância de cem léguas, pouco mais ou menos, até a barra que nele faz o rio das Velhas, na qual, deixado o dito rio São Francisco, seguem pela beira do das Velhas até se encontrarem com as minas de que ás beiras dele se tira ouro. [...] Deste rio das Velhas se apartam outra vez diversos caminhos para todas as minas descobertas, assim para as chamadas gerais [minas do Cataguases], como para as do Serro Frio e para todas as outras de que se tira ouro por entre aquelas dilatadas serras.32 Apesar de apontar “serras e matos tão impenetráveis”, foi a partir desse eixo central que a pecuária se estendeu para todo o norte e nordeste da capitania de Minas Gerais, num movimento que durou quase três séculos. Enquanto os sertões33 do leste continuavam fechados à colonização, mais ao norte da capitania já se verificava a ocupação do território pelas fazendas de gado que, provenientes das margens do São Francisco avançavam pelo sertão baiano e o norte de Minas Gerais. E foi esse lento movimento de expansão que levou o grande termo de Minas Novas às sucessivas divisões, até chegar aos atuais 141 municípios. A primeira grande divisão administrativa do termo de Minas Novas – desde 1810 transformada em sede de nova comarca – se deu em 1831, com a criação dos municípios de Montes Claros e Rio Pardo de Minas. Montes Claros se originou a partir de uma fazenda de mesmo nome fundada por Antônio Gonçalves Figueira, em princípios do século XVIII. Algum tempo depois, um grupo de fugitivos dos conflitos desencadeados na região de Itacambira, para lá se dirigiu, ampliando o povoamento do local que deu origem ao arraial das Formigas. A partir daí, essa expansão vai se dando gradativamente em direção à

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RESENDE, 2007, p. 43. Grifo no original. As fronteiras do sertão ou dos diferentes sertões foram sendo modificadas ao longo do tempo. Sobre a questão, cf. Mata-Machado (1991); Ribeiro (1997). Diz Guimarães Rosa (1986, p.1): “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade.”

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região nordeste de Minas, isto é, baixo Jequitinhonha e vale do Mucuri.34 A região em torno de Rio Pardo de Minas teve grande importância nesse processo de expansão. A instalação da vila de Rio Pardo “teve logar no dia de S. Bartolomeu, no Anno da Fumaça”,35 dois anos depois da sua criação. Ao final do século XVII, um sertanista de nome Antônio Guedes de Brito, em decorrência de serviços prestados à Coroa, havia recebido uma imensa sesmaria que ocupava grande área do sul da Bahia e se prolongava, em território mineiro, umas cento e sessenta léguas pela margem direita do São Francisco. Essa área ficou conhecida como “os domínios da Casa da Ponte”.36 Em seu Chorographia do Municipio do Rio Pardo, publicado em 1908, Antonino da Silva Neves afirma que as terras do sertão do Caetité e Urubu, na Bahia, e Rio Pardo, em Minas, foram do domínio da casa do conde da Ponte, que, para povoal-as, assim parece, mandava escravos seus e colonos lusitanos a estabelecer fazendas de lavoira e de criação em logares apropriados, por ventura acompanhados de padres encarregados da catequese do gentio.”37 Diferentemente das terras situadas nas proximidades e em toda a região da margem direita do rio Jequitinhonha e vale do Mucuri, onde predominavam grandes e exuberantes florestas, as terras do norte de Minas se caracterizavam por um quadro de preponderância da caatinga, um prolongamento do semiárido baiano em terras mineiras. Aí também foi intensa a presença do elemento indígena, até meados do século XIX, e intenso, também, foi o enfrentamento entre índios e colonizadores. É significativa a observação de Antonino Neves, segundo a qual a “domesticação” misturou o gentio ao povo e os “bugres que se não amansaram” emigraram para as matas do Jequitinhonha. Como ainda veremos, lá também, eles já estavam sendo escorraçados. A ocupação das zonas do rio Doce, do Mucuri e do baixo Jequitinhonha, a partir da segunda metade do século XIX, devido a sucessivas correntes migratórias, interferiu dramati-

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Não constitui objeto deste trabalho verificar o processo de desenvolvimento da região em torno de Montes Claros. Sobre a história dessa parte do norte de Minas ver: Vianna, 1916; Vianna, 1935; Paula, 1957; Pires, 1979; Botelho, 1994; Cardoso, 1996; Oliveira, 2000. NEVES, 1908, p. 384. Por volta de outubro de 1833, aconteceu um grande incêndio florestal na região onde futuramente seria o município de Pedra Azul, que ardeu durante uns 60 dias. Em decorrência disso, atribuíram-lhe o nome de “Ano da Fumaça”. Segundo Waldemar de Almeida Barbosa (1985, p. 22) esse acontecimento passou a ser referência histórica, dividindo os acontecimentos entre “antes do ano da fumaça” e “depois do ano da fumaça”. NEVES, 1908; PIRES, 1979; SANTIAGO e SOUZA, 1996. O livro de Simeão Ribeiro Pires, Raízes de Minas, é quase todo destinado à história dos “domínios da Casa da Ponte”. NEVES, 1908, p. 363.


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camente na vida dos seus antigos habitantes. Esses movimentos migratórios caracterizaram essa região, durante todo o século XIX e primeira metade do século XX, e é importante, mesmo em linhas gerais, traçar as suas principais rotas, para que se tenha uma imagem mais clara do processo de ocupação desse território e da vida da população que o habitava. Ao longo do século XVIII e na primeira metade do século XIX, esse movimento expandiu-se do norte de Minas até esbarrar nas matas do baixo Jequitinhonha; na segunda metade desse século e na primeira metade do século XX ele avançou em direção ao vale do Mucuri, num sucessivo movimento de abertura de fronteiras, domínio das matas e subjugação da população indígena. Ao contrário das áreas de mineração, que eram ocupadas com grande rapidez, tão logo corriam as notícias de novos achados, nessa região de expansão da pecuária, a ocupação do território aconteceu de forma extremamente lenta. Durou mais de um século o deslocamento das fazendas de gado e lavoura das margens do São Francisco até a região de Pedra Azul e outro século daí até as matas do baixo Jequitinhonha e do Mucuri. A população que foi ocupando o norte de Minas teve que aprender a conviver com as prolongadas estiagens que regularmente castigavam a terra, os animais, as plantações e as pessoas. Muitos são os relatos que apontam vítimas de um quadro cujas condições naturais e sociais foram profundamente desfavoráveis. A memória coletiva registra os momentos mais trágicos dessa trajetória, procurando, à sua maneira, dotar as pessoas de cuidados necessários ao enfrentamento do inevitável. Ainda hoje, nessa região, as “palavras dos antigos” são levadas muito a sério. Elas evocam uma situação demonstrável pela evidência das repetições que garantem aos fenômenos do quadro natural uma fantástica regularidade e ao quadro social uma incrível capacidade de enfrentá-los. O seguinte extrato do texto de Antonino Neves, referindo à região de Rio Pardo, é um retrato sem retoques dessa sabedoria popular e das representações coletivas que os nativos têm acerca de sua relação com o meio. As estações nem sempre correm regulares. Esse Municipio, como quasi todos os outros do extremo norte do Estado, tem sido flagelado, periodicamente, por estiagens mais ou menos duradouras, das quaes são mais notaveis as secas e fomes, medonhamente celebres, de 1819, 1859, 1890, e 189899, irrogando damnos enormes à população, sobretudo aos habitantes da zona das catingas carrasquentas, a mais arida, notando-se que nos anos de crise e no que imediatamente se lhe segue, copiosamente chuvoso, a mortalidade é espantosa em seres humanos e irracionaes que quasi se nivelam na 37


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conjunctura miseravelmente tragica do flagello ardente, da penuria negra, aterrorisante, em pleno sertão bravio.38 É uma realidade de difícil enfrentamento, que marca profundamente a vida de quem a experimentou e a memória dos seus descendentes. Qualquer pessoa dessa região é capaz de se referir aos anos terminados em 9 com grande preocupação e temor. Diz Antonino Neves que, “no ‘anno de 9’ vem a secca, acompanhada sempre de escasseamento de viveres. Então se fazem na primavera e no verão, rezas pelas estradas, irrigam-se cruzeiros solitarios, trocam-se santos...”.39 A repetição de ciclos bastante regulares permitiu à população local criar representações de um quadro natural que se alterna entre momentos de fartura, quando as chuvas são bem distribuídas, e a situação de penúria, quando a seca esturrica a terra. A regularidade nos acontecimentos fomenta a criação de crenças, muitas delas insustentáveis à luz à luz da calculabilidade racional. Mas os anos terminados em 9 são sempre lembrados como períodos marcados por catástrofes, seja pela seca ou pelo excesso de chuva. E essa é uma situação empiricamente verificável, tanto para o século XIX, como o fez Antonino Neves, quanto para o século XX, como é presente na memória de idosos que relembram os dramáticos acontecimentos de 1919, 1928-29, 1939 e, mais recentemente, 1978-79, 1998 e 2008. Dentre os anos que marcaram o século XX com suas catástrofes, podemse destacar 1919, 1928 e 1979, com chuvas torrenciais e enchentes desastrosas. Mais recentemente, 1978, 1998 e 2008 foram anos de secas prolongadas, o que provocou indescritível flagelo nos campos e nas cidades. Mas se há um ano fatídico na memória local este é, certamente, o ano de 1939. O flagelo da seca espalhou a fome por toda a região e retirantes vagavam de um lugar para outro à procura de trabalho e comida. O drama do pesadelo vivido tem contribuído para intensificar a sua lembrança na memória das pessoas que o viveram. Foi notável a preocupação generalizada que essa memória suscitou recentemente, desencadeando pavor a expectativa do “ano terminado em três noves”, 1999, por muitos, esperado como possibilidade de confirmação de uma tragédia anunciada. Mesmo não tendo sido confirmada, não deixa de despertar interesse a forma como a lembrança de tragédias anteriores sempre aparece como um alerta aos que poderiam ser pegos de surpresa. Seja pelas próprias experiências partilhadas pelas pessoas, pelo alerta ecoado do púlpito, ou pela correspondência escrita que circula entre os letrados, a advertência em relação aos dramas da seca é uma preocupação freqüente daqueles que têm o poder de opinar. Em 1939, por exemplo, assim registrou o vigário de Salinas: 38 39

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NEVES, 1908, p. 404. NEVES, 1908, p. 404.


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Ainda hoje se fala sobre as secas de 1890 e 1899... e esta de 1939, nem sabemos até onde ela se estende. Ouvimos dizer que há muita penúria em Araçuaí, Santa Rita, Grão Mogol, Porteirinha, Rio Pardo e Espinosa. E a causa?... falta de chuva. Por aqui há só duas épocas de plantio: as primeiras chuvas de outubro e as neblinas de fevereiro. Em 1938 a chuva veio muito tarde, a 11 de novembro e por isso mais da metade da colheita foi perdida; em fevereiro não se plantou nada, porque não houve neblinas. Imediatamente os preços subiram (...). Daí a fome, mendigos, endividados, ladrões.40 O mesmo vigário continua informando que “uma multidão mudou-se para outras regiões: São Paulo, a Mata” e que “o número de batizados e casamentos diminuiu até a metade”. Nessa mesma época, situação semelhante era observada não muito longe dali. No livro de Tombo da paróquia de Minas Novas, o vigário Otaviano Magalhães registrou suas observações sobre aquele ano sinistro, assim como suas repercussões no trabalho de “salvação das almas”. Devido à grande crise jamais presenciada, não foi possivel ao vigario fazer a visita parochial nos mezes de janeiro e fevereiro, como de costume. Varios foram os pedidos daquelles que nas capelas e fazendas hospedam o vigario, suplicando a prorrogação da mesma visita. Não houve, porem, grande prejuizo para as almas, como provam as estatisticas enviadas á Curia Diocesana. O numero de confissões e comunhões superou ao dos annos anteriores, assim como o de extrema unções e confissões de enfermos. O estado material da freguezia é desolador, devido à grande crise reinante em todo norte mineiro. Muitissimas familias acossadas pela fome e até pela sêde, transferiram residencia para a zona da mata, na bôa esperança de ali encontrarem um meio mais facil de debelar o horrivel flagelo da fome. Scenas tristes e lacinantes foram presenciadas durante o tempo das emigrações. Familias numerosas, andrajosas, sem pão e sem lar, lançadas ao léo da sorte e já sentindo os efeitos nocivos das raizes bravas procuradas para mitigar a fome, esteriçadas pelas estradas aguardando a passagem

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Apud KOPPEN, 1989, p. 84.

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de uma pessoa caridosa para vir em seu socorro; creanças esqueliticas já sem forças até para deixar escapar os seus gemidos, ou mortas por falta de alimentação; mães irtas e debulhadas em lagrimas assistindo o sofrimento de seus filhos; paes já quasi entregados ao desespero por não saberem como resolver a situação de sua familia, eis em resumo a transição do anno de 1938 para 1939. A sede da freguezia e logares circunvizinhos não mais comportavam o grande numero de flagelados, de maltrapilhos e pedintes que batia ás portas pedindo “uma esmola pelo amor de Deus”, para que pudesse retirar-se para a zona da mata. Devido a este estado de cousas, permitidas pela Divina Providencia, os baptizados e os casamentos desta freguezia decresceram consideravelmente. Não puderam ser reparadas certas capelas e construidas outras já projetadas pelas mesmas circunstancias. Tambem as festas não puderam ser celebradas como de costume pelo mesmo motivo.41 Não se pode dizer que elas foram o motivo principal, mas não resta dúvida de que essas secas que assolaram o norte de Minas Gerais e o sul da Bahia ajudaram a povoar o baixo Jequitinhonha e o vale do Mucuri. Elas alimentaram intensas correntes migratórias durante mais de cem anos, entre a primeira metade do século XIX e meados do século XX. Se o início do século XIX foi caracterizado pela ocupação das margens do Jequitinhonha, em decorrência do prolongamento da atividade mineradora, ao longo do século essa ocupação foi se ampliando rumo aos cursos dos seus afluentes, numa tentativa de domínio das áreas agricultáveis. Sob essa perspectiva, é inteiramente legítimo falar de uma ocupação regional de forte influência baiana, tendo como principal atividade econômica a criação de gado, o que garantiu a toda essa região uma forte identidade cultural com a Bahia. Pedra Azul, que, na virada do século XIX para o XX, era o maior centro de criação de gado do nordeste mineiro, originou-se a partir de deslocamentos populacionais do norte de Minas e sul da Bahia, a partir da terceira década daquele século. Ao longo de todo o século XVIII, os “domínios da Casa da Ponte”, que iam do São Francisco ao rio das Velhas, ao Jequitinhonha e ao Pardo, foram sendo ocupados. Dessa forma, os núcleos urbanos que deram origem aos municípios de Montes Claros, Rio Pardo de Minas, Salinas, Taiobeiras e São João do Paraíso foram sendo constituídos em torno de fazendas que se abriam 41

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Livro de Tombo da paróquia de Minas Novas, fl. 21v-22.


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sertão afora. Numa época em que o gado era tocado a longas distâncias, os pontos de parada para descanso eram geralmente terras de fazendeiros que viviam de arrendar pastos para os comerciantes de gado. Em torno de muitas destas fazendas nasceram povoados que se tornaram importantes cidades no cenário regional. O município de Pedra Azul marca a fronteira, atualmente praticamente inexistente, entre a caatinga e a mata que se prolongava do litoral rumo ao centro da província. Daí o seu primeiro nome: “Boca da Caatinga” ou “Nossa Senhora da Conceição da Boca da Caatinga” ou simplesmente “Catingas”. A origem da cidade de Pedra Azul está ligada ao nome de Manoel José Botelho, que vivia em São João do Paraíso. No início dos anos 1820, mudou-se para a região, após comprar terras próximas a uma localidade a que se dava o nome de Cateriogongo, hoje distrito de Pingueira, no município de Cachoeira de Pajeú. No início da década de 30, uma grande queimada abriu uma gigantesca clareira na mata. Essa abertura estimulou a expansão de fazendas, atraindo inclusive a atenção do padre Manoel Fernandes da Costa, de Barra do Rio das Contas, na Bahia, que fundou uma fazenda com grande quantidade de escravos e gado. Foi ele quem construiu uma capela e iniciou o trabalho de catequese naquelas paragens. Segundo os autores de um bem elaborado trabalho sobre a história de Pedra Azul, “pode-se ter como ano da fundação da cidade o de 1834”.42 Conta-se que Manoel José Botelho, apesar da resistência imposta pelos índios que habitavam as matas do baixo Jequitinhonha, continuou seu trabalho de desbravador e seguiu adiante até uma fazenda no atual município de Jequitinhonha. Seus filhos e netos continuaram em Catingas, que em “1886 não tinha mais que 60 casas modestas” 43, como senhores de terras e líderes políticos. Padre Manoel Fernandes da Costa mudou-se para Santa Rita, hoje Medina, local fundado em 1824 por um nobre espanhol de nome Leandro de Medina. Algum tempo depois, por volta de 1860, próximo dali instalou-se um refugiado baiano de nome Bruno Rezende, dedicando-se à plantação de fumo e à pecuária. Não permitindo que os filhos casados saíssem do lugar, logo o local ganhou o nome de Comercinho do Bruno, hoje cidade de Comercinho. A região em torno de Pedra Azul atraiu grande quantidade de migrantes a partir do final do século XIX. Seu dinamismo econômico, demográfico, político e cultural se expressou na introdução de novas pastagens e espécies de gado, na constituição de várias famílias influentes em toda a região e na publicação de vários jornais. Em pouco tempo, o lugarejo passou de povoado a distrito, emancipando-se politicamente em 1911. Ali, desenvolveu-se uma forte pecuária 42 43

SANTIAGO e SOUZA, 1996, p. 41. SANTIAGO e SOUZA, 1996, p. 37.

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que mantinha relações comerciais com todo o leste baiano, norte e leste de Minas, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Também em 1911, já era realizada a primeira Exposição Regional de Pecuária de Pedra Azul, a segunda do estado de Minas Gerais. Os migrantes, provenientes do norte de Minas e sul da Bahia, é que formaram as elites sociais e políticas do município. Dentre os dez primeiros prefeitos (1911-1971) apenas dois não eram baianos ou não tinham ascendência direta de baianos. Em meados dos anos 50, Pedra Azul era a maior cidade do médio-baixo Jequitinhonha, com pouco mais de 5.500 pessoas, tinha uma população total de 22.000 habitantes e três representantes na Assembléia Legislativa. Assim como Pedra Azul, quase todas as cidades do baixo Jequitinhonha surgiram e cresceram em torno das fazendas de gado, até hoje a sua principal atividade econômica. Durante o final do século XIX e toda a primeira metade do século XX, essa atividade teve franca expansão o que permitiu a emergência de grande número de pequenas cidades nessa região. Completava-se, assim, a ocupação regional, a partir da colonização das margens do Jequitinhonha e da expansão da pecuária pelo norte de Minas, até atingir toda a extensão do grande rio e avançar para uma nova fronteira no nordeste de Minas, o vale do Mucuri. Antes de avançarmos em direção a essa fronteira, voltemos ao centro do termo de Minas Novas, verificando a importância do rio Jequitinhonha para a origem e consolidação da cidade de Araçuaí como principal entreposto comercial da região ao longo do século XIX.

A ocupação da região: o rio Jequitinhonha e a fundação da cidade de Araçuaí No início do século XIX, o rio Jequitinhonha renasceu como grande via de ocupação regional. É provável que ele tenha sido transposto por algumas das expedições que tentaram conquistar o interior partindo do litoral baiano e capixaba, nos séculos anteriores. Mas somente em 1804, quando uma expedição foi mandada rio acima, estabeleceu-se definitivamente a ligação entre o alto Jequitinhonha e o litoral baiano. Desde 1739 a demarcação do Distrito Diamantino havia interditado qualquer tráfego pelo rio. Ainda assim, a abertura do rio foi cercada de cuidados, motivo pelo qual vários destacamentos militares foram implantados em quase todo o seu curso. O principal ponto de referência relativo a esse “renascimento” foi a implantação da Sétima Divisão Militar no local onde se situa atualmente a cidade de Jequitinhonha. Em 1811, um alferes gaúcho, de nome Julião Fernandes 42


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Leão, “soldado experimentado nas guerras do Rio Grande do Sul, do Uruguai e da Colônia de Sacramento”,44 foi mandado para o Jequitinhonha, comandando a Sétima Divisão Militar, com a finalidade de civilizar índios, proteger os colonos e guarnecer o rio que, como se disse, era considerado diamantífero. Por ter chegado à região no dia 29 de setembro, data em que a Igreja comemora a festa de São Miguel, deu-se à localidade o nome “Sétima Divisão Militar de São Miguel” e, posteriormente, em 1831, “Freguesia de São Miguel da Sétima Divisão”, em 1911, município de “São Miguel do Jequitinhonha” e, finalmente, em 1914, “Jequitinhonha”. Essa foi a mais antiga povoação que cresceu às margens do baixo Jequitinhonha em território mineiro. Sua origem está ligada à fiscalização do rio contra o contrabando, mas seu desenvolvimento, assim como o de toda a região do baixo Jequitinhonha está ligado à expansão da pecuária. De acordo com relatos da segunda década do século XIX,45 no lugar reinava a precariedade e seus habitantes viviam na mais terrível miséria. A partir de Jequitinhonha, Julião Fernandes ampliou sua área de influência, abrindo estradas na região e “civilizando” indígenas. As atuais cidades de Joaíma, Itinga, Almenara e Salto da Divisa se formaram a partir do seu pioneirismo. Todos os viajantes que aí passaram, no início do século XIX, como Auguste de Saint-Hilaire, deram muitas informações sobre as condições de vida da vasta população indígena, ainda que fossem unânimes em destacar seus caracteres bárbaros, uns “desgraçados, vivendo no presente, unicamente ocupados de suas necessidades materiais, muito inferiores a nós, e dignos, por isso mesmo, de toda nossa compaixão”.46 Saint-Hilaire se refere a Julião como um grande pacificador e protetor de índios, sempre vistos como indolentes, preguiçosos e pouco afeitos aos hábitos da civilização, cabendo aos civilizadores “torná-los homens úteis”.47 Os sucessivos enfrentamentos entre brancos e índios levaram quase toda essa população indígena ao extermínio. Esses enfrentamentos entre brancos e índios retardaram bastante a efetiva ocupação das matas do baixo Jequitinhonha. Enquanto isso, o rio foi se afirmando como rota comercial entre o alto-médio Jequitinhonha, o norte de Minas e o litoral, destacando-se como entreposto comercial a cidade de Araçuaí. Seu rápido crescimento e emergência como centro de referência regional

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SANTIAGO e SOUZA, 1996, p. 40. SAINT-HILAIRE, 1975; POHL, 1976; SPIX, 1981. Segundo Pohl (1976, p. 343): “O arraial de São Miguel é pequeno e insignificante. Tem umas quarenta cabanas de barro, uma igreja inacabada, e foi construído à margem do rio Jequitinhonha. Os seus habitantes são paupérrimos. Um pequeno quartel ali abriga 15 soldados para impedirem os ataques dos índios.” SAINT-HILAIRE, 1975, p. 257. SAINT-HILAIRE, 1975, p. 250.

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ligou-se à sua estratégica localização à margem do rio de mesmo nome, ponto limite do transporte por via fluvial. Fundada por volta de 1830, Araçuaí logo se tornou ponto de encontro entre os canoeiros que singravam os rios e os tropeiros do sertão. Em 1857, foi elevada a município, levando consigo toda a área a jusante do rio Jequitinhonha, numa extensão aproximada de 70 léguas rio abaixo e 20 léguas floresta adentro. Essa foi a segunda grande divisão políticoadministrativa do antigo termo de Minas Novas. Segundo Leopoldo Pereira, num livro publicado pela primeira vez em 1911, o município de Araçuaí ocupava uma imensa extensão de terras, que ia da confluência dos rios Araçuaí e Jequitinhonha, onde está o distrito sede, até a fronteira com a Bahia, na região do Salto Grande, ocupando uma área de aproximadamente 25.000 km2. Sua população era estimada em 70.000 habitantes, distribuídos pelas zonas rurais e 11 distritos urbanos, incluindo o distrito sede.48 Na parte ocidental do município, na divisa com Salinas, predominavam as caatingas, área de influência da fronteira aberta pela pecuária ao longo do século XIX, enquanto na sua porção oriental ainda era possível encontrar vastas extensões de mata atlântica, na confluência do nordeste de Minas com o extremo sul da Bahia. Pela extensão do território, pela configuração do meio e pela escassez de recursos, dentre eles o de locomoção, é de se imaginar que a presença do poder público na região era muito pouco significativa, como o próprio Leopoldo, administrador municipal no final do século XIX, reconhecia. Ao emancipar-se, em 1911, o município de Jequitinhonha levou consigo a maior parte do território de Araçuaí. Consta que a formação do povoamento que originou a cidade de Araçuaí se deu por volta de 1830 a 1840. Mas já havia exatamente um século que seu entorno estava sendo descortinado. Sebastião Leme do Prado e seu grupo haviam chegado ao Bom Sucesso do Fanado em 1727. Indo mais além, alguns desbravadores chegaram a Santa Cruz da Chapada, Água Suja e no mais remoto canto até então explorado na região, São Domingos. Foi na virada dos anos 20 para 30, do século XVIII, que essa região foi partilhada em sesmarias. Descrevendo a partição dessas terras, Urbino Vianna afirma que, por alvará de 16 de janeiro de 1734, “o capitão Ignacio de Souza Ferreira, localiza-se no sertão do rio Pardo, sitio S. José, comprehendendo o Vaccaria e Salinas até o Jequitinhonha.” Algum tempo antes, a 9 de dezembro de 1728, Antônio Lobato Mendes havia recebido as terras

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PEREIRA, 1969, p. 29. Segundo dados do Censo Demográfico do Estado de Minas Gerais, em 1890 a população do município de Araçuaí somava 43.909 habitantes, numa área de 25.000 km2. Em 1920, depois de desmembrado o município de Jequitinhonha (1911), sua população era de 85.663 habitantes, numa área de 9.758 km2. Somando-se a essa população, os 74.652 habitantes do município de Jequitinhonha, percebe-se que a região passou por um substantivo crescimento populacional na virada do século XIX para o século XX.


Formação Histórica, Populações e Movimentos

localizadas entre o Jequitinhonha e o Araçuaí, “fazendo peão o principio do rumo aonde faz barra e união os ditos rios”, no futuro distrito de Bom Jesus da Barra do Pontal. E por alvarás de 11 de outubro de 1734 e de 8 de junho de 1735, foi concedido ao capitão Amador das Neves e a João da Costa Leal tudo quanto estiver comprehendido no distrito de Minas Novas, partindo pelo sul com o rio Arassuahy; pelo norte com o Itamarandiba; pelo leste aonde acaba a chapada da dita fazenda; pelo oeste onde faz barra o dito Itamarandiba, no Arassuahy, e mais, onde há seu sitio de pilões dagua, na estrada de D. Francisca Antunes.49 Conta, também, Leopoldo Pereira que, por essa mesma época, um rico português de nome “Antônio Pereira dos Santos, capitão-mor, senhor de numerosa escravaria”,50 havia se estabelecido em Água Suja, atual Berilo. Obtendo, depois, por carta régia a doação de um extenso terreno próximo à confluência dos rios Araçuaí e Jequitinhonha, estabeleceu-se aí com grande fazenda de lavoura e criação. Teria sido ele o fundador da aldeia de São Domingos e o primeiro colonizador daquela região. De sua numerosa família, uma de suas filhas casou-se com José Pereira Freire de Moura, formado em Direito e Matemática pela Universidade de Coimbra e advogado em Minas Novas. Por ocasião da Inconfidência Mineira, o advogado refugiou-se nas matas desertas do Jequitinhonha porque estava sendo perseguido, em virtude de sua relação com Cláudio Manoel da Costa, de quem havia sido colega de faculdade, e de ter uma irmã casada com um irmão de Padre Rolim, um dos inconfidentes arrolados no processo. Embrenhou-se na mata e estabeleceu-se em terras de seu sogro, às margens do rio Jequitinhonha, duas léguas acima da sua confluência com o Araçuaí, onde aldeou uma tribo tapuia, a dos Tocoiós, local atualmente pertencente ao município de Coronel Murta. Em 1804, o capitão-mor João da Silva Santos encontrou-o a 86 léguas da foz do Jequitinhonha. Poucos anos depois, em 1811, quando Julião Fernandes Leão foi estabelecer a Sétima Divisão em São Miguel do Jequitinhonha, foi o doutor José Pereira quem lhe forneceu as instruções necessárias e os recursos materiais e humanos para finalizar a expedição, inclusive intérpretes indígenas para que pudesse se entender com o gentio.51 49 50 51

VIANNA, 1935, p. 145-146. PEREIRA, 1969, p. 98. José Pereira Freire de Moura permaneceu na região por bastante tempo. Em carta de 05/01/1810, ele relata algo sobre a exploração do Jequitinhonha e traça o roteiro da expedição que procurava uma “lagoa Dourada” que fascinou muita gente. Cf. RAPM, vol. II, 1897, p. 31-32. Cf., também, RIBEIRO, 1998.

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José Pereira Freire de Moura deixou também muitos filhos, dentre os quais um padre, Carlos Pereira Freire de Moura. Homem influente, religiosa e politicamente, foi por sua interferência na Corte que foi criada a freguesia de São Domingos do Araçuaí, atual Virgem da Lapa, em 1813, onde foi o primeiro vigário. Foi juiz de paz em 1830, Presidente da Câmara Municipal de Minas Novas por época da instalação da vila de Rio Pardo, em 1833, e deputado provincial entre 1835 e 1841. Em 1835, padre Carlos tomou posse como Delegado de Instrução Primária do 6º Círculo Literário sediado em Minas Novas.52 Em 1838, foi nomeado, pela Regência, bispo de Mariana, nomeação essa que foi confirmada pelo papa Gregório XVI, em 1840. Não chegou a tomar posse, pois faleceu em São João Del Rei durante a viagem.53 A história da fundação da cidade de Araçuaí está diretamente ligada à trajetória desse padre. Foi Padre Carlos quem fundou Bom Jesus da Barra do Pontal, atual distrito de Itira, numa bonita enseada na confluência dos rios Araçuaí e Jequitinhonha. Com o desenvolvimento do comércio, sendo o Jequitinhonha a sua principal via, o Pontal tornou-se o centro de convergência de canoeiros, o que atraiu também significativo número de meretrizes. Descrito como um sujeito de gênio excessivamente autoritário e exigente, tendo decidido preservar a moral e os bons costumes, resolveu expulsar de lá as mulheres de “vida fácil”. “Lançando os fundamentos de uma futura cidade, portou-se como senhor de alta e baixa justiça, e uma de suas determinações foi que não se consentissem ali meretrizes nem bebidas alcoólicas”, diz Leopoldo Pereira.54 Expulsas pelo padre, elas foram acolhidas por uma fazendeira de nome Luciana Teixeira, estabelecida na Fazenda Boa Vista, uns 15 quilômetros acima, na foz do ribeirão Calhau no rio Araçuaí. Tornou-se esse o novo ponto de parada das canoas que subiam o Jequitinhonha, local para onde foram atraídos os canoeiros. Quando Saint-Hilaire passou pela região, em 1817, foi em casa de Luciana Teixeira que ele se hospedou, quando deixou o registro de suas impressões sobre os mineiros comilões. Enquanto Barra do Pontal entrava em decadência, surgia um novo núcleo urbano que se tornaria a cidade de Araçuaí e sede de bispado.55 52

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Em 1835, foi criada a lei n0 13, “dando a primeira organização ao ensino primário oficial, em Minas”. Através dela, cabia ao governo nomear “em cada comarca, pelo menos um delegado e um suplente”, cujas atribuições eram “nomear visitadores, suspender professores, nomear substitutos”. Nessa época, Minas Gerais era dividida em 15 Círculos Literários. O de Minas Novas incluía Chapada, Grão Mogol, Água Suja, Sucuriú, São Domingos, São Miguel, Curato da Serra, Itacambira, Rio Pardo e Santa Cruz. Observe-se que não se faz qualquer referência a Araçuaí. Cf. MOURÃO, 1959, p. 11-17. Cf. ÂNGELIS, 1998, vol. 1, p. 112 e 156. PEREIRA, 1969, p. 91. As datas e números relativos à origem da cidade compilados de quatro fontes nem sempre conferem entre si. Alguns dos erros decorrem simplesmente de falha na digitação. Nesse caso, a correção será apontada entre colchetes. Os dados da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros são os mais corretos; entretanto, estão incompletos.


Formação Histórica, Populações e Movimentos

Atualmente, a maioria dos que vêem morrer o rio Jequitinhonha, não faz a menor idéia da importância econômica que ele teve para a região. O Jequitinhonha, desde o começo do século XIX, tornou-se importante via de escoamento de produtos entre o norte de Minas e a cidade de Belmonte, no litoral baiano. Ao longo do rio, nasceram e se formaram várias cidades, como Itinga, Itaobim, Je1) Leopoldo Pereira, em 1911, escreve: Legislação da Província e do Estado relativa ao Município de Araçuaí. Ao Exmo Sr Desembargador Tito Fulgêncio devo as seguintes notas por ele obtidas no Arquivo Público Mineiro. A Freguesia do Calhau foi desmembrada do termo de Minas Novas pela Lei n0 803, de 1857 e elevada à categoria de vila com o nome de vila do Araçuaí, constando o novo município das paróquias de Calhau, Itinga, S. Domingos e Salto Grande. Só em 10 de julho de 1871 foi instalada a vila, porque era para isso condição imposta pela lei que os habitantes oferecessem a cadeia e casa da Câmara. Foi elevada a categoria de cidade pela Lei n0 1.780, de 21 de setembro de 1871. Passou a denominar-se cidade do Calhau em virtude da Lei n0 3.326, de 1885 e voltou a denominar-se Araçuaí pela Lei n0 348 [3.485], de 1887. 2) Na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, vol. XXIV, encontra-se o seguinte: A antiga freguesia do Calhau ou Freguesia de Santo Antônio de Araçuaí foi criada em 10/03/1827. [Essa mesma data aparece no Anuário Católico do Brasil.] A 03/07/1857 foi criada a vila Araçuaí, desmembrada do município de Minas Novas, cuja instalação somente aconteceu em 10/07/1871. A 21/09/1871, foi elevada a categoria de cidade, pela Lei provincial 1.870 [1780]. Lei provincial 3.326, de 05/10/1885, denominação de Calhau. Lei provincial 3.485, de 04/10/1887, foi restabelecido o antigo nome Araçuaí. 3) Em Toponímia de Minas Gerais, 2a edição “revista e atualizada por Joaquim Ribeiro Filho”, em 1997, lê-se o seguinte: Curato do Calhau, município de Minas Novas, elevado a paróquia por lei n0 471 de 01/06/1850. Município e vila com o nome atual, por lei n0 803 de 03/07/1837 [1857], confirmada pelas leis n0 1.261 de 19/12/1865 e n0 1.673 [ou n0 1.780] de 20/09/1870 [21/09/1871]. (...) Toma o nome de Calhau por lei n0 3.326 de 05/10/1885. Restituído o nome atual por lei 3.485 de 04/10/1887. 4) Maria Nelly Lages Jardim, em livro publicado em 1998, escreve: O Curato do Calhau foi elevado à categoria de paróquia pela Lei 471, de 10 de junho de 1850. Em 1851, a paróquia do Calhau foi desmembrada do município de Minas Novas e em 1853 [1857] elevada a vila, conservando o nome Calhau. [?] Pela Lei 803, de 03 de julho de 1857, foi a paróquia do Calhau elevada a vila com o nome Araçuaí. Essa Lei foi anulada pela de n0 1.262, de 19 de dezembro de 1865. A 21 de setembro de 1871, pela Lei 1.780, a vila foi elevada a cidade, com o nome Araçuaí. Pela Lei 1.997, de 14 de novembro de 1875, foi declarada em vigor a Lei 803, de 03 de julho de 1857, estando assim a paróquia suprimida novamente criada pela Lei acima referida n0 1.997, de 14 de novembro de 1875. Pela Lei 3.326, de 05 de outubro de 1885, mudou a denominação. Araçuaí passou a ser Calhau até 1887, quando voltou o nome Araçuaí, pela Lei 3.485, de 04 de outubro de 1887. Dessa forma, compilados todos os dados possíveis até então, parece que a redação mais correta seria: A data que aparece na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros e no Anuário Católico do Brasil relativa à criação da Freguesia do Calhau ou Freguesia de Santo Antônio do Araçuaí, está visivelmente equivocada. Essa paróquia foi criada pela Lei n0 471, de 01/06/1850. Em 03/07/1857, pela Lei Provincial n0 803, a freguesia do Calhau foi desmembrada do município de Minas Novas e elevada a vila com o nome Araçuaí, cuja instalação somente aconteceu em 10/07/1871. Entretanto, o dia da cidade ficou sendo o 21 de setembro, porque somente em 21/09/1871, pela Lei 1.780, a vila foi elevada a categoria de cidade. Recebeu a denominação Calhau pela Lei provincial 3.326, de 05/10/1885, nome que prevaleceu até 04/10/1887, quando a Lei 3.485 lhe restituiu o nome Araçuaí. Cf. BARBOSA, 1995.

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quitinhonha, Almenara, Jacinto e Salto da Divisa. Por um longo período, Araçuaí foi um entreposto comercial que centralizou a distribuição de produtos em toda a região, exportando produtos agrícolas rumo ao litoral, principalmente o algodão, o toucinho, a carne e a rapadura e importando principalmente o sal, a querosene e os tecidos finos que viriam competir com a tecelagem local.56 Vários são os autores que contam em prosa e verso a vida dos canoeiros e suas aventuras transportando gente e mercadorias ao longo de muitas décadas. Diz Leopoldo Pereira: A Cidade de Araçuaí era um grande entreposto de comércio. De todos os municípios vizinhos, num raio de 50 léguas, convergiam para ali as tropas. A mata do Peçanha mandava-lhe o toucinho, a carne de porco e o café; Minas Novas o açúcar; Serro e Ferros, os seus cereais e o café; S. João Batista, o ferro; e todo o Norte de Minas, suas variadas produções: os municípios de Araçuaí e Salinas forneciam o gado e a carne seca.57 Esse movimento comercial atinge o seu auge nos anos 80 do século XIX. A partir daí, entretanto, outros centros de comércio apareceram, novas rotas foram constituídas, novas vias de tráfego foram abertas. A navegação do Jequitinhonha foi entrando em decadência e Araçuaí, sem sua principal via de comércio, perdeu a primazia de centro comercial da região, um movimento que não é difícil de entender. Tome-se o processo de constituição dos principais centros urbanos brasileiros, nacionais, estaduais ou regionais e perceber-se-á que eles se constituíram seguindo rotas de tráfego navais, ferroviárias e rodoviárias. No início era o tráfego naval e, com ele, a ocupação do território, a montagem de entrepostos comerciais e o surgimento de cidades em seu curso. Depois veio a ferrovia que, por muito tempo, subtraiu aos rios a primazia como meio de

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Há um curiosíssimo anúncio no jornal “O ARASSUAHY”, de 15 de maio de 1897, nos seguintes termos: “Attenção. JOSÉ IZZO & COSENZA – Rua Ignacio Murta – Convidam os seus amigos e freguezes para virem visitar o seu estabelecimento, admirar e comprar grandes novidades chegadas do Rio de Janeiro e Bahia. Os amantes do filho de Jupiter e de Semele ali encontrarão o que há de superfino na materia. Porto, Brilhante, Villar, Kopke, Sinada, Gomes Filho, Gemino, Caldeira e o soberbo Chiante italiano, cousa especial para a mesa. Em cerveja, “Beer” já se sabe, Pá, Eimbeck, Pil-Sener a 3$ e 2$500. Em Cognac e licores ah! É um puro beijo de moça. Passas, figos, marmeladas, macarrão, etc completam a enfiada do que diz respeito ao paladar. E fazendas, agora, ah! Meu Deus que lindeza! Toda moça bonita de saia de chita, que gosta de fita não pode deixar de visitar aquelle estabelecimento, porque ali encontrarão tudo quanto é gostoso. Rapaziada do berro grosso, casimira de 24$ o metro! Só para os namorados foi pedida, porque linda como os amores, e as namoradas ficam encantadas. Cavaca as cumbucas rapaziada e attaquem o IZZO sem prejuizo. PEREIRA, 1969, p.82.


Formação Histórica, Populações e Movimentos

transporte e ocupação do território. A rodovia, finalmente, deslocou as frentes de ocupação e povoamento, solapando tanto ao rio quanto à ferrovia o papel que tiveram na ocupação do território nacional. Por toda parte no país, exceto na região amazônica, tanto as cidades ribeirinhas quanto as interligadas pela rede ferroviária, deixaram de contar como centro de comércio se não se integraram pela via rodoviária. Quando, em 1942, Araçuaí foi interligada ao litoral pela extensão da Estrada de Ferro Bahia a Minas, que desde 1898 já servia a Teófilo Otoni, o eixo econômico regional já havia se deslocado para o baixo Jequitinhonha e vale do Mucuri. As tropas não foram suficientes para garantir o dinamismo econômico da região num momento em que a rodovia já era o novo instrumento de interligação regional ao contexto da nação. A própria Estrada de Ferro Bahia a Minas não resistiu por mais de vinte anos.58 Leopoldo Pereira descreve o nascimento, a consolidação, o apogeu e a decadência de Araçuaí. Mas sua atenção está voltada principalmente para a situação do quadro natural da região. Ele se esforça em chamar a atenção para o drama provocado pelas intempéries e as condições de vida do sertanejo, que ele não cansa de elogiar. Seu livro traz ainda, como apêndice, resumo de um discurso do deputado Coronel Inácio Murta no Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, na sessão de 25 de junho de 1911. Nesse discurso, o deputado pede ao Instituto que considere sua proposta relativa ao povoamento de uma extensa região de terras férteis e gigantescas matas fechadas, na porção nordeste do município de Araçuaí, “tendo em vista a catequese e civilização dos indígenas que ainda erram naquelas paragens”, o que era considerado um “patriótico e humanitário tentame iniciado desde o tempo colonial pelo mineiro ilustre Dr. José Pereira Freire de Moura, que foi o primeiro colonizador daquela zona”, e continuado pelo alferes Julião Fernandes Leão quando assumiu a Sétima Divisão Militar em São Miguel do Jequitinhonha.59 Fazendo uma apologia desses colonizadores e elevando o seu papel frente aos índios, seja como pacificadores de tribos rivais, seja pelo seu papel na domesticação dos índios ao trabalho, o deputado solicitava a mediação 58

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Na seção da Câmara Municipal de Araçuaí do dia 25 de setembro de 1895, noticiada no jornal O Norte de Minas do dia 29 daquele mês, foi aprovada “por unanimidade de votos a indicação dos vereadores Francelino Ramos, Carlos Bastos e José Martins para homenagear os deputados estaduais Cel. Ignacio Carlos Moreira Murta e Padre Pedro Celestino Rodrigues Chaves, o Senador Joaquim Candido da Costa Sena e o Secretario da Agricultura Dr. Francisco Sá, dando seus nomes a praças e logradouros públicos, uma vez que se tornaram dignos do publico reconhecimento deste municipio, pelo conseguimento de uma linha ferrea de Teophilo Ottoni para esta cidade.” A estação da Estrada de Ferro Bahia a Minas foi inaugurada em Teófilo Otoni em 1898, mas somente chegou a Araçuaí em 1942. Pouco tempo depois ela foi desativada, assim como foi desativado também o ramal da Estrada de ferro Central do Brasil que, partindo de Corinto, ia até Diamantina. PEREIRA, 1969, p. 125.

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do Instituto junto ao governo, para reivindicar que os poderes públicos do Estado e da União assumissem a tarefa civilizadora. Segundo suas informações colhidas em 1906, achavam-se em “estado selvagem” na região dos distritos de Vigia (Almenara) e Salto (Salto da Divisa) pelo menos três grandes tribos dignas da civilização. Uma delas, para fugir aos castigos e humilhações impostos por Julião Fernandes, no aldeamento de Quartéis (Joaíma), instalou-se nas cabeceiras do rio Rubim do Sul. Alguns anos depois os índios voltaram a aparecer no Farrancho, às margens do Jequitinhonha, “onde se estabeleceram, vindo a formar uma tribo forte de homens robustos e mulheres formosas, fazendo dali o mercado onde trocavam peles, tecidos de fibras vegetais e outros objetos que fabricavam.”60 Outra tribo, com “cerca de 200 homens de guerra e, portanto, mais de 1.000 habitantes dignos, sem dúvida, da proteção do governo que tanto tem despendido com a colonização estrangeira”, havia servido a um engenheiro francês na abertura de uma estrada de Farrancho a Prado, no estado da Bahia. Como estavam distantes da colônia indígena de Itambacuri e não havia mais o aldeamento fundado pelo frei capuchinho Domingos de Casali, reivindicava-se a “fundação de uma nova colônia, no Farrancho” ou “no nascente povoado do Rubim a cerca de 10 léguas do Farrancho, situado no centro das matas”.61 A terceira tribo, a dos Botocudos, tida como inteiramente selvagem, e pouco suscetível à civilização, era composta por índios “nômades e errantes pela margem esquerda do Jequitinhonha”62, que vagavam pela região em confronto com os habitantes, em excursões entre o Salto Grande e o Rio Pardo, no norte de Minas. A proposta de mediação do Instituto junto ao governo foi aprovada, segundo Pereira. Entretanto, a ocupação dessa região muito pouco se deveu a uma atitude coordenada do governo mineiro. Várias das tentativas foram malogradas, e o que se viu foi o resultado de iniciativas de empreendedores particulares, através da abertura de uma nova fronteira agrícola e pecuária, que se deu através da total devastação da floresta e da quase completa eliminação dos índios, com o estabelecimento de um sistema de ocupação de graves consequências humanas e ambientais. O deslocamento populacional do vale do Jequitinhonha em direção ao vale do Mucuri completa de vez a ocupação do nordeste do estado de Minas Gerais.

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PEREIRA, 1969, p. 127. PEREIRA, 1969, p. 128. PEREIRA, 1969, p. 129.


Formação Histórica, Populações e Movimentos

A ocupação da região: a colonização do vale do Mucuri Leopoldo Pereira foi, sobretudo, um homem ligado a seu tempo. Ele não apenas conhecia a configuração socioeconômica e cultural da região, mas tinha muita clareza das tendências que se impunham. Uma dessas tendências era o deslocamento do centro comercial de Araçuaí para Teófilo Otoni, em virtude do progresso que o vale do Mucuri alcançava com a construção da estrada de ferro. Ao final do século XIX, Araçuaí atingiu o auge do seu movimento de expansão, recebendo mercadorias da Bahia e até mesmo do Rio de Janeiro. Declina a partir de então, pois se consolidava a abertura de outras vias de comunicação e transporte em direção à região leste e extremidade nordeste de Minas, solapando-lhe a primazia de entreposto comercial. A ocupação dos sertões do leste vinha ocorrendo desde, pelo menos, meados do século XIX, mas é no início do século XX que ela se consolida. Ela seria um desaguadouro para o excedente populacional da região do alto-médio Jequitinhonha que, historicamente esteve ligada à atividade mineradora, ao cultivo do algodão e à produção para subsistência. Como bem pontuou Eduardo Ribeiro,63 nessa região de mineração a fazenda nunca se estabeleceu com a riqueza e a força que possuiu no baixo Jequitinhonha e no vale do Mucuri. Ocupada pelos descendentes dos mineradores ainda nos tempos do cativeiro, partilhada e esgotada muito rapidamente em função de uma ocupação predatória, essa região passou a se caracterizar, já a partir de meados do século XIX, como um espaço de pressão sobre os recursos naturais. Em 1817, Saint-Hilaire notava a reclamação dos moradores de São Domingos (Virgem da Lapa) e Piedade (Turmalina) quanto à fadiga das terras. “Tais são os inconvenientes de um sistema de agricultura que consiste em pedir constantemente à terra, sem retribuir-lhe quase nada”,64 registrou o naturalista. Nessa região do altomédio Jequitinhonha, em decorrência das características do seu quadro natural, eram relativamente pequenas as áreas agricultáveis. Um sistema de exploração que consiste em abrir novas clareiras a partir do esgotamento da terra exige uma ilimitada fronteira como condição para subsistir. Em relação ao norte de Minas e o alto Jequitinhonha essa fronteira era a região nordeste do estado. Uma boa parte dessa população foi quem desbravou as matas do Mucuri. Cansados de explorar uma terra que além de fraca por esgotamento natural ainda era fustigada por longos períodos de estiagem, lavradores dessas regiões começaram a se entusiasmar com a fama de

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RIBEIRO, 1996. SAINT-HILAIRE, 1975, p. 295-6.

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fartura que passou a ser difundida sobre a região da “mata”.65 Conforme Eduardo Ribeiro: Desde 1810 e 1820 muitos lavradores pediam apoio ao governo para entrar nas matas, e um tanto deles já entrara por conta própria. Os documentos da Paróquia de São Pedro do Fanado das Minas Novas mostram, desde 1830 e 1840 uma grande quantidade de batizados e poucos casamentos feitos já na boca da mata – Capelinha, Alto dos Bois, Setubinha – onde colonos embrenhavam-se para procurar pedras, fazer lavouras, colocar índios no trabalho e índias nas suas camas.66 De fato, essas matas eram muito atraentes. Não porque “a produção milagrosa de mantimentos surgia da terra de floresta com pouco serviço de machado e quase nenhum talho de enxada”,67 como afirma Ribeiro. Eram terras virgens, de excelente qualidade tanto para o cultivo de alimentos quanto para a formação de pastagens, mas que exigiam o duro trabalho de derrubar as matas, plantar e controlar as pragas. Expulsos de uma paisagem tórrida, de um lado, e atraídos por outra exuberante, de outro, famílias inteiras do norte de Minas e Vale do Jequitinhonha alimentaram um movimento migratório rumo ao Mucuri que durou quase um século. Iniciado em meados do século XIX, foi intenso ao final desse século e ainda se tem notícias desse movimento em meados do século XX, quando se mudam novamente as rotas migratórias, a partir de então, para o interior paulista, o norte do Paraná, o CentroOeste do país e o sertão noroeste de Minas. Fustigados pelas secas sucessivas e prolongadas dos sertões do norte, os migrantes deslocavam-se daí para os sertões do leste, onde foram domar as matas, os índios e as febres. Por uma via, atravessavam os atuais municípios de Águas Vermelhas, Pedra Azul, Jequitinhonha, Almenara e atingiam a margem direita do Jequitinhonha em Rubim, Joaíma e Águas Formosas. Por outra via, passavam por Salinas, Grão Mogol, Araçuaí, Minas Novas e iam ocupando a região de Capelinha, Novo Cruzeiro, Água Boa e arredores de Teófilo Otoni.68 Leopoldo Pereira testemunhou muitos desses bandos de migrantes.

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Atualmente, a região da Mata Mineira, segundo divisão regional, fica à sudeste do estado, tendo Juiz de Fora como seu principal centro de referência. Entretanto, como antigamente toda a porção leste do estado era ocupada por uma extensa mata que ia da região de Juiz de Fora ao sul da Bahia, ficou na memória da população do norte de Minas a representação desse lugar com esse nome. E ainda hoje seus habitantes se referem à região em torno de Teófilo Otoni como sendo a “região da mata”. RIBEIRO, 1996, p. 18. RIBEIRO, 1996, p. 19; RIBEIRO, 1998, p. 53. PEREIRA, 1969; SANTOS, 1970; RIBEIRO, 1996; RIBEIRO, 1998.


Formação Histórica, Populações e Movimentos

Desde anos uma grande corrente migratória, vinda do sertão da Bahia e de diversos municípios do Norte de Minas, tem passado faminta por esta cidade em demanda das matas do Mucuri e Suaçuí. Este êxodo doloroso de exilados da fome parece aumentar cada ano. Neste município povoouse em pouco tempo um distrito com imigração baiana.69 E, mais adiante, ele completa: Do sertão da Bahia, onde são ainda menores os recursos, partem levas e levas de emigrantes, que vêm procurar as matas de Teófilo Otoni e do Peçanha, o que complica mais a situação dos habitantes do Município de Araçuaí, que elas atravessam, extenuadas pelo cansaço e pela inanição. Morre gente pelas estradas, o sol é de fogo, e a terra abrasada queima os pés descalços dos emigrantes.70 A ocupação do vale do Mucuri é um capítulo à parte no processo de colonização do nordeste mineiro. Diferentemente da região do vale do Jequitinhonha, que foi colonizada por bandeirantes paulistas e escravos africanos, na atividade mineradora, e pelos baianos, principalmente com a pecuária, e cuja herança cultural é o resultado da miscigenação desses com os nativos, na região do Mucuri conta-se, além de tudo isso, com substantiva presença de alemães, chineses, belgas e suíços. Isso fez com que essa região adquirisse uma configuração sociocultural muito mais diversificada do que a do vale do Jequitinhonha e norte de Minas e, por isso mesmo, de mais complexa abordagem. Quando a diocese de Araçuaí foi criada, em 1913, ela abarcava toda a região nordeste de Minas e atendia a uma população bastante diversificada, tanto econômica e política, quanto social e culturalmente. Na região em torno de Minas Novas e Araçuaí já havia se constituído uma identidade cultural própria, em decorrência da estabilização da população ao longo de dois séculos de atividades ligadas à terra. Enquanto isso, a região do baixo Jequitinhonha e vale do Mucuri, por ser área de ocupação recente e intenso movimento migratório, configurava uma paisagem humana de orientações muito distintas quanto às referências culturais. Realizar o serviço religioso naquela região central da diocese significava principalmente combater a “ignorância religiosa” da população e as “superstições” típicas de um catolicismo popular de origem 69 70

PEREIRA, 1969, p. 48. PEREIRA, 1969, p. 66.

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Vale do Jequitinhonha

lusitana fundido aos elementos simbólicos de nativos e africanos. Nas outras áreas, entretanto, como o baixo Jequitinhonha e vale do Mucuri, significava, também, enfrentar outras igrejas e suas tentativas de disputar fiéis com a Igreja Católica. Há uma significativa bibliografia sobre a história do vale do Mucuri, quase toda ela ligada à figura pioneira de Teófilo Benedito Ottoni e o seu projeto de criação da Companhia do Mucury. Eduardo Ribeiro71, entretanto, inverte a lógica que predomina no trabalho dos historiadores da região, sustentando que há um equívoco em atribuir a Otoni a responsabilidade pela migração que povoou o Mucuri. Pelo contrário, diz Ribeiro, sua intenção com a criação da Companhia era ampliar as possibilidades daquela população que, por conta própria, vinda do Jequitinhonha, já ocupava as franjas da mata. Seu grande projeto, ousado para a época e revestido de muito boas intenções, era garantir uma ligação entre a região de Minas Novas e o litoral e, por essa via, incrementar o desenvolvimento de toda a região do Jequitinhonha e do Mucuri. A Companhia do Mucury foi criada em 1851. Dentre os privilégios exclusivos que ela detinha estavam o de explorar por 40 anos, renováveis ao fim do período, em todo o vale do Mucuri, seus afluentes e a região costeira, a navegação a vapor ou por outros meios superiores que viessem a ser descobertos e fixar os fretes do Rio de Janeiro para qualquer ponto do imenso município de Minas Novas. Há consenso quanto ao fato de que a Companhia se revelou um péssimo negócio. No mais, tudo se reveste de grande polêmica, como a que envolveu Jakob von Tschudi e Robert Avé Lallemant.72 A opção pela imigração estrangeira, por exemplo, sempre sustentada como parte dos objetivos primordiais de Teófilo Otoni, foi, segundo Eduardo Ribeiro, uma tentativa de última hora, contra seu gosto, num esforço desesperado para salvar o empreendimento, já no final da década de 50. Entretanto, consta-se que, já em 1853, quando foi criada a primitiva povoação de Filadélfia, atual cidade de Teófilo Otoni, foi celebrado um “contrato com a firma Schlobach e Morgenstern para a vinda de dois mil agricultores alemães”.73 Em 1856, 1857 e 1868, chegaram ao Mucuri as primeiras levas organizadas de imigrantes, principalmente alemães, que vinham participar de um empreendimento colonizador que pretendia ser a grande saída para os problemas econômicos de toda a região. Ao ser criado o

71 72 73

54

RIBEIRO, 1998. HALFELD e TSCHUDI, 1998. WEYRAUCH, 1997, p. 77.


Formação Histórica, Populações e Movimentos

município e cidade com o nome atual, em 1878, acontecia a quarta grande e expressiva divisão do antigo termo de Minas Novas.74 Dentre toda a bibliografia sobre a colonização do vale do Mucuri, no que se refere especialmente à abordagem cultural, destaca-se um livro que conta a história de imigrantes europeus na região, particularmente a dos “pioneiros alemães de Nova Filadélfia”.75 O destaque desse livro não é apenas a excepcional qualidade da obra, que relata a saga de europeus do norte chegando até mesmo por engano – muitos deles imaginavam estar indo para a Filadélfia da América do Norte – a uma terra completamente desconhecida, coberta por matas cerradas e habitada por índios, um lugar onde febres e doenças de toda espécie ainda se opunham à tentativa do homem branco de dominar o ambiente. Seu destaque, o que pode ser considerado extraordinário, é o fato de ser elaborado a partir de um “relato de mulheres”, pela primeira vez presentes numa história que aparece sempre como algo feito por homens. A esse respeito, exceto no caso da mulata Luciana Teixeira, benevolente fazendeira que está sempre relacionada à origem de Araçuaí, ou das índias caçadas a laço e cachorro, a figura da mulher é praticamente ausente na historiografia regional. Aparece, é verdade, com grande destaque a figura de Chica da Silva, grande amor do contratador João Fernandes, no Tijuco, e em destaque menor, as figuras de Maria da Cruz, grande latifundiária que liderou uma rebelião no sertão do São Francisco, e Isabel Maria, fundadora do Recolhimento de Mulheres, ou Casa de Oração do Vale de Lágrimas, em Chapada do Norte. Na historiografia regional, os que têm lugar de destaque são os conquistadores bandeirantes com sua imensa escravaria, os fazendeiros desbravadores com seus vaqueiros e agregados, os canoeiros, os tropeiros, alguns homens de letras e muitos outros de fé. Até então não havia lugar para as mulheres, sempre ocupadas com o mundo doméstico, a vida privada e, por isso mesmo, distantes dos grandes feitos heróicos no domínio do sertão bravio.76

74

75 76

A primeira foi a criação dos municípios de Montes Claros e Rio Pardo de Minas, em 1831; a segunda foi a criação do município de Araçuaí, em 1857; a terceira, a criação do município de São João Batista, atual Itamarandiba, em 1862. Sobre a história desta cidade, ver Pavie (1988). A quarta foi a criação de Teófilo Otoni, em 1878. As sucessivas divisões, ao longo do século XX, fragmentaram a região do grande termo de Minas Novas em mais de 140 municípios. WEYRAUCH, 1997. Priscila Freire (1983, p. 195-217), em elegantíssima conferência proferida na Casa da Cultura do Serro e publicada em 1983 na coletânea comemorativa do sesquicentenário de elevação do Tijuco a Vila Diamantina, esboça uma análise da condição feminina em Minas nos primeiros séculos da ocupação do território.

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Vale do Jequitinhonha

Cléia Schiavo Weyrauch escreveu sobre as narrativas feitas por três mulheres – Hélia, Walfrieda e Brunhilde Hollerbach Marx – descendentes de alguns dos pioneiros alemães em Nova Filadélfia. Por um lado, elas descendem do primeiro pastor Luterano, João Leonardo Hollerbach, e, por outro lado, de um comerciante de nome Frederico Marx, os quais “constituíram verdadeiros esteios de uma comunidade estrangeira abandonada nos trópicos, atuando esses dois grupos familiares, tanto do ponto de vista religioso quanto do ponto de vista social, através da Comunidade Evangélica Luterana” que, do final do século XIX aos anos 30 do século XX, empenharam-se na “preservação da cultura civil e religiosa e dos costumes germânicos no Mucuri”.77 A saga desses colonizadores e o confronto que estabeleceram com os nativos merecem um pouco de atenção. Donas de um extraordinário legado de informações sobre a vida da comunidade religiosa desde o início da colonização, essas três personagens principais permitiram trazer a público alguns dentre os principais acontecimentos que marcaram esse período histórico naquela região porque tiveram o cuidado de registrar por escrito suas lembranças e recolher e preservar os escritos de terceiros. Tal iniciativa permitiu à autora traçar um quadro dramático, mas ao mesmo tempo bastante lúcido e fiel da trama cotidiana vivida pelos colonos. Ao chegarem à região do Mucuri, os colonos alemães já encontraram os primeiros desbravadores às turras com seus escravos e com os índios. Segundo Weyrauch, a atitude desses colonos, que eram de filiação luterana, com relação aos negros era bastante diferente daquela que caracterizava a relação da elite nativa com a escravidão. Havia, é verdade, preconceito e distanciamento, mas numa intensidade menor do que o que acontecia em relação aos brasileiros e seus escravos. Convencidos de que o trabalho é uma ação humana voltada para a glorificação de Deus, esses luteranos lamentavam não apenas a condição do escravo em si, mas a forma como seu trabalho era explorado. E isso ficava visível nas manifestações do pastor João Leonardo Hollerbach, solicitado pelos colonos para o trabalho missionário na colônia. Hollerbach lamentava a aparência física dos escravos, submetidos que estavam a trabalhar como burros de carga; lamentava também a “tristeza que seus rostos denunciavam”, o que ele considerava “um olhar vazio e sem espírito”. Desde o início começou a luta contra a escravidão e pela difusão de seus valores religiosos junto aos colonos. Quando a notícia do fim da escravidão finalmente chegou à cidade, os 77

56

WEYRAUCH, 1997, p. 26.


Formação Histórica, Populações e Movimentos

negros libertos correram para a sua residência pulando, carregando-o nos ombros e louvando a sua participação na luta ante-escravocrata. Aqui, a questão do trabalho entra como o grande diferencial entre matrizes religiosas distintas que estavam a organizar a vida social e a dimensão moral da comunidade. Diz Weyrauch: A demarcação dos espaços sociais ocupados na região por fazendeiros e colonos não se limitava ao critério único da extensão das terras que possuíam e da riqueza e prestígio pessoal que cada um dos membros destes segmentos pudesse ter. Divididos entre as duas igrejas, os fazendeiros ligados à Igreja Católica e os colonos reunidos em torno da Igreja Luterana regulavam estes últimos suas vidas por princípios nos quais a relação do homem com o trabalho ocupava um lugar central. Enquanto os católicos, em sua maioria, desprezavam o trabalho como “coisa de escravo”, os luteranos o elevavam a uma categoria próxima ao sagrado. Consideravam-no fator de engrandecimento da condição humana, como um canal de ligação do homem com Deus...78 Face aos índios, ao contrário, a relação dos imigrantes sempre foi muito precária. Era preciso mantê-los à distância, pois a sua relação com os colonos nativos e com as forças do Governo já era de franco conflito. Vários são os relatos do confronto entre colonos e índios, geralmente na disputa pela terra, o que ainda persiste por todo o século XX. No entanto, até mesmo nos aldeamentos, cuja tarefa dos religiosos era catequizá-los, cristianizá-los e adaptá-los ao mundo cultural dos brancos, esses confrontos eram bastante frequentes. A catequese, estimulada pelo próprio governo imperial era, de fato, o objetivo principal dos missionários. Entretanto, na correlação de forças que estabeleceram pelo domínio das terras, eles acabaram por contribuir para a dizimação dos índios. A boa intenção dos religiosos em salvar-lhes a alma, levar até eles as benesses da civilização e incorporá-los ao mundo dos brancos foi um forte fator na determinação da sua morte enquanto povo, etnia e nação. Essa não foi, certamente, a solução mais eficaz, uma vez que, entre os próprios remanescentes indígenas, encontram-se duras palavras de reprovação a esse modelo de acolhimento. “Esses padres é que mataram os índios”, conta Jerônimo Nunes na Apresentação de um livro de Eduardo Ribeiro, citando as 78

WEYRAUCH, 1997, p. 103.

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Vale do Jequitinhonha

palavras do “velho Adolfo Maxakali”.79 Como bem analisa Ribeiro, além do extermínio decorrente dos ataques de soldados, colonos, fome e doenças, outro fator menos visível, mas talvez mais profundamente relevante, foi a incorporação desses índios ao mundo do trabalho dos brancos. Esse combate não foi travado com armas, mas com enxadas, chicotes e troncos e não aconteceu no campo de batalha, mas nas lavouras e nas casas dos colonos que transformaram muitos índios em lavradores e “brasileiros”.80

Minas Novas e Araçuaí na primeira metade do século XX A região mineradora do termo de Minas Novas passou por um rápido processo de povoamento no período inicial de sua ocupação, no segundo quartel do século XVIII. Essa fase de euforia, entretanto, durou pouco tempo. À diminuição gradativa da exploração da atividade mineradora contrapôs-se a afirmação da agricultura como principal ocupação dos moradores locais. Era uma atividade de subsistência, que consolidou, ao longo do tempo, uma agricultura de tipo familiar, explorada principalmente nas margens cultiváveis dos rios, ribeirões e córregos. Isso constituiu um processo de lenta ocupação de grotas, já que as chapadas, por serem muito áridas, não se prestavam ao cultivo sem um tratamento especial da terra. Essas chapadas ficaram como reserva natural, lugar do qual se lançava mão para a coleta de frutos silvestres e para a criação do gado vacum. Eram terras de ninguém, mas de todos ao mesmo tempo, e esse tipo de exploração coletiva durou até o terceiro quartel do século XX, quando o eucalipto passou a substituir a flora nativa das chapadas.81 A uma partição original da terra, que consistia na distribuição de imensas sesmarias, foi se desencadeando um sucessivo processo de repartição entre meeiros, agregados, herdeiros etc., até estabilizar-se, na virada do século XIX para o século XX, um conjunto de relações sociais que consistiam, genericamente, no seguinte: grandes extensões de terras devolutas, que funcionavam como propriedade coletiva; grande quantidade de pequenos e médios proprietários de terra que nela trabalhavam com a família e/ou na base do sistema camarada pago ou dia trocado;82 grandes

79 80 81 82

58

RIBEIRO, 1996, p. 7. RIBEIRO, 1996, p. 185. FURTADO, 1985; RIBEIRO, 1996; SOUZA, 1997; GALIZONI, 2007. Cf. excelente trabalho de Leila Amaral (1988) sobre a comunidade rural de Cachoeira, em Chapada do Norte.


Formação Histórica, Populações e Movimentos

fazendas tocadas à base do trabalho escravo ou assalariado e que foram, por muito tempo, o ponto de sustentação de uma vasta estirpe de coronéis de patentes variadas e de diversos tipos de poder de mando; vasta rede de agregados que trabalhavam a terra de outros em função do pagamento por produto ou simplesmente para domar terras virgens para o plantio de pastagens. Entre eles, uma vasta rede de solidariedade social que se fundava nas relações de parentesco, vizinhança e/ou apadrinhamento. Aqui e ali pequenos aglomerados urbanos, ora surgidos diretamente da atividade mineradora, ora surgidos em apoio a ela. Todos eles se formaram ao redor de uma igreja, cujos terrenos e construção geralmente eram doação do devoto de um santo a quem se instituía como orago. Não possuíam configuração propriamente urbana, mas funcionavam como centro comercial, em decorrência das feiras, e da vida social, fundada invariavelmente no elemento religioso. Os desdobramentos da ocupação da região em torno de Minas Novas obedeceram a um processo substancialmente diferente do que ocorreu na área onde a pecuária se consolidou como atividade principal, a partir do final do século XIX, isto é, o baixo Jequitinhonha e o vale do Mucuri. Se a corrida do ouro e do diamante fez brotar vilas e povoados nas regiões das minas, seu esgotamento inverteu o ritmo de ocupação regional. Apesar de ter se expandido de forma extremamente lenta pelo norte de Minas, ao longo dos séculos XVIII e XIX, como se disse anteriormente, a pecuária tornou-se uma atividade dinâmica e duradoura nos locais onde estabeleceu suas bases no nordeste mineiro. Descrevendo a região do médio-baixo Jequitinhonha mineiro, em 1960, Alisson Guimarães afirmava que as cidades eram manchas humanas no meio das mangas, o que configurava um quadro bastante peculiar no que se refere à geografia humana. Segundo ele, “a paisagem cultural das fazendas é marcada por poucos traços de humanização. As pastagens dominam a observação visual, e as construções, para residências ou serviços auxiliares, são como pontos perdidos na dominadora extensão dos pastos.” Mesmo o fazendeiro e sua família geralmente não moravam na fazenda, mas sim no “comércio”. Na fazenda estavam apenas os capatazes que, como se sabe, eram poucos. Nessa região, afirma o autor, “o homem é raro, o boi é abundante”, 83 uma afirmação que deve ser relativizada, uma vez que essa foi uma região de forte incremento populacional, na primeira metade do século XX. Ao observar os dados referentes à população da área remanescente 83

GUIMARÃES, 1960, p. 146.

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Vale do Jequitinhonha

dos municípios de Minas Novas e Araçuaí, entre 1890 e 1950, pode-se perceber o quanto foi diferente o comportamento do quadro demográfico em cada uma delas. Enquanto a população de Minas Novas teve um aumento da ordem de 42% no período, caindo significativamente a sua participação relativa na população de Minas Gerais, sobretudo entre 1890 e 1920, a população da área remanescente do município de Araçuaí aumentou em mais de seis vezes o número de habitantes, passando de 1,379 para 3,514 a sua participação relativa a do estado. Esse crescimento foi ainda mais significativo naquela parte do município de Araçuaí que formou o município de Jequitinhonha, emancipado em 1911, área aqui designada como baixo Jequitinhonha mineiro. Esses números podem ser conferidos nas tabelas abaixo. POPULAÇÃO DA ÁREA REMANESCENTE DOS MUNICÍPIOS DE MINAS NOVAS E ARAÇUAÍ – 1890-1950 Municípios e distritos

1890

MINAS NOVAS Minas Novas (1730) Capelinha (? – 1911) Berilo (1923-1962) Chapada do Norte (? – 1962) Francisco Badaró (? – 1962) Turmalina (1840-1948) MINAS GERAIS % Minas Novas/MG

68.992 14.730 19.134 6.868 10.177 7.654 10.429 3.184.099 2,166

MUNICÍPIOS E DISTRITOS ARAÇUAÍ Araçuaí (1857) Novo Cruzeiro (1923-1943) Itinga (1840-1943) Virgem da Lapa (1813-1948) Caraí (1911-1948) Medina (1877-1938) Comercinho (1877-1948) Jequitinhonha (1850-1911) Joaíma (1911-1948)

60

1890 43.909 13.337 --15.604 9.132 ------4.060 ---

1920

1940

72.310 83.109 14.771 12.450 20.569 28.617 9.371 10.377 9.187 9.028 6.715 8.582 11.697 14.055 5.888.174 6.736.416 1,228 1,233 1920 160.315 16.372 8.271 14.171 10.782 9.746 19.338 6.983 27.384 12.395

1940 201.429 20.042 9.494 13.882 14.484 9.003 22.405 8.124 23.803 13.420

1950 98.114 16.782 35.021 10.683 10.621 10.634 14.373 7.717.792 1,271 1950 271.204 23.842 28.581 18.992 18.161 15.202 22.995 8.955 18.926 22.540


Formação Histórica, Populações e Movimentos

Almenara (1880-1938) Rubim (1923-1943) Jacinto (1938-1943) Salto da Divisa (1840-1948) Jordânia (1938-1948) MINAS GERAIS

% Araçuaí/MG

--19.864 23.962 30.534 ----8.195 22.866 ----18.102 19.574 1.776 15.009 7.477 9.318 ---9.036 10.718 3.184.099 5.888.174 6.736.416 7.717.792

1,379

2,722

2,990

3,514

IBGE: Censo Demográfico do Estado de Minas Gerais – 1890. IBGE: Minas Segundo o Recenseamento de 1920 (principais resultados censitários sobre a população, a agricultura, a pecuária e a indústria). Belo Horizonte: Imprensa Official, 1924. As datas entre parênteses se referem à criação do distrito e à emancipação político-administrativa do município.

Nessa área de predomínio da pecuária, no baixo Jequitinhonha mineiro, os núcleos urbanos se ergueram, de certa forma, rapidamente. Ou, pelo menos, num ritmo muito mais intenso do que na área remanescente da mineração. Em decorrência da intensa migração, na média, pouco tempo transcorreu entre a ocupação da região, a elevação a distrito e a emancipação. Exceto Salto da Divisa, que já era distrito em 1840 e conquistou sua autonomia políticoadministrativa somente em 1948, a maioria dessas cidades teve crescimento rápido, apesar de nenhuma delas ter mais de 6.000 habitantes em 1950. Jequitinhonha, como se viu, a mais antiga povoação do baixo Jequitinhonha mineiro, foi elevada a distrito em 1850 e a município em 1911. Almenara e Rubim, que se edificaram também sob a influência direta de Julião Fernandes Leão, foram elevadas a distrito e a município, respectivamente, a primeira em 1880 e 1938 e a segunda em 1923 e 1943. Pedra Azul foi fundada por volta de 1834. Em 1892 era distrito e, em 1911, município. Sob a influência de Pedra Azul, Medina (1877-1938), Comercinho (1877-1948) e Itaobim (1911-1938) também passaram rapidamente de distrito a município. Outros municípios, de fundação mais recente, tiveram um tempo ainda mais curto entre a ocupação do território, a elevação a distrito e a emancipação político-administrativa. É o caso de Joaíma, entre 1911 e 1948; Jordânia, entre 1938 e 1948; Bandeira, entre 1938 e 1962 e, finalmente, Jacinto, entre 1938 e 1943, para ficarmos em apenas alguns exemplos.84 Algo muito diferente aconteceu no alto-médio Jequitinhonha. Seus terrenos são formados por serras, prolongamentos do grande maciço do Espinhaço, onde predominou a atividade mineradora; por chapadas, terras pouco propícias ao cultivo; e por grotas, únicos locais de possível ocupação por aqueles que se 84

Cf. FERREIRA, 1958; BARBOSA, 1995; COSTA, 1997.

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dedicaram à agricultura. Desenvolvendo-se aí predominantemente a atividade agrícola de subsistência, esses terrenos foram sendo ocupados e sucessivamente partilhados por herança, até se esgotar a capacidade de reprodução da agricultura familiar. Isso teria sido o principal fator de expansão da região do alto-médio Jequitinhonha em direção ao vale do Mucuri e incremento das migrações sazonais, que começaram a caracterizar a região já nas primeiras décadas do século XX. Ao contrário da área da pecuária, aí caracterizou, em termos relativos, um quadro de muita gente e pouco gado. Voltados todos para a agricultura, cada família residindo no seu pedaço de terra, não é de se estranhar o fato de os núcleos urbanos terem crescido aí num ritmo extremamente lento, se comparados aos núcleos urbanos da área da pecuária. Já no início do século XIX, os naturalistas que por aí passaram foram unânimes em afirmar que grande parte das casas desses povoados estava fechada. Seus habitantes, ocupando-se do trabalho na roça, somente as freqüentavam nos fins de semana, quando iam vender nas feiras os produtos do seu trabalho e participar do serviço religioso. Exceto Minas Novas, que se tornou sede municipal já em 1730, e Araçuaí, elevada a município menos de vinte anos depois de originado o povoado, os outros núcleos urbanos da área mineradora levaram muitas décadas e, às vezes, até mais de dois séculos, entre a ocupação inicial, a elevação a distrito e a emancipação. Muitos dos núcleos urbanos surgidos diretamente da atividade mineradora, sobretudo nas proximidades de Diamantina, jamais se tornaram cidades. Os atuais municípios de Chapada do Norte (Santa Cruz da Chapada), Berilo (Água Suja) e Francisco Badaró (Sucuriú) foram povoados ainda no início do século XVIII, sob a influência direta da descoberta das minas do Bom Sucesso, mas somente obtiveram a sua emancipação político-administrativa em 1962. Consta-se que a região de Virgem da Lapa (São Domingos), foi doada como sesmaria em 1728, mas somente se tornou distrito em 1889 e município em 1948. Turmalina e Carbonita eram entrepostos comerciais entre o Tijuco e Minas Novas. Quanto à primeira, tem-se notícia de que seus primeiros moradores lá se fixaram por volta de 1760. Mas somente em 1840 torna-se distrito e em 1948, município. Quanto à outra, tornou-se distrito em 1871 e município em 1962.85 Essa atividade agrícola à qual se dedicaram os moradores do alto-médio Jequitinhonha, à exceção da cultura algodoeira, caracterizou-se fundamentalmente como atividade de subsistência, variada produção familiar para autoconsumo. Apesar de sempre ter sido negligenciada em relação à produção comercial em larga escala, essa produção foi e tem sido de grande importância para a 85

62

Cf. FERREIRA, 1958; PIRES, 1979; BARBOSA, 1995; COSTA, 1997.


Formação Histórica, Populações e Movimentos

reprodução da vida camponesa. Mesmo a cultura algodoeira, que fez a fama da região durante o século XIX, era uma atividade explorada principalmente por mão-de-obra familiar. Segundo Napoleão Medeiros Silva, a cultura algodoeira no termo de Minas Novas se desenvolveu pela conjugação de diversos fatores: excelentes condições climáticas, o que garantia de alta produtividade; a não exigência de investimentos vultosos, permitindo o seu cultivo pelos pequenos produtores, com a utilização da mão-de-obra camponesa livre, sobretudo a feminina e a infantil; o consorciamento com as lavouras de milho e feijão, o que não impedia o desenvolvimento das outras atividades agrícolas e a existência de um mercado tanto interno quanto externo, o que garantia consumo.86 Essa atividade algodoeira permitiu o surgimento de uma vasta indústria têxtil doméstica e, posteriormente, indústrias de maior potencial produtivo como Biribiri (Diamantina), São Roberto (Gouveia) e Cachoeira (Curvelo). Não é de se admirar, pois, o fato de o algodão continuar sendo importante matéria-prima para uma das principais produções artesanais da região. Essa pequena produção de subsistência ressalta a importância do núcleo familiar tanto para a reprodução da vida econômica, quanto social e cultural.87 Foi em torno dela que se estabilizaram as relações sociais de produção, na região, ao longo de dois séculos. Mesmo quando algumas atividades adquiriram relevância produtiva a ponto de gerar comércio de excedentes fora das feiras locais, foi em torno dessa pequena produção que gravitou a vida da maior parte da população.

Conclusão Com raras exceções, são praticamente unânimes, na bibliografia sobre o vale do Jequitinhonha, as referências ao abandono e à estagnação que teriam passado a caracterizar a região depois que a mineração e o algodão deixaram de contar como atividades dinamizadoras da sua economia. É preciso deixar claro, entretanto, que o vale do Jequitinhonha é uma região extremamente diversificada tanto pela historicidade da sua ocupação quanto pela caracterização do quadro geográfico e das atividades que aí tiveram lugar. Pelo menos duzentos anos separam o estabelecimento da mineração, no alto Jequitinhonha, e da pecuária, no norte de Minas, da abertura das últimas fronteiras regionais, no baixo Jequitinhonha e no vale do Mucuri. Diamantina 86 87

SILVA, 1987. RIBEIRO e GALIZONI, 2000; RIBEIRO e GALIZONI, 2003; RIBEIRO, 2007; RIBEIRO et al. 2007.

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está localizada a 1.370 metros de altitude, no alto da Serra do Espinhaço, enquanto Salto da Divisa, a 600 km de distância, não atinge 200 metros. Enquanto as áreas da margem direita do baixo Jequitinhonha são remanescentes da mata atlântica, que cobria todo o leste de Minas, a maior parte da sua margem esquerda está sob a influência do semiárido brasileiro, que se prolonga do sertão baiano sobre o norte de Minas. Ao levar em conta os indicadores demográficos como representativos da dinâmica econômica mais geral, pode-se dizer que há intensas variações internas, que não podem deixar de ser consideradas sob o risco de se tomar uma grande diversidade de formas de produção e reprodução da vida social por uma realidade homogênea. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, a pecuária se estendeu das margens do São Francisco até o baixo Jequitinhonha e o vale do Mucuri. Enquanto isso, foi se estabelecendo uma variada agricultura de subsistência que servia de apoio tanto à expansão da pecuária quanto a uma mineração cada vez mais residual no alto Jequitinhonha. Na primeira metade do século XX, sobretudo entre 1920 e 1940, o norte de Minas chegou a apresentar um substantivo esvaziamento demográfico. Por outro lado, a região nordeste do estado, sobretudo o baixo Jequitinhonha e o vale do Mucuri, caracterizou-se por um acentuado incremento populacional. Entre 1920 e 1950, a população total quase dobrou, aumentando a sua participação relativa no estado de Minas de 7% para 9%, o que indica que a região desenvolvia um conjunto de atividades que atraía e retinha população. Esses dados parecem-me suficientemente esclarecedores do quadro heterogêneo que caracteriza o Vale do Jequitinhonha. O cenário que se desdobra a partir da segunda metade do século XX é objeto de estudos que desafia grande número de pesquisadores, alguns deles com relevantes trabalhos neste livro.

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Foto: Clara Karmaluk


Processo Tardio de Colonização do Médio e Baixo Jequitinhonha Luís Carlos Mendes Santiago

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or motivos, sobretudo, estratégicos, mas também acompanhando a ocorrência do ouro, a primeira colonização das minas do ouro, que deram origem à capitania, depois à província e hoje ao estado de Minas Gerais, privilegiou as elevações, as serranias. As encostas e o alto dos morros, além de serem mais facilmente defensáveis, permitiam vigiar o movimento de grupos inimigos, fosse a disputa entre paulistas e emboabas na luta pelas melhores lavras, os escravos que se revoltaram ou os indígenas que tinham sido recentemente desalojados. Mais ao norte, subindo o curso do São Francisco em direção ao sul, havia outra frente de colonização chamada “dos currais”, que ocupava os campos abertos, às vezes, situados a centenas de quilômetros do dorso do Velho Chico. Um exemplo disso é Rio Pardo de Minas, uma povoação fundada em 1698, às margens de um rio que não pertence à bacia do São Francisco.88 A ocupação de florestas, ou da parte mineira da Mata Atlântica, acontecia de forma esporádica e está indicada nos topônimos Caeté (floresta densa na língua geral) e Conceição do Mato Dentro, sem esquecer Cuieté, um dos presídios encravados na densa floresta que margeia o rio Doce.89 Ao longo de todo o século XVIII, o acesso às minas de ouro se dava, ao norte, pela rede de trilhas que se entrecruzavam na região dos currais e, ao sul, pelo Caminho Velho e pelo Caminho Novo, ambos cortados em gargantas de montanhas e através de corredeiras. O único caminho conhecido que atravessava a Mata Atlântica era o rio Doce, que era fortemente policiado para impedir qualquer trânsito, pois se tratava de excelente rota para o contrabando devido 88 89

Cf.PIZARRO, 1948, v. 8, t. 2, p. 157; DE ÂNGELIS, 1998, v. 2, p. 13. SANTIAGO, 2004b, p. 24-25.

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justamente à ausência absoluta de ocupação pelos colonos da coroa portuguesa.90 Não interessava, portanto, para o governo colonial português, que a Mata Atlântica fosse conhecida e colonizada, pois servia como espécie de tampão contra o contrabando de ouro e diamantes. A descoberta dos diamantes se deu ao longo da década de 1720 e talvez mesmo antes. Como essas pedras são mais valiosas e mais fáceis de esconder do que o ouro, além ainda do perigo da desvalorização, caso os diamantes fossem logo extraídos e inundassem o mercado europeu, foi criada uma legislação restritiva para reduzir e evitar ao máximo o assentamento de colonos e mesmo o trânsito de pessoas pelas regiões diamantíferas. Essa legislação foi, mais tarde, já no último quartel do século XVIII, reunida no temível regimento diamantino, ou Livro da Capa Verde.91 A mineração no leito do rio Jequitinhonha, a não ser aquela praticada pelos escravos do contratador (depois substituídos pelos da estatal Real Extração), ficou terminantemente proibida. Proibidos também o assentamento de novos colonos nas margens do rio e o simples trânsito de pessoas pelas margens e afluentes do rio.92 O vale do Jequitinhonha, na área em que atravessa a Mata Atlântica, era assim objeto de uma dupla proibição. Com isso fica fácil entender porque apenas em 1804, com a expedição dirigida pelo capitão-mor João da Silva Santos, de Porto Seguro, soube-se que o rio Jequitinhonha, que nasce nas vizinhanças do Arraial do Tijuco, hoje Diamantina, era o mesmo rio Grande de Belmonte. Outra expedição, dessa vez encabeçada pelo ouvidor José Marcelino da Cunha, também de Porto Seguro, confirmou a descoberta.93 Não estavam claros os limites mais a leste que separavam os municípios de Mariana, Vila do Príncipe (hoje Serro) e Minas Novas. Minas Gerais tampouco tinha suas fronteiras a leste, com o Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia, devidamente demarcadas. A imprecisão dos limites entre território mineiro e capixaba, com a colonização da região do Contestado (as principais cidades mineiras são Mantena e Ataléia), deu origem, já no século XX, a conflitos entre os dois estados, que se prolongaram através de décadas. Até o início do século XIX, o curso do Jequitinhonha, que se estende por pouco mais de mil quilômetros, tinha às suas margens apenas três povoações de súditos da Coroa: 1) o arraial de Rio Manso (hoje Couto Magalhães de Minas), a aproximadamente cem quilômetros das nascentes, 2) o aldeamento de Lorena dos Tocoiós, duzentos ou trezentos quilômetros adiante, já no início da mata, 90 91 92 93

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VEIGA, 1998. SANTOS, 1924, p. 142. SANTOS, 1924, p. 99-169. Cf. SAINT-HILAIRE, 1975, p. 248; PEREIRA, 1969, p. 12; MORENO, 2001, p. 61.


Formação Histórica, Populações e Movimentos

e 3) a vila de Belmonte, na foz, a mais de quinhentos quilômetros rio abaixo; por um trajeto todo de matas fechadas, chegava-se à foz, a menos de cem quilômetros de Porto Seguro. Acima de Rio Manso havia o registro de Milho Verde, que situado a alguns quilômetros do leito do rio, à beira de um platô, permitia controlar uma ampla extensão. Entre Rio Manso e Tocoiós são mencionados os registros de Santa Cruz, Simão Vieira, Conceição e Passagem,94 mas certamente não eram arraiais. Contudo, conforme ampla bibliografia, no ano de 1804, entre Tocoiós e Belmonte, o capitão João da Silva Santos não encontrou nenhum colono português. Felício dos Santos fala dos cadáveres de dois garimpeiros abatidos com tiros pelas costas, nas proximidades do córrego do Mendanha (situado entre os arraiais do Tijuco e de Rio Manso), aos quais o temido “Cabeça de Ferro”, intendente dos diamantes José Antônio Meireles Freire (no cargo entre 1781 e 1785), não permitiu que se lhes desse sepultura.95 Esses garimpeiros (poderiam ser até mesmo simples transeuntes) foram mortos pelo simples fato de encontrar-se em área proibida. Muito tempo antes, conforme o mesmo autor, em 1734, quando a Demarcação Diamantina tinha apenas sido criada, após troca de tiro com garimpeiros, também na região de rio Manso os dragões prenderam uma garimpeira, que se trajava de homem. O arraial de Rio Manso foi um dos primeiros povoados criados na comarca do Serro, em 1719, conforme conta a descrição de um antigo mapa.96 Sua população foi certamente bastante policiada, e mesmo perseguida, ao longo da vigência do regimento diamantino. Lorena dos Tocoiós era um aldeamento cuja principal finalidade não era tanto catequizar e “civilizar” os ameríndios da nação dos tocoiós, mas servia, sobretudo, de posto fiscal contra o contrabando.97 Quanto a Belmonte, ainda que se soubesse que o rio que ali desembocava no mar, era um caminho potencial para as ricas jazidas mineira e devia, portanto, ser vigiado, não havia confirmação de que se tratava do mesmo Jequitinhonha. Além do mais, estando na área litorânea não se encontrava em área passível de proibição. A área da bacia do Jequitinhonha onde predominavam matas nativas pertencia aos municípios de Serro Frio (com sede na vila do Príncipe) e de Minas Novas, mas as localidades mais orientais do território serrano serviram antes para a colonização do médio rio Doce (cabe destacar o papel de Peçanha e, em menor escala, de Guanhães) do que propriamente para a colonização do Médio 94 95 96 97

PIZARRO, 1948, p. 138. SANTOS, 1924, p. 169. BOSCHI, 1998, p. 33. Cf. PEREIRA, 1969, p. 98-99; PIZARRO, 1948, p. 138.

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e Baixo Jequitinhonha. As jazidas da região de Minas Novas foram descobertas entre 1726 e 1728, por mineradores que saíram de Rio Manso, e a região foi elevada a município pertencente à capitania da Bahia já em 1730, com sede na vila de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Fanado, ou das Minas Novas do Araçuaí (hoje Minas Novas). Em 1757, no entanto, as vastas Minas Novas passam à jurisdição civil da comarca do Serro e militar da Demarcação Diamantina. O esgotamento das jazidas de ouro, a leste do município, aliada à severa vigilância imposta pelas companhias de dragões e de auxiliares, impediu uma ampliação da ocupação ou deslocamento das fronteiras do domínio propriamente português. Os núcleos urbanos criados nos confins a nordeste de Minas Novas, sem incluir os que estavam a norte do rio Jequitinhonha, foram todos criados antes de 1730: Santa Cruz da Chapada (hoje Chapada do Norte), Água Suja (hoje Berilo), São Domingos (Virgem da Lapa) e Sucuriú ou Sucruiú (hoje Francisco Badaró). São localidades situadas no Médio Jequitinhonha, sob um ponto de vista geográfico, mas pertencentes ao Alto Jequitinhonha histórico. Um dos diferenciais dessas localidades criadas no início do século XVIII com relação a suas vizinhas quase cem anos mais novas, além das construções barrocas, é a localização no topo ou nas encostas de morros. Foi principalmente a partir dos arraiais de São Domingos e de Sucuriú que se efetuou a colonização da margem sul do rio Jequitinhonha e de seus afluentes meridionais. O município colonial das Minas Novas estendia-se ao norte do Jequitinhonha, ultrapassando mesmo os limites da bacia hidrográfica e incluindo em seu território localidades pertencentes aos vales do São Francisco e do rio Pardo, muitas delas criadas já no século XVII; no Vale do Jequitinhonha, Itamarandiba, ao sul do rio, e Itacambira, ao norte (antiga Tucambira, o papo, ou pescoço do tucano, na língua geral), se não foram arraiais criados pela expedição de Fernão Dias, pelo menos foram regiões percorridas pelos integrantes dessa importante bandeira. Nas regiões adjacentes ao arraial de Itacambira já se minerava ouro desde pelo menos 1698, mas foi a partir de 1781 que, com a descoberta de diamantes e de um ouro muito apurado na serra de Santo Antônio do Itacambiruçu, houve um grande afluxo de garimpeiros ilegais para a região. A repressão militar não se fez esperar e o arraial de Santo Antônio do Tucambira foi inteiramente incendiado em 1786, mas não tardou a reerguer das cinzas, agora com três companhias permanentes, uma de brancos, uma de pretos e uma de caçadores.98 Itacambira era po98

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PIZARRO, 1948, p. 153-157.


Formação Histórica, Populações e Movimentos

pularmente conhecida como Serra, e, nessa época, surgiu o novo arraial de Serrinha (hoje Grão Mogol), também voltado para a mineração.99 Esse grande ajuntamento de garimpeiros, com a repressão e o esgotamento das jazidas, espalhou-se pelos currais que já existiam na região também chamada de gerais ou cerrado. Os topônimos atestam essa ocupação relacionada à bovinocultura: Salinas, indica a existência de barreiros, terra salobra, agradável e mesmo necessária na dieta bovina; a leste de Salinas, corre o rio Vacarias, e a nordeste fica a localidade de Curral de Dentro (hoje elevada à categoria de cidade). As salinas, que deram nome à região e à cidade, foram descobertas em 1788, por um fazendeiro de Rio Pardo, segundo artigo publicado em jornal local no ano de 1933.100 Santo Antônio do Salinas talvez não fosse ainda um arraial, pelo menos não é mencionado pelos autores da época, mas já havia nas redondezas muitas fazendas com seus currais, locais que também serviam de pousada para tropeiros e para os vaqueiros que levavam rebanhos para Vitória da Conquista e dali para o litoral e o Recôncavo Baiano. Entre as regiões devidamente incorporadas à América Portuguesa havia a Mata, os sertões (denominação que abrangia também a floresta tropical e não apenas o agreste, o árido e semi-árido, as caatingas). No vale do Jequitinhonha tínhamos, por volta do ano 1800, a estreita faixa litorânea, com Belmonte e fazendas vizinhas, de um lado, e Tocoiós, Sucuriú e São Domingos, do outro lado, além dos currais a leste de Grão Mogol e a sudeste de Rio Pardo. Mas essa Mata não era de todo desabitada, nela viviam aqueles colonos afoitos. Na Mata viviam também quilombolas, que a par da agricultura de subsistência, exerciam o garimpo de pedras coradas e contrabando de ouro e de diamantes, extraídos nas regiões adjacentes, além dos antigos moradores, pertencentes não à nação portuguesa, mas à nação borun (os temidos botocudos), à nação maxacali e à nação mongoió-camacã. Esta última ocupava as vizinhanças de Belmonte, os boruns viviam em ambas margens do rio Jequitinhonha e nos lugares onde a floresta e as montanhas se misturam, enquanto as nações da família maxacali (pataxós, cumanaxós, monoxós, tocoiós, macunis, malalis e panhames) espalhavam-se por toda parte, não só na floresta perene, onde disputavam o espaço com os boruns, mas também nas regiões de vegetação mais rarefeita. No Vale do Jequitinhonha de 1800, os boruns estavam divididos entre cracmuns ou craquimós, naquenenuques, bakuês e aranãs; na região do Baixo Jequitinhonha, a terra era dividida entre os numerosos grupos coman-

99 SANTOS, 1924, p. 171; BARBOSA, 1995, p. 142. 100 LISBOA, 1992, p. 232.

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dados pelos caciques, ou capitães, Joaíma, Jan-Huê, Tujicarama e Ari-Ari, este último da nação maxacali, os outros três boruns.101 Em 1808, com a vinda da corte portuguesa, a política de colonização da Mata Atlântica mudou radicalmente. Os nobres que acompanhavam a família real precisavam de terras na América Portuguesa, de preferência não muito distantes do litoral e tanto melhor se férteis, bem irrigadas e dotadas de um imenso estoque de madeira de lei. O grande problema agora eram os guerreiros da nação borun, os temidos botocudos, que eram, até então, tolerados na qualidade de guarda extra contra o extravio das riquezas minerais. Uma das primeiras medidas do príncipe regente foi, portanto, já no dia 13 de maio de 1808, decretar “guerra ofensiva” contra os botocudos, desencadeada nas capitanias de Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo. Na parte baiana do rio Jequitinhonha, foi instalado o quartel de Arcos, originalmente em Salto Grande (hoje Salto da Divisa), depois transferido para o lugar chamado Cachoeirinha.102 As primeiras seis divisões militares instituídas em Minas para essa guerra, com seus respectivos quartéis, foram todas instaladas na bacia do rio Doce, mas a sétima divisão, criada em 1810, atuava no Jequitinhonha mineiro e seus afluentes. Com os quartéis da sétima divisão, surgiram importantes localidades: o comando ficava em São Miguel da Sétima Divisão (hoje cidade de Jequitinhonha) e havia ainda os quartéis de Alto dos Bois (próximo a Capelinha), Itinga (localidade vizinha ao quartel do Teixeira), Bonfim (hoje Joaíma, cidade assim batizada para homenagear o grande líder borun), Vigia (hoje Almenara) e Salto Grande (hoje Salto da Divisa), esta em local anteriormente ocupado por tropas baianas.103 Essas povoações, a despeito de serem quartéis, ficavam todas em lugares planos, indicando que, embora existisse uma guerra declarada, a hostilidade era menor do que nos tempos da dominação colonial, voltada unicamente para a exploração mineral. Em volta dos quartéis foram estabelecendo-se fazendeiros e colonos, enquanto canoas começaram a transitar ao longo do rio, com frequência cada vez maior; o trânsito de canoas deu origem ainda às povoações de Pontal (hoje Itira, distrito de Araçuaí) e Boa Vista do Calhau (hoje Araçuaí), conforme conta o latinista Leopoldo Pereira. A hoje cidade de Caraí (originalmente povoado de São José dos Coimbras) foi fundada por Crahy, índio renegado, que assentara praça

101 Cf. MAXIMILIANO, 1989, p. 310-311; SANTIAGO, 1999, p. 119-128; SANTIAGO, 2004a, p. 8-9. 102 MAXIMILIANO, 1989, p. 247. 103 Cf. PEREIRA, 1969, p. 106-107; SAINT-HILAIRE, 1975, p. 240-241.

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na Sétima Divisão.104 Nos afluentes a norte do rio Jequitinhonha, o avanço vindo dos currais pelo meio da mata, deu origem, nas décadas de 1820 e 1830, às povoações de Santa Rita, hoje Medina, e Catingas, ou Boca das Caatingas, depois Fortaleza, hoje Pedra Azul.105 Já na segunda metade do século XIX, tendo também como principal atividade a criação de bovinos, surgiram Comercinho do Bruno, que hoje é simplesmente Comercinho e Cachoeira de Pajeú,106 para mencionar apenas os arraiais que deram origem a municípios, sempre em terras tomadas dos índios. A colonização do vale do Mucuri, a partir da década de 1850, deuse através de duas vias de acesso, Caravelas, no litoral, e Minas Novas, no sertão mineiro. Em junho de 1852, enquanto o serrano Teófilo Otoni subia o rio Mucuri, com colonos, outros dois grupos saíram de Alto dos Bois (antigo quartel da Sétima Divisão) e de Trindade (na bacia do Mucuri), ambas pertencentes ao município de Minas Novas. Esses dois grupos mineiros reuniram-se em Poté, que era então uma aldeia borun, de onde abriram uma trilha de 33 quilômetros até o lugar onde lançaram, então, os fundamentos do arraial de Filadélfia (hoje Teófilo Otoni, oficialmente fundada no dia 7 de setembro do ano seguinte), em local plano, cercado de morros. Dali, seguiram até a barra que o rio Todos os Santos faz no Mucuri, onde receberam Otoni.107 O arraial de Capelinha, situado às margens do caminho que ligava Minas Novas a Filadélfia, cresceu bastante e, ainda na década de 1850, foi elevado a sede de freguesia.108 Muito se tem falado da colonização germânica do vale do Mucuri, mas também não pode ser esquecido o imenso contingente populacional oriundo do vale do Jequitinhonha, do norte de Minas e do sudoeste baiano. Em 1892, a estrada de ferro Bahia e Minas chegava a colônia de Urucu (hoje Carlos Chagas), levou à abertura de um caminho de tropeiros que ligava Jequitinhonha à estação de Urucu.109 Esse caminho fortaleceu consideravelmente o pequeno arraial de índios catequizados chamado Bonfim dos Quartéis, que deu origem a Joaíma, e deu origem a duas povoações do Médio Mucuri, Pampam (hoje Fronteira dos Vales) e o Comercinho do Tomba (atualmente Águas Formosas), que, por sua vez, serviram de base para vários outros mu-

104 105 106 107 108 109

OTONI, 2002, p. 46-48. Cf. SOUZA, 2001, p. 17; SANTIAGO e SOUZA, 1996, p. 41-43. Cf. PEREIRA, 1969, p. 104-105; MORAIS, [1999], p. 17. MIRANDA, 2007, p. 102-103. Cf. MIRANDA, 2007, p. 135; SAINT-HILAIRE, 1975, p. 206; MACHADO, 2009, p. 74-75. Cf. NOGUEIRA, [1989], p. 12; SANTOS, 1970, p. 65.

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Vale do Jequitinhonha

nicípios e povoações menores.110 A linha de ferro Bahia e Minas não tardou a criar um ramal de Teófilo Otoni (já com esse nome) a Araçuaí, transformando o pequeno povoado de São Bento, em sede do distrito de Gravatá e depois na cidade de Novo Cruzeiro.111 Nas primeiras décadas do século XX, com a abertura de fazendas nos afluentes da margem sul do rio de Jequitinhonha, em torno de Vigia, Jequitinhonha e Joaíma, surgiram vários povoados. A formação dessas povoações parece seguir uma mesma fórmula: primeiramente, os tropeiros abrem um caminho em direção à Bahia ou a localidades mineiras do vale do Mucuri, logo, colonos assentam-se nas margens desses caminhos, mais tarde, os pontos de pouso dos tropeiros, os barracões, transformavam-se em núcleos comerciais. Foi assim, por volta de 1900, com o Comercinho de José Ferreira, também chamado Comercinho do Rubim e ainda Rubim de José Ferreira, que hoje é a cidade de Felisburgo; União do Rubim, hoje apenas Rubim, foi fundada em 1918; Barracão, hoje Rio do Prado, em 1929; Bananeira, localidade vizinha das nascentes do braço norte do Jucuruçu (rio que deságua em Prado), onde os primeiros moradores estabeleceram-se por volta de 1910, hoje é Palmópolis e Santo Antônio do Jacinto, no alto vale do Buranhém (rio que deságua em Porto Seguro), transformada em arraial na década de 1930.112 Cabe notar que todas essas terras foram tomadas dos índios à força, com armas de fogo e que, embora façam parte de outras bacias hidrográficas, Palmópolis e Santo Antônio do Jacinto são incluídos na região sócio-econômica do Baixo Jequitinhonha. Na margem norte, a partir de Vigia e de Pedra Azul, surgiram outras localidades nessa mesma época e pela mesma forma. O povoado de Palestina, que hoje é Jordânia, na década de 1920, em terras doadas por Martinho Capitão, Jesuíno Craquimó e Maria Craquimó, cujos nomes indicam ascendência indígena, além de Bandeira, Sossiveno ou Só-se-vendo (que hoje é Divisópolis) e Mata Verde, todas povoações anteriores a 1940. Nas margens do rio Jequitinhonha também surgiram, nas primeiras décadas do século XX, três povoações que deram origem a cidades: São Roque, povoado de canoeiros surgido provavelmente nos primeiros anos do século XX, hoje Itaobim;113 Jacinto, situada entre Vigia e Salto Grande, no ano de 1920;114 e Itaporé, que hoje é Coronel Murta, situada pouco acima de Lorena dos To110 111 112 113 114

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Cf. PEREIRA, 1969, p. 106-108; SANTOS, 1970, p. 66-70. BARBOSA, 1995, p. 225. Cf. LOBO, 2003, p. 29-30, 81, 83-84, 248; BARBOSA, 1995, p. 282-283; SILVA, [1999], p. 19. PEREIRA, 1969, p. 108. DUARTE, 1972, p. 174.


Formação Histórica, Populações e Movimentos

coiós, fundado por garimpeiros que buscavam ouro e diamantes, no ano de 1939.115 A abertura da Rio-Bahia (BR-116) na década de 1940 deu grande impulso ao crescimento do povoado de São João da Água Vermelha (hoje Padre Paraíso), criado em 1902,116 e deu origem ainda ao povoado de Viamão, hoje sede do município de Ponto dos Volantes, localidades situadas na bacia do rio São João, afluente da margem sul do Jequitinhonha, que deságua na altura de Itaobim. Ainda mais recente é a colonização e o desenvolvimento das cidades baianas da bacia do Jequitinhonha, Itapebi, às margens do rio, que não existia até 1910, Itagimirim, que data da década 1950, e a vizinha Eunápolis, que também pode ser datada da mesma época, quando o governo baiano abriu a rodovia BA-2 (locada em 1947), que mais tarde tornou-se parte da BR-101, chamada “Litorânea”.117 A colonização do vale do Jequitinhonha teve, portanto, dois grandes momentos bastante distintos: 1) a ocupação do Alto Jequitinhonha e de pequena parte do Médio Jequitinhonha, no fim do século XVII e ao longo do século XVIII, e 2) a ocupação do Médio e Baixo Jequitinhonha ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX. Essa distância temporal pode ser observada, por exemplo, no estilo arquitetônico e na paisagem, com a preponderância do barroco nas moradias mais antigas no Alto Jequitinhonha. Estabeleceu, também, a localização geográfica dos núcleos urbanos, que se deu em encostas e no alto de morros na primeira etapa e em baixadas ou à beira de caminhos na segunda. Além disso, traços específicos caracterizam a ocupação rural e a própria cultura popular, que no Alto Jequitinhonha é essencialmente mineira e no Médio e Baixo mais ligada a valores sertanejos.

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Vale do Jequitinhonha

DUARTE, J. Vultos sem História. Belo Horizonte: [edição do autor], 1972. GUIMARÃES, Alisson Pereira (Org.). Estudo geográfico do Vale do Médio Jequitinhonha. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1960. LEITE, Hamilton; BARANDA, Oneir. Povoamento – Núcleos Urbanos. In: GUIMARÃES, Alisson Pereira (Org.). Estudo geográfico do Vale do Médio Jequitinhonha. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1960. p. 83-113. LE SANN, Janine Gisele; MASCARENHAS, Ísis Rodrigues; GRUPPI, Francisco Carlos Fonseca; PAIXÃO, Eva Maria. Atlas Escolar de Padre Paraíso. S. l.: 2002. LISBÔA, Abdênego; LISBÔA, Apolo H. (Org.). Octacilíada: uma odisséia do norte de Minas. Belo Horizonte: Canaã, 1992. LOBO, Sebastião. Na Boca do Lobo: crônicas publicadas no jornal Vigia do Vale. Almenara: Vigia, 2003. MACHADO, José Carlos. Senhora da Graça de Capelinha. Capelinha: edição do autor, 2000. MAXIMILIANO. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989. MEDRADO, Clemente. Salinas e sua Origem. In; LISBÔA, Abdênego; LISBÔA, Apolo H. (Org.). Octacilíada: uma odisséia do norte de Minas. Belo Horizonte: Canaã, 1992, p. 232-233. MIRANDA, Nilmário. Teófilo Otoni, a República e a utopia do Mucuri. São Paulo: Caros Amigos, 2007. MORAIS, João Batista Dantas de. Cachoeira de Pajeú: fragmentos de um passado, um presente ainda vivo, visão de um futuro! [Belo Horizonte: edição do autor, 1999]. MORENO, Cezar. A colonização e o povoamento do baixo Jequitinhonha no século XIX: a “Guerra Justa” contra os Índios. Belo Horizonte: Canoa das Letras, 2001. NOGUEIRA Filho, José. Carlos Chagas: 50 anos de história. [Carlos Chagas: edição do autor, 1989]. PEREIRA, Leopoldo. O município de Araçuaí. 2ª ed. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1969. PIZARRO e Araújo, José de Souza Azevedo. Memórias Históricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948, v. 8, t. 2. 80


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Foto: Tiago Pissolati


Toponímia do Vale: Passado e Presente Maria Cândida Trindade Costa de Seabra

É

fato aceito que a toponímia – ciência que estuda os nomes de lugares – evidencia marcas da história social e das características do ambiente físico de uma determinada região. A formação étnica, os processos migratórios, o sistema de povoamento de uma região administrativa, como, também, a vegetação, a hidrografia, a geomorfologia, a fauna costumam deixar marcas que permanecem mesmo quando não se tem mais a motivação que levou o denominador a nomear um lugar. É o que reconhece a Linguística Histórica. Para BYNON (1995: 263), “[...] nomes de lugares, tem a indubitável vantagem para o pré-historiador (da linguagem) de o referente estar localizado (com precisão) no espaço geográfico e, em casos afortunados, os (mesmos) lugares serem mencionados em fontes escritas anteriores”. Essa linguista chama atenção para o fato de que “nomes de lugares que incluem nomes de povoados e de traços geográficos tais como montanhas e rios tendem, como fósseis, a sobreviver mesmo a uma total substituição da língua. Seu potencial para formar uma ligação entre a arqueologia e a linguística é, consequentemente, considerável”.118

Infelizmente, não existe, no Brasil, consciência de tal fato. Em se tratando, principalmente, de nomes de cidades, distritos e povoados, são frequentes as mu-

118 BYNON, 1995, p. 263 “[…] namely the linguistic analysis of place-names, has the undoubted advantage to the prehistorian that the referent is squarely located in geographic space and that, in fortunate cases, places are mentioned in early written sources. Place-names, which include the names of settlements and of geographical features such as mountains and rivers, tend like fossils to survive even total language replacement. Their potential for forming a link between archaeology and linguistics is therefore considerable”.

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Vale do Jequitinhonha

danças, ocasionando perdas de traços que identificam uma história pretérita. Tais mudanças ocorrem, muitas vezes, por desconhecimento das pessoas que habitam o local do valor patrimonial do topônimo; outras, por imposição política. Em se tratando da toponímia do Vale do Jequitinhonha, mais especificamente dos nomes dos 51 municípios119 que compõem essa mesorregião120, podemos mostrar que desde a primeira metade do século XVIII, marco da criação de sua primeira vila na região, até fins do século XX, quando ocorreu a criação dos últimos oito municípios, no ano de 1995, houve várias alterações e algumas mudanças toponímicas na região. Fig. 1 - Mesorregião: Vale do Jequitinhonha

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Mesorregi%C3%A3o_do_Jequitinhonha

Século XVIII A história de Minas se inicia a partir do século XVI, intensificando-se no século XVII, com a penetração das primeiras expedições em várias partes de seu território que visavam, sobretudo, à descoberta de ouro. Em decorrência de tal fato, já na primeira década do século XVIII, era significativo o número de arraiais – aglomerados humanos que se formavam junto às lavras – constituídos pelo interesse exclusivo de posse de riquezas minerais. Isso exigiu o estabelecimento de núcleos de administração de ordem pública e fiscal, dando início às vilas e cidades.

119 Segundo divisão territorial do IBGE. 120 Área geográfica com similaridades econômicas e sociais.

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Formação Histórica, Populações e Movimentos

Como núcleo inicial de administração da justiça, indispensável em face do povoamento que então se desenvolvia com a exploração das novas minas descobertas em território mineiro, aliado a interesses econômicos, cria-se, por ordem do Governo de Portugal, a primeira vila na região do Vale do Jequitinhonha, a vila das Minas do Fanado, hoje Minas Novas: MINAS NOVAS – Criada em 21 de maio de 1729, instalada em 2 de outubro de 1730, a história do Vale do Jequitinhonha começa a se esboçar a partir desse município, centro irradiador de povoamento para outras áreas. O nome Minas Novas só foi adotado em 1840 (Lei 163 de 9/3/1840), mais de um século depois da criação da vila das Minas do Fanado. Durante o período de sua criação até o recebimento do nome atual, vários topônimos nomearam esse local: Vila das Minas do Fanado, Minas Novas do Fanado, Fanado das Minas Novas, Nossa Senhora do Bom Sucesso das Minas Novas do Araçuaí, Nossa Senhora do Bom Sucesso, Bom Sucesso. Esses topônimos retratam bem a história da região. Inicialmente, o nome Fanado foi empregado para mostrar que o rio explorado não era tão abundante em ouro como se imaginava; era escasso, pobre em ouro. Posteriormente, esse nome se estendeu à região e as novas minas descobertas, novas em referência às minas de Ouro Preto e Mariana, passaram a ser conhecidas como a região do Fanado. No século XIX, a região volta a surpreender os mineradores e Vila do Bom Sucesso passa a substituir o topônimo Vila do Fanado. Bom Sucesso remete a Nossa Senhora do Bom Sucesso, protetora de uma irmandade que teve início em Portugal no século XVI e que chegou ao Brasil no século XVII. Entre seus devotos no Brasil setecentista, consta o Padre Faria que, participando de uma das primeiras bandeiras de desbravamento nos sertões de Minas Gerais, descobriu ouro no local onde se encontra hoje o bairro Padre Faria na cidade de Ouro Preto. Confiando na proteção da Virgem do Bom Sucesso, o vigário bandeirante trouxe uma imagem da Santa em sua ousada expedição e, após o êxito alcançado, ergueu em agradecimento uma pequena capela sob este orago, junto aos veios auríferos. Devido ao êxito da “bandeira” do Padre Faria, a Senhora do Bom Sucesso passou a ser invocada como Protetora dos bens terrenos. O culto espalhou-se pelo Vale do Paraíba e em várias regiões das Minas Gerais, onde os santuários mais famosos encontram-se, não só em Minas Novas, mas, também, nas cidades de Caeté e Bom Sucesso. No período de quase 60 anos que vai de 1730 a 1789, nenhum município é criado. Em condições adversas para a extração do ouro, decorrentes das dificuldades que se vão apresentando como exaustão de lavras e imprevidência dos mineiros, lança-se por inúmeros arraiais em todo o território de Minas, nessas seis décadas, a decadência e o desânimo. 85


Vale do Jequitinhonha

Século XIX Ainda nos treze primeiros anos do século XIX, nenhuma vila é criada em Minas Gerais, apesar da emancipação política do país. Em 1814, surgem duas vilas: Baependi e Jacuí; mas é só a partir de 1831 que se inicia nova fase de criação de municípios mineiros que, somados aos já existentes, contabilizam-se 124. No Vale do Jequitinhonha, no século XIX, são criados três municípios, antes arraiais: DIAMANTINA – Conhecida inicialmente como Arraial do Tijuco ou Tejuco – palavra de origem tupi cujo significado é “lamaceiro, charco, terreno encharcado”121 – nome motivado pelo trabalho nas lavras, localizadas próximas aos córregos da região. Famoso arraial, sede da Intendência dos Diamantes, conhecida como Demarcação Diamantina, criada em 1732, com o intuito de garantir a exploração dos diamantes, segundo interesses da Coroa Porutugesa. Ao se emancipar do município do Serro122, Diamantina substitui o topônimo Tijuco (Decreto de 13/10/1831). ARAÇUAÍ – Este município tem sua origem ligada à antiga comarca do Serro Frio e a Minas Novas. Na fazenda Boa Vista da Barra do Calhau, topônimo motivado pela paisagem local, nasce o pequeno povoado conhecido como Calhau – palavra que se origina do francês “caillou”123, cujo significado é “fragmento de rocha dura”, “pedra solta”, “seixo”. Em 1850, o povoado de Calhau é elevado a paróquia e, em 1857, pela Lei nº 803, de 3 de julho de 1857 essa paróquia é elevada a vila com o nome de Araçuaí – termo tupi que significa “rio do tempo encoberto, do chapéu”124. Em 1885, a Lei nº 3326, de 5 de outubro, mudou a denominação de Araçuaí para Calhau; dois anos depois retorna a denominação de Araçuaí, pela Lei nº 3485, de 4 de outubro de 1887. ITAMARANDIBA – São João Batista foi uma antiga capela, depois paróquia e povoado subordinado ao município de Minas Novas até 1862 (Lei 1136, de 24/9/1862), quando é elevado a vila. Em 1871, torna-se cidade, tendo seu nome alterado para Itamarandiba em 1923 (Lei nº 843, de 7/9/1923). Segundo Sampaio (1987, p. 256), o nome tupi Itá-marã-dyba significa “o local de pedras desordenadas”. Conforme se pode observar, mesmo se submetendo a mudanças, a toponímia desses municípios criados nos séculos XVIII e XIX retratam as atividades de mineração que são, ainda hoje, um marco do Vale.

121 CUNHA, 1998, p. 289. 122 Hoje, segundo dados do IBGE, região Central de Minas. 123 CUNHA, 1982.

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Século XX – 1ª metade Com o regime republicano consolidado, processa-se a primeira divisão administrativa de Minas Gerais, sendo criados, em 1901, 12 municípios, passando o Estado a contar com 136 cidades, mas será somente dez anos após essa divisão, que serão criados novos municípios na região do Vale do Jequitinhonha. Na primeira metade do século XX, essa região passa a contar com mais 16 municípios: CAPELINHA – A povoação de Capelinha surgiu no primeiro quartel do século XIX, em 1812, quando foi edificada uma capela dedicada a Nossa Senhora da Graça. Em 1911, criou-se o município de Capelinha, desmembrado do de Minas Novas (Lei nº 556, de 30/8/1911). PEDRA AZUL – O primeiro nome da povoação onde hoje se situa Pedra Azul era Caatinga – palavra de origem tupi, cujo significado é “mato branco”, nome bastante comum em Minas para designar um tipo de pastagem. Em um segundo momento, já com a criação da República, motivado pela topografia local, esse nome é mudado para Fortaleza. Em 1911, a Lei nº 556, de 30 de agosto, elevou Fortaleza à condição de vila, criando o município, cujo território foi desmembrado do de Salinas. Elevada à categoria de cidade em 1925, Fortaleza tem seu nome mudado para Pedra Azul em 1943 (Decreto-Lei nº 1058, 31/12/1943), em virtude da grande quantidade de águas-marinhas encontradas. JEQUITINHONHA – O povoado que deu origem à cidade de Jequitinhonha surgiu no início do século XIX, em decorrência de um quartel – 7ª divisão – fundado pelo Alferes Julião Fernandes Leão no lugar denominado São Miguel. Com o crescimento do arraial, criou-se a freguesia São Miguel da Sétima Divisão. Em 1911, foi criado pela lei nº 556, de 30 de agosto de 1911, o município com a denominação São Miguel do Jequitinhonha. Em 1914 (Lei nº 622, de 18/9/1914), esse topônimo foi reduzido, adotando-se somente Jequitinhonha – palavra de origem controvertida, provavelmente de origem macro-gê125. ALMENARA – Remonta ao século XIX o conhecimento desta localidade, quando foi escolhida pelo Alferes Julião Fernandes Leão o lugar onde se instalara um Posto de Vigilância – donde lhe veio a denominação de Vigia – em defesa da Sétima Divisão Militar de São Miguel. Ao se tornar distrito, em 1880, o topônimo Vigia manteve-se até 1914, quando foi parcialmente modificado para São João do Vigia. Elevado à categoria de município, tem seu nome reduzido para Vigia, pela Lei Estadual nº 58, de 12-01-1938. Pelo 125 SAMPAIO, 1987, p. 270.

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Decreto-Lei estadual nº 1058, de 31-12-1943, o município de Vigia passou a denominar-se Almenara – palavra de origem árabe que significa “o farol, ou a lanterna”126 . MEDINA – A capela de Santa Rita dá início ao município de Medina – topônimo motivado pelo sobrenome do espanhol Leandro de Medina. Antes de se tornar município, vários topônimos nomearam o local: Santa Rita do Itinga, Itingui, Santa Rita do Araçuaí, Santa Rita do Medina. O nome Medina data de 1938 (Decreto-Lei nº 148, de 17/12/1938), quando foi criado o município. ITINGA – Esse município começa a ser ocupado no início do século XIX, com o surgimento do povoado de Itinga – nome que se altera para Santo Antônio da Barra do Itinga ao se tornar distrito. Em 1943, ao ser desmembrado do município de Araçuaí (Decreto-Lei nº 1058, de 31/12/1943), tem seu nome reduzido para Itinga – palavra de origem tupi que significa “água branca” ou “rio branco”127.

NOVO CRUZEIRO – Origina-se a partir do distrito de Gravatá – nome uma planta de origem tupi, conhecido como caraguatá, o caruá duro. Ao ser elevado a município, em 1943 (Decreto-Lei nº 1058, de 31/12/1943), recebe a denominação de Novo Cruzeiro. JACINTO – Barra do Jacinto tem seu nome parcialmente alterado para Jacinto em 1938 (Decreto-Lei nº 58, de 12/1/1938). Em 1943, é elevado a município (Decreto-Lei nº 1058, de 31/12/1943). RUBIM – Ao ser elevado a distrito em 1923 (Lei n.º 843, de 7/9/1923), o povoado de União, pertencente ao município de Jequitinhonha, adota o nome Rubim – variante de rubi, “pedra preciosa de cor vermelha, variante do coríndon, de alto valor gemológico 128. Posteriormente, com a criação do município de Almenara, o distrito de Rubim passa a fazer parte desse novo município. Em 1943 (Decreto-Lei nº 1058, de 31/12/1943), cria-se o município de Rubim, desmembrado do de Almenara. CARAÍ – Inicialmente foi criado o distrito de São José do Caraí, em 1911; em seguida, em 1938 (Decreto-Lei nº 148, de 17/12/1938), esse nome foi reduzido para Caraí – espécie de macaco (Nyctipithecus vociferans, Sb)129. A criação do município de Caraí data de 1948 (Lei nº 336, de 27/12/1948). 126 127 128 129

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SOUSA, 2004, p. 58. SAMPAIO, 1987, p. 261. HOUAISS, 2001. SAMPAIO, 1987, p. 217.


Formação Histórica, Populações e Movimentos

COMERCINHO – A história desse município inicia-se com a chegada de Bruno de Resende à região que, em homenagem a seu fundador teve, inicialmente, o nome de Comercinho do Bruno. Em 1911, esse topônimo foi reduzido para Comercinho, mantendo-se o nome quando se criou o município em 1948 (Lei nº 336, de 27/12/1948). TURMALINA – A história aponta que o arraial de Piedade surgiu pouco antes de 1755130, quando se levantou a capela de Nossa Senhora da Piedade. Em 1923, a denominação de Piedade é alterada para Turmalina – pedra semipreciosa (Lei nº 843, de 7/9/1923), mantendo-se o mesmo nome quando se criou o município, em 1948 (Lei nº 336, de 27/12/1948). VIRGEM DA LAPA – O arraial de São Domingos, primeiro nome do município Virgem da Lapa, data de 1728. Em 1911, por ocasião da divisão administrativa do Estado, esse município aparece com o nome São Domingos do Araçuaí. Ao se emancipar (Lei nº 336 - de 27/12/1948) São Domingos do Araçuaí tem seu nome alterado para Virgem da Lapa – homenagem a Nossa Senhora da Lapa. SALTO DA DIVISA – Motivado pela geografia física da região, ou seja, uma queda d’água, esse município teve sempre em seu nome a palavra salto: Salto, Salto Grande, São Sebastião do Salto Grande, Salto da Divisa. Esse último nome, adotado em 1943 (Decreto-Lei nº 1058, de 31/12/1943), foi mantido quando o município se emancipou em 1948 (Lei nº 336, de 27/12/1948). JOAÍMA – Bonfim dos Quartéis, Quartéis do Senhor do Bonfim, Bonfim de Joaíma foram os nomes anteriores do município de Joaíma, emancipado em 1948 (Lei nº 336, de 27/12/1948). Joaíma, nome adotado desde 1911 (Lei nº 556 – 30/8/1911), remete, segundo Barbosa131, a um chefe indígena botocudo. JORDÂNIA – O município de Jordânia, emancipado em 1948 (Lei nº 336, de 27/12/1948), era antes de 1943, quando passou a figurar com esse nome (Decreto-Lei nº 1058, de 31/12/1943), conhecido como Palestina. Ambos são nomes referentes a países do Oriente Médio.

Século XX – 2ª metade Como reflexo econômico e social na região, são criados, na segunda metade, mais 31 municípios: três em 1953, dezessete em 1962, três em 1992, oito em 1995:

130 BARBOSA, 1995, p. 358. 131 BARBOSA, 1995, p. 175.

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CORONEL MURTA - O arraial Boa Vista do Jequitinhonha foi fundado, por volta de 1908, pelo Coronel Inácio Carlos Moreira Murta. Em 1948 (Lei nº 336, de 27/12/1948) foi elevado a distrito com o nome de Itaporé – mais uma referência às pedras da região. Cinco anos depois, em 1953, é elevado a município, tendo seu nome novamente mudado para Coronel Murta – uma homenagem a seu fundador. GOUVÊA – Teve origem o povoado de Gouveia, em 1738, nas lavras da viúva Francisca Gouvêa. No início da segunda metade do século XVIII é construída no local a capela de Santo Antônio do Gouveia, tendo sido elevada a freguesia com esse nome. Em 1953, com o nome Gouvêa, torna-se município (Lei nº 1039, de 12/12/1953). RIO DO PRADO – A data de 15 de agosto de 1929132 é considerada a da fundação oficial do arraial do Barracão, nome mudado para Rio do Prado em 1943 (Decreto-Lei nº 1058, de 31/12/1943), quando se tornou distrito de Rubim. Ao se tornar município em 1953 (Lei nº 1039, de 12/12/1953), manteve-se o nome. CACHOEIRA DO PAJEÚ – O antigo povoado de Cachoeira do Pajeú tornase município em 1962 (Lei nº 2764, de 30/12/1962), com o nome de André Fernandes - em homenagem ao seu primeiro juiz de paz, Coronel André Fernandes. Em 1989 (Lei nº 9961 de 27/10/1989), André Fernandes tem seu nome mudado para Cachoeira do Pajeú. ITAOBIM – O povoado de São Roque é elevado a distrito em 1911 (Lei nº 556, de 30/8/1911) e, em 1923 (Lei nº 843, de 7/9/1923) tem seu nome mudado para Itaobim – vocábulo tupi que significa “a pedra verde, a esmeralda”133. Em 1962 (Lei nº 2764, de 30/12/1962) Itaobim torna-se município. COUTO DE MAGALHÃES DE MINAS – Município criado em 1962 (Lei nº 2764, de 30/12/1962), cujo nome é uma homenagem a um filho ilustre, o General José Vieira Couto de Magalhães, político, sertanista e antropólogo. Quando era povoado, Couto de Magalhães de Minas chamava-se Rio Manso. DATAS – Ribeirão das Datas foi distrito criado em 1839, seguido da paróquia Espírito Santo das Datas, em 1866. O topônimo Datas – cujo significado é “jazida de ouro ou pedras preciosas”134 foi adotado em 1923 (Lei nº 843, de 7/9/1923), mantendo-se o nome quando houve a criação do município em 1962 (Lei nº 2764, de 30/12/1962).

132 BARBOSA, 1995, p. 282 133 SAMPAIO, 1987, p. 257. 134 HOUAISS, 2001.

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Formação Histórica, Populações e Movimentos

FELÍCIO DOS SANTOS – O povoado Grota Grande dá origem ao distrito Felício dos Santos em 1953 (Lei nº 1039, de 12/12/1953). Esse último nome – Felício dos Santos – se mantém ao ser elevado a município em 1962 (Lei nº 2764, de 30/12/1962). Felício dos Santos homenageia o professor, jurista, jornalista, historiador e político brasileiro Joaquim Felício dos Santos, natural da região do Vale e falecido em 1895. SÃO GONÇALO DO RIO PRETO – Data de 1769135 a capela de São Gonçalo que deu origem ao arraial de São Gonçalo do Rio Preto. Esse topônimo foi mudado para Felisberto Caldeira em 1923 (Lei nº 843, de 7/9/1923). Ao se desmembrar de Diamantina em 1962 (Lei nº 2764, de 30/12/1962), tornando-se cidade, mantém-se o topônimo Felisberto Caldeira – nome que remete a Felisberto Caldeira Brant (século XVIII) – terceiro de um dos mais famosos contratadores de diamantes de Diamantina. PRESIDENTE KUBITSCHEK – Município criado em 1962 (Lei nº 2764, de 30/12/1962), em homenagem ao Presidente Juscelino Kubitschek, filho ilustre da região. Antes de se tornar município, chamava-se Tijucal (lei nº 843 de 7 de setembro de 1923). Quando elevado a distrito, em 1868, sua denominação era Pouso Alto – referência ao local de pouso para tropeiros e mercadores. Pouso Alto de Diamantina figura como nome do local quando o distrito foi elevado a freguesia (Lei nº 3442, de 28/9/1887). PADRE PARAÍSO – Elevada a cidade em 1962 (Lei nº 2764, de 30/12/1962), o nome Padre Paraíso vigora desde 1948 (Lei nº 336, de 27/12/1948), homenageia Padre Agostinho Francisco Paraíso, vigário de Araçuaí, que, por volta de 1875, visitou a região como pregador, empenhado-se na catequese dos índios Botocudos. O povoado primitivo chamava-se São João da Água Vermelha. SENADOR MODESTINO GONÇALVES - Araçuaí, Mercês do Araçuaí, Nossa Senhora das Mercês do Araçuaí, Calabar, Mercês de Diamantina eram designações comuns do distrito de Diamantina que, desde 1962 (Lei nº 2764, de 30/12/1962) foi elevado a município com o nome de Senador Modestino Gonçalves. BERILO – Água Suja136 é um dos arraiais surgidos pelas explorações do sertanista Sebastião Leme do Prado e outros, na região, conhecida no século XVIII como Serro Frio. Em 1877, a denominação Água Suja foi mudada para Água Limpa. Em 1923 (Lei nº 843, de 7/9/1923), houve nova mudança, passando o

135 BARBOSA, 1995, p. 132. 136 BARBOSA, 1995, p. 48.

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local a ser chamado Berilo – “pedra semipreciosa”137 – nome que ficou quando em 1962 (Lei nº 2764, de 30/12/1962) foi criado o município. CARBONITA – O primeiro nome do povoado que viria a ser a cidade de Carbonita era Barreiras, em homenagem ao fazendeiro Manoel Barreiros, que doou partes de suas terras para a construção de uma capela em homenagem a Nossa Senhora da Conceição. Em 1943, o Decreto-Lei nº 1058 (de 31/12/1943) altera o nome para Carbonita – nome que se mantém quando se cria o município em 1962 (Lei nº 2764, de 30/12/1962). CHAPADA DO NORTE - Chapada – nome de origem geográfica – foi o nome do arraial formado em decorrência da descoberta de ouro, na primeira metade do século XVIII. Em 1962, quando foi criado o município (Lei nº 2764, de 30/12/1962), Chapada se expandiu para Chapada do Norte. FRANCISCO BADARÓ – Esse município, antes conhecido como Sucuriú – termo tupi para designar um tipo de sucuri, a sucuri amarela138, adotou o topônimo Francisco Badaró – homenagem a Francisco Coelho Badaró, político de Minas Novas – em 1948 (Lei nº 336, de 27/12/1948), nome que se manteve quando foi criado o município em 1962 (Lei nº 2764, de 30/12/1962). SANTA MARIA DO SALTO – À família de José Joaquim Cabral, fazendeiro, oriundo de Ituassu, estado da Bahia, deve-se o início do povoado Santa Maria – topônimo motivado pelo nome de sua mulher, Maria. Ao ser elevado a município (Lei nº 2764, de 30/12/1962), tendo se desmembrado de Salto da Divisa, ficou o nome Santa Maria do Salto, adotado em 1948 (Lei nº 336, de 27/12/1948). SANTO ANTÔNIO DO JACINTO – O povoado de Santo Antônio, pertencente ao município de Jacinto, foi elevado a distrito em 1948 (Lei nº 336, de 27/12/1948), com o nome de Santo Antônio do Jacinto. Ao se tornar município em 1962 (Lei nº 2764, de 30/12/1962) esse mesmo nome é mantido. BANDEIRA – Surge do distrito denominado Bandeira, em 1938 (DecretoLei nº 58, de 12/1/1938), pertencente a Almenara; criado em 1962 (Lei nº 2764, de 30/12/1962). FELISBURGO – Conhecido inicialmente como Rubim, Felisburgo recebe o nome atual quando se torna distrito de Joaíma em 1923 (Lei nº 843 de 7/9/1923); emancipa-se em 1962 (Lei nº 2764, de 30/12/1962). MATA VERDE – Distrito de Almenara, de 1953 (Lei nº 1039, de 12/12/1953) a 1992, quando foi elevado a município (Lei nº 10704, de 27/4/1992). 137 HOUAISS, 2001. 138 SILVEIRA BUENO, 1998, p. 321.

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Formação Histórica, Populações e Movimentos

DIVISÓPOLIS - A história do município tem início com a chegada dos cobradores de impostos às terras conhecidas como Gerais, em 1936. A região era conhecida como Boca da Mata e, devido à descrença no progresso do lugarejo, passou a se chamar “Só- Se-Vendo”. Em 1953 (Lei 1039 de 12/12/1953), o povoado de Só-Se-Vendo passa a se chamar Divisópolis – por estar situado entre a divisa de Minas Gerais e Bahia, mantendo-se o nome quando se criou o município em 1992 (Lei nº 10704, de 27/4/1992). PALMÓPOLIS – Surge com a chegada de Teófilo Pinto à região, em 1910, à procura de uma planta medicinal de nome poaia. Com a chegada de outras famílias, o povoado se expande e recebe o nome de Bananeira e, depois, Palmares, motivado pela existência de palmeiras na região. Em 1953, ao se tornar distrito de Rio do Prado (Lei nº 1039, de 12/12/1953), recebe o nome de Palmópolis. Nome que se mantém quando se criou o município, em 1992 (Lei nº 10704, de 27/4/1992). ANGELÂNDIA – Surgiu da doação de uma parte da terra do agricultor Santos de Souza, proprietário da Fazenda “Arrependido”, para a construção de um cemitério e uma capela. Com a chegada de comerciantes e garimpeiros no local, essa área passou a se chamar Vila dos Anjos. Em 1976 (Lei nº 6769, de 13/5/1976), Vila dos Anjos torna-se distrito de Capelinha e, em 1995 (Lei nº 12030, de 21/12/1995) emancipa-se, adotando o nome Angelândia. ARICANDUVA – O distrito de Lorena, primeiro nome da localidade que viria a ser o município de Aricanduva, data de 1911 (Lei nº 556, de 30/08/1911). Em 1943, pelo Decreto-Lei nº 1058 (de 31/12/1943), Lorena tem seu nome mudado para Aricanduva – que significa “lugar de palmeiras”139. Em 1995 (Lei nº 12030, de 21/12/1995) Aricanduva torna-se município, desmembrando-se de Itamarandiba. JENIPAPO DE MINAS – Antigo distrito de Francisco Badaró, o topônimo Jenipapo – nome de origem tupi que remete a uma espécie de fruta – tem seu nome ampliado para Jenipapo de Minas, ao se emancipar em 1995 (Lei nº 12030, de 21/12/1995). JOSÉ GONÇALVES DE MINAS – O antigo povoado Gangorras tem seu nome mudado para José Gonçalves de Minas em 1962 (Lei nº 2764, de 30/12/1962) e, em 1995, torna-se município (Lei nº 12030, de 21/12/1995), mantendo esse mesmo nome. LEME DO PRADO – Quando se torna distrito, o povoado denominado Gomes tem seu nome mudado para Leme do Prado, em 1953 (Lei nº 1039, de 12/12/1953). Em 1995 (Lei nº 12030, de 21/12/1995), cria-se o município. 139 SILVEIRA BUENO, 1998.

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PONTO DOS VOLANTES – O topônimo Ponto dos Volantes substitui o nome do povoado Santana do Araçuaí. Em 1995 (Lei nº 12030, de 21/12/1995) torna-se município. VEREDINHA – Data a adoção do nome Veredinha de 1875 (Lei nº 2145, de 25/10/1875). Em 1995 (Lei nº 12030, de 21/12/1995), quando se emancipou de Turmalina, manteve-se esse topônimo no novo município. MONTE FORMOSO - Monte Belo era o antigo nome de Monte Formoso, aditado em 1982 (Lei nº 8285, de 8/10/1982), quando se tornou distrito de Joaíma. Em 1995 (Lei nº 12030, de 21/12/1995), é elevado a município.

Considerações finais Dado o caráter de variação e mutabilidade da língua, podemos constatar que as variações e mudanças toponímicas ocorreram em muitos dos nomes acima estudados. Tal fato é esperado quando se observa uma grande região, já que como expressão do pensamento e meio de comunicação, o nome de lugar costuma ser alterado, adaptando às novas formas de pensar, resultantes das atividades sociais e físicas de uma comunidade. Originário da necessidade de se comunicar uns com os outros nas inúmeras relações da vida quotidiana, o nome, ou na sua unidade, ou em cada um dos elementos que o compõem, reflete vários aspectos dessa vida e respectiva história, ajudando-nos a penetrar no tempo passado. É por isso, ou seja, por se tratar de um campo que envolve a “rede social”, já que os nomes de lugares não encontram expressão fora dela, que “a investigação toponímica deve estar articulada a bases culturais, especialmente à antropologia linguística ou etnolinguística e a uma noção de léxico que possibilite ao pesquisador trabalhar em conjunto com a história para, através de fatos, crenças e valores entrecruzados, tentar comprovar a verdade de um nome.”140 Em se tratando da região do Vale do Jequitinhonha, visualizamos em sua toponímia, tanto aspectos antropoculturais quanto físicos na nomeação de seus municípios, em períodos presentes e passados. As migrações, a colonização, os estabelecimentos humanos e o aproveitamento do solo, relacionado, principalmente à agricultura, à mineração e à geografia local, impõem aos seus municípios nomes que devem ser levados em conta em um estudo de cunho social da região. Por outro lado, os nomes inspirados por crenças religiosas, visando assegurar a proteção dos santos ou de Deus, apontam a religiosidade cristã de seus habitantes. 140 SEABRA, 2004, p. 40-41.

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Formação Histórica, Populações e Movimentos

Julgamos aqui oportuna e pertinente a afirmação de DICK (1990: 22) quando diz que “o nome de lugar exerce o papel de uma verdadeira crônica”. De fato, o homem escreve a sua história ao denominar os lugares em que vivencia suas experiências e essa história só se perpetuará e se manterá armazenada na memória de seu povo, se o topônimo passar a ser visto e preservado como um patrimônio cultural, ou um patrimônio linguístico-cultural de uma sociedade. Acreditamos que este é o compromisso da Toponímia com a linguagem: o nome de lugar é voz, ferramenta e fundamento da experiência humana, já que é um signo linguístico que transmite informações e reflete a história dos povos.

Referências BARBOSA, W. de A.. Dicionário histórico-geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte, Rio de Janeiro: Itatiaia, 1995. BYNON, Theodora. Can there Ever be a Prehistorical Linguistics? In: Cambridge Archaeological Journal 5:2. London, 1995, p.261-265. CAPELLE, Irmão José Gregório José Cerqueira. Contribuição indígena ao Brasil. Belo Horizonte: União Brasileira de Educação e Ensino, 1980 (3 vol.). COSTA, Joaquim Ribeiro. Estudo Histórico da Divisão Administrativa de Minas Gerais. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1963, p. 67-94. CUNHA, A. G. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. CUNHA, A. G. Dicionário histórico das palavras portuguesas de origem Tupi. São Paulo: Melhoramentos, 1998. DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. A motivação toponímica e a realidade brasileira. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo. Edições Arquivo do Estado, 1990. HOUAISS, A.; VILLAR, M.. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS APLICADAS; ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS, 1993, As denominações urbanas de Minas Gerais: cidades e vilas mineiras com estudo toponímico e da categoria administrativa, Belo Horizonte, Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais, 1993. 95


Vale do Jequitinhonha

SAMPAIO, Theodoro. O tupi na geografia nacional. 5. ed. São Paulo, 1987. SEABRA, M. C. T. C. A formação e a fixação da Língua Portuguesa em Minas Gerais: a Toponímia da Região do Carmo. Tese (Doutorado em Linguística) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004. 2v. SILVEIRA BUENO, F.. Vocabulário Tupi-Guarani Português, São Paulo, Éfeta, 1998. SOUSA, Fr. João de. Vestígios da língua arábica em Portugal. Lisboa, Academia Real das Sciencias, 1830 (ed. fac-simile, Lisboa: Alcalá, 2004).

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A População do Vale do Jequitinhonha Ralfo Matos Ricardo Alexandrino Garcia

Introdução

O

estudo da população de uma região, embora seja um dos primeiros itens de qualquer diagnóstico regional, costuma ser mal compreendido por vários analistas das Ciências Sociais. Isso porque esses estudos sempre eram usados como uma base de apoio a partir da qual camadas de conhecimento supostamente mais relevantes seriam adicionadas, como as relativas a aspectos econômicos, sociais, culturais, políticos, entre outros. De fato, muitos dos estudos populacionais eram bastante singelos e não iam além das medições do crescimento demográfico, do número de homens e mulheres por grupos etários e do grau de urbanização das localidades, o que não quer dizer que tais medidas não sejam importantes. Nesses diagnósticos sempre se valorizava as projeções demográficas, embora poucos saibam das dificuldades de se estabelecer projeções confiáveis, já que qualquer mudança significativa na região pode alterar todas as estimativas realizadas, a maioria delas dotadas de imprecisão irredutível, dependendo do método utilizado. O grande desafio dos antigos estudos era reconhecer melhor as tendências das componentes demográficas, a mortalidade, a natalidade e a migração. Há poucas décadas atrás esse conhecimento era inalcançável no Brasil pela inexistência de dados confiáveis sobre mortalidade infantil, esperança de vida e fecundidade, sem mencionar os dados sobre fluxos migratórios. Na verdade, foi a partir do escopo mais sofisticado do Censo de 1980 e do aumento do número de demógrafos atuando no mercado de trabalho, é que se puderam construir estimativas mais próximas da realidade sobre aquilo que é essencial nos estudos 97


Vale do Jequitinhonha

populacionais, a dinâmica demográfica, ou seja, a análise que combina as três componentes acima mencionadas. De fato, a infinidade de possibilidades analíticas abertas pelos censos demográficos brasileiros impressiona. Os estudos da população gradativamente tornam-se centrais para o entendimento da realidade social, inclusive por permitirem estratificar subpopulações, conforme o interesse do analista, por características econômicas, sociais, culturais, institucionais, sem perder a vantagem dos grandes números. Os dados sobre migrações internas dos últimos dois censos, por exemplo, valem-se de amostras de 10% da população recenseada, e permitem alcançar raros níveis de análises de cunho socioespacial. São poucos os países do mundo que contam com tão sofisticada base de dados. De outra parte, é sempre um desafio empreender uma investigação focalizando a população do Vale do Jequitinhonha que se apoie no avanço dos nossos censos e das técnicas de análise demográfica, sem gerar resultados incompreensíveis para os não iniciados, como acontece com tantos dos artigos de nossos analistas das Ciências Sociais na atualidade. A ideia aqui é traçar um breve retrato da dinâmica demográfica da Mesorregião do Jequitinhonha, conforme definição vigente do IBGE, problematizando os números encontrados, aprofundando alguns aspectos chaves da região, como o das migrações internas, e estabelecendo formas mais didáticas de expor nossos resultados. Quem sabe assim, aumente o interesse dos leitores para um assunto frequentemente considerado árido, muito técnico e até sem importância. Algumas perguntas chaves norteiam este texto. A região do Jequitinhonha, durante muitas décadas, parecia fadada ao esvaziamento demográfico: essa tendência se mantém inalterada? Se visualizarmos a região discriminada por sub-regiões, surgem diferenciações significativas? Quais, onde e por quê? A região possui uma longa história de ruralidade. Há alterações importantes em curso a partir dos últimos dados demográficos disponíveis? Se a região está se urbanizando a passos largos, isso supõe o desmantelamento de estilos de vida intra-regionais de populações com larga tradição de vida rural? A despeito de ser conhecida como área de forte emigração, a região sempre teve um crescimento vegetativo expressivo (em razão do alto número de filhos por família). Diante dos indicadores de fecundidade e mortalidade, é possível afirmar que a tendência de produção de excedentes populacionais permanece inalterada? Se os dados não corroboram essa tendência histórica, isso pode estar influindo no ritmo de crescimento demográfico? Até que ponto? 98


Formação Histórica, Populações e Movimentos

Sob a ótica das migrações internas, tem havido mudanças importantes na tendência de evasão populacional da região e sub-regiões? Se houver, em que medida e quais são os espaços geográficos do país que mais interagem com o Vale do Jequitinhonha. A região em estudo possuía, em 2007, um total de 55 municípios que agregavam 730.809 pessoas residindo em um território de 79.000 km2. O tamanho dessa população é modesto tendo em vista a extensão territorial, mas longe de ser desprezível. Isto porque, não se trata de um espaço geográfico em que uma ou duas cidades absorve a grande maioria da população e o resto de espaço regional constitua um vazio demográfico. A distribuição da população no espaço é bastante equilibrada no Jequitinhonha. Nenhum município ultrapassa sequer a barreira dos 50 mil habitantes, o maior, Diamantina, detinha em 2007 não mais que 44.278 pessoas, enquanto o menor, Presidente Kubitschek possuía 2.978 habitantes. Os municípios mais populosos são os que tiveram alguma importância histórica em algum momento dos três séculos de existência da região. Dentre os 12 municípios mais populosos dispostos no Anexo 1, todos com mais de 20 mil habitantes, figuram pelo menos 11 que já ostentaram algum brilho no passado, como Diamantina, Almenara, Araçuaí, Capelinha, Itamarandiba, Minas Novas, Pedra Azul, Jequitinhonha, Itaobim e Serro. Trata-se de uma região repleta de pequenas cidades mortas, como sugere a reflexão de Monteiro Lobato na primeira metade do século XX sobre o Vale do Paraíba? Não. Inclusive porque as principais cidades do passado ainda são as principais da região na atualidade. Ademais, os surtos de produção de riqueza no Jequitinhonha não se concentraram em um único ponto do tempo (como o café no Vale do Paraíba) e foram mais multissetoriais, ou seja, a despeito da indiscutível importância da mineração de ouro, diamantes e outros minerais, houve surtos exitosos associados à cotonicultura, à criação de gado e até mesmo à produção industrial de tecidos. Se o referencial de entendimento da região não está apoiado em uma ou duas grandes cidades, então, tratar-se-ia de um caso em que toda a região padeceria de uma espécie de estagnação econômica difusa espacialmente, resultante de um mesmo conjunto de causas que acometesse todos os municípios? É provável. São muitos os estudos que apontam causas econômicas diversas, falta de investimentos, fracassos dos planos do Estado, atraso das elites locais, carência de infra-estrutura, aridez climática, isolamento e abandono. Entretanto, cabe aqui refletir sobre a hipótese de a própria população ser a causa da estagnação regional. Como? Pela simples falta de homens e mulheres habilitados para o trabalho, em quantidade e nas proporções adequadas, pois sem esses não se instala ciclos virtuosos de desenvolvimento. Sabe-se muito bem que a região 99


Vale do Jequitinhonha

perde população há mais de 50 anos. Alguns apostavam que além de um deserto demográfico a região ostentaria hoje maiorias de idosos e crianças acompanhadas dos poucos adultos que não se mostrariam aptos a migrar. A realidade evoluiu assim, como faziam crer alguns dos estudos dos anos de 1970? Se fosse assim, evidentemente, as perdas demográficas, tão explícitas entre 1960 e 1980, manter-se-iam inalteradas, e a região ingressaria em uma situação de colapso demográfico. É isso que os números mostram? Não. Os dados apresentados em seqüência permitem contrariar aquelas teses, e, talvez, estejam traduzindo o fato de a realidade social insistir em surpreender analistas mais apressados. Afinal, são muitos os fatores que passaram a atuar na dinâmica demográfica impedindo o aludido colapso demográfico, inclusive os fatores simbólicos derivados de sentimentos de pertença dos naturais do Jequitinhonha.

O crescimento A situação atual do Vale do Jequitinhonha não é de perda generalizada de população como apostavam os arautos do slogan “Vale de Lágrimas”. Os analistas que só enxergam os grandes números irão desprezar o baixo crescimento demográfico da região em sete anos. O incremento populacional entre 2000 e 2007 não ultrapassou 10.538 indivíduos; a taxa de crescimento foi positiva e relativamente baixa (0,2% ao ano); dentre os 12 maiores municípios apenas Itamarandiba cresceu a taxa superior a 1% a.a; e 20 municípios experimentaram decréscimo populacional. Os números parecem preocupantes, contudo o Brasil de hoje é bem distinto do de 30 anos atrás. A transição demográfica brasileira, derivada de um formidável declínio da fecundidade, faz diminuir o ritmo de crescimento e os estoques populacionais na maior parte do país. Minas Gerais, por exemplo, ostenta um modesto crescimento demográfico, estimado em menos de 1,0% a.a. nesse primeiro decênio do século XXI. A região do Jequitinhonha cresce menos que Minas? Sim, mas principalmente em razão das sucessivas perdas populacionais que a região experimenta, já que a transição demográfica parece estar impactando mais fortemente as populações da região só mais recentemente, como veremos a frente. Entretanto, convém observar que 35 de seus 55 municípios exibem crescimento positivo relativamente baixo entre 2000/2007 da mesma forma que no resto do estado há milhares de municípios de crescimento populacional igualmente baixo. É um problema estrutural de Minas Gerais, mais do que da região do Jequitinhonha? Nem tanto, já que uma questão fundamental é que o ritmo de crescimento demográfico vem declinando e continuará assim por muito tempo por razões mais estritamente demográficas. 100


Formação Histórica, Populações e Movimentos

Há variações sub-regionais importantes no Vale do Jequitinhonha que relativizam esses números. Se agregarmos os municípios em três compartimentos da bacia do Jequitinhonha, os do Alto Jequitinhonha, os do Médio Jequitinhonha e os do Baixo Jequitinhonha, as conclusões permitem ir mais longe com os dados disponíveis. Essa agregação evita a análise muito fragmentada em tabelas contendo 55 municípios, e supera o problema dos surtos emancipatórios de 1992 e 1995/6, que ocasionaram o surgimento de dezenas de novos municípios no nordeste de Minas. Com isso as comparações vão até 1980 e incorporam um período de 27 anos de análise demográfica como nos mostra a Tabela 1. Tabela 1 População residente nos municípios das sub-regiões do Vale do Jequitinhonha em 1980, 1991, 2000, 2007 e crescimento geométrico médio anual (%) População Residente

Taxa de Crescimento Médio Anual

Sub-regiões 2007

2000

1991

1980

2000/ 2007

1991/ 2000

1980/ 1991

1980/ 2007

Baixo Jequitinhonha

174662

172807

169331

163705

0,14

0,23

0,31

0,24

Médio Jequitinhonha

286910

285162

280726

264975

0,08

0,17

0,53

0,30 0,77

Alto Jequitinhonha

269132

262302

255007

218507

0,34

0,31

1,41

Minas Gerais

19273506

17891494

15743152

13380105

0,99

1,43

1,49

1,36

Brasil

183987291

169799170

146825475

119011052

1,07

1,63

1,93

1,63

Fonte: Censos demográficos e Contagem Populacional de 2007 (IBGE)

O Alto Jequitinhonha possui o maior número de municípios, 20, conta com várias das cidades mais populosas da região, como Diamantina, Capelinha e Itamarandiba, e é o subespaço que mais cresceu em 27 anos (0,77% a.a.). Já o Baixo Jequitinhonha, sub-região das cidades de Almenara e Jequitinhonha, possui o menor estoque populacional, menos municípios (16) e o mais baixo crescimento entre 1980/2007 (0,24% a.a.). O Médio Vale, subespaço de Araçuaí, Novo Cruzeiro e Itaobim, com seus 19 municípios é a maior das três subpopulações (286.910 habitantes), exibe baixo crescimento nos 27 anos que separam 1980 de 2007 (0,3% a.a.), e experimenta um crescimento próximo de zero (0,08% a.a.) entre 2000 e 2007. Na comparação com Minas Gerais é muito evidente nas três sub-regiões certo acanhamento em termos de crescimento no período analisado? As tendências se apresentam uniformes? Antes de sublinhar os números da região convém lembrar a condição secular de perdedor de população de Minas Gerais. Somente com os dados do 101


Vale do Jequitinhonha

Censo de 2000 essa tendência se inverte, quando os ganhos superaram as perdas nas trocas populacionais de Minas com as demais Unidades da Federação. Antes, o Estado crescia bem menos que o Brasil, hoje nem tanto. Os dados da Tabela 1 deixam claro que o Brasil nos últimos 27 anos vem crescendo a um ritmo superior ao de Minas, mas essa diferença vem diminuindo. Entre 1980 e 2007 o crescimento do Brasil mostrou-se 16% superior ao de Minas, principalmente porque entre 1980 e1991 essa diferença chegou a 23%, já que entre 1991 e 2000 o diferencial baixou para 12% e entre 2000 e 2007 para apenas 7%. Entre 1980 e 1991, se a disparidade de Minas Gerais com o Brasil era grande a da região do Jequitinhonha com Minas também o era, à exceção do Alto Jequitinhonha que crescia a 1,41% a.a., taxa próxima dos 1,49% a.a. do Estado. Posteriormente, a diferença com Minas não diminuiu, já que o Estado, mesmo crescendo um pouco menos de 1% ao ano entre 2000 e 2007, ostenta uma taxa quase três vezes maior que o 0,34% a.a. do Alto Jequitinhonha, sub-região que mais cresceu no período. Se o foco muda para o Médio e Baixo Jequitinhonha a disparidade é maior. Por outro lado, no debate sobre o crescimento da população cabe sempre indagar sobre onde se dá com mais intensidade esse crescimento, nas áreas urbanas ou rurais? Essa questão é pertinente porque a região do Jequitinhonha vinha sendo uma das poucas do Estado com proporções mais altas de pessoas residindo em áreas rurais. Dada a estrutura fundiária variável regionalmente, as melhorias na infra-estrutura básica, a construção de Irapé, os programas de expansão de recursos hídricos e o programa Bolsa Família, poder-se-ia arguir que a tradição de trabalho na lavoura ganharia mais vitalidade nos últimos anos e a longa trajetória de êxodo rural se estancaria. Em visita a dezenas de municípios da região, entre 1997 e 1998, vimos muitas famílias rurais manifestarem claramente o apreço pela pequena propriedade rural especialmente se viessem a contar com luz elétrica e água potável. Os dados mais atuais nos dizem que dos 55 municípios 21, um número expressivo, ainda possuem a maior parte de seus habitantes residindo em áreas rurais. Alguns, como Minas Novas e Novo Cruzeiro, estão entre os 12 maiores da região e ostentam mais de 75% de seus habitantes residindo em áreas rurais. Nesses casos, é evidente que atividades rurais vêm dando sustentação a proporções tão altas de residentes fora dos perímetros urbanos. A despeito dessas evidências, há outra bem mais significativa: a quase totalidade dos municípios vêm se tornando mais urbanos e parte expressiva do crescimento demográfico positivo tem se dado nas cidades. Mas assim sendo, tem havido mais oferta de emprego nas cidades e piorado as condições de vida no campo, contrariando observações feitas acima? E a tradição do trabalho familiar rural está desapare102


Formação Histórica, Populações e Movimentos

cendo? Não é possível responder genericamente a tais questões nem contamos com dados para tanto. A erosão de estilos de vida rural deve estar ocorrendo lentamente em vários municípios, mas não se extinguindo. O emprego urbano, por sua vez, não se expande a ponto de absorver tanta gente proveniente do meio rural, mas o número de novos domicílios nas periferias urbanas tem aumentado de forma consistente. Uma das explicações para esse fato se associa às remessas em dinheiro enviadas por migrantes da região e à própria migração temporária de trabalhadores com experiência em Construção Civil nos grandes centros urbanos. De volta ao município de origem, não raro, realizam o sonho da casa própria na cidade, nas periferias urbanas, para acolher seus familiares, como vimos em vários municípios da região. É provável que um bom número de famílias esteja fixando seus domicílios em áreas urbanas (cidades e vilas) sem terem se desprendido de suas propriedades rurais. De outra parte, é fato que grande parte dos municípios de maior grau de urbanização ocupam a maioria de sua força de trabalho fora da cidade, na agricultura, desmatamento, extrativismo, mineração e agroindústria. Isso deve ocorrer mesmo nos 17 municípios com alto Grau de Urbanização (ver Anexo 2), como Almenara, Pedra Azul, Itaobim, Jequitinhonha, Serro, Águas Vermelhas, Gouvêa, Jacinto, Jordânia, Rubim, Coronel Murta, Mata Verde, Divisópolis, Salto da Divisa, entre outros. Mas a partição da população por sexo e idade corrobora, ainda que parcialmente, parte dessas assertivas? Talvez. O fato de os homens se ocuparem mais no trabalho rural que as mulheres não se explicita nos dados exibidos em sequência. Contudo, os gráficos sob a forma de pirâmides etárias servem para confirmar as observações supracitadas e dar uma boa ideia do equilíbrio dos sexos e das proporções de indivíduos nos grupos etários, além de mostrarem mudanças existentes na estrutura da população regional em 27 anos.

Homens, mulheres e idades Os dados nos dizem que, nos últimos anos, tem aumentado o número de homens em relação ao de mulheres na região do Jequitinhonha. Em 2000 havia 3.428 homens a mais, em 2007 esse número chega a 5.409. As razões de sexo dos 55 municípios expostas no Anexo 2 evidenciam que, no ano 2000, havia 17 municípios em que o número de mulheres superava o de homens, e 38 em que ocorria o oposto, faltavam mulheres. Em 2007 esses números evoluem para 42 municípios com mais homens e 13 municípios com mais mulheres. Até que ponto isso é preocupante? Se as razões de sexo acusarem diferenças acima de 5% em relação ao esperado (100 homens para cada 100 mulheres) pode-se pensar em desequilíbrio mais sério. Os dados de 2007 permitem afirmar que em 17 103


Vale do Jequitinhonha

dos 55 municípios havia “excesso” de homens na população. Sete anos antes, eram apenas 13 os municípios que se situavam nessa condição (embora houvesse um município, Chapada do Norte, em que o “excesso” era de mulheres). O fato de esse desequilíbrio ocorrer principalmente em municípios menores ajuda a explicar os resultados e corrobora parte do que foi comentado anteriormente. Neles há menos emprego feminino nas cidades, de resto muito pequenas, e mais ocupação masculina nas áreas rurais, inclusive em trabalhos de formação de cidades e de novos estabelecimentos rurais nos vários novos municípios que foram criados na região, o que requer desmatamento, destocamento, movimentos de terra, construção de pontes e estradas vicinais, formação de pastagens, colonização, etc. Os seis gráficos apresentados em sequência sintetizam a estrutura etária das populações das três sub-regiões do Vale do Jequitinhonha e introduzem uma série de conclusões que aprofundam as evidências até agora trabalhadas. As pirâmides discriminam as populações urbanas e rurais, e se bem visualizados indicam mudanças (ou não mudanças) mais ou menos significativas, considerando a superposição das curvas referentes a 1980, 1991, 2000 e 2007. O contraste entre as proporções por idade de homens e mulheres que residiam nas áreas urbanas e rurais nesses 27 anos é impressionante. Em todas as sub-regiões a parte central da curva expande-se nas áreas urbanas, indicando claramente o aumento de adultos, enquanto nas áreas rurais os gráficos mudam pouco no período: expressam uma situação de perda populacional significativa, acusando falta de homens e mulheres nas idades ativas. Mais especificamente, o Alto Jequitinhonha, a sub-região que mais cresceu no período, apresenta os seguintes resultados para as áreas urbanas de seus municípios: i) a base mais côncava da curva do gráfico em 1980 vai se tornando mais convexa até 2007. Isso confere com o declínio da fecundidade, como vários outros gráficos para o Brasil e Minas já vêm mostrando há mais tempo; ii) para as faixas dos adultos ativos, digamos entre 15 e 50/55 anos, as mudanças em 27 anos no aumento do estoque dessas subpopulações foi muito pronunciado. De perdedora de população em 1980 as cidades da sub-região se tornaram ganhadoras a partir de 1991. Esses ganhos são decorrentes da migração campo-cidade do próprio município? Do retorno de muitos migrantes naturais da região? 104


Formação Histórica, Populações e Movimentos

Da chegada de não naturais da região que vieram fixar residência nas cidades em expansão? Ou da contribuição de todas essas possibilidades? Já que o crescimento vegetativo nessas cidades não parece estar em expansão. A hipótese da “somatória das contribuições” parece ser evidente, embora uma resposta mais precisa a cada uma dessas questões exija investimentos mais técnicos de análise demográfica que extrapolam os objetivos desse texto; iii) nos grupos etários do topo da pirâmide (acima de 50 anos de idade) verifica-se também um claro aumento dos estoques populacionais, sobretudo entre as mulheres, o que sugere hipóteses semelhantes às do item ii acrescidas da provável aposentadoria de muitos desses residentes. Para as áreas rurais as conclusões principais são as seguintes: i) faltam homens e mulheres nas idades ativas, e a superposição das curvas desde os 20 anos de idade deixa claro que esse quadro não se alterou: tudo indica que a emigração de adultos mantém-se muito forte; ii) o comportamento das curvas nas idades inferiores aos 20 anos denota a existência de bases largas típicas de situações de alta fecundidade em 1980, 1991, mas com significativa redução a partir dos dados de 2000 e 2007. O Médio Jequitinhonha, a sub-região de maior população, apresenta resultados semelhantes aos do Alto Vale. Nas áreas urbanas de seus municípios: i) a base da pirâmide também era mais côncava em 1980 vindo se tornar mais convexa posteriormente; ii) para as faixas dos adultos ativos, as mudanças também foram pronunciadas. A sub-região perdia população em 1980, sobretudo entre as idades de 20 e 40 anos, e isso foi se alterando a partir de 1991 com prováveis ganhos de população e/ou declínio de perdas. O gráfico sugere a hipótese de retornados entre as idades de 35/40 anos; iii) nos grupos de maior idade também é claro o aumento do volume populacional, sobretudo de mulheres no período 2000-2007. Para as áreas rurais as conclusões principais são as seguintes: i) o déficit populacional nas idades adultas é muito evidente, e se mantém inalterado desde 1980; ii) nas idades da base das pirâmides houve redução do efetivo de crianças desde 1991, o que sugere queda da fecundidade e emigração de famílias acompanhas de seus filhos. Nos dados de 2000 e 2007 isso parece mais claro. Já o Baixo Jequitinhonha, sub-região de menor população e crescimento, os resultados não são tão claros quanto os vistos acima, e os processos de mudança parecem mais tardios que nas duas outras sub-regiões. Nas áreas urbanas, 105


Vale do Jequitinhonha

verifica-se: i) bases típicas de áreas de fecundidade ainda alta em 1980 com tendência de queda a partir de 1991; ii) nas faixas centrais do gráfico, as mudanças só parecem mais significativas a partir do ano 2000. As áreas urbanas da sub-região perdiam população em 1980 e 1991 e provavelmente experimente redução do nível de perdas só mais recentemente; iii) nos grupos de maior idade, verifica-se o aumento populacional, sobretudo de mulheres no período 2000-2007. Para as áreas rurais as conclusões são as seguintes: i) redução em termos absolutos em vários grupos etários, êxodo rural pronunciado de adultos e adultos jovens, emigração de crianças e sinais de declínio da fecundidade desde 1991. Após feita todas essas inferências e observações, caberia cotejá-las, em alguma medida, com os dados existentes sobre natalidade e mortalidade, não só para concluir mais seguramente sobre tendências relevantes inscritas na dinâmica demográfica regional e sub-regional, mas também para entender melhor as tendências de melhora do padrão de vida das comunidades pobres do Vale do Jequitinhonha. Apesar de os dados mais recentes serem do ano 2000, é possível, com algum esforço, concluir sobre as novas tendências regionais.

106


Formação Histórica, Populações e Movimentos

População urbana e população rural

ALTO JEQUITINHONHA Gráfico 1 Composição por sexo e idade da população urbana em 1980, 1991, 2000 e 2007 2007 Hom ens

2007 Mulheres

2000 Hom ens

2000 Mulheres

1991 Hom ens

1991 Mulheres

1980 Hom ens

1980 Mulheres

80 75 70 65 60 55 50

Idade

45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 -10000

-8000

-6000

-4000

-2000

0

2000

4000

6000

8000

10000

População Urbana

107


Vale do Jequitinhonha

Gráfico 2 Composição por sexo e idade da população rural em 1980, 1991, 2000 e 2007

2007 Hom ens

2007 Mulheres

2000 Hom ens

2000 Mulheres

1991 Hom ens

1991 Mulheres

1980 Hom ens

1980 Mulheres

80 75 70 65 60 55 50

Idade

45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 -12000

-10000

-8000

-6000

-4000

-2000

0

População Rural

108

2000

4000

6000

8000

10000

12000


Formação Histórica, Populações e Movimentos

MÉDIO JEQUITINHONHA Gráfico 3 Composição por sexo e idade da população urbana em 1980, 1991, 2000 e 2007

2007 Hom ens

2007 Mulheres

2000 Hom ens

2000 Mulheres

1991 Hom ens

1991 Mulheres

1980 Hom ens

1980 Mulheres

80 75 70 65 60 55 50

Idade

45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 -9000

-7000

-5000

-3000

-1000

1000

3000

5000

7000

9000

População Urbana

109


Vale do Jequitinhonha

Gráfico 4 Composição por sexo e idade da população rural em 1980, 1991, 2000 e 2007

2007 Hom ens

2007 Mulheres

2000 Hom ens

2000 Mulheres

1991 Hom ens

1991 Mulheres

1980 Hom ens

1980 Mulheres

80 75 70 65 60 55 50

Idade

45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 -17000

-12000

-7000

-2000

3000

População Rural

110

8000

13000

18000


Formação Histórica, Populações e Movimentos

BAIXO JEQUITINHONHA Gráfico 5 Composição por sexo e idade da população urbana em 1980, 1991, 2000 e 2007

2007 Hom ens

2007 Mulheres

2000 Hom ens

2000 Mulheres

1991 Hom ens

1991 Mulheres

1980 Hom ens

1980 Mulheres

80 75 70 65 60 55 50

Idade

45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 -8000

-6000

-4000

-2000

0

2000

4000

6000

8000

População Urbana

111


Vale do Jequitinhonha

Gráfico 6 Composição por sexo e idade da população rural em 1980, 1991, 2000 e 2007

2007 Hom ens

2007 Mulheres

2000 Hom ens

2000 Mulheres

1991 Hom ens

1991 Mulheres

1980 Hom ens

1980 Mulheres

80 75 70 65 60 55 50

Idade

45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 -8000

-6000

-4000

-2000

0 População Rural

112

2000

4000

6000

8000


Formação Histórica, Populações e Movimentos

Nascimento e Morte, filhos e esperança de vida A aceleração da transição demográfica no Brasil, resultante da redução das taxas de mortalidade e de fecundidade (número de filhos tidos por mulher) pode ser explicada por diferentes causas, boa parte delas sem relação direta com grandes investimentos de custos financeiramente elevados. Medidas relativamente simples como disponibilidade de água tratada e escolarização da mãe, além da vacinação em massa, produzem efeitos positivos nos indicadores associados a mortes evitáveis e filhos indesejáveis. No Brasil, a fecundidade, componente decisiva da dinâmica demográfica que interfere diretamente no ritmo de crescimento das populações, vem declinando desde meados dos anos de 1960, enquanto a mortalidade, não obstante seus altos e baixos, vem caindo há mais tempo, especialmente desde os anos de 1940 nas regiões mais prósperas do país. No Jequitinhonha, apesar da defasagem temporal dos registros de queda em relação ao país, a melhoria desses indicadores tem sido expressiva nos últimos anos para os quais há disponibilidade de dados, 1991 e 2000. Em termos de mortalidade de crianças de até um ano de vida (m), os dados do Anexo 3 mostram que todos os 55 municípios melhoraram seus números, alguns muito pouco, mas 35 deles experimentaram em nove anos níveis de redução da mortalidade variando entre 5,6% até 34,8%, como foi o caso de Turmalina. Os que tiveram os maiores ganhos nesse indicador de mortalidade foram Turmalina, Santo Antônio do Jacinto, Capelinha, Couto de Magalhães de Minas, Joaíma, Coluna, Gouvêa, Coronel Murta, Águas Vermelhas, José Gonçalves de Minas, Veredinha, Itamarandiba e Itinga. A outra medida de mortalidade, esperança de vida ao nascer (eo), também indica ganhos importantes entre os municípios da região. Todos experimentaram algum nível de incremento na eo, mas em 32 deles os ganhos foram superiores a 5% entre 1991 e 2000. Os que lideraram os incrementos foram Santo Antônio do Jacinto, Capelinha, Joaíma, Couto de Magalhães de Minas, Turmalina, Coluna, Águas Vermelhas, Coronel Murta, José Gonçalves de Minas, Jacinto, Itamarandiba e Itinga. Mesmo que seja difícil explicar claramente as causas diretas desses incrementos considerando a singularidade dos municípios – já que em vários deles, por serem muito pequenos, qualquer expansão de serviços básicos pode provocar um efeito positivo bastante expressivo em curto espaço de tempo – conviria indagar sobre o nível desses indicadores nos maiores e mais urbanizados municípios da região. Dentre os 12 maiores municípios mencionados anteriormente, apenas Capelinha e Itamarandiba comparecem no ranking dos que obtiveram 113


Vale do Jequitinhonha

maiores ganhos na mortalidade. Nos demais, os incrementos foram menores porque em 1991 já estavam em situação melhor do que a maioria dos outros da região. Diamantina, por exemplo, viu aumentar sua eo de 66,2 anos para 68,7, Almenara de 62,7 para 64,7 anos e Araçuaí, de 64,1 para 67,6 anos de idade. Entre 1991 e 2000, a julgar pelas estimativas apresentadas no Anexo 3, as reduções nas taxas de fecundidade foram mais expressivas em termos percentuais do que as reduções nas medidas de mortalidade. Em 40 dos 55 municípios a redução do número médio de filhos por mulher foi maior que 20%; em 28 essa redução superou os 30% e em oito deles a queda da fecundidade em nove anos ultrapassou os 43%, chegando até 55,5% em Turmalina141. Nas comparações por sub-região a melhor situação do Alto Jequitinhonha, observada nos itens anteriores, ratifica-se no que tange ao indicador de esperança de vida ao nascer (67,2 anos), sucedida pelo Médio Jequitinhonha (66,7) e Baixo Jequitinhonha (65,0). A fecundidade no Alto Jequitinhonha é também menor no ano 2000 do que nas duas outras sub-regiões conforme se verifica na Tabela 2. Tabela 2 Esperança de vida e taxa de fecundidade do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais e Brasil em 1991 e 2000 Frações do Vale do Jequitinhonha, Minas e Brasil Baixo Vale Médio Vale Alto Vale Mesorregião Minas Gerais Brasil

Esperança de vida ao nascer

Taxa de Fecundidade Total

1991

2000

1991

2000

61,4 63,3 63,7 63,0 66,4 64,7

65,0 66,7 67,2 66,5 70,6 68,6

4,2 4,3 4,8 4,5 2,7 2,9

2,7 3,3 3,7 3,3 2,2 2,3

Fonte: Fundação João Pinheiro/IBGE

Em termos de comparações com Minas Gerais e Brasil, a região e sub-regiões ficam em nítida desvantagem porque os indicadores de Minas são melhores 141 Os municípios em que a Taxa de Fecundidade Total mais declinou entre 1991 e 2000 foram, nessa ordem: Turmalina, Leme do Prado, Palmópolis, Comercinho, Salto da Divisa, Santo Antônio do Jacinto, Joaíma, Diamantina, José Gonçalves de Minas, Berilo, Itinga, Santa Maria do Salto, Rio do Prado, Divisópolis, Bandeira, Jenipapo de Minas, Jordânia, Veredinha, Medina, São Gonçalo do Rio Preto, Gouvêa, Chapada do Norte, Rubim, Presidente Kubitschek, Coronel Murta, Jacinto, Aricanduva e Almenara.

114


Formação Histórica, Populações e Movimentos

que os do Brasil. Assim, quando a eo dos subespaços do Vale variavam, em 1991, de 61,4 a 63,7 anos, números mais baixos que os do Brasil, Minas já atingia os 66,4 anos. Nove anos depois os incrementos foram mais significativos em Minas, Brasil e região, nessa ordem, mas mantendo-se a inferioridade regional. Quanto à fecundidade o declínio (de 26,7% em nove anos) na Mesorregião foi mais incisivo do que o verificado no Brasil e em Minas Gerais, a despeito da taxa de fecundidade da região no ano 2000 ainda ser 1,4 vezes maior do que a do Brasil. Os indicadores examinados nesse item são de suma importância para aferir níveis de qualidade de vida da população, particularmente os dados de mortalidade, e são essenciais para verificar a evolução das tendências demográficas mais gerais. A rigor, é a partir dos diferenciais de mortalidade e natalidade que se estima o crescimento populacional, e o crescimento vegetativo em particular (estimativas não disponíveis nesse ensaio). Por outro lado, se a taxa de fecundidade declina e ultrapassa o chamado nível de reposição, 2,1 filhos por mulher (como já está ocorrendo atualmente em Minas Gerais), os estoques populacionais tenderão a se reduzir a longo prazo. Essa taxa vem caindo aceleradamente na região e sub-regiões do Jequitinhonha, mas é ainda bem superior ao nível de reposição. É provável, entretanto, dado o atual ritmo de queda da fecundidade regional, que em menos de 20 anos, salvo mudanças inesperadas, também no Vale do Jequitinhonha o número de filhos tidos por mulher seja insuficiente para repor a população a longo prazo (mantidas as tendências atuais de declínio da mortalidade). A população, então deve deixar de crescer em menor tempo ainda, tendo em vista suas baixas taxas de crescimento médio anual, como visto anteriormente para o período 2000/2007. Será esse o destino da região: perder população em termos absolutos em breve? Talvez. Todavia, pode-se apostar em outra direção, a da permanência de baixas taxas de crescimento demográfico. Embora, estejamos ingressando no reino das hipóteses, a dinâmica das migrações internas passa a ser o fator crucial para auxiliar o entendimento dessas tendências. De região estagnada claramente expulsora de população, o Vale do Jequitinhonha estaria evoluindo para uma situação distinta, a exemplo do que ocorreu com Minas Gerais em relação ao Brasil desde o Censo de 2000?

O movimento da população regional no espaço brasileiro A resposta a essa última questão só se apresentará mais completa após a publicação dos resultados amostrais do Censo de 2010, quando se poderá contar com novas estimativas confiáveis de migração intermunicipal no Brasil com base no critério da “data fixa” (movimentos migratórios restritos a cinco anos 115


Vale do Jequitinhonha

entre duas datas fixas). Os dados mais atuais sobre migrações internas focalizando o Vale do Jequitinhonha estão apresentados na Tabela 3. Tabela 3 Estimativas de migração interna para as sub-regiões do Vale do Jequitinhonha nos quinquênios 1975/1980, 1986/1991 e 1995/2000 Período

Emigrantes

Imigrantes

Saldo

Baixo Jequitinhonha

1995/2000 1986/1991 1975/1980

16540 18247 48729

7079 6124 8554

-9461 -12123 -40175

9125 6755 10619

-16759 -18333 -35804

22665 18023

8231 7659

-14434 -10364

36646

9878

-26768

Médio Jequitinhonha

1995/2000 1986/1991 1975/1980

25884 25088 46423 Alto Jequitinhonha

1995/2000 1986/1991 1975/1980

Fonte: Laboratório de Estudos Territoriais. Leste/Geografia-IGC/UFMG

Convém salientar que os números dessa tabela registram movimentos migratórios entre o agregado de municípios integrantes de cada sub-região com os municípios externos a ela. Os movimentos entre municípios de uma mesma subregião (microrregião) foram excluídos dessa análise, a fim de que a ideia de saldo migratório regional fique mais explícita. Ao final, as trocas populacionais são exclusivamente entre cada uma das três sub-regiões e o resto dos municípios brasileiros. Acrescente-se que as estimativas são baseadas em quesitos censitários que não respondem por todos os movimentos migratórios ocorridos entre dois censos. Isto por causa do critério da “data fixa”, isto é, migrante aqui é só o indivíduo que declarou ter residido cinco anos em município diferente do que reside à data de realização do Censo142. 142 Em 1980 não havia o quesito de “data fixa”, mas os dados de “última etapa”, sobre os migrantes que declararam seu tempo de residência no município igual a cinco anos, revelaram-se equivalentes aos do quesito de “data fixa”, conforme se demonstrou mais tarde.

116


Formação Histórica, Populações e Movimentos

Tendo em conta as questões formuladas no fim do item anterior, pode-se afirmar inicialmente que o nível de perdas populacional da região do Jequitinhonha já foi muito mais alto no passado. Os dados relativos ao período de 1975/80 ainda exprimem as tendências de várias décadas anteriores, nas quais era muito alta a emigração dos municípios do nordeste e leste mineiros. O Baixo Jequitinhonha, a sub-região mais deprimida na atualidade, perdeu 48.729 pessoas em cinco anos e ganhou 8.554 imigrantes, certamente provenientes de áreas ainda mais pobres (sul/sudoeste da Bahia) como os mapas ao final dessa análise irão mostrar. O Médio Jequitinhonha, a mais populosa do Vale, perdeu 46.423 pessoas e exibia um saldo negativo de 35.804 pessoas, enquanto o Alto Vale, sub-região que mais cresceu entre 1980 e 2007, ostentava o saldo negativo de 14.434 pessoas. Esses números reduzem-se significativamente no quinquênio 1986/1991, mas voltam a se ampliar no período 1995/2000. O exame dos saldos da Tabela 3 permite extrair conclusões meio impressionantes: o Baixo Vale, nos anos 70 (1975/1980), perdia 4,25 vezes mais população que vinte anos mais tarde; o Médio Jequitinhonha perdia 2,14 vezes mais que no período 1995/2000 e o Alto Vale, embora menos, perdeu quase duas vezes mais população que no último qüinqüênio (1,85). O que fez alterar os valores dos saldos ao final dos vinte anos que separam os períodos analisados? Além dos comentários anteriormente feitos sobre a expansão demográfica nas áreas urbanas de vários municípios da mesorregião, no âmbito sub-regional houve redução da emigração ou o aumento da imigração? Essa questão sempre sugere a ação combinada das entradas e saídas. Todavia, mediante comparações feitas com os números da emigração e imigração fica evidente que no caso do Baixo Jequitinhonha foi principalmente a redução do nível de saídas o fator mais decisivo. No Médio Jequitinhonha a redução do nível de perdas é o principal fator explicativo, mas a imigração foi relativamente mais importante que no Baixo Vale. Já no Alto Jequitinhonha, como o nível de perdas era menor nos anos de 1970, o que responde a questão aproxima-se mais da combinação emigração-imigração, ou seja, o diferencial entre o último e primeiro dos três quinquênios era de 1,2 vezes do lado das entradas e de 1,6 vezes do lado das saídas. Como já mencionado, essa pequena diferença (0,4) ainda a favor do saldo negativo, explicita a importância da imigração na sub-região, particularmente nas principais áreas urbanas. Feitas as análises acima caberia indagar sobre a origem e o destino dos migrantes do Jequitinhonha, sobretudo porque a lógica das correntes da emigração costuma coincidir, em muitos aspectos, com a lógica espacial das contracorrentes de imigração. De fato, os resultados da observação dos seis mapas em seqüência dão força a essa assertiva, mas não sem antes ressaltar que os fluxos de saída da região (emigração) são muito mais numerosos do que os fluxos de 117


Vale do Jequitinhonha

entrada (imigração). O fato de, entre os fluxos de imigração significativa, haver migração de retorno (dados não mostrados nesse trabalho), indica que deve ser elevado o sentimento de pertencimento dos naturais do vale do Jequitinhonha, já que o insucesso nas tentativas de fixação fora da região estimula a volta, inclusive porque os laços com familiares que ficaram em suas pequenas propriedades rurais e urbanas permanecem fortes. De outra parte, os emigrantes do Vale devem estabelecer redes sociais relativamente vigorosas nas tantas localidades de destino para onde costumam ir, como sugere o exame dos seis mapas subseqüentes, a julgar pela superposição de diversos pontos de destino que se repetem nos três quinquênios para os quais há dados de migração intermunicipal. Essas redes devem proteger o migrante que chega do Vale, orientá-lo para as novas frentes de trabalho ou facilitar sua volta para o Jequitinhonha diante de situações de crise econômica local ou dificuldades de emprego, etc. O exame mais detido dos mapas considerando a emigração e a imigração de cada sub-região permite retirar as conclusões que se seguem. Os emigrantes do Alto Jequitinhonha procuravam com mais intensidade o core da região metropolitana de São Paulo (RMSP) nos anos de 1970 do que nos anos de 1990; provavelmente, porque o interior paulista, enquanto uma continuidade espacial do Sul de Minas, foi se tornando um destino mais atraente com o passar do tempo. Da mesma forma, o oeste do Paraná tornou-se menos atraente a partir dos anos 70 e a dispersão dos naturais do Vale foi alcançando o Mato Grosso do Sul, Goiás, Mato Grosso, Rondônia, a região do Bico do Papagaio e o Distrito Federal. Já a região metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) permaneceu como uma área preferencial de destino dos naturais da sub-região, inclusive pela distância relativamente pequena e disponibilidade de estradas pavimentadas desde os anos 70. O entorno da sub-região constitui uma importante área de emigração, em especial os municípios vizinhos integrantes das bacias do São Francisco e do Mucuri, além do resto leste de Minas. Os imigrantes do Alto Jequitinhonha são procedentes, em sua maioria, de municípios vizinhos integrantes do Médio Jequitinhonha e da bacia do Mucuri (região de Teófilo Otoni); da RMBH e municípios próximos integrantes da bacia do São Francisco; do interior paulista e RMSP; da área metropolitana do Rio de Janeiro e municípios da Zona da Mata mineira; e, há mais tempo, do oeste do Paraná (anos 70 e 80). Nos três quinquênios analisados, os emigrantes do Médio Jequitinhonha se mostraram bem mais numerosos tanto em termos de número de indivíduos quanto de localidades procuradas do que os das demais sub-regiões. Foram principalmente para: a) o entorno sub-regional, o que inclui os municípios 118


Formação Histórica, Populações e Movimentos

vizinhos do Baixo e Alto Jequitinhonha, municípios do Leste de Minas e vários municípios baianos, particularmente os do Sul e Sudoeste da Bahia; b) vários municípios do interior paulista; c) a RMBH, a RMSP, Brasília e Distrito Federal e a região metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), nessa ordem; e c) muitos municípios do Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondônia, Pará e Maranhão. Já os imigrantes do Médio Jequitinhonha vieram principalmente do entorno regional (leste de Minas, Baixo e Alto Jequitinhonha, Norte de Minas e sudoeste da Bahia); interior paulista, RMSP, RMRJ, RMBH e entorno de Brasília. Por último, os destinos preferenciais dos emigrantes do Baixo Jequitinhonha foram: a) o entorno regional, com mais ênfase para os municípios baianos; b) os municípios do leste de Minas formadores de um colar de cidades que vai até o Espírito Santo; c) a RMBH, a RMSP e interior paulista; d) o Triângulo de Minas e Distrito Federal. Já as áreas de procedência dos imigrantes dessa sub-região (relativamente menos numerosas que nas duas outras subregiões) foram, sobretudo, as que envolvem o entorno regional (notadamente os municípios integrantes dos pólos de Teófilo Otoni, Governador Valadares e Ipatinga), a RMBH, o Triângulo mineiro e o oeste paulista.

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Vale do Jequitinhonha

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Convenções Cartográficas 20°0'0"S

Municípios de referência

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Alto Jequitinhonha (20)

Localidades de destino 1 ponto = 10 pessoas Emigrantes: 75/80 (36 646) Emigrantes: 86/91 (18 023) Emigrantes: 95/00 (22 665) Rodovia Hidrovias 30°0'0"S

Plataforma Continental

30°0'0"S

Países da América do Sul Oceano 70°0'0"W

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Formação Histórica, Populações e Movimentos

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Convenções Cartográficas 20°0'0"S

Municípios de referência

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Baixo Jequitinhonha (16)

Localidades de origem 1 ponto = 10 pessoas Imigrantes: 75/80 (8 554) Imigrantes: 86/91 (6 124) Imigrantes: 95/00 (7 079) Rodovia Hidrovias 30°0'0"S

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Municípios de referência

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Baixo Jequitinhonha (16)

Localidades de destino 1 ponto = 10 pessoas Emigrantes: 75/80 (48 729) Emigrantes: 86/91 (18 247) Emigrantes: 95/00 (16 540) Rodovia Hidrovias 30°0'0"S

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Países da América do Sul Oceano 70°0'0"W

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Formação Histórica, Populações e Movimentos

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Localidades de origem 1 ponto = 10 pessoas Imigrantes: 75/80 (10 619) Imigrantes: 86/91 (6 755) Imigrantes: 95/00 (9 125) Rodovia Hidrovias 30°0'0"S

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Convenções Cartográficas 20°0'0"S

Municípios de referência

20°0'0"S

Médio Jequitinhonha (19)

Localidades de destino 1 ponto = 10 pessoas Emigrantes: 75/80 (46 423) Emigrantes: 86/91 (25 088) Emigrantes: 95/00 (25 884) Rodovia Hidrovias 30°0'0"S

Plataforma Continental

30°0'0"S

Países da América do Sul Oceano 70°0'0"W

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Formação Histórica, Populações e Movimentos

Conclusão Na mesorregião do Jequitinhonha os municípios são de tamanho modesto, se distribuem equilibradamente pelo espaço regional, a vida rural é ainda relevante, o atual processo de urbanização é muito expressivo, várias cidades que floresceram no passado ainda são importantes na atualidade e Diamantina, o maior município, embora não alcance hoje os 50 mil habitantes, ao longo dos últimos 300 anos, mais de uma vez, contou com um volume populacional similar ou maior, nos momentos em que se perfilava ao lado das cidades mais populosas da capitania, província e depois estado de Minas Gerais. A suposta falta de população pode ser causa da estagnação econômica regional? Os dados mostraram que há crescimento demográfico na região, ainda que desigualmente distribuído. As taxas são modestas, é verdade, mas o Alto Jequitinhonha cresce mais que o Médio e o Baixo Vale. Há também um excesso de homens em vários municípios (algo que não chega a ser preocupante) provavelmente pela existência de oferta de trabalho braçal nas áreas rurais, já que a ausência de grandes cidades impede a consolidação de um setor de serviços moderno capaz de absorver volumes significativos de mão de obra feminina. A falta de população em idade ativa nas áreas não urbanas em decorrência de um “interminável” êxodo rural parece comprometer a perspectiva de expansão de atividades agrícolas que requerem mão de obra jovem. As evidências indicam, entretanto, que as periferias urbanas crescem física e demograficamente de forma significativa, sustentadas, principalmente, por moradores com experiência na lavoura, boa parte deles mantendo seus vínculos com o trabalho rural. As remessas de recursos financeiros de emigrantes do Vale e os retornos temporários de indivíduos com experiência na Construção Civil dão materialidade a uma série de bairros periféricos, inexistentes há 20 anos. As perdas populacionais, mais altas no passado, são ainda significativas na atualidade. Contudo, as antigas previsões de um colapso demográfico regional não se confirmaram. Os déficits de mortalidade por causas evitáveis, tão típicos no passado, diminuem sistematicamente. Todos os municípios experimentaram melhoras nos indicadores de mortalidade, com redução da mortalidade infantil e aumento significativo da esperança de vida. Na outra componente da dinâmica demográfica as estimativas indicam uma drástica redução do número médio de filhos por mulher. Em 40 dos 55 municípios a fecundidade encolheu mais de 20%. A tendência de as famílias se tornarem menores no Vale do Jequitinhonha parece irreversível, mesmo que com um visível retardo em relação ao Brasil e Minas Gerais. Assim sendo, o colapso populacional teria sido apenas adiado por mais algum tempo, já que a natalidade cai mais rápido que 125


Vale do Jequitinhonha

a mortalidade? Improvável. Mesmo que a região dificilmente venha sustentar um crescimento francamente positivo no futuro, a melhoria das condições de vida, a expansão gradativa da infraestrutura econômica e o próprio sentimento de pertencimento mantém vivas as redes sociais da migração e explicam a recorrência da migração de retorno. Alguns dos milhares de indivíduos que durante décadas saíram da região têm voltado e/ou podem voltar após anos de experiência migratória. Os dados de migração intermunicipal deixam claro que, a despeito da redução generalizada do nível de perdas por emigração no quinquênio 1995/2000, o Baixo Jequitinhonha, sucedido pelo Médio Jequitinhonha, ainda exibem proporções de saldos negativos expressivas, bem mais que o Alto Jequitinhonha. Os emigrantes do Vale do Jequitinhonha são ainda muito valorizados pelos agenciadores de mão de obra de presença visível em várias cidades da região. Em sua maioria jovens, os migrantes foram e ainda são bastante explorados em diferentes frentes de trabalho do país, muitos deles em atividades sazonais, como as do corte da cana no interior paulista. A RMSP e vários municípios do interior paulista constituem, há muitos anos, um dos principais destinos do emigrante da região. O fator distância do lugar de origem é ainda importante para muitos emigrantes em busca de ocupação, embora existam naturais do Vale em milhares de localidades de norte a sul do país. Uma série de subespaços parecem se repetir mais intensamente nas preferências dos emigrantes do Jequitinhonha, assim como também é desses lugares a procedência dos imigrantes que chegam à região. A partir dos anos 70 os lugares de destino, de fato, dispersaram-se, atingindo Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Rondônia, a região do Bico do Papagaio e o Distrito Federal. Contudo, alguns destinos tradicionais ainda são importantes e devem dar expressão às redes sociais da migração, tais como a região metropolitana de São Paulo, o Sul de Minas e interior paulista, a região metropolitana de Belo Horizonte, a Zona da Mata, o Rio de Janeiro, municípios do sul e sudoeste da Bahia, os municípios do entorno das três sub-regiões, em especial os vizinhos integrantes das bacias do São Francisco, do Mucuri, e do Leste de Minas. Nossas análises poderiam ir além e extrapolar outras variáveis, uma vez que os censos brasileiros permitem investigações mais exaustivas. São muitas as perguntas que foram encaradas, algumas não respondidas e outras reformuladas. Não se pode imputar certezas nas análises sobre movimentos migratórios porque a dúvida é fruto da liberdade dos movimentos do ir e vir, das mudanças regionais internas, das políticas públicas de mitigação da pobreza, e até de uma série de informações que chegam às pessoas muito rapidamente na atualidade.

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Formação Histórica, Populações e Movimentos

Qual a tendência futura das migrações de retorno? Até que ponto o retorno é permanente? Entre populações com tanto tempo de experiência migratória a fixação não se afigura irreal? Mas essas populações parecem não abandonar a região de origem, talvez porque nela ficaram parentes, amigos, filhos, netos, pais e avós. A tese da oscilação das tendências pode ser mais consistente em um contexto de baixo crescimento demográfico e econômico. Muitos vão e voltam, em curto espaço de tempo ou em intervalos de tempo maiores, várias dessas pessoas introduzem dinamismo econômico significativo nos municípios para onde retornam ainda jovens ou após a aposentadoria. Por fim, é difícil, mas não impossível reorientar certas práticas monodisciplinares das Ciências Sociais. Análises, estrito senso, sobre variáveis econômicas (indústria, agricultura, serviços, renda, crédito, poupança, investimento), ou sobre cultura, classes sociais, instituições e regimes políticos são determinantes para muitos analistas. Contudo, se ignoram as populações, ingressam num mundo sem gente, sem as pessoas nos seus territórios. Essa forma usual de pensar gera poucas conclusões sólidas, capazes de ultrapassar as amarras que o positivismo nos legou e que inviabiliza a transdisciplinaridade.

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Foto: Arquivo Polo


Comunidades Rurais, Cultura e Água no Alto Jequitinhonha 143

Flávia Maria Galizoni Eduardo Magalhães Ribeiro José Murilo Alves de Souza João Antônio Gonçalves

Introdução

D

esde o final dos anos 1990, após um período prolongado de estiagem, o tema água se tornou uma questão palpitante para as comunidades rurais do alto Jequitinhonha. Mas este não é um tema novo. A associação entre Jequitinhonha e seca data já do final do século XIX, na denominada seca do noventinha, a primeira registrada pela literatura. Ela foi comentada em seus aspectos mais dramáticos pelos autores da região; três décadas depois, outra seca na região se associou a um ciclo de fome e à chegada de flagelados do sudoeste baiano. No correr do tempo, e principalmente depois dos anos 1960, a intermitência das secas direcionou uma série de ações públicas emergenciais para facilitar o acesso à água. Foram usadas técnicas como a per143 As pesquisas que deram origem a este texto foram apoiadas pelo CNPq (504.111/2003-5; 553690/20051; 552307/2007-6) e pelas comunidades rurais do Alto Jequitinhonha, a quem todos os autores agradecem. Alguns dos resultados apresentados aqui foram publicados em: GALIZONI, F. M; RIBEIRO, E. M.; CALIXTO, J. S.; AYRES, E. C. B Águas comunitárias no Baixo Jequitinhonha. In: Cadernos do Ceas. Salvador, janeiro/fevereiro de 2004, nº 209. ISSN 0102-9711; GALIZONI, F. M.; RIBEIRO, E. M.; Lima, V. P. L.; SANTOS, I. F.; CHIODI, R. E.; LIMA; A. L.; AYRES, E. C. B. Hierarquia de uso das águas nas estratégias de convívio com o semiárido em comunidades rurais do Alto Jequitinhonha. Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 39, nº 1, jan-mar. 2008.

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Vale do Jequitinhonha

furação de poços artesianos, a construção de barragens de perenização ou captação de água em rios para paliar a escassez. Quase todas essas alternativas, com maior ou menor grau de acerto, foram importantes para abastecer a população rural. Mas, a cada novo ciclo de seca o problema tem que ser enfrentado novamente, pois a escassez se expande, as nascentes desaparecem, córregos perenes secam, e a escala do desastre se amplia. Comunidades rurais do Jequitinhonha e suas organizações sociais, por sua vez, construíram estratégias produtivas, reprodutivas e políticas para lidar com essas situações críticas e cíclicas de escassez de água. Criaram sistemas familiares de consumo, critérios de prioridade de uso e técnicas de gestão comunitária da conservação, de abastecimento e acesso às fontes. Aprenderam a organizar a produção, pautando-a pela oferta de água e, em casos extremos, pela ausência dela: a proximidade com fontes d’água é determinante na geografia dos sítios e comunidades, para a localização das casas e lavouras familiares. A qualidade de vida e a fartura de alimentos também dependem da água, e assim se estabelece uma urdidura cultural e produtiva entre famílias, espaço e água. A preocupação central deste texto nasceu de estudo iniciado em 2000 no alto Jequitinhonha, em parceria com o Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), cujos objetivos eram: analisar quais as estratégias, as comunidades e as famílias rurais construíram para a utilização e gestão da água em uma região de escassez deste recurso; formular uma metodologia que possibilitasse a compreensão e sistematização de formas comunitárias de gestão de recursos naturais; e elaborar técnicas para que essa organização atuasse na área de educação ambiental e conservação dos recursos hídricos. Os resultados foram surpreendentes. Percebeu-se que a falta de água era algo muito mais complexo do que sua escassez absoluta. Existia escassez, mas havia algo mais profundo, mais complicado, na relação entre grupos sociais e água. Havia um apurado sistema de classificação dos tipos e fontes d’água, normas sofisticadas de usos, gestão e regulações comunitárias dos recursos hídricos. E isso se baseava em costumes locais fundamentados em saberes experimentados, vividos e refinados. Saberes que são base de uma cultura, que fundamentam formas de acesso e gestão dos recursos naturais, e em especial das águas.

Alto Jequitinhonha No percurso da serra do Espinhaço até o litoral sul da Bahia, onde deságua, o rio Jequitinhonha drena uma porção extensa e diversificada ao nordeste 130


Formação Histórica, Populações e Movimentos

de Minas Gerais. Grosso modo, o Jequitinhonha mineiro pode ser apartado em duas áreas distintas: alto e baixo144, que apesar de serem espaços contínuos se revelam diversos. O alto Jequitinhonha tem um relevo marcado por espaços distintos, mas ao mesmo tempo complementares: grotas e chapadas. As grotas são as meias encostas, vales de áreas úmidas e frescas onde se localizam, na maior parte das vezes, as nascentes d’água. A contraposição às grotas são as chapadas: grandes extensões de terras planas e elevadas, espigões naturalmente pouco férteis, com escassas fontes de água. Nesta região, os laços de parentesco construíram as comunidades rurais sobre uma terra de herança. Quase sempre, terra no bolo, resultado de herança indivisa, sem partilha formal, dividida parcial e temporariamente por acordo entre herdeiros. A terra está no comum da família.145 Nas grotas, a principal baliza de localização das famílias é o acesso à água. As famílias vão se localizando próximas às fontes (nascentes ou córregos), de modo que disponham de água para consumo doméstico e para atividades produtivas. Começando na casa de morada, o terreno familiar se alonga de forma descontínua pelo espaço, procurando as várias possibilidades do meio: cultura, carrasco, campo, capão, chapada.146 A maior parte das áreas de produção e trabalho familiar também está localizada nas grotas: o terreiro onde são cultivados frutos, canteiros de plantas medicinais, flores, temperos, e onde são manejadas criações como galinhas e porcos; as terras de cultura onde se cultiva milho, feijão e todas as miunças que são plantadas entre eles como abóbora, quiabo, amendoim, andu, feijão-catador, tantos outros; e as áreas comunitárias de beneficiamento da produção, engenho de cana, tenda de farinha e alambique.147 A proximidade com a água é, assim, fundamental para a organização da família no espaço: define o local da moradia; é crucial na estruturação do trabalho familiar e é essencial para definir as atividades produtivas responsáveis por gerar mantimento – por meio da produção de alimentos – e renda para as famílias. As chapadas, por sua vez, são cobertas por vegetação de campo: poucas árvores, retorcidas e capins nativos; o solo tem baixa fertilidade natural. Nelas 144 A regionalização do IBGE é distinta desta, mas esta é mais corriqueira e dá conta de agrupar áreas com características semelhantes. A área designada neste artigo por alto Jequitinhonha corresponde à parte do vale acima da foz do rio Araçuaí e refere-se mais precisamente aos municípios de Turmalina, Veredinha, Chapada do Norte, Berilo, Minas Novas, José Gonçalves de Minas e Leme do Prado. 145 Para maiores detalhes sobre o regime agrário do alto Jequitinhonha ver Galizoni (2007). 146 Sobre a diversidade ambiental no Jequitinhonha consultar Ribeiro e Galizoni (2000). 147 Sobre produção familiar no Jequitinhonha ver Graziano (1986); Amaral (1988) e Noronha (2003).

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Vale do Jequitinhonha

se situam as soltas: áreas usadas comunitariamente para pastagens e extração de recursos da natureza: frutos, lenha, madeira, flores, fibras, caça e plantas medicinais. Nas chapadas existem áreas preferenciais para coleta de uma família, mas outras podem usufruir sem pedir consentimento, respeitando preceitos consuetudinários que regulam a coleta dos recursos da natureza. Esses preceitos estão condensados em códigos comunitários de condutas que não estão escritos, mas são vividos e recriados nas práticas das famílias.148 Parte das chapadas usadas em comum por famílias e comunidades foi alvo de cultivo em larga escala de eucalipto. Iniciado em meados dos anos 1970 como um projeto de desenvolvimento para a região, o plantio do eucalipto por empresas foi fomentado pelo governo federal por meio de incentivos e benefícios fiscais. Acreditava-se que as extensas chapadas cobertas por vegetação característica de cerrado era um vácuo de homens e recursos naturais. Assim, retirou-se a vegetação nativa para a implantação da monocultura de uma planta exótica, o eucalipto. A monocultura do eucalipto originou duas principais consequências: a intensificação do uso da terra nas grotas e o desmatamento da vegetação nativa nos mananciais e em suas áreas de recarga.149 Apesar das restrições impostas pela privatização de chapadas, as famílias de agricultores reorganizaram internamente seu sistema de produção, ampliaram alternativas como a migração sazonal, intensificaram o uso familiar das terras nas grotas e recriaram o sistema de uso comum nas chapadas remanescentes.

Água pequena Apesar da distribuição irregular de chuvas durante o ano, o Jequitinhonha tem uma situação peculiar no semi-árido: existem nascentes que abastecem boa parte das famílias rurais e são fundamentais para a localização da moradia e a produção familiar. São designadas como nascentes pelos moradores aquelas águas que brotam da terra com um volume forte, e correm, formando pequenos córregos. Existem nascentes com cabeceiras e sem cabeceiras; estas são as que irrompem nos brejos. As águas de nascentes geralmente são captadas pelas famílias por meio de um sistema de mangueiras e, muitas vezes, logo abaixo da nascente é construído 148 Ribeiro et al. (2005) indicaram que esses preceitos eram ambientalizados, regulando o acesso e intervindo na quantidade e qualidade do consumo do ambiente. 149 Analisaram a forma de implantação das empresas reflorestadoras nas chapadas e suas conseqüências, principalmente, Graziano (1986); Furtado (1985); Silva (s.d.); Moura (1988), Calixto et al. (2009); Ribeiro; Galizoni (2007).

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Formação Histórica, Populações e Movimentos

um pequeno barramento que não interrompe o fluxo da água, mas permite juntar volume para alimentar as mangueiras que abastecem as casas. A forma como a água surge, de acordo com as famílias de agricultores, é importante para conhecer a qualidade das nascentes. A água pode irromper num jorro que se abre na superfície da terra, com força, “fervendo”, borbulhando, levantando areia junto, formando os brotos: “– É uma água mais global”, define o senhor Isaías, agricultor do município de Turmalina. Os brotos ocorrem mais nas encostas das chapadas, mas está se tornando difícil encontrá-los, restam em poucos lugares.150 No alto Jequitinhonha existem as veredas: surgem em espécies de depressões, de lagoas, que quase sempre localizadas no assentado das chapadas: “a vereda é vizinha da chapada”, revelam os agricultores, mas vereda também pode ser “uma barra do campo”, isto é, estar estabelecida na transição das chapadas para meias encostas. As águas das veredas vão se infiltrando aos poucos, abastecendo as nascentes das grotas. As nascentes de serra (ou de rocha ou de pé de morro) localizam-se nas meias encostas das chapadas. Na definição dos agricultores: “A água sai de dentro da fenda da serra. Sai na pedra. É a água que garante mais tempo, é a mais forte. Não diminui, e quando diminui é muito pouco, é uma água que mantém mais”. São consideradas as melhores nascentes, mais puras, normalmente possuem uma vazão segura, por serem mais profundas. Nas nascentes de serra dificilmente as famílias usam a terra ao redor do manancial, captam a água em mangueiras e a levam até a casa. Já as nascentes de brejo, localizam-se em terrenos quase sempre mais baixos, de textura de barro, agricultáveis; se comparadas com as nascentes de serra possuem qualidade inferior. São, geralmente, nascentes rasas e expostas, por isso, tornam-se frágeis e fáceis de serem assoreadas. São também as águas mais pressionadas, porque além de serem utilizadas para beber e para consumo doméstico, seu entorno serve para usos agrícolas, tornando-se assim mais suscetíveis à destruição: “Nascente de brejo tem dois usos: o uso do consumo [da água] e o uso da terra, a terra de brejo tem uso.” 151 Especiais mesmo são as nascentes de capão: finas, frescas e fortes, muito apreciadas por sua qualidade. O capão é sempre uma cabeceira de água: uma mata densa, de árvores de cerne bem vestidas, que se localiza quase sempre na beira da chapada; quando o capão ocupa uma gleba pequena recebe o nome de caponete. Os capões e caponetes merecem cuidados por parte das famílias de agricultores e comunidades rurais mesmo quando estão no terreno dominado por uma família; são tratados e 150 A literatura classifica as nascentes principalmente em difusas, que são aquelas que surgem em terrenos mais baixos podendo haver uma ou mais nascentes menores, provocando um encharcamento do solo; e nascentes pontuais que são aquelas que surgem devido ao afloramento da camada impermeável, ocasionando desta forma o surgimento de água em um determinado ponto. Cf. Pinto (2001). 151 Senhor Dedé, Comunidade Leão, Turmalina, alto Jequitinhonha.

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regulados como áreas de uso comum, existem vários preceitos e cuidados comunitários que não permitem uso e exploração indiscriminada e predatória. Na comunidade dos Macedos (Turmalina, alto Jequitinhonha), por exemplo, o dono do terreno cedeu o usufruto do capão para a comunidade, que trata essa área como um bem comum. Entretanto, enquanto havia abundância de água, alguns caponetes e capões também foram usados para fazer arrozais e, por isso, enfraquecidos. Quando percebem que eles estão sendo ameaçados, as comunidades passam a negociar internamente e a pressionar para que sejam conservados. Assim, na comunidade de José Silva (Turmalina, alto Jequitinhonha), um mutirão comunitário cercou a nascente para resguardá-la e protegê-la. Mas isto ocorreu após intensas negociações internas entre as famílias.152 Entretanto, nem todas as águas nascem saborosas. Características do terreno e do ambiente podem deteriorar o gosto da água. O tipo de lodo que se forma, por exemplo, é um indicador confiável para verificar a qualidade: nascentes com lodo verde produzem água boa e sadia para beber; as que têm lodo amarelo são consideradas ruins, têm gosto de barro ou ferrugem, não são sadias, classificadas como de segunda qualidade. A exposição ao sol também influi na resistência e duração das nascentes: as que recebem o sol da tarde – forte e impiedoso – secam com mais facilidade se forem desmatadas; já nascentes que recebem o sol matinal, mais fresco, são resistentes. A vegetação nativa é valorizada pelas famílias de agricultores como um garantidor da saúde, resistência e qualidade dos mananciais: “A água é acompanhada por animais e vegetais. Ela gosta” explicou o senhor João, da comunidade Poço D’água (Turmalina, alto Jequitinhonha). Árvores como o landim, pindaíba, gameleira e embaúba e plantas como água de colônia, lírio e taioba são típicas de nascentes e ajudam conservar a água em quantidade e qualidade. Já a taboa interfere prejudicialmente na qualidade da água, deixando-a com sabor de ferrugem e cor amarelada. Na própria conceituação de nascentes realizada pelos agricultores, a importância da vegetação está associada à qualidade do manancial, uma boa nascente é onde tem mata nativa conservada: “É aquela que não está descortinada”, define a senhora Joana da comunidade de Caquente, em Veredinha, alto Jequitinhonha. Os agricultores são categóricos: “água boa, terra ruim” e vice-versa: “terra boa, água ruim”. A qualidade da água está inversamente relacionada com a qualidade da terra. As terras de cultura – naturalmente férteis para lavoura – têm nascentes que não são consideradas de boa qualidade porque têm sabor forte. Já as terras de baixa fertilidade natural, as chapadas e os campos, impróprias para lavoura no sistema de cultivo dos agricultores, são onde vertem as melhores águas. 152 Cf. GRAZIANO, 1986. Em seu estudo no alto Jequitinhonha, Graziano percebeu também a importância dos capões para a conservação das águas, de acordo com ele os capões eram – e são – considerados sagrados pela população local, que se esforça a qualquer custo para que essas áreas permaneçam intactas.

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No correr dos tempos e das gerações, as famílias de agricultores foram aprendendo a conhecer metodicamente as diferenças entre os vários tipos de mananciais, classificando a forma como a água nasce, o relevo, a vegetação, o ambiente, o tipo da terra, a exposição ao sol e o lodo que se forma de modo a precisar o caráter de cada nascente, usos possíveis e os cuidados necessários para com ela. Assim, dotados da sabedoria transmitida pelos “antigos” e pautados pela própria experiência de ver esse saber em ação na prática, experimentado e alargado por eles mesmos, agricultores e agricultoras sabem conhecer as possibilidades das nascentes, conseguem perceber sinais de vitalidade ou fraqueza em suas fontes. A concepção ideal do que é uma boa nascente cruza várias informações com relação ao relevo, às características ambientais, mas também aos tipos de usos e pressão social a que elas estão submetidas: a boa nascente é resguardada, sem mexida de gente, não é roçada e nem recebe sabão de lavagem de roupa, não tem acesso de gado e de outras criações. Mas essa concepção tem sido, forçosamente e a contragosto, flexibilizada: a boa nascente é principalmente aquela que ainda tem água. Quadro 1: classificação de nascentes no Jequitinhonha Tipos de nascentes

Características

Localização

Qualidade da água

Brotos

irrompem num jorro, barra das chapadas borbulhando

Minadouros

marejam, poucos

Mãe d’água

conjuntos de minas que terras de cultura, boa/média formam um tremendal brejos

Vereda

infiltram aos poucos, Assentado da chaabastecendo as nascentes pada ou barra de boa das grotas campo Serra / rocha

Nascente (mina)

Brejo

Capão

vertem

boa

aos grotas, terras de boa/média cultura

maior vazão, resistente, profunda, difícil acesso, mais conservada rasa e exposta, terreno de barro, frágil e fácil de ser assoreada

meia-encosta, pé da boa serra, morro fundo da grota, termédia ra de cultura

cabeceira de água, contém árvores altas, mabeira da chapada deiras de lei, terra de coloração preta

boa

Fonte: Galizoni, 2005.

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Para as famílias de agricultores as nascentes são as águas mais preciosas, consideradas as melhores e mais nobres para se beber, mas, se der, também são usadas para os outros usos domésticos e produtivos de que necessitam. Dessa forma, são as águas de nascentes as que mais interessam às famílias rurais para abastecimento, e consequentemente as que mais as mobilizam para garantir sua quantidade e qualidade.

Águas da comunidade Frequentemente, muitas famílias utilizam e partilham nascentes, minas ou cacimbas. Mesmo quando as nascentes se localizam no terreno de uma pessoa, outras – que podem ser parentes ou não – também apanham água nela. O senhor Fulgêncio, que divide sua nascente com mais quatro famílias, revela: “Eles precisam dessa água, eu não posso negar.” É importante perceber que há um princípio costumeiro prescrevendo que a água deve ser partilhada, mesmo quem é privilegiado com fonte de águas em seu terreno, quem quiser pode ir lá pegar água para beber: “Não é uma água minha, é partilhada, é dividida”. O fato a seguir fornece pistas sobre obrigações recíprocas com relação à água. O senhor José, da comunidade do córrego de São Miguel (Turmalina, alto Jequitinhonha), morava próximo a uma cabeceira d’água, situada no seu terreno: esta nascente servia a ele e a mais sete famílias. A casa dele era a primeira pela qual a água passava. A área do senhor José era muito boa para fazer regadio e horta, atividades importantes para alimentação e renda da família. Mas, de acordo com ele, foi preciso parar com esse regadio, porque se continuasse iria cortar a água das famílias situadas abaixo. Para que elas prosseguissem com água ele restringiu suas atividades produtivas. Essa decisão afetou diretamente a renda e a alimentação de sua família. Não foram poucos os casos encontrados de famílias que, conforme as águas iam diminuindo, também foram restringindo suas atividades para que outros vizinhos, que usavam da mesma fonte, não tivessem o consumo comprometido. A água, de acordo com um agricultor “é um bem precioso; ninguém segura. Só se for pessoa perversa. (...) A água é livre.” Mas as comunidades constroem acordos a respeito de como a água deve ser usada. A trajetória percorrida pelas águas é seguida por regulações e dosagens: as nascentes estão sob controle familiar; os córregos pertencem ao domínio comunitário, e os rios localizam-se no âmbito público. Como as águas de nascentes são as melhores, são também mais disputadas pelas famílias, sendo que algumas têm acesso à água de nascente, outras não. Entretanto, como é construído esse acesso diferente? 136


Formação Histórica, Populações e Movimentos

Pode-se afirmar que há um critério geográfico: se a água brota no terreno de alguém, essa pessoa tem certa primazia sobre ela, pode regular o uso do minadouro, definir algumas normas aos consumidores, cuidar daquela nascente. Isto não quer dizer que a controle totalmente, pois o domínio de uma família sobre uma fonte d’água é objeto de constrangimento comunitário: não se pode interromper o curso d’água ou sujá-la através de uso abusivo –, mas essa coerção se restringe aos membros da comunidade. Porém, parte das vezes, as nascentes estão em terrenos fora da influência de uma comunidade e aí pouco se pode fazer. Outro critério de acesso à água pequena (nascentes) é o parentesco, porque as nascentes dificilmente – excetuando áreas de fazendeiros – são de domínio totalmente privativo de uma só pessoa. Em quase todas as comunidades as nascentes estavam sob o controle de famílias, entendida aqui como um grupo extenso: pais, filhos, tios, primos e avós. Esse fato está ligado às formas de acesso à terra: terrenos de heranças familiares vão se entrelaçando sem uma divisão formal no interior da família; desta forma, terra e recursos da natureza são compreendidos como patrimônio da família, partilhados entre seus membros. A partilha é regulada pelo pressuposto da água como um bem comum. O agricultor José, que usa água em conjunto com mais quatro famílias, ao ser indagado se somente tivesse aquela água e ela só desse para uma família, respondeu: “Não tem problema, se outra família chegasse e pegasse primeiro eu não podia reclamar, porque a água é de Deus, foi feita para todo mundo; então se ele chegasse primeiro, eu não podia reclamar.” Um vizinho que estava ao lado, observando a entrevista, pediu a palavra e disse: “Mas se der para gente, também, ele não pode levar tudo, ele tem que deixar um pouco.” O que se percebe é que não se pode negar a água, mas há gradientes de partilha. Estes são estruturados a partir de duas bases: uma classificação da qualidade das fontes d’água – porque para as famílias entrevistadas, a água é plural; e há uma ética de uso: sempre que os agricultores e agricultoras discorriam sobre água, falavam antes de tudo sobre uma ética de uso das águas.

Escassez Comunidades e famílias de lavradores do vale do Jequitinhonha mineiro, principalmente da calha alta, têm observado com apreensão a diminuição e o desaparecimento das fontes de água. Nas comunidades, os moradores relatam sobre nascentes que conheceram quando crianças e que já não correm mais, estão mortas, ou se correm não têm força para chegar a seus pontos originais de desaguar.153 153 Observam-se muitas nascentes “mortas” em toda a região. Chamaram atenção os casos das comunidades de Lagoa, Moreira e Ribeirão das Posses, onde todas as nascentes secaram ou não chegam até os córregos, e estes, por sua vez, não correm por inteiro desde a cabeceira até chegar ao rio. Ver Galizoni (2005).

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Em alguns locais, como é o caso da comunidade de Moreira, no município de Turmalina, famílias de lavradores revelavam que: “– Córrego que chega perto do rio é quase nenhum. O córrego só tinha um pouquinho de água em cima, distância de nada... só merejava um pouquinho ali (...). O córrego grande estava seco e os galhos [córregos menores que o abasteciam] tudo seco, e nenhum chega até o rio.” Com a secagem de nascentes, famílias têm que passar a consumir as águas “pesadas e grossas” dos rios, de pior qualidade. E cada vez mais comunidades estão dependendo dos rios para se abastecer. E os rios, por sua vez, como não estão mais recebendo as águas dos córregos, vão tendo seu volume e tamanho diminuídos, minguando: “– As nascentes estão secando e está todo mundo correndo para as águas grandes; logo a água grande vai virar pequena”, avaliavam os agricultores. Quando inquiridos sobre as causas da destruição dos mananciais, as famílias de agricultores discorrem sobre os motivos. Apontam, principalmente, duas causas: uma, que está relacionada com a exploração agrícola, e outra – que na verdade são muitas – que está fora do alcance de suas decisões e veto, como o desmatamento da vegetação nativa para o plantio de eucalipto, as construções e manutenção de estradas e o plantio comercial de café. A expropriação das chapadas comunais para implantação da monocultura do eucalipto obrigou as famílias de agricultores do alto Jequitinhonha a um uso mais intenso das áreas de grotas e maior pressão sobre as cabeceiras de águas. O senhor Luiz, da comunidade do Gentio no município de Turmalina, revela que, no período anterior à entrada das companhias reflorestadoras desmatando as chapadas, as terras e águas das grotas eram menos pressionadas: Antes era separado, onde era de roça era separado da área de gado. Na grota, pouca criação pisava. Aonde tinha terra de cultura de roça, era roça; e aonde tinha gado era gado. Muitas vezes fazia a roça e tinha muito mais terra sobrando ali, ao redor da roça, que o gado não tinha o direito de pisar. Ás vezes, hoje, quando tira o milho e o feijão, já está soltando o gado lá dentro para poder aproveitar o que tem [sobra] dentro da roça. Assim, terras de cultura e áreas de nascentes foram submetidas a usos mais intensivos. Os terrenos “encurtaram”: atividades que utilizavam uma extensão maior foram confinadas de modo sobreposto a uma mesma gleba. Foi diminuído o intervalo de descanso da terra (pousio), ocasionando um menor período de recomposição da vegetação, e as cabeceiras de águas que não eram utilizadas começaram a receber trânsito de gado. 138


Formação Histórica, Populações e Movimentos

Comunidades de agricultores atingidas pelo plantio do eucalipto são unânimes em apontar, baseadas em reflexões ao longo de quase trinta anos, que muitas nascentes secaram algum tempo após o plantio da monocultura. Apontam com precisão a retirada da vegetação nativa nas cabeceiras dos mananciais para o plantio de eucalipto como a principal causa de secagem de nascentes.154 O senhor Moisés, lavrador da comunidade José Silva, município de Turmalina, relata: Chovia bastante. Você plantava, colhia e não perdia tempo com lavoura (...). Quando a empresa chegou, foi chuvoso. Mas depois começou a firmar o eucalipto ... pegou uma alturinha ali, a chuva já foi afastando e nós já fomos vendo os córregos todos acabando, as nascentes acabando. Como de fato, isto é um levantamento que a gente tem: Buriti, Campo Alegre, Poço D’água, José Silva e Gentio. Eram córregos fortes que levavam água no rio Fanado e hoje não existe nenhum desses córregos que chegam água lá no rio. Então a empresa, a gente acha que foi um dos motivos muito grandes que afetou mesmo a região nossa aqui. Além de ter tirado o mato nativo, acabado com todas as frutas, com todos os bichos. E também veio a areia aterrando todas as nascentes, porque não tinha proteção nenhuma; não tinha e nem tem; do jeitinho que descia a enxurrada nos carreadores, descia e ia levando tudo. Então nós começamos a sentir preocupados, mesmo porque estava acabando a água. Os carreadores – estradas que percorrem os eucaliptais – foram responsáveis por assoreamentos de nascentes em várias comunidades, porque se tornaram sulcos que direcionam e concentram enxurradas. Estradas de rodagem também trouxeram problemas e assoreamento para os mananciais, muitos bueiros atropelaram as nascentes, aterrando-as, como na comunidade de Lagoa, no município de Turmalina. O desmatamento para carvão e o cultivo de café em grande escala no alto Jequitinhonha acarretaram impactos parecidos com o plantio do eucalipto e acrescentaram alguns outros mais. Barragens construídas por fazendeiros e empresas com o objetivo de irrigar cafezais diminuíram, e muito, o volume de água em córregos e ribeirões, criando questões a respeito 154 Esta foi situação encontrada em 2004 na comunidade de Bocaina: de dezoito nascentes que lá existiam só restaram quatro com vida.

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das formas de gestão e apropriação da água. No município de Turmalina, em 2004, aproximadamente duzentas famílias de lavradores que usavam a água do ribeirão Lourenço ficaram sem acesso a água quando as irrigações em cafezais estavam em funcionamento. De acordo com um agricultor: “– Antes a água secava de baixo para cima, hoje com a irrigação está secando de cima para baixo” Outras causas que agravaram a destruição das nascentes estavam relacionadas com alguns usos agrícolas impostos a elas pelas famílias de lavradores: como as queimadas, os desmates e o acesso das criações. Segundo um agricultor: “– A comunidade tomou prejuízo da água na foice” por meio dos roçados feitos nas áreas próximas a nascentes. As famílias de agricultores relatam que, muitas vezes, “o povo achava que a água não secava”, por isso podia usar à vontade. Mas com o passar do tempo perceberam que não era bem assim, e aí concluíram: “o homem facilitou!” Contudo, outras vezes, agricultores e agricultoras revelaram que muitas famílias não tiveram alternativa de lugar para plantio. Esta era uma decisão difícil, pois implicava uma escolha dura entre priorizar a produção de alimentos ou a conservação das águas. Deixar de produzir alimentos nos terrenos frescos dos mananciais é uma opção que envolve não só um cálculo imediato, mas uma estratégia reprodutiva familiar de longo prazo. São processos de decisão ao mesmo tempo familiares, mas que implicam cálculos que envolvem um recurso que é, sobretudo, comunitário.

Conservação comunitária de nascentes Quando a situação das águas nas comunidades rurais do alto Jequitinhonha ficou crítica, o Centro de agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV) se tornou interlocutor privilegiado das reclamações e, por consequência, tornouse também pioneiro no enfrentamento do problema da água. Reuniu demandas de monitores e, em conjunto, promoveram nas comunidades dias de campo sobre conservação de mananciais, propuseram experiências de repovoamento de nascentes usando plantas nativas em comunidades rurais, estabeleceram parceria com o Núcleo de Pesquisa e Apoio à Agricultura Familiar155 e tiveram apoio do CNPq para estudar a situação das águas nas comunidades rurais do alto Jequitinhonha. Os estudos mostraram que as comunidades criavam sistemas próprios de classificação da água e confirmaram a importância das nascentes para o abastecimento de água de qualidade para as famílias. 155 O Núcleo de Pesquisa e Apoio à Agricultura Familiar é um núcleo interdisciplinar que congrega pesquisadores de agricultura familiar vinculados a diversas universidades.

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A partir daí, o CAV direcionou ações para as nascentes. O mutirão para proteger o manancial da comunidade José Silva foi a primeira experiência e serviu de base para outras iniciativas. O CAV expandiu a experiência de famílias monitoras para refletir e enfrentar problemas relacionados ao uso e conservação das fontes de água, dando origem a um grupo de trabalho permanente, voluntário, denominado “Famílias Protetoras de Nascentes”, que combina monitores de SAFs e novos monitores, que buscam conciliar o saber local com a experimentação de práticas conservacionistas em mananciais. O programa surgiu da percepção de que as águas de nascentes são muito apreciadas pelas famílias de agricultores. Por isso, também, são as águas que mais mobilizam as comunidades em sua defesa. Seus objetivos são: promover ações conservacionistas, como cercamento e plantio de espécies nativas em nascentes, cuidados com a área de recarga dos mananciais e valorização das formas de gestão comunitária das águas. O método de trabalho desenvolvido é participativo: representantes das comunidades com o apoio do CAV realizam levantamento das nascentes com potencial para serem cercadas e organizam reuniões para apresentar o programa, explicando seus objetivos e formas de ação. Havendo interesse das famílias, são formadas comissões que visitam as nascentes indicadas pela comunidade, as comissões definem quais podem ser cercadas e combinam com os donos da terra onde brota a água a cessão da área. Após a escolha da nascente, junto com as organizações parceiras, são feitas ações de sensibilização ambiental na comunidade, refletindo sobre a importância da conservação e dos sistemas agroflorestais, uma forma de produzir alimentos resguardando as águas. As famílias, em conjunto com o CAV, em mutirões festivos, cercam as nascentes. Depois são feitos levantamentos das espécies nativas, formados viveiros, plantadas mudas, construídas pequenas barragens e bacias de contenção para proteger os mananciais e aumentar disponibilidade de água para consumo. Cada comunidade participante do programa indica um casal monitor para representá-la nas famílias protetoras de nascentes. O casal é responsável por zelar pela nascente cercada, avaliar as ações de conservação, participar dos encontros, capacitações e troca experiências promovidas pela rede de famílias e CAV. Ao voltar para sua comunidade, partilha informações e experiências com seus vizinhos. O casal protetor conserva viva a nascente e a experiência comunitária. O cercamento sempre é resultado de um esforço da comunidade, coordenado pelo CAV que articula apoio do poder público e outras organizações do município e região. É exemplar o caso das nascentes cercadas no município de Veredinha: os moradores das comunidades assumiram todo trabalho necessário para o cercamento, o CAV coordenou a ação, o acompanhamento técnico e 141


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contribuiu com a alimentação, o CeVI (Centro de Voluntariado Internacional, Itália) contribuiu com materiais e equipamentos e a Prefeitura Municipal de Veredinha transportou o material para as comunidades. Assim, as nascentes cercadas se tornaram um bem comum. Esse exemplo se repetiu em outros municípios. O programa conseguiu articular apoio de órgãos federais (Universidade Federal de Lavras, CNPq), estaduais (Emater, IEF) e ongs (CeVI, KZE, ASA). Essa ação coordenada é, ao mesmo tempo, um método e resultado deste programa, que deu base também a outros desdobramentos: o levantamento de espécies nativas nos mananciais, a formação e o plantio de mudas, a construção de pequenas barragens e bacias de contenção para proteger mananciais e disponibilizar água para as famílias. O “Programa de conservação comunitária e gestão de recursos hídricos” atua em 26 nascentes de cinco municípios do alto Jequitinhonha envolvendo centenas de famílias de agricultores. As áreas protegidas são usadas como campo de coleta de frutos, plantas medicinais e apicultura; isto é, estimulado para revelar que a conservação das águas pode se combinar com usos produtivos, se houver um manejo inteligente dos recursos. Assim também se busca influenciar políticas públicas, sensibilizando os órgãos ambientais para a necessidade de construir pequenos programas em parceria, expondo a viabilidade dos sistemas agroflorestais na conservação das águas, envolvendo prefeituras na execução do programa.156 A experiência acumulada pelo CAV e seus monitores – casais protetores de nascentes – em ações de conservação, recuperação e gestão das águas tem conduzido a uma reflexão no sentido de proporcionar uma abordagem integrada da questão da água com questões produtivas. Os monitores têm apresentado dois limites nas ações desenvolvidas: o primeiro deles é o impacto limitado de uma ação isolada e emergencial numa comunidade e a necessidade de se criar uma estratégia mais holística para lidar com questão da água que englobe vários aspectos. O segundo é o desafio de expandir os sistemas agroflorestais para a conservação das nascentes.

Água de futuro Os resultados dos esforços comunitários para conservação de nascentes são multivariados: ambientais, culturais e de gestão comunitária. Zelar da nas156 Um bom resultado neste sentido foi a incorporação deste programa em 2004 ao Pronaf Infra-Estrutura de Turmalina, coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA, que apoiou o cercamento de outras 20 nascentes no município, seu debate nas instâncias de formulação do Programa de Desenvolvimento Territorial (também do MDA), e nos fóruns da Articulação do Semi-Árido.

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cente como fonte de água e vida para a geração atual e futura é o principal resultado. A gleba da nascente é transformada em área de conservação comunitária, transformada pela ética camponesa em um bem comum e dadivoso a que todos têm direito e responsabilidade de cuidar. A conservação de nascentes não proporcionou somente o isolamento da área com objetivo de conservar a água, revelou acordos comunitários em que interesses comuns se sobrepuseram ao familiar – mesmo que à custa de muita negociação para superar atritos. Cercar o manancial significou “perder” uma área usada para a produção familiar de alimentos ou para pastagem, mas significou “ganhar” outra produtora de água e de recursos da natureza gerida pela comunidade. Significou a percepção de que para as famílias do Jequitinhonha, ter água é liberdade de não ter sede, é a liberdade de autodeterminar e participar ativamente das possibilidades de desenvolvimento que levem em conta sua cultura, seu território e seu saber.

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Os Negros da Mumbuca: O Percurso Histórico de uma Comunidade Quilombola do Baixo Jequitinhonha Deborah Lima Ana Tereza Faria Carlos Eduardo Marques Fernanda Oliveira Rafael Barbi

Introdução

E

ste texto trata da história da ocupação territorial de um grupo quilombola do Baixo Jequitinhonha, Minas Gerais, em uma área denominada Mumbuca. Os negros da Mumbuca formam uma coletividade reconhecida regionalmente há cerca de 150 anos. Sua origem data de meados do século XIX e tem como marco a compra, pelo negro José Cláudio de Souza, seu ancestral comum, da terra que o grupo requereu ao INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para titulação como território quilombola.157 O sentimento de pertencer a uma coletividade que possui uma mesma origem histórica define a comunidade de Mumbuca. É a continuidade histórica 157 Este capítulo é baseado em dados do Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica e Sócio-Cultural (Lima et al. 2007), que compôs o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do território quilombola de Mumbuca, publicado no Diário Oficial da União em agosto de 2009.

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que relaciona o território fundado pelo ancestral comum aos seus moradores atuais, 81 famílias, a maioria herdeira e descendente de quinta e sexta gerações desse fundador. Além do fundamento histórico, o significado de comunidade se constrói a partir do compartilhamento das mesmas condições sociais e de um mesmo modo de viver. A esse sentimento de pertencer a um grupo com raízes históricas e experiências de vida em comum, foi sendo construída, ao longo dos últimos anos, uma expressão política forte. A formação de uma organização dos moradores do quilombo da Mumbuca, com um estatuto próprio e critérios objetivos de pertencimento, é a etapa mais recente do processo de definição formal das fronteiras étnicas da coletividade. Nesse percurso, o grupo passou de uma relação estrita de parentesco, herança da terra e território comum, à constituição de uma identidade com representação política de dimensões supralocais, embasada no seu reconhecimento oficial como remanescentes de quilombos com direitos especiais definidos pela Constituição Federal. Ao considerar a dimensão étnica de sua história coletiva, percebemos o modo diferenciado e desigual pelo qual se deu a incorporação do grupo à sociedade brasileira, desde a época da escravidão até os dias atuais. É o caráter étnico da identidade histórica original de negros da Mumbuca que explica a razão por que o grupo passou de herdeiros de um senhor proprietário de uma grande extensão de terra, com cerca de 8,2 mil hectares, para a condição de uma coletividade que, até recentemente, não tinha garantido o seu direito à terra onde mora. Os negros da Mumbuca, descendentes e herdeiros do que poderíamos chamar de um “latifundiário negro”, se dividem hoje em ocupantes de pequenos lotes de terra que cobrem menos de 20% do território original e trabalhadores agregados de fazendas que ocupam mais de 80% dessa terra. Essas fazendas, de proprietários absenteístas, se instalaram sobre as terras onde os mumbuqueiros vivem e a que têm direito por herança. Ao longo do percurso por que passaram, os quilombolas como que acataram o papel que a sociedade rural lhes reservou. A história dos moradores da Mumbuca demonstra o lugar destinado a descendentes de escravos: não o de senhores de terra, mas seus trabalhadores, na condição de camponeses, agregados ou ocupantes de pequenas parcelas. Além de fazer uma reparação histórica legítima, a demarcação da terra de quilombo introduz uma nova forma de ocupação do meio rural, em que a titulação de um espaço coletivo permite a sua utilização em bases sociais equitativas. No que podemos caracterizar como um processo de contracolonização, a demarcação do território reconhece aos negros da Mumbuca direitos fundamentais que a ordem tradicional suprimiu. 146


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A titulação da ocupação tradicional como território quilombola também irá resolver uma situação excepcional vivida pelos mumbuqueiros: a criação da Reserva Biológica da Mata Escura, em 2003, que se sobrepôs a 75% do território. Com 51 mil hectares, a Rebio incide em 6.215 hectares do território quilombola. Os mumbuqueiros expressam uma mesma motivação em suas manifestações de resistência à expropriação, seja durante a época da expansão das fazendas em seu território ou na atual ameaça provocada pelo decreto da Rebio: o seu “amor à terra”, o seu “firmamento no chão”.

História da terra Desde a compra da terra pelo ex-escravo até a ameaça de desapropriação por uma unidade de conservação, o percurso de Mumbuca mostra períodos de expropriação e outros de resistência e mobilização dos moradores contra essas ameaças. Para fins de exposição, a história da terra de Mumbuca pode ser dividida em cinco períodos, demarcados a partir de eventos que geraram mudanças significativas na relação dos moradores com a terra: 1. A compra das terras pelo fundador José Cláudio de Souza e a fase inicial de ocupação do território; 2. O período da expropriação patronal e a segmentação do território em fazendas; 3. O momento de uma resistência organizada, com a formação de terras coletivas: a Terra da Santa e a Terra dos Herdeiros; 4. A ameaça de expropriação ambiental, desencadeada pelo decreto de criação da Rebio Mata Escura; 5. O momento atual de definição do território, coletivo e inalienável, com base no reconhecimento do grupo como remanescente de quilombo.

A compra da terra pelo fundador José Cláudio e a fase inicial de ocupação Mumbuca é um território de ocupação tradicional, iniciada em 1862 com a compra da terra pelo negro José Cláudio de Souza. A partir dessa compra houve a fundação tanto do território como da coletividade que o habita, constituída pelos descendentes desse fundador. 147


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A escritura particular de venda da terra é datada de 1862. Informa que José Cláudio comprou a propriedade de Maria de Souza Saraiva e de sua filha Bernardina Luiza dos Santos e esposo, José Xavier de Souza. A área é localizada em uma região denominada Ilha do Pão e a terra é chamada Sítio Mumbuca, descrito como “lugar de criar e plantar”. O valor total da compra foi de duzentos e cinqüenta mil réis. Como era comum na época, a escritura não cita a dimensão da terra negociada. Sobre os extremantes, diz apenas que “a fazenda do Sítio Mumbuca” extrema pela “parte de cima, com as terras do senhor José dos Santos e pela parte de baixo no tombo da Cachoeira chamada Tombo de um lado e outro águas vertentes.” A existência da escritura pública é prova da ancestralidade da ocupação do território pelos quilombolas. Também demonstra o cuidado que o fundador José Cláudio teve em regularizar a sua compra, tendo atendido todas as especificações tributárias da transferência da terra e pago um total de dezesseis mil quatrocentos e oitenta mil réis em impostos. As versões sobre a chegada desse fundador a Mumbuca variam nos detalhes, mas concordam no conteúdo central. O que é comum a todas elas é que José Cláudio, um negro, e sua esposa, uma cabocla, teriam vindo clandestinamente do sertão, fugidos da escravidão. O casal veio em companhia de um homem chamado Ângelo, que também deixou descendentes em Mumbuca. Trouxeram consigo uma imagem de Nossa Senhora do Rosário e dinheiro suficiente para comprar a grande extensão de terra que compõe o território da Mumbuca. Como uma memória coletiva, esta é uma história rememorada e reelaborada de acordo com os fundamentos e valores da coletividade. Expressa orgulho por seu passado vitorioso, no qual o fundador lhes deu origem como uma coletividade ligada a um território que ele estabeleceu. É esse fundamento que dá origem ao autorreconhecimento do grupo como os quilombolas de Mumbuca. São essas as suas principais referências coletivas: a origem comum e o seu “firmamento na terra”.158 A narrativa sobre o fundador é o seu mito de origem; é a história que fundamenta sua condição de negros donos de uma terra. Embora o território de Mumbuca tenha sido iniciado com a compra de uma grande extensão de terra, a propriedade de José Cláudio não constituiu um latifúndio. Seus descendentes herdaram a terra e a trabalharam a partir da noção de terra como lugar de trabalho familiar. A transmissão por herança se deu principalmente por meios informais e poucos descendentes fizeram inventários para partilha e transferência das parcelas de terra entre seus herdeiros.

158 Expressão de Dona Liô, 62 anos, moradora de Laranjeiras, a principal localidade de Mumbuca.

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Na época em que José Cláudio comprou as terras de Mumbuca, o Baixo Jequitinhonha se apresentava relativamente isolado. Sem estradas, dependia de tropas e do transporte fluvial. Até o início do século XIX, as regiões dos vales Jequitinhonha e Mucuri faziam parte da comarca do Serro Frio, no território de Minas Novas.159 Neste termo, foram fundados, no começo do século XIX, quatro quartéis militares com a finalidade principal de impedir o contrabando de metais preciosos e combater os índios da região. Os habitantes da região do Serro foram os primeiros colonizadores dos vales Jequitinhonha, Mucuri, Doce e São Mateus; abriram fazendas e se dedicaram à agropecuária.160 A origem do município de Jequitinhonha remonta a um dos quartéis fundados em Minas Novas, a Sétima Divisão Militar de São Miguel, decretada em 1811.161 A partir de então, várias levas de migrantes pobres, fugindo das secas na Bahia, migraram para o baixo Jequitinhonha, em direção a Comercinho e Pedra Azul, onde ainda havia matas virgens. Também se estabeleceram em outros locais, povoando os lugares desertos do Baixo Jequitinhonha. Aproximadamente 60 anos após a fundação da Sétima Divisão Militar de São Miguel, José Cláudio formalizou a ocupação de uma grande extensão de terra em Jequitinhonha. A compra formal da terra indica que José Cláudio de Souza era um negro livre, mas não é possível saber se nascido liberto ou cativo. O fato de José Cláudio ser um negro livre que se estabeleceu em terras próprias, independente de um senhor, constitui uma excepcionalidade. A maioria dos libertos costumava morar próximo aos seus senhores, na condição de agregados. A alforria era parte do direito costumeiro; não havia lei escrita que a regulamentasse até 1871. Por esse motivo, a libertação estabelecia uma nova relação de subordinação para os forros, a “livre gratidão” aos seus senhores.162 Algo próximo da terça parte de todas as alforrias registradas foram pagas pelos escravos aos seus senhores. O preço da alforria era estabelecido pelo senhor, que podia determinar um preço baixo, por afeição ao escravo, ou manter o preço que o mercado estabelecia para cada escravo. Os escravos construíam suas próprias economias que eram importantes nas negociações com seus senhores. Com relação a José Cláudio, sabemos que ele tinha um pecúlio de pelo menos 250$000, usados para a compra da terra de Mumbuca. Apesar desse valor não representar, na época, um patrimônio muito alto e das terras do Baixo Jequitinhonha terem preços mais baixos que em outras regiões, devido à sua 159 160 161 162

MOURA, 2007. MORENO, 2001. TETTEROO, 1919. CARNEIRO DA CUNHA, 1985.

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fraca ocupação, a compra da terra permite perceber a singularidade de José Claudio. Na tradição dos negros da Mumbuca, José Cláudio é visto como um homem culto, letrado. A compra com o registro da terra no ano 1862 demonstra que ele estava bem informado a respeito da Lei de Terras. Promulgada em 1850, a lei instituiu a terra como mercadoria e estabeleceu a necessidade de regularização das terras e o pagamento de impostos. A regularização das terras foi feita na medida do poder e da influência que cada um possuía na sociedade. Em geral, os posseiros ficaram em situação instável, subordinados aos grandes latifundiários. Os pequenos lavradores que não possuíam acesso à justiça ou ao dinheiro para pagar impostos foram prejudicados pela Lei. Sem acesso à terra, grande parte passou a ser mão-de-obra das grandes terras regularizadas pelos latifundiários. A compra e o registro da terra feitos por José Cláudio são, por isso, excepcionais. O estabelecimento de um extenso domínio particular, logo após a Lei de Terras, por um negro, na época da escravidão, foi de fato excepcional. Entretanto, apesar desse marco singular, no desenvolvimento de sua história, Mumbuca retorna ao padrão geral de desigualdade da formação agrária do Brasil. A trajetória de perdas é como um ajuste ao contexto social predominante, que combina a preferência por latifúndios, a negação à ascensão social de negros e o preterimento da ocupação do tipo camponesa. O percurso desse quilombo é especial porque é ao mesmo tempo exceção e confirmação da regra.

A expropriação patronal e a segmentação do território em fazendas A primeira crise que os quilombolas de Mumbuca sofreram em relação ao seu domínio da terra foi a segmentação do território em fazendas, a partir de várias vendas feitas por herdeiros para fazendeiros da região de Jequitinhonha. Essa fase teve uma longa duração na história da ocupação do território, tendo sido mais acentuada na década de 1940. Nessa fase, vários quilombolas cederam a uma forte pressão de fazendeiros e acabaram vendendo suas terras herdadas. Muitos casos de venda de terras foram motivados pela necessidade de obter recursos para financiar tratamento de saúde de um membro da família. Como em outras regiões rurais do Brasil, a estrutura agrária do Vale do Jequitinhonha passou por uma mudança significativa, desencadeada pelo processo de modernização do meio rural. Ao longo da primeira metade do século XX o Vale do Jequitinhonha experimentou uma forte concentração das terras que passaram para as mãos de poucos proprietários. A transformação da estrutura 150


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fundiária envolveu não só processos de espoliação dos posseiros originais como a expulsão dos antigos agregados de grandes fazendas.163 A crise nas relações de agregamento foi consequência da aplicação do Estatuto do Trabalhador Rural. Nessa mesma época, o Brasil viveu seu processo de industrialização e urbanização, que intensificou o êxodo rural. Como reflexo desses processos históricos, houve uma significativa alteração no padrão de ocupação em Mumbuca. Tanto ex-agregados de fazendas vizinhas imigraram para o quilombo, onde foram recebidos como chegantes e conseguiram um “pedaço de chão para morar e cultivar com a família”,164 quanto alguns herdeiros de terras foram compelidos a vendê-las para fazendeiros e, entre esses, alguns migraram para as cidades. Entretanto, uma grande parte, apesar de não mais se encontrar na condição de dono da terra, permaneceu em Mumbuca. Aqueles que venderam terras e não saíram, ficaram ou como agregados dos fazendeiros (os novos donos da terra dentro do quilombo), ou foram morar em terras particulares de parentes quilombolas. Mais tarde, por volta dos anos 1980, os herdeiros sem terra tiveram a oportunidade de ocupar uma área coletiva, a Terra da Santa, sobre a qual falaremos adiante. Não são raros os depoimentos de moradores que denunciam o caráter opressivo e irregular dessas vendas de terra em Mumbuca aos fazendeiros de Jequitinhonha. Muitos moradores relataram que os fazendeiros, fazendo-se de “amigos”, valeram-se de sua confiança para confundi-los e enganá-los. Contam de um herdeiro que foi alcoolizado para assinar documento vendendo sua terra, inconsciente quanto aos termos do acordo que assim consolidava; contam de fazendeiros que compravam uma porção de terra e no momento de cercá-la se apropriavam de área muito maior do que aquela devida; contam de fazendeiros que ameaçavam os pequenos proprietários, pressionando-os para que vendessem suas terras, soltando gado na terra pretendida, destruindo benfeitorias e roças alheias. Foi nessas condições que os moradores de Mumbuca se tornaram alvo de expropriação pelos grandes fazendeiros da região. Para os mumbuqueiros, até aquela época predominou o valor da terra como meio de produção para o trabalho da lavoura. Flagrante dessa lógica foi o depoimento de um dos moradores mais antigos de Laranjeiras, em uma conversa em que criticava a atitude gananciosa de um herdeiro que ambicionava se apropriar de terras de outros, para além de sua capacidade de trabalho. Esse morador afirmou enfaticamente que a terra na verdade “é de Deus”, e só tem serventia para quem nela trabalha, 163 MOURA, 1978. 164 Expressão de Dona Liô.

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não havendo necessidade de ocupar área maior do que aquela em que se consegue cultivar. Subvertendo essa lógica, alguns mumbuqueiros, ao venderem suas terras de herança, romperam com o direito à sucessão da ocupação dos descendentes de José Cláudio, deixando seus próprios descendentes na situação de herdeiros sem terra. Mas em nenhuma das vendas a fazendeiros havia uma partilha anterior e isso complicava já a princípio qualquer possibilidade de uma negociação regular. De fato, várias terras de herdeiros foram vendidas para fazendeiros, mas de direito era impossível concluir legalmente essas compras, uma vez que para registro das terras compradas seria necessário o formal de partilha das heranças. A venda de terras era feita sob uma formalização precária de acordos particulares de compra e venda. Tal procedimento sugere que a irregularidade da negociação deveria ser do conhecimento dos fazendeiros compradores. Tais negociações irregulares configuram o que em Mumbuca chamam de enrolada: vendas e compras complicadas, cuja irregularidade deve-se principalmente ao fato de que as terras herdadas não foram formalmente repartidas entre os herdeiros, estabelecendo a definição apropriada do que seria a parcela de cada um.

A primeira resistência organizada: a formação da Terra da Santa Tradicionalmente, a ocupação da terra em Mumbuca se dá com a transferência para descendentes, na forma de herança. As vendas dessas terras para fazendeiros desencadearam uma transformação no desenho original do território. Com a fragmentação em fazendas o percurso tradicional de transferência de terras aos descendentes foi interrompido. Para que a herança garanta a continuidade dessa ocupação camponesa, a terra precisa ficar fora do mercado. A inalienabilidade é coerente com o ethos de terra para trabalho e é a base da preservação dessa forma de reprodução social. Nesse contexto de transformação de sua relação com a terra, a constituição de uma terra coletiva, chamada Terra da Santa, representou a primeira grande resistência organizada pelos mumbuqueiros contra a perda do seu domínio sobre a terra. A Terra da Santa é uma área de ocupação coletiva de 130 hectares, aproximadamente. Atualmente moram e cultivam nessa terra cerca de 40% de todas as famílias de mumbuqueiros. A história da formação dessa terra coletiva expressa com clareza o espírito de resistência à transformação da terra em mercadoria. O principal instrumento de formação dessa área coletiva foi a doação, feita de modo voluntário, por alguns herdeiros ainda donos de terra. O seu intuito foi garantir não só a inalienabilidade de uma área de terra comum, como 152


Formação Histórica, Populações e Movimentos

também prover moradia e cultivo para aqueles descendentes cujos ancestrais romperam a cadeia sucessória de acesso à terra por herança, e os deixaram na condição de herdeiros sem terra. Em princípios da década de 1980 houve um amplo debate estimulado pela Igreja Católica sobre os prejuízos que os mumbuqueiros estavam sofrendo com a perda do domínio de suas terras em face ao avanço dos fazendeiros. Tal debate motivou os moradores a reagirem àquela situação e darem início a uma campanha especial. Com a assessoria jurídica e financeira dos frades franciscanos dirigentes da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, moradores que ainda permaneciam donos de sua terra de herança se convenceram da importância de transferir a posse de suas terras para a Santa: Nossa Senhora do Rosário, a padroeira dos moradores e de quem José Cláudio era devoto. Essa atitude impediu que, uma vez transferida para a Igreja, a terra corresse o risco de algum dia ser vendida. Por sua natureza coletiva, a Terra da Santa passou a pertencer a todos os seus associados (doadores ou não das terras). Dessa forma, nenhum dos seus herdeiros, motivado por um interesse pessoal, poderia aceder à opção de vender sua terra para terceiros. As doações aconteceram entre 1980 a 1984. Foram doadores nove herdeiros quilombolas. Passados quase 30 anos, a Terra da Santa é uma área consolidada de usufruto comum. É atualmente administrada por uma associação, responsável pela definição de suas regras de utilização. O número de associados cresceu e estes são distribuídos em lotes cuja ocupação é garantida pelo uso. O tamanho de cada lote depende da capacidade de trabalho do seu ocupante. A Terra da Santa é um marco no percurso fundiário da comunidade de Mumbuca. Foi sua primeira experiência de convivência coletiva organizada em torno da gestão de uma terra comum. Com essa terra coletiva, mesmo aqueles herdeiros que tinham vendido suas terras puderam permanecer na região, na condição de ocupantes de uma terra própria dos mumbuqueiros e não como agregados de fazendeiros ou morando de favor na terra de outros. Atualmente a maioria dos moradores de Mumbuca habita e cultiva em terras coletivas. Além da Terra da Santa, há também a chamada Terra dos Herdeiros. Sem ter sido criada nos mesmos moldes e sem ser regulada por critérios tão formais como a Terra da Santa, a existência dessas duas terras coletivas expressam um mesmo ethos camponês. A Terra dos Herdeiros passou a ser ocupada por vários moradores apenas pela generosidade do seu proprietário, um herdeiro da quarta geração de José Cláudio. Essa terra é outra expressão do conceito de terra necessária para o trabalho e do espírito de grupo que caracteriza a coletividade de Mumbuca. 153


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A pressão sobre a terra e o cercamento por fazendas instituíram nos mumbuqueiros uma fronteira étnica fundamentada no território. Tanto a memória da formação desse território a partir da compra feita pelo fundador José Cláudio, como o uso que os moradores dão à terra fundamentam a existência do grupo. Suas características étnicas não são entendidas, nem por eles e nem por outros, apenas em termos das referências presentes no discurso racial - de sua origem africana e da escravidão. Os negros da Mumbuca, hoje quilombolas da Mumbuca, são reconhecidos principalmente a partir da sua relação com o território e são essas fronteiras que lhes demarcam mais fortemente enquanto grupo. A coletividade que resiste hoje à expropriação foi originada pelo mesmo ato de fundação do território ao qual ela se liga e que lhe dá a sua identidade.

A expropriação ambiental A mais recente ameaça de expropriação sofrida pelos moradores de Mumbuca se deu com a criação da Reserva Biológica da Mata Escura, em 2003. A reserva incide em 75% do território de Mumbuca, como mostra a Figura 1 da Sobreposição. Como uma Unidade de Conservação de Proteção Integral, sua criação implica na desapropriação de áreas particulares em toda sua extensão, a retirada e indenização de todos os moradores. Estamos chamando esse processo de “expropriação ambiental”, contrapondo-o ao da expropriação anterior, causada pela pressão de fazendeiros de Jequitinhonha.

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Fig. 1: Sobreposição da Rebio Mata Escura e o território quilombola de Mumbuca.

Sendo a categoria Reserva Biológica uma unidade de conservação de proteção integral que prescinde de consulta pública, os problemas gerados por sua criação revelam as conseqüências graves de uma decisão de poder que não considera a própria realidade social da área afetada pelo decreto. A falta de uma decisão fundamentada em um levantamento fundiário cuidadoso, acompanhado de um estudo do impacto social da medida – e não com base apenas nos atributos biogeográficos da área – se fez sentir. O caso de Mumbuca é um exemplo das conseqüências desse tipo de decisão unilateral. Nesse momento de inflexão na história da terra de Mumbuca, e apesar de reconhecer a importância da preservação do meio ambiente, o grupo articulou uma disputa judicial pela propriedade do território original de José Cláudio de Souza como defesa contra a ameaça de expropriação definitiva pela Rebio. Autorreconhecido como Comunidade Remanescente de Quilombo e detentor de um direito constitucional, o grupo fundamentou seu pleito com base em sua identidade étnica e no uso e ocupação daquelas terras há pelo menos cento e quarenta anos. 155


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Os quilombolas da Mumbuca dependem do seu território para subsistência e reprodução social. Nessa ameaça de expropriação, poderiam ter aceitado a promessa de indenização, se houvesse interesse em obter recursos financeiros para sair da terra, migrar para outro lugar ou para a cidade. Mas mesmo tendo em vista a possibilidade de “vender a terra ao Estado” – para remeter à compreensão de alguns fazendeiros sobre a questão – manifestaram sua resistência coletiva com mais força do que no momento da formação da Terra da Santa. Certamente isso é reflexo de um contexto político diferente do que o daquela época; há mais abertura hoje para se manifestar contra os arbítrios políticos. Mas o fundamento da resistência é caracterizado pelas principais lideranças como o amor à terra. Ao manifestarem seu pedido de titulação da terra de herdeiros como um território quilombola, abrem mão do direito particular de propriedade e aceitam a definição de uma propriedade inalienável e coletiva, a ser concedida a uma associação própria. Esse movimento de reelaboração da titularidade significa uma decisão definitiva em favor da ocupação coletiva, uma noção implícita em outras manifestações de seu ethos camponês, mas sempre em tensão com a noção de terra como mercadoria. A ameaça de expropriação pela Rebio Mata Escura acelerou o processo de definição da fronteira étnica fundamentada na relação do grupo com o território. Ao provocar a reação de várias instituições de apoio ao reconhecimento dos direitos quilombolas, o modo autoritário como a Rebio foi criada, levou a um fortalecimento político do grupo, como discutido a seguir.

A definição do território quilombola, segunda resistência organizada A ameaça de expropriação criada pelo decreto da Reserva Biológica atingiu indistintamente fazendeiros e quilombolas. No entanto, entre as mobilizações contrárias à Rebio, a agenciada pelos quilombolas de Mumbuca foi a maior delas. Sua iniciativa de resistência desencadeou o movimento pela oficialização de seu autorreconhecimento como comunidade remanescente de quilombo e, em sequência, o requerimento da titulação de seu território. Por ser um direito constitucional fundamental, a titulação de suas terras pode implicar na redefinição dos limites da Rebio para excluir de sua área o território quilombola. A criação da Rebio sobreposta ao território quilombola também implica que as fazendas que tiverem registro regular serão desapropriadas e as benfeitorias indenizadas, se não pelo IBAMA, pelo INCRA. 156


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Antes mesmo do anúncio da criação da reserva incidindo sobre seu território, os mumbuqueiros já vinham elaborando um entendimento valorizado de sua própria história. Com o surgimento dessa ameaça, se mobilizaram para lutar por sua permanência na terra. Organizaram-se então para obter a certidão de autorreconhecimento concedida pela Fundação Cultural Palmares.165 Essa oficialização representou a conclusão de um processo coletivo de elaboração da identidade quilombola. Os mumbuqueiros sempre foram conhecidos na sua região como negros da Mumbuca. Nessa denominação, as fronteiras étnicas do grupo são demarcadas pelos outros com base no reconhecimento de dois atributos principais: uma diferença alusiva ao discurso racial (a escravidão e a negritude), e sua associação a um território (a Mumbuca). Apesar de certa distinção e deferência especiais concedidas aos mumbuqueiros porque entre eles havia “negros letrados”, a identificação do grupo sempre incluiu o estigma racial, como registrado em diversos depoimentos relatando o demérito que sentiam por serem de Mumbuca. No passado, e em menor escala ainda hoje, as mais fortes manifestações de preconceito ocorriam em Jequitinhonha, onde era comum serem responsabilizados por qualquer problema ocorrido durante sua estadia na cidade. O processo de autorreconhecimento ganhou novo impulso com o anúncio do decreto da Rebio Mata Escura em 2003. O que era um movimento de resgate cultural passou a ser um movimento em defesa do direito de permanência no território. Sob a liderança de João da Cruz (que havia buscado informações mais aprofundadas a respeito da conceituação de remanescentes de quilombo e participando de diversas reuniões de movimentos sociais e ativistas da causa quilombola), e com apoio de organizações como a Cáritas, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado de Minas Gerais, o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Jequitinhonha e Almenara e o Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva, a comunidade encaminhou o pedido da certidão de autorreconhecimento para a Fundação Cultural Palmares, e o de delimitação e demarcação territorial da comunidade ao INCRA. A repercussão dessas decisões vem alterando positivamente a rotina do grupo. Evidencia-se a valorização de algumas atividades tradicionais do grupo, o reconhecimento da importância dos antigos moradores – narradores privilegiados da história de resistência da Mumbuca –, e, dada a necessidade de criar soluções para os novos problemas, há ao mesmo tempo a valorização de jovens lideranças. A construção dessa nova territorialidade transforma não só a organização interna da comunidade como também os termos em que se fundamenta a sua relação com a cidade de Jequitinhonha. Na sede, observa-se a gradual transformação do 165 A comunidade de Mumbuca foi registrada na Fundação Cultural Palmares como Comunidade Remanescente de Quilombo pela portaria nº. 35, de 06 de dezembro 2004.

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velho estigma em uma discriminação positiva. As novas atenções políticas dadas ao grupo acabam por transformar o modo como sua identidade é concebida pelos de fora. Em Jequitinhonha, o reconhecimento da singularidade dos mumbuqueiros vem acarretando a transformação do estigma em um reconhecimento valorizado: a existência de um quilombo no município. Como disse Dona Liô, “agora o povo da cidade sabe que os negros da Mumbuca têm firmamento na terra”.

Situação atual Os quilombolas de Mumbuca atualmente se encontram em três situações de ocupação da terra, decorrentes dos percursos vividos pelas famílias ao longo de suas histórias particulares: 1. 23 famílias ou menos de um terço dos mumbuqueiros são agregados das fazendas, morando ou na mesma terra que era de domínio de sua própria família, ou em terras que eram de outra família quilombola; 2. uma porção menor, 18 famílias, são de particulares, categoria local que identifica aqueles que, em contraste com os agregados, ocupam terras próprias, mas não detêm necessariamente títulos de domínio dessas terras. Também chamados de “donos”, são moradores que permanecem em suas terras de herança resistindo às pressões e à tendência de vendê-las para os grandes fazendeiros; 3. e uma maioria, 40 famílias, moram em terras coletivas; estas são ou “Agregadas da Santa”, concentradas em uma pequena parcela de terra (“Terra da Santa”), insustentável e desgastada por anos de cultivo intensivo; ou ocupam a “Terra dos Herdeiros”, assim chamada porque pertence a alguns herdeiros que não fizeram a partilha formal de suas terras; esses herdeiros permitem que outros ocupem a área, que é por isso considerada coletiva. Resumidamente, temos uma situação em que aproximadamente 29% dos mumbuqueiros estão em terras de domínio de fazendeiros e 71% em terras de domínio próprio ou coletivo.166 No entanto, as fazendas ocupam em torno de

166 A contagem das famílias não é inteiramente precisa devido à dinâmica das famílias. Há famílias em fase de transição, com filhos recém-saídos para inaugurarem suas próprias casas, outros com duas casas e outros que estão deixando de morar em uma delas. O objetivo aqui é identificar as diferentes situações de ocupação e a distribuição das famílias no território.

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83% do território, e apenas nove dessas fazendas aceitam agregados. Já as terras em posse e domínio dos quilombolas compreendem uma área em torno de apenas 17% do território total. A localização das 24 fazendas que se estabeleceram no território original está representada na Figura 2, de autoria de Renan Fernandes, liderança de Mumbuca. Fig. 2. Ocupação atual do território de Mumbuca: áreas transferidas para fazendeiros e áreas mantidas em poder de quilombolas

Fonte: croqui de Renan Fernandes.

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As fazendas possuem poucos agregados, algumas nenhum, e estes são em sua maioria quilombolas de Mumbuca. São nove fazendas, que ao todo abrigam 24 famílias de agregados, das quais 23 são quilombolas. Sete fazendas não possuem nenhum tipo de trabalhador em suas terras. Em apenas duas fazendas há vaqueiros contratados. Em todos os nove casos de agregamento, não há obrigação de pagamento algum ao fazendeiro pelo uso da terra. Há sempre restrição ao plantio de árvores perenes. A condição de fazendeiro na região, conclui-se, refere-se mais a um status social do que a uma ocupação econômica com investimento e retorno de capital significativos. Para os quilombolas de Mumbuca, ao contrário, a terra referente à propriedade original constituída pelo fundador José Cláudio, permanece sendo seu lugar de moradia e de trabalho. Os moradores de Mumbuca são camponeses: agricultores familiares com uma integração parcial ao mercado. Cultivam pequenas áreas em suas roças e quintais com a finalidade de prover o sustento da família. Membros de um mesmo grupo doméstico trabalham para prover o seu próprio consumo, seja o consumo direto ou o indireto, obtido a partir da venda de parte da produção para a compra de outras mercadorias para o consumo. Em termos de retorno das atividades produtivas, as necessidades de consumo do grupo, culturalmente definidas, são modestas. Desse modo, apesar da limitação atual de áreas agrícolas disponíveis, o baixo padrão de consumo do grupo permite que suas necessidades sejam atendidas por uma produção de pequeno porte voltada para o autoconsumo e para uma venda que configura uma fraca participação no mercado. Há várias gerações a produção destinada à venda é levada pelos moradores à feira na cidade de Jequitinhonha, que ocorre todas as sextas-feiras e sábados. A participação coletiva dos moradores na economia da sede do município é um dos momentos de expressão das fronteiras do grupo, quando os mumbuqueiros se apresentam e são reconhecidos como uma coletividade étnica distinta. No território de Mumbuca os principais ambientes destinados à produção econômica são as roças, os quintais e as mangas. As duas primeiras são áreas de cultivo e a terceira se refere às pastagens, usadas para criação extensiva de animais de grande porte. Os principais produtos cultivados são: a mandioca para a produção de farinha; a produção de grãos (feijão e milho em menores quantidades e em apenas algumas partes do território); batata doce nas roças; o plantio de frutas: laranja, tanja (um tipo de mexerica), maracujina, banana, abacaxi, abacate, limão e uva; as hortaliças: chuchu, abobrinha, abóbora e moranga; pequenas 160


Formação Histórica, Populações e Movimentos

chácaras de café e urucum; bem como a criação de gado e dos animais, feita nas mangas; de porcos, nos quintais; o extrativismo de espécies vegetais voltado para a produção medicinal, alimentícia, construção de casas e fabricação de utensílios, incluindo a extração de raízes, algumas madeiras, o cipó alho, a palha de coqueiro, a taquara, o coquinho e o maracujá selvagem; e em menor escala atividades de caça e, menos ainda, de pesca e a apicultura. Essas atividades compõem o espectro da produção realizada no território da Mumbuca. O trabalho familiar e as estratégias de produção camponesas configuram um baixo potencial de impacto ambiental no presente e pode ser tomado como previsão para o futuro, a permanecerem as tradições atuais. A produção do grupo se confunde com o seu modo de vida, com sua visão de mundo. A lógica da produção – prover o consumo familiar e constituir um pequeno patrimônio –, e as limitações impostas pela dependência da mão-de-obra familiar, explicam a existência de várias âncoras refratárias a mudanças. A situação de baixa produtividade econômica das famílias é influenciada por dois fatores complementares: (i) o pouco espaço para produzir, fruto do processo chamado localmente de “aperto”; no caso da Terra da Santa, a escassez de terra levou ao uso intensivo de uma mesma área por 20 anos, exaurindo-a; e (ii) as estratégias de produção tradicional, refratárias à introdução de novas técnicas agrícolas, que poderiam aumentar a produtividade das roças, mantendo, se as famílias quisessem, o mesmo esforço de trabalho. Com relação aos rendimentos monetários os quilombolas da Mumbuca têm uma renda mensal média em torno de R$200,00.167 Esse valor médio inclui os rendimentos obtidos com a comercialização da produção e, no caso de algumas famílias, os repasses de programas assistenciais do governo federal. A comercialização da produção gera em média entre R$ 70,00 e R$100,00, por cada ida à feira. Normalmente cada família vai à cidade duas vezes ao mês para negociar a produção. Vendem na feira tudo que é produzido nas roças e nos quintais, e em menor grau os produtos do extrativismo e das mangas. A renda obtida com essas vendas é usada para a compra de mercadorias, de acordo com o padrão de consumo do grupo. Do ponto de vista da organização social, há vários aspectos importantes sendo tratados pela comunidade em função do seu reconhecimento como remanescente de quilombo. Houve em primeiro lugar um fortalecimento da identidade coletiva, com maior interesse pela história do grupo, aumento da autoestima, e valorização da comunidade em Jequitinhonha (para quem o

167 Os dados são referentes ao período de realização da pesquisa, janeiro e fevereiro de 2007.

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quilombo de Mumbuca passou a ser objeto de orgulho). Nas discussões feitas pelos moradores sobre o uso do território coletivo, reconhecem que, quando demarcado, o território quilombola permitirá que os moradores tenham acesso a uma maior área cultivável, com a liberação para o seu uso, de terras que se encontram descansadas. Será possível adotar a prática do rodízio e pousio das terras, fato impossível para os ocupantes da Terra da Santa e para alguns pequenos proprietários. Essas mudanças permitirão um aumento significativo na produtividade e na renda do grupo. Entre os planos de gestão do território sendo pensados pelo grupo estão: a diversificação dos gêneros alimentícios cultivados, a agregação de valor aos produtos através de parecerias com a Emater local, o acesso às áreas de mangas para a criação de gado e animais, em domínios exclusivos das fazendas, a construção de um centro social e cultural, de uma nova sede para a rádio comunitária e projetos de maior vulto como o aproveitamento turístico da localidade de Cachoeira, de grande beleza paisagística. A demarcação do território acena para uma maior qualidade de vida dos atuais moradores e para a promoção da solidariedade humana, dada a relação entre a coletividade e a gestão de um território comum. A formação do território quilombola promove a adoção de práticas sustentáveis de exploração do ambiente, dados os incentivos políticos existentes. A inserção do grupo em uma rede ampliada de moradores de terras de quilombos fortalece politicamente uma população historicamente marginalizada. Essas consequências positivas da demarcação de territórios quilombolas apontam para a formação de uma nova estrutura social no meio rural, mais justa e fundamentada no princípio da equidade social.

Conclusão Entre as diferentes compreensões da questão quilombola, ainda predomina o entendimento de quilombo como uma ocupação irregular de terras feita por escravos fugitivos. Este caso apresenta uma situação diferente e atesta a diversidade de tipos de ocupação de terras feitas por negros durante a época da escravidão. O exemplo de Mumbuca mostra a constituição de um quilombo legal. Foi formado pela compra de uma terra, cumprindo todas as exigências de pagamento de impostos para sua regularização já no ano de 1862, doze anos após a Lei de Terras instituir a condição da terra como mercadoria. A história mostra a dificuldade desse quilombo legal manter seus limites originais, em razão do modo de reprodução camponês (garantido pela herança, pelo casamento e pela descendência) entrar em conflito com a estrutura 162


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fundiária de ocupação privada e exclusiva da terra. A demarcação do território quilombola, com praticamente os mesmos limites da terra original, busca recuperar a continuidade territorial perdida no tempo. Cento e quarenta e cinco anos depois de sua fundação por um negro, o conflito presente na coexistência desigual entre uma terra de mercadoria e acumulação e uma terra de herança e acomodação pode ser resolvido com esta proposta para demarcar um território inalienável e coletivo, encaminhada pelos descendentes do fundador que resistiram às dificuldades e se mantiveram na terra. Durante a elaboração do Relatório Antropológico, os quilombolas escreveram uma carta de intenções. Nela, declaram tanto sua disposição para buscar parcerias que os ajudem no desenvolvimento de planos para o uso sustentável dos recursos naturais, como reconhecem a responsabilidade ambiental que o direito constitucional implica, pois este lhes confere direitos especiais no conflito entre “parques” e “gente”. Em resposta à ameaça de serem removidos de sua terra, se recusam a trocar a condição de produtores familiares do campo pela residência urbana, onde a dependência de um emprego para sobreviver anuncia um destino desfavorável de vida na periferia. Não se trata apenas de uma preferência de lugar para morar; sua resistência é baseada no sentimento de pertencer à terra que reivindicam. É por não quererem perder o lugar onde a sua história está escrita, lugar de suas raízes e de seu modo de vida, e por entenderem que se encontram acidentalmente em meio a um conflito socioambiental, que fazem questão de expressar suas intenções com relação ao uso do seu território tradicional. Sua proposta é de adesão, não de oposição aos ideais da conservação.

Referências CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e lei positiva nas alforrias de escravos no Brasil do século XIX. Dados. In: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v 28, n. 1, 1985. LIMA, Deborah, et al. Relatório antropológico de caracterização histórica econômica e sócio-cultural: o quilombo de Mumbuca, Baixo Jequitinhonha. NUQ-UFMG, 214 p. agosto 2007. MORENO, Cezar. A colonização e o povoamento do Baixo Jequitinhonha no século XIX: a guerra contra os índios. Belo Horizonte: Canoa das Letras, 2001. MOURA, Antônio de Paiva. O Jequitinhonha e o Mucuri na história de Minas. Disponível em: <http://www.asminasgerais.com.br/index.asp?item=co nteudo&codConteudoRaiz=95>. Acesso em: 19 de abril de 2007. 163


Vale do Jequitinhonha

MOURA, Margarida Maria. Os deserdados da terra. São Paulo: Editora Hucitec, 1978. TETTEROO, Samuel. OFM. Memória histórica e geográfica do município de Jequitinhonha. Teófilo Otoni: Typ. S. Francisco, 1919.

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A Presença Indígena no Vale do Jequitinhonha: A Difícil Memória Marivaldo Aparecido de Carvalho

Introdução

H

á uma lenda famosa na região do Alto Vale do Jequitinhonha, especificamente na região de Diamantina, a Lenda da Acaiaca. Era uma árvore frondosa, gigante, conhecida como a protetora do povo Puri que habitava a região. Segundo a lenda, enquanto ela vivesse os Puri existiriam, pois havia uma identidade existencial entre os Puri e a Acaiaca. Cientes desta história, os bandeirantes derrubaram a grande árvore e, logo após, segue a dizimação dos Puri; e do carvão da Acaiaca surgem os diamantes, pedras da riqueza e da maldição. Não cabe aqui discutir a realidade ou não da história acima contada, mas, ao menos, ela aponta questões fundamentais da relação entre colonizadores e a população indígena da região. Sedentos por ouro e pedras preciosas, os colonizadores levaram adiante a destruição do meio natural e dos povos que faziam deste habitat o seu meio de vida. De certa maneira, a lenda sintetiza o processo histórico da formação dos Vales Jequitinhonha e Mucuri, com o ataque violento aos povos indígenas e a devastação quase que completa dos recursos naturais da localidade. Vale lembrar que a relação natureza e cultura elaborada pelo pensamento indígena, não deve ser confundida com a visão que a nossa literatura, no período romântico, produziu sobre os nossos indígenas; trata-se de uma relação histórica e cultural, que produz visões de mundo diferenciadas. A nossa visão cartesiana da natureza, apesar de predominante, não é a única. Há no pensamento indígena a mesma perspectiva ontológica entre os humanos e não 165


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humanos. Para os povos indígenas não há distinção radical entre a natureza e os seres humanos. Por outro lado, a ação dos garimpeiros na busca pelas pedras preciosas não tinha a mesma consideração pelo mundo da natureza; este mundo só fazia sentido porque servia aos seus interesses econômicos. Já na região do médio, baixo Jequitinhonha e Mucuri o tipo de ocupação econômica, baseada num modelo agro-pastoril, permitiu por mais um tempo, espaços de florestas, onde os indígenas resistiam; de certa maneira a “proteção da Acaiaca” perdurou por mais tempo nesta região. Os diferentes modos de realização da atividade mineradora e da pecuária, que caracterizaram a colonização dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, influenciaram diretamente o processo de dizimação e resistência dos povos indígenas que habitavam a região. É comum ouvirmos dizer que o ouro de Minas Gerais financiou a revolução industrial, mas não é tão comum ouvirmos que a escravidão e a morte dos indígenas também “alimentaram” as engrenagens do capitalismo nascente. Estes fatos demonstram que a formação dos Estados- Nação se deu em detrimento dos povos originários e em consonância com a devastação do ambiente.

A Guerra Justa: a não humanidade indígena e o processo civilizatório Sabemos que a ampliação das fronteiras do Estado-Nação brasileiro sempre se confrontou com os povos indígenas e os projetos de desenvolvimento, assentados na ideia de progresso, sempre pensaram os povos indígenas como empecilho. Um dos emblemas da modernidade brasileira foi a chegada da família real no Brasil e a instalação da corte. Com a declaração da Guerra Justa em 1808 os indígenas foram caçados, escravizados e assassinados. Em Minas Gerais esta declaração se destinou diretamente aos indígenas chamados Botocudos, mas, também, afetou os outros povos, como podemos observar nesta passagem da Carta Régia datada de 13 de maio de 1808: ...para que se consiga a reducção e civilisação dos índios Botocudos, si possível for, e as das outras raças de Índios que muito vos recommendo e podendo também a Junta propor-me tudo o que julgar conveniente para tão saudaveis e grandes fins, particularmente tudo o que tocar a pacificação, civilisação e aldeação dos índios.168 168 Carta Régia, 1808.

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Cabe notar que o contato “civilizatório”, em Minas Gerais, com os povos indígenas se deu de forma descontínua, principalmente devido a fatores econômicos assim como ambientais. Em Minas Gerais este fato foi notório principalmente na região dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri. O alto Jequitinhonha se caracterizou pela ocupação com alta densidade populacional devido às minas descobertas e a busca por diamantes; nesta região as populações indígenas foram exterminadas rapidamente, mesmo aquelas que não resistiram diretamente, mas que foram dizimadas pelas condições de trabalho e pela violência. A área do Alto Jequitinhonha foi explorada e povoada em primeiro lugar por indução de fatores externos. A exploração do ouro e diamante era dirigida desde a Metrópole e o produto se destinava ao exterior, gerando a retroação de influxos das forças dinâmicas do mercado mundial, o que permitia a área crescer em população (adventícia ou não) e em extensão. Isto está evidenciado pela busca de novas lavras, quando, então, os colonos desalojaram ou destruíram os indígenas que ocupavam as terras correspondentes, os quais não se submetiam facilmente ao trabalho escravo.169 O baixo Jequitinhonha e o Mucuri permaneceram até a metade do século XIX quase que intocados. A ocupação nestas regiões se deu em uma economia agropastoril, com densidade populacional menor, havendo desta forma espaços e florestas onde as populações indígenas puderam desenvolver seu modo de ser e resistir às pressões da colonização. Não que não houvesse tentativas desde o início da colonização de prospecção de metais, pedras preciosas e outros “bens” nestas terras, porém, a resistência indígena e os aspectos ambientais retardaram este processo. O comércio de produtos agrícolas como algodão e cacau, além de atividades de pecuária, intensificou ainda mais os combates aos povos indígenas nas regiões do Jequitinhonha, Mucuri, São Mateus e Doce. Pois era nestas regiões que os indígenas podiam ainda ter a floresta como lugar de fuga e salvaguarda, por isso o combate intensivo aos mesmos. Enquanto no Alto os índios eram destruídos, caçados, aldeados para fins de trabalho escravo, no Médio e no Baixo Jequitinhonha, os índios conseguiram refúgio por mais tempo através das condições geográficas e pastoris favoráveis, que facilitavam a sua resistência contra as agressões dos aventu-

169 RUBINGER, 1980, p. 15.

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reiros e caçadores. Por algum tempo os diversos grupos indígenas que se refugiaram na mata do Jequitinhonha acabaram por encontrar aí meios para subsistência e sobrevivência na sua luta desigual contra os brancos invasores.170 Enquanto, para as populações indígenas, as florestas eram espaços necessários para a elaboração social de suas vidas, para o branco colonizador elas eram um espaço dissociado da essencialidade humana. “Vários discursos oitocentistas descrevem a mata em torno do Mucuri como um espaço destituído de história, como um estado caótico, no qual os gestos fundadores da civilização imprimiriam um sentido”.171 Vários estudos indicam que só a partir do início do século XIX é que houve ampliação do processo de ocupação do território do médio e do baixo Jequitinhonha, assim como do Vale do Mucuri. Essa ampliação foi provocada, em parte, pela decadência da mineração que já ocorria no alto Jequitinhonha e nas outras regiões mineradoras de Minas Gerais, o que forçou os colonos a buscar novas terras para, principalmente, a atividade de pecuária. Desta forma, a partir de então, os povos indígenas que tinham se dirigido a estas regiões entraram novamente em contato com os colonos. Segundo Johann Emanuel Pohl: O Termo de Minas Novas foi o último descoberto da Capitania de Minas Gerais e dessa circunstância procede seu nome. Foi no ano de 1724 que a pesquisa de vestígios de ouro que trouxe aqui os primeiros colonos; a riqueza aurífera que se atestou logo atraiu maior população. (...) Criase gados em amplas áreas. O gado e os produtos agrícolas alimentam atualmente (1817-1821) os habitantes, que, desde que diminuiu notavelmente a produção de ouro, que aqui ocorria tão abundantemente nos rios, estão inteiramente empobrecidos.172 O autor descreve a variedade de pedras que outrora eram encontradas nos leitos dos rios e justifica que o declínio da mineração se relacionava diretamente com a considerável queda do preço, motivada pela grande concorrência, as emboscadas dos botocudos, a que se expunham 170 MORENO, 2001, p. 51. 171 DUARTE, 2002, p. 23. 172 POHL, 1976, p. 331.

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os que iam em busca de pedras preciosas, e os freqüentes assassinatos que entre eles ocorriam, obrigou-os em grande parte a renunciarem a essa atividade e a se ocuparem com suas plantações que eram feitas em terrenos desmatados e que agora medravam viçosamente em toda parte.173 Continuando sua descrição, Pohl aponta o declínio da mineração no início do século XIX, mas este declínio significou uma diminuição da atividade não o fim da mineração. As observações realizadas por este viajante no início do século XIX demonstram que a ocupação do Vale Jequitinhonha se deu a partir das margens dos rios, enquanto que as matas ficavam sob o domínio das populações indígenas. Em todo Termo, os povoados estão situados nas margens dos rios e riachos e só raramente nesta região montanhosa um solo cultivável permite um maior afastamento dos cursos de água. A leste, as grandes e extensas matas são habitadas quase que exclusivamente por tribos selvagens, que na sua maioria ainda se encontram em estado primitivo, como os antropófagos botocudos, que consideram a selva natal como sua propriedade e impedem qualquer intromissão em seus domínios.174 Isto demonstra que os povos indígenas tiveram fluxo e refluxo no que se refere aos contatos com as frentes de colonização, o que nos faz pensar que os indígenas, durante estes diferentes momentos de contatos, elaboraram conceitos e técnicas de resistência sociocultural. A mata sempre foi, para o indígena, um lócus, um espaço possível de se ocultar para verdadeiramente ser. É neste sentido que o processo de devastação ambiental, por que passaram os Vales Jequitinhonha e Mucuri, teve como fundamento, além da questão econômica, a fragilização dos povos indígenas, que até então resistiam aos processos de extermínio sociocultural. Cabe salientar que este avanço sobre as terras indígenas fazia parte do projeto da Coroa. Segundo Duarte, a Coroa não tinha como objetivo primordial a escravização dos indígenas, apesar de usá-la, mas o objetivo fundamental era se apropriar das terras ocupadas por estes povos. Para o interesse da Coroa a “(...) natureza era, sim, valorizada, mas de acordo com o grau de controle humano, o que não ocorreu no Mucuri, onde se apresentou, absolutamente indômita para os conquistadores.”175 173 POHL, 1976, p. 331. 174 POHL, 1976, p. 332. 175 DUARTE, 2002, p. 30.

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A resistência pela memória Não caberia aqui dissertar sobre os fundamentos filosóficos que serviram de sustentação política para o Rei de Portugal declarar Guerra Justa aos Botocudos e outros povos indígenas. Mas, para resumir, cabe lembrar que o que estava sendo questionado era se os indígenas eram ou não humanos, ou se os indígenas possuíam a capacidade de se humanizar. Se sim: educá-los; mas, se não: a morte se fazia justa. Sabemos, porém, que outros interesses, por vezes, se ocultam nas fórmulas finais dos juízos filosóficos que sustentam um projeto econômico. Na Carta Régia fica claro o aspecto da não humanidade dos indígenas, em especial dos Botocudos. Além de declarar guerra aos indígenas, os mesmos são vistos como “objetos”, mercadorias, mais uma parte da natureza que precisa ser controlada e mantida para usufruto. Há uma naturalização dos indígenas: não possuem almas, qualquer tipo de sentimento, não possuem inteligência, religião, ordem. Os registros dos viajantes, com raras exceções, enfatizam a naturalização dos indígenas afastando-os de uma possível humanidade. Esta visão do europeu sobre os povos indígenas permitiu, de certa maneira, que os povos indígenas aldeados pudessem, mesmo em contato com os não indígenas, reproduzir sua visão de mundo, que se dava pela manutenção de práticas e costumes ancestrais, que não “conflitavam” diretamente com os interesses dos colonos e da realeza. Constituía-se assim numa resistência cultural que se dava paralelamente à resistência guerreira nos conflitos armados. Este “modelo” de resistência se coloca como fundamental para a atualidade dos povos indígenas em Minas Gerais, pois permitiu visualizar a contribuição indígena para o processo sociocultural do norte e nordeste de Minas Gerais, que vai além dos nomes de ruas e lugares, de acidentes geográficos e da contribuição do elemento étnico indígena para a constituição da pluralidade cultural dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri. Pode, também, nos indicar os caminhos traçados para que esses povos conseguissem viver atualmente física e culturalmente a sua identidade étnica. Nas anotações de Saint-Hilaire podemos observar que a resistência indígena se processava por vias diferentes em relação aos conflitos armados. Mesmo os povos que já se encontravam sob o jugo dos colonizadores não perdiam plenamente seus costumes e valores. Perpetuada pela tradição oral, essa memória nunca se apagou. Por vezes se ocultou, se revestiu de outras formas, mas sempre esteve presente no viver desses povos, caracterizando assim, a resistência sociocultural que lograra efeito pela maleabilidade do povo indígena, que, mesmo tendo seus corpos escravizados mantiveram vivos seus espíritos e sua visão de mundo. Assim: 170


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(...) os Macuni guardaram também grande respeito pelos costumes de seus antepassados. Gostam muito de conversar entre si, e à tarde, quando se reúnem em volta do fogo, que acendem sempre no chão, no centro da casa, os velhos contam a história das caçadas dos tempos passados, fazem o panegírico de seus maiores, soltam lágrimas em sua intenção. O comandante Magalhães incitava-os a fazerem modificações em suas flechas que as tornassem melhores; eles, porém, recusavam-se por respeito a seus ancestrais. Um dos costumes bárbaros que ainda conservam é o de dormir em volta do fogo despojado de roupas.176 A casa do conselho dos Malali descrita por Saint-Hilaire, possivelmente se referia a casa de rezas que ainda se encontra, nos dias de hoje, entre os Maxakali: Entre as casas da aldeia uma existe que não é habitada por ninguém: é a casa do conselho, que pertence à comunidade. Os homens mais velhos e considerados aí se reúnem, e deliberam sobre o que se deve fazer em circunstâncias extraordinárias, sobre as caçadas que se devem empreender, etc. Essa espécie de conselho é um remanescente de uma antiga instituição que tinham esses índios antes de renunciar a vida vagabunda das florestas. Então os mais valentes formavam uma reunião que se designava pelo nome de conselho dos bravos, e era esse conselho que decidia de todos os empreendimentos.177 Hoje em dia entre os Maxakali, que habitam o Vale Mucuri, existe a casa de rezas, um espaço masculino onde os homens da aldeia se comunicam com os espíritos Maxakali e através deste encontro eles organizam a vida na Aldeia: tomam decisões sobre o local onde erguer as casas, como se comportar diante dos não indígenas, etc. Além do vasilhame de barro, as mulheres (Macunis) faziam esses sacos de que falei acima (saco usado na coleta de batata doce). Fornecem-lhes o material de fabricação o algodoeiro e uma espécie de Crecopia (a imbaúba dos brasileiros), cujas folhas são verdes de ambos os lados. Para tirar partido 176 SAINT-HILAIRE, 2000, p. 213. 177 SAINT-HILAIRE, 2000, p. 182.

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desta última planta, tomam ramos tenros da crecopia, e começam a despojá-los da casca exterior. Em seguida, com a concha de um molusco, esfiapam as fibras lenhosas; separam-nas do tecido celular que as liga, e fazem assim uma espécie de estopa muito fina. Para fiar esta estopa, tomam as fibras, e torcem-nas sucessivamente, enrolando-as sobre as coxas nuas com a palma da mão. A espécie de cordão que resulta desse trabalho serve para fazer não só os sacos de rede, como também as cordas dos arcos. Quando as mulheres querem fazê-las, prendem trabalho à coxa por meio de um cordão, e o fio que empregam, enrolado em novelo, serve-lhes de naveta.178 Atualmente os Maxakali, que possivelmente são remanescentes destes indígenas, fiam, da mesma forma, as fibras da embaúba, para a confecção de bolsas e artesanato, usando a faca ou espátula no lugar das conchas. Eles declaram que antes usavam um tipo de taquara com que faziam “facas” que eram usadas para raspar a casca da embaúba. Podemos notar aí que a transmissão de conhecimentos se processou, e está presente nas populações indígenas que conseguiram resistir física e culturalmente às investidas constantes e permanentes dos não indígenas. Saint-Hilaire ainda descreve a paixão destes indígenas pelo álcool, um dos grandes problemas de saúde indígena e extremamente grave quando se refere aos Maxakali: São apaixonados pela aguardente, e, quando alguém lhes dá uma dose desse licor, importunam-no com pedidos até conseguirem esgotar a garrafa ou cair embriagados. (...) A dança é o maior prazer destes índios; entretanto, não é entre eles mais que um sapateado monótono, que acompanham com cantos grosseiros, e suas canções não têm, por assim dizer, o menor sentido. Tem uma que apenas consiste em longa enumeração dos animais que matam em suas caçadas; outras são mais ridículas ainda, tais como esta: abaai bitá popi amabá poaté poteice anári: Quando as mulheres vão urinar, as árvores olham e não dizem nada.179 Saint-Hilaire, ao elaborar suas opiniões sobre os indígenas, obviamente, não descreve o sentido profundo destes cantos e destas danças. Neste momento, 178 SAINT-HILAIRE, 2000, p. 213-214. 179 SAINT-HILAIRE, 2000, p. 214.

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sem saber, Saint-Hilaire descreve um ritual religioso, que hoje em dia os Maxakali chamam de “fazer religião” e o canto que ele tanto despreza é pensado hoje por alguns estudiosos como uma forma de ideograma. Por fim: “Viu-se que os Macunis tinham habilidade e que podiam aprender a ler, escrever, contar, servir como soldados, lavrar a terra; viu-se, porém, que eles eram despreocupados, inconstantes, preguiçosos, e dissipavam imprevidentemente seus parcos recursos.”180 Viveiros de Castro, 181 ao comentar sobre a inconstância da alma selvagem demonstra o desespero dos Jesuítas que, ao catequizarem os indígenas perceberam que a alma indígena era como a murta: apesar do esforço de estar sempre podando a murta para dá-la a forma que se queria, sempre surgia um ramo que desvirtuava a forma. Assim era o indígena, por mais que os colonizadores pensassem que os mesmos estavam batizados e convertidos ao catolicismo, sempre eram surpreendidos por práticas e costumes que mostravam a “inconstância da alma selvagem”.

A Guerra Justa, a Sétima Divisão Militar em Minas Gerais e os povos indígenas A organização da Coroa portuguesa concomitantemente com a declaração da Guerra Justa criou divisões militares (quartéis) para a manutenção e salvaguarda dos metais preciosos que o Brasil colônia gerava. A função destes quartéis era de “civilizar” o indígena criando aldeamentos onde os povos indígenas viravam força de trabalho escravo, no trato com a terra; ao mesmo tempo eram forçados ao batizado e usados como “línguas” no processo de ataque e captura de outros povos indígenas, que ainda “teimavam” em não se render ao processo civilizatório engendrado pelas frentes de colonização. Assim, a declaração da Guerra Justa aos “selvagens” está intimamente ligada à formação territorial e política dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. A presença mais marcante de aldeamentos e quartéis foi na região do Baixo Jequitinhonha “onde foi instalada a 7ª divisão Militar com seus quatro quartéis: Quartel de São Miguel, Quartel de Vigia, Quartel do Salto Grande e Quartel do Bonfim ou da Água Branca”.182 Em 1789, em Virgem da Lapa, antiga São Domingos, próximo à confluência dos rios Araçuaí e Jequitinhonha, fora fundado o aldeamento de Lorena 180 SAINT-HILAIRE, 2000, p. 215. 181 VIVEIROS DE CASTRO, 2002. 182 MORENO, 2001, p. 48.

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de Tocoyós, onde se constatou a presença de Maxakali.183 Neste sentido a presença indígena permeia o processo de formação do que viria a ser a população atual do Vale Jequitinhonha; o processo de trocas culturais se deu entre os indígenas e escravos negros e os brancos, sendo que estes últimos vinham da Bahia, constituindo assim os primeiros núcleos de população rural dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Há, por parte de alguns estudiosos, a ideia de que a denominação Tocoyós se referisse a uma população indígena específica. Porém eram os Maxakali os povos que lá habitavam, mas lá estavam em busca da “proteção” de suas vidas. Mas para traçarmos um quadro das populações indígenas que habitaram as regiões dos Vales Jequitinhonha e Mucuri precisamos de certa maneira romper a “rigidez” dos limites geográficos e passarmos por regiões como o Vale do Rio Doce. Ao se referir à região de Peçanha, Saint-Hilaire descreve as populações indígenas lá encontradas. Na época em que os primeiros portugueses chegaram à região era ela habitada por uma tribo indígena denominada Malalis, muito mais mansa que os Botocudos. Parece que já negros fugitivos tinham vindo estabelecer-se entre esses povos, e vi em mapas manuscritos Passanha indicada como uma região recentemente descoberta onde os índios eram governados por uma negra. Seja como for, com a aproximação dos portugueses, os Malalis a princípio debandaram; mas, tendo sido perseguidos pelos Botocudos, seus inimigos vieram procurar asilo junto aos novos habitantes, com os quais pouco a pouco se familiarizaram. Deixaramnos lavrar a terra; alguns deles empregaram-se para trabalhar em casas de portugueses, e alguns admitidos no destacamento, tornaram-se utilíssimos pelos conhecimentos que tinham de seus inimigos; finalmente foram batizados, e se civilizaram pelo menos tanto quanto permitiam sua índole e as circunstâncias em que se achavam. Aos Malali se juntavam quatro outras tribos ou restos de tribos que também fugiam das perseguições dos Botocudos, ou que apenas buscavam melhorar sua sorte, os Panhames, os Copoxós, alguns Macunis e Monoxós (...). Essas tribos, reunidas ao posto português, formaram, às margens do Suçuí uma úni183 MORENO, 2001, p. 64.

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ca povoação à qual se deu o nome de Porto de Santa Cruz e essa pequena colônia tornava-se dia a dia mais florescente, quando, em 1814, uma doença epidêmica ceifou grande parte de sua população.184

Desta doença epidêmica morreram quase todos os indígenas: estes estão hoje em dia reduzidos aproximadamente a uma centena, e não resta mais que cinco Panhames e um Copoxó. Se se conservaram mais os Malali é que seu chefe, tendo já perdido muita gente, declarou ao comandante português Januário, que queria retirar-se; e, com efeito, ainda em tempo foi procurar outro asilo.”185 Disse há pouco que os Malalis acreditavam ter com os Monoxós origem comum. Os índios de Santo Antonio conservaram, com efeito, algumas tradições históricas. Pretendem que os Panhames, os Malalis, os Pendis ou Pindis, os Monoxós, os Coroados, etc., descendem de um pai comum; que antigamente formavam uma só nação; mas que, tendo-se a discórdia intrometido entre eles, se separaram e formaram várias tribos diferentes. Entretanto estes índios se consideram de certo modo filhos de uma só família, e é, sem dúvida, por essa razão que eles facilmente se fundiram quando se aproximaram dos portugueses. Segundo eles, os Monoxós, originariamente denominados Munuchus, começaram a guerra que desde então nunca cessou entre os Botocudos e as diversas nações de origem comum. Para impedir a extinção de sua tribo, esses selvagens raptaram as mulheres dos Botocudos, e essa é a origem do ódio que desde então sempre existiu entre esses últimos e os Monoxós, Malalis, etc.186 Estas informações coletadas por Saint-Hilaire forneceram, se assim podemos dizer, as bases para se formular a hipótese de que essas tribos receberam o nome genérico de Maxakali. Vários autores, entre estes Nimuendaju, 187 salien184 185 186 187

SAINT-HILAIRE, 2000, p. 176. SAINT-HILAIRE, 2000, p. 177. SAINT-HILAIRE, 2000, p. 182. NIMUENDAJU, 1958.

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taram que o nome Maxakali era um nome estranho, para os próprios Maxakali. A denominação Maxakali, portanto, se referia à reunião de subgrupos indígenas aliados na luta contra os Botocudos e que foram aldeados conjuntamente. Esta informação se torna importante, pois os colonizadores tentavam reduzir a diversidade social indígena a conceitos genéricos, como no caso da denominação Botocudos. Desta forma, a nomenclatura dos povos indígenas entre as regiões do Rio Doce e do Rio Jequitinhonha pode ser assim descrita: A partir dos dados, conclui-se que os grupos que compunham essa pan-tribo e se localizavam entre os rios de Contas e Doce, mas, particularmente, entre Jequitinhonha e Doce, eram os: Pataxó/Patacho; Monoxó/ Manaxó/ Mapoxó/ Momaxó/ Maxakan/ Maxakó/ Kumanoxó/ Cumanachó/ Comanaxó/ Kutatoi; Maxakali/ Machakalizes/ Machacaris/ Macachakalizes/ Malakaxi/ Malakaxeta; Malali/Malalizes; Makoni/ Maconés/ Macunins/ Makuinins/ Maquaris/ Bakoani/ Maconcugi/ kopoxó/ Copoxó/ Gotochós e Panhame/ Bonito/ Bonitó.188

Saint-Hilaire fala também dos Macuni da Aldeia Alto dos Bois: Em 1787, não havia neste local mais de três portugueses, e seu número não aumentou depois disso. Um dia, contou-me um deles, que a princípio se instalara a meia légua da Aldeia, esses colonos viram chegar três índios da nação dos Macunis. Foram bem recebidos, deram-lhes machados, e eles voltaram. Entretanto, no ano seguinte, a nação inteira apresentou-se diante dos portugueses, e era acompanhada dos Malalis, que, como vimos, estão atualmente em Passanha. Essas tribos vinham refugiar-se no meio dos homens de nossa raça fugindo à perseguição dos Botocudos, inimigos de todas as demais nações indígenas. Então os Macuni não possuíam a menor idéia de civilização; os homens e as mulheres ignoravam o uso de roupas; um simples cordão bastava para garantir o pudor dos primeiros, e era unicamente quando ele se desprendia que manifestavam alguma vergonha. Esses selvagens 188 PARAISO, 1998, p. 284.

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dirigiam-se à Vila do Fanado, e lá lhes foram fornecidas vestes e instrumentos de ferro. Da sede do termo voltaram para Alto dos Bois, e estabeleceram-se a margem de um regato, em uma depressão coberta de matas, a meia légua da atual aldeia. No entanto, os Malali separaram-se dos Macuni, e estes ficaram sós; cedendo por sua vez, à inconstância natural dos índios, retiraram-se de S. Antônio do Ferro, e não regressaram senão ao cabo de alguns anos.189 Teófilo Otoni descreve com mais detalhes a passagem dos Malalis em Alto dos Bois: Os Malalis em 1787 perseguidos pelos Naknenuks apresentaram-se no Alto dos Bois, nove léguas distante de Minas Novas, e aí ficaram aldeados junto ao quartel das divisões. Diz-se que alguns comandantes das divisões mostraram predileção pelos soldados indígenas. Não só eram mais conhecedores das matas, como também não sabendo exprimir-se nem conhecendo o valor do dinheiro, eram menos exigentes na conta do soldo. No Alto dos Bois os Malalis voluntários ou recrutados sentaram praça nas divisões. Tendo alguns desertado, sofreram castigos severos, bem como pessoas de suas famílias acusadas de haverem acoitado os desertores. A proteção dos cristãos, assim exercida, começou a parecerlhe mais intolerável do que a guerra com seus irmãos da floresta. Em uma bela manhã o comandante do quartel do Alto dos Bois achou a aldeia completamente abandonada.

189 SAINT-HILAIRE, 2000, p. 210-211.

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Os Malalis tinham ido tentar fortuna nas suas florestas. Infelizes! Eram muito fracos para medir-se com os terríveis botocudos. Vencidos, e dizimados acolheram-se novamente à proteção dos cristãos.190 Em São Miguel, a sede da Sétima Divisão Militar, Saint-Hilaire conheceu o chefe Botocudo Joaíma. A relação da Sétima Divisão com os Botocudos começou a dar resultados quando estes últimos se viam “dependentes” de tabaco, aguardente e açúcar; alimentos, que segundo Saint-Hilaire os Botocudos apreciavam muito e por isso se aglutinaram ao quartel. O capitão Joaíma se estabeleceu em São Miguel. Os Botocudos foram escravizados pelos colonos que não possuíam escravos negros. “Vi perto de Passanha, vários Botocudos de todas as idades que tinham sido capturados na primeira infância, e viviam nas casas dos portugueses trabalhando para eles. (...) Tem vigor e mostram-se bastante laboriosos, e os portugueses gabam bastante de seus serviços”.191 Segundo Saint-Hilaire os Botocudos se autodenominavam Crecmun tanto no Jequitinhonha como no Rio Doce. Segundo Soares192 a variedade de nomes de Botocudos se referia ao nome de cada chefe Botocudo, mas os portugueses confundiam pensando que a variedade de nomes indicava povos diferentes; porém eram subgrupos de uma única família Aimorés. Cada líder Botocudo tinha um domínio determinado dentro da floresta e trazia consigo e para seu grupo o usufruto dos alimentos e caças que esta área permitisse, impedindo que qualquer outro grupo ultrapassasse seus domínios. Os Botocudos gostam do período da seca, pois é o período do amadurecimento das sapucaias e dos cocos. Nessa ocasião, se afastam das margens do rio Jequitinhonha para irem para as florestas em busca da sapucaia e para as montanhas em busca dos cocos. Usam o cansanção como erva medicinal, esfregando pelo corpo. Aspectos educacionais que estes povos usavam transparecem nas entrelinhas dos viajantes: (...) mal uma criança aprende andar, já lhes metem nas mãos um arco e flechas proporcionadas a seu tamanho, e faz seus primeiros ensaios sobre insetos; exercita-se, em seguida, sobre passarinhos, e, em breve, é capaz de ir por si só procurar seu sustento; antes de ser homem, já não tem 190 OTONI, 2002, p. 43. 191 SAINT-HILAIRE, 2000, p. 184. 192 SOARES, 1991.

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mais necessidade de seus pais, e escolhe uma companheira. Resulta tudo isso que a afeição entre pais e filhos deve ser fraquíssimo laço para estes selvagens.”193 Aqui observamos como a população indígena, mesmo em situação de opressão e conflito constantes, conseguia reproduzir seus modelos educacionais recriando assim os processos culturais de sua tradição. A descrição de um ataque a uma aldeia de Botocudos demonstra a ferocidade dos colonizadores: Dava-se uma vela a cada soldado, e penetravam pela espessura das matas, precedidos de alguns índios civilizados que conheciam as localidades. A algazarra das crianças e os cantos bárbaros com que esses homens acompanham as danças a que se entregam ordinariamente ao fim do dia, davam a conhecer o local em que o grupo de Botocudos ia pernoitar. Era sempre em um vale, à margem de um regato. Cercava-se por todos os lados o acampamento dos selvagens; deixavam-nos passar a noite em completa segurança; e ao raiar do dia viam-se cercados. Então começava o combate; os portugueses disparavam tiros de espingarda, e os Botocudos lançavam flechas. A pouco e pouco diminuía-se o círculo que se formara em torno destes últimos, e quando certo número já sucumbira, os restantes investiam sobre os inimigos, a fim de abrir passagem e fugir. Finalmente, quando não restavam mais no seu meio senão mulheres e crianças, os portugueses capturavam-nas e levavam-nas à força. As mulheres a princípio soltavam grandes gritos; mas apenas caminhavam um pouco, pareciam conformadas, e apegavam-se a seus condutores. Quanto aos homens, se acontecia prenderem-se alguns, fechavam os olhos, negavam-se responder às perguntas que se lhes dirigia em sua própria língua, e deixavam-se matar. Os Botocudos, temendo bastante as armas de fogo, não atacam os portugueses de frente; escondem-se por trás das árvores, e lançam flechas aos que passam ao alcance.194

193 SAINT-HILAIRE, 2000, p. 259. 194 SAINT-HILAIRE, 2000, p. 184.

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Saint-Hilaire criticava as guerras aos Botocudos e acreditava num processo de catequização e aldeamento dos índios. Ele criticava também a intenção de computarem aos Botocudos uma voracidade caracterizada pela antropofagia: Devo aqui dizer que Firmiano, o Botocudo que me seguiu durante vários anos, repelia a acusação de antropofagia como uma mentira inventada pelos portugueses, a fim de terem pretexto para fazer mal a sua nação; mas, ao mesmo tempo, acrescentava que poderia ter dado ensejo a essa calúnia o hábito que tinham seus compatriotas de cortar em pedaços o corpo dos inimigos já privados de vida.195 Assim, Saint-Hilaire indica as pistas de uma invenção colonial que se caracterizava pela anulação da humanidade nos indígenas, transformando-os em verdadeiros monstros. Outros viajantes realçavam esta monstruosidade seja pela feiúra dos indígenas ou pela falta de sentimento; Pohl ao descrever um encontro com os Botocudos (esse autor se referia a hordas quando falava dos grupos indígenas) apontava o que, aos seus olhos, expressava bem a falta de sentimento e de beleza desses povos: Mal havíamos deixado a nossa canoa e já avistamos na outra margem alguns Botocudos que em altos brados nos pediam mandioca e farinha de milho. Em breve chegaram à ilha, nadando, quatro deles, dois homens e duas mulheres, que, com o habitual encolhimento da barriga, nos mostraram que tinham o estômago vazio. Nessa mímica tem essa gente particular habilidade, pois a região umbilical parecia ficar rente à espinha dorsal. Um desses Botocudos se distinguia pela feiúra. Era um velho desdentado, que tinha o lábio inferior e os lóbulos das orelhas (onde, como se sabe, os botocudos metem um batoque de madeira) inteiramente dilacerados, de modo que os farrapos de carne dessas partes pendiam molemente. Além disso tinha pintado de urucu (Bixa orellana) todo o rosto, que, como o corpo, estava todo coberto de úlceras sifilíticas, dando-lhe aspecto assustador e repugnante (...). Deixamos então a ilha e ouvimos, ecoando, os sons lamurientos que com face tristonha entoava o velho botocudo e que nos davam a entender que

195 SAINT-HILAIRE, 2000, p. 185.

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estava satisfeito por ter enchido a barriga. Mesmo quando animados de sentimentos alegres, essas tribos demonstram uma espécie de indiferença e logo esquecem as alegrias gozadas. (...) A circunstância de que só em Salto Grande iríamos reencontrar sociedade humana muito nos afligia.196 Teófilo Otoni denunciou a violência praticada contra os indígenas, a caça às crianças indígenas, assim como o uso de roupas contaminadas que dizimaram aldeias inteiras. “Conta-se até o horroroso caso de uma tribo inteira vítima dos sarampos, que com fim de exterminá-la lhe foram perfidamente inoculados, dando-se-lhes roupas de doentes atacados daquele mal”.197 Otoni via aí o motivo das reações indígenas. Quando o comandante Julião veio fixar-se em São Miguel, trouxe consigo uma tropa de índios, chamados Machaculis, que como os Malalis, Macunis, etc., procuravam entre os portugueses asilo contra os Botocudos. Estes últimos, tendo-se aproximado dos brancos, dirigiram-se um dia a Julião e pediram-lhe permissão para matar e comer as crianças Machaculis, que, diziam eles, eram muito gordas.198 Os Maxakali estavam também localizados próximos a Ilha do Pão próxima ao quartel de São Miguel. Segundo Saint-Hilaire os Maxakali primeiramente pediram asilo em Caravelas. Aparentemente foram inúteis os esforços civilizatórios para reduzir este povo numa aldeia e utilizá-los como mão de obra, pois os mesmos eram “amigos da independência, habituados à vida nômade, apaixonados pela caça, não se acostumaram a cultivar a terra...”.199 Estes mesmos índios ao perceberem que em Caravelas eles não eram mais alimentados, ou seja, não havia mais dispêndio econômico por parte dos colonizadores em investir em sua “civilização” resolveram se retirar do litoral e, em meio à mata, caminharam até a proximidade de Tocoios onde se “fixaram” em 1801. Quando os Maxakali se apresentaram a população de Tocoios, se apresentaram como indígenas que nunca tiveram contato com os brancos “civilizadores”. Esta artimanha fora usada pelos Maxakali para poderem receber comida, instrumentos de metal como machado, facão e, ao mesmo tempo, não serem usados diretamente como escravos. Porém, em 1804, João da Silva 196 197 198 199

POHL, 1976, p. 345-346. OTONI, 2002, p. 56. SAINT-HILAIRE, 2000, p. 254. SAINT-HILAIRE, 2000, p. 271.

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Santos, primeiro explorador do curso do baixo Jequitinhonha, “(...) ficou não pouco admirado ao chegar a Tocoios e de aí encontrar esses Machaculis, com os quais já se tinham feito tão grandes despesas na comarca onde ele era capitãomor.”200 Logo depois da descoberta de que os Maxakali ali localizados já vinham de um aldeamento e que os mesmos já tinham sido batizados, foi aconselhado à administração de Tocoios que distribuísse os indígenas entre os colonos da vizinhança. Todavia quando foi criada a Sétima Divisão, reuniram toda tribo para utilizá-la no caso em que se fosse forçado a fazer guerra aos Botocudos. Os Machaculis seguiram o comandante Julião a S. Miguel, onde lhes foram dadas terras; mas, como os soldados da divisão cotejavam suas mulheres, pediram permissão ao comandante para deixar o povoado, e foram estabelecer-se rio abaixo. Alguns deles, que tinham ficado na Província da Bahia, vieram juntar-se aos outros, e são atualmente cerca de uma centena.201 Pohl fala dos Maxakali do Córrego dos Prates: No Córrego dos Prates, onde, para o interior, a um quarto de légua de sua embocadura no Jequitinhonha, fica, em plena mata, a aldeia dos maxacalis. Atualmente essa aldeia é habitada pelos índios da tribo maxacalis, que antes vivia no Rio Mucuri, perto de São Mateus de Caravelas. Em pouco, uma trilha estreita, que serpeava entre as densas árvores, nos levou à aldeia dos maxacalis, que fica situada bem próxima do Córrego dos Prates e tem muitas plantações de banana, mandioca, milho e feijão. De regresso encontramos um botocudo que, juntamente com sua mulher, conduzia uma mocinha maxacalis, a qual, com a nossa aproximação, fugiu para o mato como um animal assustado. A aldeia dos maxacalis consta apenas de cinco choças, cujas paredes e tetos são feitos de palhas de palmeira frouxamente entretecidas e alguns abrigos baixos do habitual formato hemisférico. Essas choças limitam uma praça irregularmente quadrilátera, em cujo centro se acha um poste branco de braça

200 SAINT-HILAIRE, 2000, p. 271. 201 SAINT-HILAIRE, 2000, p. 272.

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e meia de altura, em torno do qual estes índios costumam executar suas danças e no qual se viam, pintadas de terra vermelha, muitas figuras confusas, entre as quais, contudo, se podiam distinguir claramente algumas cobras e rãs.202 O rio Jequitinhonha, em suas margens, no início de século XIX possuía uma população indígena, estimada pelos colonos, de mais ou menos 2000 indivíduos. Oiliam José203 fez uma lista dos povos indígenas de Minas Gerais, da qual se destaca uma síntese de alguns povos indígenas encontrados nas regiões do Vale Jequitinhonha e Mucuri excetuando os que já foram comentados no decorrer do texto. Os indígenas Aranãs da família dos “Botocudos” moravam próximos a mata do Rio Urupuca, e seu território correspondia as atuais cidades de Capelinha, Itambacuri e Malacacheta; os Chãs habitavam a região de Vila do Príncipe e Minas Novas; os Cotoxós, no período do século XVIII, habitaram a região dos municípios de Araçuaí e Minas Novas; Farranchos habitaram a região de Araçuaí e Itinga até o século XX; os Monoxós corriam o sertão do leste em constante conflito com os Botocudos; os Nacarenes viviam na região de Minas Novas; os Pojichás constituíam algumas tribos que habitaram o rio Mucuri e São Mateus; os atuais Mucorin do Vale Mucuri, próximo a Teófilo Otoni, possivelmente são descendentes dos Pojichás.

Conclusão: pequeno quadro da situação atual dos Povos em Minas Gerais nos Vales Jequitinhonha e Mucuri Duarte,204 ao falar sobre os olhares estrangeiros de viajantes que passaram por esta região de Minas Gerais, demonstra como estes e o poder público olhavam os indígenas e as grandes áreas de mata: os indígenas e as florestas eram pensados como entraves para o processo de expansão e conquista colonial. Deste modo, para o pensamento ocidental do conquistador a presença das matas vigorosas, assim como a presença dos selvagens, significava a necessidade de civilização. Este tipo de visão foi exemplar no processo de ocupação do Vale do Jequitinhonha como no Vale do Mucuri. Estas duas regiões estão localizadas no limite de três estados: Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo. O processo 202 POHL, 1976, p. 353-354. 203 JOSÉ, 1965. 204 DUARTE, 2002.

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de ocupação destes vales redundou, como já foi dito, no extermínio indígena e também na destruição de grandes matas. Até a segunda metade do século XIX, em certo sentido, esta área ficou isolada do processo de expansão colonial. Entre os vários fatores que podem explicar esse isolamento destaca-se a presença de selvagens, ou seja, a presença de povos indígenas até a primeira década do século XX. Durante todo o século XVIII, as vastas regiões do leste de Minas foram consideradas “áreas proibidas”, isto é, as áreas dos sertões do leste onde foram interditadas as explorações para servirem de barreira natural ao contrabando. Essa interdição somente foi suspensa em algum momento do século XIX. O poder público declarou que o grande obstáculo a ser vencido seria as populações indígenas, e seriam vencidas por uma política indigenista agressiva. Compreender-se-ia que o processo de ocupação colonial, exemplificado pela destruição das matas, levaria os indígenas a aceitarem a dominação, mas, se isso não acontecesse, a violência contra os indígenas seria a solução. Este processo de ocupação levaria os indígenas à morte ou à escravidão. Deste modo duas ações aconteciam de maneira simultânea: a invasão das terras pelos colonos, que se tornavam proprietários, e a distribuição, sem nenhum custo, de mão de obra escrava indígena. Mas contrariamente à perspectiva do poder público, os indígenas demonstravam um grande poder de resistência cultural que os mantiveram vivos até os dias de hoje. Vivos, porém sofrendo de grande estigma, pois, se na época da colonização eles eram vistos como canibais, violentos e selvagens, hoje sofrem preconceitos e carregam consigo o estigma de bêbados, desordeiros, preguiçosos, etc. Esses indígenas são vistos como um sinal de atraso, de incivilidade, apesar dos quinhentos anos passados. Atualmente nos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri ainda há a presença de povos indígenas. Cabe lembrar, porém, que no Jequitinhonha não encontramos, com exceção dos Aranã, povos indígenas originários da região. Os povos que habitam o Vale do Jequitinhonha, como os Pankararu, são originários do nordeste brasileiro. Atualmente os Vales do Jequitinhonha e do Mucuri possuem a maior concentração de etnias indígenas que habitam Minas Gerais. Cabe lembrar que os Xacriabá do Norte de Minas Gerais possuem a maior população indígena. Segundo Geralda Soares205 assim se apresentam atualmente os povos indígenas nos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri:

205 SOARES, 2008.

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Aldeia Cinta Vermelha Jundiba (Pankararu) A aldeia Cinta Vermelha Jundiba, localizada no município de Araçuaí, na região do médio Jequitinhonha, é formada por 05 famílias, totalizando 30 pessoas, pertencentes aos Povos Pankararu e Pataxó. Seus moradores são migrantes de outras aldeias (Brejo dos Padres, Pernambuco, município de Tacarat, e da Terra Indígena Pataxó em Carmésia, MG). O território onde vivem as famílias se situa às margens do rio Jequitinhonha e da BR 342. Há outro grupo Pankararu próximo a cidade de Coronel Murta.

Aranã Descendentes dos Borun conquistaram recentemente o reconhecimento como povo indígena, não possuem territórios e nem aldeias específicas. Os grupos familiares habitam principalmente as regiões de Araçuaí e Coronel Murta, porém estão lutando constantemente na busca de seus territórios e direitos, como povos indígenas, principalmente na área de educação e saúde.

Comunidade dos Xavier (Mucoriñ) No século XIX os Frades Serafim de Gorizia e Ângelo de Sassoferrato se aliaram ao Capitão POHOK, líder do Povo Mocuriñ, de origem Borun, e ao intérprete Felix Ramos da Cruz e fundaram o Aldeamento de Nossa Senhora dos Anjos de Itambacuri. Ali funcionou a primeira escola indígena bilingue de Minas Gerais e onde lecionou Domingos Ramos Pohok, primeiro professor indígena do Estado e de quem os atuais Mocuriñ são bisnetos e bisnetas. Do aldeamento, originaram-se as cidades de Itambacuri e Campanário, localizadas na divisa do Vale do Mucuri e Vale do Rio Doce. Atualmente o Povo Mocuriñ vive a 10 km da BR 116, no Município de Campanário, tendo um número aproximado de 150 pessoas nas áreas urbana e rural. A comunidade dos Xavier é uma referência nesse cenário, vivendo em uma área de 19 “alqueires mineiros”.

Aldeia Jacó Os Pataxó Hã Hâ Hãe são originários da Terra Indígena Caramuru Paraguassu no Município de Pau Brasil, sul da Bahia. Assim como os Pankararu e Pataxó, são resultado da migração de indígenas devido a conflitos agrários nas suas 185


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terras tradicionais no nordeste. Na década de 1950, a família de Jacó Firme de Souza foi transferida para o território Maxakali por um funcionário do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), depois de grandes conflitos pela posse do seu território com fazendeiros e plantadores de cacau. Não se adaptando entre os Maxakali se mudaram para a cidade de Bertópolis, vivendo sempre em comunidade.

Maxakali Uma das tribos que conseguiram, apesar de todas as tentativas de extermínio, permanecer possuidoras dos vários aspectos da sua cultura, foi a dos Maxakali, que hoje se encontra dividida em quatro aldeias no Vale Mucuri: Aldeia Água Boa e Pradinho nos municípios de Santa Helena e Bertópolis; a Aldeia Verde, no município de Ladainha; Aldeia Cachoeirinha, em Topázio. Estas duas últimas existem desde 2007. Em outubro de 2007, na Aldeia Pataxó, localizada no município de Carmésia, próximo à cidade de Guanhães, foi oficializado pelos indígenas o COPIMG, Conselho dos Povos Indígenas de Minas Gerais. Essa instituição é constituída apenas por povos indígenas e visa a ampliar os processos de luta de povos que “teimam” em viver.

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Foto: Clara Karmaluk


O Rio não Corre para o Mar: Os Movimentos Sociais e as Lutas Populares do Jequitinhonha nos Anos 1980 e 1990 Ricardo Ferreira Ribeiro

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ste artigo mais do que uma proposta de “participação observante” é o resultado de uma vivência junto aos movimentos sociais do Vale do Jequitinhonha nos anos 1980 e 1990, como militante, assessor, mediador, etc. No início daquela década, fui contratado para trabalhar na região pela Secretaria Estadual do Trabalho e Ação Social em um programa de desenvolvimento rural integrado. Depois de ter participado de uma greve de funcionários públicos, acabei, junto com quase todos os meus colegas, sendo dispensado e me envolvendo na criação de uma ONG (Centro de Assessoria aos Movimentos Populares – CAMPO). Nos anos 1990, apesar de ter mudado para Belo Horizonte para fazer meu mestrado, continuei vinculado à região seja como pesquisador, seja como assessor da Comissão Pastoral da Terra, atuando de forma muito próxima a vários movimentos da região. Assim, mais do que o resultado de uma pesquisa, ou mesmo de uma observação sistemática, este trabalho é fruto das minhas memórias referentes a experiências tão ricas e diversificadas vividas no Vale e, certamente, carece de rigor metodológico e de dados mais objetivos. Se possui estas limitações, no entanto, tem a vantagem de apresentar um conjunto de questões que, muito provavelmente, não poderiam ser resgatadas por um pesquisador que não estivesse tão de perto envolvido com a temática, pois, infelizmente, muitos movimentos não deixaram uma documentação na forma de jornais, panfletos, etc e várias pessoas que deles participaram já não vivem mais. É, sobretudo, para estes homens e mulheres, que ousaram reverter 189


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o fluxo histórico da dominação e mostrar que nem sempre “o rio só corre para o mar”, que este trabalho é dedicado. O Jequitinhonha, já consagrado como o “vale da miséria”, era visto, nos anos 1980, tanto em trabalhos acadêmicos, como em diagnósticos de vários órgãos públicos (CODEVALE, Fundação João Pinheiro, Secretarias de Estado, etc), como uma região que ficou estagnada e isolada por quase 150 anos, no período que vai do início do século XIX, quando atividades como a mineração de ouro e diamante e a exportação de algodão entram em declínio, até os anos 1970, marcados pela expansão da pecuária e a implantação de grandes áreas de eucalipto e café na região: A decadência das atividades econômicas para a exportação de ouro e algodão principalmente, resultou na desagregação da sociedade local, com a involução dos núcleos urbanos, isolamento dos povoados, declínio das vias de comunicação com o mundo exterior e a criação de uma estrutura agrícola que possibilitasse a auto-manutenção da região – a agricultura de subsistência.206 Este isolamento é especialmente identificado nas comunidades rurais do Vale: “As condições de vida dos grupos camponeses sempre foram muito difíceis, tanto em relação às condições materiais como em relação às condições sociais de vida. (...) Um viver rústico, socialmente isolado, (...)”.207 É verdade que, no início dos anos 1980, muitas moradias e comunidades rurais não possuíam estradas de acesso e que várias cidades ainda não contavam com rodovias asfaltadas, ou serviço de telefonia, nem com a circulação de jornais, sendo as emissoras de rádio e a televisão de fora da região as principais fontes de notícias. Pretende-se, no entanto, demonstrar que o isolamento não impediu que se organizasse, naquela década, um diversificado e vigoroso conjunto de movimentos sociais na região, muitos deles com forte presença camponesa, em sintonia com uma conjuntura nacional de grande mobilização no momento em que a Ditadura Militar se via obrigada a realizar um processo de abertura política. A década de 80 foi extremamente rica do ponto de vista das experiências político-sociais. A luta pelas Diretas-Já em 1984 e pela implantação de um calendário político que

206 VOLL, 1985, p.15. 207 GRAZIANO; GRAZIANO NETO, 1983, p.100.

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trouxesse de volta as eleições para a Presidência do país, a luta pela redução do mandato presidencial, o processo Constituinte, o surgimento das Centrais Sindicais (CONCLAT, CGT, CUT, USIS, FORÇA SINDICAL), a criação de entidades organizativas amplas do movimento popular (ANAMPOS, CONAM, PRÓ-CENTRAL), o surgimento de inúmeros movimentos sociais em todo território nacional, abrangendo diversas e diferentes temáticas e problemáticas, como das mulheres, negros, crianças, meio ambiente, saúde, transportes, moradia, estudantes, idosos, aposentados, desempregados, ambulantes, escolas, creche etc., todos, em seu conjunto, revelavam a face de sujeitos até então ocultos ou com as vozes sufocadas nas últimas décadas. Os anos 80 são fundamentais para a compreensão da construção da cidadania dos pobres no Brasil, em novos parâmetros. Embora com o estatuto de cidadãos de segunda categoria, .os pobres saíram do submundo e vieram à luz como cidadãos dotados de direitos — direitos estes que são inscritos na Constituição mas, usualmente, negados ou ignorados na prática.208 Também no Vale do Jequitinhonha, a década de 1980 está marcada pela constituição de movimentos e lutas sociais em direção à construção da cidadania, rompendo com um passado autoritário, no qual a dominação das elites locais se sintonizava com o quadro mais amplo da Ditadura Militar. Vem à tona uma grande diversidade de questões sociais, colocadas por variados atores, em diferentes situações locais e em momentos distintos daquelas duas décadas. Longe de pretender esgotar todo um conjunto de movimentos e lutas surgidos no período, optou-se por tentar apresentar e analisar os mais importantes, não dentro de uma perspectiva cronológica, mas de uma abordagem que evidenciasse sua diversidade.

Comunidades eclesiais de base (CEB´s) Muitos estudos sobre os movimentos sociais deste período apontam a importância das comunidades eclesiais de base (CEB´s) para a sua organização. Maria da glória Gohn, por exemplo, afirma que: 208 GOHN, 2003a, p.26.

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No Brasil e em vários outros países da América Latina, no final da década de 70 e parte dos anos 80, ficaram famosos os movimentos sociais populares articulados por grupos de oposição ao então regime militar, especialmente pelos movimentos de base cristãos, sob a inspiração da Teologia da Libertação”.209 As CEB´s surgem e se organizam sob a orientação desta nova perspectiva de alguns setores progressistas da Igreja Católica, que representa não só uma ruptura com a história da Igreja no continente, mas também com outras práticas de organização popular presentes na atuação da esquerda tradicional e se insere no contexo de articulação do debate ideológico e da prática política de base. Realmente, com a Teologia da Libertação, a velha aliança entre a Igreja Católica, o Estado e as classes dominantes da América Latina foi desafiada, se não pela Igreja enquanto instituição, por um número crescente de padres, freiras e leigos, através de suas práticas pastorais. Isso ocorreu porque a Teologia da Libertação recomendou que o trabalho pastoral deveria ser endereçado preferencialmente às pessoas oprimidas da América Latina (os pobres, as mulheres, as crianças e jovens, os negros e os índios), e organizado como meio de conscientização e luta, pelos seguintes métodos gerais: — reunindo pessoas que sofrem a mesma opressão, com o objetivo de desenvolver sua identidade grupal; — promovendo a redescoberta de sua dignidade através desse contato; — aumentando sua confiança para se transformar pessoalmente e mudar sua sociedade.210 Este processo se desenvolve nas comunidades eclesiais de base, que se configuram como células sociais de diferentes movimentos no Brasil, em especial a 209 GOHN, 2003b, p.19. 210 SCHERER-WARREN, 2005, p.38.

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partir, do fim da Ditadura Militar, para o qual contribuem de forma decisiva. O seu caráter de base e de espaço de reflexão sobre a realidade sócio-econômica e política, naquele momento em que havia poucos espaços democráticos para este debate, permite que, sob a proteção da Igreja Católica, diferentes segmentos sociais iniciem ou retomem o seu processo de organização e participação. As comunidades eclesiais de base (CEBs) são pequenos grupos organizados em torno da paróquia (urbana) ou da capela (rural), por iniciativa de leigos, padres ou bispos. As primeiras surgiram por volta de 1960, em Nísia Floresta, arquidiocese de Natal, segundo alguns pesquisadores, ou em Volta Redonda, segundo outros. De natureza religiosa e caráter pastoral, as CEBs podem ter dez, vinte ou cinquenta membros. Nas paróquias de periferia, as comunidades podem estar distribuídas em pequenos grupos ou formar um único grupão a que se dá o nome de comunidade eclesial de base. É o caso da zona rural, onde cem ou duzentas pessoas se reúnem numa capela aos domingos para celebrar o culto.211 A multiplicação das CEB´s é um desdobramento da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em Medellín (Colômbia), em 1968, que resultou nos planos de pastoral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, em especial o do biênio 1973-74, que tinha como “propósito intensificar a vida comunitária na Igreja e buscar estruturas sempre mais adequadas para a Igreja local”.212 Segundo J. Marins,213 haveria no Brasil, em 1975, quarenta mil comunidades, mas dez anos mais tarde, “segundo estimativas não oficiais” esse número teria dobrado, “congregando cerca de dois milhões de pessoas crentes e oprimidas”.214 Em 1977, a Diocese de Araçuaí já possuía 350 CEB´s215 e, hoje, este número alcança 970, sendo 845 rurais e 125 urbanas. O 1º Encontro das CEBs da Diocese de Araçuaí ocorreu em 1989, muito diferente da realidade da Arquidiocese de Diamantina, cujo I Encontro Arquidiocesano das CEB´s aconteceu vinte anos mais tarde.

211 212 213 214 215

BETTO, 1985, p.16. GUIMARÃES, 1978, p.21. MARTINS apud GUIMARÃES, 1978. BETTO, 1985, p.17. Jornal Estado de São Paulo, 31/08/77.

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As duas dioceses desenvolveram linhas de pastoral muito distintas na segunda metade do século XX. Dom Geraldo de Proença Sigaud, que esteve à frente da Arquidiocese de Diamantina, entre 1961 e 1980 foi um dos membros mais conhecidos do clero conservador e um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), organismo considerado de ultradireita. Nas décadas de 1960 e 1970, Dom Sigaud fez críticas severas ao clero progressista, que apoiava a criação das CEB´s e o seu sucessor, Dom Geraldo Majela Reis, deu continuidade ao seu trabalho. Muito diferente foi a trajetória da Diocese de Araçuaí que, nos anos 1960, teve a sua frente Dom José Maria Pires, conhecido no Brasil como Dom Pelé, que foi levado para o Nordeste por Dom Hélder Câmara, expoente da igreja progressista naqueles anos de Ditadura Militar. Assumiram a Diocese, Dom Altivo Pacheco Ribeiro, responsável pela implantação das novas normas da Igreja pós-Concílio Vaticano II e, sete anos, Dom Silvestre Luís Scandian, um defensor dos direitos humanos, que foi sucedido por Dom Crescenzio Rinaldini, que manteve o trabalho de apoio às CEB´s. Zelita Gomes, trabalhadora rural e sindicalista da região, aponta o significado da criação das CEB´s no Vale do Jequitinhonha: Tudo começou pacificamente. Algum dos padres (quase todos estrangeiros, na maioria italianos) de nossa diocese, aderindo a Puebla, Vaticano II e Medellin, quiseram despir-se da sua elite e junto com uns poucos padres brasileiros, se lançaram na fundação das CEBs. De início, uma missa. Junto com ela, a proposta nova de começarem a se reunir mesmo sem a presença do padre, aos domingos, para lerem a palavra de Deus. Tudo de novo que chega ao povo traz euforia e entusiasmo e o povo começou, mesmo sem entender muito, a aceitar esse novo método de rezar em conjunto (...). Após 3, 4 ou 5 anos, novas iniciativas surgiram. Segundo o documento de Puebla, as CEBs deveriam aprofundar sua reflexão e procurar ligar religião cristã e vida social, política e económica. Uma verdadeira revirada na mesa, que até hoje muitos cristãos não entendem e muitas gerações vão se passar para que os cristãos em geral venham a entender algo desse emaranhado todo...

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Porém, apesar de tudo, algo de novo vem surgindo nas CEBs, ao descobrir que rezar e celebrar os sacramentos só tem sentido se trazidos para a vida cotidiana.216

Outra liderança dos trabalhadores rurais da região, Vicente Gonçalves Afonso, conhecido como Vicente Nica, conta como as CEB´s contribuíram para a criação do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Turmalina, a exemplo de muito outros do Vale: Fui a Belo Horizonte, também, conversei lá na Federação. Houve um curso, em Almenara, e eu participei do curso. Quando vim de lá, comecei a movimentar, juntamente com os voluntários e as lideranças de comunidades de base, fazendo trabalho de comunidade em comunidade. Nós conseguimos 600 assinaturas e enviamos para a federação o pedido do sindicato. Foi aceito e foi criado o sindicato, já com 600 sócios.217

Sindicatos de trabalhadores rurais A presença destas organizações no Jequitinhonha é anterior às CEB´s: dos 20 sindicatos de trabalhadores rurais mais antigos de Minas Gerais, seis foram fundados no Vale entre 1963 e 1967 (Araçuaí – 1963 e Almenara, Bandeira, André Fernandes, Medina e Santo Antônio do Jacinto – 1967). Vários sindicatos foram criados na região a partir de então, mas nem sempre esta iniciativa expressava uma perspectiva de classe na organização dos trabalhadores. Joaquim Pereira da Silva Neto, conhecido como Joaquim de Poté, ex-dirigente da FETAEMG (Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais) e do sindicato daquela cidade do Vale do Mucuri, aponta que: “Um grande número de sindicatos foi criado sem preparação nenhuma para os trabalhadores e com uma mentalidade de assistencialismo. Os próprios trabalhadores confundiam o sindicato com o FUNRURAL”.218 A criação, em 1971, do PRÓ-RURAL (Programa de Assistência ao Trabalhador Rural), que seria executado pelo Fundo de Assistência ao Trabalha-

216 GOMES, 1997, p.71. 217 AFONSO; ALVES, 1993, p.47. 218 SILVA NETO, 1996, p.42.

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dor Rural – FUNRURAL, estabeleceu uma série de atribuições aos sindicatos, colocando-os como colaboradores diretos, transformado-os quase em agências da previdência social rural: Muito embora tenha sido uma das bandeiras de luta do movimento sindical, a Previdência Social Rural acabaria por envolver de tal forma os dirigentes sindicais que, absorvidos naquelas tarefas, terminariam por desvirtuar os verdadeiros objetivos e funções dos sindicatos. Lutas importantes, como a Reforma Agrária, lutas dos assalariados em geral, dos pequenos produtores, foram esquecidas devido aos dirigentes estarem preocupados apenas com o assistencialismo, prejudicando o avanço do movimento sindical, anomalia essa que permaneceu ainda em muitos sindicatos, até nos dias de hoje e que precisa acabar.219 Esta vinculação dos objetivos do sindicato com a previdência social rural e a assistência à saúde também colocou em confronto as entidades representativas dos trabalhadores com aquelas relativas aos empregadores rurais. Muitos agricultores familiares não compreendiam os critérios de enquadramento e ficavam em dúvida entre qual dos dois sindicatos deviam se filiar, em especial, porque identificavam estas entidades com aqueles benefícios. Vicente Nica critica a posição dos dirigentes patronais, que usavam o convênio com o FUNRURAL, no qual os sindicatos rurais eram responsáveis por distribuir as “guias” para a assistência à saúde, como arma para esvaziar os sindicatos de trabalhadores rurais: Dentro do Funrural é assim: aquele sindicato que é criado primeiro, no município, faz o convênio com o Funrural. Esse convênio é feito pra dar guia para os trabalhadores rurais, para os ruralistas, sem distinção. Sendo ruralista, tem direito à guia. O que acontece é que eles estão usando o sindicato deles como um instrumento para destruir o nosso. Eles dizem: “Nada, quem trata de vocês, quem dá guia é o sindicato”, sendo que não é. Nós tem procurado colocar isso na cabeça dos trabalhadores, dizendo: “Nada, o

219 SILVA NETO, 1996, p.48.

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sindicato dos patrões tá obrigado a dar a guia para todos os trabalhadores rurais. Vocês não estão de favor”.220 Os sindicatos de trabalhadores rurais, do ponto de vista da grande parte dos agricultores familiares, eram, desta forma, identificados como órgãos associados à previdência social rural e a assistência à saúde, nada mais tendo a oferecer aos seus associados. Outros, no entanto, passaram a recorrer os sindicatos quando enfrentavam algum tipo de conflito fundiário e sua diretoria agia como “juiz de paz”, em várias disputas entre vizinhos em torno da definição de divisas de suas propriedades.

As lutas pela terra Novos sindicatos são organizados e a oposição vence as eleições em várias cidades, revelando um sindicalismo mais combativo nos anos 1980 e, apoiados pela Igreja Católica, também tiveram importância na resistência dos posseiros ameaçados de expulsão em diferentes municípios do Jequitinhonha. Entre as mais significativas, é possível lembrar das lutas desenvolvidas na Chapada do Lagoão, Girau, Corguinho, Tesouras e Tombo (Araçuaí), Cardoso e Morrinho (Berilo), São Miguel e Mato Grande (Turmalina). Margarida Maria Moura já apontava, em 1988, as origens destes conflitos nas mudanças ocorridas na atividade agropecuária da região: O Vale do Jequitinhonha, há duas décadas, vivencia a expulsão do agregado do interior da fazenda, a compressão e supressão das permissões para plantar na fazenda, dadas a pequenos sitiantes, e a invasão da posse camponesa por falsos fazendeiros. As fazendas, que antes eram estabelecimentos agropastoris, agora tendem ao pastoreio extensivo puro e simples. Por ser essa atividade mais lucrativa, todo o solo é revertido ao plantio do capim, retendo-se apenas um ou dois vaqueiros para os cuidados da criação.221 Vicente Nica, que viveu de perto os conflitos pela terra, descreve o processo como muitos fazendeiros da região se apropriavam de terras de seus vizinhos, com a conivência dos cartórios locais:

220 AFONSO; ALVES, 1993, p.48. 221 MOURA, 1988, p.3.

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Eles compram, marcam aquela área. Passam uma escritura, tudo na maior facilidade. Não é falar do cartório, mas, infelizmente, a pessoa compra uma área aí, e chega no cartório, e vai dando as extremas: extrema com fulano, em tal lugar, no piquizeiro, monjolo grande, moçambezeiro, córrego da Gameleira, não sei o que mais, até fechar aquela área. Quando eu digo que fecha, não é com cerca. Não. Faz um jogo na escritura, sabe? Nas divisas, com os confinantes. Então, aqueles que fica ali dentro já não têm mais saída. Daí a pouco, começa o conflito ali dentro: “Você está aqui, mas não tem escritura. É meu, eu comprei, paguei, pronto. Isso aqui está registrado.” Registrado, nada. Tem um alqueire registrado, na escritura, mas ele diz que a extrema marca muito mais adiante. O coitado não entende e tem que sair fora daquela área, que fica sendo do fazendeiro. A maioria são gente que quer ser bom, mas antes de expulsar, invade. A invasão é que transforma o invadido em provável expulso.222 Nem sempre o camponês ameaçado de expulsão se dispunha a resistir e, especialmente quando estava sozinho, muitas vezes preferia abandonar a terra do que confrontar o fazendeiro. Em outros casos, procurava os sindicatos de trabalhadores rurais, que propunha recorrer à justiça, mas “só se busca instância jurídica formalizada da sociedade em situações extremas” entendidas como “aquilo que os lavradores denominam tempo da injustiça e que os fazendeiros retrucam com a alegação de que são procedimentos justos, nas novas contingências de sua vida social”.223 A justiça da região, além de, muitas vezes, ser desfavorável aos camponeses, era morosa e “os juízes das comarcas sertanejas buscam enfaticamente o acordo”.224 Assim, quando os conflitos envolviam um grupo maior de famílias de posseiros, a luta podia combinar a demanda judicial com a resitência na terra, inclusive com o enfrentamento de derrubada de cercas, ameaças armadas e várias outras formas de violência. 222 AFONSO; ALVES, 1993, p.16. 223 MOURA, 1988, p.168. 224 MOURA, 1988, p.184.

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A luta pela terra não se resumiu, nas décadas de 1980 e 1990, à resistência de posseiros, pois a reivindicação pela reforma agrária estava na pauta de vários movimentos populares da região e muitos assentamentos foram criados como consequência destas lutas. Entre as primeiras ocupações de terra cabe lembrar as das Fazendas Trovoadas (Minas Novas) e Aruega/Sapezinho (Novo Cruzeiro), ocorrida em 1988, que se constituiu na primeira atuação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) em Minas Gerais.

A organização dos assalariados rurais Essas ocupações ocorreram exatamente na região onde, a partir de 1975, foram implantadas grandes áreas de eucalipto e café no Alto Jequitinhonha com forte apoio do Estado. Nesse ano, o IBDF, IEF e RURALMINAS definiram a área do Distrito Florestal do Vale do Jequitinhonha, que abrangia 22 municípios da região e apresentava vantagens importantes para a instalação de 14 grandes empresas privadas e estatais. Entre as vantagens, pode-se citar sua relativa proximidade com as indústrias siderúrgicas do Vale do Aço e os baixos custos de terra e mão-de-obra. No mesmo período, com o incentivo do crédito e da assistência técnica do IBC, implantou-se, a partir das cidades de Capelinha e Novo Cruzeiro, uma moderna cafeicultura, desenvolvida por fazendeiros da região e por empresários do Sul de Minas, Paraná e São Paulo, que igualmente se beneficiaram dos baixos preços de terra e mão-de-obra. Joaquim Raimundo Batista Figueiredo, cantador de Chapada do Norte resume, nos seus versos, as profundas transformações sociais ocorridas, no Alto Jequitinhonha, naquele período: Povo que vem lá de fora Trazendo a sabedoria Trazendo plantas estranhas (eucalipto) Nós aqui não conhecia Comprou a terra do posseiro E pagou com a bicaria Quem era dono da terra Hoje é os bóias-frías.225

225 POEL, 1986, p.205.

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Muitos assalariados rurais não percebiam os sindicatos como orgãos de representação junto aos patrões em reivindicações trabalhistas, em particular, pelo caráter temporário deste tipo de trabalho, onde não se estabeleciam vínculos formais entre eles e os fazendeiros da região. Situação diferente do que acontecia com as empresas de plantio de eucalipto do Alto Jequitinhonha, que “assinavam a carteira” dos seus funcionários. Esta categoria foi, inicialmente, representada pelos sindicatos de trabalhadores rurais, chegando a ocorrer uma greve em Turmalina, em meados dos anos 1980, onde os seus dirigentes representaram o movimento na mesa de negociação com a empresa e a polícia. Esta realidade mudou com a criação do Sindicatos dos Trabalhadores da Indústria de Extração de Madeira e Lenha de Itamarandiba e Turmalina e de Capelinha e Minas Novas. A FETAEMG e os sindicatos de trabalhadores rurais da região acusaram a Federação dos Trabalhadores nas Indústrias Extrativas de Minas Gerais (FTIEMG) de estar enfraquecendo a categoria e de estar a serviço das empresas de plantio de eucalipto, mas, logo, estes sindicatos mostraram uma atuação comprometida com as questões específicas desses trabalhadores e se integraram às lutas populares da região.

Encontro de cortadores de cana ou de migrantes O trabalho nas empresas de plantio de eucalipto, se em um primeiro momento, podia representar uma alternativa importante para a obtenção de renda monetária, teve, ao mesmo tempo, uma oferta de emprego bastante limitada. De forma semelhante, os baixos valores das diárias pagas na região, por fazendeiros e mesmo camponeses mais abastados, limitam bastante essa alternativa no próprio Vale, que variando de uma área para outra, pode ser adotada apenas por aqueles com menores oportunidades de trabalho (agregados, mulheres, crianças, os mais velhos, etc). A migração sazonal tem sido uma das alternativas mais importantes para a população trabalhadora do Vale nas últimas décadas. A expansão da lavoura canavieira em São Paulo, principalmente a partir do lançamento do Pró-Álcool, na década de 1970, e a melhoria dos transportes da região, consolidam um fluxo do Vale em direção principalmente, à região de Ribeirão Preto - SP, com idas e vindas em períodos de quatro a oito meses. Essa sazonalidade é favorecida pelo calendário agrícola das duas regiões, praticamente não havendo coincidência entre o período da safra da cana na região de destino (de abril a setembro) e o do plantio das culturas anuais no Vale (de setembro a março), permitindo assim, a combinação das duas atividades: uma geradora de renda monetária e a outra que garante, pelo menos, parte dos alimentos para o consumo doméstico. Ao lado desse fluxo maior, havia outros 200


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para o Noroeste de Minas e o Mato Grosso do Sul, regiões que se utilizam do Jequitinhonha como celeiro de mão-de-obra de reserva. Muitos são os empreiteiros de mão-de-obra, os chamados “gatos”, de origem local ou de fora, que agenciavam a contratação de trabalhadores do Vale para regiões distantes, onde se submetiam à exploração aviltante, sendo constantes as denúncias de trabalho escravo, envolvendo migrantes do Jequitinhonha. Os cortadores de cana da região, em geral alojados nas próprias fazendas e usinas, aceitavam condições de trabalho ainda mais precárias do que os trabalhadores locais: A jornada de trabalho tende a ultrapassar as 8 horas, sendo o mais comum trabalhar-se de 9 a 10 horas diariamente. Para os que moram na cidade, a isto são acrescidas 2, 3 ou mais horas de transporte em bancos de madeira na carroceria de caminhões. Quanto à quantidade de cana cortada por dia tem-se observado que os mineiros de barracão são os mais produtivos, mesmo porque, ao não dependerem do transporte, iniciam o trabalho mais cedo e terminam mais tarde. Muitos chegam a trabalhar aos domingos durante a safra. Para os sazonais a safra não pode se estender muito, pois no início das águas precisam voltar para o Vale, em tempo de plantarem suas roças de subsistência.226 Esse argumento foi, algumas vezes, apontado para o não envolvimento dos trabalhadores do Vale nas lutas sindicais paulistas, que começaram com a famosa greve dos canavieiros de Guariba, em 1984. Neste mesmo ano, aconteceu o I Encontro de Cortadores de Cana ou de Migrantes, realizado em Araçuaí, Berilo e Minas Novas, evento que se repetiria, especialmente nesta última cidade, até 1987. Organizados pela Diocese Araçuaí, sindicatos de trabalhadores rurais e FETAEMG, se constituíam em concentrações com milhares de trabalhadores, mas também em pequenas reuniões onde eram discutidas propostas para enfrentar o problema da migração sazonal através de melhorias para o Jequitinhonha. As conclusões desses debates eram levadas por caravanas de lideranças sindicais e comunitárias a vários órgãos e aos próprios governadores de Minas neste período: Tancredo Neves, Hélio Garcia e Newton Cardoso. Algumas destas reivindicações resultaram em ações concretas, em especial da Secretaria Estadual do Trabalho e Ação Social, que passou a acompanhar mais de perto a questão da migração, chegando a realizar um levantamento em todos os ônibus 226 BACCARIN e GEBARA, 1988, p.19.

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que saíam da região. Também entregou aos sindicatos ferramentas, formicida e sementes para serem vendidas a baixo do custo aos trabalhadores. Posteriormente, foram criados campos de produção de sementes, gerenciados pelos próprios sindicatos, visando oferecer um produto de qualidade e de forma mais acessível, bem como, foram realizados vários projetos produtivos e de melhoria da infraestrutura das comunidades. O trabalho desenvolvido junto aos migrantes não se restringia a ações no Jequitinhonha, mas também foram realizadas visitas pastorais e de sindicalistas nas regiões de destino em São Paulo e Mato Grosso do Sul, estabelecendo contatos com seus congêneres locais. A Pastoral dos Migrantes muito contribuiu para esta aproximação, chegando a ocorrer reuniões e seminários para debater a integração dos mineiros às lutas dos canavieiros paulistas. Também editava e distribuía um pequeno jornal, chamado Cá e Lá, que circulava tanto nas comunidades rurais do Vale, como naquelas regiões, trazendo notícias tanto para as famílias como para os migrantes. Todas estas iniciativas acabaram contribuindo para que cortadores de cana do Jequitinhonha participassem de greves e outras lutas em São Paulo e Mato Grosso do Sul, bem como, para que a problemática da migração sazonal do Vale ficasse conhecida nacionalmente, dando origem a políticas de fiscalização da condição análoga a de escravo pelo Ministério do Trabalho.

Movimentos de atingidos por barragens O trabalho junto aos migrantes continuou, nos anos que se seguiram, mas uma nova questão iria mobilizar, na segunda metade de 1987, sindicatos, paróquias e comunidades rurais dos municípios de Minas Novas, Turmalina e Chapada do Norte: o anúncio, pelo Governador Newton Cardoso, da construção da Usina Hidrelétrica de Santa Rita, que iria inundar casas e terras de famílias ao longo dos rios Araçuaí e Fanado. Diante do insucesso das tentativas de negociação, realizadas por uma caravana de atingidos, acompanhados por sindicalistas da região e representantes da FETAEMG, CUT, CPT, Sindicato dos Eletricitários e deputados de oposição, em janeiro de 1988, foi realizado o primeiro Ato Público dos atingidos de Santa Rita. A manifestação reuniu cerca de mil pessoas, em Minas Novas, reivindicando negociação coletiva e terra por terra. Foi formada a Comissão dos Atingidos de Santa Rita, que cria o jornal Arca de Noé, para divulgar as notícias da luta, que logo se integra ao Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), que começa a se organizar, no ano seguinte, em Goiânia, no I Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens. A Usina Hidrelétrica de Santa Rita, por não contar com o apoio do governo federal, acabou não sendo construída, mas a CEMIG viria a imple202


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mentar um conjunto de barragens de perenização na região. Em se tratando de obras de menor porte, inicialmente, as tentativas de organização dos atingidos não lograram sucesso e, só quando as primeiras famílias passaram a receber indenizações irrisórias por seus bens é que começaram a surgir as primeiras mobilizações. A experiência das lideranças e da CPT no enfrentamento da Usina Hidrelétrica de Santa Rita contribuiu para que os atingidos das Barragens de Calhauzinho (Araçuaí) e Machado Mineiro (Águas Vermelhas e São João do Paraíso) se organizassem para reivindicar e conquistar a melhoria das indenizações recebidas por suas terras, casas e outras benfeitorias. O processo ocorrido nas primeiras construções, também impulsionou a organização prévia dos atingidos pelas barragens de Salinas (Salinas) e Setúbal (Jenipapo e Chapada do Norte), que chegaram a ocupar e paralisar os seus canteiros de obras, conquistando inclusive o reassentamento de várias famílias, embora, a última acabou sendo interrompida quando ocorreu, em 1991, a mudança no governo estadual.227 Algumas lideranças das comunidades ameaçadas pela Usina Hidrelétrica de Irapé, a ser construída nos rios Jequitinhonha e Itacambiruçu, nos municípios de Cristália, Botumirim, Grão-Mogol, Turmalina, Berilo, Leme do Prado, José Gonçalves de Minas, acompanharam, desde os primeiros momentos, a luta dos atingidos destas outras barragens, participando de encontros do MAB tanto de âmbito regional, como nacional. Organizando-se antes mesmo da elaboração dos estudos de impacto ambiental, por mais de uma década, as 1.100 famílias atingidas por esta hidrelétrica conseguiram conquistar e cobrar a implementação de um dos melhores acordos já realizados com a CEMIG. Ainda que apresentassem muitos limites, esses acordos previam processos de reassentamento e indenizações ainda mais vantajosos do que os anteriores e influenciaram os processos de negociações referentes às hidrelétricas de Itapebi e Murta, implementadas, mais abaixo no mesmo rio, na década atual.

Associações comunitárias e ONG´s Muitos dos projetos de desenvolvimento local, incluídos no termo de acordo de Irapé, expressam as reivindicações presentes nas lutas das organizações comunitárias do Vale do Jequitinhonha nas décadas de 1980 e 1990. “Se antes a referência do morador era a grota, hoje é a comunidade, geralmente nascida de uma inspiração religiosa. É essa comunidade que indica a situação 227 RIBEIRO, 1993; RIBEIRO, 2008.

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Vale do Jequitinhonha

de pertencimento do morador a um meio, é ela que designa a sua origem e lhe dá identidade”.228 A constituição das CEB´s e o processo de democratização abriram a possibilidade de formação de centenas de entidades de base comunitária, que objetivavam a conquista de melhorias urbanas e rurais. Suas mobilizações envolviam desde a ocupação de áreas urbanas, que mais tarde acabaram por se constituir em bairros de periferia, em várias cidades da região, até o desenvolvimento de projetos comunitários de geração de renda, infraestrutura, saúde, convivência, lazer, cultura etc. Tais iniciativas, muitas vezes, foram implementadas em parceria com órgãos governamentais, mas, sem dúvida, também teve grande importância a participação de instituições da sociedade civil. Foram criadas, no Alto e Médio Jequitinhonha, nos anos 1980, várias associações de assistência social, em especial, através do incentivo do Fundo Cristão para Crianças, que, inicialmente, foram geridas por membros das elites locais e, mais tarde, por representantes das próprias famílias beneficiadas. Naquele período, também surgiram várias ONG´s que, expressando uma crescente preocupação com questões sociais, ambientais, culturais, de gênero, etc., passaram a apoiar e assessorar diferentes movimentos e organizações populares da região, na construção de um programa de desenvolvimento sustentável para o Jequitinhonha.

Entidades culturais e associações de artesãos Frei Francisco van der Poel, popularmente conhecido com “Frei Chico”, contabilizou, em 1986, 73 entidades culturais do Vale, incluindo casas e centros de cultura, grupos de teatro, bandas de música e corais, grupos de cultura popular, jornais, associações comunitárias, etc. Este número evidencia a importância da questão cultural para a identidade da região e a sua associação com outras temáticas também trabalhadas por estas várias entidades. Um dos espaços fundamentais para se visualizar a sua riqueza cultural é o Festivale (Festival da Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha), organizado, inicialmente pelo jornal alternativo “Geraes” e mais tarde pelo CCVJ (Centro Cultural do Vale do Jequitinhonha), hoje sob a responsabilidade da FECAJE (Federação das Entidades Culturais e Artísticas do Vale do Jequitinhonha). O seu sucesso inspirou a organização de vários outros eventos semelhantes, de âmbito mais local, em diferentes cidades do Vale, que movimentaram artistas 228 SOUZA, 2005, p.135-136.

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e jovens de toda região. Contribuiu também para valorização de vários grupos populares como congados, bois-de-janeiro, marujadas, corais, etc. e da cultura do Jequitinhonha de uma forma geral, bem como, para uma integração de toda a região. Outro grupo social que sempre marcou presença no Festivale e em outros eventos culturais foi o dos artesãos, cujos trabalhos também constituem parte da identidade regional. Esta categoria que envolve uma diversidade de ofícios que trabalham o barro, o couro, a madeira, o algodão, etc, começou a se organizar, em 1977, com a fundação da Associação dos Artesãos de Araçuaí, a primeira do Vale. Outras surgiram, na década seguinte, igualmente de âmbito municipal, em Jequitinhonha e Francisco Badaró, mas, também foram criadas algumas de base comunitária, como as Associações de Produtores e Artesãs de Roças Grandes (Berilo), dos Lavradores e Artesãos de Campo Alegre (Turmalina) e dos Artesãos de Santana do Araçuaí (Ponto dos Volantes). Estas entidades lutavam pelo reconhecimento profissional e a valorização da atividade e pela organização dos artesãos para a obtenção em conjunto da matéria-prima e, principalmente, para a venda da produção em feiras e eventos dentro e fora da região.

Garimpeiros e trabalhadores urbanos Os garimpeiros constituem outra categoria profissional também identificada com o Jequitinhonha, em especial com a sua porção mais alta, onde esta atividade está associada ao processo de colonização da região no século XVIII. Tradicionalmente, trata-se de uma atividade de muita competição interna pela descoberta de novas áreas de extração de diamante, ouro, cristal e várias pedras preciosas e semipreciosas, não contribuindo, desta forma, para a sua organização profissional. No entanto, no final da década de 1980 e na seguinte, a criação da legislação ambiental impõe uma série de restrições a esta atividade, inviabilizando a sua continuidade dentro dos padrões que ela era praticada. Os garimpeiros de Diamantina e região e do distrito de Caçaratiba (Turmalina) se mobilizaram ativamente quando o Governo Newton Cardoso fechou todos os garimpos e empresas de mineração sob a alegação dos impactos ambientais provocados por esta atividade. As pressões feitas não só pelos garimpeiros, mas pelo comércio e os políticos da região, acabaram por determinar o retorno das atividades, mas esta nunca mais seria a mesma. Na esteira da organização em torno do confronto com a nova legislação ambiental, também surgiram discussões acerca das possibilidades de profissionalização e suas implicações. Os anos 1980 e 1990 também foram marcados pela organização de algumas categorias de trabalhadores urbanos, como professores, funcionários públicos, 205


Vale do Jequitinhonha

bancários e várias outras, que se envolveram em mobilizações sindicais e greves organizadas em âmbito estadual e nacional. Com raras exceções, no entanto, estas lutas não contribuíram para o surgimento de sindicatos urbanos e, nem mesmo, para a formação de núcleos regionais de organizações de âmbito estadual.

Considerações finais Os movimentos sociais e as lutas populares do Jequitinhonha, nos anos 1980 e 1990, revelam uma sintonia com questões nacionais e com o cenário de abertura política pós-Ditadura Militar, inclusive com a organização de manifestações pelas Diretas Já! Também apresentam uma grande diversidade de setores sociais e de temáticas envolvidas, contribuindo, assim como os seus similares em âmbito nacional, para a inclusão política de diversos setores populares e para o alargamento da noção de cidadania. Eles contribuíram, de forma decisiva, para o questionamento de laços tradicionais de dominação na região e para transformações localizadas nas relações sociais. Tais transformações impulsionaram, nos anos 1990, a abertura de espaço para o surgimento de novas lideranças e articulações políticas e a eleição, em âmbito municipal e regional, de candidatos de oposição e até de esquerda, vinculados àqueles movimentos sociais e lutas populares. Sem dúvida, o Jequitinhonha que emerge, no século XXI, não é mais o mesmo do período da Ditadura Militar, assim como não é a realidade do mundo em que está inserido, o que não significa que tenha superado todas as suas mazelas econômicas, sociais, políticas, culturais e ambientais. Ao contrário, cada vez mais, torna-se necessária a organização da sociedade civil para lutar por um projeto de desenvolvimento regional a partir, não das definições de gabinete, mas da lógica das grotas e periferias urbanas do Vale.

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Formação Histórica, Populações e Movimentos

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Foto: Arquivo Polo


Visões da Resistência: Conflitos Ambientais no Vale do Jequitinhonha Andréa Zhouri Marcos Cristiano Zucarelli

Introdução

E

m Minas Gerais, o processo de intensificação da produção e da exportação de commodities tem representado um aprofundamento da mercantilização de territórios, a exemplo da expansão das monoculturas de exportação nos cerrados do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, das monoculturas de eucalipto e da construção de hidrelétricas nos vales dos rios Doce e Jequitinhonha, das atividades mineradoras na Região Metropolitana de Belo Horizonte, etc. Tais processos implicam a emergência de uma miríade de conflitos ambientais, sobretudo territoriais, nos quais se envolvem empresas mineradoras, siderúrgicas, produtoras de celulose, distribuidores de energia elétrica, empreiteiras, latifundiários, órgãos ambientais, ONGs, camponeses, pescadores, comunidades indígenas, quilombolas, movimentos sociais urbanos, entre outros. Estes conflitos evidenciam os diferentes processos de construção territorial, bem como salientam as formas desproporcionais de uso do espaço praticadas por distintos grupos sociais. A ocorrência dos conflitos remete, então, a situações de desigualdade no acesso aos recursos naturais e a desproporcionalidade na distribuição dos riscos gerados pelos chamados processos de desenvolvimento. A dinâmica conflitiva desses processos revela peculiaridades conforme a configuração dos diferentes projetos econômicos implantados. Quando analisamos os variados conflitos ambientais emergentes destas propostas, perce209


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bemos que a afluência e o movimento contínuo de alguns grupos sociais implicam, historicamente, na expropriação, na deslocalização compulsória, bem como na respectiva localização de outros grupos. Tal como afirmam Chesnais e Serfati (2003), os desdobramentos espaciais das atividades industriais intensivas, no consumo de recursos naturais, produzem a ampliação dos riscos aos quais se encontram submetidos os grupos sociais mais vulneráveis. Dessa forma, o controle sobre o potencial de mobilidade, dos fluxos de mercadorias e de pessoas, coincide, nesses casos, com o controle sobre os territórios e seus recursos. A diferenciação desse potencial de mobilidade e as distinções de poder em relação aos fluxos e movimentos globais impõem, então, a necessidade de uma reflexão sobre a geometria do poder. A questão se torna mais evidente quando se examina o fluxo internacional de mercadorias, pois nos deparamos com uma apropriação assimétrica da natureza e com um intenso processo de degradação ambiental que, inevitavelmente, implica restrições às condições de vida de grupos sociais que se encontram na extremidade receptora das interconexões globais.229 Diante do processo de mundialização do capital,230 surge uma nova divisão internacional do trabalho definida pelos níveis tecnológicos de produção, pelas formas de gestão e pelas relações de trabalho dominantes.231 Dessa maneira, os países que ampliaram seu nível tecnológico acabaram reforçando sua posição hegemônica frente ao mercado global da economia capitalista. Ao contrário desses, os países periféricos neste circuito tiveram como única possibilidade de integração na economia-mundo: a continuidade da venda de sua força de trabalho, bem como a intensificação da exploração desmesurada da natureza proporcionada pelas novas condições técnicas de poder. Dentre essas novas condições, a maior facilidade de transporte de qualquer produto para qualquer destino, propiciou uma “profunda revolução na geografia do poder mundial”,232 o que contribuiu, como assevera Henri Lefebvre, para a constituição de uma “política do espaço”. Vale dizer que as relações de poder assim colocadas, entre os países, são reproduzidas internamente pela apropriação desigual da natureza e dos recursos por grupos sociais em cada país. Nesse cenário, a natureza pensada como espaço se tornou simultaneamente fragmentada e mercantilizada, segundo as exigências da sociedade capitalista que depende da exploração generalizada do meio ambiente.233 229 230 231 232 233

210

CF. MASSEY, 2000. CHESNAIS; SERFATI, 2003. HAESBAERT; PORTO-GONÇALVES, 2006. HAESBAERT; PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 112. LEFEBVRE, 2008.


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Tal dinâmica encontra materialidade e consequência em processos socioambientais identificados nas pesquisas de campo do projeto Mapa dos Conflitos Ambientais no Vale do Jequitinhonha.234 Neste texto, focalizaremos quatro “situações sociais”235 que envolvem populações locais em conflito com os projetos: de plantio de eucalipto, de construção de hidrelétricas, de mineração e de criação de unidades de conservação no Vale (vide mapa seguinte).

Fig. 1: Mapa de localização das quatro situações sociais selecionadas na pesquisa

Fonte: Belo Horizonte: Armazém de idéias, 1998. Adaptação dos autores

234 Esta pesquisa objetiva, a partir da elaboração de um banco de dados sobre situações de conflito ambiental e da interpretação qualitativa de estudos de casos exemplares, mapear os conflitos ambientais existentes nas 12 mesorregiões do estado de Minas Gerais (IBGE, 2000). A divisão por mesorregiões buscou criar condições para a operacionalização da pesquisa, que conta com o apoio da FAPEMIG e do CNPq, além de parcerias com pesquisadores da UFSJ, UFV e UNIMONTES. Para maiores informações e alguns resultados preliminares da pesquisa, consultar Zhouri e Zucarelli (2008). 235 GLUCKMAN, 1980.

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Ao relatar as diferentes situações sociais, o texto procura revelar as visões da resistência, evidenciando as ações de grupos que, longe de se constituírem como objetos inertes de “impactos” externos, apresentam-se como agentes que se organizam em movimentos de luta em defesa dos seus direitos e contra a expropriação da natureza e dos seus modos de vida no local.

Uma palavra sobre método Os casos foram selecionados por meio de oficinas e de trabalhos de campo realizados pela equipe do GESTA/UFMG no âmbito do projeto “Mapa dos Conflitos Ambientais no estado de Minas Gerais”. Numa etapa inicial, foram identificados 1.023 casos com indícios prévios de situações de conflito a serem investigados no estado de Minas Gerais como um todo. Estes indicativos foram levantados através da análise das atas de Reuniões do Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais (COPAM), entre os anos 2000 e 2007, bem como por entrevistas com as equipes do Centro de Apoio Técnico do Ministério Público Estadual (CEAT/MPE) e da Fundação Estadual de Meio Ambiente (FEAM). Em etapa subsequente, teve início o trabalho de campo nas mesorregiões mineiras, onde as atividades se alternam entre a pesquisa documental em arquivos institucionais e entrevistas junto aos representantes de entidades e organizações locais. Na sequência, são realizadas oficinas com os movimentos sociais, com os povos tradicionais e com os grupos étnicos para a construção de um mapa social interativo dos conflitos, nem sempre registrados em documentos. Os relatos aqui apresentados estão baseados, pois, em depoimentos coletados em trabalhos de campo e durante a oficina conduzida no Vale do Jequitinhonha, realizada na Escola Família Agrícola de Itaobim, em março de 2009. Neste sentido, nosso objetivo é apresentar as visões dos agentes que resistem à expropriação territorial e suas concepções acerca das situações por eles vivenciadas. Assim, longe de uma abordagem positivista da história contada, ou seja, a busca pela veracidade dos fatos narrados, o que se pretende é compreender a maneira como os grupos “atingidos” pelos chamados “projetos de desenvolvimento” percebem a situação por eles vivenciada, articulando um sentimento de perda ao mesmo tempo em que constroem sua identidade e formas de resistência atreladas ao lugar. É importante sublinhar que a metodologia adotada procurou definir as situações de conflito ambiental como aquelas que envolvem sujeitos coletivos em casos de disputa pela legitimidade do ato, pelo acesso aos mesmos recursos ou área em questão, ou ainda, casos em que os grupos sociais se sintam lesados por algum dano direto ou indireto provocado por qualquer tipo de atividade econômica. Ressalta-se ainda a necessidade do caso apresentar algum desdobramento tempo212


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ral para sua inclusão na pesquisa, com ações e reações que demonstrem os movimentos de apropriação e/ou degradação dos recursos naturais e as lutas e/ou resistências frente as ameaças de expropriação dos espaços territoriais e de seus bens. Por essa via, buscou-se uma diferenciação com respeito às situações geralmente caracterizadas como “problemas” e/ou “impactos” ambientais. Procurou-se, sobretudo, um distanciamento em relação às abordagens positivistas ou realistas, que atribuem ao meio ambiente uma existência autônoma e externa às relações e projetos sociais, objeto, portanto, de um “diagnóstico” objetivo e universal, tal como sugerem as categorias de problema e de impacto. Diferentemente desta concepção, a situação de conflito remete à participação de sujeitos sociais que qualificam o mesmo espaço de formas diferentes, ou seja, que apresentam uma apropriação territorial distinta e que manifestam um sentimento de lesão, dolo ou perda em relação a uma outra forma de apropriação que lhes é antagônica. Assim, para além dos casos institucionalizados, via Ministério Público ou órgãos ambientais, os trabalhos de campo revelaram inúmeros conflitos sociais que transcendem as vias formais de denúncia. Tal como demonstra o Gráfico 1, ao operarem na chave dos “impactos” e dos “problemas” ambientais, os registros oficiais associam o maior número de conflitos ambientais no Vale do Jequitinhonha, principalmente, às atividades de saneamento e de mineração. Contudo, as pesquisas de campo junto aos movimentos sociais e entidades locais permitem revelar uma realidade qualitativamente mais complexa, onde emergem inúmeros conflitos decorrentes da inserção dos territórios no processo de mundialização do capital. Gráfico 1 – Conflitos institucionalizados no Vale do Jequitinhonha Total de Conflitos por Atividade Mesorregião Vale do Jequitinhonha

Barragem/canal

38

40

Nº de Conflitos

Agroindústria Cerâmica

30

Energia 18

20 10 1

2

2

5

Metalurgia 9

1

0

Atividades

Mineração 3

Monocultura Saneamento Têxtil

Fonte: Zhouri & Zucarelli (2008).

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As grandes extensões territoriais necessárias à produção de celulose e madeira por meio das monoculturas de eucalipto, assim como a geração de energia elétrica, são confirmatórias neste sentido. Para citar um exemplo de como a natureza do Jequitinhonha se insere na produção mundial de mercadorias, é suficiente citar o caso de uma única empresa exportadora localizada na região, a Suzano Papel e Celulose. Segundo dados da própria empresa: A Suzano Papel e Celulose atingiu seu maior volume histórico trimestral de vendas de celulose no segundo trimestre de 2009, com a comercialização de 547,6 mil toneladas, cerca de 30% superior aos três primeiros meses do ano e 55,4% acima do mesmo período do ano anterior. O resultado se deu em função do incremento dos volumes comercializados na China, Europa e Brasil e manutenção das vendas no mercado norte-americano. No resultado consolidado semestral, as vendas de celulose somaram 968,6 mil toneladas, 38,3% acima do primeiro semestre de 2008. Neste último trimestre, a Ásia foi o principal destino das vendas da Companhia, com 52,0% de participação, seguida por Europa (29,4%), Brasil (11,9%), América do Norte (5,8%) e América do Sul/Central (1,0%). Grupo Suzano, 12/08/2009.236 Com efeito, o planejamento político e econômico para o Vale do Jequitinhonha teve início com programas e intervenções governamentais que, principalmente a partir de 1970, pautou-se por uma visão desenvolvimentista com parâmetros industriais, tecnológicos e urbanos, que acabaram consolidando a imagem de “vale da miséria” atribuída pela elite econômica ao Jequitinhonha.237 Numa perspectiva contemporânea, pretendemos refletir sobre a dinâmica conflitiva que envolve a execução dos projetos propostos para o Vale como elementos constituintes do processo de globalização econômica. No Jequitinhonha, pode-se observar que, conforme asseveram Haesbaert & Porto-Gonçalves (2006), a inserção de economias locais no mercado global foi facilitada, prin236 www.suzano.com.br/portal/main.jsp?lumPageId=402880911A2C18E2011A2C34FE014E45&ite mId=2C90884B225021970123101C1523125D; acesso em 29/09/2009). No geral, Minas Gerais registrou um aumento das exportações de produtos de celulose nos últimos cinco anos. Em 2003, o volume de exportação era de 338,6 milhões de dólares, aumentando para 635,1 milhões em 2008, ou seja, quase o dobro. (Panaroma do Comérico Exterior do Agronegócio de Minas Gerais. Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento e Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, 2009.) 237 RIBEIRO, 1993.

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cipalmente, pela formulação de políticas neoliberais e de desregulamentação introduzidas ainda na década de 1980, que permitiram uma aceleração das trocas de produtos, de capital e de informação. Todavia, concomitante a este processo, ocorreu também uma intensificação da degradação ambiental com sucessivos deslocamentos compulsórios de sociedades locais, bem como o aumento de conflitos envolvendo grupos sociais que resistem a esta dinâmica de perpetuação das chamadas injustiças ambientais.238

As Situações Sociais de Conflito Conflitos da Mineração239 O processo de ocupação do Vale do Jequitinhonha foi marcado, inicialmente, pelo desenvolvimento das atividades minerárias.240 A descoberta de grandes lavras de ouro e de diamante na região conhecida como distrito diamantífero, no alto Jequitinhonha, durante o século XVIII, estimulou uma povoação intensa que rapidamente se alastrou pelas redondezas.241 Por causa da grande extração de riquezas minerais, o alto Jequitinhonha se tornou, à época, uma das regiões mais ricas do Brasil. Um pouco mais tarde, a partir do século XIX, a produção de algodão, no médio Jequitinhonha, e a pecuária, no baixo, também contribuíram para esta “prosperidade primitiva”. O escoamento das pedras preciosas, da carne e do algodão ocorria pela navegação no rio Jequitinhonha, a partir do início do século XIX, até a cidade de Belmonte-BA, no oceano Atlântico. Após o desembarque da produção nos portos baianos, de onde os produtos eram exportados para Portugal, as embarcações retornavam trazendo sal, tecidos finos e ferramentas de metais. Além da criação de alguns destacamentos militares instalados ao longo do rio para combater o contrabando dos minerais preciosos, a

238 HARVEY, 1999. 239 Os dados apresentados neste tópico são provenientes dos relatórios de viagem a campo realizada pelos pesquisadores Raquel Oliveira e Marcos Zucarelli, membros da equipe do GESTA/UFMG, em julho de 2008 e da oficina realizada junto aos movimentos sociais na cidade de Itaobim-MG, de 8-11 de março de 2009. Participaram desta oficina 22 entidades, sobretudo do baixo e do médio Jequitinhonha, tais como sindicatos, movimento dos atingidos por barragens, associações de moradores, trabalhadores e ONGs locais. 240 Para um detalhamento mais preciso da formação histórica da região ver a primeira parte deste livro. 241 LIMA JÚNIOR, 1945. Conforme Matos (1999, p. 1), as divisões Alto Jequitinhonha, Médio Jequitinhonha e Baixo Jequitinhonha, estabelecidas pelas cotas altimétricas do curso do rio Jequitinhonha e pelas “semelhanças” sócio-econômicas de seus municípios, tinham como objetivo “atender às necessidades político-administrativas dos governos estaduais e aos requerimentos dos órgãos de planejamento e instituições de controle e gestão”.

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Vale do Jequitinhonha

navegação no rio Jequitinhonha contribuiu para o surgimento de inúmeras ocupações ribeirinhas que aproveitavam para estabelecer relações comerciais e garantir o suprimento de suas glebas.242 Portanto, contra a ideia de um isolamento do Vale do Jequitinhonha, é possível vislumbrar suas relações com o mercado mais abrangente desde o princípio do século XIX. Os projetos de desenvolvimento para o Vale do Jequitinhonha a partir da década de 70 do século XX intensificaram a sua inserção na lógica da economiamundo. Grandes companhias nacionais e internacionais de extração de pedras preciosas e ornamentais, bem como de outros minerais como o lítio e a grafita, continuam acumulando riquezas através da destruição acelerada da natureza e da expropriação dos territórios de vivência. No tocante à extração de rochas ornamentais do tipo granito, foram encontradas diversas denúncias durante o trabalho de campo e a realização da oficina em março de 2009. Nesse tipo de atividade, a maior parte das empresas assume a estratégia de apropriação dos territórios através do arrendamento das terras junto aos proprietários. Após a extração do granito, o contrato de arrendamento é concluído e os danos ambientais causados pelas empresas nas localidades não são reparados. Em janeiro de 2007, por exemplo, foi aberto Inquérito Civil Público na promotoria de Araçuaí para apurar denúncia contra a Granwold Granitos Mundial Mineração e Exportação Ltda., pela atividade de exploração de granito no município de Itinga. Conforme denúncia de uma moradora, a pedreira que funciona acima de sua casa está poluindo um rio e uma lagoa dentro da fazenda Laranjeiras. Ela e seus vizinhos fazem uso desta lagoa para dessedentação de animais. De acordo com o relato da moradora, a lagoa apresenta uma espécie de nata cinzenta na superfície que pode comprometê-la no futuro, pois ela já apresenta sinais de redução de seu volume. Ainda segundo a denúncia, na época das chuvas a lagoa transborda e joga a água contaminada no córrego Teixeirão, próximo à sua casa, e no rio Jequitinhonha, distante 400 metros do empreendimento. Pelo laudo de vistoria do IEF foi verificado que a exploração do granito no local funciona sem a devida licença e que havia ocorrido a supressão de vegetação classificada como Mata Seca, com espécies pioneiras como a Jurema Preta. Também merece destaque o caso da Comunidade Quilombola de Aredor, atingida pela atividade de pedreiras no município de Pedra Azul. Os danos resultantes são diversos: poeira, rachadura nas casas, acidentes, além do assoreamento de nascentes e prejuízos nos plantios da comunidade, devido ao carreamento dos rejeitos oriundos das atividades. 242 NUNES, 2001; AMARAL, 1988.

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Outro caso de conflito decorrente da atividade minerária é a extração de lítio nos municípios de Araçuaí e Itinga pela Companhia Brasileira de Lítio – CBL. Nesse caso, a denúncia foi realizada pela Associação Rio Piauí Vivo, tendo em vista a contaminação do rio Piauí e os prejuízos às pessoas que moram próximas a mineração de lítio. Conforme relatado pelo presidente da Associação, a CBL, localizada no povoado de Fazenda Velha, capta água do rio Piauí para a lavagem do lítio, acrescentando nesta água outros produtos decorrentes da atividade extrativa, como resíduos de explosivos e produtos químicos utilizados no processo, devolvendo-a novamente, sem tratamento adequado, para o curso do rio. Segundo o presidente, os caminhões que transportam os materiais contaminados atravessam a ponte sobre o rio durante todo o dia, sem qualquer tipo de proteção, despejando, desta forma, mais resíduos no rio. Segundo o relato do representante da ONG Visão Mundial: Em 2007 foi feito um levantamento e tinha de 12 a 16 mineradoras só em Itinga. Essas empresas não pagavam nenhum tipo de imposto. Consertavam as estradas estragadas pelos caminhões e diziam que era contrapartida. Grande parte desse granito passa dentro da cidade. Houve casos de rachaduras de casas que as pessoas tiveram que consertar.243 As atividades desenvolvidas na região pela mineradora Nacional de Grafite também são contestadas pelos moradores locais, conforme depoimento do presidente da Associação dos Pescadores de Salto da Divisa: A mineradora Nacional de Grafite foi questionada em audiência pública, realizada em Brasília, devido ao fato de seus resíduos serem altamente tóxicos. Foram feitas barragens de contenção, porém, as mesmas não conseguiram impedir a contaminação do rio. Foram encontrados animais mortos, provavelmente contaminados pelas águas. Técnicos da ANA [Agência Nacional de Águas] fizeram um relatório dizendo que estava tudo ok. Coisa nenhuma, rapaz!. Eu vi com meus próprios olhos que não era assim.244 Os participantes da oficina que moram em Salto da Divisa atribuíram a esta contaminação a responsabilidade pela ocorrência de muitos casos de câncer entre a população do município. Ainda segundo o presidente da Associação dos Pescadores de Salto da Divisa, a COPASA realizou uma análise da água no local 243 Oficina Mapa, Itaobim-MG, 5-8 de março de 2009. 244 Oficina Mapa, Itaobim-MG, 5-8 de março de 2009.

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e constatou um alto índice de contaminantes. Para outra moradora local: “vários adoecem em Salto da Divisa, pois o rio era o ponto de encontro e de lazer. O povo deveria ser indenizado por ter perdido seus costumes, momentos de lazer e profissão. Os espaços públicos tornaram-se privados”.245 Segundo dados oficiais, a mineração lidera o ranking das exportações em Minas Gerais, com valores que representam 7.219 milhões de dólares para o grupo de minérios metalúrgicos e 6.630 milhões de dólares para os produtos metalúrgicos.246

Conflitos da Monocultura de Eucalipto247 Com relação aos “reflorestamentos” no Vale do Jequitinhonha, as políticas de incentivos fiscais e créditos continuam proporcionando a ocupação de grandes áreas de terras de chapada para o plantio de eucalipto. As chapadas são áreas mais altas e planas, favoráveis à mecanização. Em virtude dessas características, as chapadas são cobiçadas por grandes empresas agroindustriais. Consideradas devolutas, essas terras foram concedidas pelo governo de Minas Gerais para exploração de empresas privadas a partir de 1970. No entanto, as chapadas pertenciam ao “domínio” de comunidades locais e eram tradicionalmente destinadas ao uso comum para criação de gado na larga e para o extrativismo vegetal.248 O processo histórico de apropriação assimétrica do território e suas consequências podem ser ilustrados pelo depoimento de um agricultor, que assistiu na década de 70 a chegada das denominadas empresas “reflorestadoras”: [...] eles vieram abrindo as picadas, sem falar nada, e o povo achou que era a Reforma Agrária que tava entrando. Ninguém sabia que era a Acesita e tudo ficou recuado. [...] A criação era solta por 3 ou 4 léguas. Hoje, tem que ficar tudo na manguinha, pisando e pisando até acabar. Os pequeno ficou só naquele curralzinho lá. Porque de primeiro era liberdade, depois que obrigou o povo a limitar as propriedades, o povo até briga entre eles porque a terra já tá muito limitada. O espaço já tá muito limitado. O povo tá travado.249 245 Oficina Mapa, Itaobim-MG, 5-8 de março de 2009. 246 Panorama do Comércio Exterior de Minas Gerais, 2009. 247 Os dados apresentados neste tópico são provenientes dos relatórios de viagem a campo realizada pelos pesquisadores Raquel Oliveira e Marcos Zucarelli, membros da equipe do GESTA/UFMG, em julho de 2008. 248 RIBEIRO, 1993. 249 Entrevista realizada em 17/07/2008, município de Capelinha.

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Dessa forma, uma extensão territorial de mais de um milhão e meio de hectares do Vale do Jequitinhonha foi ocupada pela monocultura do eucalipto com fins exclusivos de fomento às indústrias siderúrgicas e de celulose, alijando e/ou confinando os agricultores que detinham pequenas glebas de terra, embora também possuíssem o “domínio” das chapadas.250 Inúmeras comunidades rurais de diversos municípios do Jequitinhonha, onde atua a Empresa Arcelor Mittal (antiga Acesita), estão sofrendo as consequências da implantação da monocultura na região. A substituição gradativa do bioma Cerrado pelo eucalipto vem acarretando múltiplos problemas para o ecossistema e para as comunidades que vivem cercadas pelas plantações. De acordo com a pesquisa de campo e com entrevistas realizadas junto aos representantes de movimentos sociais, podemos agrupar os conflitos da seguinte maneira: - Fundiários: Mudanças físico-estruturais exaltadas pela periodicidade de processos jurídicos para determinação fixa de divisas, títulos de propriedade, manutenção e reintegração de posse e áreas em litígio. Conforme descrito pelo representante do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Capelinha (STR), na localidade de “Bateria do Riacho”, a Arcelor Mittal ocupou áreas pertencentes às famílias dos agricultores que não possuíam a titularidade da terra: “onde a família tem os documento, é tudo direitinho... mas onde a máquina entrava, eles entraram, não respeitaram nada não”.251 A Arcelor Mittal propõe planos de expansão do cultivo de eucalipto na região, prevendo a aquisição de mais de 80.000 hectares.252 Tais projetos de expansão têm resultado na pressão constante sobre as famílias, sobretudo, quanto à exigência de titulação das propriedades com a precisa delimitação das suas áreas, contrária aos regimes tradicionais distintos que regulavam suas posses. Ainda segundo o relato do representante do STR: Eles obrigam o trabalhador a assinar. Eles passam medindo e exigem a assinatura. Estão limitando as terras e pressionando as famílias. Isso tá acontecendo na região do Fanado, Vendinha, Invernada, Alagadiço, Capão dos Negros e Macaúba.253 Portanto, a obrigatoriedade da delimitação física de propriedades implica a proibição de acesso às áreas de chapadas que antes pertenciam e eram utiliza250 251 252 253

WRM, 2002. Entrevista realizada em 17/07/2008, município de Capelinha. Entrevista realizada com representante do STR em 17/07/2008, município de Capelinha. Entrevista realizada em 17/07/2008, município de Capelinha.

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das pelas comunidades rurais para a criação de gado na solta coletiva e para o extrativismo de lenha, frutos e plantas medicinais. O resultado desta restrição pode ser averiguado através dos recorrentes boletins de ocorrência de “furto” de lenha em sua “propriedade particular”, elaborados pela Polícia Ambiental de Minas Gerais, a partir de denúncias feitas pela Arcellor Mittal. - Uso dos recursos naturais: As atividades desempenhadas pela empresa reflorestadora repercutem em uma série de restrições no usufruto da natureza, dentre elas, podemos correlacionar: o desmatamento do cerrado e das cabeceiras de nascentes para o plantio de eucalipto, que acentua a redução do volume de água e/ou extinção de córregos e ribeirões que são/eram utilizados pelas comunidades ribeirinhas; a monocultura provoca a mortandade de animais silvestres que perdem seu habitat natural; a construção da malha viária das áreas de plantio acarreta processos erosivos e carreamento de solo para os córregos e veredas; a movimentação intensiva do solo na área de chapada e bordas assoreia as nascentes e corpos hídricos; o uso excessivo de agrotóxicos contamina as águas superficiais, o lençol freático e o solo; além dos conflitos pelos usos da água, causados tanto pela escassez, assoreamento e poluição quanto pelo represamento de cursos d’água nas cabeceiras a fim de abastecer caminhões-pipa empregados na irrigação dos viveiros da empresa, em prejuízo das famílias que vivem à jusante do barramento e que, muitas vezes, dependem exclusivamente daquele curso d’água.254 Com efeito, moradores das grotas não encontram volume de água suficiente à sua manutenção, tal como descrito por um agricultor local: Antes nós plantava era meiar de agosto. Em setembro a terra já tava preparada. Hoje nós planta só a partir de janeiro. Não tem mais água pra criação. O plantio de cana não sai mais. Acabou a umidade da terra, parece que a terra morreu. Não sei o que é que tá acontecendo... só a tecnologia pra poder tá dizendo pra gente.255

254 Tais problemas descritos podem ser verificados nas comunidades de Ibirussú, Furquilha, Cachoeira da Alagoa, Bemposta (comunidade negra rural), Coqueiro-Campo, Terra Cavada, Palmital da Baixa, Cascalho, Jaboticaba, Lagoa Grande, Capoeirinha/Sabará e Cruzinha, todas localizadas no município de Minas Novas. Problemas semelhantes podem ser verificados nas comunidades de Campo Buriti, Cabeceira do Tanque, Campo Alegre, Poço D’água, Gentil e José Silva, todas localizadas no município de Turmalina. O mesmo acontece nas comunidades de Fanado, Vendinha, Salto, Invernada, Alagadiço, Capão dos Negros, Macaúba, Ribeirão, Mandassaia, Galego, Fazendinha, Córrego Santa Catarina, Córrego do Ipê, na Fazenda Xambá e no Povoado Paudolinho, no município de Capelinha. Ademais, os trabalhos de campo coletaram diversos relatos de casos similares em comunidades dos municípios de Serro, Itamarandiba, Veredinha, Araçuaí, Jacinto e Salto da Divisa. 255 Entrevista realizada em 17/07/2008, município de Capelinha.

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No intuito de defender o pouco que ainda lhes resta, os agricultores estão organizando-se e mobilizando novos parceiros na luta pela garantia de seus direitos. Em julho de 2008, durante o trabalho de campo da equipe do GESTA/ UFMG, foi relatado pelo representante da ONG Campo Vale,256 a ocorrência de desmatamento em uma chapada, que teria repercussões negativas na capacidade de reprodução social de algumas comunidades pertencentes aos distritos de Cruzinha e Baixa Quente, em Minas Novas. O caso foi denunciado pelo representante da comunidade de Cruzinha na reunião do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável (CMDRS). Conforme descrito pelo representante do Campo Vale, cerca de 80 pessoas de comunidades próximas foram até o local e paralisaram o desmate que estava ocorrendo em propriedade particular. Um hectare já havia sido desmatado e o intuito do proprietário era desmatar uma área de 39,78 ha para o plantio de eucalipto. Para tanto, ele possui uma Autorização para Exploração Florestal (APEF) expedida pelo Instituto Estadual de Florestas (IEF). Todavia, a área em questão abriga um dos últimos remanescentes de Mata Atlântica da região, além de algumas nascentes que abastecem as comunidades residentes nas encostas da chapada. A ameaça de perda deste recurso natural motivou a ação das comunidades, que paralisaram máquinas e ameaçaram derrubar quatro fornos em construção para confecção de carvão vegetal com o material lenhoso a ser retirado (vide Foto 1). Após encaminhamento de denúncia à Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (FETAEMG) e intervenção do Secretário de Meio Ambiente do governo de Minas, a autorização de desmate foi suspensa. Uma equipe de técnicos do IEF fez uma vistoria no local e afirmaram que não havia qualquer irregularidade, tanto em relação à concessão da autorização para desmate, quanto à área já desmatada. Disseram também que, caso a APEF seja liberada, irão recomendar no parecer medidas mitigadoras. No entanto, o IEF ainda não elaborou o parecer conclusivo. Foto 1: Interrupção de desmatamento realizado por comunidades locais

Fonte: Arquivo ONG Campo Vale, 2008. 256 Entrevista realizada em 18/07/2008, município de Minas Novas.

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A exigência das comunidades é que sejam avaliados a capacidade de recarga hídrica da chapada e o possível comprometimento das nascentes e das águas superficiais com a continuidade do desmatamento. De toda forma, as famílias estão de prontidão e dispostas a impedir a continuidade do desmatamento, independente da legalidade.257

Conflitos da Geração de Energia258 Conforme exposto acima, os lavradores foram ocupando as áreas mais íngremes dos vales, nos tabuleiros e vazantes,259 onde se tinha as “terras de cultura” e o local de moradia. Contudo, na década de 1980 teve início uma nova frente de expansão do capital com o “Programa Novo Jequitinhonha”. Este previa a construção de dezesseis projetos hidrelétricos, onze no rio Jequitinhonha (Terra Branca, Peixe Cru, Irapé, Murta, Jenipapo, Jequitinhonha, Almenara, Lua Cheia, Salto da Divisa, Itapebi e Itapebi-Mirim) e cinco no rio Araçuaí (Turmalina, Santa Rita, Berilo, Ivon e Aliança). Neste sentido, os pequenos proprietários que faziam uso das terras de chapada e que tiveram o acesso restringido pelas “reflorestadoras” perceberam que os projetos de construção destas hidrelétricas se constituiriam em uma nova ameaça de desterritorialização260. Desta forma, sucessivos casos de conflito ambiental vêm sendo identificados com relação às atividades econômicas voltadas para produção de energia elétrica na região, tal como ocorrido no complexo processo de mudança social das 51 comunidades deslocadas compulsoriamente pela construção da usina hidrelétrica de Irapé. Este projeto interferiu diretamente nas dinâmicas sociais e produtivas rurais, originando efeitos diferenciados conforme o modo de vida das comunidades afetadas. Foram enormes as distorções sócioeconômicas, tais como: deslocamento compulsório de quase 1.200 famílias, rompimento de laços sociais e de parentesco, aumento dos conflitos por terras e pelo acesso à água.261 No caso das 22 comunidades ameaçadas pelo aproveitamento hidrelétrico de Murta, também no rio Jequitinhonha, a especulação gerada pelo empreendimento já vem acarretando impactos semelhantes.

257 Entrevista realizada com representante do Campo Vale em 18/07/2008, município de Minas Novas. 258 Os dados contidos neste tópico são provenientes dos relatórios de viagem a campo realizada pelos pesquisadores Marina Penido e Rodrigo Madureira, membros da equipe do GESTA/UFMG, em julho de 2008. 259 TEIXEIRA, 2008. 260 ZUCARELLI, 2006. 261 ZUCARELLI, 2006.

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O mesmo é válido para o caso da construção da usina hidrelétrica de Itapebi, ainda no rio Jequitinhonha, cujo empreendimento do Consórcio Itapebi Geração de Energia S/A, formado pela Coelba e por sua holding Neoenergia, inundou cerca de 70 km2, atingindo diretamente 35 famílias em Salto da Divisa-MG, entre pescadores, extratores de pedra e lavadeiras. A usina atingiu ainda outras comunidades nos municípios de Itapebi, Itagimirim e Itarantim, no estado da Bahia. Dentre os diversos problemas elencados neste caso, a partir de documentos oficiais, entrevistas e depoimentos coletados na oficina no Vale do Jequitinhonha, destacam-se cinco relacionados à: infra-estrutura do reassentamento, saúde, atividade pesqueira, lavagem de roupa no rio Jequitinhonha e extração de pedra e areia. O “reassentamento” das famílias mineiras ocorreu no bairro Vila União, já existente em Salto da Divisa-MG. As construções seguiram o padrão urbano, diferente do modo de vida a que as famílias estavam acostumadas. Ademais, os quintais se mostraram impróprios para o plantio em decorrência de sua pequena extensão, da alta declividade e do solo pedregoso (ver foto 2). Foto 2: Reassentamento em Salto da Divisa-MG

Fonte: Arquivo GESTA/UFMG, 2008

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Além das questões relativas à infraestrutura do reassentamento, registra-se problemas no tocante à qualidade da água do reservatório, conforme consta do documento denominado “ata da reunião no Fórum da Comarca de Jacinto”: A Irmã Rosa diz que a água está tão imunda que parece haver produtos químicos; há também vários animais mortos no lago. Antes do empreendimento a água era corrente e não havia este problema. A comunidade diz que depois do empreendimento não estão mais consumindo a água, estão usando água de fora. [...] A água, segundo ela, tornase imprópria para o uso doméstico (...), lamacenta e com sujeiras que se acumulam nas margens não sendo possível lavar roupa, tomar banho, utilizar a água para fazer comida e outras coisas necessárias.262 O aumento do número de doenças na região é associado pelos moradores locais à piora na qualidade da água. Durante as entrevistas foi mencionada a ocorrência de uma epidemia de dengue no bairro, facilitada pela água parada do reservatório que também teria contribuído, na visão dos moradores, para a proliferação de mosquitos. O presidente da Associação de Pescadores e a representante das lavadeiras de Salto da Divisa, ambos reassentados, relataram ainda o aumento de doenças de pele e de verminoses.263 Ademais, os entrevistados atribuem à formação do reservatório da usina de Itapebi os impactos sobre a atividade pesqueira, especialmente em Salto da Divisa/MG, a montante da barragem. De acordo com o presidente, a Associação de Pescadores de Salto da Divisa (APSD), criada após a conclusão da barragem, tinha como objetivo inicial a reivindicação das compensações pelas perdas de barcos e redes utilizados pelos pescadores. Posteriormente, a APSD se transformou em um movimento de luta, na tentativa de reabrir as negociações com a empresa e garantir os seus direitos, acordados anteriormente: [...] a empresa Itapebi Geração de Energia S/A. deveria pagar a cada um dos pescadores previamente cadastrados, o valor correspondente à diferença entre o que era pescado antes e depois do enchimento do lago. Adicionalmente, como medida de longo prazo, a empresa deveria implementar uma atividade alternativa capaz de proporcionar aos pescadores

262 MPE, 2004. 263 Entrevista realizada em 16/07/2008, município Salto da Divisa.

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um trabalho com renda condizente à obtida antes da construção da hidrelétrica, e assim, desfazer o vínculo de dependência dos pescadores em relação à empresa.264 Todavia, para o presidente da APSD, as medidas adotadas apresentam diversos problemas: o método utilizado para calcular o valor pago pela empresa aos pescadores foi inadequado; os 21 barcos fornecidos não atendem a demanda dos 42 pescadores; além disso, a queda no rendimento dificulta quitar os custos da manutenção dos barcos existentes.265 A alternativa oferecida recentemente pela empresa foi a piscicultura através da implementação de tanques-redes. Entretanto, alguns pescadores não tiveram interesse pelo projeto e reivindicaram a indenização em dinheiro, pois, essa foi “a única opção que a empresa deu pros pescadores. Se quiser bem, se não quiser tchau”.266 Como constatado em campo, os tanques-redes estavam em fase experimental no reassentamento. O presidente da APSD entende que o barramento do rio Jequitinhonha trouxe problemas também em relação à qualidade e quantidade de peixes que os pescadores costumavam pescar. Sobre estas mudanças, o entrevistado comenta: “Tínhamos peixe nobre: robalo, surubim... uma grande variedade. Hoje não pega mais nada, porque com o barramento não tem piracema”.267 Os fatores relativos à escassez de peixes, segundo o presidente, decorrem da má qualidade da água que provoca a mortandade dos animais; do barramento do rio que elimina o processo natural da piracema; além da presença de peixes predadores inseridos pela empresa no reservatório: “eles soltaram peixes predadores no lago: cachara, bagre africano, tucunaré...”.268 A usina hidrelétrica é vista como um empreendimento que alterou significativamente a cultura pesqueira da região, fazendo emergir novas necessidades: “Hoje, pra pescar precisa de barco a motor, gasolina, ajudante e muito pano de rede. Antes não precisava”. Os altos custos gerados vêm desestimulando os pescadores e a consequência é que: “a maioria dos pescadores não tem mais essa atividade, porque o meio não permite. Mas pescador que é pescador morre pescador, mesmo que não tem mais a vida ativa do rio”.269

264 265 266 267 268 269

IBAMA, 2006, p. 5. Entrevista realizada em 16/07/2008, município Salto da Divisa. Entrevista realizada com o presidente da APSD em 16/07/2008, município Salto da Divisa. Entrevista realizada em 16/07/2008, município Salto da Divisa. Entrevista realizada com o presidente da APSD em 16/07/2008, município Salto da Divisa. Entrevista realizada com o presidente da APSD em 16/07/2008, município Salto da Divisa.

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Outro processo de mudança originada pelo empreendimento faz referência à perda da atividade de lavar roupas no rio Jequitinhonha. Esta atividade aparece nos relatos de campo como uma tradição na região, que proporcionava um importante espaço de relação entre as mulheres da comunidade além de uma fonte de renda para as famílias. Com a formação do reservatório, os pontos habituais utilizados para lavagem de roupas desapareceram, sendo impossível sua execução em outros pontos na margem do reservatório. Em decorrência da união das mulheres em uma Associação, as lavadeiras foram reconhecidas no período em que o empreendimento estava na iminência de receber a Licença de Instalação, em 1999. Para atender a categoria, o Consórcio propôs algumas atividades de reativação econômica, dentre elas, o artesanato de crochê. Sobre esta iniciativa, expressa assim uma representante e das lavadeiras: “Eles querem que a gente faça crochê e bordado. Vocês encontraram a gente lavando roupa e não fazendo bordado. Até aprender a bordar, nós já morremos de fome”.270 Na tentativa de restabelecer a atividade, a alternativa implementada pela empresa foi a construção de uma lavanderia. No entanto, segundo relatório do IBAMA, a mesma ainda não responde às necessidades, uma vez que não há espaço adequado e os seis tanques não são suficientes para atender, segundo a representante das lavadeiras, uma média de 80 mulheres. Como observado em campo, a lavanderia apresenta condições precárias para o exercício da atividade (ver Fotos 3 e 4). Fotos 3 e 4: Lavanderia construída pela Itapebi Geração de Energia S/A

Fonte: Arquivo GESTA/UFMG, 2008.

270 Oficina Mapa dos Conflitos, Itaobim, 5-8 de março de 2009.

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Na visão da representante da Associação, o local nem chegou a ser utilizado e as lavadeiras reivindicam sua ampliação e a troca dos tanques por outros de dimensões maiores e em número suficiente para atender a todas as lavadeiras.271 A Associação requer ainda a construção de mais uma lavanderia, do outro lado da cidade, para as lavadeiras que residem no lado oposto ao que foi instalada a atual lavanderia.272 É importante ressaltar que a atividade de lavagem de roupas, nas condições propostas pelo Consórcio, implicou em ônus adicionais, como conta de luz e de água a serem arcados pela categoria. Como menciona a presidente da Associação das lavadeiras: [...] o ponto de trabalho que a gente tinha não tem mais. Eu lavava roupa no rio pra comprar o pão de cada dia. Tomamos muito prejuízo e tamo sofrendo até hoje. [...] A associação das lavadeiras está na justiça. Falaram que ia fazer a lavanderia, mas não foi feito do jeito que eles falaram. A pia é pequena e de plástico. Agora tem que pagar água e energia. Não tem como não, de maneira nenhuma.273 Outra categoria que se sentiu lesada pela hidrelétrica foi a dos “pedreiros”, trabalhadores da construção civil. Conforme relatado, as atividades de extração de pedra e areia eram realizadas às margens do rio Jequitinhonha e com a formação do reservatório os locais antes explorados ficaram submersos, proporcionando uma escassez de matéria-prima, consequentemente, acarretando em um aumento no custo da construção civil e a redução da oferta de emprego para os “pedreiros”. Segundo o documento denominado “ata da reunião no Fórum da Comarca de Jacinto”: O pedreiro diz que quando a empresa veio, dizia que não faltaria pedra e areia. Depois do empreendimento houve falta de material para trabalhar. Agora, o preço da areia triplicou, pois tem que comprar em outro lugar. Os trabalhadores dizem que estão passando fome. Não estão tendo material para trabalhar.274 Vale ressaltar que, conforme denunciado pelo presidente da APSD durante a construção do reservatório, a empresa teria extraído areia e pedra sem o

271 272 273 274

Entrevista realizada em 16/07/2008, município Salto da Divisa. IBAMA, 2006, p. 8-9. Entrevista realizada em 16/07/08, município Salto da Divisa. MPE, 2004.

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devido pagamento aos extratores ou ao município.275 O IBAMA e o Consórcio se posicionaram contrários à indenização da categoria atingida, mas, favoráveis ao ressarcimento via compra de novas jazidas para extração. Os extratores, com a interferência e o apoio do Ministério Público, optaram por receber indenizações em dinheiro. “Desta forma, o IBAMA entende que a questão dos extratores e das categorias afetadas pela extinção das atividades de extração se encontra encerrada no âmbito do processo de licenciamento”.276 As entrevistas realizadas em campo apontaram esses cinco elementos como os mais expressivos em termos de perdas das condições ambientais propícias à reprodução social no caso da barragem de Itapebi. Contudo, não é demais lembrar que tais comunidades rurais também perdem, em geral, “suas referências culturais e simbólicas, as redes de parentesco estabelecidas no espaço, a memória coletiva assentada no lugar, etc.”,277 que jamais poderão ser recompostas ou compensadas. Ademais, a implantação da usina hidrelétrica de Itapebi gerou ainda conflitos adicionais em comunidades de municípios mais longínquos, em virtude de suas medidas de mitigação e de compensação. É o que veremos, a seguir, na última situação social apresentada neste texto.

Conflitos da Criação de Unidade de Conservação278 A criação da Reserva Biológica da Mata Escura foi uma exigência acordada entre os órgãos públicos e o Consórcio Itapebi Geração de Energia S/A, como medida de compensação pelo afogamento da cachoeira do Tombo da Fumaça, em virtude da construção da usina hidrelétrica de Itapebi. A decisão política de criação desta Unidade de Conservação (UC) teve início quando a Justiça Federal concedeu, no ano 2000, liminar à ação popular contrária à instalação do empreendimento. A ação alegava irregularidades na concessão da licença concedida pelo IBAMA em 1999, e apontava fraude no EIA, pois não havia qualquer menção sobre o desaparecimento da cachoeira tombada pelo patrimônio paisagístico e turístico do estado de Minas Gerais. Com base em expedições a campo, realizadas entre 1999 e 2002, técnicos do IEF elaboraram, em janeiro de 2002, uma proposta para a criação do Parque 275 276 277 278

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Entrevista realizada em 16/07/2008, município Salto da Divisa. IBAMA, 2006, p. 10. ZHOURI; OLIVEIRA, 2005. As informações coletadas e expostas neste tópico são provenientes do relatório de viagem a campo realizada pelos pesquisadores Marina Penido e Rodrigo Madureira, membros da equipe do GESTA/UFMG, em julho de 2008.


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Estadual da Mata Escura com área de 20.450 hectares. Entretanto, o projeto não foi executado, mas foi transferido para o IBAMA que sugeriu, em agosto de 2002, a criação do Parque Nacional da Mata Escura, em uma área de 41.492 ha, com a possibilidade de acréscimo de outras duas áreas, com 3.210 hectares e 4.745 ha, perfazendo o total de 49.448 ha. Em novembro de 2002, por intervenção do Ministério Público Federal (MPF) e do IBAMA, foi assinado o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o autor da ação popular e o Consórcio Itapebi Geração de Energia S/A. A primeira cláusula do acordo propunha o encerramento da ação popular desde que a empresa cumprisse, a título de compensação pelos impactos ambientais, o custeio da criação e da implantação de uma UC de proteção integral na área denominada Mata Escura.279 e Em junho de 2003, quando a usina hidrelétrica já tinha obtido a licença de operação, o imbróglio da Unidade de Conservação foi definido através do Decreto que criou a Reserva Biológica da Mata Escura. A Reserva, instituída em caráter de medida compensatória à construção da usina hidrelétrica de Itapebi, ampliou a área protegida, em relação às propostas anteriores, para um total de 50.890 ha, abrangendo áreas dos municípios de Jequitinhonha e Almenara. A ampliação da UC atingiu, direta e indiretamente, cerca de 750 famílias das comunidades Maranhão, Nova Araçatuba, Mumbuca,280 além de famílias de outros dois projetos de assentamento promovidos pelo INCRA e pela Ruralminas.281 A mudança de categoria para Reserva Biológica, em relação ao que estava sendo planejado, agravou os conflitos sociais na área, tanto pelo caráter extremamente restritivo à presença humana nesta UC, quanto pela forma autoritária com que ela fora constituída. Por força da Lei 9.985, capítulo IV, Art. 22 § 4º, o poder Público é dispensado de realizar consulta pública para a criação de uma Reserva Biológica. Dessa forma, a Reserva Biológica da Mata Escura foi criada sem qualquer discussão com a comunidade ou com as instituições locais.

279 Para maiores informações sobre o processo de criação da Reserva Biológica da Mata Escura, as estratégias e os conflitos provocados pela implantação desta UC, especialmente nos assentamentos de reforma agrária e na comunidade quilombola Mumbuca, consultar Sampaio (2007). 280 Mumbuca é uma comunidade que foi auto-reconhecida junto à Fundação Cultural Palmares como remanescente de quilombo. Esta comunidade é composta por cinco núcleos de moradia: Laranjeiras (o maior núcleo, onde se encontra a igreja, a casa de farinha e a escola), Mumbuca, Vai-Quem-Quer, Babilônia, Escuta e Cachoeira. Para maiores informações consultar, Sampaio, 2007 e NUQ, 2007. Ver, também, neste livro, texto sobre a comunidade. 281 SAMPAIO, 2007; CARDOSO, 2007.

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Conforme registros de 2003 nos arquivos do Ministério Público Federal: Atualmente, o clima é de apreensão nas comunidades atingidas pelo Decreto [...] Apreensão que se tonifica à medida que o IBAMA, órgão gerenciador do processo, não disponibiliza informação e não presta os necessários esclarecimentos à população local.282 No trabalho de campo realizado pela equipe do GESTA/UFMG, o representante do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Jequitinhonha destacou o caráter autoritário da medida, pois o processo acabou sendo conduzido de forma unilateral, trazendo diversos motivos para a apreensão de parte das populações locais.283 De acordo com Sampaio (2007), alguns nem sabiam se suas propriedades estariam dentro dos limites da UC e quais restrições seriam impostas. Em função desse quadro, foi constituída a Comissão Pró Mata Escura, na tentativa de obter maiores esclarecimentos e defender os direitos da população atingida. A Comissão seria composta pelas seguintes entidades: Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG); Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (FETAEMG); Paróquia São Miguel e Almas, do município de Jequitinhonha; Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável (CMDRS); Cáritas Diocesana; Câmara Municipal, Prefeitura e CODEMA de Jequitinhonha; Associações de Agricultores; Associação dos Remanescentes de Quilombo Mumbuca e os Sindicatos de Trabalhadores Rurais de Jequitinhonha e Almenara. A Comissão conseguiu promover algumas reuniões com órgãos jurídicos e ambientais para discutir uma possível reversão de categoria e/ou diminuição da abrangência da Unidade de Conservação. Neste sentido, a luta da Comissão seguiu, basicamente, três linhas de reivindicações: participação da população nos encaminhamentos referentes à consolidação da UC; mudança dos limites da UC, para que retorne à proposta original de 20.450 hectares; e mudança da categoria Reserva Biológica para que se retorne a proposta original de Parque Estadual.284 Com essas reivindicações, a Comissão teria como objetivo diminuir os impactos oriundos das restrições impostas às comunidades, uma vez que a criação da Reserva Biológica implica: deslocamento compulsório de inúmeras famílias; impossibilidade de abertura de novas roças e consequente redução da produção agrícola para aqueles que ficariam na área de entorno, bem como dificuldades de acesso ao crédito através do PRONAF – Programa Nacional da Agricultura Familiar; fechamento de 14 escolas existentes no interior de seus 282 MPF, 2003. 283 Entrevista realizada em 18/07/2008. 284 CARDOSO, 2007; SAMPAIO, 2007; MPF, 2003.

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limites; e interdição da rodovia MG-105, que liga Joaíma a Pedra Azul e passa dentro da área delimitada.285 A luta da Comissão Pró Mata Escura tem proporcionado alguns ganhos importantes, como por exemplo, uma nova sugestão do Ministério de Meio Ambiente e do então IBAMA para uma possível redução na área da Reserva, desde que esta mantenha mais de 40.000 hectares. Para isto, seriam feitos alguns ajustes no traçado original, retirando as áreas sobrepostas onde vivem as comunidades.286 Este caso revela, enfim, que, além dos conflitos socioambientais gerados pela construção da barragem de Itapebi nos locais mais imediatos de abrangência da obra, outros conflitos foram também desencadeados pela medida compensatória relacionada à barragem através da implementação da UC Mata Escura. Tal dinâmica revela o imperativo da destinação territorial a projetos econômicos orientados para a exportação, os quais acabam por gerar uma despossessão territorial por parte de grupos detentores de modos diferenciados de vida e de modelos econômicos centrados nos lugares.

Considerações finais Os processos socioambientais desencadeados pela construção de projetos hidrelétricos, pelas atividades de mineração, pelo plantio de grandes extensões de monocultura de eucalipto, bem como pela delimitação de áreas naturais para conservação ambiental no Vale do Jequitinhonha se apresentam como políticas econômicas e ambientais de âmbito estadual e nacional que, além de produzirem movimentações territoriais de forma interconectada, se inserem no bojo de uma nova divisão internacional do trabalho e de novas formas de dominação do capital financeiro. As monoculturas de eucalipto visam a produção de celulose, papel e carvão para alimentar os padrões de consumo, ou seja, a economia dos países desenvolvidos e das elites internas a cada país, conforme atestam algumas pesquisas287 e os dados oficiais mais recentes apontados neste estudo. A inserção mundial se faz ainda por meio de políticas ambientais de cunho internacional, como por exemplo, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), que considera os reflorestamentos com eucaliptos fontes de sumidouros de carbono, ou seja, como meio de amenizar o aquecimento global.288

285 286 287 288

CARDOSO, 2007; SAMPAIO, 2007; MPF, 2003. CARDOSO, 2007. PÁDUA, 1999; RIBEIRO, 2000. LASCHEFSKI, 2005.

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O mesmo pode ser pensado para a produção de energia elétrica, que fomenta as atividades industriais. A partir de uma análise do 22º Balanço Energético do Estado de Minas Gerais, elaborado pela CEMIG em 2007, pode-se vislumbrar o destino da produção de eletricidade no estado. Do total da energia elétrica consumida, tendo 2006 como ano-base, 66% foi destinada ao setor industrial, 15% ao consumo residencial, 9% ao setor comercial, 6% ao setor público e 4% ao setor agropecuário.289 Nesse sentido, verifica-se que o setor industrial se apropria de grande parte da energia gerada, o que caracteriza uma distribuição desigual dos custos e benefícios advindos da implantação dos empreendimentos. Pode-se constatar, ainda, por esse Balanço Energético, que 36,33% da energia consumida no estado são empregados na operação dos segmentos ligados à produção de papel e celulose, à metalurgia e à siderurgia. Conforme pesquisas de Bermann (2004), podemos estabelecer uma conexão, por exemplo, entre a produção de alumínio, que consome grandes quantidades de energia em seu processo produtivo, com os impactos locais gerados pelas atividades de fomento e de comércio global deste produto, que destina 70% de sua produção ao mercado externo.290 Ao avaliarmos que a exploração econômica do meio ambiente se vincula ao suprimento do mercado internacional, é possível observar que a apropriação assimétrica de espaço ambiental291 e os conflitos ambientais oriundos desse embate decorrem de uma política de exportação de bens primários. Dessa maneira, a extração de recursos naturais do Vale do Jequitinhonha não representa o consumo de produtos isolados, mas sim, produtos integrados ao sistema de produção de mercadorias com a finalidade de atender determinados nichos de mercado. Nesta lógica, os projetos hidrelétricos, minerários e a monocultura de eucalipto se multiplicam no Vale do Jequitinhonha convertendo os lugares vividos em paisagens industriais, assim esvaziando e anulando os sentidos que anteriormente faziam do espaço um território de reprodução social das famílias e dos seus modos de vida.

289 CEMIG, 2007. 290 BERMANN, 2004. 291 Espaço ambiental é um importante conceito na compreensão da problemática ambiental. De maneira sintética, significa a busca de um espaço propício à vida humana que requeira entre o mínimo para as necessidades sociais e o máximo que pode ser assimilado pela ecosfera. O cálculo do espaço ambiental é processado a partir de cinco elementos básicos: energia, água, madeira, solos e recursos não-renováveis. Utilizando-se dessa quantificação é possível determinar quanto cada país ou segmento produtivo está consumindo além do que seria sustentável (Opschoor, 1995). Aqui reside a fecundidade desse conceito como importante indicador de iniqüidades na distribuição do uso do meio ambiente, embora ele seja limitado aos aspectos meramente quantitativos das trocas materiais.

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É sob esta ótica excludente e homogeneizadora que as elites mineiras têm reforçado o significado do Vale do Jequitinhonha como lugar de miséria destinado à promoção do “desenvolvimento” por meio de projetos industriais. Desse modo, o Vale tem se transformado, ao mesmo tempo, em espaço de produção de mercadorias globais e de perpetuação de desigualdades e injustiças socioambientais. Enquanto se acelera a crise ecológica planetária sob o efeito da busca de “soluções” técnicas e mercantis para as contradições profundas do capital, repartem-se de forma desigual os impactos e as restrições ambientais em distintas partes do mundo, tal como se observa pelos relatos dos moradores do Vale. Como forma de coadunar o desenvolvimento e a proteção ambiental, a criação de Unidades de Conservação se insere no processo de mundialização da economia através de mecanismos de liberalização, como as “compensações ambientais”. O exemplo da construção da hidrelétrica de Itapebi e a criação da Reserva Biológica da Mata Escura são ilustrativos desta situação e de suas consequências. Da mesma forma, a expansão das atividades de mineração e de “reflorestamento” com eucalipto suscitam lutas sociais contra a degradação dos territórios vividos por comunidades étnicas e agricultores familiares. As estratégias de resistência, como demonstram os casos dos moradores do distrito de Cruzinha, em Minas Novas, e do município de Itinga, vão desde a denúncia formal em órgãos ambientais e jurídicos, passando pela busca de entidades parceiras e publicização do caso, até o confronto direto com estratégias de paralisação da degradação de seus territórios. Registram-se, portanto, vários níveis de conflito desencadeados pela política territorial hegemônica: seja pelos conflitos originados por projetos de mineração, monoculturas e barragens, que transformam os lugares em espaço de acumulação capitalista e que enfrentam a resistência das comunidades locais; seja pelo deslocamento destas para outras áreas, urbanas ou rurais, que pode implicar em novos conflitos com outras comunidades locais; ou mesmo pela sobreposição de políticas sociais, ambientais e econômicas que proliferam os embates em torno da apropriação do território. Com efeito, as situações sociais analisadas revelam que a implementação dos chamados projetos de desenvolvimento – e/ou até mesmo a especulação gerada pela expectativa de novos empreendimentos – movimenta uma gama de atores em defesa dos seus direitos, sejam comunidades ribeirinhas, quilombolas, indígenas ou camponesas que não se veem beneficiadas por tais concepções desenvolvimentistas. Assim, através da mobilização e de sua organização em movimentos, comissões, associações, conselhos, parcerias com 233


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ONGs ou na forma de denúncias, estes atores resistem à apropriação e transformação do território e de seus recursos naturais. A resistência centrada nos lugares demonstra que esses grupos empreendem em suas lutas o esforço para deixarem a condição passiva que os transformam em objetos dos movimentos de outrem (do capital), logo, passíveis de deslocalização e relocalização. Explicitar esses conflitos significa revelar a riqueza das diversidades culturais, políticas e socioambientais, as múltiplas visões e usos da natureza, enfim, os processos que movimentam a sociedade brasileira e, em especial, o Vale do Jequitinhonha.

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Cultura Material, Agricultura Familiar e Políticas Públicas para o Alto Jequitinhonha 292

Eduardo Magalhães Ribeiro Flávia Maria Galizoni

A crítica ao desenvolvimento rural

A

crítica ao modelo brasileiro de desenvolvimento rural surgiu nos anos 1980. Ao fim de vinte anos de ditadura militar, o crescimento da organização da sociedade civil e a manifestação de problemas sociais e ambientais deram base à crítica da integração da agricultura com a indústria. O êxodo rural que ocorreu na época – nos anos 1960/1970 aproximadamente 30 milhões de pessoas migraram do campo para a cidade – estimulou a reavaliação do rural e das condições de vida e produção que estavam desaparecendo com a revolução verde. 293 Esse “caldo” de cultura abriu espaço para grupos rurais se organizarem em sindicatos, associações e ONGs, sob a forma de grupos camponeses, indígenas e quilombolas, que desde então manifestam seu direito a uma cultura, uma técnica e um lugar na sociedade brasileira. Desde então, nestas três últimas décadas, o Brasil tem crescido por incluir novos brasileiros: movimentos afirmativos se 292 Os autores agradecem ao CNPq, à Fapemig, ao ETENE/Banco do Nordeste, à UNISOL e ao Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica, CAV, pelo apoio às pesquisas que originaram este texto. Versões anteriores foram publicadas por Guido Turus & Andrea Altobrando (“Biodiferenze”, Esedra Editrice, Padova, 2006) e Revista de Economia e Sociologia Rural (vol 45, out/dez 2007). 293 Consultar sobre desenvolvimento rural e migrações: Delgado (1985), Martine (1994) e Martins (1994); para uma crítica ao produtivismo da revolução verde consultar Altieri (1989).

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organizaram e continuam a se organizar, embora isso ainda não tenha sido o suficiente para assegurar a existência plena de muitos povos, muitos costumes e muitas agriculturas. Mas foi assim que cientistas, técnicos, pesquisadores e formuladores de programas públicos descobriram que existiam no país muitas culturas materiais diferentes. Este texto analisa uma parte dessa redescoberta sobre a história dos lavradores do alto Jequitinhonha. Esta região é marcada pelo contraste entre a pequena unidade familiar e as grandes empresas que exploram silvicultura; é assolada de tempos em tempos por períodos demorados de falta de chuvas e é povoada por comunidades rurais que detém um grande saber sobre o meio em que vivem, os recursos naturais que usam e que constroem, aos poucos, as ferramentas necessárias para decidir sobre seu próprio destino. Este texto é resultado de pesquisas e atividades de extensão universitárias feitas na região desde começos dos anos 1990, apoiadas por agências públicas de fomento.

O alto Jequitinhonha O vale do rio Jequitinhonha é uma extensa área da região sudeste com parte maior no estado de Minas Gerais e porção menor no estado da Bahia. Este artigo analisa apenas a parte alta do rio, mineira, região situada acima da foz do rio Araçuaí. O alto Jequitinhonha é coberto pela vegetação de cerrado, com gradações e denominações diferentes: campos, carrascos, catingas e capões são as mais frequentes. A paisagem é marcada por planaltos - as chapadas, cujas altitudes variam entre 900 a 1000 metros, entrecortadas por depressões profundas de vales, conhecidas na região como grotas. Chapadas e grotas são opostas em termos culturais e agrícolas: a primeira quase estéril e mais úmida, com maiores precipitações anuais, e o fundo da grota muito fértil, mas seco, com médias de 600/800 mm/ano de pluviosidade. Os lavradores vivem e plantam na grota; na chapada criam animais soltos, e as grandes empresas plantam eucaliptos. Chapadas originalmente eram cobertas pela vegetação rasteira do campo, ou quando havia arbustos, o campo-sujo, terrenos de escassa fertilidade. As grotas são vertentes das chapadas, em cujo fundo correm as águas e a fertilidade da terra tende a ser crescente quanto mais próxima ao fundo dos vales, os quais, quase sempre, também, são cobertos pela vegetação de porte elevado, que os moradores da região denominam matas ou capões e indicam terras boas para plantio. O povoamento do alto Jequitinhonha se concentrou nas grotas, onde lavradores fizeram lavouras de mantimentos usando os recursos naturais abundantes: florestas, água e fertilidade. Essas terras foram partilhadas entre famílias 238


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rurais desde começos do século XVIII; cada grota com suas nascentes de água abrigou rede familiar de domínio da terra e história, comuns a determinado grupo de parentesco, denominado comunidade rural. Apenas parte dos recursos naturais e da terra das comunidades é propriedade privada: somente os capões e parte dos carrascos, terras mais férteis; campos e chapadas servem para criação de animais e coleta, por isso foram e são áreas de apropriação e uso comunitário, submetidas a um controle diferente do domínio pleno que é exercido sobre as terras privadas. Os lavradores fazem seus plantios anuais em sistemas de rodízio de terra, plantando por 3 ou 4 anos em determinada área, e quando podem a abandonam por 10 ou 12 anos para recompor a vegetação e a fertilidade pela força da natureza, como se fossem sistemas agroflorestais ou de adubação verde. Ao final do período de descanso retornam às glebas revegetadas e recomeçam o cultivo. As lavouras são espalhadas pelos sítios – as unidades de moradia e produção familiares – em terras de qualidades diferentes. O extrativismo é um componente importante nos sistemas de produção; embora seja eventual, sazonal e feito quase sempre por idosos e crianças, é fundamental pela importância na dieta, na produção de energia, de bens de uso doméstico (sabão, remédio, ornamento) e pelo comércio, às vezes regular de frutos, essências e ornamentos nas feiras municipais. O beneficiamento de produtos da natureza e da agricultura é uma atividade fundamental na estação seca. Depois de quatro a cinco meses de chuva, geralmente de novembro a abril, acabadas as colheitas, os jovens migram por uns meses; a família que fica, processa ou industrializa produtos da agricultura ou da coleta. Na região são importantes o artesanato em argila; a transformação da cana-de-açúcar em rapadura, cachaça ou açúcar; os derivados da mandioca e milho.294 A população rural do alto Jequitinhonha organizou sistemas produtivos adaptados ao meio e às suas condições materiais com base em três pilares: - Primeiro: o trabalho familiar, que conta com todas as suas forças “plenas” – homens e mulheres adultos – e “periféricas” – idosos e jovens. Essas forças de trabalho são articuladas para reproduzir a família e conservar o domínio e o uso

294 Sobre comunidades do Jequitinhonha consultar Galizoni (2007); sobre sistemas produtivos ver Ribeiro e Galizoni (2000); sobre bens e recursos comuns na região consultar Freire (2001), Calixto (2006), Ribeiro e Galizoni (2003), Ribeiro e outros (2007); sobre beneficiamento e industrialização doméstica rural consultar Oliveira (2000), Ângulo (2002) e Noronha (2003).

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da unidade familiar. Agindo de forma planejada a família geralmente alcança os objetivos mesmo que enfrente secas, dificuldades para comercializar e as barreiras para acessar as políticas públicas. - Segundo: o grande conhecimento da natureza, que permite decidir o que coletar, onde plantar, como utilizar os recursos naturais disponíveis. Este conhecimento nasce de relações interativas entre essa população e o ambiente, e, no decorrer do tempo aperfeiçoa sistemas produtivos, multiplica a biodiversidade e estabelece um regime agrário localizado e intransferível. - Terceiro: o uso comunal, regulado e extrativista de recursos naturais, fundamentado no conhecimento local, na espacialidade comum e em acordos concertados entre famílias. Nas comunidades as famílias delimitam seus espaços de exploração e gestão comunitária de recursos escassos, implementando normas de uso dos agroambientes. Em consequência, observa-se no alto Jequitinhonha um fenômeno singular: lá convivem, ao mesmo tempo, o uso mais intenso do solo agrícola e a maior cobertura natural revegetada, conservada e manejada por população rural de todo o Sudeste do país. As técnicas produtivas variam de uma comunidade para outra, vizinha; recursos naturais conhecidos e explorados numa localidade às vezes são completamente desconhecidos noutra muito próxima; a denominação dos agroambientes varia de um lugar para outro. As técnicas agrícolas empregadas no alto Jequitinhonha dificilmente podem ser repetidas em outros locais ou regiões. Esses sistemas e conhecimentos permitem àquela população viver e produzir, às vezes tendo contra si o tamanho reduzido das áreas de terras férteis, as dificuldades para entrar em mercados e conseguir renda em dinheiro. Estas limitações não abalam a solidez da organização produtiva dos lavradores da região: mesmo nas situações de grande escassez de água – como no inverno de 2003 –, atravessam as intempéries sem abalos porque sua reprodução é baseada em: 1) adaptação, produzindo variedades resistentes à seca (feijão andu, milho, mandioca, cana-de-açúcar); 2) coleta regular de produtos nas áreas de terras desfrutadas em comum (frutos, essências, óleos); 240


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3) trocas em pequena escala (trocas comunitárias, feiras e mercados locais); 4) indústria doméstica rural, principalmente do derivados da cana, milho e mandioca; 5) rendas monetárias vindas de programas compensatórios e migrações sazonais.

Recursos naturais As técnicas produtivas são criadas por esses lavradores a partir da observação e da experimentação. Transmitido e recriado por gerações, as técnicas se associam ao ambiente e aos costumes, e por isso o seu campo de aplicação quase sempre é restrito ao meio que conhecem. É muito limitada a possibilidade de generalização dessas técnicas ou de introduzir inovações intensivas em capital. Mas o conhecimento dessas técnicas materiais permite negociar – talvez este seja o termo que melhor define a relação – as condições de plantio num espaço específico, uma certa porção de um terreno. Conhecer o meio e os recursos é essencial para conduzir a lavoura, pois o lavrador considera as características do solo e da cultura, o histórico de uso da área e seu uso futuro, a força de trabalho disponível na família e o destino do produto. Antes de tudo, ajusta a planta ao solo: cada tipo de terra é apropriada para um certo cultivo, e assim o agricultor aprende uma técnica e também um método; e como a aplicação do método depende do conhecimento do meio, quando o agricultor sai do seu meio dificilmente consegue refazer o mesmo tipo de lavoura, a mesma pauta produtiva básica, as mesmas condições de segurança alimentar. É por isso que programas de realocação de agricultores quase sempre terminam em insucessos. Esse método de produção usado na lavoura é diferente daquele outro, usado nos plantios intensivos que combinam trator, veneno e adubo químico. Estes adaptam o meio ao cultivo. Evidente que exigem um conhecimento rigoroso de tudo que influi na produção - semente, solo, adubo, mecânica – para recriar as condições para a produção. As técnicas usadas por esses lavradores consideram primeiro os recursos disponíveis naquele meio, para depois decidir o que pode ser produzido. Métodos diferentes revelam concepções também diversas, implicam resultados produtivos e ambientais diferentes e explicam as diversas relações com os mercados, com o trabalho, com a sociedade e com o conhecimento.295 295 Sobre métodos de cultivo consultar Woortmann e Woortmann (1997); Galizoni (2007) e Ribeiro et al. (2007).

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Esses lavradores estão sempre criando e transmitindo conhecimentos e técnicas: a produção de alimentos e bens é baseada em prática, experimentação, observação e exemplo. Por isso o território, seus regimes agrários e suas formas sociais de apropriação têm grande importância. Sujeitando a natureza a uma investigação constante produzem um conhecimento geralmente desprezado por ser muito localizado. Quase sempre são considerados por técnicos como atrasados ou ineficientes. Mas esses conhecimentos são protegidos por barreiras culturais, e persistem nesses regimes específicos de apropriação de recursos e terras.296 O regime de terras do alto Jequitinhonha é denominado na região “terra no bolo”, no comum de famílias. Este regime articula as glebas de uso privativo de uma família – áreas de lavoura – com outras de uso comunitário: áreas de coleta e extração de recursos. Áreas de extração são regidas por códigos costumeiros que combinam as necessidades das famílias e comunidades com o recurso em questão. Recursos renováveis – capins nativos e leguminosas para o gado, plantas medicinais, frutos, lenha e caça – são explorados comunitariamente. O limite de extração é dado pela capacidade que a área suporta sem pressionar em demasia os recursos. Qualquer membro da comunidade – e só dela – pode caçar ou colher. Assim, cada família, cada grupo de vizinhança estabelecem sua área de extração e coleta, que se torna muito reduzida quando esses recursos escasseiam. Nos casos dos recursos naturais que exigem tempo maior para se recompor, como madeiras – que demoram muitos anos para chegar ao ponto de corte – e recursos que não se renovam, como áreas de garimpo e reservas de água, os costumes são mais rígidos e as negociações mais delicadas. São recursos quase privativos de uma família. A madeira de cerne é de exploração quase sempre privativa e, assim como o garimpo de diamante, é recurso muito valorizado. Madeira e garimpo, apesar de explorados privativamente, têm acesso regulado por acordos comunitários. Como a água está começando a escassear, as nascentes, córregos e rios vão sendo submetidos a normas rigorosas de uso. A água, pela sua importância, gera conflitos pelo controle e exige constantes negociações para ter uso regulado: não se interrompe o fornecimento para ninguém, a não ser em casos de conflitos por terras; quando o acordo é rompido, o corte do fornecimento de água funciona como instrumento de pressão. Uma família se abastece, quase sempre, de fontes distintas de águas: coleta água para beber numa nascente que usa junto com outras famílias, para 296 Ver sobre este aspecto também em Buarque de Holanda (1957); Brandão (1981) e Galizoni (2007).

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cozinhar e uso doméstico usa do córrego que passa no fundo da casa; para lavar roupa a mulher usa córrego com maior volume de água e lapas de pedras próprias. Cada família usa, desta forma, vários cursos de águas, alguns em regimes mais privativos, outros com um grupo restrito de vizinhos e outros ainda em conjunto com a comunidade. O uso de recursos feito pelas famílias de lavradores combina e articula extração e lavoura: áreas da lavoura quando estão “descansando” recebem outros usos que não agrícolas, servem para coleta, caça, pastagem para as criações, reserva de recursos naturais. As dádivas da natureza – flores, madeiras, água, frutos, garimpo, plantas medicinais – que são produzidas sem intervenção humana direta, não podem ser privatizadas. A terra, a base física, pode ter dono; mas não as dádivas da natureza. Há uma dissociação no domínio de terra e do recurso natural. Apesar de haver possibilidade de exploração individual, a regulação obedece aos costumes. Há diferenças, então, entre a apropriação, que é individual, e o uso que é comunitário. Nas trocas entre famílias, comunidade e natureza, os dons que não são criados pela intervenção do trabalho humano não podem ser apropriados de forma privativa. É com base nesses costumes que uma família pode vender seu roçado sem vender a terra, ou mesmo vender seu roçado em terra alheia. O trabalho na lavoura, mesmo quando o trabalho é em terra alheia, é autônomo: cada lavrador planta o que quer e como quer, sendo dono de seu trabalho. Nas vendas de roçado, o lavrador vende seu trabalho aplicado na terra e o comprador adquire o trabalho materializado na roça; mas não a terra. Esse sistema de lavoura recompõe a fertilidade da terra pelo pousio, num período de alguns anos. A lavoura e seu vestígio – a palhada – são as representações de que o esforço físico humano moldou a natureza e a paisagem. O espaço se modifica à medida que é trabalhado pelas famílias, e essa modificação visível que resulta do esforço demonstra que aquela gleba recebeu trabalho. A natureza transformada pelo trabalho é cultural e socialmente distinta do espaço difuso que não foi dominado pela ação humana. Um grupo familiar combina, geralmente, glebas de terras de uso em comum e outras de apropriação individual. Entretanto, isto não exclui esta última de obrigações comunitárias: a existência da posse individual é restringida e subordinada aos direitos comunitários. Estes são os direitos de exploração dos recursos da natureza. As famílias são donas, plenamente, apenas dos frutos de seu trabalho, da lavoura, e somente neste sentido as terras de trabalho, as culturas, podem ser objeto de apropriação individual. Mas os recursos da natureza 243


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– as dádivas – estão disponíveis para todos os membros da comunidade, mas só para eles. O uso regulado dos dons da natureza indica que o ambiente precisa ser conservado para que a família se mantenha abastecida. Por outro lado aponta para um meio onde não cabem todas as pessoas, e portanto a oferta deve ser regulada. Comunidades onde este frágil equilíbrio se rompe, em que o meio é devastado, diminuindo as possibilidades de recursagem, são aquelas que vivem em condições materiais mais difíceis e maior é a incidência de migração sazonal. Famílias e comunidades regulam e dosam recursos naturais por meio de costumes locais. Primeiro: a comunidade zela para que somente pessoas e famílias daquele grupo usufruam dos recursos, vetando exploração por pessoas de fora, demarcando os que podem extrair. Segundo: os costumes determinam que o recurso não falte a nenhuma família, criando para tanto constrangimentos morais que limitam o consumo excessivo. A comunidade restringe, no seu espaço próprio, a liberdade de quem explora a terra. Esses são princípios gerais que norteiam e mediam a exploração das disponibilidades da natureza que, por ser dádiva – e não resultado do trabalho –, não pode ser privatizada. São princípios invisíveis para quem não pertence ao grupo, mas atuam com força de lei para famílias e comunidades. Nos pontos de interseção entre o direito de uso comunitário e familiar, ele passa por modificações e transformações que redefinem seus limites. Por isso a água é pública, mas quando passa pelo domínio de uma família pode ser restringida, apesar de não poder ter seu curso interrompido ou seu fluxo muito diminuído. O uso comunitário condiciona e restringe o uso privativo da família, que por sua vez é levado ao limite das normas comunitárias. O domínio público é transformado pelo domínio familiar, mas este, por sua vez, é também delimitado pelos princípios gerais, comunitários. A elasticidade das normas recria novos limites, que por sua vez também serão transformados, na interação constante entre famílias e ambiente.

Cultura local e programas públicos Um aspecto que chama a atenção de quem visita o alto Jequitinhonha é o contraste entre a imagem associada à região – a pobreza – e de outro lado o grande número de iniciativas autônomas – produtivas, políticas, culturais – encontradas por lá. É então que surgem indagações: que lugar pobre é este, onde a maioria das famílias rurais garante o sustento mesmo nos anos de maior adversidade? Que lugar pobre é este, onde quase todas as sedes urbanas são abastecidas por alimentos produzidos por agricultores do próprio município, mesmo 244


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e principalmente na estação sem chuvas? Que sociedade atrasada é esta, onde as famílias rurais criam normas estáveis e eficientes para gerir, coletivamente, recursos como a água, a terra e a vegetação?297 Ocorre que as técnicas produtivas, os acordos locais e os sistemas de manejo ambiental usados por esses lavradores costumam ser desconhecidos por técnicos, pesquisadores, agências privadas e públicas que atuaram e atuam na região. Quando conseguem percebê-los, geralmente o fazem considerando-as expressão do atraso e da ignorância, pois não incorporam insumos industriais, têm baixa produtividade, não dialogam com as normas cultas, não seguem prescrições de agências públicas, na maioria das vezes. Essa desqualificação da cultura material e dos acordos locais desconsidera o enciclopédico conhecimento do meio e dos recursos naturais que anima esses regimes agrários. Os insucessos dos programas formulados para a região em boa parte devem ser creditados a essa relação de alteridade. Mas as organizações da agricultura familiar da região, com seus sistemas, técnicas e riqueza da cultura material, têm refletido sobre a necessidade de mudar a forma de pensar o alto Jequitinhonha: antes de compreendê-lo como o lugar da pobreza e da fome, é preciso pensá-lo como um lugar específico, particular, singular. Portanto, deveria ser sujeito – e não apenas objeto – de políticas públicas específicas, particulares e singulares. Os regimes agrários da agricultura familiar do alto Jequitinhonha são diferentes: o tripé trator/veneno/adubo da revolução verde não se implantou lá, o mercado nacional de bens agrícolas não definiu a pauta produtiva regional, os produtores rural não têm necessariamente a produtividade como meta. Técnicos, pesquisadores e formuladores de programas que vão à região identificam isso como problema; e assim se animam a propor intervenções, propor mudanças que enfrentarão uma resistência firme da população rural. Mas uma alternativa a esta abordagem restrita dos sistemas produtivos e da cultura tem sido proposta pelos movimentos sociais organizados. Eles notam que esses grupos ou comunidades de agricultores – quando adaptados ao meio em que vivem, aos recursos que exploram e à cultura que construíram – gerem bem os recursos naturais, são capazes de criar técnicas sustentáveis de produção e normas precisas de gerência do meio. Como estes grupos vivem próximos ao meio que exploram, adquirem um amplo conhecimento sobre o ambiente, os recursos e seus usos.298 297 Uma discussão sobre pobreza no Jequitinhonha foi feita por Amaral (1988). Sobre alternativas de autosustento consultar Noronha (2003); sobre abastecimento urbano Ângulo (2002); sobre gestão de bens comuns ver Calixto (2002) e Ribeiro et al., (2007). 298 Sobre população tradicional ver Thompson (1998); Almeida (1989); Ostrom (1990) e Diegues (1996).

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Um costume frequente na formulação de políticas de desenvolvimento e combate à pobreza é considerar que todos os denominados territórios deprimidos têm um problema igual – a baixa renda – e que os programas formulados para uma região podem ser, indefinidamente, repetidos em outras. São desenhadas políticas para abranger casos muito diferentes; mas tais desenhos raramente levam em conta características locais, culturais e ambientais, e sim os macro-indicadores comparáveis (PIB per capita, taxa de analfabetismo, saneamento básico). Apesar de todos os alertas que as populações rurais fazem sobre sua especificidade, apesar da literatura sobre o assunto insistir nas peculiaridades de cada local, o procedimento comum nas ações públicas e privadas por desenvolvimento tem sido tratar com métodos iguais todos os que são considerados pobres, e avaliá-los por meio de ferramentas universais. É por esta razão que organizações locais, sindicatos e agências públicas têm procurado valorizar técnicas, culturas e saberes nas suas ações. Essa é, sem dúvida, a forma mais eficaz para fomentar o desenvolvimento rural e as identidades, que motivam a participação da população na construção de programas de melhoria de qualidade de vida e renda. Apesar dos sistemas de coleta, beneficiamento doméstico e agroextrativismo do Jequitinhonha formarem um conjunto de técnicas adaptadas de produção, conhece-se muito pouco como eles funcionam; praticamente não existem pesquisas sobre o tema. Esta ignorância, evidentemente, tem custos, como as despesas com modelos inovadores de difusão de técnicas produtivas, a ampliação da distância entre pesquisas públicas e seus beneficiários potenciais. Esses sistemas tradicionais de uso de recursos não apenas têm sido sistematicamente ignorados pela pesquisa científica e pelas ações por desenvolvimento rural, como têm sido seriamente prejudicados pela expansão dos monocultivos, principalmente de eucaliptos. A falta de apreço pela população local deriva, em parte, da predominância cultural dos sistemas agrícolas intensivos, que os concebe como alternativa única de desenvolvimento rural: três décadas depois da revolução verde o paradigma de desenvolvimento rural permanece o mesmo. A visão produtivista do desenvolvimento rural acentua a invisibilidade – técnica e cultural – dos manejos agroextrativistas que fazem parte de sistemas culturais infinitamente mais complexos que aqueles intensivos em capital e recursos materiais. Algumas organizações locais têm se empenhando em melhorar esses sistemas produtivos adaptados, em vez de se propor a modificá-los. Alguns resultados, como os Sistemas Agroflorestais na bacia dos rios Araçuaí/Itamarandiba, têm sido extraordinários, tanto do ponto de vista da recomposição da fertilidade quanto do fortalecimento da sensibilidade das organizações comunitárias 246


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para temas ambientais, quanto por efeitos produtivos propriamente ditos. Essas experiências apresentam ainda outro aspecto rico: abrem canais de participação e expressão para a sociedade rural, que passa a valorizar seu patrimônio cultural e técnico, o que as leva a fortalecer seu sentimento de pertencimento, a demandar programas ajustados às características regionais e a exigir, sobretudo, respeito à sua cultura própria. É assim que contribuem para tornar o Brasil um país um pouco mais justo, um pouco mais amplo, onde caiba todo o seu povo e todas as suas culturas.

Referências ALTIERI, M. Agroecologia. Rio de Janeiro, FASE/PTA, 1989. AMARAL, L. Do Jequitinhonha aos canaviais: em busca do paraíso mineiro. 3 v. Dissertação (Mestrado em Sociologia da Cultura) – Belo Horizonte, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1988. ALMEIDA, A. W. B. de. Terras de preto, terras de santo, terras de índio: uso comum e conflito. In. HEBETTE, J. e CASTRO, E. (Orgs.) Na trilha dos grandes projetos. Belém: NAEA/UFPA, 1989. ANGULO, J. L. G. Mercado local, produção familiar, e desenvolvimento: estudo de caso da feira de Turmalina, Vale do Jequitinhonha, MG. 138 f. Dissertação (Mestrado em Administração: Gestão, Ambiente e Desenvolvimento) – Universidade Federal de Lavras, Lavras, 2002. BRANDÃO, C. R. Plantar, colher, comer. Rio de Janeiro: Graal, 1981. BUARQUE DE HOLLANDA, S. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1957. CALIXTO, J. S. A botica da natureza: conhecimento, uso e regulação de recursos vegetais para a saúde em comunidades rurais do Alto Jequitinhonha. Monografia (Graduação em Engenharia Florestal) – Universidade Federal de Lavras, Lavras, 2002. DELGADO, G. C. Capital financeiro e agricultura no Brasil. São Paulo: Ícone Editora; Campinas: Ed. Unicamp, 1985. DIEGUES, A. C. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 1996. FREIRE, A. G. Águas do Jequitinhonha: gestão coletiva dos recursos hídricos pelos agricultores de Turmalina, Alto Jequitinhonha/MG. Dissertação 247


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(Mestrado em Administração Rural) – Universidade Federal de Lavras, Lavras, 2001. GALIZONI, F. M. A terra construída: família, trabalho e ambiente no Alto Jequitinhonha. Fortaleza, Etene/BNB, 2007. MARTINE, G. Estado, economia e mobilidade geográfica: retrospectiva e perspectivas para o fim do século. In. Revista Brasileira de Estudos de População, 11(1) jan/jul 1994. MARTINS, J. S. O poder do atraso. São Paulo: Hucitec, 1994. NORONHA, A. G. B. O tempo de ser, fazer e viver: modo de vida de populações rurais tradicionais do alto Jequitinhonha. 140 f. Dissertação (Mestrado em Administração) – Universidade Federal de Lavras, Lavras, 2003. OLIVEIRA, E. R. A “marvada pinga”: produção de cachaça e desenvolvimento em Salinas, norte de Minas Gerais. Dissertação (Mestrado e Administração Rural) – Universidade Federal de Lavras, Lavras, 2000. OSTROM, E. Governing the commons. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. RIBEIRO, E. M.; GALIZONI, F. M. Sistemas agrários e reprodução familiar: o caso dos lavradores do alto Jequitinhonha, Minas Gerais. In: GAMA, H. e COSTA, H. População e meio ambiente. São Paulo: SENAC, 2000. RIBEIRO, E. M.; GALIZONI, F. M. Água, população rural e políticas de gestão: o caso do vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. In: Ambiente e Sociedade, Vol. V e VI, n. 1 e 2. Campinas, jan./jul. 2003. RIBEIRO, E. M.; GALIZONI, F. M.; SILVESTRE, L.H.; CALIXTO, J. S.; ASSIS, T.P.; AYRES, E.B. Agricultura familiar e programas de desenvolvimento rural no alto Jequitinhonha. Revista de Economia e Sociologia Rural, vol 45, número 04, out/dez 2007. THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Cia das Letras, 1998. WOORTMANN, E. F.; WOORTMANN, K. O trabalho da terra. Brasília: Editora UnB, 1997.

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As Luzes D(n)o Vale: Expressividade de Memórias e Identidades em Movimento Silvania Sousa do Nascimento

Introdução Com o objetivo de promover processos educativos dentro de uma perspectiva de multiplicidades culturais, a sociedade pós-industrial investe no diálogo entre diferentes instituições. Em todas essas instituições (escolas, museus, imprensa, entre outras), os produtos tecnológicos estão presentes no cotidiano e em variadas manifestações públicas – mídia eletrônica, impressa e audiovisual, olimpíadas de conhecimentos, concursos temáticos e monográficos sobre temas científicos, festivais, exposições, feiras, salões, entre outras, ultrapassando as fronteiras das escolas. Assim, como educadora da área de Ciências e Tecnologias, organizo este texto em torno do tema: memória e identidade em uma perspectiva dos Estudos Sociais das Ciências e Tecnologia. Tomo como ponto de partida a heterogeneidade do compartilhamento dos conhecimentos científicos e tecnológicos em nossa sociedade. Estudos sobre percepção pública das ciências299 destes últimos vinte anos, assim como aqueles sobre o domínio das ciências, apontam uma grande defasagem entre o conhecimento produzido e o desejável para o ensino e sua aprendizagem.300 Algumas dessas instituições, como os museus de 299 Para ver alguns resultados: http://www.mct.gov.br/index.php/content/view/50875.html. Acessado em 05/05/2009. 300 BARROSO e FRANCO, 2008; GIORDAN e DE VECCHI, 1987.

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ciências, mesmo existindo sucessivas tentativas de trabalho com os repertórios de conhecimentos dos visitantes e as estruturas de acolhimento ao público,301 continuam enfrentando o desafio de transformar a interação entre os sujeitos e os objetos de exposição em mediadoras de conhecimentos científicos e, consequentemente, de aprendizagens.

Os espaços expositivos, inicialmente limitados à disponibilização de objetos para a contemplação, oferecem hoje vários dispositivos mediacionais.302 Para Valente,303 o desenvolvimento dos museus de ciências e tecnologia de caráter interativo, no Brasil, derivou do movimento internacional de criação dos sciences centers, nos quais a dinâmica principal observada era o trabalho de criar objetos correlatos aos artefatos tecnológicos, culturais e sociais, isto é, o foco da exposição não estava unicamente na musealização de um objeto testemunho, mas na criação de um objeto próprio para a apresentação de um conceito ou produto tecnológico. Este movimento, como destacam Nascimento e Almeida304, abriu a possibilidade de novas formas de práticas educativas. As ciências, como instituições, são produtoras de objetos culturais e, no contexto dos museus, podem promover novas formas de relação desses objetos com os sujeitos. Greub e Greub305 ao apresentarem o catálogo da exposição “Musées du XXIème siècle: idées, projets, réalisations”, destacam que os novos museus, instituições normativas, saem do cotidiano à busca de uma “espetacularização” da cultura e da arte, mas devem permanecer abertas para retratar os processos de transformações desse mesmo cotidiano, sempre em movimento. No exterior das instituições educativas os temas que envolvem as ciências e as tecnologias, renovam os interesses da juventude e se consolidam em espaços públicos, como na impressa e no cinema. Retomando as palavras de Lévy-Lebond, a educação científica não está restrita ao ensino de ciências e “é necessário sair da escola, do colégio, da universidade e ir ao laboratório, à fábrica, aos museus – e à natureza!”306 Dessa forma, pretendo explorar a expressividade dos conceitos de memória e identidade, sob as luzes da cultura do Vale de Jequitinhonha. Esta expressividade terá como pano de fundo um planejamento exploratório de um museu de território para o Vale. 301 302 303 304 305 306

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SCHIELE, 1992. LOPES e MURIELLO, 2005; GRUZMAM e SIQUEIRA, 2007.

VALENTE et al., 2005. NASCIMENTO e ALMEIDA, 2008. GREUB e GREUB, 2006. LÉVY-LEBOND, 1982, p. 282, tradução livre.


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Para pensar um museu no século XXI Os museus surgiram, na sociedade ocidental, em um contexto de preservação e de testemunho da memória e da cultura, inicialmente exercendo um papel de guardiões de acervos de natureza artística e documental. O fortalecimento dessas instituições públicas e privadas passa pelo desenvolvimento de práticas adquiridas nas exposições universais e nos salões internacionais e entrelaçam uma rica história até a constituição dos atuais espaços museais.307 Até o final do século XVII, os “cabinets de curiosités” foram importantes facetas para se pensar os museus. O grande acervo constituído nesses gabinetes possuía acesso restrito, guiado pelo próprio colecionador, e apresentando o discurso do aventureiro, conquistador ou naturalista. O processo de democratização da cultura abriu as portas das grandes coleções privadas de relíquias religiosas e artes plásticas e criaram, igualmente, espaços para exposição de objetos de outra natureza. A expansão industrial, nos séculos XVIII e XIX, criou um novo sujeito de exposição – a tecnologia, e um novo público – o cidadão urbano – e um novo visitante – o cidadão em seu tempo de lazer. No século XX a museologia mudou seu foco e quebrou o paradigma de formação de grandes coleções para promover a fruição da cultura e da tecnologia do mundo contemporâneo. Ela passa assim, a produzir uma própria cena de apresentação de objetos muitas vezes criados unicamente no processo de musealização. As mutações ocorridas na museologia do século XX, de forma simplificada, refletem a modernização dos espaços culturais cuja complementaridade entre coleção e arquitetura envolve o projeto de museu, e o que chamarei de dessacralização do espaço museológico, representada pela criação dos chamados museus de sociedade que incorporam, já, uma visão ampliada do conceito de museu. Os novos museus criados nos final do século XX valorizaram tanto histórias locais quanto temas universais como o museu do tempo, o museu da moda ou o museu das medidas. Observamos nesses museus uma mudança de foco da exposição cenográfica de objetos visando à sedução do público pelo destaque do discurso em torno dos objetos. Tudo isso implica a reorganização dos espaços internos e externos permitindo transformar o museu em um local de hipóteses, de pesquisa, de prospectiva.

307 NASCIMENTO e VENTURA, 2001.

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As novas tendências museológicas apontam para a diversidade das práticas sociais e, em geral, se afastam de formas consagradas de edifícios majestosos e reluzentes e se aproximam de uma arquitetura ousada e integrada ao contexto do visitante. Os museus pensados para o século XXI buscam abordar os temas a partir da contemporaneidade e simultaneidade da sociedade e conciliam questões que, até então, eram consideradas separadas: a ciência, a técnica, a arte, o tangível e o intangível. A contemporaneidade dos museus está presente na Declaração de Santiago (1972 UNESCO/ICOM), que enuncia a instituição museal a serviço da sociedade, fornecendo elementos que lhe permita refletir e agir sobre seus problemas do cotidiano. A instituição distante, obcecada em se apropriar dos objetos para fins taxonômicos, tem, cada vez mais, dado lugar a uma entidade aberta e consciente da sua relação orgânica com o seu próprio contexto social. Estas preocupações foram renovadas, vinte anos mais tarde, na Declaração de Caracas (1992 UNESCO/ICOM) e deixam-nos a certeza de que devemos considerar a museologia social como um elemento fundamental para pensar um museu para o século XXI. O museu se transforma em um local de patrimônio, um local de coleções de objetos e de artefatos, mas, também em um local de lazer, de prazer, de sedução, de encantamento, de reflexão, de busca de conhecimentos. Neste sentido discutimos, a seguir, um ensaio das bases de construção de um planejamento museográfico para o Vale do Jequitinhonha.

Elementos de reflexão sobre uma expografia para o Vale do Jequitinhonha A expografia busca estabelecer uma relação entre os objetos e o visitante. Trabalhar com relações sempre implica buscar compreender algo que escapa de nossas mãos. Uma relação pode ser uma forma de estar em contato consigo mesmo, com o outro igual ou diferente, com os objetos de mundos diferentes. Desta forma, construir uma expografia é construir um discurso entre um fragmento que iluminamos com nosso discurso de curador. Os pesquisadores Emlym Koster308 e Bernard Schiele309, embora em suas análises não visassem a esgotar essa discussão, propõem três possibilidades de exposições:

308 KOSTER, 1998. 309 SCHIELE, 1998.

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exposições de objetos, apoiados nas pesquisas sobre a história dos objetos e a história da constituição de acervos. Este tipo de exposição raramente é acompanhado de uma atividade educativa e o visitante aprecia os objetos em silêncio;

exposições interativas nas quais dispositivos e meios de comunicação audiovisual estimulam o visitante através de uma interação, tornando possível e visível a mediação entre o visitante e o objeto. As exposições interativas se tornaram uma espécie de imagem de marca dos centros e museus de ciência e tecnologia, em geral, uma atividade educativa de complementação de conteúdo é associada aos dispositivos;

exposições interpretativas que incluem também uma preocupação crescente quanto à natureza e à qualidade da experiência sensível do visitante, além do reconhecimento de que o encontro de culturas adiciona valores à sociedade. Essa forma de exposição, com a reconstituição de ambientes complexos, parte, em geral, de uma perspectiva global e de representações sociais dos objetos.

Dentro da perspectiva metodológica da sociologia da inovação encontramos as considerações de Elisabeth Caillet310 para diferenciar o terceiro tipo de exposição. Segundo ela, essas exposições se caracterizam por quatro elementos constitutivos: o artefato, a interatividade, o tema e a mídia: •

O artefato é um objeto que não necessariamente existe de fato e é projetado especialmente para a exposição. O artefato é, então, um ser imaginário que o visitante nunca viu nem nunca verá fora do espaço da exposição, construído para permitir a compreensão da realidade do verdadeiro dispositivo técnico ou da descoberta científica. O contexto do artefato é também uma simulação de uma realidade que não encontramos em lugar algum, mas que subentende o ponto de vista que, pedagogicamente, o curador pretende passar para o visitante.

310 CAILLET, 1995.

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A interatividade é uma espécie de provocação, um convite que o curador faz ao visitante, permitindo e facilitando a intervenção deste no processo de simulação da realidade. Neste caso o visitante é colocado em uma relação distanciada dos objetos que dão origem ao artefato, sendo a interatividade capaz de conferir a ele um efeito de realidade e de transportar o visitante ao palco da representação do fenômeno científico ou técnico.

O tema da exposição dos museus, dos centros de ciências, dos parques e salões organiza a trilha seguida pelo idealizador da exposição. A literatura especializada distingue três tipos de tematização:

1. interdisciplinar, articula pontos de vista disciplinares entre si; 2. global, mostra em um mesmo lugar fenômenos, princípios, experimentações, modelos, reflexões críticas; 3. expressiva, exprime um ponto de vista do idealizador, mas permite ser lida de muitos pontos de vistas pelo visitante, que compõe sua própria temática a partir de seu itinerário. •

A mídia é o conhecimento necessário das especificidades dos efeitos induzidos pelos diferentes meios de comunicação, ou o que cada um deles pode produzir como efeito: sensibilização, informação, aprendizagem, considerando os efeitos que cada um pode produzir fora dos espaços da exposição, em sua vida cotidiana.

Segundo Michèle Zaoui311 o percurso, enquanto ferramenta museográfica, evidencia as confrontações de múltiplas leituras do acervo e do artefato de uma comunidade que buscamos colocar em destaque. Abandonando as tipologias rígidas e lineares, o percurso perde a unicidade dogmática e se torna metafórico em relação a um propósito inicial de musealização de 311 ZAOUI, 1997.

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objetos, proporcionando ao visitante a construção de chaves interpretativas de artefatos culturais. Neste texto visamos uma abordagem de uma exposição interpretativa. Daí a necessidade de trabalhar a questão da expressividade dos conceitos de memória e identidade utilizando instrumentos midiáticos para apresentar o Vale por meio de percursos imaginários de composição de artefatos interativos. Logo, apresentamos um museu imaginário, que traz outra luz, uma proposta de criar um significado novo para o olhar presente no Vale e em seu patrimônio. Para ilustrar nossa posição vamos usar algumas fotografias da cidade de Jequitinhonha.

O Vale: um percurso de luz de um lugar Inovar a gestão é a palavra-chave, ultrapassar a discussão sobre o conteúdo para a discussão da forma de seus discursos. Assim um planejamento museológico não visa à expressão de um acervo constituído, mas sim a análise da expressividade de objetos de memória e de identidade. Essa mudança se justifica no estudo das características culturais de uma região, onde as singularidades identitárias, para serem interpretadas pelo visitante, necessitam ser iluminadas por diferentes luzes. As relações do homem com ele mesmo, com o outro e com os objetos se estabelecem em um lugar. Falar do Vale reflete o pertencimento de grupos sociais constituídos em diferentes tempos e em diferentes lugares de afeto, identidade e de memória. Tomamos a luz como metáfora de pontos de vistas que compõem a dialogicidade entre os sujeitos interpretantes de um lugar. A luz seria então um diálogo entre as franjas do visível e invisível, e este diálogo pode organizar nosso olhar sobre o cotidiano. Até o século XX, a luz era considerada uma entidade cujo comportamento mágico intrigava os povos. No entanto, as pesquisas começaram a mostrar regularidades de seu comportamento. Para a ciência a luz não é mais um mistério! A luz pode ter o deslocamento e a velocidade previsíveis e demonstráveis. Se ela encontra um objeto opaco, impossível de ser atravessado, ela é então devolvida para o meio incidente como o efeito produzido por uma bola rebatida: é uma reflexão. Se ela encontra outros materiais, transparentes, transponíveis o efeito é de uma refração. Lugares marcados pela luz e pela sombra, não lugar de luz, como na fotografia 1. 255


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Foto 1: Por do Sol na cidade de Jequitinhonha

Fonte: arquivo pessoal Silvania Nascimento, 2009

Em limiares, brechas e fendas, as franjas de interferências! Este comportamento dual, finamente estudado por Louis de Broglie em 1924 permitiu a ciência ocidental iniciar uma nova aventura sobre sua relação com a natureza, quebrando o tempo e o espaço absoluto. A exploração do domínio quântico, iniciada por Planck (1858-1947), avançou a ideia do comportamento luminoso de partículas em movimento (fótons) para emissão de radiação eletromagnética passando pela faixa do visível. A luz não é unicamente partícula que voa, nem ondas que partem, mas um espectro de radiação de comportamento dual. A luz de uma cor vermelha não muito brilhante, fria, passa finalmente para uma cor branca-azulada, quente e vibrante, como o leve arco-íris da fotografia 2. 256


Formação Histórica, Populações e Movimentos

Foto 2: Leve arco-íris no Rio Jequitinhonha

Fonte: arquivo pessoal Silvania Nascimento, 2009

Nossa metáfora busca um planejamento museológico de transculturação, no sentido de um jogo de espelhos na criação de imagens. Buscamos abandonar o “olhar refratado”, no qual os colonos se enxerguem através do olhar do colonizador. O transculturador é um agente cultural e enquanto tal busca fazer prevalecer a heterogeneidade. Essa foi uma das posturas adotadas pelo escritor mineiro Guimarães Rosa que ao escrever uma obra literária como Grande Sertão: Veredas dominou a cultura do colonizador para jogar luz sobre nossa própria cultura.312 Adotamos o termo de transculturação para abandonar a dicotomia estabelecida por abordagens já ultrapassadas, como aquelas que consideram 312 BATISTA, 2003.

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uma hierarquia entre uma cultura dominante e uma cultura popular ou entre as diversas formas de analisar a pluralidade das culturas. As indagações sobre as culturas remetem frequentemente às identidades. No âmbito das ciências sociais, o conceito de identidade se caracteriza por sua polissemia e fluidez e podemos considerá-lo uma construção social relacional que opõe um grupo aos outros com os quais está em contato.313 Assim as identidades se constituem no reconhecimento do outro, como afirmação do sujeito. As diferenças de identidade em uma comunidade não podem ser definidas de forma absoluta, sem se considerar o contexto maior de todos os “outros” em relação aos quais a particularidade adquire um valor relativo. O objeto de memória se torna movimento de passagem, de interface entre as culturas em movimento, como a ponte da fotografia 3. Foto 3: Ponte sobre o Rio Jequitinhonha

Fonte: arquivo pessoal Silvania Nascimento, 2009

Estudiosos sobre o conceito de memória destacam sua função de referência mnésica para os povos, independente da forma de registro que os mesmos 313 CUCHE, 2002, p.182.

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desenvolveram. Civilização e cultura passam pela existência de mecanismos de memória que garantem a perpetuação de uma identidade coletiva. A sociedade conserva de forma diferente seus conhecimentos que muitas vezes surgiram das células sociais de uma etnia. Inicialmente os depositários da memória foram restritos aos “homens-memória” como cita Le Goff.314 Este historiador destaca duas formas de desenvolvimento do registro da memória. Primeiro, aquele da comemoração e celebração através do monumento comemorativo de um acontecimento memorável. Segundo, o documento escrito em um suporte, seja osso, estofo, pele, palmeira, barro, ouro, nosso papel ou forma digital, que assegura, por um lado, a passagem da esfera individual à coletiva, e por outro lado, o compartilhamento auditivo e visual que permitem reexaminar, reordenar, retificar e até isolar palavras e informações. A evolução das formas de registros ligados à memória e o aparecimento e difusão da escrita, especialmente nas sociedades de organização urbana, provocaram, segundo Le Goff, uma passagem da oralidade à escrita e à criação de depositário da “memória artificial”. Dessa forma aparecem as instituições-memória: arquivos, bibliotecas e museus. Essa passagem permitiu a memorização palavra por palavra e os processos mnemotécnicos retóricos em substituição ao rito do “contar e recontar” das sociedades tradicionais. Um efeito contraditório dessa passagem é a busca por uniformizar a interpretação da palavra, pela lista e ordenação da informação, com a imagem de que saber de cor é conhecer. Os mestres da Idade Média criaram vários métodos mnemotécnicos para compor poemas alfabéticos, glossários e léxicos de listas de montanhas, rios, oceanos ou mesmos exercícios orais para teste de conhecimentos. Como uma parte da Retórica, a arte da memória viajou pela tradição européia. Na Idade Clássica, os sábios traçaram regras e preceitos para aprimorar a memória. Dentre os princípios gerais da mnemônica, um passo inicial era imprimir na memória uma série de loci, lugares. O tipo mais comum do sistema mnemônico de lugares, embora não único, era o tipo arquitetônico. Para se formar uma série de lugares na memória, deve-se recordar uma construção, a mais ampla e variada possível, seus pátios, quartos, estátuas, ornamentos de decoração etc. As imagens por meio das quais o discurso será lembrado são, então, colocadas pela imaginação em lugares da construção que foram memorizados. Isso feito, tão logo a memória dos fatos precise ser reavivada, percorrem-se todos esses lugares sucessivamente. O método garante que os pontos sejam lembrados na ordem certa, já que a ordem é fixada pela seqüência dos lugares da tal construção315.

314 LE GOFF, 1996. 315 YATES, 2007.

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Vale do Jequitinhonha

Nós, os chamados de “modernos”, muitas vezes somos acusados de “sem memória”. Será que perdemos a capacidade de nos expressarmos através dos objetos de memória? A memória se torna elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual ou coletiva, para constituir a recordação e a tradição do grupo social. Porém não podemos nos esquecer que as identidades culturais são constituídas no interior das relações de poder. Para nosso ensaio de planejamento museológico, consideramos o conceito de memória como um movimento do fundo para a superfície… das trevas para a luz, visível e invisível, temporário entre o sujeito e o “outro”. Uma relação de significado social atribuída à lembrança que, ao ser exposta, sai do subsolo da memória como na fotografia 4. Foto 4: Entrada do subsolo da Casa de Cultura de Jequitinhonha

Fonte: arquivo pessoal Silvania Nascimento, 2009

3.2. Um museu imaginário, de luz e sombra Nosso ensaio curatorial congrega os conceitos de memória e identidade do Vale na busca de constituir um espaço de encontro e centro de referência das diversas manifestações culturais do Vale do Jequitinhonha. A estrutura arquitetônica desse museu persegue, juntamente com a concepção das exposições do acervo, uma tessitura do todo e dos fragmentos. Esse posicionamento transforma o museu em lugares de encontros de discursos, de discussão e de 260


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trocas de informações, abertos a todos e conectados às redes de informação e de conhecimento, por isso se constitui em percursos de memória e identidade. Nesse sentido, propomos a eleição de lugares representativos de identidades presentes no território, definido pelo curso do Rio Jequitinhonha, como núcleos irradiadores de um conjunto de atividades de desenvolvimento sustentável que apontarão para o visitante distante, mas também para a comunidade local, diversos percursos, segundo abordagens temáticas da paisagem do Vale. A concepção museológica, aqui defendida, visa a gestão e a construção de centros de referências com o objetivo de troca cultural permanente entre passado, presente e futuro e o desenvolvimento, em longo prazo, de novas linguagens expositivas dialogadas com os pontos culturais apontados na região. Esses núcleos irradiadores, uma vez definidos enquanto territórios, funcionarão como centros de referências e gestores das atividades educativas e de sustentabilidade do museu. Procuramos selecionar núcleos comunitários que geograficamente representassem o percurso do rio, da nascente à foz. Nosso objetivo é promover atividades culturais nesses núcleos comunitários e, a partir deles, apontar novos lugares de visita e descoberta de experiências culturais. A abordagem temática dos percursos busca privilegiar as instituições de memórias e os homens e as mulheres de memórias, atingindo, assim, aspectos das memórias individuais e coletivas, das celebrações, dos saberes, dos fazeres e das ocupações humanas como temáticas organizacionais da museologia. Essa abordagem relaciona-se à cultura material e imaterial apontando bens culturais (objetos, fazeres e saberes em uma paisagem) que compõem a região, favorecendo a preservação de diferentes identidades e memórias sociais.

Conclusão Localizada no baixo Jequitinhonha, a cidade de Jequitinhonha foi eleita como núcleo de um dos centros de referência de nosso museu imaginário em função de sua posição junto ao Rio com o qual compartilha o mesmo nome. Possui uma história de ocupação indígena e ainda hoje a população local recebe influência dessa cultura. A comunidade local se mostra empenhada em manter e preservar seu patrimônio através do registro inventariado das obras e edificações históricas, bem como a manutenção de festividades regionais, recebendo destaque a festa do “Boi Janeiro”. Trata-se de uma festa popular realizada nos primeiros dias de janeiro que coloca como grande atração o vaqueiro com seus trajes típicos. 261


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Jequitinhonha se destaca por sua beleza natural, por suas manifestações culturais, e por seu acervo arquitetônico. Os sítios arqueológicos, espeleológicos e paleontológicos encontrados na região também merecem destaque e o museu pode vir a exercer esse papel, permitindo que os visitantes conheçam e preservem esse patrimônio. A proposta museológica consiste no desenvolvimento do ambiente interativo (suporte principal da museografia) em torno de uma abordagem antropológica do conceito de cultura que aponta para a mediação dos sujeitos em percursos possíveis no entorno da região. No ambiente interativo o visitante terá acesso às exposições de objetos e documentação em planos diferentes definindo olhares possíveis pelo Vale. Assim, um visitante de um núcleo poderá estar virtualmente ligado a outros. Cada núcleo pode “dar uma luz” através de sua própria interpretação formando um olhar geral sobre a paisagem do Jequitinhonha. Placas interpretativas, reportando informações do todo e das partes nas unidades dos grupos sociais de manifestações culturais que serão representados, estabelecerão um diálogo entre o visitante, a paisagem e o museu, assim outros percursos são abertos à visitação independente dos previstos na concepção inicial. Essa lógica se repetirá nos demais núcleos, constituindo, assim, uma trama de percursos sobre o vale, guiada pelas salas de interpretação em cada um dos núcleos. Dessa forma, buscamos criar uma materialidade discursiva que elege lugares de memória e transforma os indivíduos em sujeitos e as memórias individuais em coletivas. A Casa de Cultura da Cidade de Jequitinhonha, mantida pela Fundação Dona Mercedes, é um exemplo de núcleo irradiador. Seu aspecto construtivo neoclássico evidencia o encontro de múltiplos olhares presentes não unicamente nesta urbanidade, mas em todo Vale. A casa mostrada na fotografia 5, metáfora de lugar de encontro e de movimento, admite o diálogo de várias identidades e de memórias. Como centro de irradiação cultural, possui um acervo eclético, fruto do trabalho incansável de seu mecenas, mas com a consolidação do projeto tenderá a abrigar outros acervos e constituir também o movimento de expansão cultural que a cidade vive. Contornada pelo profundo azul do céu do Vale, este núcleo pode irradiar a expressividade de identidades e memórias em movimento atravessando as fendas do esquecimento que nossa vida contemporânea nos impõe.

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Foto 5: Entrada da Casa de Cultura de Jequitinhonha

Fonte: arquivo pessoal Silvania Nascimento, 2009

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Autores

Ana Tereza Faria Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008). Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia Rural, atuando principalmente nos seguintes temas: campesinato e populações quilombolas. É pesquisadora-fundadora do Núcleo de Estudos em Populações Quilombolas e Tradicionais, NuQ/ UFMG. Andréa Luisa Moukhaiber Zhouri Professora Associada do Departamento de Antropologia e da Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFMG. Coordena o Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA). Doutora em Sociologia pela Universidade de Essex, Inglaterra. Criou a linha de pesquisa Meio Ambiente e Sociedade na pós-graduação em Sociologia e atua em ensino, pesquisa e extensão abordando os temas: conflitos socioambientais, justiça ambiental, desenvolvimento sustentável, organizações não governamentais e movimentos ambientalistas. Carlos Eduardo Marques Possui graduação em Ciências Sociais (2005) e mestrado em Antropologia (2008), ambos pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor da Faculdade de Ciências Jurídicas da FEVALE/UEMG. É membro do Grupo de Trabalho Quilombos da Associação Brasileira de Antropologia e pesquisador-fundador do Núcleo de Estudos de Populações Quilombolas e Tradicionais, NuQ/UFMG. Tem experiência na área de Antropologia e Direito e em educação de jovens. 265


Vale do Jequitinhonha

Deborah Lima Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1980), mestrado (1982) e doutorado (1992) em Antropologia Social pela Universidade de Cambridge. É Professora Associada II do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Atua principalmente em questões ligadas à Antropologia das Populações Tradicionais, geralmente na Amazônia e enfocando a temática socioambiental. Em Minas Gerais, coordena o Núcleo de Estudos em Populações Quilombolas e Tradicionais, NuQ/UFMG. Eduardo Magalhães Ribeiro É Economista, Professor Associado da UFLA/UFMG, pesquisador do CNPq, pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Apoio à Agricultura Familiar Justino Obers (Núcleo PPJ). Fernanda Oliveira Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2006). É pesquisadora-fundadora do Núcleo de Estudos de Populações Quilombolas e Tradicionais, NuQ/UFMG. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em populações afro-descendentes, religião e patrimônio cultural imaterial. Flávia Maria Galizoni É Antropóloga, professora adjunta do ICA/UFMG e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Apoio à Agricultura Familiar Justino Obers (Núcleo PPJ). João Antônio Gonçalves É técnico agrícola, sócio do Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica, vereador no município de Turmalina (MG) na gestão 2009-2012. João Valdir Alves de Souza É bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela FAFICH/UFMG (1990), mestre em Educação pela FAE/UFMG (1993) e doutor em História e Filosofia da Educação pela PUC/SP (2000). Em 2009, realizou pós-doutorado no Centro de Desenvolvimento Sustentável da UNB. É Professor Associado de Sociologia da Educação na Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da FAE/UFMG. 266


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José Murilo Alves de Souza É técnico agrícola do Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV). Luís Carlos Mendes Santiago É natural de Belo Horizonte, mas reside no Vale do Jequitinhonha há cerca de 20 anos. É graduado em História pela Unimontes e autor da série O Vale dos Boqueirões , sobre a história da região (da qual já foram publicados 3 volumes), entre outros livros de história regional e poesias, além de traduções. Márcio Simeone Henriques É Doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais, onde é professor e pesquisador. Coordenador Executivo do Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha. Marcos Cristiano Zucarelli Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente é pesquisador do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG). Tem experiência na área de Sociologia e Meio Ambiente, com ênfase nos seguintes temas: conflitos ambientais, licenciamento ambiental, desenvolvimento sustentável, justiça ambiental, agrocombustíveis, deslocamentos compulsórios decorrentes de projetos de infra-estrutura e criação de unidades de conservação. Maria Cândida Trindade Costa de Seabra Pós-doutora em Linguística (USP), doutora em Linguística (UFMG), mestre em Língua Portuguesa (UFMG), graduada em Letras (UFMG) e em Comunicação Visual (UEMG). Professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais, com experiência na área de Linguística, ênfase em Língua Portuguesa, atuando principalmente nos seguintes temas: línguística histórica, léxico, lexicografia, toponímia. Membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e da Academia Marianense de Letras. Marivaldo Aparecido de Carvalho É bacharel e licenciado em Ciências Sociais, especialista em Povos Indígenas e Doutorado em Sociologia pela UNESP-SP. É Professor de An267


Vale do Jequitinhonha

tropologia da Faculdade de Ciências Biológicas e da Saúde da UFVJM. Coordenador do Grupo de Estudos dos Povos Indígenas de Minas Gerais (GEPIMG). Autor do livro “Introdução à práxis indígena: gente humana ou gente natureza”. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. Atualmente, desenvolve pesquisa junto aos Maxakali de Ladainha financiada pela FAPEMIG. Rafael Barbi Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007). Atualmente é aluno do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, pela mesma Universidade. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Etnologia Indígena, atuando principalmente na temática de povos indígenas de Minas Gerais. É pesquisadorfundador do Núcleo de Estudos de Populações Quilombolas e Tradicionais, NuQ/UFMG. Ralfo Matos Professor Associado do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da UFMG, supervisor do Laboratório de Estudos Territoriais (Leste/IGC), pesquisador do CNPq, demógrafo e mestre em Economia Urbana e Regional (Cedeplar). Atua em diversos projetos de pesquisa nas áreas de Geografia da População, Geografia Histórica, Distribuição da População no Espaço, Rede de Cidades, Desenvolvimento e Desigualdade Socioespacial. Ricardo Alexandrino Garcia Psicólogo social pela Universidade de São Paulo (1995), mestre em Demografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2000) e doutor em Demografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2002). Atualmente é professor/pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais e professor voluntário do Departamento de Geografia do mesmo Instituto. Tem experiência de pesquisa nas áreas de Psicologia Social e do Trabalho, Demografia, com ênfase em Projeção Populacional e Migração, Economia Regional, Geografia Econômica e Teoria e Métodos Quantitativos, atuando principalmente nos seguintes temas: análise territorial, modelagem de sistemas dinâmicos e desenvolvimento econômico e social. 268


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Ricardo Ferreira Ribeiro É sociólogo e viveu no Vale do Jequitinhonha por mais de dez anos, na década de 1980, atuando pela Secretaria do Trabalho e Ação Social. Nessa ocasião, participou na fundação do Centro de Assessoria aos Movimentos Populares do Vale do Jequitinhonha (CAMPO/VALE). Atualmente, é professor adjunto na PUC-MINAS e no Centro Universitário UNA. Silvania Sousa do Nascimento Graduada em Física pela UFMG (1983), mestre em Ensino de Ciências (Modalidade Física e Química) pela Universidade de São Paulo (1990), doutora em Didactique Des Disciplines - Sciences et Technologies pela Université Paris VI (1999) e com pós-doutorado em Educação pela UNICAMP (2008). Exerceu o cargo de Superintendente de Museus da Secretaria de Estado da Cultura MG (2005-2007) e é Professora Associada do DMTE e do Programa de PósGraduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Possui experiência na área de Educação em espaços escolares e não escolares, com ênfase em Cultura, Ensino de Ciências Física e Astronomia, atuando principalmente nos seguintes temas: ensino de ciências, formação de professores, didática comparada e museus de ciências.

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Rettec, artes grรกficas. Tel. (11) 2063-7000 - fax (11) 2061-8709 E-mail:rettec@rettec.com.br



ISBN-978-85-88221-24-6

PROEX UFMG Pró-Reitoria de Extenção 9 78858 8 221246


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