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Uma Índia budista

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Glossário

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Imersa em um território que é palco de conflitos há anos, a região do Ladakh fica aos pés do Himalaia e guarda grandes descobertas aos viajantes

Foram sete anos de uma longa espera para visitar a região do Ladakh, que fica no norte da Índia, aos pés do Himalaia e na fronteira com o Paquistão. Uma região que há muito tempo está em conflitos por conta de uma disputa territorial entre a Índia, o Paquistão e a China.

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A região da Caxemira, como é conhecida, é disputada desde a década de 1950 pela China, quando, durante o domínio britânico na Índia, foram traçadas fronteiras entre os dois países. Em

1962, houve uma guerra que resultou em uma humilhante derrota militar para a Índia. Desde então, a Índia e a China se acusam mutuamente de invasão. Nas últimas três décadas, ocorreram várias rodadas de conversas, mas todas falharam em qualquer tipo de negociação. Outro agravante é a suspeita de que a China tem a respeito da relação e proteção entre o governo indiano e o líder tibetano Dalai Lama, que fugiu para esta região da Índia em 1959 logo após a China ter dominado o

Tibete, e foi muito bem recebido e protegido desde então pelo país.

O Paquistão está envolvido nesses conflitos desde 1947, quando, no fim da Segunda Guerra Mundial e também da ocupação britânica na Índia, o país ocupou parte desta região, chegando a guerras em três ocasiões. A Caxemira tem vital importância em relação aos recursos hídricos, abrangendo a localização das nascentes dos rios Ganges e Indo, os principais rios da Índia e Pa- quistão. É uma região que sofre constantemente com conflitos entre esses três países. Atualmente, o Paquistão ainda parece determinado a ganhar o controle do estado indiano da Caxemira, e o principal argumento é que a maior parte da população da Caxemira é muçulmana e que seu desejo é fazer parte do Paquistão, mas são impedidos de fazê-lo por um governo indiano opressor. A ameaça de guerra na região é iminente, pois ambos os países são altamente militarizados. Com a pandemia, essas questões foram amenizadas por um momento, o que me levou a tomar a decisão de conhecer essa tão conflitante região da Índia.

Apesar da alta temporada ser de novembro a abril, só é possível visitar o Ladakh nos meses de junho, julho e agosto, auge do verão indiano e época das monções no restante do país. Nessa região, no entanto, os invernos são rigorosíssimos, com temperaturas que chegam a 25 graus negativos e estradas que ficam bloqueadas pela neve, tornando o verão a época correta para uma viagem.

Meu trajeto começou por Nova Délhi, a porta de entrada do país e minha velha conhecida, onde já estive muitas vezes. Optei por passar quatro noites na cidade e aproveitar os ótimos restaurantes e o excelente comércio local. Me hospedei no hotel de sempre, o clássico The Imperial, no coração da cidade. Seu estilo art déco é inconfundível, com uma coleção majestosa de cerca de cinco mil obras de arte espalhadas por todos os lados. O hotel foi testemunha de vários acontecimentos históricos importantes, como a criação da nação do Paquistão em plena Segunda Guerra Mundial e várias reuniões políticas organizadas por Nehru, Primeiro Ministro pós independência dos britânicos e pai de Indira Gandhi, que mudaram o rumo do país. Dei muita sorte com o clima, em pleno auge do período de monções, não peguei nenhum dia de chuva. Em compensação, o calor estava fortíssimo.

Aproveitei meus dias para revisitar alguns pontos turísticos do meu coração, como a Jama Masjid, a maior mesquita da Índia. Localizada em Old Delhi, a parte antiga da cidade, ela é cercada por um comércio local de encher os olhos. O Túmulo de Humayun também entrou no roteiro, já que o mais antigo mausoléu mogol de Delhi, erguido no século XVI, é uma das mais extraordinárias construções da cidade. Fiz também um bate e volta até Agra para rever o Taj Mahal pela terceira vez. Optei pela viagem de trem, que durou cerca de três horas e foi bem tranquila. Lindo, imponente e com uma energia única, o famoso “Templo do Amor” sempre emociona. Com o fuso horário acertado, era hora de voar para Amritsar, cidade do estado do Punjab no noroeste do país, que faz fronteira com o Paquistão. A cidade foi fundada em 1577 e é o centro da religião Sikh. O siquismo é uma religião monoteísta e é retratado como um sincretismo entre elementos do hinduísmo, islamismo e sufismo (um ramo do Islã). Para o siquismo, Deus é eterno e sem forma, impossível de ser captado em toda sua essência; ele foi o criador do mundo e dos seres humanos e deve ser alvo de devoção e de amor por parte dos humanos. A religião ensina também que os seres humanos estão separados de Deus por egocentrismo, que faz com que permaneçamos presos no ciclo dos renascimentos (samsara) e não alcancemos a libertação, que no siquismo é entendida como a união com Deus. Eles também acreditam no karma, segundo o qual as ações positivas geram frutos positivos e permitem alcançar uma vida melhor, em conjunto com o progresso espiritual, e a prática de ações negativas leva à total infelicidade.

O maior símbolo do siquismo é o Golden Temple, em Amritsar. O Templo Dourado recebe cerca de cem mil pessoas por dia, e ali são servidas setenta e cinco mil refeições diárias. Tudo é muito bem organizado e extremamente limpo. A cozinha funciona 24 horas por dia, 365 dias por ano. Um dos pilares do siquismo tem por regra que todos devem reservar algumas horas do seu dia para servir o outro. Nesse templo, ocorre o voluntariado mais lindo que já presenciei na vida. Todos trabalham sem remuneração e servindo ao próximo, sem esperar nada em troca. Toneladas de comida são feitas todos os dias em diversas cozinhas gigantescas, e o templo se mantém através de doações. Há uma fila imensa para entrar no Templo Dourado dentro do complexo e ver o livro sagra- do todo em ouro. Eu fiz uma tentativa de ficar na fila e por longas duas horas, até que literalmente desmaiei de tanto calor… errei no horário da visita, era meio-dia e o sol estava a pino. Uma dica importante é organizar sua visita bem cedo ou no fim do dia, quando o calor ameniza bastante. O templo também é muito bonito à noite, quando fica todo iluminado.

A segunda atração em Amritsar é a visita à fronteira entre a Índia e o Paquistão, a Wagah Border, onde diariamente no pôr do sol acontece uma cerimônia com os soldados nos lados indiano e paquistanês. O lado indiano é uma verdadeira festa, estilo Bollywood, com muita música e uma torcida super organizada. O lado paquistanês é mais discreto e tem uma torcida mais tímida. Em um determinado momento, o portão que divide os dois países se abre e surge uma disputa pelo lado que grita mais alto. Há um enfrentamento simbólico entre os soldados dos dois países. Antigamente, os turistas podiam atravessar a fronteira. Depois do sério conflito de 2019, a prática foi proibida.

Com relação à minha estadia, duas noites foram suficientes em Amritsar, e nos hospedamos no ótimo Taj Swarna, bem localizado no centro. Depois de deixar a cidade, partimos para a ter- ceira e última etapa da viagem, o tão aguardado Ladakh. O sobrevoo pelos Himalaias a caminho da capital Leh é daqueles impactantes. A famosa cadeia montanhosa é belíssima de todos os ângulos. Na saída do avião, já fomos avisados de que fotos são expressamente proibidas no aeroporto. Essa região é altamente militarizada e tudo é muito controlado pelo exército devido aos conflitos de fronteira. Fomos rigidamente revistados, assim como nossos pertences, e precisamos preencher um formulário de entrada com muitas informações. É fundamental ter uma operadora local cuidando de todos esses detalhes e também da logística. Além de um guia local acompanhando o tempo todo, principalmente porque poucos falam inglês na região.

Leh é uma cidade que muito me lembrou Lhasa, a capital do Tibete. Não à toa esta região é carinhosamente chamada de “Little Tibet”. Após a anexação do Tibete pela República Popular da China em 1959, o líder religioso Dalai Lama fugiu para o local, precisamente para cidade de Dharamshala. A Índia o recebeu de braços abertos para o exílio e cuida de sua segurança com muita rigidez. Há um exército de elite especialmente treinado para cuidar de sua segurança pessoal, uma espécie de “Mossad”, como há em Israel.

Ficamos hospedados no Grand Dragon, considerado o melhor hotel da cidade. Ali, fizemos nossa base para explorar a região de carro. Um lindo e aconchegante hotel com uma vista belíssima dos Himalaias e um belo jardim, com confortáveis acomodações, nos aguardava para nossa estadia ser perfeita. Gastronomia de qualidade com clássicos da culinária indiana e influência tibetana, sem abrir mão da internacional para aqueles que não se dão bem com a culinária local.

A dica é descansar no dia da chegada para ir aclimatando, já que a altitude na região é grande. Leh fica a 3.500 metros do nível do mar e é ex- tremamente seca, quase desértica. É fundamental aumentar a ingestão de líquidos e evitar esforço físico nos primeiros dias para que não haja problemas com a altitude, que chega a quase quatro mil metros nos arredores da cidade.

O hotel fica no coração da cidade, a um quilômetro da avenida principal, onde se concentra o comércio local. Muitas lojas de roupas, artesanato, belos antiquários, joalherias bem parecidas com as de Kathmandu, no Nepal e, claro, dezenas de lojas de cashmere, afinal, estamos na Caxemira, um dos maiores produtores de lã do mundo. Essa lã é bem específica, retirada do subpelo do pescoço da cabra, área que não sofre nenhum tipo de atrito e não fica exposta ao sol e nem à chuva, tampouco causa dano físico ou trauma ao animal. Essas cabras são criadas na parte mais alta da Caxemira, exatamente onde estive, uma região caracterizada por extremas mudanças de temperatura. Por isso, elas desenvolvem uma camada de pelo que permanece em contato com a pele para aquecer do frio até determinada época do ano, na qual as temperaturas ficam mais amenas e ocorre o processo natural de troca de pelo. As lojas oferecem várias categorias de cashmere, e as de maior qualidade valem super a pena com preços bem atraentes, ainda que caros. As peças bordadas a mão podem levar até um ano para serem produzidas, pois o processo é feito manualmente por um artesão local, desde a separação do pelo, passando pela junção da trama até a finalização do bordado. Além disso, a raridade vem da quantidade limitada de produção desse pelo, uma vez que é necessária a junção do material, com uma média de pelo de sete animais para confecção de uma peça. Graças à estrutura natural da fibra, o cashmere possui propriedades de isolamento térmico incríveis. O ar preso nos pequenos espaços entre as fibras forma uma barreira natural que ajuda a conter o calor do corpo e evitar que o frio atinja a pele. Quanto mais fina a fibra, maior é o isolamento e mais macio o toque.

Lá, se esquece a Índia hinduísta, aquela dos deuses de inúmeras representações: o budismo é predominante em toda a região. Foram muitas experiências em Leh, mas ressalto uma importante, a oportunidade que tivemos logo na nossa chegada de participar de uma roda de conversa com um monge budista, Thupstsn Paldan, que veio ainda criança para o exílio junto ao Dalai Lama quando a China dominou o Tibete em 1959. Ele fugiu com sua família, que se estabeleceu em Leh, e entrou para a vida monástica abrindo mão de tudo em nome de uma carreira religiosa. Foi uma conversa emocionante na qual aprendemos um pouco sobre como é a dura rotina de um monge. A vida é basicamente resumida em estudar, rezar e trabalhar, além de ser muito modesta. Como consequência, eles não possuem muitos pertences e renunciam quaisquer riquezas. Os monges também não exercem qualquer tipo de profissão remunerada, vivendo de doações e atividades sustentáveis. Muitas crianças entram para o monastério por ser uma espécie de “status social” para a família, e também por oferecer segurança econômica para a criança, com estudo, casa e comida. Poucos chegam, hoje em dia, aos 21 anos e por escolha continuam a viver em um monastério. A maioria desiste e abdica da duríssima vida monástica.

O turismo ao redor de Leh se baseia em visitas a monastérios, cada um com sua beleza, história e particularidades. As estradas são excelentes, novas e bem sinalizadas. Há muitos motoqueiros por todos os lados e há uma boa estrutura com apoio aos motociclistas. Vi muitos grupos de turistas e suas motos pelas estradas!

Nossa primeira parada foi na Shanti Stupa, que fica em Chanspa, nas imediações de Leh, a 3610 metros de altitude, de onde é possível desfrutar de vistas panorâmicas da paisagem circundante de Leh. Construída por iniciativa de um rico japonês, Gyomyo Nakamura, foi inaugurada em 1991 pelo décimo quarto e atual Dalai Lama. Na parte inferior da estupa, encontram-se relíquias de Gautama Budha e um espaço onde fizemos uma poderosa meditação em grupo. Em seguida, fomos ao Leh Palace, construído nos moldes do Potala, no Tibete. Um monastério bem menor, porém com uma linda vista e um museu na parte interior.

No segundo dia, fomos até Lamayuru Gompa. Esse lindo e antiquíssimo monastério fica a três horas de carro de Leh e, no caminho, vale a parada estratégica para ver a confluência dos rios Zanskar e Indo. Seguimos viagem até Alchi Gompa, a setenta quilômetros de distância, com muitas estátuas de Buda e uma energia sem igual. Fotos são proibidas no local.

No dia seguinte, fomos ao Shey Village, a vinte quilômetros de Leh, e visitamos o lindo palácio de Shey Palace, onde vivia a família real. Uma enorme estátua de Buda com sete metros e meio de altura em ouro é o destaque do templo. A quarenta quilômetros de Leh está o Hemis Gompa, o maior do Ladakh. É famoso pelo festival que ocorre no início do verão, onde é comemorado o aniversário do Guru Padma Sambhava’s. Foi construído em 1630 e é de uma beleza ímpar. Achei parecidíssimo com os Dzongs que visitei no Butão.

Não poderíamos deixar de conhecer o famoso Thiksey Monastery, também no Shey Village. É o maior monastério da região e muito parecido com o Potala, na capital tibetana. Eu literalmente me senti no Tibete, com inúmeras paredes pintadas com as famosas Thangkas, pinturas que são como importantes ferramentas de ensino que descrevem a vida de Buda, de vários lamas influentes, além de outras divindades e bodisatva que estão lindamente representadas. São muitos templos e gompas na parte interna do Monastério. O que mais me chamou a atenção foi a gompa com a representação do Buda Maitreya, que no budismo significa o “Futuro Buda”. Ele é representado em seu lar, o chamado “céu dos contentes”, e permanece neste local aguardando o momento oportuno para apresentar-se diante dos homens. Seguindo os textos que destacam essa profecia, Maitreya será bem acolhido pela humanidade, pois suas propostas estão impregnadas de bondade espiritual. De acordo com a profecia, a vinda de Mai-

O treya será acompanhada de um sinal: as águas dos oceanos diminuirão. Assim que aparecer entre os homens, se formará uma nova ordem social baseada no amor e na tolerância, já que o novo Buda conhece as preocupações que afligem os homens e quer ajudar.

Voltei de viagem com lembranças maravilhosas e a certeza de um sonho realizado em conhecer esse canto da Índia totalmente diferente do restante do país. Senti uma paz e uma energia únicas neste lugar, além de vivenciar e me aprofundar ainda mais no budismo, religião que tanto admiro.

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